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ANOTAÇÕES PARA

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Marcos Aurélio Fernandes

FENOMENOLOGIA

À CLAREIRA DO SER II: POR ENTRE AS COISAS DA


FENOMENOLOGIA RUMO À COISA DO PENSAR
O QUE É FENOMENOLOGIA?

O que é fenomenologia? Faz parte, essencialmente, da fenomenologia,


perguntar sobre si mesma, sem jamais assegurar uma compreensão de si, que dispense
de toda ulterior pergunta. Mas, o perguntar sempre de novo e de modo novo "o que é
fenomenologia?" não é um patinar no mesmo lugar. A pergunta surge, sempre de novo,
a caminho, no destinar do pensamento. Ora, uma das coisas que Husserl nos ensinou, é
que a fenomenologia é um método de investigação filosófica, que pergunta pela
essência das coisas, isto é, pelas suas possibilidades, e não pelas suas factualidades.
Tomemos, pois, a "coisa" chamada "fenomenologia"! A pergunta "o que é
fenomenologia?" pergunta pela essência - e não pelo fato, pela ideia e possibilidade, e
não pela realidade.

Como fato e realidade, a fenomenologia é um movimento filosófico, científico e


cultural, que irrompe a partir das Investigações Lógicas de Husserl. A partir destas
investigações formou-se um conceito de método e este conceito de método - e seu
"espírito" - possibilitou um modo diverso de colocar questões do pensamento (filosofia)
e de pesquisar problemas do conhecimento (ciência). Deste modo diverso ou do seu
"espírito" foram surgindo pensadores, investigadores, pesquisadores, e, em torno
destes, círculos de pensadores, investigadores, pesquisadores. O círculo destes círculos,
em perene circulação, por meio do diálogo e da discussão, é o que se chama de
"movimento fenomenológico". O "espírito" (sopro, alento, força de vida, vitalidade)
deste método, que inspirou estes círculos, animou este movimento, cunhou modos de
pensar, conhecer e agir, constituindo, assim, de certo modo, uma "mundividência"
(Weltanschauung). A "mundividência", porém, vê a realidade, mas é cega para si mesma
e suas pressuposições. A mundividência tende, assim, a solidificar e a estiolar o
movimento, a esquecer o rigor do método, e, assim, a realidade sufoca a possibilidade,
o fato deforma e encobre a essência, a ideia da fenomenologia. Por isso, para que a
fenomenologia se mantenha fenomenológica, é preciso sempre de novo pensar a fundo
sua essência, sua ideia, sua possibilidade, tentando atravessá-la e ir para além e para
fora dela (enquanto realidade). Por isso, um fenomenólogo não deve se preocupar se a
fenomenologia, como realidade, fato, desaparece da história e se ela fica sendo apenas
um capítulo num livro de história da filosofia ou um verbete num dicionário filosófico
ou não. Não deve se preocupar se o nome fenomenologia desaparece. O importante é
que a coisa que o nome evoca, isto é, a ideia, isto é, a possibilidade, o espírito, continue
viva e vivificante.

Mas, em que consiste esta essência, ideia, possibilidade – este espírito?


Fenomenologia é, essencialmente, conceito de método. Método, aqui, não é um
procedimento técnico, seja da filosofia, seja da ciência. Método é caminho: modo de
caminhar na investigação das questões do pensamento (filosofia), de caminhar na
pesquisa dos problemas do conhecimento (ciência). Mas, o caminho e a coisa para a
qual o caminho se encaminha, como busca, não podem ser duas coisas. Precisam ser
um. Esta unidade de método e coisa é o fenomenológico de uma investigação filosófica,
de uma pesquisa científica. Isto quer dizer: que a coisa buscada se dê, ela mesma e a
partir de si mesma, àquele que a busca, investigando questões, pesquisando problemas;
que o discurso sobre a coisa deixe e faça ver ela mesma, desde si mesma, em seu revelar-
se direto e imediato; que o caminhar do pensamento ou do conhecimento abra o acesso
a esta revelação, manifestação, colhendo e recolhendo-a em seu dar-se e retrair-se, em
desvelar e velar, em seu desencobrimento e encobrimento, em seu vir à presença e em
seu ausentar-se. Este talvez seja o sentido do "princípio dos princípios" - o princípio de
intuição e de evidência - nomeado por Husserl e da chamada "às coisas mesmas". Ora,
tudo isso significa que praticar fenomenologia é uma tarefa árdua, um trabalho duro.
Pois podemos lidar apenas com palavras vazias e não com evidências preenchedoras;
com as desfigurações e os descoramentos das aparições das coisas e não com as coisas
mesmas em sua figura e brilho originários; com os entulhos de representações que
foram lançados sobre as coisas e não com elas mesmas; com meras aparências
transmitidas em pareceres e opiniões correntes e não com a essência mesma destas
coisas, tal como elas as revelam. Por isso, praticar fenomenologia é, talvez, lutar pela
revelação das coisas mesmas, para que, através e para além de toda aparência e
parecer, aconteça em seu desvelamento e em seu velamento, em seu desencobrimento
e em seu encobrimento, em sua presença e ausência. Esta é a luta do pensar. Pensar
não é, aqui, representar, julgar, raciocinar, argumentar, construir doutrinas. Pensar é,
aqui, empenhar-se e lutar pela revelação das coisas mesmas em seu vir a ser, que,
sempre de novo, recolhe em si o ser e o nada; empenhar-se contra o mero aparecer das
coisas (ilusão) e os meros pareceres dos homens (opiniões); lutar contra o não-ser
(quando as coisas são, mas, para nós, são como se não fossem!), pela revelação do ser
e do nada das coisas. Praticar, pois, fenomenologia, é deixar-ser a fenomenologia das
coisas.

Mas, o que é isso: a fenomenologia das coisas? A fenomenologia das coisas é a


sua própria re-velação: o recolhimento (lógos) do seu desencobrimento (descoberta,
abertura, desvelamento) e do seu encobrimento (recusa, oclusão, velamento); o
recolhimento do seu ser (presença, vigência) e do seu nada (ausência, retraimento) no
seu vir-a-ser. No entanto, mesmo o mero aparecer só pode acontecer a partir de um
aparecer verdadeiro; mesmo a dissimulação e o engano só podem acontecer a partir de
uma revelação; mesmo o anunciar que não se mostra diretamente, mas mediante outra
coisa, a "manifestação", precisa de algo que se mostra por si mesmo. Isso quer dizer:
sem a fenomenologia das coisas nem mesmo pode haver a não-fenomenologia das
coisas.

Pensar o ser e o nada das coisas no seu vir-a-ser e contra o seu não-ser e mero
aparecer: isso é filosofia. Habitar a clareira da revelação das coisas: é saber, sabença,
ciência. Neste sentido, filosofia não é uma ciência. É a ciência. A ciência ontológica: que
busca pôr em obra e trazer ao discurso e ao conceito o acontecer do ser e da verdade
(re-velação) na existência.

A ciência ontológica, que é a filosofia, pode interrogar as coisas em sua totalidade


e em seu fundo (fundamento-abismo), e, neste caso, é ontologia universal e
fundamental. Neste caso, praticar fenomenologia, "fundamentar", é re-duzir (levar de
volta) todas as coisas para o seu fundo (fundo sem fundo: abismo). Filosofia, assim, não
fundamenta no sentido de pôr alicerces para construir teorias filosóficas. Ela
fundamenta no sentido de sondar o fundo-abismo das coisas no seu todo, e, assim,
instituir e fundar, como num salto, um modo de ser do homem, modo de ser mais
profundo e amplo, e originário, que Heidegger quis chamar de "Da-sein" (ser o aí para o
ser).

A ciência ontológica, que é a filosofia, pode interrogar as coisas em âmbitos,


regiões, setores diversos, tentando captar o mostrar-se de seu modo de ser. Por
exemplo: perguntando, o que é e como é - número, natureza, vida (em geral), vida
humana (e sua vitalidade, chamada "psyché"), vida espiritual criadora (cultura), vida
social (sociedade), vida histórica (história), o que é arte, o que é religião, etc. Neste caso,
a pergunta pelo ser de uma região de coisas se chama ontologia regional. Esta pode
"fundamentar" as ciências. "Fundamentar" quer dizer, aqui: abrir o acesso a uma região
fenomenal, ao seu "que é" e "como é". O cientista pode aprender com estas ontologias
regionais e, em suas pesquisas, deixar-se orientar pela mirada e perspectiva alcançada
com esta visão/intuição do "que é", "o que é" e "como é" das coisas.

À medida que as ciências, em suas pesquisas sobre os problemas que elas


encontram, não perdem de vista a intuição do ser da região fenomenal do ente que elas
estudam, nesta medida mesma elas se tornam fenomenológicas e, portanto, filosóficas.
As ciências só alcançam o saber caso se tornem fenomenológicas (no sentido explicado)
e filosóficas (no sentido explicado). Do contrário, são apenas técnicas de produção de
conhecimento objetivo. O que elas na maioria da das vezes são.

Aqui nos interessa a fenomenologia como ontologia universal e fundamental.


Isto quer dizer: o que está em jogo, aqui, é o pensamento que questiona o sentido de
ser dos fenômenos, isto é, que segue os caminhos que eles, a cada vez, abrem, como
um envio do fundo-abismo do Todo. O pensamento fenomenológico, por sua vez,
enquanto ontologia fundamental, radicaliza a fenomenologia da intencionalidade, e, por
conseguinte, da subjetividade transcendental, reconduzindo-a ao seu lugar de origem
no mistério do Ser, isto é, ao seu desencobrimento e encobrimento. Nesse mistério, a
filosofia fenomenológica encontra a sua “coisa” (Sache), isto é, aquilo que provoca o
pensamento questionar e meditante a pensar. As investigações que aqui se ensaiam
pretendem se deixar aviar na direção desta “coisa”.
INTRODUÇÃO: O QUE É FENOMENOLOGIA?

O que é fenomenologia? Faz parte, essencialmente, da fenomenologia,


perguntar sobre si mesma, sem jamais assegurar uma compreensão de si, que
dispense de toda ulterior pergunta. Mas, o perguntar sempre de novo e de modo
novo "o que é fenomenologia?" não é um patinar no mesmo lugar. A pergunta
surge, sempre de novo, a caminho, no destinar do pensamento. Ora, uma das coisas
que Husserl nos ensinou, é que a fenomenologia é um método de investigação
filosófica, que pergunta pela essência das coisas, isto é, pelas suas possibilidades, e
não pelas suas factualidades. Tomemos, pois, a "coisa", o fenômeno, fenomenologia
e perguntemos pela sua essência! Pratiquemos, assim, fenomenologia da
fenomenologia!

A pergunta "o que é fenomenologia?" pergunta pela essência - e não pelo


fato, pela ideia e possibilidade, e não pela realidade da fenomenologia. Nosso olhar,
normalmente, está sempre atento aos fatos e sua factualidade. Nossa atenção,
usualmente, se volta para o inessencial! O essencial, a possibilidade, de costume,
fica-nos invisível. Os fatos e sua factualidade são já sempre feitos. São formas
terminais de uma gênese. O que é primeiro para nós, é o que secundário e derivado.
Mas o que é primeiro em si, a essência, enquanto vigor doador de ser e
possibilitador de uma gênese, é o que vemos por último. Tentemos, pois, passar da
fenomenologia como fato e sua factualidade, como realidade já dada, já
constituída, para a fenomenologia como essência e sua essencialidade, como
possibilidade, como doação de ser e fonte geradora de devir. O fato e sua
factualidade, a realidade efetiva, é o que captamos de fora, o “exotérico” da
fenomenologia. A essência e sua essencialidade, a possibilidade possibilitadora,
doadora de ser e condutora da gênese, é o que só podemos captar de dentro, a
partir do envolvimento com a coisa ela mesma e constitui o “esotérico” da
fenomenologia.
Numa dimensão “exotérica”, fenomenologia designa o movimento
fenomenológico. Como fato e realidade, a fenomenologia é um movimento
filosófico, científico e cultural, que irrompe a partir das Investigações Lógicas de
Husserl. Nós estamos acostumados a representar a Fenomenologia como uma
realidade histórica: um movimento filosófico-científico-cultural emergente no
início do século XX. Esse movimento surgiu com as investigações de Edmund
Husserl1 e se espraiou, primeiramente, nos círculos de investigadores de Göttingen
e de Freiburg, na Alemanha2. Foi determinante no estilo dos trabalhos de Max
Scheler3 e de outros estudiosos de Munique. Irrompeu, em seguida, no pensamento
ontológico de Martin Heidegger4. O movimento fenomenológico, também teve
uma influência decisiva no pensamento de vários pensadores franceses, como, por

1
Edmund Husserl nasceu em 1959 em Prossnitz (Morávia) e morreu em 1938 em Freiburg (Sul da
Alemanha). A princípio foi estimulado pelos estudos de Bolzano e pela aprendizagem junto a seu mestre
Franz Brentano. Partindo de estudos filosófico-matemáticos e lógico-psicológicos chegou à descoberta do
método fenomenológico.
2
A atuação decisiva de Husserl se deu em seu magistério nas cidades de Göttingen (1901-1916) e Freiburg.
Sobretudo a partir de seu ensinamento em Göttingen surgiram os círculos fenomenológicos, cujos nomes
de destaque são: Adolf Reinach, Edwig Conrad-Martius, Jean Hering, Moritz Geiger, Alexander Pfänder e
Edith Stein. O órgão de expressão desses círculos de investigadores que deram início ao movimento
fenomenológico foi o Jahrbuch für Philosophie und phänomenologische Forschung (Anuário para Filosofia
e Pesquisa Fenomenológica) (12 vols., Halle, 1913-1930). Nesse Anuário publicaram-se importantes obras
da filosofia do século XX, como Ideen zu einer reinen Phänomenologie (Idéias para uma Fenomenologia
Pura), de Husserl; Der Formalismus in der Ethik (O Formalismo na Ética), de Scheler; e Sein und Zeit (Ser e
Tempo), de Heidegger. O prefácio do primeiro volume declarava a convicção comum que unia os
pesquisadores: de que “a única maneira possível de explorar os tesouros legados pela tradição filosófica
[...] é a de aprofundar até às fontes primordiais da intuição e nelas haurir as evidências de ordem
essencial”. A fenomenologia é aí compreendida como método de descrição pura dos dados da intuição
das essências. Convém notar que, aqui, a palavra “intuição” significa uma percepção imediata. Trata-se
de um ver simples e imediato, direto, da coisa mesma. Na fenomenologia reconhece-se, para além da
intuição sensível do objeto sensível singular, uma intuição categorial, que se dá como uma apreensão
evidente das conexões lógicas e matemáticas. Além disso, reconhece-se uma intuição da essência, que se
dá como uma visão intelectual das configurações essenciais dos entes.
3
Max Scheler (*1974, em Munique e +1928, em Frankfurt) recebeu a influência de Husserl sobretudo em
Munique. Orientou suas pesquisas, de modo especial, para a ética e a filosofia da religião. Reconhece,
para além de uma “intuição intelectual” (apreensão imediata da essência) uma “intuição emocional”,
como fundamento da apreensão do valor.
4
Martin Heidegger (1889-1976) lecionou em Freiburg e em Marburg (1923-1928). Foi introduzido na
fenomenologia por Husserl, mas seguiu um caminho próprio através da colocação da questão pelo sentido
do ser (Ontologia Fundamental – Pensamento Histórico do Ser).
exemplo, Gabriel Marcel5, Jean Wahl6, Mikel Dufrenne7, Merleau-Ponty8, Jean-Paul
Sartre9 e Emmanuel Levinas10, Michel Henry11 e Jean-Luc Marion12. A fenomenologia,
assim entendida, atuou ainda como fator decisivo no surgimento da filosofia
hermenêutica contemporânea: com Paul Ricoeur13 e Hans-Georg Gadamer14.
Recentemente teve desenvolvimento significativo nas investigações de Heinrich
Rombach15 (Würzburg – Alemanha). A expansão do movimento fenomenológico se
deu no restante da Europa, sobretudo na Bélgica (Louvain)16, na Holanda17, na

5
Gabriel Marcel (1889-1973): filósofo, dramaturgo e crítico francês. Propõe uma “ontologia concreta”.
Para ele o ser não é um problema do conhecimento, mas o mistério do pensamento, mistério do qual o
homem participa especialmente através de sua reflexão.
6
Jean Wahl (1888-1974): introduziu uma nova leitura de Hegel e de Kierkegaard. Fundou a Revue de
Métaphysique et de Morale. Influenciou Sartre e Levinas.
7
Mikel Dufrenne (1910-1995): dedicou-se sobretudo à fenomenologia da experiência estética.
8
Maurice Merleau-Ponty (1908-1961): marcou presença por sua fenomenologia da percepção, do
comportamento e da corporeidade. Dirigiu, junto com Sartre, a revista Les Temps Modernes (1945-52).
9
Jean-Paul Sartre (1905-1980): filósofo e autor de numerosas novelas e obras de teatro. Representante
do existencialismo e defensor do marxismo. Dirigiu com Ponty a revista Les Temps Modernes. Em L’Etre
et Le Néant (O ser e o nada), de 1943, apresenta uma ontologia fenomenológica que parte do dinamismo
da consciência do eu, enfatizando a liberdade como constitutiva da existência humana.
10
Emmanuel Levinas (1906-1995): enfatizou a ética como filosofia primeira e, nela, o tema da alteridade.
11
Michel Henry (1922-2002): desenvolve uma fenomenologia da vida, a partir da sua imanência no
indivíduo. Possui estudos sobre o corpo, sobre a psicanálise e sobre Marx.
12
Jean-Luc Marion (*1946): investiga a fenomenologia do dom e da doação. Intérprete de Descartes e de
temas do cristianismo.
13
Paul Ricoeur (1913-2005): aplicou a fenomenologia à hermenêutica como teoria da interpretação.
Possui estudos sobre o mito, a hermenêutica bíblica, a psicanálise e a política contemporânea.
14
Hans-Georg Gadamer (1900-2002): Foi aluno de Natorp, Hartmann e Heidegger (em Marburg).
Expoente da hermenêutica filosófica do século XX.
15
Heinrich Rombach (1923-2004): foi aluno de Heidegger. Propôs uma fenomenologia das estruturas
profundas. Seu pensamento tem três vertentes: a ontologia estrutural (ontologia da liberdade); a filosofia
da imagem e a hermética. Desenvolveu significativas contribuições para a filosofia da educação e a
pedagogia. Manteve um rico intercâmbio com a Ásia (Japão, Coréia, etc). No Brasil, seu pensamento
chegou sobretudo através de seu ex-aluno, o frade franciscano frei Hermógenes Harada (1928-2009).
16
Na cidade de Lovaina se desenvolveu um centro de estudos fenomenológicos, onde se destacaram A.
Dondeine e A. De Waelhens. Depois da morte de Husserl (1938), todo o seu espólio foi transferido
clandestinamente, por causa das ameaças do nazismo, para Lovaina, graças à ação do frade franciscano
H.L. Van Breda. Ali se fundaram, então, os Arquivos Husserl. A transcrição e a ordenação dos textos
inéditos de Husserl foram feitas, inicialmente, por obra de dois de seus colaboradores: Eugen Fink e
Ludwig Landgrebe (estes dois, juntamente com G. Funke, O. Becker e H. Reiner foram importantes, na
Alemanha do pós-guerra, por uma Husserl Renaissance). Já a publicação em 28 volumes da obra de
Husserl (a “Husserliana”, ou Edmund Husserl Gesammelte Werke – Obras reunidas de E. Husserl) foi
coordenada por Walter Biemel, Rudolf Boehm e Iso Kern. A partir do Husserl Archives de Lovaina se publica
uma coleção de estudos importantes na literatura fenomenológica: a Phaenomenologica.
17
Destacam-se aí os trabalhos filosóficos de S. Strasser, Van Peursen e H.J. Pos, bem como os trabalhos
de psicologia de Buytendijk e de psicopatologia de H.C. Rümke e Van der Berg.
Suíça18, na Itália19, na Espanha20 e em Portugal21. Para além da Europa, o movimento
fenomenológico se estendeu aos Estados Unidos da América22 e chegou também à
América Latina23 e à Ásia, onde se formou a escola fenomenológica de Kyoto
(Japão)24.

Fenomenologia, tomada nesta acepção, designa, pois, um movimento, não


uma escola. Um movimento, que seria constituído como círculo de círculos de
investigadores, que têm uma impostação ou atitude investigativa comum, mas que
não se estabelece ao modo de doutrina, de um conteúdo ensinável, nem de visão
de mundo a ser promovida e defendida. A partir destas investigações formou-se

18
Destacam-se aí P. Thévenaz (Filosofia), Biswanger e Kuhn (Psicologia, psiquiatria e antropologia).
19
Destaque para os nomes de A. Banfi e para aqueles ligados ao Movimento de Gallarate: Castelli,
Semerari, Lazzarini, Pucci, Pedroli e E. Paci. O Movimento de Gallarate buscava uma renovação cristã do
espiritualismo e do idealismo da tradição italiana. Enzo Paci foi aluno de A. Banfi e se preocupou
sobretudo com uma renovação das ciências psicológicas e sociais. Também buscou conciliar a última
filosofia de Husserl com uma interpretação de Marx.
20
Na Espanha, sobressaem o nome dos pensadores: José Ortega y Gasset (1883-1955); Xavier Zubiri
(1898-193); Manuel Garcia Morente (1886-1942); e Julián Marías (1914-2005).
21
Em Portugal se destacam: Joaquim de Carvalho, Luis Cabral de Moncada, Miranda Barbosa, Delfim
Santos, José de Brandão, Júlio Fragata, Alexandre Morujão, Gustavo de Fraga, José Enes, Maria Manuela
Saraiva, Henrique Gomes de Araújo, Maria José Cantista, Eduardo de Soveral, Celestino Pires, José
Henrique dos Santos e João Paisana.
22
Dos círculos de primeiros discípulos de Husserl contavam alguns estadunidenses: Hocking, Farber,
Cairns. A partir de 1933, ano da ascensão do nazismo na Alemanha, muitos fenomenólogos da primeira
hora emigraram para os E.U.A: Moritz Geiger, fenomenólogo da estética; Aron Gurwitch, inventor da
teoria de campo da consciência, estudioso da Gestaltpsychologie (Psicologia da Forma), de William James,
Piaget e K. Goldstein; e Alfred Schutz, que aplicou a fenomenologia aos estudos sociológicos. Nos E.U.A,
a fenomenologia se desenvolve em diálogo com a tradição anglófona, sobretudo com o empirismo e com
a filosofia analítica. Exerce forte influência na psicologia da forma e na psicanálise. Na teologia, destaca-
se o nome de Paul Tillich (1886-1965). Nos E.U.A. criou-se a International Phenomenological Society, que
publica, desde 1940, a revista Philosophy and phenomenological Research.
23
A América Hispânica recebeu a fenomenologia especialmente pela mediação do filósofo espanhol
Ortega y Gasset e de seus discípulos. No México, a fenomenologia foi trazida por filósofos espanhóis
exilados durante a Guerra Civil, como José Gaos (1900-1909), Eduardo Nicol (1907-1990) e Joaquin Xirau
(1895-1946). A esses nomes se adiciona o nome do mexicano, filósofo do direito, García Maynes (1908-
1993). Na Argentina sobressaem os nomes de Francisco Romero (1891-1962), Risieri Frondizi (1910-1985)
e Carlos Astrada (1895-1970). No Peru, destaca-se o nome de Alberto Wagner de Reyna (1916-2006). Na
Venezuela sobressaem os nomes de García Bacca (1901-1996) e de Ernesto Mays Vallenilla (*1925). No
Brasil a fenomenologia encontra recepção a partir dos anos 40, por intermédio da leitura de Ortega y
Gasset. O primeiro filósofo a dar atenção à fenomenologia foi Vicente Ferreira da Silva (1916-1963). Em
seguida, a fenomenologia influenciou de modo decisivo a psicologia, através de Nilton Campos (1898-
1963) e Isaías Paim (*1911). Na filosofia, destacam-se os nomes de Gerd Bornheim (1929-2002),
Emmanuel Carneiro Leão (*1929), Gilvan Luiz Fogel (*1947), Ernildo Stein (*1934), Zeljko Loparic
(*1939) e Creuza Capalbo. Na articulação entre filosofia e literatura destaca-se Benedito Nunes (1929);
e na área do Direito, é notável a contribuição de João Alberto Leivas Job (*1936).
24
Essa escola se formou em diálogo com o pensamento ocidental, especialmente com a fenomenologia
de Heidegger. Principais nomes: Kitarô Nishida, Hajime Tanabe, Conde Kuki, Shin-ichi Hisamatsu, Kôichi
Tsujimura e Shizuteru Ueda.
um conceito de método e este conceito de método - e seu "espírito" (sopro de vida,
alento, vitalidade) - possibilitou um modo diverso de colocar questões do
pensamento (filosofia) e de pesquisar problemas do conhecimento (ciência). Deste
modo diverso ou do seu "espírito" foram surgindo pensadores, investigadores,
pesquisadores, e, em torno destes, círculos de pensadores, investigadores,
pesquisadores. O círculo destes círculos, em perene circulação, por meio do
diálogo e da discussão, é o que se chama de "movimento fenomenológico".

Neste círculo de círculos, há várias tendências, originadas a partir do


trabalho investigado dos vários pensadores que marcaram o desenvolvimento da
investigação e pesquisa fenomenológica na filosofia. Este círculo e seu movimento
repercute também nas ciências e na vida do espírito (“cultura”) dos seres humanos
nos vários mundos culturais da humanidade em amplidão, hoje, planetária. Mas
não é só em termos de amplidão que este movimento marca presença na vida
filosófica, científica, espiritual da humanidade do último século e deste início de
milênio. É também pela sua profundidade. Com efeito, é inegável que a
fenomenologia está na raiz de um considerável ímpeto de renovação da filosofia e,
por conseguinte, das ciências positivas e até mesmo de vários âmbitos de vida e
cultura da humanidade ocidental nos últimos tempos. De modo “subterrâneo” ela
se comunica com e a várias tendências da filosofia da história recente da filosofia.
No entanto, esta “influência” profunda da fenomenologia se deve à originariedade
do trabalho filosófico de alguns pensadores e do seu espírito criador. No fulcro do
movimento fenomenológico, as presentes reflexões seguem duas tendências
fundamentais, que emergem do trabalho filosófico de dois pensadores-criadores-
fundadores: Edmund Husserl, com o qual e pelo qual o pensamento se avia na via
da fenomenologia transcendental; e Martin Heidegger, com o qual e pelo qual o
pensamento se avia na via investigação fenomenológica como questão do ser.

Tudo isso tem a ver com a fenomenologia como realidade efetiva, são fatos
que se deixam atestar numa pesquisa historiográfica da história do movimento
fenomenológico. Mas isso não é o essencial. É epifenômeno da fenomenologia. O
essencial, o fenômeno propriamente dito da fenomenologia, é a fenomenologia
como possibilidade. Seguimos assim uma indicação de Heidegger que aponta para
além das realizações já constituídas, na direção da possibilidade-fonte criativa e
inesgotável de novas realizações. A propósito disso, convém recordar duas citações
de Heidegger, onde a fenomenologia no seu próprio é apresentada como
possibilidade. A primeira é de 1927, e aparece em Ser e Tempo:

“As explicitações do conceito preliminar de


fenomenologia de-monstraram que o que ela possui
de essencial não é ser uma ‘corrente’ filosófica real.
Mais elevada do que a realidade está a possibilidade.
A compreensão da fenomenologia depende
unicamente de se apreendê-la como possibilidade”25.

A segunda citação está no escrito “Mein Weg in die Phänomenologie” (“Meu


caminho na fenomenologia”), elaborado por Heidegger no ano de 1963 para uma
homenagem ao editor Hermann Niemeyer:

“E hoje? O tempo da filosofia fenomenológica


parece ter passado. Ela já vale como algo do passado,
que ainda só figura historiograficamente ao lado de
outras correntes da filosofia. Só que a fenomenologia
não é, naquilo que ela tem de mais próprio, uma
corrente. Ela é a possibilidade do pensar que, de
tempos em tempos, se transforma e que, só por isso,
permanece; a saber, a possibilidade de corresponder
ao apelo daquilo que se há de pensar. Se a
fenomenologia for experimentada e considerada
assim, então ela pode desaparecer, enquanto título,
em favor da coisa do pensar, cuja abertura-
manifestação permanece um mistério”.

No nosso curso tentaremos não só expor a fenomenologia como uma


realidade, mas tentaremos também, sobretudo, e prioritariamente, captar a
fenomenologia como possibilidade. Primeiramente, tentaremos expor algo a
respeito das descobertas fenomenológicas fundamentais da fenomenologia nas
Investigações Lógicas de Husserl. Em seguida, vamos tratar do método e da coisa
do pensar na fenomenologia enquanto investigação transcendental em Husserl.
Por fim, tentaremos tratar da fenomenologia como investigação da questão do
sentido do ser em Heidegger. Nisso tudo, tentaremos captar em que consiste a

25
M. HEIDEGGER. Ser e Tempo (Parte I). Petrópolis-RJ: Vozes, 1988, p. 69.
fenomenologia como possibilidade do pensamento. Depois, em que consiste este
“de corresponder ao apelo daquilo que se há de pensar” e em que sentido a
“abertura-manifestação” da “coisa do pensar” (o que nele está em causa, em
questão, a tarefa que está no centro do seu interesse), “permanece um mistério”.
MEDITAÇÃO FENOMENOLÓGICA

Meditar é uma prática, um exercício, um trabalho do pensamento, do intelecto,


da mente. É algo assim como o exercício de um atleta ou o trabalho de um artesão.
Requer, antes de tudo, ânimo, e uma dedicação atenciosa, cuidadosa, devotada para
com a obra a ser realizada, consumada, e para com as exigências de sua gênese. A
meditação é um exercício de reflexão da mente. O que é reflexão? É uma flexão, isto é,
um dobrar-se. Mas é um dobrar-se que se recolhe, que se concentra, na coisa em
questão. Pensemos, por exemplo, no artesão que se dobra sobre a matéria, para dar
forma a um artefato. Tenhamos em mente um oleiro se dobrando sobre o barro para
fazer um jarro. Ele se concentra todo na obra para que ela possa vir à luz, na sua
perfeição. Junto ao torno, ele vai seguindo um ductus (uma condução) do barro e, ao
mesmo tempo, suas mãos, dançando, vão perfilando o barro. É a dinâmica de um
trabalho manual, que não acontece sem vontade, mas também não acontece de modo
arbitrário, voluntarioso. Requer um pensamento unificado em que forma e matéria
constituam uma unidade individuada, singular. Para podermos vislumbrar um pouco
algo deste trabalho artesanal da meditação, vamos considerar uma história contada por
Chuang-Tzu (na versão de Thomas Merton):

Khing, o mestre entalhador, fez uma armação para


sinos, de madeira preciosa. Quando terminou, todos que
aquilo viram ficaram surpresos. Disseram que devia ser obra
dos espíritos. O Príncipe de Lu disse ao mestre entalhador:
“Qual é o seu segredo?”.

Khing respondeu: “Sou apenas operário: Não tenho


segredos. Há só isso: Quando comecei a pensar no trabalho
que me ordenaste protegi meu espírito, não o desperdicei
em ninharias, que não vinham ao caso. Jejuei, a fim de pôr
meu coração em repouso. Depois de jejuar três dias, esqueci-
me do lucro e do sucesso. Depois de cinco dias esqueci-me
do louvor e das críticas. Depois de sete dias esqueci-me do
meu corpo com todos os seus membros. Nesta época, todo
pensamento de Vossa Alteza e da corte se evanescera. Tudo
aquilo que me distraía do trabalho desaparecera. Eu me
recolhera ao único pensamento da armação do sino. Depois,
fui à floresta ver as árvores em sua própria condição natural.
Quando a árvore certa apareceu a meus olhos, a armação do
sino também apareceu, nitidamente, sem qualquer dúvida.
Tudo o que tinha a fazer era esticar a mão e começar. Se eu
não houvesse encontrado essa determinada árvore não
haveria qualquer armação para o sino. O que aconteceu?
Meu próprio pensamento unificado encontrou o potencial
escondido na madeira; deste encontro ao vivo surgiu a obra
que você atribuiu aos espíritos. (XIX, 10)26.

O importante, aqui, é que o artesão se abstém de tudo o que não é o interesse


pelo surgimento da obra ela mesma, pela plenitude de sua gênese, pela sua con-
sumação, ou per-feição. Esta abstinência ele chama de jejum. Nesta abstinência ele se
tem, ele se conquista, para deixar-ser a gênese da obra. Em sua renúncia ele se
desprende de tudo quanto não é a pura disposição de deixar-ser a gênese da obra. A
renúncia não apenas tira, ela dá. Ela tira a agitação e a dispersão em ninharias: lucro e
sucesso, louvor e crítica.... Ela dá o repouso e a concentração no único necessário, no
essencial: a gênese da obra.

Tomemos este aceno como indicação da dinâmica de uma meditação


fenomenológica, isto é, do “pensamento unificado”, que deixa vir à luz (phaínesthai) a
unidade singular da obra, como o fenômeno que acolhe e recolhe vazio e plenitude,
mente e mão, possibilidade (potência) e realização, forma e matéria, céu e terra...

A abstinência, a suspensão (epoché), que se realiza como a pura e simples


recepção, na espera do inesperado, é o pensamento. Esta receptividade livre e grata
caracteriza o que os medievais chamavam de “intellectus” (Intelecto) e que os gregos
chamavam de “nous”. Ela é uma atenção cordial e cheia de boa-vontade, que, ao mesmo
tempo, guarda fielmente a memória do único necessário, se esquecendo de tudo o mais,
e, na busca investigadora, aguarda pacientemente o inesperado. Requer que a mente

26
Thomas Merton. A via de Chuang-Tzu. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 166-168.
se mantenha, enquanto busca, no vazio do não-saber; vazio, que é abertura da
receptividade. Receptividade para que? Resposta: para a coisa mesma na plenitude de
sua evidência. Pensar é receber e captar a coisa mesma vindo à luz na sua evidência.

O exercício do pensar meditante acontece, aqui, como redução e ideação. Como


é isso? Redução: um prescindir de tudo o mais que não seja a coisa ela mesma, isto é,
que não seja o interesse da coisa em questão; e, ao mesmo tempo, um concentrar-se
na disposição de ser um puro e simples receber, um puro e simples captar do que
simplesmente se doa, de modo imediato, na sua evidência. O ser do homem, aquilo que
os medievais chamavam de “anima” (alma) ou “animus” (ânimo, espírito) ou “mens”
(mente), os gregos de “nous”, e que Heidegger chama de Da-sein (ser o aí para a
proximidade do ser) é o vigor cordial desta abertura para a evidência, para o simples
ver, para o simples captar do vir à luz, do fenômeno, entendido como manifestação e
brilho do ser. Ser-homem é existir, isto é, insistir nesta abertura. Meditar é ser homem,
isto é, é ser o vazio para a receptividade da doação do ser em sua verdade
(manifestação, desocultação), em seu caráter repentino, inesperado. Esta recepção é
decisão. É conquista da liberdade do espírito. Liberdade de tudo o que não deixa-ser
esta receptividade. Liberdade para receber a doação de ser e para perseverar nela e
suportá-la cordialmente, gratamente. O ser que se doa é a coisa mesma. No entanto,
“coisa” quer dizer, aqui, não um objeto, mas algo que nos concerne no mundo, no
sentido de “o que está em questão”, o que interessa. Pois ser não é nenhuma coisa. Ser
não é nenhum ente. Ser é, antes, um nada. Mas um nada que deixa-ser tudo no seu
próprio, cada coisa, que, em sua simplicidade, é o recolhimento de céu e terra, ponto
de concentração e de expansão do mundo. Ser é o nada (nenhuma coisa) que deixa ser
tudo, cada coisa, o mundo (o ente no todo). Este nada é fundo-abismo da possibilidade-
de-ser. Vazio que deixa ser, possibilita, a plenitude das possibilidades-de-ser.

O toque e o lance da iluminação, que vislumbra, a possibilidade de ser de uma


gênese, de uma coisa-obra, e, por conseguinte, de uma constituição de mundo, chama-
se ideação ou intuição eidética. “Intuição”, aqui, significa a visão que dá a evidência da
coisa mesma. “Eidética” remete a “eidos”. “Eidos” não é, aqui, ideia, no sentido de
representação de um objeto. “Eidos” é o nome grego para o aparecimento da
possibilidade-de-ser. O “eidos” não é nenhuma coisa. Não é uma coisa por trás da coisa
ou uma coisa acima da coisa, num “mundo das ideias” etc. É o nada que vige como
doação de ser, possibilitação da possibilidade de ser, de cada coisa, no seu próprio e no
todo. O vislumbre eidético capta a possibilidade da gênese no seu todo, que integra
matéria-e-forma (essencialização da coisa), potência-e-ato (existencialização da coisa).
O artesão, no seu obrar deve poder seguir o ductus (condução) da gênese da coisa, deve
poder ser obediente (aberto e receptivo no seguimento) para com a interpelação da
gênese da obra, para o que ela requer, no tocante ao seu material (matéria) e à sua
perfilação (forma, aspecto). Ele deve poder seguir a interpelação da obra no seu surgir,
crescer e consumar (dýnamis/enérgeia/entelécheia ou potentia/actus), até que apareça
uma obra singular, que brilha e repousa em si mesma. Este poder que responde e
corresponde à interpelação da obra chama-se arte. A arte é, pois, uma forma de
meditação, uma “héxis meta lógou” (atitude com reflexão), uma forma de pensamento
meditativo-criativo, poético. E, vice-versa, a meditação é uma arte: o poder-ser da
receptividade para a verdade-do-ser, para sua manifestação, desocultação, como fonte
para as possibilidades-de-ser, para a gênese do mundo. A meditação filosófica é a
poética do pensamento que é, ao mesmo tempo, reflexivo e criativo.

Filosofia é pensamento reflexivo. Pensamento que se dobra todo na obediência


(escuta) da verdade do ser. Espera do inesperado. Acolhida de sua interpelação. Filosofia
procura re-pensar o que dá a pensar, o que é digno de ser pensado: o mistério de ser, o
nada que deixa ser cada coisa no seu próprio, no todo, fundo-abismo de possibilidades-
de-ser, fonte de toda a criação. Por isso, a filosofia não lida com fatos. É que todo fato é
um feito. Já está pronto. Filosofia cuida da gênese das possibilidades-de-ser. Por isso,
para a meditação filosófica, tudo está em suspensão, em aberto, no caos (abertura
primigênia), para que, de repente, algo se ilumine, se deixe vislumbrar, no vigor e no
brilho de sua possibilidade de ser, e, assim, deixe-ser mundo, no frescor e no brilho
singular da natividade, em que a coisa se mostra como sendo pela primeira vez, sim,
como sendo pela primeira e última vez, em sua singularidade. Por isso, filosofia é
pensamento criativo: pois deixa surgir e adensar a manifestação da verdade de ser, na
manifestação do ente, da coisa em sua singularidade e universalidade. Singularidade,
porém, aqui, não é particularidade. Singularidade é o um recolhendo e expandindo tudo.
O todo não é, aqui, generalidade. O todo é universalidade. É o “hen: panta” (um: tudo)
de Heráclito. Cada coisa reúne mundo. O todo se dá todo em cada coisa. Singularidade
e universalidade não se opõe e se excluem, antes, se compõem e se incluem, numa
unidade perfeita.

O pensamento meditativo (reflexivo-criativo) da filosofia acontece, a cada vez,


como experiência da gênese de um sentido de ser. Mas, o que é, como é, isso – gênese
de um sentido de ser? Chamamos de “ser” o abismo-nada (não ente) que, como vazio,
deixa ser (viger) a plenitude das possibilidades de ser dos entes, como mundo. O ser vige
como fundo-abismo (insondável), como nada criativo (inesgotável) das possibilidades de
ser dos entes (mundo). Deixa eclodir, a cada vez, mundo. O mundo está sempre
nascendo, crescendo e se consumando, numa constante novidade27. Co-nascer com a
gênese do mundo é sentido fenomenológico do conhecimento (gignosko / cognoscere
/ conaitre). Conhecer, aqui, pois, é co-nascer, não é re-presentar. É receber a
presentação, isto é, a autodoação (Selbstgegebenheit) do ser vigendo no surgir do ente
no todo, do mundo. Pensar é receber os vislumbres genéticos de um mundo em
surgimento – mundo que se dá como horizonte de todos os horizontes de aparição do
ente. Ao olhar do pensamento está sempre se dando o espetáculo da revelação do
mistério do ser (doação e retraimento) e, com isso, a contínua constelação de mundos,
cada qual com sua idêntica e diferença, mundos do mundo (ente no todo). Isso implica
a tarefa de também investigar como se dá a gênese deste ou daquele mundo, como se
constituem as coisas que pertence a este mundo (ex.: natureza, história, etc.). Por
exemplo: uma cruz – pode ser vista, a modo (no horizonte de compreensão) de objeto

27
Conferir o poema de Alberto Caeiro (Fernando Pessoa):

O meu olhar é nítido como um girassol.


Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...
físico como dois pedaços de madeira que se entrecruzam, com suas características
(extensão, peso, etc); mas pode ser vista como um símbolo cósmico; pode ser vista,
ainda, como um símbolo cristão, histórico, etc. Cada um destes “modos de ver” abre
todo um mundo. O mundo da física é diverso do mundo da natureza experimentada pré-
cientificamente, que é diverso do mundo experimentado na fé cristã, etc...

A meditação (Besinnung) fenomenológica busca seguir o sentido (Sinn) do


fenômeno como gênese de constituição de mundo. O sentido é o lógos (a linguagem –
o recolhimento) do fenômeno. É a fenomenologia do fenômeno acontecendo. O sentido
se nos dá e um e como sentir, como um pathos28. Acontece como um toque prévio que
se nos doa, um atingimento que se nos sobrevém e advém. Acontece, antes de tudo,
como um pathos, como uma passividade receptiva, como a receptividade de uma
experiência. É algo como o percutir e o repercutir de uma percussão. O toque é a
abertura da possibilidade do todo. Este toque acontece como um envio prévio, um
encaminhamento, que se anuncia como uma dádiva do porvir, que deixa e faz emergir
caminhos de realização, de consumação. Este toque é algo repentino, que se dá num
instante, num piscar de olhos, mas que traz consigo a semente de um porvir. Neste
piscar de olhos evidenciam-se possibilidades de ser, como um relâmpago, que ilumina a
escura e deixa entrever caminhos por se abrir. Esta evidenciação chama-se intuição. Este
toque nos en-via, nos em-caminha. Em que direção? Na direção que a coisa mesma toma
a partir dela mesma. Pensar, meditar, quer dizer deixar-se encaminhar na direção que
os fenômenos desvelam, é seguir o ductus (a condução) do fenômeno, das coisas
mesmas29. O acontecer do sentido como sentido é, pois, em sua plenitude, um envio,
um em-via, uma passagem, uma travessia, uma via-gem. Sentido é tomar-rumo, é viajar
a partir de um encaminhamento, de um envio. O sentido é, pois, dádiva (como toque
prévio de uma abertura) e, ao mesmo tempo, tarefa: caminho por se fazer, isto é, por

28
Aqui não separamos “aisthesis” e “nous”, sensibilidade/percepção e intelecto/razão. A metafísica
separou aisthesis e nous, o aisthetikós (sensibilis) e o noetikós (intelligibilis), o físico e o meta-físico. Mas,
não haveria uma unidade anterior a esta separação, a esta cisão, para a qual o homem meta-físico, que
somos todos nós, já não tem mais um sentido? E se fosse assim que a verdade da aisthesis no homem
fosse o nous? E se o nous fosse, fundamentalmente, aisthesis? Cfr. Ética a Nicômaco VI 12, 1143 b 5.
29
É por isso que Aristóteles, no primeiro livro da Metafísica, falando dos primeiros que filosofaram em
torno da verdade (philosophantas peri tes alétheias), diz que eles foram constrangidos a investigar além
do que tinham pensado até então, à medida que a coisa mesma abriu-lhes caminho (autó tó pragma
hodopoiesen autois) (Metafísica A 3: 983 b 2; 984 a 18-19).
se abrir e por se per-fazer, por se consumar, por se levar a término, à consumação (se
finitizar). Para o pensamento que medita, isto é, que não representa e calcula,
simplesmente, mas que questiona, isto é, busca, investiga, e segue o sentido do
fenômeno, a sua fenomenologia, esta viagem não conduz a outro lugar do que para ali
onde nós já sempre estivemos, desde que começamos a nascer, crescer e morrer a cada
dia:

Encaminhar na direção do que é digno de ser


questionado não é uma aventura, mas um retorno ao lar.

O alemão sinnan, sinnen, pensar o sentido, diz


encaminhar na direção que uma causa já tomou por si
mesma. Entregar-se ao sentido é a essência do pensamento
que pensa o sentido. Este significa mais do que simples
consciência de alguma coisa. Ainda não pensamos o sentido
quando estamos apenas na consciência. Pensar o sentido é
muito mais. É a serenidade em face do que é digno de ser
questionado.

No pensamento do sentido, chegamos


propriamente onde, de há muito, já nos encontramos,
embora sem tê-lo experienciado e percebido. No
pensamento do sentido, encaminhamo-nos para um lugar
onde se abre, então, o espaço que atravessa e percorre tudo
que fazemos ou deixamos de fazer30.

O pensar que medita não é razão: não é nem percepção do que é pré-dado
(nous), nem representação da consciência, nem cálculo e planificação (ratio). É
encaminhamento na investigação do sentido de ser. É o que nos afina na
correspondência com o que é mais digno de ser pensado. Questionar é a piedade do
pensamento. No caminhar do pensamento vai se abrindo o que é digno de ser
questionado. A dignidade deste está em sua grandeza. É, de fato, o mais vasto, o mais
profundo e o mais originário. É o mistério de ser. O retraimento do ser, enquanto nada,

30
Heidegger, Martin. Ciência e pensamento do sentido. Em: Ensaios e Conferências. Petrópolis/Bragança
Paulista: Vozes/Edusf, 2002, p. 58.
isto é, enquanto nada de ente (nem mesmo entidade do ente). A meditação nos conduz
para a referência de ser com o ser que nos constitui (Da-sein), na qual nós já sempre
estamos, embora displicentemente. O pensar que medita é o pensar do ser. Pertence
ao mistério de ser. Tem como tarefa custodiar a sua verdade (desocultamento –
ocultamento). Tem como encargo dizer o ser. Ou melhor, carece de escutar a palavra do
ser e de a ela corresponder. Assim, em seu encaminhamento, o pensar pode deixar de
ser questão e ser “o simples dizer de uma palavra”31. O pensar está, assim, a serviço da
linguagem (a palavra do ser). É escuta e correspondência a esta palavra do ser. Acontece
que, com isso, já dissemos demais. Antes, precisamos aprender a questionar o que há
de mais digno de ser questionado e, em referência a isso, questionar o sentido da
linguagem. O que é a linguagem? A linguagem é? E se a linguagem não for nenhum ente?
A linguagem vige então como não ente? Ela vige como o ser vige? Como linguagem e ser
se referem um ao outro? Como o homem se refere à linguagem e a linguagem se refere
ao homem a partir da referência de ser e homem? Todas estas perguntas se erguem no
início de nosso curso, como convite a um percurso, isto é, a perfazer um caminho na
experiência da linguagem. É o que nos toca pensar neste exercício deste semestre.

31
Idem, p. 60.
A GÊNESE DA HODIERNA FENOMENOLOGIA EM SEU “KAIRÓS”

“Fenomenologia”, nas Investigações Lógicas, não é uma doutrina. Diz, antes,


um conceito de método32: ela diz o como da investigação filosófica. O sentido formal
da indagação que recebe o nome de fenomenologia é: “deixar e fazer ver por si
mesmo aquilo que se mostra, tal como se mostra a partir de si mesmo”33. Com esta
indicação formal da fenomenologia enquanto um conceito de método nós
exprimimos a máxima da fenomenologia: “zu den Sachen selbst!” (Às coisas elas
mesmas!). Ponto de arranque e, ao mesmo tempo, fio condutor do nosso curso é
que “o seu mais essencial não reside no fato de ser real (wirklich), enquanto
‘corrente’ filosófica. Mais elevada do que a realidade está a possibilidade
(Möglichkeit)”34.

Mas qual possibilidade? Aquela de corresponder àquilo que se há de pensar,


àquilo que é digno do pensamento, àquilo que desperta em nós a paixão pela busca
da verdade, àquilo que sempre de novo nos solicita e que, no entanto, permanece
sempre um mistério – trata-se do “mistério do ser”: sua doação sub-reptícia, furtiva,
em todo o ente (em tudo que está sendo). Enquanto possibilidade do pensamento
a fenomenologia é tão antiga quanto a filosofia e todo o pensador que corresponde
ao mistério do ser é fenomenólogo. Neste sentido a fenomenologia é sempre nova
e constitui sempre de novo um apelo que nos vem do porvir a fim de que
comecemos de novo, buscando filosofar como se o fizéssemos pela primeira vez.
Enquanto possibilidade do pensamento filosófico, sempre antiga e sempre nova, a
fenomenologia não tem idade e o frescor de sua jovialidade aparece ali onde o
pensamento se faz fala que acena para aquilo que, em todo o falar e dizer,
transpassa e ultrapassa todo o discurso: a linguagem do mistério ou o mistério da
linguagem. “Mistério é o que se diz e se reconhece fora das possibilidades de

32
Cfr. M. Heidegger, SZ, 27.
33
M. Heidegger, SZ, 34.
34
M. Heidegger, SZ, 38.
conhecer e dizer”35. A possibilidade do pensar, portanto, lhe advém justamente do
medir-se com a impossibilidade do conhecer e dizer, com o mistério. Nisso se
atesta a sua finitude. Mas não se trata de uma finitude des-graçada. É, antes, uma
finitude a-graciada. Com efeito, a impossibilidade não é tão somente o nada
negativo de uma possibilidade. O nada da possibilidade do pensamento, na
verdade, diz que o pensamento é atraído e movido justamente por aquilo que ele
mesmo não é. A filosofia é o máximo da autorresponsabilização autônoma do ser
humano através da razão. Mas no seu bojo está a resposta à solicitação de seu outro:
o mistério do ser. Todo o pensador que faz a experiência da doação do mistério
primigênio do ser é fenomenólogo. E não faz sentido aqui falar de predecessores e
sucessores, pois em todo o tempo o pensamento dos pensadores, de diferentes
modos e em diferentes concreções e situações, está sondando o mesmo na sua
desconcertante e enigmática simplicidade.

Em todo o tempo! – eis o horizonte a partir do qual pensam os pensadores.


O pensamento dos pensadores pensa sempre em um (kairós). É que a
verdade é ela mesma sempre e cada vez evento e destino (destinação,
endereçamento). A cada época é dada uma certa possibilidade de fazer a
experiência da verdade. A cada época a situação, a partir da qual o pensamento
põe-se a caminho, ministra uma determinada conexão histórica de problemas com
os quais os homens daquela idade devem se confrontar, para pôr as questões do
pensamento.

Para captar isso é preciso passar de uma mera descrição historiográfica-


cronológica da história da filosofia para uma meditação historial-cairológica da
mesma. Não a cronologia, mas a “cairologia” é o fio condutor desta meditação.

Em sentido fundamental, em todo o tempo, o pensamento que funda a


filosofia é “fenomenológico” – enquanto e à medida que corresponde ao mistério
que provoca o pensamento a pensar – o mistério do “ser” (que se deixa evocar em
diferentes nomes na história do pensamento). Por isso, uma leitura

35
Leão, Emmanuel Carneiro. Aprendendo a Pensar I: o pensamento na modernidade e na religião.
Teresópolis: Daimon Editora, 2008, p. 196.
fenomenológica de Heráclito, de Parmênides, de Platão, de Aristóteles, de
Agostinho, de Dionísio Areopagita, de Anselmo, de Tomás de Aquino, de
Boaventura, de Mestre Eckhart, de Nicolau de Cusa, de Descartes ou Pascal, de
Kant ou Hegel, não é a imposição do “ponto de vista” de Husserl ou de Heidegger
ou de qualquer outro pensador do “movimento fenomenológico”, mas é, antes, a
liberação da fenomenologia de cada um destes pensadores (e, naturalmente, dos
outros não citados) segundo a perfilação que ela toma a cada vez. Quer dizer: em
que sentido no pensar deste ou daquele pensador o pensamento se mede com o
seu outro, com aquilo que não está em seu poder, mas que é justamente o que o
possibilita, o potencia, o “mistério do ser”. Todos os pensadores dizem o mesmo.
Procuram mostrar o Mesmo! Embora o façam em horizontes, perspectivas,
discursos diferentes... Todos participam do mesmo diálogo do pensamento em
torno da coisa que provoca o pensamento a pensar, o “ser”, a “realidade”, a “vida”,
como quisermos chamar isso que não se deixa nomear – ou que só a custo, como
por um balbucio, se deixa evocar.

Por outro lado, cada pensamento se realiza a partir de um determinado


(kairós). O mesmo vale para a “fenomenologia”, isto é, para a hodierna
fenomenologia, que é o que se tem em mente, quando se pensa no “movimento
fenomenológico”. A hodierna fenomenologia, num sentido histórico-cairológico,
diz uma possibilidade do pensamento que irrompeu no seio da época contemporânea
com as descobertas das Investigações Lógicas de Husserl e que foi aviada em
diversas formas e direções no trabalho de tantos outros investigadores, filósofos e
pensadores do nosso tempo. O seu sentido cairológico está em ser a forma
fundamental do pensar e indagar de nossa época.

Para pensarmos a irrupção da hodierna fenomenologia, queremos sondar as


origens desta forma de pensamento, deste modo de investigação que apareceu e
compareceu nas Investigações Lógicas. Nós queremos apreender a gênese da
fenomenologia tal como esta se deu na singularidade cairológica de sua aparição.
Segundo a constituição de sua finitude temporânea, todo o pensamento pensa a
partir de uma situação histórica. É sempre a partir de e em uma situação epocal
que o pensamento dos pensadores se confronta com os apelos do mistério e os
desafios dos problemas e procura forjar respostas e soluções que propiciem uma
vida segundo a verdade. No caso da fenomenologia, ela nasce do confronto (Aus-
einander-setzung) com as questões inerentes à filosofia do século XIX. Por isso, a
fim de apreender a gênese da fenomenologia e ali descobrir suas raízes, nossa
investigação se voltará antes de tudo para a situação na qual surge a fenomenologia
como uma nova possibilidade do pensamento e da investigação filosófica. Deste
modo, nós tentaremos ver mais de perto quais são os traços que caracterizam
essencialmente a situação histórico-espiritual, a situação científica e filosófica em
que a fenomenologia vem à tona.

A nossa investigação se volta, portanto, para a história, ou melhor, para um


bem determinado momento da história do pensamento ocidental, do lance do
projeto da “razão ocidental”, isto é, daquela história que tem os seus primórdios na
doação da filosofia aos gregos, que se expande em poder e domínio com a
humanitas romana, que se transforma radicalmente com a pregação judaico-cristã,
que conhece uma ordenação religiosa no medievo (idade do meio), que renasce
com a aspiração a uma nova liberdade na época moderna (idade nova), que adquire
uma dimensão global com a planetarização operada pela ciência e pela técnica
(momento presente). A hodierna fenomenologia nasce em meio às vicissitudes
deste último momento desta história, ou seja, da idade da ciência e da técnica. Ela
se põe conscientemente no horizonte da modernidade. E ao mesmo tempo se sente
pertencente ao dia histórico cuja aurora irrompeu em meio aos gregos.

I.1.1. Fenomenologia e a situação histórico-espiritual da humanidade na idade da


ciência.

O século XIX é o tempo no qual a consciência histórica aflora com toda a


sua força. É também a época na qual o ser humano se descobre com toda a sua
potencialidade de produzir e de transformar, com o seu trabalho, toda a realidade.
Determinante é, porém, o novo impulso de domínio técnico da realidade,
proporcionado sobretudo, pelos fundamentais contributos da ciência. É a partir
daquela época que vai se configurando, de modo decisivo para a história sucessiva,
a idade da ciência e da técnica. A ciência passa a ser a depositária de todas as
esperanças da humanidade. Dela deveriam surgir todas as transformações
materiais e espirituais de que a cultura dos povos que teriam atinjido um modo de
viver determinado pela racionalidade científica teria necessidade. Numa tal
atmosfera já não tinha sentido dedicar-se a especulações filosóficas tais como
aquelas que eram efetuadas no âmbito seja da metafísica tradicional, seja daquela
idealística.

A fenomenologia constituiu um novo e vigoroso início para a filosofia, um


modo de pensar filosoficamente sem recair na esterilidade de uma metafísica
reduzida a fórmulas vazias herdadas do passado ou nas extravagâncias de
especulações idealísticas corrompidas em elucubrações soltas no ar. Ela quis ser
uma “filosofia científica”, não no sentido de ser uma mera teoria das ciências, mas
no sentido de ser uma ciência filosófica, ou melhor, de ser um método através do
qual a filosofia mesma adquirisse o grau de cientificidade originário que lhe
compete. Neste sentido, a fenomenologia renunciou seja à opção de ser uma mera
descrição epistemológica, seja àquela de ser uma visão de mundo
(Weltanschauung). A fenomenologia entendeu que sua tarefa específica não era
dar respostas imediatas aos problemas do tempo presente, no sentido do “hoje”
público, da ordem do dia. Sua tarefa era muito mais primordial. Na medida em que
ela cumprisse esta tarefa o hoje cairológico profundo da humanidade poderia ser
iluminado nas suas problemáticas mais importantes. De fato, assim se expressa
Husserl: “em sua autoreferência a fenomenologia reconhece sua função própria em
uma possível vida transcendental da humanidade (in einem möglichen
transzendentalen Menschheitsleben). Ela reconhece as normas absolutas que
emergem de tal vida, mas reconhece também a estrutura teleológica originária
tendente na direção da descoberta destas normas e da sua atuação prática e
consciente. Ela se reconhece, portanto, como função da autoreflexão universal da
humanidade (transcendental) no serviço de uma praxis universal da razão (im
Dienste einer universalen Vernunftpraxis), isto é, no serviço da aspiração, libertada
através da descoberta, na direção da idéia universal, que jaz no infinito, da absoluta
perfeição ou, o que é o mesmo, na direção da idéia, que jaz no infinito, de uma
humanidade que de fato e inteiramente existiria e viveria em verdade e
autenticidade (in Wahrheit und Echtheit)”36.

Dizíamos antes que a ciência tinha sido constituída como guia da


humanidade rumo a um futuro promissor, rumo a uma nova cultura, formada por
povos capazes de dirigir o próprio destino e o destino do mundo pautando-se
sempre pela racionalidade, cujo tipo originário e supremo era o puro pensamento
da ciência, o pensamento matemático, aquele que determinara a configuração da
ciência da natureza e que permitia, agora, um domínio sobre as coisas da natureza,
como nunca antes fora dado ao homem possuí-lo. A fenomenologia propõe uma
existência guiada sim pela idéia de racionalidade. Mas ela compreende a própria
razão num sentido muito mais originário e vasto do que o entenderam as ciências
positivas. No fundo da nova civilização fundada sobre a ciência e a técnica estava
a crença no poder da razão, no sentido da razão científica, e a vontade de domínio
sobre todas as coisas. A fenomenologia, é verdade, não põe em dúvida o poder da
razão humana e sua missão no sentido de formar uma cultura respeitosa das
normas básicas e fundamentais de uma convivência social a nível universal. Mas
para ela a razão não é apenas um instrumento para o domínio técnico do mundo e
da terra. A razão é muito mais aquilo que nos foi dado, a nós homens, sobre a face
da terra, para que nós cuidássemos de tudo e de nós mesmos seguindo uma vida
pautada sempre pela reflexão e pela adesão à verdade, à veracidade e à
autenticidade.

A palavra de ordem da ciência, que triunfava no século XIX, por sua vez, era:
fatos da experiência. Real é tudo e somente aquilo que se faz acessível através de
uma abordagem empírica. O empirismo constitui a “forma mentis” que perpassa
todas as ciências, sejam aquelas que desde tempos antigos tinham adquirido
autoridade no âmbito do saber e que agora, renovadas, exerciam ainda mais esta
autoridade, sejam aquelas apenas nascentes, portadoras de promessas no âmbito
do saber e do domínio sobre a realidade. A matemática aparece como a

36
E. Husserl, “Der Encyclopaedia Britannica Artikel”, in Phänomenologische Psychologie ( Husserliana IX),
299.
quintessência de todas as demais ciências. Nela se concentra de modo supremo a
idéia metódica de rigor. Toda teoria deve ser construída e desdobrada atendo-se ao
rigor matemático. Por sua vez, tal rigor é essencialmente um rigor formal. Nele, o
puro pensamento adquire uma força de análise e de síntese que domina toda a
possibilidade de desdobramento teorético, partindo de axiomas, isto é, de
proposições imediatamente evidentes, e derivando destes as mais diversas
conclusões. Por sua vez, no cerne do puro pensamento operativo da matemática
está a lógica, isto é, a doutrina dos termos, das proposições e do raciocínio. Na
verdade, as duas disciplinas são tão intimamente conexas que se pode falar de uma
logicidade da matemática, bem como de uma matematicidade da lógica. É possível
analisar os procedimentos raciocinativos da matemática atendo-se aos
desdobramentos de sua linguagem formal, assim como é possível analisar os
conteúdos da lógica reduzindo-os a entidades simbólico-quantitativas. Seja como
for, matemática e lógica designam duas faces do puro pensamento, aquele que rege
toda a elaboração das teorias científicas. Em concreto, porém, são as ciências
naturais que levam adiante o projeto matemático da ciência moderna, isto é, o
projeto de matematizar todo o real. A primeira ciência a operá-lo concretamente é
a física. Sua grande importância está em descobrir as leis que regulam os processos
que ocorrem com os corpos no âmbito espaço-temporal. De particular importância
reveste, neste contexto, a mecânica, ou seja, a explicação das leis que regem o
movimento. Como a física, entre as ciências naturais, goza de uma sua primazia
sobre as demais, e como a mecânica, neste contexto, é uma explicação exemplar
dos fenômenos físicos, as outras ciências, seguindo o modelo da física, tendem a
reduzir todos os fatos da natureza a mecanismos. O mecanicismo, de fato, reina
nas ciências naturais do século XIX, não obstante reações em contrário, como, por
exemplo, a do vitalismo na biologia. Com o predomínio das ciências naturais como
modelo teórico de explicação de todo o real surge a tendência de reduzir toda a
realidade aos fenômenos da natureza. É a hora e a vez do naturalismo.

Com a grande renovação do espírito científico e o novo impulso das ciências


naturais surgiu a tendência de explicar também os fenômenos psíquicos com base
em métodos próprios das ciências empíricas. O século XIX vê nascer a psicofísica
e, depois, a psicologia experimental. Tal psicologia nasce, antes de tudo, como
psicologia fisiológica. Nela se confluem seja a tradição filosófica de uma teoria da
consciência, que remonta a Descartes, passa pelos empiristas ingleses e atinge seu
ponto alto em Kant, seja a tradição da fisiologia que provém dos fisiólogos, passa
pelos criadores da psico-física e atinge o seu ponto de maturação em Wundt.
Inicialmente a psicologia se põe a estudar sobretudo fenômenos da percepção e
sensação. Pouco a pouco, porém conquista também o campo das funções psíquicas
superiores, tais como a memória, a vontade e o pensamento. Surge então, a
possibidade de explicar o funcionamento do pensamento e os processos cognitivos
de modo empírico e fisiológico. Para os empiristas a psicologia passa a ser vista
como a ciência sobre a qual será possível fundar todas as outras ciências. Mesmo a
lógica e a matemática devem receber uma fundação psicológica. É a hora e a vez
do psicologismo.

Por outro lado, também a história, enquanto ciência dos fatos do passado,
adquire um estatuto de cientificidade rigoroso com a aplicação do novo método,
apoiado sobretudo no estudo das fontes. O desenvolvimento da filologia, bem
como a sistematização da hermenêutica, enquanto disciplina que estuda as técnicas
de interpretação, deu à história um novo vigor no confronto com as fontes e na
interpretação das mesmas, a fim de averiguar com precisão o que realmente pode
ser estabelecido como fato e quais são as condições históricas que determinam a
sua ocorrência. Não obstante este avanço na determinação do método, a relação
do historiador com o objeto da sua ciência permaneceu não muito claro. Surge,
assim, duas diversas orientações: uma segundo a qual é a política a dimensão
histórica por excelência, e outra segundo a qual é, ao invés, a cultura. Seja como
for, em pouco tempo, com o afirmar-se sempre mais forte da consciência histórica
e com o desenvolvimento sempre mais abrangente da própria ciência da história,
surgirá a tendência de explicar todo o real a partir da história. É a hora e a vez do
historicismo.

Naturalismo, psicologismo, historicismo serão títulos para diversas


tendências reducionistas provenientes de uma visão de mundo proveniente das
ciências positivas, visão de mundo que tenderá a dominar cada vez mais a cultura
do fim do século XIX e início do século XX. É a partir do confronto com estas
tendências que a fenomenologia, precisamente, a fenomenologia de Husserl, irá
determinar-se positivamente.

I.1.2. Fenomenologia e a situação da filosofia na idade da ciência

A situação da filosofia neste período é determinada fundamentalmente pela


transformação da consciência científica. As ciências tinham se apropriado de todos
os campos do real. O que restava para a filosofia? Confrontando-se com esta
situação a filosofia redefiniu a sua tarefa, compreendendo-a, agora, como teoria do
conhecimento, ou seja, como lógica das ciências. O positivismo, que nasce como
uma teoria da cultura que visa uma extensão da visão de mundo proveniente das
ciências naturais, encontra a sua definição filosófica, enquanto teoria da ciência, na
obra de John Stuart Mill. Empirista radical, ele defenderá a tese de que todo o
conhecimento é indutivo. Não existe nada de a priori. Mesmo os princípios lógicos,
como aquele de não contradição, por exemplo, nascem de sentimentos e requerem
uma explicação psicológica. Todas as ciências, inclusive a lógica, devem fundar-se
sobre a psicologia. Além disso, Mill proporá de transferir os métodos das ciências
naturais para o âmbito das ciências do espírito.

Do lado contrário ao positivismo e ao psicologismo está o neokantismo, seja


aquele da Escola de Margurgo (Cohen, Natorp), seja aquele da filosofia dos valores
(Windelband, Rickert). Cohen sonda a constituição do conhecimento realizando
uma teoria da ciência a partir do horizonte kantiano. Decisivo para a constituição
do conhecimento é a estrutura transcendental da consciência. Natorp defende que
o conhecimento é fundado não sobre processos psíquicos empiricamente
descritíveis, mas na estrutura da consciência que, essencialmente, uma estrutura
lógica. Para ele, portanto, não a lógica se funda sobre a psicologia, mas a psicologia
se funda sobre a lógica. A filosofia dos valores, na tradição de Kant e de Fichte,
reafirma a primazia da razão prática sobre a teorética. O conhecimento possui uma
estrutura teleológica, enquanto finalizada ao valor- verdade. As leis lógicas não são
leis naturais que regulam o funcionamento do pensamento enquanto um
fenômeno psíquico, mas imperativos ideais que dizem como devemos pensar a fim
de que o nosso conhecimento seja verdadeiro. A filosofia se torna uma reflexão
crítica a cerca dos valores. Não que a filosofia tenha a pretensão de criar valores. A
ela cabe somente colhê-los na sua pureza ideal, incondicionada. Em seguida, cabe
à reflexão filosófica confrontar o real, isto é, as realizações histórica da cultura com
o ideal, isto é, com os valores, os quais são incondicionados, sempre idênticos a si
mesmos, válidos para todos. Com a filosofia dos valores a reflexão filosófico-crítica
sobre a cultura ganha uma formulação científico-sistemática e cunha o caráter de
visão de mundo científica.

Por sua vez, Dilthey apresenta-se livre de um kantismo dogmático e de um


positivismo dominador, bem como atento à consciência histórica e sensível às
realidades do espírito. Imediatamente ele percebeu o equívoco do positivismo de
tentar transferir o método das ciências naturais para as ciências do espírito.
Reconheceu também a importância que o singular adquire nas ciências históricas,
em oposição às ciências naturais, onde o particular é cada vez explicado a partir da
determinação de uma lei geral. Além disso, ele descobriu a tarefa das ciências do
espírito na compreensão da vida nas suas estruturas fundamentais. Seu mérito foi
o de ter chamado a atenção da filosofia para uma interpretação da vida a partir da
vida mesma. Mas nem sempre ele conseguiu realizar aquilo que ele mesmo
vislumbrara. Assim como em Natorp, também em Dilthey a descrição da realidade
originária perde o lugar para uma tendência à construção teórica, em vez de se ater
àquilo que efetivamente se mostra.

Husserl, no primeiro volume das Investigações Lógicas, empreenderá a


realização de uma crítica radical do psicologismo. Um dos seus principais
interlocutores será John Stuart Mill, a quem ele mostrará sempre um grande
respeito e admiração, não obstante não compartilhasse de sua posição filósofica.
Ele afirmará de modo peremptório que a lógica não pode ser fundada na psicologia,
entendida no sentido de uma ciência de fatos. Ele se colocará da parte dos anti-
psicologistas, não obstante não compartilhasse a concepção dos neokantianos que
viam na lógica uma moral do conhecimento. Mais tarde o estudo aprofundado de
Kant e o confronto com os neokantianos, sobretudo com Natorp, tornar-se-á
decisivo para a formação da fenomenologia enquanto ciência da consciência
transcendental. Neste contexto o conceito de constituição (Konstitution) exercerá
um papel fundamental. Como Natorp, ele colocará o ego à base de todo o ser,
deixando-o, porém, não esclarecido, uma vez que o eu não pode ser colocado como
problema de uma investigação teórica, pois ele mesmo é o fundamento não
objetivo de tudo aquilo que pode se tornar objeto de uma problematização. Quanto
a Dilthey, uma afinidade com Husserl no modo de refletir filosoficamente, a saber,
o voltar-se para a concreteza da realidade procurando descrevê-la a partir dela
mesma, isto é, procurando colhê-la a partir de sua datidade originária, fará com
que o pensamento de ambos vislumbre a possibilidade de uma ciência originária
(Urwissenschaft), capaz de abranger não somente o âmbito do teorético, como
também aquele pre-teorético, ou seja, pre- e extra-científico, e de apreender aquilo
que ali si mostra de modo não artificial, mas sim intuitivo. Husserl recriminará a
tendência historicista e relativística de Dilthey, mas no seu desenvolvimento
posterior acolherá as sugestões de sua psicologia personalista e de sua compreensão
da história.

Descrevendo a situação filosófica, científica e espiritual no seio da qual


nasceu a fenomenologia nós somos muitas vezes constrangidos a usar de títulos
para as tendências e posições filosóficas que se apresentavam. Tratam-se dos
diversos “ismos” tais como: cientificismo, naturalismo, historicismo, psicologismo;
empirismo e racionalismo, relativismo e absolutismo, subjetivismo e objetivismo,
realismo e idealismo, psicologismo e antipsicologismo, positivismo e neokantismo,
etc. A fenomenologia, enquanto ciência radical da filosofia, dissolve todo o tipo de
reducionismo e absolutização. Para ela fica evidente que o cientificismo é uma
absolutização da ciência, cuja importância quer do ponto de vista teorético quanto
prático não se pode negar. Assim, também outras posições conflituais da história
da filosofia provém de uma incompreensão do que seja natureza, história, vida,
alma, experiência, razão, absoluto e relativo, subjetividade e objetividade, real e
ideal, pensamento, fato, imanência e transcendência, etc. Porém a fenomenologia
não busca simplesmente mediar o conflito através de artifícios dialéticos e nem
mesmo através de meros compromissos. Ela tenta mostrar que tais posições não
são o bastante radicais, isto é, não vão à raiz das coisas mesmas, de que elas se
montam sobre pressuposições não examinadas filosoficamente. Deste modo, para
a fenomenologia, precisamente para a fenomenologia de Husserl, o subjetivismo só
pode ser superado na medida em que é reconduzido a uma subjetividade originária
e universal, intencionada com o título de “subjetividade transcendental”. O
objetivismo só pode ser retificado na medida em que se compreende o verdadeiro
sentido da objetividade do real, coisa que é indicada pelo conceito de
“constituição”. O relativismo só pode ser substituído por um relativismo universal,
ou seja, pensando todo o real a partir de sua relação constitutiva para com o eu
transcendental e descobrindo a relacionalidade mais radical, aquela da
subjetividade transcendental para consigo mesma. O absolutismo exige que o
conceito de absoluto não se refira a alguma coisa de extra-vagante e ex-cêntrico
mas sim àquilo que é “por-si” e “para-si”, à consciência transcendental. O
empirismo revela uma concepção muito estreita de experiência; a fenomenologia,
por sua vez, alarga este conceito, admitindo não somente a possibilidade de uma
conhecimento por indução e generalização, mas também um conhecimento, muito
mais fiel às coisas mesmas, que se realize mediante a intuição doadora de sentido
originário, o que se busca através de procedimentos metódicos tais como a intuição
eidética, a apreensão da evidência apodítica, a intuição fenomenológica da
essência, etc. Por outro lado, a fenomenologia é uma investigação da razão, a qual
parte do reconhecimento de que o racionalismo não compreende adequadamente
a essência da própria razão; existe uma outra forma de razão e de racionalidade
que aquela teorética não conhece e a fenomenologia visa atuar esta forma de
racionalidade não excluindo aquela outra. Quase se poderia dizer a fenomenologia
é a descoberta, ou redescoberta, da origináriedade do esprit de finesse em meio ao
domínio totalitário do esprit de géométrie, a qual não o exclui, mas o resgata de sua
unilateralidade e o reconduz às suas raízes mesmas.
I.1. 3. O contexto imediato do nascimento da hodierna fenomenologia em Husserl:
Brentano, Stumpf e a psicologia

O contexto imediato do surgimento da hodierna fenomenologia em Husserl


é o trabalho de Brentano e de Stumpf. Vimos quais eram os pontos de partida da
filosofia de Brentano, em especial, seu vínculo com Aristóteles e com a escolástica
medieval. Vimos também que ele funda uma psicologia que reivindicava o caráter
de ser uma descrição a partir das próprias consistências factuais (Tatbestände). A
caminho de tal psicologia, ele chega a por a pergunta pelo modo de ser dos
fenômenos psíquicos. É assim que ele descobre a intencionalidade. O ser dos atos
psíquicos ou vivências é essencialmente intencional. Cada vivência se dirige a
alguma coisa, cada vez de modo diferente segundo o seu caráter peculiar. Aos atos
intencionais correspondem outros tantos objetos intencionais. A consciência, isto
é, o ser do eu que executa os atos é determinada pela sua capacidade peculiar de
relacionar-se com, referir-se a, dirigir-se a, comportar-se com. São múltiplos os
modos no qual se efetua este ser intencional. Representação, juízo e interesse são
nomes para os diversos tipos de atos psíquicos possíveis. A psicologia de Brentano,
oposta àquela de Wundt, atuou seja sobre a psicologia experimental como sobre a
filosofia, de modo especial, sobre Bergson e William James. Stumpf, seu aluno e
amigo, continuou de certo modo o trabalho do mestre. Nele a psicologia descritiva
de Brentano confirma o seu caráter de psicologia fenomenológica. Nesta, se dá um
forte apelo à experiência. Mas aqui a experiência é compreendida num sentido
bastante mais amplo que no empirismo tradicional. Do mesmo modo, para ele, o
conhecimento empírico não é somente e necessariamente indutivo, pode ser
também “intuitivo”, isto é, um conhecimento que colhe a forma daquilo que se
mostra e como se mostra. Stumpf retoma também a idéia de uma mathesis
universalis e vê seu cumprimento em uma nova ciência indicada com o nome de
fenomenologia. Esta seria uma ciência de caráter não regional, mas universal: uma
ciência da totalidade, prévia a todas as ciências que têm como objeto sempre e cada
vez uma região ou campo específico do real, portanto, uma Vorwissenschaf, uma
ciência preliminar e primordial.
Os primeiros passos de Husserl na filosofia se deram sobretudo a partir do
confronto e da aprendizagem com Brentano e com Stumpf. Ele assimilou o modo
de investigar de Brentano e algumas descobertas de ambos. A psicologia
fenomenológica, constitui o limiar da fenomenologia pura, ou seja, da filosofia
fenomenológica. Por psicologia fenomenológica não se entende um certo tipo de
psicologia genética, ou seja, empírica ou experimental. Na verdade, aquela quer ser
o fundamento para esta, quer dizer, a psicologia descritiva quer oferecer com
clareza os conceitos fundamentais dos quais tem necessidade a psicologia empírica
nas suas mais diversas escolas. A psicologia descritiva de Brentano e Stumpf,
enquanto descrição fenomenológica das vivências intencionais, ou seja, de todos
os atos que compõem a unidade da vida da consciência, ainda não se torna
propriamente fenomenologia pura ou filosofia fenomenológica. De certa forma ela
ainda é muito determinada pelo modo de ser do que Husserl chama de pensamento
natural, ou seja, daquela atitude de pensamento próprio do senso comum e da
ciência que vê a realidade como alguma coisa de totalmente independente da
consciência. A psicologia descritiva se baseia sobre a auto observação da
experiência interior, ou seja, da experiência imediata que é dada com as vivências
psíquicas mesmas. Mas permanece obscuro o nexo entre esta experiência interior
com o modo correspondente no qual o mundo assim chamado real se manifesta
como objetividade intencional e a experiência externa na qual o mundo aparece
como estranho à própria consciência, sim, onde a consciência mesma é reduzida a
alguma coisa de objetivo que aparece no mundo das objetualidades. Husserl
retoma a psicologia descritiva da consciência intencional e opera um passo adiante
no sentido de uma psicologia fenomenológica mais originária. Tal passo consiste
na atuação metódica da redução fenomenológica. Tal redução se realiza através da
efetuação da  isto é, da suspensão de toda atitude de pensamento que põe
objetos ou o mundo dos objetos como algo de transcendente, de independente em
relação à consciência. Trata-se da renúncia e abstenção cumprida em relação a
todo e qualquer juízo sobre uma realidade subsistente em si mesma, sem referência
para com a consciência intencional. Não que o mundo desapareça. O mundo é,
agora, todo e somente o mundo-da-consciência, ou ainda, o mundo-para-a-
consciência. À epoché deve-se acrescentar a redução eidética, onde toda intentio e
todo intentum, ou seja, todo ato intencional e toda correspondente objetualidade
intencional (noesis e noema) sejam apreendidos tão somento na sua forma
essencial, isto é, no seu . A partir de uma análise eidética do ser da consciência
com a sua correspondente objetualidade nós descobrimos a subjetividade
transcendental enquanto estrutura fundamental da unidade entre mundo e
consciência. Com a aplicação das reduções fenomenológicas passamos, pois, de
uma psicologia fenomenológica ou eidética para uma fenomenologia pura ou
transcendental, cujo campo temático é justamente a subjetividade transcendental
em toda a sua pureza e originariedade.

I.1.4. O irromper da fenomenologia nas “Investigações Lógicas” de Husserl

Edmund Husserl (1859-1938) é o pensador em cujo trabalho, precisamente,


nas suas Logische Untersuchungen (Investigações Lógicas), publicadas em dois
volumes nos anos de 1900 e 1901, faz aparição histórica pela primeira vez a
fenomenologia, entendida como um conceito de método de investigação filosófica.
Tal conceito de método busca dar à filosofia o caráter essencial de uma ciência
rigorosa que, por sua vez, enquanto ontologia universal, possibilite às ciências não-
filosóficas uma fundamentação radical e transparente; e que, enquanto modo
rigoroso de indagação e investigação de questões fundamentais, possibilite, na
práxis, aos indivíduos e às comunidades humanas uma existência segundo a
verdade e a veracidade.

Husserl nasceu em Prossnitz, na Morávia, no ano de 1859. Estudou


matemática em Berlim com Weierstrass, doutorando-se em 1883 com uma tese
sobre o cálculo das variações. Como já acenamos, a matemática de então era guiada
primordialmente pela exigência de rigor na demonstração e fundamentação de suas
operações teóricas. Na verdade, tal rigor deveria ser considerado o índice de
cientificidade de uma ciência. Ora, a filosofia da época, desencantada com a
especulação idealista, destronada pelas ciências empíricas, indecisa e vaga na
compreensão de sua própria cientificidade e de sua relação para com as demais
ciências, não podia aparecer aos olhos do matemático uma ciência digna deste
nome. Neste sentido, o interesse de Husserl pela filosofia, enquanto estudante de
matemática, foi escasso. “O que ele ouvia de filosofia não ultrapassava aquilo que
cada estudante aprendia nas lições. O que Paulsen dizia era leal e gentil, mas não
era apto para entusiasmar Husserl para a filosofia como uma disciplina científica.
Só depois de seu doutorado ele frequentou as lições de um homem, de quem
naquele tempo muito se falava, e a impressão pessoal diante da paixão do
perguntar e do refletir – esta fora a impressão que Brentano fizera a Husserl – o
segurou; e ele permaneceu junto dele dois anos, de 1884 a 1886. Brentano decidiu
então a direção científica que o trabalho de Husserl tomou. A sua oscilação entre
matemática e filosofia foi resolvida. Através da impressão que Brentano como
professor e investigador deixara sobre ele, abriu-se-lhe, dentro da filosofia
improdutiva de seu tempo, a possibilidade de uma filosofia científica”37.

Na verdade, o encontro com Brentano foi decisivo para Husserl não no


sentido de aprender esta ou aquela doutrina filosófica, mas no sentido de aprender
a filosofar. Em Brentano, a filosofia aparecia aos olhos de Husserl como uma
atividade científica, empenhada apaixonadamente no exercício de perguntar e de
refletir, considerar, meditar e contemplar; aparecia como interessada em afrontar
os problemas de modo rigoroso, através do confronto com as coisas mesmas. “O
procedimento especulativo de Brentano, a maneira como ensinava, fizeram-no
compreender que a filosofia podia ser alguma coisa de diversa de um discursos de
estetas, que esta, afrontada retamente, podia satisfazer a mais profunda exigência
de rigor científico, que ele como matemático era habituado a pretender”38 .

E Husserl começou na filosofia partindo daquilo que lhe era mais acessível:
da matemática. Na verdade, a própria busca de esclarecer os fundamentos da
matemática o conduzira a uma reflexão filosófica mais abrangente e mais
originária. “A propósito, isto foi característico: o trabalho filosófico de Husserl
começou então não com qualquer problema imaginado ou trazido de fora, mas, de
acordo com o seu caminho de desenvolvimento científico, ele começou a filosofar

37
M. Heidegger, PGZ, 28-29.
38
E. Stein, La ricerca della verità, 62.
sobre o chão que tinha, isto é, sua meditação filosófica, no sentido da metódica de
Brentano, se dirigiu à matemática”39. Assim, a meditação filosófica genuína deve
saber começar. O começo não é meramente uma etapa transitória e destinada a
fazer parte de um passado para sempre pretérito no caminho especulativo de um
pensador. O começo é sempre proveniência e, enquanto tal, determina em certa
medida o caminho que se faz e o destino da própria caminhada através do
pensamento. Além disso, o pensador é solicitado a começar a partir de seu próprio
chão, a pisar o seu próprio chão, a sondar as suas profundidades e a sua
fecundidade; com outras palavras, o pensador é solicitado a não prescindir do seu
caminho pessoal já feito na via especulativa e científica, a ter como ponto de
partida a sua própria história de busca da verdade e a situação em que atualmente
se encontra. Husserl começou a filosofar não adotando esta ou aquela corrente,
esta ou aquela doutrina. “Quando ele chegou a filosofar de modo autônomo, não
se deixou conduzir por uma obra qualquer do passado, mas sim pelos problemas
mesmos”40.

Husserl começou afrontando problemas concretos e fundamentais que


apareciam no interior da ciência que ele estudara, isto é, a matemática. Seu
trabalho filosófico começava com a tarefa de esclarecer os conceitos fundamentais
desta ciência que era tida como o modelo de rigor científico para as demais
ciências. “Ele se ocupou antes de tudo, falando de um modo tradicional, com a
lógica da matemática. Mas não só a teoria do pensar matemático e do
conhecimento matemático, mas sim antes de tudo a análise da estrutura dos
objetos da matemática – o número – se tornou tema de suas reflexões”41. Aquilo
que interessava Husserl não era simplesmente uma teoria do conhecimento no
âmbito da matemática. Seu interesse maior era perguntar o que é isto: o número.
Qual é o modo de ser daquilo que constitui o objeto da matemática? Esta era a sua
pergunta inicial. Sua tese de habilitação, feita com Stumpf em Halle no ano de 1887,
era uma tentativa de colocar esta questão e se intitulava “Über den Bregriff der Zahl.
Psychologische Analysen” (“Sobre o conceito de número. Análise psicológica”). No

39
M. Heidegger, PGZ, 29.
40
E. Stein, La ricerca della verità, 56.
41
M. Heidegger, PGZ, 29.
ano de 1891 Husserl publicou a nível editorial uma obra que retomava, aprofundava
e ampliava o tema de sua tese, com o título “Philosophie der Arithmetik”. Este
trabalho se desenvolvia no sentido de uma investigação sobre os conceitos
fundamentais da matemática e sobre o método do pensamento matemático,
buscando uma aproximação às coisas mesmas desta ciência seja através de uma
perspectiva lógica seja através de uma perspectiva psicológica, não no sentido da
psicologia genética, mas no da psicologia descritiva de Brentano, a quem ele
dedicara aquela obra, até então publicada em um só volume. Husserl havia
anunciado a publicação futura de um segundo volume, mas nunca chegara a
realizar tal empresa. Tal obra nasceu, sem dúvida, da tentativa de afrontar os
problemas fundamentais da matemática a partir de uma impostação interrogativa
própria da psicologia descritiva de Brentano.

Contemporaneamente a todas as confrontações com outros pensadores


(Bolzano, Herbart e Leibniz se destacam, além dos corifeus da filosofia moderna,
como Descartes, Hume, Locke e Kant), a investigação de Husserl, pressionada
pelas coisas mesmas, iria conduzi-lo, de fato, a ultrapassar o domínio da lógica da
matemática e até mesmo o domínio de uma matemática da lógica, no sentido usual
quantitativo, fazendo-o entrar em um âmbito de questões ainda mais originário e
universal: “em breve, porém, as questões se alargaram no âmbito dos princípios
(ins Prinzipielle) e as investigações empurraram para os conceitos fundamentais do
pensamento em geral (Fundamentalbegriffen des Denkens überhaupt) e dos
objetos em geral; cresceu a tarefa de uma lógica científica e, unida a esta, a reflexão
sobre os meios e caminhos métodicos da correta sondagem dos objetos da lógica.
Isto significava uma apreensão mais radical daquilo que fôra dado com a psicologia
descritiva e, ao mesmo tempo, uma fundamental crítica contra a confusão
contemporânea da postura interrogativa da psicologia genética com a lógica. Este
trabalho junto aos objetos fundamentais da lógica ocupou Husserl por mais de
doze anos. Os primeiro resultados deste trabalho formam o conteúdo da obra que
foi publicada em dois volumes nos anos de 1900 e 1901 com o título ‘Logische
Untersuchungen’ (‘Investigações Lógicas’). Com esta obra veio à primeira irrupção
a investigação fenomenológica. Este tornou-se o livro fundamental da
fenomenologia”42.

O primeiro volume das Investigações Lógicas se intitula “Prolegomena zur


reinen Logik” (Prolegômenos para a lógica pura). Sobre a gênese de tal obra Husserl
se pronuncia no prefácio da primeira edição, de 1900: “As investigações lógicas,
cuja publicação eu começo com estes prolegômenos, surgiram de problemas
inevitáveis que sempre de novo inibiram e finalmente interromperam o progresso
de meus esforços, efetuados durante anos, em torno de um esclarecimento
filosófico da matemática pura. Paralelo às perguntas sobre a origem das intelecções
e dos conceitos fundamentais da matemática aqueles esforços se deparavam
também com as difíceis perguntas do método e da teoria matemática. Aquilo que
deveria aparecer transparente e facilmente compreensível segundo as
representações da lógica tradicional ou em todo o caso da lógica reformada, a
saber, a essência racional da ciência dedutiva com sua unidade formal e metódica
simbólica, se me apresentou, no estudo das ciências dedutivas efetivamente dadas,
obscuro e problemático”43.

As questões fundamentais acerca da matemática tinham conduzido Husserl


às questões fundamentais acerca da lógica, tanto num âmbito como no outro ele
não encontrara clareza, não obstante todo o respeito de que estas duas ciências
gozavam no contexto das demais ciências, às quais eram apresentadas como
modelo de rigor e de clareza. Husserl, pouco a pouco, fora conduzido aos
problemas da teoria do conhecimento e da lógica em geral. Inicialmente, o
caminho que ele percorre para a solução destes problemas é aquele que então era
o mais trilhado, ou seja, aquele que busca uma aproximação às questões da lógica
a partir da abordagem psicológica: “eu parti da convicção reinante de que a
psicologia era aquela da qual a lógica em geral, assim como a lógica das ciências
dedutivas, deveria esperar seu esclarecimento filosófico”44. Mas tal procedimento
apareceu desde o princípio limitado e duvidoso: “onde se tratava da pergunta pela

42
M. Heidegger, PGZ, 29-30.
43
E. Husserl, LU, vol. I, V.
44
E. Husserl, LU, vol. I, VI.
origem das representações matemáticas ou da configuração do método prático,
que de fato era determinado psicologicamente, a execução da análise psicológica
me parecia clara e instrutiva. Assim que, porém, se efetuasse uma passagem do
contexto psicológico do pensamento à unidade lógica do conteúdo pensado (à
unidade da teoria), não se deixava vir à tona nenhuma reta continuidade e clareza.
Tanto mais daí me inquietava também a dúvida de princípio sobre como a
objetividade da matemática e de toda ciência em geral fosse compatível com uma
fundamentação psicológica do lógico”45.

Husserl pouco a pouco será constrangido a abandonar o caminho


dominante do psicologismo e a tomar a direção de “reflexões gerais de caráter
crítico sobre a essência da lógica e sobretudo sobre a relação entre a subjetividade
do conhecimento e a objetividade do conteúdo do conhecimento”46. Inicialmente
as investigações lógicas aparecem, portanto, como a tentativa de uma nova
fundação da lógica pura e da teoria do conhecimento. O caminho que Husserl
tomará para esta nova fundação partirá da crítica ao caminho que até então era
dominante e que ele mesmo havia trilhado, isto é, o caminho do psicologismo. A
crítica do psicologismo seria, portanto, antes de tudo uma crítica das suas próprias
tentativas anteriores e uma compreensão de suas aporias, juntamente com uma
crítica do método dominante de abordar a fundamentação da lógica e das demais
ciências, o método de esclarecer logicamente as ciências dadas através de análises
psicológicas. Neste sentido, a sua crítica do psicologismo remete ao dito de Goethe
por Husserl mesmo recordado: “Man ist gegen nichts strenger als gegen erst
abgelegte Irrtümer” (Nunca se é mais rigoroso contra alguma coisa do que contra
os erros que se acabou de deixar)47.

A fenomenologia é antes de tudo um conceito de método de investigação


filosófica. Tal conceito de método veio à tona, na obra de Husserl intitulada
Investigações Lógicas, a partir primeiramente da crítica ao psicologismo e da busca
da fundação de uma lógica pura, enquanto parte constitutiva de uma mathesis

45
E. Husserl, LU, vol. I, VII.
46
E. Husserl, LU, vol. I, VII.
47
E. Husserl, LU, vol. I, VIII.
universalis, ou seja, de uma ciência formal mais ampla, dotada do caráter de teoria
das diversas formas de teorias possíveis e, em segundo lugar, a partir do
desenvolvimento positivo e concreto de seis investigações para um esclarecimento
do conhecimento na sua estrutura ideal-lógica essencial. Tais investigações se
movem no âmbito de problemas referentes à linguagem enquanto expressão, ou
seja, ato intencional significante, aos atos de apreensão da essência, às vivências
intencionais em geral e seus conteúdos e, por fim, desembocam na análise de
problemas fundamentais, tais como aquele do conceito de verdade e de evidência,
bem como dos diversos tipos de intuição e da relação entre sensibilidade e
intelecto. Descoberta fundamental destas investigações, precisamente, da Sexta
Investigação é a intuição categorial, a qual terá um papel muito importante na
fenomenologia de Heidegger.

Nas Investigações Lógicas emergira a fenomenologia como método de


investigação. O princípio deste método é dado pela expressão “zu den Sachen
selbst”(às coisas mesmas). Trata-se do imperativo de abandonar construções
teóricas sem fundamento e sem evidência e voltar-se àquilo que realmente se
mostra com toda clareza e nitidez. Aquilo que se mostra em si mesmo é chamado
aqui de fenômeno. Poder-se-ia objetar que aquela máxima da fenomenologia é uma
obviedade que vale para todo e qualquer procedimento científico e que todas as
ciências tratam de fenômenos. Qual é, então, a novidade da fenomenologia? A
fenomenologia não nega a obviedade de sua máxima, apenas a assume de modo
sério, radical e consequente. Quando se assume com radicalidade esta máxima
como atitude fundamental do pensamento a filosofia deixa de ser um discurso solto
no ar, para adquirir um chão firme, isto é, um terreno fenomenal fecundo. A
filosofia faz-se fidelidade àquilo que se mostra. O seu discurso consiste em fazer e
deixar ver de que se discorre assim como se mostra em si mesmo. Além disso,
aquilo que é fenômeno para as ciências é assumido dentro da radicalidade da
interrogação filosófica de modo novo. A atitude de pensamento da filosofia
diferencia-se da atitude de pensamento natural próprio das ciências. Os
procedimentos metódicos da fenomenologia, tais como as reduções atuadas pela
 e pela intuição eidética, conduzem a um novo horizonte de aparição da
consciência intencional e dos objetos intencionais. O primeiro desenvolvimento
da fenomenologia consistiu justamente na conquista do terreno fenomenal
genuíno e puro da filosofia fenomenológica, isto, na conquista da subjetividade
transcendental.

Mas a fenomenologia transcendental não pode ser confundida com um


confinamento solipsístico no âmbito de uma egoidade transcendental. Este perigo
parece subsistir. Mas não é esta a sua tendência mais própria. Pelo contrário,
reconduzindo-se à subjetividade transcendental o que a fenomenologia visa é
conquistar aquele horizonte a partir do qual seja possível abranger a totalidade do
ente. Não uma psicologia, mas uma ontologia universal quer ser a fenomenologia
transcendental. A fenomenologia visa ser, nas palavras de Husserl, uma “ciência a
priori de todos os entes pensáveis, mas não simplesmente da totalidade do ente
objetivo situado em uma atitude de positividade natural, mas sim do ente em geral
na sua plena concreção, que haure o sentido de ser e a validade da constituição
intencional correlativa”48. Enquanto ontologia universal, a fenomenologia é
 . Dela nasce, por conseguinte, a possibilidade de investigações
filosóficas voltadas às regiões fundamentais da totalidade do ente, tais como a
história, a natureza, etc. Num segundo momento, portanto, a fenomenologia
possibilita a elaboração rigorosa de ontologias regionais. Por sua vez, estas abrem
os significados dos conceitos fundamentais sobre os quais se constroem as teorias
das ciências positivas.

Heidegger começou e continuou até o fim o seu caminho de pensamento


movido pela questão do ser assumiu também que a filosofia é uma fenomenologia
ontológica e universal. Ele percebeu que, na história de toda a filosofia, desde os
gregos até os nossos dias, a questão do ser é posta de modo predominante como
questão pelo ser do ente. E nesta dinâmica interrogativa o ente assume uma
centralidade decisiva, deixando escondido ou esquecido o sentido do ser,
precisamente, do ser em si mesmo e a partir de si mesmo. Em Parmênides a
centralidade é concedida ao  em Platão ao , em Aristóteles às

48
E. Husserl, “Der Encyclopaedia Britannica Artikel”, in Phänomenologische Psychologie (Husserliana IX),
297.
 da razão. Na modernidade, Descartes funda a philosophia prima sobre
a res cogitans; para Kant a problemática transcendental se move no âmbito da
consciência (Bewusstsein). Também para Husserl a filosofia, enquanto ontologia
fenomenológica e universal é fundamentalmente ciência transcendental da
subjetividade pura.

Para Heidegger, como também para Husserl, a filosofia é uma ontologia


fenomenológica e universal. A filosofia é pergunta pelo ser. Mas ser diz, antes de
tudo ser do ente, de todo ente, isto é, do ente na sua totalidade. A pergunta pelo
ser deve começar com a interrogação do ente. Ente privilegiado é aquele que
compreende o sentido do ser. Somos nós mesmos, aqueles que perguntamos. Mas,
a diferença de Husserl, Heidegger não compreende o ser que somos no sentido de
uma subjetividade transcendental. Ele submete a uma crítica fenomenológica, isto
é, a uma crítica que reivindica o ater-se às coisas mesmas, tal como se mostram, a
própria fenomenologia da consciência de Husserl. Segundo esta, a consciência é ser
imanente, absoluto (no sentido de absoluta datidade), absolutamente dado (no
sentido do ‘nulla re indiget ad existendum’) e ser puro. Heidegger tenta mostrar
como nestas determinações do ser da consciência Husserl se ateve mais à tradição
da filosofia moderna (Descartes, sobretudo) do que às consistências factuais
(Tatbestände). No determinar o ser da consciência Husserl deixaria escapar aquilo
que fora uma das descobertas fundamentais da fenomenologia: a intencionalidade.
Por sua vez, seguindo as indicações da intencionalidade, Heidegger chega à
compreensão do ser do ente que nós somos como caracterizado pela constituição
ontológica fundamental de ser-no-mundo (in-der-Welt-sein). A partir desta
constituição, o Da-sein, cujo modo de ser é a Existenz (existência: ter-que-ser), já
não pode ser interpretado como subjetividade, nem mesmo como subjetividade
transcendental.

Se é verdade que, para Heidegger, a filosofia é ontologia fenomenológica e


universal que parte da hermêutica do ente que nós mesmo somos em sua
facticidade (Faktizität), isto é, da hermenêutica do Da-sein, a qual se concretiza
em uma analítica da existência (Analytik der Existenz), também é verdade que tal
hermenêutica é uma passagem para aquilo de onde brota e para onde se encaminha
toda a investigação filosófica: para o ser. A filosofia não deve pensar simplesmente
o ser a partir do Da-sein, mas o contrário, deve pensar o Da-sein a partir do ser.
Deste modo, a fenomenologia se torna sempre e cada vez mais pensamento do ser
(Seinsdenken), isto é, pensamento que responde e cor-responde ao ser, como
aquilo que há de ser pensado, como o mais digno de ser questionado.

O ser não é nenhuma posição do homem, enquanto sujeito, ainda que


transcendental. O ser é pre-sença (Anwesenheit), é evento (Ereignis), a saber, o
evento do “es gibt”, do “dá-se”. Uma tal doação do ser enquanto evento e presença
é referida com a palavra , des-velamento. A verdade é o  da
revelação do ser.

Com a passagem de Ser e Tempo para Tempo e Ser a fenomenologia não é


abandonada, mas atinge a sua tendência mais própria. Será que hoje esta
tendência, enquanto possibilidade essencial da fenomenologia, já foi levada à sua
plenitude? Parece que não. O pensamento de Heidegger, como todo o pensamento
essencial, é essencialmente um pensamento a caminho, in via. As suas obras são
vestígios de um caminho através da fenomenologia no pensamento do ser. O
caráter finito do caminho não exclui seus desvios e suas aporias. Na filosofia, o
pensamento de um grande pensador não nos dispensa de pensar. Antes, solicita a
pensar, a pensar não somente o seu dito, como também e sobretudo o seu não dito.
Quiçá se todos os pensadores da história não tenham sido solicitados a pensar o
mesmo, cada vez em um kairós diferente. Também hoje somos convidados a
pensar, a saber, a pensar aquilo que há se ser pensado, a questionar aquilo que é
mais digno de ser questionado: o mistério do ser. A fenomenologia não quer ser
outra coisa que a atitude de pensamento disponível à revelação do ser, enquanto
fenômeno por excelência. Neste sentido, mais do que uma corrente de filosofia do
século XX, ela é a tendência mais profunda do filosofar contemporâneo e o bojo de
uma nova possibilidade do pensamento do porvir. Com outras palavras, a
fenomenologia nasce a partir do confronto (Aus-einander-setzung) com o espírito
próprio do século XIX e se constitui em algo mais do que uma simples corrente
filosófica do século XX, podendo ser caracterizada até mesmo como o traço
fundamental da consciência contemporânea, como o modo originário do pensar e
investigar atuais, pois, mais do que um sistema rígido, a fenomenologia é um
conceito de método, mais do que uma escola, ela é uma tendência fundamental do
espírito de nossa época, mais do que uma concreção fatual da filosofia
contemporânea, ela é o bojo de uma nova possibilidade do pensamento do porvir.

O nosso caminho, no qual perseguimos a gênese da fenomenologia nos fez


desembocar na questão do ser. Esta é a forma que a fenomenologia tomou com a
investigação de Ser e Tempo, bem como com aquela que a complementa, ou seja, a
investigação de Tempo e Ser. Não será esta uma tendência que jazia já no bojo da
fenomenologia desde as suas origens, com as Investigações Lógicas de Husserl?
Devemos terminar este trabalho com esta interrogação. Afinal, um trabalho de
filosofia, não pode nunca concluir com sentenças fechadas. Convém antes, pela
própria natureza do pensamento, concluir com interrogações que deixam abertos
novos âmbitos que solicitam um ir adiante na investigação.

Enquanto possibilidade do pensar, a fenomenologia é uma retomada da


questão do ser. Mas o que é visa a reflexão filosófica, começando sempre de novo,
mesmo quando chega ao término de um percurso? Visa cada vez responder e
corresponder ao princípio mesmo que a move. De novo, nos perguntamos, o que é
que move o pensar filosófico? Qual é a coisa, a causa, pela qual se afana o
pensamento? Disto nos dá uma indicação Aristóteles, um homem que, como todos
os grandes pensadores da história, nasceu, pensou e morreu:

“         


      ”

“E assim, pois, o que tanto outrora, como agora, como em qualquer hora,

se procurou e para o qual nunca se encontrou uma saída,

(foi o questionamento da questão)

o que é o ser do ente?”49

CURSO DE FENOMENOLOGIA E HERMENÊUTICA 2016.2

49
Aristotele, Metafisica, Z, 1, 1028b.
Prof. Marcos Aurélio Fernandes

I. O QUE É FENOMENOLOGIA?
"O que é fenomenologia?". Faz parte, essencialmente, da fenomenologia, perguntar
sobre si mesma, sem jamais assegurar uma compreensão de si, que dispense de toda
ulterior pergunta. Mas, o perguntar sempre de novo e de modo novo "o que é
fenomenologia?" não é um patinar no mesmo lugar. A pergunta surge, sempre de novo,
a caminho, no destinar do pensamento. Ora, uma das coisas que Husserl nos ensinou, é
que a fenomenologia é um método de investigação filosófica, que pergunta pela
essência das coisas, isto é, pelas suas possibilidades, e não pelas suas factualidades.
Tomemos, pois, a "coisa" chamada "fenomenologia"! A pergunta "o que é
fenomenologia?" pergunta pela essência - e não pelo fato, pela ideia e possibilidade, e
não pela realidade.

Como fato e realidade, a fenomenologia é um movimento filosófico, científico e cultural,


que irrompe a partir das Investigações Lógicas de Husserl. A partir destas investigações
formou-se um conceito de método e este conceito de método - e seu "espírito" -
possibilitou um modo diverso de colocar questões do pensamento (filosofia) e de
pesquisar problemas do conhecimento (ciência). Deste modo diverso ou do seu
"espírito" foi surgindo pensadores, investigadores, pesquisadores, e, em torno destes,
círculos de pensadores, investigadores, pesquisadores. O círculo destes círculos, em
perene circulação, por meio do diálogo e da discussão, é o que se chama de "movimento
fenomenológico". O "espírito" (sopro, alento, força de vida, vitalidade) deste método,
que inspirou estes círculos, animou este movimento, cunhou modos de pensar,
conhecer e agir, constituindo, assim, de certo modo, uma "mundividência". A
"mundividência", porém, vê a realidade, mas é cega para si mesma e suas
pressuposições. A mundividência tende, assim, a solidificar e a estiolar o movimento, a
esquecer o rigor do método, e, assim, a realidade sufoca a possibilidade, o fato deforma
e encobre a essência, a ideia da fenomenologia. Por isso, para que a fenomenologia se
mantenha fenomenológica, é preciso sempre de novo pensar a fundo sua essência, sua
ideia, sua possibilidade, tentando atravessa-la e ir para além e para fora dela (enquanto
realidade). Por isso, um fenomenólogo não deve se preocupar se a fenomenologia,
como realidade, fato, desaparece da história e se ela fica sendo apenas um capítulo num
livro de história da filosofia ou um verbete num dicionário filosófico ou não. Não deve
se preocupar se o nome fenomenologia desaparece. O importante é que a coisa que o
nome evoca, isto é, a ideia, a possibilidade, continue viva e vivificante.

Mas, em que consiste esta essência, ideia, possibilidade? Fenomenologia é,


essencialmente, conceito de método. Método, aqui, não é um procedimento técnico,
seja da filosofia, seja da ciência. Método é caminho: modo de caminhar na investigação
das questões do pensamento (filosofia), de caminhar na pesquisa dos problemas do
conhecimento (ciência). Mas, o caminho e a coisa para a qual o caminho se encaminha,
como busca, não podem ser duas coisas. Precisam ser um. Esta unidade de método e
coisa é o fenomenológico de uma investigação filosófica, de uma pesquisa científica. Isto
quer dizer: que a coisa buscada se dê, ela mesma e a partir de si mesma, àquele que a
busca, investigando questões, pesquisando problemas. Que o discurso sobre a coisa
deixa e faça ver ela mesma, desde si mesma, em seu revelar-se direto e imediato. Que
o caminhar do pensamento ou do conhecimento abra o acesso a esta revelação,
manifestação, colhendo e recolhendo-a em seu dar-se e retrair-se, em desvelar e velar,
em seu desencobrimento e encobrimento, em seu vir à presença e em seu ausentar-se.
Este talvez seja o sentido do "princípio dos princípios" - o princípio de intuição e de
evidência - nomeado por Husserl e do slogan "às coisas mesmas" tão repetido por aí.
Hora, tudo isso significa que praticar fenomenologia é uma tarefa árdua, um trabalho
duro. Pois podemos lidar apenas com palavras vazias e não com evidências
preenchedoras; com as desfigurações e os descoramentos das aparições das coisas e
não com as coisas mesmas em sua figura e em seu colorido e brilho originários; com os
entulhos de representações que foram lançados sobre as coisas e não com elas mesmas;
com meras aparências transmitidas em pareceres e opiniões correntes e não com a
essência mesma destas coisas, tal como elas as revelam. Por isso, praticar
fenomenologia é, talvez, lutar pela revelação das coisas mesmas, que, através e para
além de toda aparência e parecer, esta revelação aconteça em seu desvelamento e em
seu velamento, em seu desencobrimento e em seu encobrimento, em sua presença e
ausência. Esta é a luta do pensar. Pensar não é, aqui, representar, julgar, raciocinar,
argumentar, construir doutrinas. Pensar é, aqui, empenhar-se e lutar pela revelação das
coisas mesmas em seu vir a ser, que, sempre de novo, recolhe nele o ser e o nada.
Empenhar-se contra o mero aparecer das coisas (ilusão) e os meros pareceres dos
homens (opiniões). Lutar contra o não-ser (quando as coisas são mas, para nós, são
como se não fossem!) pela revelação do ser e do nada das coisas. Praticar, pois,
fenomenologia, é deixar-ser a fenomenologia das coisas.

Mas, o que é isso: a fenomenologia das coisas? A fenomenologia das coisas é a sua
própria re-velação: o recolhimento (logos) do seu desencobrimento (descoberta,
abertura, desvelamento) e do seu encobrimento (recusa, oclusão, velamento); o
recolhimento do seu ser (presença, vigência) e do seu nada (ausência, retraimento) no
seu vir-a-ser. No entanto, mesmo o mero aparecer só pode acontecer a partir de um
aparecer verdadeiro; mesmo a dissimulação e o engano só podem acontecer a partir de
uma revelação; mesmo o anunciar que não se mostra diretamente, mas mediante outra
coisa, a "manifestação", precisa de algo que se mostra por si mesmo. Isso quer dizer:
sem a fenomenologia das coisas nem mesmo pode haver a não-fenomenologia das
coisas. É o que podemos aprender, lendo o parágrafo 7 de Ser e Tempo.
A FENOMENOLOGIA DO FENÔMENO

Fenômeno – o que é isto? Usualmente, hoje, quando falamos de “fenômeno”


normalmente visamos algo de extraordinário, de “fantástico”. Assim, por exemplo, um
craque de futebol, que joga extraordinariamente, de modo “fantástico”, é chamado de
“fenômeno”. Talvez este uso da palavra “fenômeno” guarde algo de seu sentido
originário. Fenômeno, em grego,  (phainómenon), quer dizer: em-se-
mostrando-a-si-mesmo. Diz, portanto: auto aparecimento, auto mostração, auto
presentação, se dando, acontecendo. Diz, pois, não-latência, patência. O que assim
aparece, se mostra, se auto presenta, de modo não-latente, patente é o aberto. Remete,
com efeito, ao vir à luz, em grego, (phaínesthai). A forma medial deste verbo
grego nos convida a pensar o acontecer, o dar-se, que é próprio do fenômeno, como um
“medium” (em latim). Por sua vez, “medium” não significa, aqui, meio, no sentido de
meio-termo entre dois extremos; antes, quer dizer meio, no sentido de elemento,
ambiência, atmosfera. Fenômeno é, por conseguinte, o elemento, a ambiência, a
atmosfera de toda auto mostração, de toda auto presentação. Consiste, pois, em pre-
sença, isto é, vigência (-ença) prévia (pre-). Fenômeno quer dizer, então, vigência prévia
que permeia toda auto aparição; viger e vigor, cuja pregnância impregna o todo; tom,
cuja tonância entoa o todo. Esse medial foi captado e tematizado, na tradição, como o
actus primus, a ação primordial, a atuação primeva, de ser (verbum substantivum).
Fenômeno é, portanto, o mesmo que ser. Fenômeno quer dizer, pois, o aparecer do ser:
sua revelação originária – o extraordinário que se dá no ordinário (o ente) como um
todo. Fenômeno é, pois, o fantástico que se dá silenciosamente como o mais simples e
comum: o ser vigendo em todo o sendo (o ente no todo) e em todo o seres (modos e
concreções de ser)50. Fenômeno é epifania.

50
O prof. Carneiro Leão escreve: “O fenômeno grita em cada esquina e clama pelas praças afora. Está por
toda a parte, na sarjeta e no ferro velho, na vida e na morte, no monte de lixo e no monturo do estrume.
Dá-se abertamente em plena claridade, seja do meio dia, seja da meia noite” (Leão, Emmanuel Carneiro.
“A fenomenologia de Edmund Husserl e a fenomenologia de Martin Heidegger”. In: Revista da Abordagem
Gestáltica. Vol. XII, 2006, p. 15). Em seu poema “Wie wenn am Feiertage...” (Assim como em dia santo...),
Hölderlin evoca o vigor “onipresente”, isto é, todo-atuante (allgegenwärtig) da “Natureza” (Natur), que
vige e vigora “do alto do éter até o fundo abismo” (vom Aether bis zum Abgrund nieder) (Hölderlin.
Poemas. Tradução de Paulo Quintela: Coimbra, Atlântida, 1959², p. 256-257). No oriente, na china, fala-
se de “Tao” (caminho). Um texto desta tradição, vinculada ao pensamento poético do Tao de Chuang-Tzu,
Para os gregos dos primórdios o fenômeno, isto é, o ser em seu aparecer, em sua
revelação, se deu como (phýsis)51. Para entender o sentido inaugural de
(phýsis) é preciso suspender o sentido usual, “físico”, de “natureza”, que traz
consigo sempre, de algum modo, uma indiferença, no sentido do nivelamento e da
igualação de todos os modos de ser do que está sendo ao “ser simplesmente dado”
(Vorhandenheit), a ocorrência indiferente do que está sendo, a factualidade neutra do
“factum brutum” do ente no seu todo. Mas também é preciso suspender os sentidos
meta-físicos (que permanecem em seu cerne físicos) de natureza, persistentes nas
distinções de “natureza e arte”, “natureza e espírito”, “natureza e história”, “natureza e
sobre-natureza” (o sobre-natural como uma versão do meta-físico). (phýsis) é,
aqui, palavra-guia, que evoca o Princípio - (arché) do ente no todo: a origem, não
no sentido do mero começo, mas sim do viger originário, do vigor imperante, que erige

fala de um diálogo entre dois sábios. “Mestre Tung Kwo perguntou a Chuang: ‘Mostre-me onde pode o
Tao ser encontrado’. Respondeu Chuang Tzu: ‘Não há lugar onde ele não possa ser encontrado’. O
primeiro insistiu: ‘Mostre-me, pelo menos, algum lugar preciso onde o Tao possa ser encontrado’. ‘Está
na formiga’, disse Chuang. ‘Está na vegetação do pântano’. Pode você prosseguir na escala das coisas?
‘Está no pedaço de taco’. ‘E onde mais?’ ‘Está neste excremento’. Com isto, Tung Kwo nada mais podia
dizer...” (Merton, Thomas. A via de Chuang Tzu. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 182-183). Por sua vez, na
tradição sapiencial hebraica evoca-se a Sabedoria. No livro dos Provérbios pode-se ler: “Não é a Sabedoria
que está clamando? Não é o discernimento que levanta a sua voz? No alto das alturas, sobre o caminho,
postada nas encruzilhadas; no limiar das portas, na boca das cidades, na passagem das entradas, ela põe-
se a bradar: ‘É a vós, homens, que eu clamo; a vós, filhos de homem!” (Pr. 8, 1-4). Sem querer igualar
estas diversas tradições, pode-se, no entanto, aqui, evocar a identidade nas e das diferenças, no sentido
da comunhão de ser e realizar-se que possibilita toda tradição e tradução, e, por conseguinte, todo o
diálogo de mundos: “é no adro da Linguagem que, nos muitos modos de pensar, a realidade dá o
espetáculo das realizações” (Leão, Emmanuel Carneiro. Aprendendo a Pensar III. Teresópolis: Daimon,
2017, p. 155).
51
O verbo ser, em sua etimologia, nas palavras gregas e latinas, remota a duas raízes: *es e *bhu. A
primeira raiz, *es, traz a significação de viver, respirar. No sânscrito: ásuṣ (indicativo presente: ésmi, ési,
ésti. A forma verbal ésmi aparece nas línguas indo-europeias. Por exemplo, no grego temos o verbo
(eimì) (eu sou). Cf. (esti): é. Em latim, temos o infinitivo esse (ser), a terceira pessoa do singular
do presente do indicativo: est (é) e a primeira pessoa do singular do presente indicativo: sum (sou). A
segunda raiz, *bhu, traz a significação de tornar-se, devir, surgir, crescer. Em sânscrito: bhávati. No grego,
temos (phýo), surgir, brotar, nascer, crescer; em sentido ativo: produzir, gerar, fazer nascer, crescer,
despontar, procriar, dar à luz; em sentido passivo: ser descendente de, ser filho de. Tem algo a ver com
“crescer e aparecer”. Na flexão do verbo ser em latim as duas raízes atuam de maneira complementar:
assim, temos a terceira pessoa do singular do presente do indicativo, est, e a terceira pessoa do singular
do pretérito perfeito, fuit. O mesmo fenômeno acontece no sânscrito e no alemão. No alemão temos esta
raiz presente, por exemplo, em bin (sou), bist (és), bis (sê). Uma terceira raiz, porém, aparece no âmbito
do verbo germânico “sein” (ser). Trata da raiz *wes. Traz a significação de deter-se (aquietar e parar),
morar, habitar, permanecer. Em Grego temos a palavra (hesita), que significa lareira, lar, morada,
casa, e que dá nome a uma deusa:  (Hestía) – deusa do fogo e do fogão, da lareira ou do lar. No
mundo latino: Vesta. Em alemão temos esta raiz no verbo ser: “gewesen” (particípio passado do verbo
sein, ser); war: eu era. O particípio wesend está em palavras como an-wesend (presente) e ab-wesend
(ausente). O substantivo Wesen diz perdurar, permanecer, viger, atuar.
e rege, sustentando e governando tudo; a proveniência do provir de do aparecer de todo
aparecimento e desaparecimento, conforme o dito de Anaximandro. O fenômeno, o ser
em sua revelação, é o mais arcaico que há. Por isso é, normalmente, esquecido e
permanece vigendo como o imemorial; mas também é o sempre e cada vez
contemporâneo de tudo e de todos; e, além disso, inesgotavelmente, está sempre
porvir. É o puro vir, graças ao qual advém e sobrevém todo o vindouro.
Fenômeno é ser, dando-se como parusia.

No arcaico (anfängliche) do princípio (Anfang) vige algo de primigênio, de


primevo, de primordial, de originário, de inaugural. Sua essência é a primordialidade
(Anfänglichkeit). O princípio tem o seu próprio na imediatez. Tudo está vindo à luz,
surgindo, irrompendo desde esta imediatez. O imediato se dá como o súbito, o
repentino. Fenômeno é o todo simples do ser, que abraça e enlaça tudo o que é, dando-
se sempre e, no entanto, a cada vez de modo único, singular, no frescor da primeira vez.
(phýsis) nomeia a quietude, que põe em movimento todo irromper. O irromper
é o movimento originário: o momento52 que põem em movimento, isto é, que
encaminha53 todo o vir, o provir, o advir, o sobrevir, destinando e deixando alcançar
consumação, concedendo a dádiva da maturação. Concede e inaugura caminhos.
Caminho de todos os caminhos, como o Tao de Lao-Tsé e Chuang Tzu54. É abertura da
clareira do ser: da imensidão aberta que deixa deixar tudo o que está sendo, o campo
livre que liberta, que permite passagem, ao que quer que vem a ser e aparecer, que vem
a auto presentar-se, a auto mostrar-se. (phýsis) diz, pois, o fenômeno em sua
originariedade, a revelação originária do ser, a “principiação” (Anfängnis) em sua
principialidade (Anfänglichkeit)55.

52
“Momentum” vem de “movimentum”.
53
Em alemão, movimentar é bewegen. Traz no seu bojo a significação de caminho: Weg.
54
“Caminhar é pois radicalmente abrir-se ao nascimento do sentido. Esse caminhar não tem fim. Ele
mesmo como a liberdade do manancial do sentido é propriamente princípio e fim. A experiência do
originário, isto é, da fonte nascente do sentido do ser, que Lao Tsé chama de Nada é via, o Tao que
constitui a essência do homem. Homem é o olho d’água do manancial do sentido do ser e como tal ele é
o en-vio que se perde, se abandona à e é usado pela Nascividade do Nada”. Harada, Hermógenes. A via
de Chuang Tzu, s.l., s.d., p. 3 (texto datilografado).
55
“Conhecer a principialidade do que é e está sendo significa nascer com sua juventude, é sintonizar-se
com sua jovialidade com a liberalidade de seu ser, com aquela virtuosidade que cria dinâmica de
realizações. Na história da humanidade e na biografia dos indivíduos fazemos, então, a experiência de um
viço, em que ainda não se cumpriram os passos nem se percorreram as estações da vida inaugural com
nascimento, crescimento e morte, a cada instante, de um desempenho incalculável. A vitalidade da vida
(phýsis) vige, pois, como o Alegre, o Jovial, a jovialidade de ser56. É a
clareira de ser, o livre, isto é, o não alcançado por nenhum uso ou abuso, que liberta,
isto é, que deixa ser a luz, (phós) em sua passagem. Fenômeno é, assim, o medium
da transparência da luz. (phýsis) é o abrir-se e emergir da abertura que deixa luzir
tudo o que está sendo. É o fogo originário de Heráclito: claridade e ardor do ser que, em
seu crepitar, deixa aparecer todo aparecimento e todo desaparecimento. Os mistérios
de Elêusis o exibe na espiga dourada, filho luminoso de Perséfone. Uma conexão
primordial vincula, pois, a experiência de ser como (phýo)e (pháe), isto é,
surgir e brilhar, crescer e aparecer, (phýsis), com(phós), luz, claridade. A
claridade em seu luzir doa a todo aparecer e brilhar, com sua incandescência cada vez
própria, a sua patência. Com isso concede a tudo quanto vem à luz a sua visibilidade,
isto é, a sua perceptibilidade. Fenômeno é a perceptibilidade e a perceptividade do que
está sendo. É no elemento do fenômeno, no fenômeno como elemento, que se tudo se
perfila e se mostra no aspecto e no modo próprio de seu ser:
(eidos),(idéa)57.

Entretanto, em que consiste, neste dar-se do fenômeno, a sua fenomenologia?


O que quer dizer, aqui, “fenomenologia”? Nota-se imediatamente que, aqui, a palavra
fenomenologia escapa ao seu uso corrente. Não significa um certo movimento
filosófico, certo círculo de círculos de pensadores e pesquisadores. Não significa um
ponto de vista ou uma corrente da filosofia. Isso é marginal. É um epifenômeno da
fenomenologia. Permanece inessencial ao fenômeno da fenomenologia. O essencial é,
com efeito, a fenomenologia do fenômeno. Quando se fala de fenomenologia do
fenômeno se está a indicar algo não extrínseco a ele. Está-se a evocar algo de intrínseco
ao fenômeno: algo assim como seu “verbum internum”. Melhor dizendo: seu lógos! Isso

em cada um de nós nos faz sentir o apelo de possibilidades a serem conquistadas e sua atração irresistível
por alcançá-las”. Leão, Emmanuel Carneiro. “O último Heidegger” – anotações de aulas ministradas em
2015 (manuscrito).
56
Cf. o poema de Hölderlin intitulado “Heimkunf/An die Verwandten” (Chega ao lar/aos parentes) e a
elucidação de Heidegger, em que se evoca o Alegre (Freudige), o Jovial (das Heitere) como o Altíssimo
(das Höchste) e como o Sagrado (das Heilige). Cf. Heidegger, M. Erläuterungen zu Hölderlins Dichtung (GA
Band 4). Frankfurt a. M.: Vittorio Klostermann, 1981, p. 18 [cf. Explicações da Poesia de Hölderlin. Trad.:
Claudia Pellegrini Drucker. Brasília: UNB, 2013, p. 27).
57
Cf. Heidegger, M. Erläuterungen zu Hölderlins Dichtung (GA Band 4). Frankfurt a. M.: Vittorio
Klostermann, 1981, p. 56 [cf. Explicações da Poesia de Hölderlin. Trad.: Claudia Pellegrini Drucker. Brasília:
UNB, 2013, p. 69).
quer dizer: o (phaínesthai) do(phainómenon) presenta-se e
apresenta-se como  (lógos). O vir à luz da revelação do ser tem o caráter de 
(lógos).

Lógos tem, aqui, o sentido originário que se dá no pensamento de Heráclito,


como, por exemplo neste fragmento (B50):
Uma
palavra enigmática! Lógos não se refere, aqui, a (légein), no sentido do falar e
dizer humano. O que está em jogo não é o enunciar e o enunciado -
(legómenon) do discurso humano. Muito menos diz algo assim como um
contar e calcular e, respectivamente, o que é contado e calculado. Em jogo está outro
sentido: o de colher e colheita. O que acontece numa colheita? Na experiência mais
arcaica da colheita o que acontece é o recolhimento do todo. Na colheita não só se
recolhem os grãos ou os frutos do trabalho humano. Recolhem-se também as dádivas
do céu e da terra. Recolhem-se, ainda, a generosidade dos imortais, dos deuses. É por
isso que as primícias era a eles oferecidas. Na colheita se dava, pois, a unidade de
trabalho (mérito) e favor (graça), mais precisamente, de céu e terra, de mortais e
imortais. (lógos), como colheita, diz, pois: unidade reunidora de tudo,
concentração (recolhimento) de todas as coisas como o acontecer do (hén
pánta), do “Um: Tudo”. (lógos) significa, pois, neste sentido, o unificante
originário: o ser. O ser é um – é único e unificante58. A multiplicidade do ente (do que
está sendo) nele pousa e repousa reunida. No recolhimento do ser – que é unidade
simples e oniabrangente – se dá o abrigo do ente – que é multiplicidade ordenada,
estruturada. É no leito do ser que flui o provir e o devir de tudo o que está sendo. No
mistério do ser se abrigam, se albergam, repousam o céu e a terra, os mortais e os
imortais. No ser, que vige como lógos, se junta o conjunto do mundo, se articulam as
junturas das coisas, se dá a conjuntura do que está sendo.

O fenômeno, o ser em sua revelação, que rege todo desencobrimento e


encobrimento do ente, vige como lógos. Isso quer dizer, agora: o fenômeno, o lógos,
clama! Mas, quem escuta o seu clamor? Sem ruído, sem alaridos, ele clama, dirige o seu

58
Heidegger, Martin & Fink, Eugen. Heraclito. Barcelona: 1986, p. 29-31.
apelo. Por toda a parte. Em todo o tempo. Ele se se põe, se depõe, se dispõe, se expõe.
E isso é a fenomeno-logia do fenômeno. O ser, o fenômeno originário, se doa. Há ser –
isto quer dizer: ser se dá, se oferece, se disponibiliza. A auto doação do ser, sua auto
mostração, é originária. Sem ela não se dá a auto doação, a auto mostração, a auto
presentação de nada do que é. Sem a fenomenalidade do ser nada do que está sendo
se mostra. No fragmento 1 Heráclito diz: :
“com efeito, tudo vem a ser conforme e de acordo com este Lógos”59. Ser, em sua
fenomenalidade originária, se doa: oferece-se a si mesmo. Ser vige como um. Isto quer
dizer: como único, sem igual; como o simples (sem dobras), o simplicíssimo; como o
mesmo. Esse mesmo aporta e suporta toda diferença. Nele pousa e repousa a
multiplicidade do que está sendo; sua diversidade e variedade; sua ordenação. Por viger
assim, passa despercebido, resta inaparente. Embora vige como o que há de mais
manifesto, resta invisível. Sua mesmidade e simplicidade, fonte de inesgotáveis
diferenças e ordenações, é tomada, então, como uniformidade, como o entediante. Ser
se dá, se mostra, a si mesmo por si mesmo. Mostra-se como a unidade simples que
reúne o todo do ente na sua diferenciação e ordenação. Vige como lógos, isto é, como
(Um: Tudo). A fenomenologia do fenômeno é sua postura inaugural. Sem
esta não acontece a posição do ente. Nada está posto. Não se constata nenhum positum.
Por conseguinte, nenhum saber positivo é possível.

(phainómenon) vige, pois, como (phýsis), que vige como


(lógos): o (Um: Tudo). O ser, por sua vez, deixa ser a vigência de todo
o vigente. Na parusia do ser o vigente (o ente) chega a ser, recebe vigência. O ser deixa
viger o ente. Viger quer dizer: vigorar e, vigorando, durar, perdurar, a saber, no aberto,
como o desencoberto. A experiência grega originária da verdade se diz
(alétheia): desencobrimento. A exposição do (lógos), do um-tudo, é
(alétheia): desencobrimento. Não se dá, porém, des-encobrimento sem
encobrimento. Não acontece doação do ser sem retraimento:
(surgimento ama esconder-se) (fragmento B 123). A
revelação do ser é desvelamento e velamento. Ser se desvela em se (re-)velando. Vige,

59
Pensadores originários, p. 59.
pois, como mistério. A (alétheia) repousa e vige na (léthe): no
encobrimento, no velamento, do mistério.

A dinâmica de doação e retraimento do mistério do ser é a fenomenologia do


fenômeno. Ao retraimento do mistério do ser chamamos de Nada. O nome “Nada”,
aqui, evoca o silêncio do sentido do ser em retraimento, nos cursos das realizações e
nos discursos do real60. Trata-se, portanto, do nada do mistério, fontal, originário,
fecundo, de que provêm as inesgotáveis possibilidades de ser do ente (de realizações do
real). O que está em jogo, aqui, é o silêncio de fundo do mistério de ser que envolve,
abraça e impregna todo o ente. O “medium silentium” da noite clara do mistério, que
contém em si todas as coisas61.

A fenomenalidade do ser, ou seja, sua fenomenologia, se dá, por sua vez, na


fenomenalidade de todo e qualquer ente. “Todo e qualquer fenômeno já é em si mesmo
fenomenologia. No aparecimento e desaparecimento de sua vigência passa a recolher o
ser e a acolher o nada de suas diferenças e referências a si mesmo e a todos os demais
fenômenos”62. Fenômeno e fenomenologia, portanto, dizem o mesmo: aquele mesmo
que aporta e suporta toda diferenciação e diferença. Fenomenologia é tautologia. A
fenomenologia do fenômeno vigora em todo aparecimento e desaparecimento de sua
vigência. Ela vigora como o recolhimento do ser e o acolhimento do nada acontecendo
nas realizações do real. É aquele mesmo que vigora em todas as diferenças e referências
do fenômeno, seja consigo mesmo, seja com os outros fenômenos. Assim como na
realização de toda e qualquer composição musical, a musicalidade vigorante na música,
em passando, recolhe o ser do som e acolhe o nada do silêncio, dando-se e retraindo-se
em toda a sonância e ressonância. As notas musicais em composição não são a
musicalidade. E, no entanto, a musicalidade se doa e se retrai em deixando ser as notas
em composição. A partir da musicalidade vigorante e em passagem cada nota recebe
um envio, ajeitando-se deste ou daquele modo. Neste ajeitar-se cada uma articula um
em referências e diferenças, num relacionamento peculiar consigo mesma e com as

60
“Uma estória Zen nos conta que somente mortos escutam silêncio sem fala, ouvem pausa sem som e
calma sem ruído, seguindo o calar de toda balada”. Leão, Emmanuel Carneiro. Aprendendo a Pensar III,
p. 10.
61
Mestre Eckhart Sermão 101.
62
P. 11.
demais notas. A musicalidade deixa ser cada nota e todas elas, em conjunto, como que
na dinâmica de e-vento, de um destinar-se, de um historiar-se, e de seu tornar-se
manifesto. A musicalidade diferencia-se das notas. Ao mesmo tempo, com elas se
identifica referindo-se a elas, nelas e por elas63. A musicalidade permanece, em
passando. Passa, recolhendo, no movimento, a sonoridade dos sons e acolhendo ao
mesmo tempo o nada do silêncio, sua quietude, que nela soa e ressoa originariamente.
Assim é com a fenomenologia de todo o fenômeno.

A fenomenologia do fenômeno enquanto ser e a fenomenologia do fenômeno


enquanto pensar em seu mútuo pertencimento (homologia).

A segunda pergunta, geminada com a primeira, a respeito da fenomenologia do


fenômeno, indaga: como o pensamento que medita pode receber esta doação da
fenomenologia do fenômeno e segui-la em sua busca questionadora e investigativa?

Em questão está, agora, o pensamento. A pergunta posta fala de “pensamento


que medita”. Entretanto, esta colocação já pressupõe algo, a saber: o que significa
pensar – e como se dá, se realiza, a meditação do pensamento. Pensemos, pois, estes
pressupostos.

O que significa pensar? Esta pergunta, por sua vez, é dupla: o que evoca o
pensar? O que provoca a pensar? São questões de peso. Na verdade, elas não dizem
respeito apenas ao pensar, mas, concernem, antes de tudo, ao que é mais digno de ser
questionado e pensado: o mistério de ser mesmo. O que é pensar? Ao perguntarmos
assim já pressupomos: o pensar é... O pensar pertence ao ser. Como é, então, que o
pensar, por e para ser o que ele é, precisa pertencer ao ser? Como se dá o fenômeno do
pensar e sua fenomenologia em relação com o fenômeno do ser e sua fenomenologia?
Com estas perguntas somos convidados a conjugar juntos os verbos ser e pensar... A
questão que concerne à unidade de ser e pensar, na história da filosofia, é uma das mais
difíceis64.

63
Hh
64
Introdução à metafísica...
Logo percebemos que, neste contexto, o pensar se investe de densidade e de
gravidade. Em questão está não o mero representar algo, nem o compor e dividir
representações. Em jogo está não o mero enunciar algo e o seu simples enunciado. Não
está em causa o julgar, o inferir, o raciocinar. Não se trata também do mero cogitar, nem
do tencionar, lembrar, imaginar, supor alguma coisa – uma coisa qualquer. O pensar não
é aqui, propriamente, um fenômeno psíquico, uma ocorrência anímica, um processo
mental. Não é nem mesmo uma função tética da consciência transcendental. Tudo isso
parece derivado, fundado, no pensar em sentido originário. Acaba sendo epifenômeno
do pensar. Mas, então, como se dá, originariamente, o fenômeno do pensar e sua
fenomenologia? O que seria o sentido fundante, essencial, radical, do pensar? Não é o
pensar uma faculdade que o homem tem? Não é o pensar uma operação desta
faculdade? Não é o que nesta operação é posto em obra – o seu resultado? Aqui vale
talvez recordar o adágio medieval latino: agere sequitur esse (o agir segue o ser – dele
decorre). Não é o agir de algo que decide o que ele é. Mas é, antes, o seu ser que decide
o seu agir. Só se pode pôr em obra e em ação as possibilidades de ser que se tem. O
pensar não é propriamente algo que o homem tem; não é, meramente um empenho e
um desempenho do homem. Está certo. É também isso. Mas de modo derivado. O
pensar é constitutivo essencial do homem. O vigor do pensar neste sentido, é que tem
o homem e não o contrário. O pensar constitui o fundo do humano no homem. Neste
sentido funda, rege, permeia, impregna, perpassa, todo o comportamento humano,
todo o seu relacionamento com o ente no todo, sim, com o ser – o mistério de ser. Enfim,
com a fenomenologia do fenômeno.

Assim, o fenômeno e a fenomenologia do pensar consiste em ser um


relacionamento de ser com a fenomenologia do fenômeno. O pensar se dá no medium
do ser – da fenomenologia do fenômeno. O ser é o seu elemento. Uma cantiga popular
dizia: como pode o peixe vivo viver fora da lagoa?... Assim também se poderia
perguntar: como pode o pensar viver – sim, pois pensamento é vivo – fora do ser (da
vida)? Como pode o pensar ser fora do ser? Impossível. O pensar só pode ser o que ele
é como um relacionamento de ser com o ser, isto é, com o mistério de ser, a partir donde
o pensar pode ser também um relacionamento de ser com o ente, com o que está no
aberto, na aberta do ser, com o que está descoberto. O pensar só pode ser o pensar do
ser. E isso, em duplo sentido: quer como o pensar que pensa o ser; quer, em sentido
mais decisivo e fundamental, como o pensar que o ser deixa ser, e, neste deixar ser,
provoca, convoca, interpela, solicita, requer, a ele entregando-se, dando-se e confiando-
se à sua correspondência, à sua resposta, que é sempre uma responsabilização. Assim,
o pensar provém do ser, é um envio do ser, se encaminha e se move no elemento do
ser, para o ser. O pensar é evento do ser.

Em virtude do pensar, o homem é o Midas do ser. Tudo o que ele toca,


transforma em ser. Tudo com o que ele se relaciona, só consegue se relacionar em
termos de ser (ser real, ser possível, ser necessário; ser casual, ser substancial; dever
ser; ser verdadeiro, ser aparente; vir a ser; não ser; etc.). No pensamento aparece,
enquanto se retrai, o mistério de ser de tudo que ele toca. O retraimento, o velamento
do mistério do ser, o nada, é o que provoca o pensamento a pensar. O acontecer deste
retraimento, seu evento, conduz o homem ao seu próprio, funda a história humana. O
pensamento é a vigência do nada, do mistério de ser, em todo comportamento, em toda
a realização humana. No pensar o saber do mistério é o saber, de experiência feito, do
não saber. No não saber repousa todo o saber do mortal. O reconhecimento consciente
da nesciência no próprio seio da ciência é o que torna um homem o que ele é: um
pensador. O não saber está no princípio e no fim de todo o saber humano. Pensador é
aquele mortal que sabe esse não saber em tudo, por toda a parte, a todo o momento.
O que é mais digno de ser pensado se dá no âmbito fundamental desse não saber. Saber
o não saber – mais: saber o saber do nada no não saber é o que caracteriza o pensar. É
o apanágio da filosofia. Eis o testemunho de Sócrates65.

65
Na Apologia (21b) este não saber se refere propriamente ao que há de mais sublime e decisivo na vida
do homem: o belo e o bom (- oudèn kalón kagathòn eidénai: nada saber
do belo e do bom). Na tradição cristã, isso aparece também, a seu modo. Mestre Eckhart, do mesmo
modo, viu na pobreza do não saber a fonte da riqueza do pensar. Seguia, assim, a lição de Dionísio
Areopagita, o qual ensinava que era dentro das abscônditas trevas silenciosas (caligem), que o homem
chegava ao conhecimento do Deus desconhecido e supradivino. Do “medium silentium” a palavra lhe vem
furtivamente, isto é, como uma revelação que brilha e clareia e, ao mesmo tempo, se esconde. É o advir
da palavra secreta no meio da noite, na hora mais silenciosa. Trata-se de algo anterior ao intelecto.
Falando da “utilidade” dessa “palavra secreta” ele diz: “Toda a verdade que os mestre já ensinaram com
seu próprio intelecto e compreensão ou que devem ensinar sempre mais até o último dia, todos esses
jamais compreenderão o mínimo que seja desse saber e desse fundo. Embora se chame de não-saber e
ignorância, possui interiormente mais do que todo saber e conhecimento fora dele. Pois esse não-saber
cativa-te e te atrai para fora de todas as coisas sabidas e de ti mesmo. Foi o que teve em mente Cristo
quando disse: ‘Quem não renunciar a si mesmo e não deixa pai e mãe e tudo que é exterior, esse não é
digno de mim’ (Mt 10, 37-38). Ele quer dizer: quem não deixar toda exterioridade das criaturas, esse não
A fenomenologia do fenômeno, o mistério de ser, o dar-se do ser e do nada do
ser é a revelação originária que funda, permeia, perpassa, impregna o pensar. A
possibilidade de pensar acontece a partir do desencobrimento do ser -
(alétheia), que, por sua vez, repousa no encobrimento do mistério, na
(léthe). O pensar recebe o seu poder-ser da (synousía), isto é, do ser-
com, da companhia da (alétheia). Pensar é ser-com o ser, melhor, com a
verdade (revelação) do ser. O seu poder-ser se dá, com efeito, a partir do gosto por esta
revelação do ser. Pensar é amar esta revelação. Pensamento é (philía), amor,
acordo, harmonia, com o ser, isto é, com a (phýsis), o surgimento que ama
esconder-se; o qual é (lógos): unidade que tudo reúne e em que tudo repousa,
ou seja, o (hen panta) – um: tudo. Enfim, pensar é amor ao (sophón)
– o(lógos) originário, ou melhor, a(alétheia). Pensar é, enfim,
(philosophía).

Na experiência dos gregos o pensar acontece como légein) e


noein), respectivamente, como (lógos) e(nous).

(lógos) é, agora, o falar e dizer dos mortais (os humanos). Este falar se
determina essencialmente como algo mais do que a articulação de sons significativos.
Nem a voz articulada como tal – a (phoné); nem o ato signitivo e significativo – o
(semainein) – e sua articulação de significações, alcançam “o âmbito em que
acontece a moldagem originária da Linguagem” no homem66. A compreensão da

pode ser concebido nem gerado nesse divino nascimento” (S 101, p. 198). A iluminação da “docta
Ignorantia” de Nicolau de Cusa também tem a ver com isso. Será por acaso que Francisco de Assis se
declarava “simplex et idiota”, “ignorans et idiota”, “idiota et subditus”? De Paulo - apóstolo da “loucura
da cruz” – ao “Idiota” de Dostojewski este tema repercute na tradição cristã (Rombach, p. 147). No
pensamento do Tao, a seu modo, a nesciência como saber do nada se torna clara. Na recriação poética
de Carneiro Leão uma antiga história de Chuang Tzu ressoa assim: “No tempo de mando, desmando e
comando da China Imperial, um Imperador Amarelo não possuía a pérola cor da noite. Mandou, então, a
ciência pesquisar. Mas debalde a ciência não encontrou a pérola cor da noite. O Imperador mandou a
técnica inventar. Mas a técnica também não encontrou a pérola cor da noite. O Imperador mandou a
análise calcular. Mas em vão, a análise não encontrou a pérola cor da noite. O Imperador mandou a
filosofia investigar. Mas, sem sucesso, também a filosofia não encontrou a pérola cor da noite. O
Imperador mandou a arte criar. Mas outro fracasso, a arte não achou a pérola cor da noite. O Imperador
achou tudo muito estranho e ficou ainda mais abismado quando, com o tempo, descobriu que o nada que
não fora enviado, que não pesquisa, que não inventa, que não calcula, que não investiga, que não cria
nada é a pérola cor da noite. Desde então, o Imperador Amarelo deixou de somente mandar, de somente
desmandar, de somente comandar os chineses, para poder no e com o nada ser também a pérola cor da
noite”.
66
P. 188.
linguagem a partir da língua - (glossa) – fica aquém do vigor originário da
Linguagem – do (lógos) – no homem. A língua vem a ser língua a partir do viger
da Linguagem. Sem a essência (vigência) da Linguagem a língua não é língua. A
Linguagem, em seu ser essencial, originário, está aquém e além, da língua, vale dizer, da
(phoné semantiké) – da voz, do som vocal, da fonação significativa e
designativa. Isto quer dizer: também o fenômeno da “expressão” não desvela o
essencial da Linguagem no homem.

A vigência da Linguagem no homem se dá no discurso, embora o seu vigor


também o sobrepuja. Com efeito, não é a partir do discurso que a Linguagem vem a ser
linguagem e, sim, vice-versa: é a partir da Linguagem que o discurso vem a ser discurso.
Os momentos co-iguais e co-originários do discurso são: a fala, a escuta e o silêncio.
Muitas vezes, a escuta e o silêncio passam despercebidos. A fala se apresenta como
figura e os demais permanecem como fundo. A filosofia, preponderantemente, tem
prestado bastante atenção à fala e pouca à escuta e ao silêncio. Aristóteles, fundador
decisivo da investigação do(lógos) no ocidente, experimentou o sentido do
légein), do falar, na sua função de (deloûn): tornar manifesto aquilo de
que se fala, ou seja, aquilo que, na fala, está em causa, em questão. A fala, enquanto
(lógos)-(deloûn), torna patente isto que, nela, requer vir à fala. Com
maior acuidade, esta função se cumpre no (lógos apophántikós),
ou seja, como (apóphansis), pro-posição ou e-nunciado (“juízo”). A pro-
posição apresenta, porém, uma estrutura tríplice: é demonstração (Aufzeigung); é
predicação (Prädikation); e é comunicação (Mitteilung) ou declaração (Heraussage). O
momento fundamental é a demonstração67. Trata-se de mostrar, de um deixar ver
(sehen lassen) o que está em causa a partir dele mesmo.

O (lógos apophántikós) é aquele que cumpre a função de


(apophaínesthai)68: trazer à luz, deixar ver - (phaínesthai) o

67
Aqui usa-se esta palavra sem a conotação lógico-matemática. Não podemos entrar, aqui, no caráter de
predicação e de comunicação-declaração. Nem podemos, por brevidade, tratar do caráter de
(phoné metá phantasías) – articulação verbal em que algo é visualizado; nem,
ainda, do caráter de (sýnthesis), de com-posição, do(lógos
aphophantikós) que, pensado a partir da (apóphansis), da demonstração, consiste em deixar
e fazer ver algo como algo, na medida em que se dá em conjunto com outro.
68
Cfr. De interpretatione cap. 1-6; Met. Z. 4 e Eth. Nic. Z.
(phainómenon), o que vem à luz, o que se mostra a si mesmo por si mesmo.
Neste sentido, a fala cumpre sua função originária quando é fenomeno-lógica, isto é,
quando é um (lógos) propriamente dito, quando deixa vir à fala, manifesta,
torna patente, o que se abre e vem à luz. “O(lógos) leva o fenômeno, isto é,
aquilo que se põe à disposição, a aparecer por si mesmo, a brilhar à luz de seu mostrar-
se (cf. Ser e Tempo, § 7B)”69. A fala, no acontecer do discurso humano, é sempre de novo
e de modo novo provocada a deixar ver aquilo de que fala, seja para o próprio falante,
seja para os que o escutam, e que conversam e dialogam, no falar uns com os outros.

O (lógos apophántikós), a fala demonstrativa é provocada,


pois, a cumprir a sua função fenomeno-lógica, isto é, a função de (légein)
enquanto (apophaínesthai). Isso implica, essencialmente, que a fala seja
verdadeira. A verdade, porém, não consiste, aqui, em mera concordância ou adequação
entre o enunciado e a coisa em questão. A verdade da fala consiste, antes, na realização
do (lógos) como (aletheúein). Isso quer dizer: retirar do encobrimento
(Verborgenheit) o fenômeno que está em questão na fala, ou seja, aquilo de que a fala
está falando, e deixá-lo ver (alethés), ou seja, como des-encoberto
(Unverborgenes). Entretanto, a fala pode não cumprir esta função fenomeno-lógica, de
desencobrimento do fenômeno. Com efeito, ela pode, pelo contrário, enganar -
(pseúdesthai) – no sentido de encobrir, ou seja, de propor algo, fazendo-o
passar por aquilo que ele não é. A pro-posição da fala humana nunca pode ser, neste
sentido, o lugar primordial da verdade, visto que ela pode ser sempre desencobridora
ou encobridora.

A fala cumpre a sua função fenomeno-lógica quando ela é des-encobridora do


fenômeno, isto é, deixa ver o que se mostra como se mostra a partir de si mesmo e por
si mesmo. Isto quer dizer: a fenomenologia da fala consiste em deixar ser a
fenomenologia do fenômeno. Fenomeno-lógica é a fala que se dispõe a dizer, isto é, a
mostrar os fenômenos - (légein tà phainómena). Com outras
palavras: fenomeno-lógica é a fala quando ela se dispõe a
(apophaínesthai tà phainómena), isto é, a deixar ver a

69
P. 188.
partir dele mesmo, aquilo que se mostra, tal como ele se mostra a partir dele mesmo.
Este é o sentido formal de uma investigação que queira se denominar de fenomeno-
logia. É este sentido, primeiramente, que se intenciona com a máxima: “às coisas
mesmas!” (zu den Sachen selbst). O fenômeno, porém, pode ser o que está sendo, o
ente; e pode ser aquilo pelo que o que está sendo está sendo, quer dizer, o ser. Contudo,
o fenômeno, em sentido próprio e primordial, que a investigação fenomenológico-
filosófica tem em mira é, justamente, o ser do que está sendo. Com outras palavras, a
investigação fenomenológica visa, essencialmente, à fenomenologia do fenômeno
originário: à revelação e ao mistério do ser. Neste sentido, ela põe em obra uma
“redução” que consiste na re-con-dução de tudo o que está sendo ao seu lugar originária
na clareira, isto é, na aberta, e no mistério do ser. Pensar é, neste sentido, deixar
aparecer o espetáculo da realidade se dando e se retraindo na realização de todo o real.
É reconduzir tudo o que está sendo e não sendo, a vigência de todo o presente e de todo
o ausente, ao seu lugar junto ao desencobrimento – (alétheia) – e ao
encobrimento originário - (léthe) – do mistério de ser.

O fenômeno se manifesta no descobrimento, como desencobrimento e


encobrimento. Pensar é reconduzir todo o fenômeno do ente ao insondável abismo
desvelante das possibilidades do ser, com outras palavras, à vida no seu inesgotável
retraimento. Tudo que está sendo e vindo à luz, a descoberto no aberto da revelação do
ser, brilha e se deixa encontrar como isso ou como aquilo (se significa), à medida que
pertence ao des-encoberto: ao(s) “mundo(s) da vida” (Lebenswelt ou Lebenswelten).
Pensar é realizar o movimento de penetração, sondagem e ausculta atenta do sentido
do ser, que incessantemente emerge do abismo desvelante da vida. Tudo o que está
posto e constituído é tomado nesta “redução” (recondução) ao seu lugar originário no
mistério abissal do ser. Nisso está a liberdade do pensamento que nunca se deixa
enquadrar em nenhuma ordem ôntico-positiva.

E, no entanto, a liberdade do pensamento não é apenas uma liberdade negativa


(liberdade de). Ela é também uma liberdade positiva (liberdade para), a saber, a
liberdade no sentido de vincular-se à verdade do ser, isto é, à revelação de seu mistério
(desencobrimento-encobrimento). Quanto mais o pensamento do homem responde ao
apelo do fenômeno do ser (sua fenomenologia) e quanto mais corresponde ao vigor de
sua doação e retraimento, tanto mais ele se liberta desde, no e para o livre-libertador,
que é o do insondável abismo desvelante do mistério de ser, que franqueia ao que está
sendo suas possibilidades de ser, que envia cada e todo o ente ao seu próprio, deixando-
o ser o que ele é. Se (lógos) nomeia, primeiramente, este abismo, no sentido da
linguagem do mistério e seu apelo ao homem, o falar e dizer do homem, isto é, do
mortal, se cumpre como um (homologein), segundo a sentença de Heráclito
evocada anteriormente (B50). “Quando o (légein) dos mortais concorda com o
(Lógos), dá-se e acontece (homologein)”70. O pro-por de-monstrativo
da fala, então, diz o mesmo que o (Lógos). O de-por de-monstrativo acolhe e
recolhe o que está dis-posto pelo (Lógos). O falar e dizer do discurso, então,
abriga em si o recolhimento originário de tudo o que está sendo na unidade do ser, o
(hén pánta) – Um: Tudo. Com outras palavras:

A fenomenologia busca compreender a dinâmica


de sentido do Todo, como um Todo no seu momento cada
vez singular. Assim, a intenção fundamental da
fenomenologia está focada em captar a dinâmica de
significação que o fenômeno consegue mostrar de si
mesmo nesta pertença cada vez singular ao todo da Vida.
Por isso, o foco de toda a evidência da fenomenologia é,
em última análise, a experiência, a relação significativa do
fenômeno com o homem71.

Pensar é (homologein) – dizer o mesmo que o (Lógos):


(hén pánta) – Um: Tudo. É mostrar como cada coisa se ajeita no todo do
ente, encontrando o seu próprio, sua morada, na unidade do ser (Vida), à medida que

70
P. 195.
71
P. 15. O pensamento de Nicolau de Cusa, neste sentido, traz uma importante contribuição para a
consideração do pertencimento do singular ao universal e do universal ao singular. Não obstante sua
linguagem e seu aparato conceitual serem impregnados pela metafísica enquanto onto-teo-logia, o seu
pensamento oferece elementos para uma investigação fenomenológica fecunda. Evoquemos, aqui,
brevemente esta contribuição. Cada ente do mundo e o mundo mesmo é caracterizado, aqui, como “finita
infinitas” (infinidade finita). O todo está todo em cada parte. O mundo está todo em cada ente particular.
O mundo é lua na lua e sol no sol. A identidade do universo está na diversidade; a sua unidade (uni-
versum) está na pluralidade. A uni-versalidade da uni-totalidade está em todas as coisas e em cada uma
delas: “omnia in omnibus”. Tudo é um. Cada coisa é, de modo contraído, todo o universo. Saber é, para
Nicolau de Cusa, reconduzir a pluralidade das coisas à unidade do mundo. A entidade do mundo, porém,
se caracteriza como uma “quiditas contracta” (quididade, essência contraída). A unidade infinita do ser,
da realidade, porém, se manifesta a modo de “quiditas absoluta” (quididade, essência absoluta), em Deus.
Em Deus se dá a “entitas absoluta” (entidade absoluta). A unidade de todas as coisas tem sua origem,
assim, na infinidade, isto é, no ser sem fim do criador. O ser do ente (a entidade) é, em última instância,
a unidade infinita. Tudo o que está sendo, todas as coisas, está com-plicado em Deus e ex-plicado no
mundo. Deus é a unidade infinita matricial da uni-totalidade do mundo, que é infinidade finita.
segue o envio sábio do (Lógos). Mas, para poder dizer, isto é, mostrar isso, é
preciso auscultar o (Lógos) – não a este ou a aquele pensador. Na verdade, todos
os pensadores dizem o Mesmo. O diálogo do pensamento só é possível na medida em
que todos dizem o Mesmo. Dizer o mesmo, no entanto, não falar o igual. Nas diferenças
das posições filosóficas de cada pensador vige a identidade comum: o Mesmo que pro-
voca pensar, a coisa mesma, que está em causa em todo o empenho de pensamento.
Assim, a mesma fenomenologia do pensamento se concretiza de modo cada vez diverso
no diálogo dos pensadores. Todo o pensamento, à medida que corresponde à
provocação do Mesmo – o unicamente digno de ser pensado em tudo o que se pensa (o
mistério de ser e realizar que a tudo e a todos acomuna), é fenomenológico. Por isso,
uma (philía) oculta vige na pluralidade, na diversidade, nas divergências das
posições de pensamento dos filósofos. É, no fundo, a (philía) da 
(philo-sophía), do amor ao único (sophón), ao (lógos).

Pensar e ser se co-pertencem. Pensar é responder ao mais digno de ser pensado,


ao seu apelo. Melhor: é cor-responder ao chamado do unicamente digno de ser
pensado. É pôr-se na sua ausculta. É ser todo ouvido; é recolher-se todo no acolhimento
de sua doação. O pensamento é acólito, isto é, ouvinte, servidor e seguidor deste apelo
do mistério. Questionar é a piedade do pensamento. Mas todo o seu questionamento
chega tarde. É apenas um modo de deixar-se enviar e aviar na via do envio que lhe
designa o (lógos). Disso sabia Aristóteles, quando, referindo-se à investigação
dos antigos, disse: - a
coisa mesma abriu-lhes a via e os constrangeu a investigar72. Pensar é, assim, seguir a
necessidade do pensamento. A necessidade do pensamento, no entanto, consiste em
obedecer ao livre-libertador: à verdade, isto é, à revelação da coisa mesma que provoca
o pensamento a pensar – o fenômeno do ser dando-se e retraindo-se em tudo que está
sendo e não sendo, na vigência de todo o presente e de todo o ausente.

O pensamento – feito ausculta obediente – está, no seu falar e dizer, a serviço


da Linguagem, isto é, do (lógos). Nisso, o pensar do pensador mostra-se
aparentado, “consanguíneo”, com o poetar do poeta, que está a serviço do

72
Metafísica 984 a 19.
adensamento do mistério do ser na Linguagem. Linguagem não é, aqui, instrumento de
expressão do homem. Linguagem é o sempre mesmo, mas nunca igual apelo do mistério
do ser, que clama em toda a parte e a todo o tempo, solicitando do homem – mortal –
a ausculta necessária e a livre correspondência. Assim, se a fenomenologia do
fenômeno, o dizer originário da Linguagem, do (lógos), é tautologia – dizer o
mesmo em inesgotável diferenciação –, a fenomenologia do pensar é homo-logia:
correspondência ao dizer do (lógos), à sua Saga73.

II. A IRRUPÇÃO DA FENOMENOLOGIA NAS


INVESTIGAÇÕES LÓGICAS DE HUSSERL

Edmund Husserl (1859-1938) é o pensador em cujo trabalho, precisamente, nas suas


Logische Untersuchungen (Investigações Lógicas), publicadas em dois volumes nos anos

73
Homologia é a qualidade do que é homólogo. Costuma-se entender homologia como a repetição das
mesmas palavras, mesmas figuras, etc. Na geometria, chamam-se de homólogos os elementos que se
correspondem ordenadamente em figuras semelhantes (lados, ângulos, diagonais, segmentos, vértices,
etc.). Na biologia, homólogos são os corpos orgânicos que executam as mesmas funções e sofrem as
mesmas metamorfoses. Por extensão, homólogo é o que é correspondente, embora diverso. Semelhança,
assim como igualdade, pressupõe diversidade. Só os diferentes, os diversos, podem ser semelhantes ou
iguais. A igualdade pressupõe diferença. E, no entanto, os iguais, embora diversos, só podem ser iguais se
se realiza uma identidade em algum quesito (por exemplo, mesma figura, mesma grandeza, mesma cor,
etc.). Assim, sem diferença e identidade não há igualdade. O idêntico, porém, é ele mesmo para si mesmo.
Uma homologia de ser e pensar só é possível enquanto ser é outro do pensar e pensar é outro do ser.
Mas, nesta alteridade, repousa uma identidade. Pensar e ser coincidem num comum pertencimento. Se
correspondem mutuamente. Em grego, (homologia) significa pacto, acordo, paz, concordância
entre os que se pertencem. É o próprio da (philía) implícito na palavra (philosophía).
Por sua vez, (homólogos) é adjetivo que significa: o que está/é de acordo, consentâneo;
correspondente. E o verbo (homologéo) quer dizer estar de acordo, concordar, ser unânime;
consentir, conceder, reconhecer, confessar, admitir. No Novo Testamento aparece o verbo
(exomologéo), que significa confessar (professar, isto é, declarar a fé em Cristo, por
exemplo). Em latim, o verbo é “confiteri” – de onde vem “confessio”, confissão. Em Agostinho é uma
palavra fundamental. Confessar significa, aqui, reconhecer, assumir com gratidão e alegria, declarar como
sua própria identidade, como o seu próprio, a gratuita pertença e atinência à fonte da vida. Significa louvar
a Deus pela salvação, isto é, pela recondução à saúde, ao vigor essencial da vida (salus = saúde, salvação).
Por isso, mais do que confessar a própria miséria humana, as “Confissões” confessam (louvam) a
misericórdia divina. “Confessar tem nas Confissões o sentido positivo do evento pascal, de proclamar a
grandeza, de engradecer a libertação dos homens pela verdade de Deus (...). As Confissões não proclamam
a libertação de um homem, nem de alguns, ou de muitos homens. As Confissões proclamam a libertação
de todos os homens e assim anunciam para todo o mundo a verdade libertadora de Deus (...). A Confissão
é uma exigência da verdade”. Leão, Emmanuel Carneiro. Aprendendo a Pensar I: O pensamento na
modernidade e na religião. Teresópolis: Daimon, 2008, p. 169-173.
de 1900 e 1901, faz aparição histórica pela primeira vez a ideia de fenomenologia
enquanto um conceito de método de investigação filosófica. Tal conceito de método
busca dar à filosofia o caráter essencial de uma ciência rigorosa que, por sua vez,
enquanto ontologia universal, possibilite às ciências não-filosóficas, isto é, ônticas,
positivas, uma fundamentação radical e transparente; e que, enquanto modo rigoroso
de indagação e investigação de questões fundamentais, possibilite, na práxis, aos
indivíduos e às comunidades humanas, uma existência segundo a verdade e a
veracidade, o que Husserl chamou de “viver transcendental”.

A obra de Husserl se estende num arco de cerca de cinquenta anos: de 1887, marcado
pela sua tese de habilitação – Sobre o conceito de número – até 1937, ano dos últimos
manuscritos. Os textos que Husserl publicou em vida são poucos, em relação aos muitos
manuscritos que ele deixou como legado para os pósteros. Estes manuscritos foram
resgatados, logo após a morte de Husserl, pelo frade franciscano Leo Van Breda, e
transportados em segredo, contra o controle do governo nacional-socialista da
Alemanha, para a Bélgica, e formam os Arquivos Husserl, que estão em Lovaina. Estes
manuscritos somam cerca de 40.000 folhas estenografadas. Cerca de 10.000 foram
datilografadas por seus assistentes Edith Stein, Ludwig Landgrebe e Eugen Fink. Depois
da guerra, mais precisamente, depois de 1950 os escritos de Husserl começaram a ser
publicados. Suas obras completas se chamam Husserliana. O volume que o abre – que é
o texto fundamental da fenomenologia transcendental – é constituído pelas Meditações
Cartesianas. O sítio dos Arquivos Husserl, hoje, informa a lista dos volumes da
Husserliana, perfazendo um total de 40 volumes.

II.1. EM BUSCA DE UM MÉTODO FILOSÓFICO

Husserl nasceu no ano de 1859 em Prossnitz, na Morávia, região da Europa central que
constitui atualmente a parte oriental da República Checa. Começou seus estudos
superiores em 1876 estudando em Leipzig, astronomia, física, matemática e filosofia. Ali
conheceu Thomas G. Masaryck, futuro presidente da Tchecoslováquia, que atraiu sua
atenção para a filosofia moderna (Descartes, Leibniz e o empirismo) e lhe falou de Franz
Brentano, cujo encontro foi decisivo para a adesão de Husserl à filosofia. Em 1878 se
matriculou em matemática e filosofia na Universidade de Berlim. Estudou matemática
com Karl Weierstrass e filosofia com Friedrich Paulsen. Em 1881 deixou Berlim e foi para
Viena. Ali, no outono de 1882, conseguiu o doutoramento com um trabalho intitulado
“Contribuições para a teoria do cálculo das variações”. No semestre de verão de 1883
Husserl retornou a Berlim, onde atuou como assistente de Weierstrass.

Em Viena Husserl encontrou-se de novo com Masaryck, sob cuja influência Husserl
começou a estudar o Novo Testamento. A experiência religiosa o remeteu de volta da
matemática à filosofia. Por este tempo, Husserl ansiava “por meio de uma ciência
filosófica rigorosa encontrar o caminho para Deus e para uma vida verdadeira”, como
ele mesmo diria mais tarde74. Desde o seu primeiro contato com a filosofia, Husserl tem
a preocupação com a cientificidade da filosofia e com o seu rigor. Mas encontrava
dificuldade de reconhecer algo assim na filosofia de seu tempo. A filosofia da época,
desencantada com a especulação idealista, destronada pelas ciências empíricas,
indecisa e vaga na compreensão de sua própria cientificidade e de sua relação para com
as demais ciências, não podia aparecer aos seus olhos uma ciência digna deste nome. O
contato de Husserl com a filosofia em Berlim não o entusiasmou:

O que ele ouvia de filosofia não ultrapassava aquilo que cada estudante aprendia nas
lições. O que Paulsen dizia era leal e gentil, mas não era apto para entusiasmar Husserl
para a filosofia como uma disciplina científica. Só depois de seu doutorado ele frequentou
as lições de um homem, de quem naquele tempo muito se falava, e a impressão pessoal
diante da paixão do perguntar e do refletir – esta fora a impressão que Brentano fizera a
Husserl – o segurou; e ele permaneceu junto dele dois anos, de 1884 a 1886. Brentano
decidiu então a direção científica que o trabalho de Husserl tomou. A sua oscilação entre
matemática e filosofia foi resolvida. Através da impressão que Brentano como professor
e investigador deixara sobre ele, abriu-se-lhe, dentro da filosofia improdutiva de seu
tempo, a possibilidade de uma filosofia científica”75.

Mas, como Husserl mesmo caracterizava esta impressão que lhe fez Brentano? Mais
tarde, ao escrever suas recordações do filósofo vienense, ele falou do seu modo de
filosofar. Este modo já pode, em certo sentido e em certa medida, caracterizar o espírito
do método que Husserl mais tarde iria chamar de “fenomenológico”:

74
Cfr. “Edmund Husserl und die Phänomenologische Bewegung: Zeugnisse in Text und Bild” – Im Auftrag
des Husserl-Archivs Freiburg im Breisgau. Herausgegeben von Hans Rainer Sepp. Freiburg/München:
Verlag Karl Alber, p. 131.
75
Heidegger, Prolegomena zur Geschichte des Zeitsbegriffs (PGZ), p. 28-29.
Primeiramente, das suas preleções, eu hauri a convicção, que me deu a coragem de
escolher a filosofia como vocação de vida, a saber, a convicção de que também a filosofia
seja um campo de trabalho sério, que também ela poderia e, com isso, também deveria
ser tratada no espírito da mais rigorosa ciência. O puro ater-se à coisa em questão (reine
Sachlichkeit), com o qual ele se dirigia para um confronto corpo a corpo com todos os
problemas, seu modo de tratamento segundo aporias, a ponderação fina, dialética, dos
diferentes argumentos possíveis, a cisão de equivocações, a recondução de todos os
conceitos filosóficos (philosophischen Begriffe) às suas fontes originárias na intuição
(Anschauung) – tudo isso encheu-me de admiração e de segura confiança76.

Uma outra recordação de Brentano da parte de Husserl chama a atenção para o modo
como Brentano entendia a sua vocação filosófica. De Brentano ele diz:

Era seguro de sua própria filosofia. Na verdade, sua autoconfiança era suprema. Sua
íntima certeza de estar na direção certa e de ser o fundador da única filosofia científica
era firme. Dar plena forma a esta filosofia dentro dos limites da estrutura da doutrina
sistemática fundamental que ele considerava segura: isto foi o que ele sentiu ser sua
vocação proveniente de dentro e do alto. Eu gostaria de chamar esta convicção de sua
missão, que era absolutamente livre de dúvida, o fato básico de sua vida. Sem essa, é
impossível compreender a personalidade de Brentano, e consequentemente, passar um
juízo justo a respeito do homem ele mesmo77.

Brentano fora aluno de Trendelenburg, principal responsável pelo renascimento de


Aristóteles na filosofia do século XIX, desde os idos de 1840. Paulsen e Dilthey também
foram alunos de Trendelenburg e até Kierkegaard chegou a ouvi-lo em Berlim e disse
que ele era um dos maiores “filólogos filosóficos” que ele conhecera78. Trendelenburg
chegara a ter Hegel como professor em Berlim. Mas sua filosofia se opunha ao idealismo
hegeliano. Por outro lado, era receptiva para as influências de Schleiermacher, outro
professor berlinense, no estudo da filosofia dos gregos. Como universitário, Brentano
estudou em Berlim com Trendelenburg, cujos seminários obrigavam os estudantes a
fazer um trabalho corpo a corpo com os textos de Aristóteles. A sua tese, defendida em
Tübingen, no ano de 1862, foi sobre Aristóteles e se intitulava “Von den mannigfachen
Bedeutung des Seienden nach Aristoteles” (“Do múltiplo significado do ente segundo
Aristóteles”). Nesta tese ele aborda, como já o fizera antes Trendelenburg, a quem ele
dedicara o seu trabalho, o tema das categorias de Aristóteles, só que, ao invés de partir

76
Cfr. “Edmund Husserl und die Phänomenologische Bewegung: Zeugnisse in Text und Bild” – Im Auftrag
des Husserl-Archivs Freiburg im Breisgau. Herausgegeben von Hans Rainer Sepp. Freiburg/München:
Verlag Karl Alber, p. 132.
77
E. Husserl, “Erinnerungen an Franz Brentano”, in O. Kraus, Franz Brentano, 160.
78
Søren Kierkegaard's Journals and Papers, V A 98, 1844.
da análise linguística da predicação, ele resolve adotar uma perspectiva ontológica. Este
texto seria fundamental para a iniciação do jovem Heidegger na filosofia. Para
Heidegger, o importante nesta história é que “Brentano mesmo, através do fato de ter-
se ocupado com a filosofia grega, conquistou horizontes originários para a impostação
interrogativa filosófica”79.

A tese de habilitação de Brentano foi defendida junto à Universidade de Würzburg em


1866. O teor essencial dela era o seguinte: “Vera methodus philosophiae non alia est nisi
scientiae naturalis” (o verdadeiro método da filosofia não é outro do que o da ciência
natural). Heidegger, no entanto, adverte para o risco de esta tese ser mal compreendida.
Quer dizer: poder-se-ia deduzir do contexto, levando-se em conta a orientação anti-
idealista herdada de Trendelenburg, bem como o seu interesse por Comte e por John St.
Mill, que a tese de Brentano proclama simplesmente a pretenção de transferir o método
científico-natural para a filosofia. Mas, neste caso, a tese de Brentano não apresentaria
nenhuma originalidade, estaria em conformidade com a tendência cientificista e
positivista da filosofia do seu tempo, e não seria aquilo que na verdade ela acabou
sendo: a elaboração de um programa filosófico de investigação. Sendo assim, segundo
a interpretação de Heidegger, esta tese quer dizer:

A filosofia há de proceder no seu campo assim como as ciências naturais, isto é, ela há de
tirar os seus conceitos a partir das suas coisas mesmas (aus ihren Sachen selbst). Esta tese
não é a proclamação de uma tosca transferência da metódica científica para a filosofia,
mas ao contrário, a interrupção da metódica científica e a exigência de que a filosofia deva
proceder – tomando fundamentalmente em consideração o modo de ser próprio das
coisas que lhe competem – como as ciências naturais no seu campo80.

Em 1867 Brentano apresentou um outro trabalho sobre Aristóteles, o qual se intitulava:


“Die Psychologie des Aristoteles, insbesondere seine Lehre vom noûs poietikós” (“A
psicologia de Aristóteles, particularmente sua doutrina do noûs poietikós”). Pode-se ver
como o pensamento de Brentano começa a se articular entre metafísica, na forma de
uma doutrina do ser do ente; lógica, na forma de uma doutrina das categorias; e
psicologia, na forma de uma doutrina sobre a vida psíquica. O ponto de partida de seu
pensamento, porém, não é a psicologia, mas sim a metafísica. Somente a partir de 1871

79
Heidegger, PGZ, p. 23.
80
M. Heidegger, PGZ, 24.
é que o interesse pela psicologia começa a se tornar predominante. Para Brentano,
como também para os filósofos da modernidade em geral, os quais de uma maneira ou
de outra tiveram que filosofar sem poder prescindir de Descartes, a consciência tem um
papel privilegiado como tema da filosofia. Também para Brentano, por conseguinte, a
psicologia, enquanto ciência da consciência, deveria constituir o ponto de partida para
uma reforma da filosofia no seu todo. Tal psicologia ele concebeu e formulou nos termos
de uma “psicologia a partir do ponto de vista empírico” (1874) ou ainda de uma
“psicologia descritiva e analítica” (1894). O trabalho de Brentano na psicologia teve uma
influência significativa nos primórdios da formação do pensamento de Husserl.

Para Brentano, a psicologia estabeleceria os prolegômenos para a constituição de uma


filosofia (metafísica) científica. Também aqui, porém, no campo da psicologia, os títulos
de Brentano podem induzir a erro. O que estava em jogo, para Brentano, com uma
“psicologia do ponto de vista empírico” e “psicologia descritiva e analítica” não era tanto
a formação de uma psicologia experimental, baseada na observação externa de
comportamento e na mensuração de fatos, que se constituiria ao modo de Wundt, mas
sim o acesso imediato à experiência da consciência. Para Brentano, as psicologias até
então careciam de clareza com relação aos seus conceitos fundamentais. Uma
investigação psicológica de caráter positiva não poderia prescindir da tarefa de
fundamentar suas teorias sobre a base de conceitos fundamentais claros e distintos. Do
contrário, a aplicação do método experimental mesmo permaneceria guiada por um
direcionamento cego e, consequentemente, ficaria limitada ou mesmo infecunda nos
seus resultados. Heidegger procura esclarecer o sentido do método proposto por
Brentano para a psicologia: “antes de todas as teorias sobre a conexão do anímico com
o corpóreo, da vida sensitiva com os órgãos dos sentidos, trata-se de, em geral e
primeiramente, acolher uma vez as subsistências e consistências factuais (Tatbestände)
da vida psíquica, assim como eles são imediatamente acessíveis”81.

O empírico, em Brentano, portanto, se diferencia do experimental. A experiência, que


Brentano elegera como “mestra” do método filosófico como tal e da psicologia em
especial, é interrogada de modo diverso de como ela é tomada nas ciências
experimentais. É que o experimental é a experiência submetida ao controle e

81
M. Heidegger, PGZ, 24.
mediatizada pela interpretação matematizante. O empírico é o imediato da experiência
e sua autodatidade. Heidegger assim elucida o sentido deste “empirismo” que
poderíamos bem chamar de “fenomenológico” que serviu de

Brentano tentou criar as bases para a ciência da consciência, das vivências, do psíquico
em sentido lato, porque as subsistências e consistências factuais (Tatbestände) são
acolhidos, no modo como elas são dados neste campo. Ele começou não com teorias
sobre o anímico, sobre a alma mesma, sobre a conexão do anímico com o fisiológico-
biológico, mas esclareceu antes de tudo o que é dado, caso se fale de psíquico, de
vivências. Sua obra-prima ‘Psicologia a partir do ponto de vista empírico’ (1874) é divida
em dois livros, no primeiro o discurso versa acerca da psicologia como ciência, no
segundo, dos fenômenos psíquicos em geral. ‘Empírico’ significa aqui o mesmo que não
dedutivo, no sentido das ciências naturais, mas tanto como atinente à coisa em questão
(sachlich), não construtivo82.

Em Brentano, a filosofia aparecia aos olhos de Husserl como uma atividade científica,
empenhada apaixonadamente no exercício de perguntar e de refletir, considerar,
meditar e contemplar; aparecia como interessada em afrontar os problemas de modo
rigoroso, através do confronto com as coisas mesmas em questão. Edith Stein resume
esta experiência: “O procedimento especulativo de Brentano, a maneira como ensinava,
fizeram-no compreender que a filosofia podia ser alguma coisa de diversa de um
discursos de estetas, que esta, afrontada retamente, podia satisfazer a mais profunda
exigência de rigor científico, que ele como matemático era habituado a pretender”83 .

Por recomendação de Brentano, em 1886, Husserl foi para Halle para se habilitar com
Karl Stumpf. Este tinha estudado com Brentano em Würzburg. Foi um dos maiores
psicólogos de seu tempo e o seu trabalho teve grande incidência sobre a psicologia
experimental84. Ele concebera a filosofia como “mathesis universalis” (saber do todo).
A filosofia deveria, segundo ele, basear-se nos fenômenos. Os fenômenos, por sua vez,
são entendidos por ele como dados da experiência. Numa sua aula inaugural em Berlim,
ele recorre às palavras de Dilthey, para caracterizar o ethos de seu trabalho filosófico:
“Nós repudiamos construção, amamos investigação e reagimos ceticamente contra a

82
M. Heidegger, PGZ, 25.
83
E. Stein, La ricerca della verità, 62.
84
Foi através dele que muitos investigadores psicólogos vislumbraram a possibilidade de renovar a
própria psicologia científico-experimental a partir do método fenomenológico. O modo de Stumpf
aproximar-se das questões da psicologia permitiu o surgimento da Gestalttheorie com o trabalho de
psicólogos como Wolfgang Köhler, Max Wertheimer e Kurt Koffka; através dele também tomaram impulso
o movimento “dinâmicas de grupo”, com Kurt Lewin e, indiretamente, a nova “psicologia fenomenológica”
de Donald Snygg e Arthur W. Combs.
maquinaria de um sistema… Nós estamos contentes se, ao fim de uma longa vida,
tivermos dirigido múltiplas setas de pesquisa científica que tiverem conduzido para
dentro da profundidade das coisas. Nós estamos contentes de morrer a caminho”85.

A Stumpf Husserl dedicaria as suas Investigações Lógicas. Sua tese de habilitação, com
a qual alcançou a livre docência, foi apresentada em 1887 e versava sobre O conceito de
número. Este momento marca o começo da carreira docente de Husserl. A partir daí,
Husserl, passa a se entender como um incansável “trabalhador filosófico”. Desde então
trilhou um caminho ininterrupto de diálogo de pensamento consigo mesmo. “O medium
do seu diálogo é o escrever”86. As 40.000 folhas manuscritas o testemunham. Husserl
não gostava das grandes palavras da filosofia. Numa analogia com o dinheiro, as grandes
palavras seriam como as notas grandes. Seria necessário trocá-las por moedinhas. Mais
tarde, ele recordará este tempo de Halle: “No trabalho filosófico eu resolvi renunciar
aos grandes objetivos e ficar feliz se eu, nos pântanos de infundada falta de clareza,
pudesse alcançar pelo trabalho aqui e ali um pequeno chão firme. Assim eu sobrevivi de
desespero em desespero, de recolhimento em recolhimento”.

Husserl começou na filosofia partindo daquilo que lhe era mais acessível: da
matemática. Em 1891, publicou seu primeiro livro: “Philosophie der Arithmetik”
(Filosofia da Aritmética). Sua preocupação central era a de elucidar conceitos
fundamentais da matemática. Na verdade, a própria busca de esclarecer os
fundamentos da matemática o conduzira a uma reflexão filosófica mais abrangente e
mais originária. Edith Stein anota: “Quando ele chegou a filosofar de modo autônomo,
não se deixou conduzir por uma obra qualquer do passado, mas sim pelos problemas
mesmos”87. E Heidegger diz a respeito do começo do pensador Husserl: “A propósito,
isto foi característico: o trabalho filosófico de Husserl começou então não com qualquer
problema imaginado ou trazido de fora, mas, de acordo com o seu caminho de
desenvolvimento científico, ele começou a filosofar sobre o chão que tinha, isto é, sua
meditação filosófica, no sentido da metódica de Brentano, se dirigiu à matemática”88.

85
Cfr. H. Spiegelberg, The Phenomenological Movement, p. 55.
86
Cfr. “Edmund Husserl und die Phänomenologische Bewegung: Zeugnisse in Text und Bild” – Im Auftrag
des Husserl-Archivs Freiburg im Breisgau. Herausgegeben von Hans Rainer Sepp. Freiburg/München:
Verlag Karl Alber, p. 160.
87
E. Stein, La ricerca della verità, 56.
88
M. Heidegger, PGZ, 29.
O interesse de Husserl não se resume a uma teoria do conhecimento matemático, mas
é, antes, ontológico. O que ele procura elucidar, antes de tudo, é o estatuto ontológico
do objeto da matemática89. Sua pergunta é: o que é o número? Heidegger corrobora
esta observação: “Ele se ocupou antes de tudo, falando de um modo tradicional, com a
lógica da matemática. Mas não só a teoria do pensar matemático e do conhecimento
matemático, mas sim antes de tudo a análise da estrutura dos objetos da matemática –
o número – se tornou tema de suas reflexões”90.

Na “Filosofia da Aritmética”, Husserl procura, num primeiro momento, a gênese do


conceito de número. Para isso, a psicologia – enquanto descrição dos atos da
consciência – serviria como ponto de partida. É útil para descrever o ato de numerar. O
problema é como o ato de numerar se relaciona com o número. O ato de numerar não
produz, propriamente, o número. Ele o encontra. Se os atos têm um estatuto ontológico
real, os números têm um estatuto ontológico ideal. O problema é: como se relacionam
real e ideal, neste caso. As tentativas de responder a este problema fracassaram. As
acusações de ter cedido ao psicologismo na sua filosofia da matemática, que vieram
sobretudo de Frege, o fizeram retroceder. Por psicologismo entende-se a pretenção de
reduzir as ciências formais, como a matemática e a lógica, tomada em sentido amplo
(como lógica formal e como teoria do conhecimento), e, por conseguinte, a filosofia
como um todo (incluindo, por exemplo, a ética) e toda a ciência, a processos psíquicos.
Devido a este fracasso, o segundo volume previsto por Husserl para a “Filosofia da
Aritmética” nunca veio a lume. Ato contínuo, Husserl se penitenciará de ter incorrido no
psicologismo e se tornará um dos maiores críticos desta tendência da filosofia de seu
tempo. Nas Investigações Lógicas ele citará uma sentença de Goethe, aplicando-a a si
mesmo: “Não há nada que se condena mais severamente do que os erros que a gente
mesmo cometeu”. Nos Prolegômenos, primeiro volume das Investigações Lógicas, ele
procurará mostrar que matemática e psicologia são mundos tão estranhos um ao outro
que já a ideia de aproximá-los seria absurda.

Outra perspectiva adotada por Husserl, para tentar colocar a questão sobre o ser do
número, é a lógica. A sua concepção da lógica, no entanto, muda, entre a tese de

89
Cfr. Françoise Dastur. Husserl: des mathématiques à l’histoire. Paris: PUF, 1995, p. 20.
90
M. Heidegger, PGZ, p. 29.
habilitação e a publicação de “Filosofia da Aritmética”. Antes, ele a encarava como uma
disciplina prática: a “tecnologia do julgamento justo”. Depois, passou a encará-la como
uma ciência a priori que diz respeito não ao espírito que julga, mas sim ao reino das
significações ideais. A análise matemática seria uma disciplina teórica particular no
domínio do que Husserl chamou de “teoria das multiplicidades”. Nas Investigações
Lógicas, ele irá definir multiplicidade como “um domínio que é determinado unicamente
pelo fato de que é submetido a uma teoria da forma”. Trata-se de um domínio de
objetos definidos unicamente pelas relações estabelecidas entre eles dentro de um
sistema formal.

Husserl retomará, então, a distinção de Kant entre lógica pura e lógica aplicada, mesmo
manifestando suas reservas e críticas com relação à lógica efetivamente por ele
desenvolvida91. Para que Husserl vislumbrasse possibilidades de preparar os caminhos
em vista desta lógica pura os aportes de Leibniz, Bolzano e Herbart foram importantes.
Mas estas contribuições mesmas têm antecedentes, por exemplo, na doutrina do
“lektón” dos estoicos (o “dicibile”, retomado por Agostinho nas suas considerações
sobre a linguagem). No  (lektón), dirá Husserl, “se apreende explicitamente e de
modo preciso pela primeira vez a ideia de proposição (Satz), enquanto o juízo julgado
no julgar (juízo em sentido noemático), e as leis silogísticas são referidas às suas formas
puras”92. Já Platão e Aristóteles tinham fundado a lógica formal considerando as formas
puras do “lógos apophántikós”. No primeiro volume de “Erstes Philosophie” (Primeira
Filosofia) em que ele intenta realizar uma história das ideias crítica, ele declara, a
respeito da gênese histórica da lógica:

Em autêntico espírito platônico vieram à apreensão ideal-conceitual, ainda que de modo


não completo, as formas puras dos juízos, e as leis racionais puras que nelas se fundam
foram descobertas, nas quais se pronunciam as formais condições de possibilidade da
verdade do juízo. Assim cresceram peças fundamentais de uma lógica pura, e
precisamente de uma lógica formal, como nós podemos dizer também, peças

91
“O fato de que nós nos sentimos mais próximos à concepção de lógica de Kant do que, por exemplo,
daquela de Mill ou de Sigwart, não quer dizer que nós apreciamos todo o seu conteúdo e a configuração
determinada que ele deu à sua ideia de uma lógica pura. Nós concordamos com Kant na tendência
principal, mas não achamos que ele tenha descoberto claramente a essência da disciplina intencionada e
tenha trazido ela mesma à representação segundo o seu conteúdo adequado”. E. Husserl, logische
Untersuchungen (LU), vol. I, 215.
92
Idem, p. 18-19.
fundamentais de uma pura doutrina da ciência, cujas normas justamente em razão de sua
universalidade formal têm de ser de validade universal absoluta93.

O (lektón) é o sentido de um conceito, de um juízo, de uma conclusão. Os juízos


não somente se seguem um após o outro, mas se seguem um a partir do outro. Um
silogismo não é uma mera série de juízos, mas sim uma conexão de juízos em que um
segue a partir do outro segundo um nexo interno e segundo determinadas leis formais,
numa articulação unificadora de sentidos diversos. Um silogismo conjuga um sentido de
juízo com outro sentido de juízo e, assim, produz uma inferência, uma conclusão; e, isso,
segundo determinadas leis puras, necessárias, não casuais, independentes do conteúdo
objetivo dos juízos.

Do vêm certas noções apresentadas por Bolzano e por Herbart, que Husserl
retoma de modo importante nas Investigações Lógicas, em sua argumentação contra o
psicologismo. Do vem, por exemplo, a noção de “verdade em si” de Bolzano,
retomada nas Investigações Lógicas de Husserl, para defender a posição, segundo a qual
o domínio daquilo que é lógico é essencialmente objetivo, há um seu próprio “in se”,
não dependendo, por conseguinte, da subjetividade de quem pensa ou expressa, seja
um homem ou não. Diz Husserl nas Investigações Lógicas: “O que é verdadeiro é, é
absoluto, é ‘em si’ verdadeiro; a verdade é identicamente uma, quer sejam homens ou
não homens, anjos ou deuses, os que, julgando, a apreendem”94. A verdade é, pois, uma
unidade ideal, que é sempre a mesma, ainda que os atos de juízo sejam muitos e
variados, e executados por vários sujeitos, diversos numericamente ou até mesmo
especificamente. A lógica ganha, assim, o caráter de objetividade. A concepção segundo
a qual o conceito é algo de objetivo, de subsistente em si mesmo, isto é, de
independente em relação à disposição ou à atuação psicológica de quem o pensa,
ajudará Husserl a entrever a possibilidade de uma superação do psicologismo. Do
vem também a posição de Herbart, segundo a qual a lógica se ocupa do pensado
(das Gedachte), isto é, do conceito em sua unidade ideal e em sua identidade
permanente consigo mesmo, e não do pensamento, entendido como processo psíquico
cognitivo real, intimamente conexo a mecanismos fisiológico-cerebrais, que é tomado

93
Husserl, E. Erste Philosophie (1923/24) – Erste Teil: kritische Ideengeschichte. Her.: Rudolf Boehm.
Husserliana Band VII. Haag: Martinus Nijhoff, 1956, p. 18.
94
GA 21, p. 45.
em consideração pela psicologia. O conceito não é nada de real, não é nem físico, nem
psíquico. Não são partes dos atos psíquicos. “Conceito”, em sentido lógico, isto é, não
psicológico, se refere ao concebido, ao pensado como tal, abstraindo-se do modo em
que nós o pensamos, isto é, o recebemos, o produzimos e reproduzimos, pelos nossos
atos reais. A lógica pura teria como objeto as relações do pensado (Verhältnisse des
Gedachten), ou seja, os conteúdos de nossas representações. Estas, por sua vez,
possuem o caráter essencial de idealidade, isto é, são relações ideais, onde ideal é
entendido como o contrário de real. O ideal – e não o real – é o que subsiste em si
mesmo de modo permanente e sempre idêntico. Somente o real está sujeito às leis do
devir e da necessidade natural, física ou psíquica. O ideal não está. Assim, para dizer com
Leibniz, a lógica não trata de “verdades de fato” (verités de fait), que tratam de
objetualidade reais, mas sim de “verdades de razão” (verités de raison), que tratam de
objetualidade ideais.

O conteúdo de uma proposição é no sentido de um ser-ideal, no sentido de um valer ou


de uma valência. Husserl, no § 66 dos Prolegômenos à Lógica Pura, diz:

À multiplicidade de atos singulares individuais de conhecimento com o mesmo conteúdo


corresponde a verdade única, precisamente como este conteúdo real idêntico. E, do
mesmo modo, corresponde à multiplicidade de complexões individuais de conhecimento,
nos quais a mesma teoria – agora ou de outra vez, neste ou naquele sujeito – vem ao
conhecimento, precisamente esta teoria como conteúdo idealmente idêntico. Ela não é
então construída de atos, mas de elementos puramente ideais, de verdades, e isto em
formas puramente ideais, nas formas de fundamento e consequência95.

O conhecimento é, então, esta enigmática conexão intencional que, nas palavras de


Heidegger, se dá entre o ser real-psíquico, os atos de juízo, e o ser-ideal das proposições
julgadas – mais ainda: acontecer temporal do real e subsistir supratemporal do ideal (GA
21, p. 50). O problema é como estão relacionados, nesta intencionalidade, o real e o
ideal, o temporal e o supratemporal. Como antes, no campo da filosofia da matemática,
também aqui, na investigação filosófica concernente à lógica, este problema retorna.

A investigação sobre a possibilidade de uma lógica pura levou Husserl a se aproximar de


Leibniz. Este surge aos olhos de Husserl como o pensador que levou a lógica e a
matemática a uma unificação. Tal é, a propósito, a concepção de Husserl:

95
LU, § 66, p. 179 (trad.), grifo de Husserl.
O motivo estimulante para o início da filosofia moderna, a ideia de um aperfeiçoamento
e nova configuração das ciências, conduziu também em Leibniz a esforços ininterruptos
em torno de uma lógica reformada. Mas, mais inteligentemente do que seus
predecessores, ao invés de difamar a lógica escolástica como formalismo vazio, ele
apreendeu-a como um precioso estágio preliminar da verdadeira lógica que, não obstante
sua imperfeição, seria capaz de oferecer uma verdadeira ajuda ao pensamento. Seu
aperfeiçoamento, na direção de uma disciplina de rigor e de forma matemática, de uma
matemática universal, num sentido o mais alto e mais compreensivo, é uma meta à qual
ele dedica sempre novos esforços96.

Mas em que consistiria propriamente esta “matemática universal”? Ela transcenderia as


disciplinas matemáticas restritas e também o estágio até então desenvolvido pela lógica
na história ocidental. Husserl esclarece:

A esfera da mathématique universelle aqui concebida seria portanto muito mais ampla do
que a esfera do cálculo lógico, em cuja construção Leibniz muito se empenhou, sem com
isto levar a cabo completamente. Propriamente, Leibniz teve que compreender sob esta
matemática universal toda a mathesis universalis, no sentido quantitativo usual – que
constitui o conceito leibniziano mais estreito de mathesis universalis – tanto é que ele
repetidamente designou os puros argumentos matemáticos de ‘argumenta in forma’.
Mas a esta deveria pertencer também a ars combinatoria, seu speciosa generalis, seu
doctrina de formis abstracta, que constitui a parte fundamental da mathesis universalis
em um sentido mais amplo, mas não no sentido amplíssimo acima indicado, enquanto
esta mesma é distinta da lógica como campo subordinado. Leibniz define a ars
combinatoria, especialmente interessante para nós, como ‘doctrina de formulis seu
ordinis, similitudinis, relationis etc. expressionibus in universum’. Ela é aqui contraposta
como scientia generalis de qualitate à scientia generalis de quantitate (à matemática
universal em sentido habitual)97.

Na verdade, aquilo que será a meta dos trabalhos de Husserl naqueles anos, anunciado
como uma Lógica pura, consistirá, segundo o seu sentido mais próprio, não somente na
elaboração de uma lógica matemática no sentido de uma disciplina baseada sobre o
cálculo lógico, mas terá a vastidão de uma ciência que retoma fundamentalmente a ideia
da mathesis universalis tal como a entende Leibniz.

Contemporaneamente a todas estas confrontações com outros pensadores, a


investigação de Husserl, pressionada pelas coisas mesmas em questão, iria conduzi-lo,
de fato, a ultrapassar o domínio da lógica da matemática e até mesmo o domínio de
uma filosofia da lógica, fazendo-o entrar em um âmbito de questões ainda mais
originário e universal. Heidegger relata:

96
E. Husserl, LU, vol. I, 220.
97
E. Husserl, LU, vol. I, 221.
Em breve, porém, as questões se alargaram no âmbito dos princípios (ins Prinzipielle) e as
investigações empurraram para os conceitos fundamentais do pensamento em geral
(Fundamentalbegriffen des Denkens überhaupt) e dos objetos em geral; cresceu a tarefa
de uma lógica científica e, unida a esta, a reflexão sobre os meios e caminhos metódicos
da correta sondagem dos objetos da lógica. Isto significava uma apreensão mais radical
daquilo que fora dado com a psicologia descritiva e, ao mesmo tempo, uma fundamental
crítica contra a confusão contemporânea da postura interrogativa da psicologia genética
com a lógica. Este trabalho junto aos objetos fundamentais da lógica ocupou Husserl por
mais de doze anos. Os primeiros resultados deste trabalho formam o conteúdo da obra
que foi publicada em dois volumes nos anos de 1900 e 1901 com o título ‘Logische
Untersuchungen’ (‘Investigações Lógicas’). Com esta obra veio à primeira irrupção a
investigação fenomenológica. Este tornou-se o livro fundamental da fenomenologia98.

98
M. Heidegger, PGZ, 29-30.
II.2. FENOMENOLOGIA COMO PRINCÍPIO DE TRABALHO NA PESQUISA FILOSÓFICA.
A TENDÊNCIA DO MÉTODO FENOMENOLÓGICO.

Os primeiros estudos de Husserl pretendiam realizar um esclarecimento da matemática


e, depois, da lógica. Primeiramente, “surgiu-lhe a pergunta pela conceptualidade
específica, pelo modo específico de demonstração, pelo sentido de conhecimento e
verdade no conhecimento matemático”99. Husserl, então, chegou à conclusão de que
não é a quantidade que constitui o propriamente matemático, mas o formal e a
legalidade do formal. “Então ele se concentrou na reflexão sobre o sentido de verdade,
em especial, pelo sentido de verdade formal”100. Estas reflexões se deram nos anos 90
do século XIX. Elas levaram Husserl à conclusão de que a psicologia não era apta a servir
como a ciência, com a ajuda da qual se pudesse esclarecer a estrutura da matemática e
dos objetos matemáticos. “Tanto a ocupação objetiva (sachlich) com as questões
condutoras concernentes à matemática e à lógica em sentido amplo, quanto, ao mesmo
tempo, a reflexão metódica sobre as possibilidades de uma solução científica destas
questões conduziu, finalmente, à formação de um novo modo de pesquisa, que Husserl
então designou como fenomenologia”.

Fenomenologia não é uma corrente da filosofia, nem uma escola. A fenomenologia é


um conceito de método, um modo de aviar a investigação filosófica. O mais importante,
aqui, é o princípio operativo de trabalho: ir às coisas mesmas. Este princípio não é
nenhuma novidade. Ao contrário, é algo tão antigo quanto a filosofia. Ele diz: que os
objetos da filosofia hão de ser interrogados e trabalhados assim como eles mesmos se
mostram. Heidegger esclarece o que está em questão:

A tendência, portanto, de avançar penetrando nas coisas mesmas, de torna-las livres em


face das opiniões prévias, dos encobrimentos tradicionais e das questões precipitadas,
agravadas por prejulgamentos. Esta é a tendência propriamente dita da fenomenologia:
às coisas mesmas. E fenômeno designa nada mais do que um objeto específico da
pesquisa filosófica, enquanto ele é tomado em punho na tendência de captá-lo nele
mesmo. O título fenômeno significa, portanto, de certo modo, uma tarefa;
negativamente: o asseguramento contra opiniões prévias e prejulgamentos;
positivamente: uma tarefa no sentido de que a análise dos assim chamados fenômenos
deve se esclarecer sobre opiniões prévias ela deve trazer para junto dos objetos da

99
Heidegger, M. Logik: Die Frage nach der Wahrheit (1925/1926). Frankfurt am Main: Vittorio
Klostermann, 1995, p. 31.
100
Idem.
filosofia; pois, pode-se finalmente mostrar, que a análise não vai sem essa opinião prévia
e que, por isso, representa uma parte essencial da pesquisa filosófica101.

O acesso positivo às coisas mesmas pressupõe, pois, todo um trabalho crítico-negativo.


Esse trabalho consiste no enfrentamento dos preconceitos e dos prejulgamentos, que
são, muitas vezes opiniões ou doutrinas construídas sem fundamentos nas evidências
das coisas mesmas. O que causou impacto nas “Investigações Lógicas” foi justamente o
método fenomenológico e seu princípio operativo, nem foram tanto os resultados a que
Husserl chegara.

II.3. A CRÍTICA AO PSICOLOGISMO NAS INVESTIGAÇÕES LÓGICAS

A primeira parte das Investigações Lógicas foi dedicada à crítica do psicologismo. O


psicologismo decorre da tentativa de explicar tudo a partir do psíquico e de fazer da
psicologia uma ciência fundamental, que inclui em si a lógica, a ética e a estética. Husserl
discutiu o problema do psicologismo na lógica e não tanto na ética e na estética.
Principais representantes do psicologismo na lógica: John Stuart Mill e Theodor Lipps.

O psicologismo surgiu num momento em que havia grande entusiasmo com o


surgimento da psicologia como ciência positiva e experimental. A psicologia, porém, traz
uma ambiguidade ou ambivalência desde o seu nascimento como ciência filosófica da
“Psykhé”, em Aristóteles.

Na antiguidade, a filosofia se estruturou como ciência lógica, física e ética. A psicologia


surgiu como parte da física: o estudo da natureza vivente. A “psykhé” era, para
Aristóteles, o princípio (“arkhé”) da vida (Zoé) de todo o vivente (Zoon). Entretanto, o
vivente “Homem” tem um modo de vida todo o próprio, designado pelos gregos com a
palavra “Bíos”. “Bíos” é a vida como existência: historicidade fundada na liberdade. Por
isso, o “Bios”, a vida humana, é tema sobretudo da ética. Na modernidade, a psicologia
se tornou, com Descartes, teoria da consciência (res cogitans, em diferença para com a
res extensa). Aos poucos, foram se estendendo os métodos das ciências naturais para o
campo da consciência e daí nasceu a psicologia como ciência positiva experimental.

101
Idem, p. 32-33.
Contudo, a psicologia não perdeu sua ambiguidade. No fim do século XIX, a psicologia
se bifurca em duas direções: Uma psicologia explicativa-causal, que procurava explicar
os fenômenos psíquicos a partir de conexões causais do anímico com o corpóreo,
entendido fisiologicamente (Psicologia experimental, genética - Wundt); E uma
psicologia compreensiva, que procurava compreender os fenômenos psíquicos como
tais, ou seja, como vivências dadas imediatamente à consciência e compreender as
conexões de vivências como conexões de motivos, fundadas pelo caráter da
intencionalidade (Psicologia empírica, descritiva, intencional, fenomenológica -
Brentano).

O psicologismo encarou a lógica como um ramo ou setor da psicologia. Assim como não
era muito claro em que consistia propriamente a psicologia, também não era muito
claro o que era a lógica. Para alguns a lógica seria uma arte ou técnica: a arte ou técnica
do pensamento correto. Para outros, a lógica seria uma ciência descritiva do
pensamento. Para outros, ainda, a lógica seria uma ciência normativa, que estabelece
as normas do pensar correto. Para J. S. Mill, a lógica seria uma arte ou técnica, cujos
fundamentos científicos se encontram na psicologia. Afinal, é a psicologia que estuda,
entre outras coisas, os atos psíquicos relacionados com o pensar: representar, julgar,
raciocinar, etc. Para o psicologismo a lógica estuda o pensamento no sentido do ato de
pensar e de suas leis. Essas leis não seriam simplesmente leis normativas, mas leis no
sentido de leis naturais. A lógica seria a física do pensamento (Th. Lipps). Por exemplo:
o princípio de não contradição não expressaria uma necessidade objetiva, mas sim uma
necessidade subjetiva, ou melhor, uma incapacidade natural do homem (a partir de sua
estrutura psicofísica) de pensar contraditoriamente. A necessidade dos princípios
lógicos não seria uma necessidade absoluta, mas relativa: relativa à espécie humana e à
sua estrutura psicofísica. Consequências do psicologismo na lógica: relativismo
(específico: antropologismo) e ceticismo. Com isso, o psicologismo levaria a
impossibilitar a condição mesma fundante de toda a ciência e de toda a teoria: a verdade
como validade objetiva e universal.

Segundo Husserl, o psicologismo confunde ciência do pensamento enquanto ato de


pensar e ciência do pensamento enquanto conteúdo (o pensado): verdade de fato e
verdade de razão (Leibniz); ser real e ser ideal (Platão). O psicologismo surgiria de uma
espécie de cegueira para com o ser-ideal. Para o psicologismo todo o ser é real, isto é,
físico ou psíquico. Husserl postula a consistência própria do ser ideal e de sua validade,
quer no campo lógico-matemático (as verdades lógicas e matemáticas em sua validade
ideal); quer no campo ético (os valores como entidades ideais - Max Scheler); quer no
campo estético (o belo como ideia). Em “Filosofia como ciência de rigor” (1910) Husserl
indica o psicologismo como uma variante do naturalismo. O naturalismo tende à
coisificação de tudo. Ele opera um nivelamento dos níveis de ser: o ideal-espiritual é
nivelado ao anímico (psíquico); o anímico ao físico (fisiológico); o físico ao extenso-
matemático.

Husserl realiza uma crítica de princípio do psicologismo, realizada em duas perspectivas:


a) como uma demonstração do contrassenso que está no cerne da posição do
psicologismo; e como um apontamento das falhas fundamentais desta posição em sua
autofundamentação.

O psicologismo, como relativismo cético, é confutado com base na ideia positiva de


“teoria”. A fenomenologia resgata a noção grega de “theoria”.

Uma teoria, no sentido de Husserl, não é um sistema de admissões, proposições postas


de modo condicional, para esclarecimento de uma concatenação de fatos, mas teoria no
sentido da ‘theoria’ grega: a unidade de uma concatenação de fundamentações, fechada
em si, de proposições verdadeiras, a princípio, uma dedução, por exemplo, teoria
matemática. Para cada teoria, isto é, para uma teoria como tal, há condições de
possibilidade de uma justificação racional das mesmas; por exemplo, uma tal condição de
possibilidade é o princípio de identidade, no sentido da universal idêntica validade dos
axiomas da teoria no progresso dos passos dedutivos fundamentados.

O psicologismo é, enquanto uma “teoria cética” (skeptische Theorie), um contrassenso.


Husserl esclarece que por teorias céticas ele entende “todas as teorias cujas teses ou
dizem explicitamente ou implicam analiticamente que as condições lógicas ou noéticas
para a possibilidade de uma teoria em geral são falsas”102. O ceticismo lógico nega as
condições lógicas, isto é, racionais de toda tese ou de qualquer fundação de uma tese
em geral. O ceticismo noético nega as condições noéticas de uma teoria, isto é, aquelas
condições ideais que são radicadas na forma da subjetividade em geral e na relação
desta com o conhecimento. Forma de ceticismo noético é o ceticismo da antiguidade, o
qual apresenta teses deste teor: não existe nenhuma verdade, não existem

102
E. Husserl, LU, vol. I, 112.
conhecimento nem fundação de conhecimento. Destes dois modos de ceticismo há que
se distinguir ainda o ceticismo metafísico, isto é, aquele que nega a existência ou a
cognoscibilidade de “coisas em si”. Este não é, porém, o caso do psicologismo, que deve
ser entendido no sentido de um ceticismo lógico. Note-se que já da definição se pode
ver que o conceito de teoria cética é intrinsecamente absurdo: é uma teoria que nega
as condições de possibilidade de toda e qualquer teoria.

O psicologismo é uma forma de relativismo. Mas o relativismo é uma concreção do


subjetivismo: toda a verdade é relativa, a saber, relativa ao sujeito que conhece, que
concebe, julga, infere. O conceito originário de relativismo é indicado na fórmula de
Protágoras: de todas as coisas é medida o homem. O relativismo pode ser individual ou
específico. É individual se interpretamos a fórmula de Protágoras assim: de toda verdade
é medida o homem individual. Isto é: para cada um é verdadeiro aquilo que lhe parece
verdadeiro; para alguém é verdadeira tal coisa, para outro a coisa oposta, desde que
lhes pareça assim. Obviamente este tipo de relativismo é refutado imediatamente
quando é posto. Não se trata deste relativismo no caso do psicologismo. O relativismo
pode ser ainda expresso assim: de toda verdade é medida o homem como tal, isto é,
não como indivíduo, mas como espécie. É o relativismo específico, que pode ser
chamado também de antropologismo, devido à sua referência limitativa ao homem.
Importantes representantes de uma lógica antropologista são Sigwart e Erdmann.
Segundo tal interpretação, todo juízo, que se enraíza no específico do homem, nas leis
que o constituem é, para nós homens, verdadeiro. Tal relativismo é subjetivismo, no
sentido de que os juízos são afirmados como verdadeiros somente na medida em que
adequam à forma da subjetividade humana universal, ou seja, à consciência humana em
geral.

O psicologismo, queira ou não, assevera Husserl, é relativismo: “toda doutrina que


apreende segundo o modo dos empiristas, como leis empírico-psicológicas, as leis
lógicas puras ou que as reconduz, segundo o modo dos aprioristas, de modo mais ou
menos mítico, a certas ‘formas originárias’ ou ‘modos funcionais’ do intelecto (humano),
à ‘consciência em geral’ enquanto ‘razão genérica’ (humana), à ‘constituição psicofísica’
do homem, ao ‘intellectus ipse’, que precede, como disposição inata universalmente
humana, o pensamento factual e toda experiência, etc – é, eo ipso, relativista, e
precisamente do modo de relativismo específico”103. Husserl observa que tal
relativismo, enquanto subjetivismo e antropologismo, constitui uma tendência
dominante da filosofia moderna e contemporânea104.

Enquanto teoria cética, pois, o psicologismo se baseia na posição de que as condições


de possibilidade de uma teoria em geral são em geral falsas. Enquanto relativismo
específico, que relativiza a validade do conhecimento à espécie homem, o psicologismo
é antropologismo. Para o relativismo específico, verdadeiro é o que, a cada vez,
corresponde à base psíquica da espécie em questão e cujas leis de pensamento há de
valer como verdadeiro.

O apontamento das falhas fundamentais, começa apontando a confusão, que faz o


psicologismo, entre verdade de razão e verdade de fato (Lebniz). Ao fundo desta
confusão, está vigente o esquecimento da diferença entre ser real e ser ideal (Platão).
As leis lógicas não são leis físicas. O acesso a elas não é através da observação de fatos
– indução; é, antes, por meio de “ideação”, ou abstração ideante. Depois, as leis ideais
e as leis empíricas têm evidências diversas. As leis ideais têm evidência apodítica
(absolutamente indubitável); as leis reais têm evidência assertória, que põe em relevo
um provável ser-assim e não diversamente. A evidência apodítica, por sua vez, põe em
relevo um não-poder-ser-diversamente absoluto. As leis lógicas não podem ser
confirmadas nem refutadas por fatos.

O psicologismo aponta a atitude naturalística em face à razão e ao espírito: o sentido


espiritual só é acessível como realidade psíquica. O domínio do naturalismo tem,
segundo Heidegger, a sua origem na cegueira para com o não real: o conteúdo
proposicional enquanto tal – o sentido – o ser ideal. A falha fundamental do
psicologismo reside na ignorância da diferença de uma diferenciação fundamental no
ser do ente. Ignora também a pergunta pela essência da verdade e a pergunta pelo
sentido do ser, com base na qual a fenomenologia será recolocada por Heidegger.

103
E. Husserl, LU, vol. I, 124.
104
Cfr. E. Husserl, LU, vol. I, 116.
II.4. INVESTIGAÇÃO ACERCA DA ESSÊNCIA DO FENÔMENO PSÍQUICO – A
REDESCOBERTA DA INTENCIONALIDADE.

O cerne e o sentido da crítica do psicologismo, segundo Heidegger, não está no primeiro


volume das Investigações Lógicas, mas no segundo. O essencial da crítica do
psicologismo é a crítica da psicologia. Foi na realização desta crítica que surgiu um novo
modo de investigação, que foi chamado por Husserl de “fenomenologia”.

Por que a crítica do psicologismo teve de ser – em seu sentido mais próprio – crítica da
psicologia? Por que o psicologismo seria algo a se rejeitar? O psicologismo haveria de
ser rejeitado, não porque a psicologia queria penetrar ali onde não é o seu lugar, mas
porque ele era a aplicação de uma psicologia, que não dominava, não compreendia a
fundo, o seu tema. “Não porque o psicologismo seria uma violação de algo, mas porque
seria a violação de algo, que não é psicologia, e porque ele enquanto tal é confuso”105.

Havia, naquele tempo, a tendência de se tomar a psicologia por uma física – uma
mecânica – do psíquico. Não havia clareza, na psicologia nascente, da coisa mesma da
sua investigação – o fenômeno psíquico em seu ser. Daí, surgia a necessidade da
pergunta: qual é a essência do psíquico? O que torna o psíquico o que ele é?

A crítica do psicologismo tinha de ser uma crítica da psicologia. Esta crítica não dizia
respeito aos préstimos prestados pela psicologia no campo das pesquisas ôntico-
positivas. Ela dizia respeito ao movimento principal de uma investigação, no sentido de
um esclarecimento fundamental, de uma determinação essencial do seu campo coisal.
Este é o movimento filosófico de uma ciência: quando ele pergunta pelo ser do ente que
ela toma por objeto de pesquisa – e assim, procura rever criticamente (numa
perspectiva ontológica) os seus conceitos fundamentais106. Assim, era necessário para a

105
Heidegger, M. Logik: Die Frage nach der Wahrheit (1925/1926). Frankfurt am Main: Vittorio
Klostermann, 1995, p. 98.
106
Heidegger lembra que Husserl, no seu discurso de entrada na Universidade de Freiburg, para evocar a
tarefa do filósofo, comparou-o com Galileu Galilei. Esta fala, diz Heidegger, foi mal compreendida. O
sentido dela era, segundo ele, mostrar que Galilei só se tornou o fundador da ciência moderna, pelo fato
de que ele, enquanto físico, era filósofo. Experimento com a natureza, já havia antes de Galilei. A
compreensão da determinação do movimento como um traço característico da natureza, também. O
importante em Galilei foi o movimento de interrogação do ser do fenômeno físico.
psicologia colocar a pergunta pelo ser do ente que ela investiga objetivamente – o
fenômeno psíquico. O que é que constitui o psíquico enquanto psíquico?

Uma investigação nesta direção tinha sido posta em movimento por Franz Brentano. A
resposta obtida por ele foi: o que propriamente é no fenômeno psíquico, a sua
determinação fundamental, é a intencionalidade.

Costumou-se denominar de “fenômenos psíquicos” os atos de representar alguma coisa


a partir da percepção ou da fantasia, toda recordação e expectativa, todo ato de pensar
um conceito geral, de nomear, de enunciar, de deduzir, de julgar, todo opinar, duvidar,
estar convicto, mas também os atos de alegrar-se ou entristecer-se, de comprazer-se ou
de repugnar, de temer ou de esperar, de amar ou de odiar, de estimar ou de desprezar,
de querer, de aspirar, de desejar...107. Antes, porém, de querermos classificar tais

107
Brentano usou a expressão “fenômenos Psíquicos” (psychische Phänomene) no contexto de seu esforço
por elucidar o objeto temático da psicologia. Tal esforço fez vir à tona a sua obra intitulada Psychologie
vom empirischen Standpunkt (editada em 2 volumes no ano de 1874 em Viena), cuja tradução usual soa:
“Psicologia do ponto de vista empírico”. Porém, a tradução de Standpunkt por “ponto de vista” não é
exata, pois Stand não significa propriamente “vista”, mas literalmente o posto onde algo ou alguém se
encontra, a sua posição, a sua situação. É que o substantivo Stand vem do verbo stehen, que significa
estar de pé, erguer-se, permanecer de pé, permanecer, ficar. Stand seria portanto a “estância”, isto é, o
lugar, o chão que dá firmeza para que alguém ou algo fique de pé, o fundo a partir do qual algo se ergue
e se afirma. O Standpunkt da psicologia, para Brentano, deveria ser a empiria. Aqui, no entanto, a
expressão “empírico” não deve ser entendida no sentido de “experimental”, como se a psicologia devesse
simplesmente aplicar os métodos das ciências naturais para observar, mensurar e controlar os dados
factuais da vida psíquica humana. Um tal procedimento permaneceria cego, se antes não tivesse
garantido um acesso apropriado àquilo que Brentano chama de “fenômeno psíquico” e que é bastante
diferente, no seu modo de ser, daquilo que nas ciências naturais se chamava de “fenômeno físico”. A
psicologia deve, portanto, antes de tudo, garantir o acesso às “consistências factuais” (Tatbestände) da
vida psíquica, no modo como elas são imediatamente acessíveis, ou seja, a partir delas mesmas e não a
partir de teorias sobre a conexão do anímico com o corpóreo, do psíquico com o fisiológico. A psicologia
seria uma ciência que investiga a vida psíquica e suas datidades (fenômenos), a partir da experiência na
qual estas datidades se manifestam de modo direto. A experiência, e não o experimento, é a mestra da
psicologia. O psicólogo, porém, não se detém meramente numa classificação arbitrária, casual ou
aleatória das datidades psíquicas. Na sua descrição, ele tenta colher cada vez de novo o eidos (), ou
seja, a estrutura essencial, o perfil estrutural, o typos () daquilo que se mostra e se faz ver, do
phainomenon (), da idea (). O psicólogo, na acepção de Brentano, descreve e classifica
os fenômenos psíquicos não a partir de um esquema pré-fixado e imposto de fora. Descrever significa
fazer ver o que se mostra a partir da experiência. Classificar significa ordenar os fenômenos de modo
natural e não de modo forçado, artificioso. De modo natural, significa, aqui, seguindo a natureza da coisa,
aquilo que a coisa é e como ela é. Com outras palavras, a classificação implica o conhecimento prévio da
natureza dos objetos temáticos, do que eles são e como são, a apreensão da forma essencial dos mesmos,
o caráter distintivo, o perfil ou a estrutura essencial dos mesmos. Um tal modo de proceder, que adere à
coisa e se conforma a ela (sachgemäss) é o que Brentano chama de “empírico”. A psicologia pretendida
por Brentano é, portanto, fenomenologia e a fenomenologia é a ciência empírica e objetiva (sachlich) por
excelência. Diante dela todo o empirismo positivista e todo o objetivismo cientificista se mostram como
pálidos reflexos de sua idéia, pois não são suficientemente empíricos, mas somente artificiosamente
experimentais.
fenômenos, ou seja, ordená-los segundo as suas tipologias essenciais, seria necessário
captar a essência mesma daquilo que se chama de “fenômeno psíquico”.

Perguntar pela essência do “fenômeno psíquico em geral e como tal” significa indagar
aquilo que faz com ele seja o que é, ou como diziam os medievais, indagar aquilo que
constitui a sua “quididade”108. Na tentativa de responder a esta pergunta nós somos
obrigados, agora, a encetar a via da descoberta fundamental da fenomenologia, que se
denomina intencionalidade. Esta será, pois, o fio condutor para abrirmos a essência da
nossa auto-experiência da vida.

Para começar, pois, convém citar textualmente Brentano, quem auxiliou Husserl a, nas
suas Investigações Lógicas, chegar a conceber a ideia da fenomenologia. Vamos, pois, à
citação:

Todo fenômeno psíquico é caracterizado por aquilo que os escolásticos medievais


chamavam de in-existência intencional (ou mental) de um objeto, e que nós, se bem que
em modo não de todo privo de ambigüidade, chamamos de referência a um conteúdo,
de orientação para um objeto (que não é entendido como realidade), ou, enfim, de
objetualidade imanente. Todo fenômeno psíquico contém em si algo como objeto,
mesmo se nem todo fenômeno o faz no mesmo modo. Na representação algo é
representado, no juízo algo é aceito ou rejeitado, no amor há um amado, no ódio um
odiado, no desejo um desejado...109.

Tentemos nos ater não propriamente à formulação do pensamento de Brentano, mas


sim àquilo que ele parece estar querendo nos fazer ver110. O nosso primeiro desafio,

108
Termo derivado do latim quidditas que, por sua vez, é a forma abstrata do interrogativo quid. A
quididade responde à pergunta: o que é? Inclui o conjunto dos predicados que significam a constituição
ontológica de uma coisa.
109
F. BRENTANO, Psicologia dal punto di vista empirico, vol. I, Luigi Reverdito Editore, 1989, p. 175.
110
Brentano mesmo parece estar cônscio das ambiguidades da expressão de seu pensamento. Tais
ambiguidades fazem parte da dificuldade de dizer o que se mostra. Há que se procurar as palavras
adequadas. Brentano vai buscar na tradição, especificamente no âmbito do pensamento escolástico
medieval, a linguagem para dizer a sua nova descoberta. Segundo suas indicações, apresentadas em uma
nota de rodapé do texto acima citado, já Aristóteles fez referência a esta peculiaridade psíquica quando,
nos seus livros sobre a alma (Peri Psyché,   – De anima), diz que o objeto da sensibilidade,
enquanto sentido, é contido no senciente, que o órgão sensorial o capta de modo imaterial e que este,
enfim, enquanto objeto representado ou pensado se situa no intelecto pensante. Também Tomás de
Aquino ensina que o pensado está intencionalmente no pensante, assim como o amado no amante e o
desejado no desejador ( o que abre perspectivas para a compreensão teológica do mistério da Trindade).
Segundo a mesma nota é o vislumbre de uma tal idéia que possibilitou, embora assumida de modo
confuso, que Fílon de Alexandria chegasse à sua doutrina do lógos (), que Agostinho formulasse a
doutrina do verbum mentis, e que Anselmo pudesse elaborar o seu famoso “argumento ontológico” da
existência de Deus. Há de se notar, porém, que os pensadores da tradição parecem ter apenas entrevisto
pois, é superar as dificuldades terminológicas da expressão de seu pensamento e nos
deixarmos remeter para a coisa mesma para a qual ele está acenando.

Aqui a linguagem pode dar margem a equívocos fatais que, em vez de desvelar a
intencionalidade, justamente a encobrem. Assim, pode facilmente induzir a erro o dizer
que os objetos percebidos, imaginados, pensados, desejados, etc. “entram na
consciência” ou, vice-versa, que “a consciência, ou o ‘eu’, entra em relação” com aqueles
objetos, ou então que estes “são assumidos na consciência” segundo esta ou aquela
modalidade; ou ainda que os fenômenos psíquicos, ou seja, as vivências intencionais,
“contêm em si alguma coisa como objeto”. Todo este modo de se expressar pode
conduzir a, no mínimo, dois equívocos: em primeiro lugar, que se trate de um
acontecimento real que ocorre entre duas “coisas”, a saber, a consciência, ou o eu, e a
coisa tornada “consciente”; em segundo lugar, que se trate de uma relação entre duas
coisas que podem realmente se encontrar de igual maneira na consciência, o ato e o
objeto intencional, como se um conteúdo psíquico fosse encaixado em outro111.

Tampouco expressões como “objetualidade imanente”, “in-existência intencional ou


mental” e até mesmo “intenção” são privas de ambigüidade e imunes a equívocos112.

a intencionalidade, não retirando dela o princípio de toda uma nova e original investigação da “alma”. O
fato de Brentano recorrer à tradição para falar da intencionalidade pode parecer que constitui uma
negação da originalidade da sua descoberta ou ainda um recurso a dogmas metafisicos. Por outro lado,
o fato de um fenomenólogo recorrer a Aristóteles e aos escolásticos medievais para falar de suas
descobertas não significa necessariamente que ele, usando do argumento de autoridade, recorre a
dogmas metafísicos. Pode significar, ao contrário, que ele vê em autores da tradição outros tantos
fenomenólogos que, a seu modo, conseguiram investiga, seguindo o dar-se das coisas mesmas e, assim,
puderam entrever o mesmo, que agora constitui a coisa ou a causa da fenomenologia. A intencionalidade,
aquém de todo dogma metafísico, é algo que se mostra justamente a quem, num olhar livre de pre-
julgamentos, tem olhos para ver.
111
Cfr. E. HUSSERL, LU II/1, 371.
112
Segundo outra nota colocada por Brentano ao texto acima citado, os medievais, aludindo à a in-
existência intencional, usavam a expressão “ser objetivamente em alguma coisa” ou, sua equivalente, “ser
objetivamente imanente”. Com nossas palavras: a coisa percebida, pensada, imaginada, desejada, etc está
objetualmente no ato da percepção, do pensamento, da imaginação, do desejo, etc. Isto é o que parece
querer dizer a expressão in-existência intencional. A objetualidade in-existe no próprio ato, ou seja, ela
existe de modo intencional no ato mesmo: ela “inexistit menti”, quer dizer, “existit in menti”. É o que
parece indicar Tomás quando diz que “omne cognitum est in cognoscente per modum cognoscentis”, todo
conhecido está no conhecedor ao modo do conhecedor; isso o leva a afirmar que a “veritas principalius
in intellectu quam in re reperiatur”, a verdade se deixa encontrar de modo mais primordial no intelecto
que na coisa (De veritate, quaestio 1, articulus 2). Com outras palavras, o modo de ser daquele que
conhece é primordial e decisivo no conhecimento das coisas. Graças ao modo de ser da mens (intellectus,
anima) todas as coisas se tornam conhecíveis ou inteligíveis. O ens se converte em veritas. A mens ou a
anima não é, portanto, um ente qualquer, mas é o ens que tem o privilégio de ser a estância onde tudo
aquilo que é possa se mostrar como sendo, possa ser no modo do dar-se a conhecer, através quer da
sensibilitas quer da ratio ou da intelligentia. Por conseguinte, a anima é o “ens quod natum est convenire
Dizer que um objeto é intencionado no modo deste ou daquele ato não significa que a
consciência, de maneira voluntária ou mesmo voluntariosa, almeje isto ou aquilo.
Também não quer dizer necessariamente que a consciência esteja voltada, numa
observação atenta, para o objeto, ou seja, que ela esteja a notá-lo, a apreendê-lo de
modo temático113. Tentemos, no entanto, esclarecer, positivamente, aquilo que
constitui o sentido da descoberta de Brentano.

A palavra intenção diz que, nas vivências intencionais, um objeto é intencionado, ou


seja, que há um “tender” para a objetualidade no modo de ser cada vez próprio da
vivência ou do ato114. Isso não quer dizer outra coisa, porém, que: se se dá uma vivência
determinada, eo ipso é dada também a sua objetualidade e o dar-se desta objetualidade
é de per se conforme ao modo de ser da vivência mesma. Dito de outro modo: se se dá
uma objetualidade, esta se dá sempre de imediato como objetualidade peculiar de uma
determinada vivência, ou seja, de um determinado ato115. Não se dá primeiramente um
ato, e só em seguida este ato tende para este ou aquele objeto, ou seja, estabelece uma
referência para com ele. Também não se dá primeiramente uma objetualidade que, de
repente e a partir de fora, é referida a uma vivência, a um ato. O que se dá de modo
primordial, num só golpe, como que a constituir a vivência e a sua objetualidade, é o
referimento intencional, a intenção. Este referimento é o que faz a vivência ser vivência
desta objetualidade e não de uma outra, ou ainda, é o que faz esta objetualidade ser
objetualidade desta vivência e não de uma outra. Assim, todo perceber é percepção de
um percebido, como todo imaginar é imaginação de um imaginado...; e, vice-versa, todo
percebido é o percebido de uma percepção e todo imaginado o é de um ato de imaginar.

cum omni ente”, o ente ao qual é próprio, por natureza, convir com todo ente: graças às suas potências
cognitivas e apetitivas as coisas se dão no modo de ser do verum e do bonum (cfr. De veritate, q. 1, art.
1c). Este poder “con-vir”, poder convergir com todas as coisas, próprio da alma, foi o que fez Aristóteles
afirmar:       a alma é de certo modo todos os entes (   − De anima
 8, 431b 21).
113
Há, entretanto, uma relação intrínseca entre intenção e atenção, a qual não podemos abordar aqui e
agora. Por ora basta dizer que não é a atenção que constitui a essência da intenção, na acepção
fenomenológica deste termo, mas se dá justamente o contrário, ou seja, é a intenção a possibilitar que
este ou aquele ato, a seu modo, se volte com atenção para a sua objetualidade. A respeito disso, cfr. E.
HUSSERL, LU II/1, 405-411.
114
A palavra “intenção” deriva do latim “intentio”: segundo explicitação de Tomás de Aquino, “intentio,
sicut ipsum nomen sonat, significat ‘in aliud tendere’ (intenção, como o próprio nome diz, significa ‘tender
para um outro’) (Summa theologica, I-II, q. 12, aa. I,5; q. 1, a. 2).
115
Cfr. E. HUSSERL, LU II/1, 372-373.
Isto pode parecer um mero jogo linguístico ou pode ainda parecer que estamos dizendo
uma obviedade cuja banalidade não tem tamanho. Mas tentemos ver mais de perto esta
obviedade e talvez vislumbraremos que, aí, se dá algo, que nada tem de banal e que
estamos a fazer outra coisa do que a jogar com palavras.

Cada tipo de ato psíquico possui uma estrutura essencial pré-formada: é, cada vez, um
determinado tipo de referimento intencional. Cada ato apreende o seu objeto de modo
diferenciado, todo próprio, o qual é pré-determinado em sua própria estrutura. Com
outras palavras, em cada tipo de ato está em jogo um tipo de referimento diferente e,
em cada tipo de referimento, o objeto é cunhado, moldado, configurado de modo
diverso. Por exemplo, quando, ao meu olhar, um homem “amável” se transforma num
homem “odiável”, o que se dá não é o fato de que aquele mesmo homem agora aparece
numa outra luz, mas o fato de que aquele mesmo homem se altera inteiramente, ele é
totalmente re-configurado, sua aparição se reestrutura de ponta a cabeça, até nos seus
traços mínimos. A sua fisionomia, o seu olhar, a sua mão, a sua roupa, a sua voz, tudo
que nele, antes, era-me amável, agora se me parece odiável. Um homem digno de
desprezo, de ódio ou de pena é outro em relação a um homem digno de estima ou de
amizade, ainda que este homem seja a mesma pessoa. Ele não somente possui outras
propriedades caracterológicas, mas ele é, por assim dizer, de dentro para fora,
inteiramente re-constituído116.

Nós dizemos que um ato é o mesmo quando a sua essência intencional é a mesma, ainda
que apresentem diferenças descritivas de cunho acidental. É que a essência intencional
não constitui o ato na sua inteireza ou completeza: são possíveis sempre variações
acidentais, isto é, que não tocam a intenção propriamente dita, ou seja, o referimento
intencional com o seu sentido apreensional.

É a identidade da essência intencional que nos possibilita dizer que um mesmo


indivíduo, em tempos diferentes, ou que indivíduos diferentes, seja ao mesmo tempo
ou em tempos diversos, tenham tido a mesma representação, a mesma recordação, a
mesma expectativa, o mesmo desejo, o mesmo temor, etc. Tais atos são idênticos,
embora não sejam iguais. São idênticos porque são perfilados na mesma essência

116
Cfr. H. ROMBACH, Phänomenologie des gegenwärtigen Bewusstseins, Alber, Freiburg
(Breisgau)/München, 1980, p. 39.
intencional, ou seja, possuem o mesmo referimento intencional com um mesmo sentido
apreensional.

Identidade essencial não é o mesmo que identidade individual: cada ato no qual eu, a
cada vez, vivo, é único e singular. Neste sentido da identidade individual do ato, eu
mesmo nunca terei, por exemplo, a mesma percepção de uma mesma coisa. Muito
menos, ainda neste sentido, eu e outra pessoa poderemos ter a mesma percepção ou a
mesma fantasia ou o mesmo desejo, etc. Identidade essencial não é ainda o mesmo que
relação de perfeita igualdade, como se pudesse haver uma duplicata de um ato. Cada
ato é uma vivência absolutamente singular e irrepetível, a partir deste ponto de vista.

Podemos atribuir a uma pluralidade de atos individuais uma identidade essencial


somente quando tais atos apresentam, na sua estrutura, o mesmo referimento
intencional com o mesmo sentido apreensional. Temos uma mesma representação de
uma coisa quando esta coisa é a mesma do ponto de vista de seu sentido apreensional,
ou seja, de sua matéria intencional. Será esta identidade que tornará possível que se
possa enunciar a mesma coisa da mesma coisa. Por sua vez, dois juízos serão idênticos,
no sentido da identidade essencial, se tudo aquilo que vale em referência ao estado de
coisas julgado por um deles, vale também necessariamente em referência ao mesmo
estado de coisas para o outro.

A estrutura essencial a priori, portanto, daquilo que chamamos de vivência, ato ou


cogito, é a intencionalidade ou, dito de outro modo, o ser consciência-de. À medida que
cada tipo de ato é uma modalidade de consciência de alguma coisa, esta “alguma coisa”
é aquilo a que o ato está referido intencionalmente, é a sua objetualidade intencional.
Nunca é demais, porém, lembrar que este referimento intencional não deve ser
entendido como uma relação entre uma ocorrência psicológica – chamada vivência – e
uma outra coisa que existe factualmente – chamada objeto – ou como se se tratasse de
uma conexão psicológica que tivesse lugar na realidade objetiva entre um e outro. O
que nós chamamos de intencionalidade nada tem a ver com fato, ocorrência, mas tem
tudo a ver com essência, ou seja, com aquele tipo de estrutura a priori que constitui uma
necessidade incondicional para que o ato seja ato. Que uma vivência seja consciência-
de, por exemplo, que uma imaginação seja imaginação de uma sereia, que uma
percepção seja percepção desta caneta, que um juízo seja juízo deste ou daquele estado
de coisas, isto pertence necessariamente à essência, ou seja, à estrutura a priori da
vivência e nada tem a ver com conexões psicológicas factuais.

Na verdade, porém, na essência da vivência está determinado não só o ser consciência-


de, mas também o de que ela é consciência e ainda em que sentido isto de que ela é
consciência se dá, ou seja, se deixa apreender117. Assim, uma imaginação só pode ser
imaginação de algo imaginário e aquilo que é imaginário só pode se dar no modo que
lhe é próprio, ou seja, no modo da quase-realidade. Quando algo que eu apenas
imaginava de fato acontece e se me mostra como real, o que se dá não é só uma
transformação na coisa e no seu sentido, mas também na minha vivência e na sua
modalidade de consciência. Assim, antes de conhecer a cidade de Roma eu a imaginava
deste ou daquele modo, contudo, visitando-a ou vindo a morar nela, aquilo que antes
era a cidade imaginária cedeu lugar à cidade real e eu mesmo me transformei na
passagem, ou melhor, no salto de um modo de consciência, a imaginação, para um outro
modo de consciência, a percepção concreta. Pertence à estrutura a priori da percepção,
ou seja, pertence à sua essência, como sua necessidade incondicional, que ela seja
percepção de algo, que se dá, por assim dizer, ao vivo, em carne e osso; assim como
pertence essencialmente à imaginação que, aquilo que ela imagina, se dê de modo
apenas fictício.

Antes, porém, de avançarmos, elucidemos ainda mais o que até agora chamamos de
referimento intencional. Em suma: este referimento não é o mesmo que uma relação
ocasional e ocorrencial entre um sujeito psíquico e uma coisa física; não é algo que se
dá a posteriori como que ligando dois conteúdos psíquicos; ao contrário, este
referimento intencional é um traço essencial, uma estrutura a priori dos atos ou
vivências; por conseguinte, à medida que se dá atualmente uma vivência é dado, eo ipso,
o referimento intencional; este referimento intencional é cada vez um modo de ser
consciência-de; por fim, cada tipo de referimento possui o seu próprio modo de
apreender a sua objetualidade, ou seja, que cada tipo de ato possui o seu próprio “ver”
e, por assim dizer, o seu próprio “olho”. Portanto, o “dirigir-se a” uma objetualidade tem

117
Cfr. E. HUSSERL, Ideen I, 64.
o modo de ser de um “ser consciência-de” e este, por sua vez, pode ser caracterizado
como uma “mirada-para”118.

Ao ato mesmo pertence uma mirada-para, que lhe é imanente e que nunca lhe pode
faltar119. Este mirar-para é, de acordo com a modalidade de consciência que lhe é
própria, cada vez diferente: na percepção é perceptivo, na imaginação é imaginativo, no
prazer é prazeroso, no desejar é desiderativo, no amor é amoroso, no ódio é odioso, e
assim por diante. Isto quer dizer que cada ato tem o seu mirar-para e que este mirar-
para nunca é um ato ulterior, que se acrescenta àquele ato como tal, algo assim como
um voltar-a-atenção-para, ou como um captar de modo objetivante qualquer aquilo que
se anunciou em e através do ato mesmo, mas quer dizer que este mirar-para, este visar,
lhe é imanente. Ora, o voltar-a-atenção para e o captar objetivante daquilo que
usualmente se chama de percepção externa ou interna, ou seja, da percepção imanente
e transcendente, são apenas modos derivados e específicos de atos, portanto, modos
do referimento intencional, do mirar-para, e não a sua essência mesma. Este mirar-para
é já a condição da possibilidade daqueles atos e não o contrário.

A intencionalidade é, pois, a estrutura do fenômeno psíquico. É a estrutura do dirigir-se-


a-alguma-coisa. Assim, por exemplo, pensar não é uma ocorrência psíquica, no sentido
de ser algo que ocorre “dentro” da consciência, e que, posteriormente, através de algum
mecanismo, se relaciona com algo que está “fora” da consciência. O psíquico é, ele
mesmo, este dirigir-se-a-alguma-coisa.

II.5. EXEMPLO DE ANÁLISE INTENCIONAL: O PERCEBER, O PERCEBIDO E A


PERCEPTIVIDADE.

A percepção é uma intentio, um cogito, isto é, uma vivência intencional, um ato, um


comportamento. Nossa tendência é de interpretar, de modo grosseiro, a percepção
como se fosse uma ocorrência psíquica, algum processo, algo que se dá “dentro de

118
Com esta expressão portuguesa, “mirada-para”, traduzimos a alemã “Blick-auf”. Com efeito, o verbo
blicken significa mirar, olhar. Aqui nós tomamos a palavra “mirar” em toda a riqueza de significados nos
quais o dirigir-se-a adquire o sentido de olhar: cravar a vista em, fitar os olhos em; fitar, encarar; voltar os
olhos para fitar; dar uma olhadela, espreitar; avistar, enxergar; olhar, visando; pôr o fito em; aspirar a,
pretender; ter em vista, visar.
119
Cfr. E. HUSSERL, Ideen I,. 65.
mim”, ao qual corresponde, entretanto, algo “fora de mim”, como uma coisa real física.
Segundo esta interpretação a percepção seria uma relação, especificamente, uma
coordenação entre a realidade da consciência (o sujeito) e a realidade da coisa externa
à consciência (o objeto). A intencionalidade seria uma coordenação entre um fenômeno
psíquico (imanente) e um objeto físico (transcendente). Daí surge o problema
epistemológico, a saber, a pergunta sobre como é que o psíquico, saindo de si, alcança
o âmbito físico, como é que, a um processo psíquico corresponde um objeto real. Trata-
se, porém, de um pseudo-problema, que se dissolve tão logo se evidencia que seus
pressupostos já são o resultado de uma compreensão equivocada do fenômeno da
percepção (relação entre dentro e fora, psíquico e físico, imanente e transcendente),
compreensão que parte do dogma da relação sujeito-objeto.

Todavia, não é necessário que a percepção seja uma relação entre a consciência e algo
físico, “externo” à consciência. É o caso, por exemplo, de uma alucinação. Neste caso,
ao processo psíquico não corresponde nenhum objeto real, dá-se uma percepção sem
que surja uma relação com alguma coisa fora da percepção mesma. O mesmo caso é o
de uma percepção falaz. A percepção, qualquer que seja, mesmo uma percepção
presumida, falaz, ilusória, é sempre intencional. Não é necessário que o objeto
intencional seja real, para que se dê uma percepção como tal e para que esta seja
intencional. Já a percepção presumida é um ato intencional: um dirigir-se a alguma
coisa, no caso, um dirigir-se a um percebido presumido. Não é assim que uma percepção
seja intencional só graças ao fato de que um elemento físico entre em relação com o
psíquico e não seja mais intencional se este real não existisse, mas é a percepção em si
mesma, autêntica ou falaz, “normal” ou “patológica”, a ser intencional. Com outras
palavras, intencionalidade não é uma propriedade que se acrescentaria à percepção em
certos casos, mas a percepção é por natureza, a priori, intencional, prescindindo do fato
de o percebido ser realiter simplesmente dado ou não. E justamente porque a
percepção como tal é um dirigir-se a alguma coisa, porque a intencionalidade constitui
a estrutura do comportamento mesmo, é que pode se dar algo como a percepção falaz
e a alucinação.

Enquanto vivência, a percepção é sempre intencional, a intencionalidade é uma


estrutura a priori, essencial, necessária, uma condição sine qua non da percepção como
tal120. Dito de outro modo, com o termo intencionalidade não pensamos uma relação
intermitente e objetiva, que entra em forma de acréscimo entre uma coisa física e um
processo psíquico, mas a estrutura de um comportamento como comportamento-para-
com, como dirigir-se-a. Assim, a intencionalidade não é uma “propriedade” desta ou
daquela percepção, da percepção disto ou daquilo, mas da percepção mesma, do
perceber como tal121.

Acontece, porém, que, ao afirmarmos que o dirigir-se-a-alguma-coisa constitui o traço


característico do ato ou vivência intencional, não estamos dizendo tudo; estamos
apenas abrindo uma direção de investigação. Através desta indicação, apenas
delineamos um primeiro momento da estrutura intencional e isto numa formalidade
vazia, ainda distante de mostrar toda a sua pregnância. Para tentar deixar desabrochar
a estrutura intencional na sua pregnância tentemos seguir o “dirigir-se-a” próprio do
caso exemplar da percepção natural de uma coisa. Só que agora, em vez de ficarmos
olhando para o dirigir-se-a, vamos considerar fenomenologicamente o “a quê” deste
dirigir-se, aquilo que, de maneira incoativa, ainda indeterminada e sujeita a equívocos,
chamamos de objeto intencional.

No perceber, algo é percebido; no representar, algo é representado; no imaginar, algo


é imaginado; no juízo, algo é julgado; no recordar, algo é recordado; no desejo, algo é
desejado; no amor, algo é amado; no ódio, algo é odiado. O “algo”, porém, é perfilado,
cada vez, num determinado modo, cunhado num determinado tipo, constituído numa
determinada estrutura. O “algo percebido” é cunhado numa estrutura distinta do “algo
apenas representado”; que é configurado de modo diverso do “algo imaginado”; o qual,
por sua vez, é perfilado num tipo diferente daquele em que o “algo recordado” o é. E
assim por diante. O ser do ser-percebido, o ser do ser-representado, o do ser-imaginado,
o do ser-recordado, é dado, cada vez, numa perfilação estrutural diferenciada. Temos
que distinguir, por conseguinte, entre o ente mesmo – a coisa do mundo circunstante e
a mera coisa, com suas respectivas estruturações coisais – e o ente no modo do seu ser-

120
HEIDEGGER, M. Prolegomena zur Geschichte des Zeitbegriffs, Gesamausgabe – Band 20. Frankfurt am
Main: Vittorio Klostermann, 1994, p. 39-40.
121
HEIDEGGER, M. Prolegomena zur Geschichte des Zeitbegriffs, Gesamausgabe – Band 20. Frankfurt am
Main: Vittorio Klostermann, 1994, p. 48.
intencionado, ou seja, do seu ser-percebido, ser-representado, julgado, imaginado,
recordado, amado, odiado...

Vamos chamar de perceptividade o ser do ser-percebido122. Uma cadeira percebida é


diferente de uma cadeira apenas representada em meu pensamento, que é diferente
de uma cadeira imaginada; a qual, por sua vez, é distinta de uma cadeira recordada. A
cadeira percebida doa-se no modo da perceptividade, assim como a cadeira
representada doa-se no modo da representabilidade; a imaginada, no modo da
imaginatividade; a recordada, no da recordabilidade. Trata-se, pois, de elucidar qual o
sentido desta dinâmica de autodatidade do intentum da intentio, bem como de tornar
claras as diferenças dos modos ou estruturas de autodatidade em que o intentum é,
cada vez, intencionado na intentio.

Uma cadeira é percebida do mesmo modo como um par de sapatos, como uma pedra,
uma casa e coisas semelhantes. Quer dizer, a estrutura da perceptividade do percebido
é a mesma em todas as possibilidades do perceber. Mesmo percepções que se dão por
vias sensoriais diversas são idênticas na sua estrutura intencional: a perceptividade deve
ser uma estrutura idêntica para uma cor ou forma visual, para um som, para um cheiro,
para um sabor e para algo de tátil. Com esta alusão, porém, não estamos restringindo a
percepção à sensação, nem o percebido ao que é dado sensorialmente, nem a
perceptividade à sensorialidade, nem a sensorialidade ao limite do que se pode
apreender pelas vias dos cinco sentidos. Apenas estamos indicando que, por mais
diversas que sejam as possibilidades em que são aviadas a percepção, ou seja, o
perceber, a estrutura da perceptividade será a mesma.

122
Aqui usamos a palavra perceptividade (Wahrgenomenheit) para tentar dizer a constituição ontológica
da percepção, vale dizer, do perceber e do percebido, em sua unidade indissolúvel. De fato, a palavra
“percepção” fala justamente da unidade do perceber (intentio / noesis) e do percebido (intentum /
noema). Perceptividade, por sua vez, acena para a condição da possibilidade da percepção em sua dupla
estrutura intencional. Nos remete, pois, ao que, anteriormente, chamamos de evidência, ou seja, a
pregnância da clareza, a intensidade e intensificação da claridade enquanto doação da coisa mesma, na
sua viva datidade, na sua mais concreta presença, “em carne e osso”, “em pessoa” (leibhaft). É esta clareza
que faz da percepção o modo mais originário e primordial de apreensão, sendo que, outros modos de se
comportar com o ente almejam, sempre, sua plenificação e consumação nesta clareza da percepção. Esta
clareza é, pois, a condição da possibilidade de toda vidência intencional e de toda manifestação do
intencionado. Cfr. M. HEIDEGGER, PGZ, 52-58 e Grundprobleme der Phänomenologie (GPh),
Gesamtausgabe, Band 24, Vittorio Klostermann, Frankfurt a. M., 1997, p. 64-67.
O ser-percebido e a estrutura da perceptividade fazem parte, essencialmente, do
perceber enquanto tal, isto é, de sua intencionalidade. A pergunta que se levanta,
porém, é: em que consiste a perceptividade do ser-percebido? Comecemos a responder
a esta pergunta tentando caracterizar o próprio da autodatidade do percebido para o
perceber.

Comecemos por investigar o percebido desta percepção escolhida como caso exemplar:
a percepção natural de uma coisa. Do que se trata? De uma cadeira. O que vejo, quando
olho para uma cadeira? A resposta é simples e desconcertante, mas não desprovida de
uma riqueza fenomenal: quando eu olho para a cadeira eu vejo a cadeira mesma! O que
quer dizer esta trivialidade? Que quando eu percebo a cadeira eu não estou vendo
“representações” da cadeira, não estou apreendendo nenhuma imagem da cadeira, não
estou advertindo sensações da cadeira, mas simplesmente estou vendo a cadeira, eu a
vejo simplesmente – vejo ela mesma.

O que na percepção acontece não é um presentificar [Vergegenwärtigen], mas é, mais


do que isto, um tornar presente [Gegenwärtigen], um presentar [Präsentieren] a coisa
mesma, tal como ela se dá em carne e osso [leibhaftig]123. O intencionado do simples
perceber é a coisa mesma em sua doação em carne e osso. Assim, se apreendo um ipê
amarelo florido, o visado da minha percepção é o próprio ipê amarelo florido, e não uma
imagem ou uma representação deste ipê amarelo florido na minha consciência. O visado
é, pois, o próprio ipê amarelo florido, dando-se em carne o osso. O perceber é, então,
um simples apreender, um simples ver [schlichtes Sehen], e o percebido é aquilo que é
simplesmente visto [das Schlichtgesehene]. A perceptibilidade [Wahrgenomenheit] do
percebido tem o caráter de uma doação em carne e osso [leibhaftig]. O caráter de ser
doado em carne e osso [Leibhafigkeit] é um modo privilegiado de autodatidade
[Selbstgegebenheit] do ente percebido124. Aqui a plenitude intuitiva do ato de
apreensão chega ao seu máximo. Em sentido estrito, ou melhor, pleno e pregnante, há
intuição toda vez que a coisa intencionada no comportamento se dá como sendo

123
Husserl, E. Logische Untersuchungen II/2: Elemente einer phänomenologischen Aufklärung der
Erkenntnis. Tübingen: Max Niemeyer, p. 116.
124
Heidegger, M. Prolegomena zur Geschichte des Zeitbegrif fs: Gesammtausgabe 20. Frankfurt am Main:
Vittorio Klostermann, p. 54.
presente em carne e osso [leibhaftig anwesend]125 (HEIDEGGER, 1995: 103). Como já
dissemos, na percepção se dá não uma mera presentificação, mas sim uma presentação
da coisa mesma. No entanto no caso de uma percepção sensível de uma coisa material,
“por mais adequada que possa ser uma percepção, o ente percebido se mostra sempre
cada vez somente em um determinado sombreamento [Abschattung] ” (HEIDEGGER,
1994a: 65). Em vez de sombreamento, podemos dizer também “nuança”. No caso da
percepção sensível de uma coisa material, o visado do perceber é sempre a coisa mesma
em sua totalidade, mas o que eu apreendo é sempre esta coisa desde determinada
perspectiva e sob um determinado aspecto. Eu vejo, por exemplo, a parte superior da
cadeira, enquanto não consigo ver a superfície inferior. Todavia, não penso, por isso,
que as pernas da cadeira foram serradas, porque, no meu perceber, naturalmente conto
com o mostrar-se nuançado das coisas percebidas. Num movimento em torno da coisa,
os aspectos que vêm à luz de modo nuançado podem mudar, no entanto, no perceber
e com o perceber acontece também a consciência de que este percebido é o mesmo
ente, a mesma coisa. Esta consciência da “idemidade” [Selbigkeit] do percebido faz parte
do ato de perceber. Aspectividade, nuança e idemidade são traços caraterísticos da
perceptibilidade de uma coisa material apreendida por uma percepção sensível126.

A percepção tem o poder de deixar-ser o surgir do mundo na sua forma primordial, ou


seja, no dar-se em carne e osso da presença dos entes em seu ser. Nós costumamos
indicar esta prerrogativa do mundo perceptivo, quando falamos daquilo que se dá
“concretamente”, “realmente”. Cumpre, pois, agora, perguntar em que consiste esta
“concretude”, o caráter de realidade deste real, que se dá “realmente”.

O intencionar do perceber, a presentação intuitiva da coisa em carne e osso, é um


intencionar pleno. Neste intencionar é que se tece a carne do real no modo da sua
concretude.

O mundo da percepção, com efeito, tem um estilo todo próprio. É diferente, por
exemplo, do mundo dos números. O mundo perceptivo é caracterizado pela tessitura
ou concreção. Já o mundo dos números é caracterizado pelo “despedaçamento”, ou

125
Heidegger, M. Logik: die Frage nach der Wahrheit: Gesammtausgabe 21. Frankfurt am Main: Vittorio
Klostermann, p. 103.
126
ROMBACH, H. (1980). Phänomenologie des Gegenwärtigen Bewusstseins. Freiburg i.B./ München:
Alber, p. 171-191.
seja, pela discreção. Com outras palavras, a coisa do mundo perceptivo é um concretum,
enquanto a do mundo numérico é um discretum. Com efeito, no mundo perceptivo cada
coisa que vejo me conduz a outra coisa, cada percepção passa para outra percepção, de
tal modo que, o que eu chamo de mundo perceptivo comporta sempre a estrutura de
um “e-assim-por-diante”. Já no mundo dos números não existe passagem entre um
número e um outro, uma vez que um número pode ser subdividido infinitamente. A
concreção é um traço fundamental do mundo perceptivo. Este não tem limites. Em
percebendo eu estou sempre já para além do que percebo, à medida que, a priori, o
conteúdo da percepção remete para ulteriores conteúdos de percepção. Cada
percepção implica um número ilimitado de ulteriores percepções do mesmo objeto e de
objetos singulares distintos daquele objeto. Este estrutural “e-assim-por-diante”, faz
parte, essencialmente da vivência intencional da percepção. Nele eu capto o mundo
como uma abertura de grande vastidão. Com cada percepção é posto também o inteiro
mundo da percepção. Com efeito, o percebido é sempre percebido como algo que está
“no” mundo, ou melhor, dentro dele, ou seja, como o que é intramundano, espacial127.

O que, pois, comumente, chamamos de real é o mundo perceptivo, o mundo do


concretum. O concretum, porém, é o que aparece a partir do processo de con-
crescimento de uma e-videnciação. Perceber significa, fundamentalmente, acompanhar
a gênese e o con-crescimento desta evidenciação da coisa na sua auto-doação. Por isto,
mesmo a percepção atual de algo concreto-estático só é possível dentro de um processo
dinâmico, dentro do fluir contínuo das percepções.

Ao mesmo tempo, o passar de uma percepção para outra implica numa certa retenção
das percepções anteriores e uma certa protenção para percepções ulteriores. Uma
percepção só é possível enquanto provém de outras e conduz a outras. A percepção
atual de um objeto estático só é possível a partir do dinamismo de retenção e protenção
da percepção. As percepções passadas são retidas, mas isto não significa dizer que a
percepção seja algo como uma recordação. Ao mesmo tempo, em cada percepção já
atua a abertura prospectiva para uma nova percepção, o que não quer dizer que
percepção seja algo como um esperar. Toda percepção produz protenções, ou seja,

127
Cfr. E. HUSSERL, Ideen I, 28-30. Também cfr. H. ROMBACH, Phänomenologie des gegenwärtigen
Bewusstseins, Alber, Freiburg/München, 1980, p. 60-66.
expectativas dadas de antemão, de tal modo que a próxima percepção tem que se
perfilar confirmando ou refutando as expectativas que se tinham surgido. O adormecer,
por exemplo, é um retrair de protenções, ou seja, adormeço à medida que o horizonte
protencional de expectativas abaixa o facho, as percepções perdem o caráter reflexivo,
e a auto-consciência se desliga do mundo perceptivo. Também pertence
intrinsecamente à percepção a retenção. Cada percepção contém sempre um conteúdo
que advém de uma percepção precedente. A percepção atual retém a percepção
precedente e faz desta seu conteúdo atual, não em todos os detalhes, mas naqueles
traços essenciais, ou seja, naqueles que são significativos para a contenção motivacional
de toda a série perceptiva. O fluir das percepções seguem, portanto, uma cadência
própria, uma espécie de melodia fundamental, de afinação composicional. É assim que
emerge a forma perceptiva (Gestalt), com sua figura e fundo. A forma concreta que
percebo é já uma síntese que emerge a partir da intencionalidade da minha percepção
e na composição desta forma já atua de modo decisivo o meu interesse. É a partir deste
interesse que eu destaco determinadas qualidades figurativas e deixo de fundo outras.
A cadência do fluir das vivências perceptivas, portanto, em suas sequências de retenções
e protenções é que decide daquilo que vejo concretamente128.

Da perceptividade da percepção faz parte não somente o modo de presença em que o


ente percebido comparece, ou seja, o modo da presença em carne e osso, mas também
o fato de a coisa percebida ser intencionada sempre na sua totalidade coisal129. Com
outras palavras, o intentum do perceber é um ente em si mesmo, um ente que se
apresenta no modo de uma presença em carne e osso, um ente no seu todo. Contudo,
este ser intencionado na sua totalidade nos é, de início, problemático. É que o ente por
nós intencionado na sua totalidade se dá cada vez em uma determinada perspectiva,
apresentando determinados aspectos, evidenciando-se concretamente em nuanças.
Perspectividade, aspectividade e nuança são traços essenciais da perceptividade da
percepção do ente na sua totalidade130. Assim, por exemplo, eu posso ver uma cadeira

128
Cfr. E. HUSSERL, Zur Phänomenologie des inneren Zeitbewusstseins (PhZ), Husserliana, Band X,
Martinus Nijhoff, Haag, 1966, p. 19-72; Cfr. também H. ROMBACH, Phänomenologie des gegenwärtigen
Bewusstseins, 195-200.
129
Cf. HEIDEGGER, M. Prolegomena zur Geschichte des Zeitbegriffs. Frankfurt a.M.: Vittorio Klostermann,
1994, p. 57-58.
130
Cf. ROMBACH, H. Phänomenologie des gegenwärtigen Bewusstseins. Freiburg i.B./München: Alber,
1980, p. 171-191.
enquanto tal somente visando-a desde uma determinada perspectiva: de cima ou de
baixo, de frente ou por detrás; sob determinados aspectos: no seu formato, na sua cor,
na sua extensão; em determinadas nuanças: como cadeira amarelada, não muito dura,
nem muito macia, etc. Tentemos, pois, elucidar este dado fenomenal.

Pertence à estrutura intencional, e, por conseguinte, à dimensão essencial interna,


intrínseca, da percepção o fato de o percebido ser dado como “fora de mim”, como
externo. Portanto, tal estraneidade e externidade do percebido é, fundamentalmente,
um traço essencial do seu aparecimento, a saber, um traço que é constituído pela e na
percepção mesma. A percepção já sempre abriu um horizonte de externidade, dentro
do qual a coisa percebida pode se mostrar com o indicador “externo”. A externidade
não depende desta ou daquela coisa, mas é a condição a priori para que a coisa se
mostre como coisa percebida. Para que uma coisa seja vista como coisa percebida é
necessário que ela se tenha mostrado nesta externidade que precede o aparecimento
de todas as coisas que se dão à percepção. O percebido é já sempre percebido como o
que está “no” “mundo”. O percebido, ou o perceptível enquanto tal, é sempre algo que
está “em”, “dentro de”. O fato de a coisa ser sempre percebida a partir de uma
determinada espacialidade corresponde ao caráter espacial do próprio perceber, a
saber, de um caráter que é um traço transcendental, a priori, da valência da percepção
enquanto tal.

Percepções surgem de percepções e conduzem a percepções. Uma percepção só é


possível enquanto provém de outras ou conduz a outras. A coisa só se dá como idêntica
a partir de uma captação dinâmica, constituída no fluxo motivacional de retensões e
protensões, que, por sua vez, supõe o transcendental e-assim-por-diante da percepção.
Para termos uma coisa da percepção de modo “plástico” diante de nós, precisamos
apreender a visão particular como um momento somente no contexto vivencial do andar
em torno dela. A vivência particular presente contém vivências futuras e passadas, ou
melhor, vivências pós-presentes e ante-presentes. O intuitivo ter-diante-de-si uma coisa
espacial em sua plasticidade e concreticidade abraça a coisa, por assim dizer, com dois
braços: o braço das retensões e o das protensões. A figura plástica e concreta da coisa
da percepção é uma forma de realidade efetiva-dinâmica, que só pode ser captada em
sua mobilidade. O estar no espaço da coisa é, fundamentalmente, um preencher espaço,
um ser-arrumado e um estar-posicionado dentro de um contexto espacial de múltiplos
“em” possíveis. Daí resulta que o perceber de uma coisa como coisa espacial supõe já
sempre a vivência do tempo. Cada ato de percepção traz consigo o horizonte temporal
que a ele pertence, o qual deve ter sido já sempre possibilitado, a fim de que possam se
dar protensões e retensões, mas também recordações e expectativas. Contemplando
uma determinada coisa da percepção, eu vejo não somente esta coisa, mas também o
meu advir a ela, bem como o meu partir dela. Cada percepção atual é a contração de
uma história perceptiva. Eu vejo tanto melhor quanto mais eu deixo estar viva, na
mirada atual da coisa, esta história, que é a história da minha percepção da coisa e, ao
mesmo tempo, a “história” da coisa percebida mesma.

A externidade, transcendentalmente constituída na percepção mesma, aparece


empiricamente como se fosse ela mesma externa. Daí que tendemos a hispostatizar o
espaço como se este fosse algo em si, uma espécie de quadro dentro do qual se
configura o aparecimento das coisas. Por sua vez, à medida que a externidade é
apreendida e experimentada como externa, ela aparece como a contrapartida da
imanência da consciência. Na verdade, porém, a externidade mesma está aquém da
diferença entre externo e interno e é uma forma de autodatidade a priori a partir da
qual passamos a falar de interno e externo.

O essencial é que a externidade pertence intimamente à estrutura interna da percepção


e é sempre co-intencionada em cada percepção natural concreta da coisa. Não é assim
que nós, de início, possuímos meras percepções e que, além disso, somos conscientes
delas, ou que os seus conteúdos nos chegam à consciência de fora, através dos sentidos,
mas é assim que a consciência, enquanto consciência percipiente, traz sempre consigo
o horizonte da externidade e co-intenciona este horizonte em cada percepção particular
de uma coisa que ela apreende como estando fora dela mesma. Desta maneira, a casa
que eu percebo é a casa que está “diante de mim”, o som do alarme que ouço é o som
que está “atrás de mim”. E tanto a casa quanto o som do alarme são por mim percebidos
“realmente”. Mas, o que diz este “diante de mim”, “atrás de mim”, “realmente”? Diz,
cada vez, o mesmo: que a estraneidade do que está “fora de mim” co-pertence ao
conteúdo mesmo da coisa que se me apresenta enquanto coisa percebida,
respectivamente, como coisa percebida por mim. É a estraneidade, enquanto traço
fundamental da perceptividade, o fator responsável pelo fato de percepções
particulares poderem se apresentar somente em perspectivas, sob determinados
aspectos e com cada vez esta ou aquela nuança.

À estrutura típica da percepção, isto é, à perceptividade enquanto tal, pertence nuança


e mudanças de nuança. Isto nos faz pensar que a coisa mesma seja o que se oculta “por
detrás” de suas múltiplas manifestações. Neste sentido, pertence ao perceber como tal
certa virtude configurativa, construtiva e reconstrutiva, daquilo que se doa a ele como o
percebido. O que se doa é sempre a coisa mesma na sua totalidade, mas o que é
apreendido em primeiro plano é somente e cada vez um fragmento do dado. O perceber
tem a capacidade, através das retensões e protensões, de apreender o fragmento como
o fragmento de um todo e de recolher, numa síntese figurativa, os diversos fragmentos
apreendidos. Isto se mostra, por exemplo, na capacidade de montar um quebra-cabeça
ou de identificar uma melodia através da audição de fragmentos da mesma. Da força
reconstrutiva da percepção segue a sua capacidade de auto-emenda. O perceber tem
uma tendência de melhoramento. Ele ambiciona colher melhor, com mais clareza e
nitidez, o que se doa de modo perceptivo. Em suas protensões, ele até se antecipa ao
mostrar-se da coisa, em busca de novos aspectos, que pudessem manifestar melhor a
coisa. Em razão desta tendência do perceber é que os órgãos sensoriais, como os olhos
ou os ouvidos, buscam sempre uma melhor impostação. Assim, por exemplo, quando
entro no cinema, no teatro ou no estádio, eu procuro sempre a melhor posição, eu vou
para lá e para cá, buscando o lugar onde puder ver e ouvir melhor.

Graças à esta força reconstrutiva e à sua tendência de auto-melhoramento, a percepção


é continuamente relacionada consigo mesma. Neste sentido, ela é, em si mesma, um
ato reflexivo. A percepção sempre se reflete no ato mesmo do perceber. O perceber
mesmo é co-intencionado com o percebido. Isto faz surgir o que nós chamamos de
fundo perceptivo. Cada percebido é percebido no interior de um espaço de percepção e
diante de um fundo de percepção. Isto vale não somente para o espaço e o fundo da
percepção visual, como vale também para outros tipos de percepção, por exemplo, no
caso da auditiva. Assim, o violino de um solista é escutado sob o fundo do
acompanhamento de toda a orquestra sinfônica. A diferença de fundo e figura é a
condição da percepção, um traço fundamental que a percepção mesma tem que
constituir e que ela, de fato, sabe constituir de modo bastante diferenciado. Ela sabe -
isto quer dizer: ela o pode, ela gosta desta possibilidade, ela é, por sua natureza, capaz
disto.

Cada percepção é, em si mesma, duplicada e, por conseguinte, reflexiva. A percepção


auditiva é ouvir e escutar; a visual é ver e contemplar; a táctil é sentir e tatear; e assim
por diante. Em virtude desta duplicação ou reflexividade da percepção, o raio da atenção
é, cada vez, cindido em duas direções. O perceber, de um lado, capta um campo
perceptivo e, de outro, capta um detalhe em relevo, a partir daquele campo. Em virtude
disto, cada raio de visão, por exemplo, precisa de, no mínimo, uma duplicação para ser
simplesmente um “ver”. Um ver absolutamente imediato e unidimensional nada vê: fica
cego. Um olhar hirto, quanto mais intenso, tanto mais cego. Um olhar móvel, quanto
mais reflexivo, tanto mais vidente. Esta é a razão pela qual dizemos que uma pessoa tem
um “olho vivo” ou tem um “olho de peixe morto”. É toda esta concretude do olhar e do
ser-olho que escapa à fisiologia. Uma análise intencional da percepção sempre exige
muito mais do que aquilo que a fisiologia pode dar, mas que a existência natural
cotidiana já sempre, de algum modo, soube captar fenomenalmente.

A diferenciação entre figura e fundo está, por sua vez, intimamente unida à
diferenciação entre coisa e nuança, ou seja, entre a coisa mesma e suas manifestações.
A condição de possibilidade do fato de a coisa mesma aparecer através de suas múltiplas
manifestações ou nuanças consiste na reflexividade da visão, ou seja, no fato de que a
percepção não somente vê, mas ela se vê, vendo. À medida que o ver da percepção se
vê vendo, ele pode relacionar o múltiplo conteúdo fatual da visão com a coisa, que é
sempre, ao mesmo tempo, dada e não dada. Aqui a coisa é co-apreendida como a
plenitude de todas as suas possíveis nuanças ou manifestações. Isto faz com que a coisa
seja concebida como uma substância, como um subjectum, e suas manifestações como
acidentes, ou seja, propriedades; ao mesmo tempo, a relação entre substância e
acidentes, entre sujeito e propriedades é vista como uma relação de fundação, ou seja,
como um relação entre fundamento e fundado, entre razão e conseqüência, ou ainda,
alguma vez, como relação entre causa e efeito.

Na reflexividade reside a mobilidade da percepção. Tal mobilidade, por sua vez, nasce
com e do fenômeno da percepção mesmo. Não é causada desde fora. É uma espécie de
auto-movimento mais primordial do que o da locomoção. O auto-movimento da
percepção é a mobilidade originária do nosso corpo.

No fenômeno da percepção, intencionalidade e atencionalidade se co-pertencem. Uma


intenção perceptiva só pode se construir se entra em cena uma atenção vivencial, a
saber, uma atenção intrínseca da vivência em relação a si mesma e ao seu poder-ser. O
crescer da atenção só se dá com o crescer da intenção. Não se pode ser atento pura e
simplesmente, mas sempre e somente se pode ser atento para alguma coisa. É o inter-
esse da intenção que surpreende o “alguma coisa” a ser apreendido e, deste modo,
reclama a atenção para ele.

Ver que se vê é, ao mesmo tempo, ver aquilo que se vê. Quanto mais reflexividade, tanto
mais objetividade. A riqueza das possibilidades da percepção é constituída na dupla
relação do ser-em-relevo de figura e fundo e do ser-em-contraste de coisa e
manifestação. Uma percepção é tanto mais percepção quanto mais a intensidade da
atencionalidade mantém vivaz aquele ser-em-relevo e aquele ser-em-contraste.
Quando eu, por exemplo, numa tardinha de inverno, sentado sobre uma pedra, no cimo
de uma montanha, olho para o horizonte e contemplo o ocaso, então faço a experiência
de ser um corpo na captação do escurecer do dia e do cair da noite; na captação, em
minha pele, do ficar mais frio do clima; na captação do cricrilar dos grilos e do canto dos
pássaros que vão se recolher e, em tudo isto, na captação do silêncio em que tudo
parece imergir. Prestar atenção a alguma coisa significa apreender esta coisa em um
contexto de movimento, a saber, de um movimento de possibilidades através das quais
o único e mesmo estado de coisas pode ser dado em diferentes nuanças. A percepção
não é um receber meramente passivo. O percipere é, sim, um recipere, mas trata-se de
um receber todo próprio, acolhedor, bem disposto, por conseguinte, de um receber que
está longe de ser mera passividade, mas que é um agir, quiçá, a mais elementar e, ao
mesmo tempo, a mais exigente de todas as ações.

O ser-em-relevo de coisa-e-fundo e o ser-em-contraste de coisa-e-manifestação nos dá


a evidência de que, aquilo que se doa, na percepção, é também aquilo que, sempre de
novo, se retrai. Ou melhor, trata-se da evidência de que a coisa se dá, sempre e somente,
à medida que se retrai e subtrai. A coisa se manifesta através de seus aspectos e se
manifesta somente através deles. Isto nos leva a este paradoxo fenomenológico, que
consiste no fato de a coisa ser dada e não dada ao mesmo tempo. O retraimento é o
modo de doação da realidade fenomenal da percepção. O retraimento é o ser-em-
retirada da coisa no ato mesmo do seu dar-se. Não é só subtração, é também, e
sobretudo, doação. Ele não somente tira, mas, sobretudo, dá. É na força negativa do
retraimento que subsiste o dar-se positivo da coisa em suas manifestações. Não é uma
falha, uma carência, uma privação. É o teor altamente positivo e pleno, que empresta à
percepção o seu realismo, a sua pregnância e a sua nitidez. Com outras palavras, o
retraimento é justamente aquilo que dá ao percebido o caráter de uma presença que se
apresenta em carne e osso.

Toda coisa é, fundamentalmente, um ponto-de-vista, um algo que, através das


mundanças de nuança, resiste sempre de novo em seu ser-em-contraste com suas
manifestações. Este ser-em-contraste simetricamente resistente nós denominamos de
perspectiva. Caso as manifestações de uma coisa se deixem incluir em mudanças de
nuanças, sem interrupção, então se trata de perspectivas de uma única e mesma coisa.
Tudo o que pertence ao mundo perceptivo deve aparecer em perspectivas. Não há
somente perspectivas espaciais, mas também temporais, como presente, passado e
futuro. Uma coisa pode ser intencionada e presentificada desde a perspectiva do
passado, como na recordação. Pode sê-lo desde a perspectiva do futuro, como na
expectativa. Pode sê-lo, ainda, desde a perspectiva do presente, como na atenção
voltada para o atual. Na presente recordação se me dá o passado, na presente
expectativa se me dá o futuro e na presente atenção se me dá a atualidade. Neste
sentido, passado, futuro e presente são perspectivas da estrutura presentificadora da
intencionalidade. Há, igualmente, perspectivas sonoras, que regem os fenômenos
acústicos: abemolado, “surdo”, “prensado”. Há, ainda, perspectivas de sabor. Muitas
delas necessitam de um paladar fino para poderem ser captadas, como no caso daquelas
diferenciadas pelo paladar de um “gourmet” ou de um enólogo.

A perspectiva é o realismo da percepção. Onde são dadas perspectivas, ali as coisas são
dadas como coisas, como reais e objetivas. O que nós chamamos de efetividade é
constituída na percepção, a saber, através da perspectividade. É a percepção mesma
que dá a efetividade. Ela é o modo da doação da realidade efetiva mesma. É por esta
razão que a palavra “percepção” é dita, em alemão, Wahrnenhmung, e “perceber” é
dito Wahrnehmen. Nehmen é o verbo tomar. Wahr corresponde ao adjetivo
“verdadeiro”. Percepção é, segundo este aceno etimológico, uma apreensão do que é
verdadeiro, isto é, real, efetivo, do que se dá em carne e osso, do que é liberado para o
aberto do mundo. É, por conseguinte, um dar-se da verdade, da Wahrheit. Também em
latim a palavra “veritas” (verdade) conota firmeza, resistência, estabilidade,
confiabilidade. Neste sentido, “verus” (verdadeiro) é o que se mostra “severus”
(rigoroso, grave, consistente); é o que “persevera”, ao ser submetido a provas; é o que
se pode “asseverar”, isto é, afirmar com certeza, com segurança.

Podemos salientar este sentido de confiança considerando como percepções fictícias ou


oníricas fracassam em seu realismo justamente no tocante à perspectividade. É verdade
que, no tocante à fantasia, nós podemos imaginar representações fantásticas em
perspectividade. Contudo, se bem considerarmos, veremos que o decurso da
representação fantasiada permanece sempre salteada, não é fluente e inconsútil, como
no caso da representação do que se dá em carne e osso na percepção propriamente
dita. Na verdade, a fantasia não é uma percepção direta e imediata de alguma coisa de
concreto. A fantasia, segundo sua própria lógica, não é uma simples e imediata vivência,
mas uma vivência de vivência. A fantasia assiste a uma vivência fantasiada. Ela não
vivencia algo, ela vivencia vivências. Nisto consiste, ao mesmo tempo, sua riqueza e sua
pobreza. Com isto ela perde em imediaticidade, em consistência e em verdade, mas
ganha em profundidade, distância e ressonância. Em figuras de fantasia, como nos
devaneios, nós não vivenciamos algo em si mesmo e em carne e osso, nós vivenciamos
o vivenciar mesmo. Ali não nos é dada a experiência das coisas de nosso mundo, mas do
mundo de nós mesmos. O eu da percepção, contudo, é constituído no entrecruzamento
de perspectivas, de tal modo que as coisas se impõem a ele, no seu retraimento, de
modo mais primordial e mais nítido. Já na experiência da fantasia ou do sonho, o que é
dado de imediato ao eu é ele próprio com suas vivências e, só através disto, o mundo
dos entes efetivos em geral. Nesta diferença, ou melhor, na primordialidade do mundo,
está incluído o caráter de carne e osso da percepção.

O realismo da percepção pode ser salientado também em comparação com a vivência


do sonho. Na vivência onírica são forjadas percepções que, enquanto são percebidas,
são tomadas por reais. Elas só podem ser tomadas por “meramente sonhadas” quando
eu me desperto e, na vigília, vivencio outras percepções, que eu tomo por percepções
reais. Acordado, eu sei que agora já não sonho e que aquelas percepções que vivenciei
enquanto estava adormecido, eram percepções oníricas, e não percepções reais. Por
razões de abreviar o discurso, aqui não podemos entrar na problemática dos estados de
consciência semi-adormecidos, daquilo que se constitui em estados como o da hipnose
ou das visões e transes e que exigem análises fenomenológicas específicas.O realismo
fantástico do sonho é acompanhado por uma auto-confiança que, confrontada com o
realismo positivo da percepção e com sua auto-confiança inabalável, logo se rompe e se
desvanece. Sem este rompimento não seria possível diferenciar entre a coisa sonhada e
a coisa efetivamente percebida. A consciência ficaria dilacerada entre duas presuntas
realidades e não, como normalmente acontece, posicionada entre a realidade e o
sonho. Em situações de semi-adormecimento, de cansaço extremo ou num
enfraquecimento doentio, podem se dar fenômenos deste tipo. A auto-confiança na
realidade da percepção ficaria abalada, o que causaria um transtorno para a vida
intencional da consciência e, por conseguinte, para a auto-orientação no mundo da
parte de quem faz a experiência daqueles estados de consciência.

Isto que nós, aqui, chamamos de realismo da percepção e que salientamos em contraste
com a fantasia e o sonho, nos mostra que a percepção traz em si e consigo a tese, isto
é, a posição da realidade, ou então, com outras palavras, que a realidade é constituída
no próprio ato intencional da percepção. A consciência percepiente é,
fundamentalmente, uma consciência tética, posicional. A esta estrutura tética,
pertence, invariavelmente, a auto-confiança própria da percepção131. O perceber
sempre crê em si mesmo. Ele toma o que nele se dá por uma informação fatual em que
se pode confiar. Tal confiança se dá porque o perceber apreende não somente o objeto
no modo de sua presença em carne e osso, como também apreende a sua relação com
o objeto que se lhe oferece, captando este objeto como constituído na e para esta
relação intencional. Assim, a percepção é, cada vez, não somente a apreensão de um
objeto numa referência intencional, mas é também uma apreensão daquela referência
mesma. A apreensão desta referência é sempre clara e distinta, ainda que o objeto nela

131
Cf. HUSSERL, E. Ideen zu einer reinen Phänomenologie und phänomenologischen Philosophie, Erstes
Buch. Tübingen: Max Niemeyer, 1993, p. 213-255.
apreendido seja obscuro e indistinto. A percepção de um vulto na neblina é clara e
distinta em si mesma. Ela se sabe perfeitamente como a percepção de uma “figura”
obscura e indistinta. Por serem sempre claras em si mesmas, as percepções não podem,
rigorosamente falando, se enganarem. Daí a sua inabalável e irrenunciável auto-
confiança. O fato de que podem acontecer ilusões perceptivas de qualquer espécie, não
é uma objeção contra esta auto-confiança. Uma ilusão, enquanto acontece, subsiste
como real. Somente através de uma nova percepção é que a outra percepção pode
aparecer como ilusória. Um pedaço de pau mergulhado na água se me mostra como
dobrado. Ao retirá-lo da água, percebo-o como reto. A minha percepção se auto-regula
e corrige a si mesma, dando-me um saber da ilusão óptica anterior, isto é, revelando a
ilusão como ilusão, a partir de uma nova percepção. Ademais, esta auto-confiança
subsiste na percepção, ainda quando um saber não perceptivo a desmarcara como
simulação. Assim, todos os dias nós vemos o sol nascer e se pôr. Ainda que saibamos,
por informação científica, que o sol não nasce nem se põe, mas que o fenômeno que
assisto é resultado dos movimentos de translação e rotação de dois astros, o sol e a
terra, a percepção cotidiana do nascer e do pôr do sol não deixa de ser válida e
verdadeira em si mesma. O saber acerca da percepção não penetra na percepção. Esta
guarda continuamente em si sua auto-confiança enquanto seu modo de saber. A auto-
confiança faz da percepção o fundamento e o centro de todo vivenciar e a sua condição
última de verdade.

A percepção é o fundamento e o centro de todo o vivenciar. É a partir dela, portanto, que


a consciência surge como consciência. Todos os atos intencionais, com efeito, ou tomam
por base a percepção ou são variações da percepção. Em sentido estrito, percepção é a
apreensão da presença de alguma coisa em carne e osso. É a apreensão do real na sua
concretude. Ora, neste sentido, o simples representar, o imaginar, o recordar, o esperar,
mas também o desejar, o querer, o julgar, o sentir, o amar e o odiar, somente são
possíveis a partir da percepção. O simplesmente representado é o intencionado de um
intencionar vazio, o qual aguarda por uma plenificação que somente se dá através da
percepção, ou seja, através da presentificação em carne e osso. Por isto a percepção é
o terminus ad quem de todo ato. Toda re-presentação busca, em última instância, uma
presentação ou presentificação intuitiva, “em carne e osso”, que só pode ser oferecida
pela percepção. Daí resulta, também, a importância da percepção para a consciência
interna de tempo132. O imaginado é o intencionado de um intencionar imaginativo, o
qual, não pode não partir da realidade posta na e para a percepção, variando o conteúdo
hilético do que é apreendido na percepção de modo livre, isto é, desvinculado das regras
da realidade positiva. Por isto, o imaginado sempre guarda uma relação íntima com o
real. O recordado é o intencionado de um intencionar que, recordando, torna presente
de novo uma experiência de algo que realmente se deu, isto é, algo que se deu a uma
apreensão perceptiva vivenciada no passado. O esperado, analogamente, é o
intencionado de um intencionar que se abre, numa expectativa, para a possibilidade de
uma nova experiência, de uma plena presentificação ou apreensão perceptiva, que
poderá se dar no futuro. Do mesmo modo, o desejado, o querido, o amado ou o odiado,
é sempre algo de algum modo intuído de imediato ou representado. Ainda desta
maneira, todo juízo se exerce com base numa representação e é um juízo sobre um
determinado estado de coisas.

Em sentido amplo, porém, poderíamos afirmar que os diversos atos intencionais são
variações da percepção, o que significa dizer que, de certo modo, todos os atos
intencionais são, ao seu modo, perceptivos. A percepção pura e simples funciona como
base para a percepção própria e complexa dos atos graduados, ou seja, da simples
representação, da imaginação, da recordação, da expectativa, do sentimento, do juízo...
É que, da percepção elementar surgem outros tipos de percepção. A simples
representação é uma percepção, um ver, de algo que se mostra em si mesmo, mas que
não se mostra em carne e osso. A imaginação é uma apreensão, uma percepção de algo
imaginário. A recordação é uma apreensão, uma visualização de algo vivido que é
atualizado. A expectativa é também a abertura de um olhar que focaliza a atenção para
o que está se dando dispondo-se a vislumbrar o novo que pode, a qualquer momento,
se dar. Da mesma forma, o sentimento apreende algo que é amado ou odiado, que traz
prazer ou desprazer; e o juízo declara um estado de coisas apreendido como sendo desta
ou daquela maneira. Caso nós consideremos percepção como toda a apreensão de algo
como algo, então todos os atos intencionais não vão ser outra coisa que percepção, ou

132
Cf. HUSSERL, E. Zur Phänomenologie des inneren Zeitbewusstseins. Den Haag: Martinus Nijhoff, Haag,
1966, p. 133-134.
seja, diferentes variantes de percepção. Caso consideremos percepção como apreensão
de algo que se dá em carne e osso, todos os atos intencionais não vão ser outra coisa
que vivências constituídas a partir da percepção ou em função dela. A percepção é,
neste sentido, o ponto de partida e o ponto de chegada de todo vivenciar, o centro a
partir do qual saem e para onde retornam todos os atos intencionais da consciência. É
por isto que dizíamos que a percepção é o fundamento e o centro de todo o vivenciar.

Toda a vivência intencional, por sua vez, constitui sempre um modo de eu estar-junto
daquilo que se me apresenta deste ou daquele modo. Os atos intencionais possuem,
com efeito, cada vez, um modo de tornar presente aquilo que é intencionado. A
percepção, em sentido estrito, torna presente o percebido no modo de sua presença
em carne e osso e o seu estar-junto é, por isto, um estar-junto privilegiado. Já a mera
representação torna presente aquilo em que simplesmente penso no modo de uma
presença vaga e o seu estar-junto é, por isto mesmo, insatisfatório e disperso. A
recordação torna presente o recordado no modo de uma presença-ausente, por causa
da irreversibilidade do “já não mais” do passado. O mesmo se diga da expectativa, só
que por uma razão inversa, ou seja, porque aquilo que se espera só pode ser presente
no modo de um “ainda-não”, de um “pode-e-não-pode ser que aconteça”. A imaginação
torna presente algo imaginário e o estar junto de algo imaginário, por mais convincente
que seja, sempre dura somente enquanto dura a confiança naquele imaginário,
confiança que pode ser rompida sempre que, de novo, voltamos à realidade do mundo
concreto. Quanto aos atos volitivos – o desejar e o querer – são, cada vez, um estar-
junto daquilo que desejo ou quero, mas que aguarda pela satisfação, pela posse ou
fruição daquilo que se deseja ou se busca. Da mesma forma, o amor é tanto mais feliz
quanto mais passa do desejo para a fruição daquilo que desejava. Já o ódio visa livrar-se
daquilo que causa repulsa e, por isto, fundamentalmente, visa eliminar ou destruir a
presença daquilo que odeia.

O decisivo não é que a percepção retrate fielmente a realidade, mas que a auto-
confiança co-pertence à constituição da perceptividade do percebido enquanto tal; e
esta pertença não é ulterior e suplementar, mas necessária, intrínseca e essencial. O
fato de se poder enganar nas percepções, não no sentido de uma ilusão óptica, mas no
sentido de um erro objetual, não é uma objeção, pois cada “retificação” de um erro
objetual pressupõe de novo a auto-confiança da percepção posterior. Não há modo de
corrigir e retificar uma percepção a não ser através de uma nova percepção. Por isto, a
percepção é, “eo ipso”, em última instância, doadora. A percepção, enquanto tal,
constitui a primordialidade da experiência. Aqui, porém, a palavra experiência tem um
sentido pré-científico. Fala de um modo privilegiado de encontro com algo, de um topar
em algo, que nos vem de encontro ou ao encontro de nós, isto é, que nos oferece
resistência ou nos afeta. Na experiência, nós sofremos a realidade. Experimentar é, pois,
fundamentalmente, um suportar a manifestação do real. Na experiência, somos
assaltados pela avalanche da realidade em suas dinâmicas de realização, somos
solicitados pelas coisas, somos provocados a nos relacionar com elas, como algo que nos
diz respeito, que nos toca e nos interessa. A sensibilidade é justamente este poder-ser-
afetado-pelas coisas numa dinâmica de receptividade e de suportação, a saber, da
doação do real, através da percepção133.

133
Cf. HEIDEGGER, M. Beiträge zur Philosophie (vom Ereignis) – Gesamtausgabe, Band 65. Frankfurt a.M.:
Vittorio Klostermann, 1994, p. 159-166.
MEDITAÇÕES CARTESIANAS
Anotações do Prof. Marcos Aurélio Fernandes

I. FENOMENOLOGIA TRANSCENDENTAL COMO CIÊNCIA


UNIVERSAL. INTENCIONALIDADE. REDUÇÕES.
CONSTITUIÇÃO.
Nós iremos estudar este tópico através de dois textos de Husserl, que serão
considerados paralelamente: as “Conferências de Paris” e as “Meditações Cartesianas”.
Os comentários que faremos servem para ajudar a melhor ler o texto. Assim, não
dispensam da leitura, mas apenas querem ser um recurso para reencaminhar à leitura
dos textos.

As Conferências de Paris foram pronunciadas na Sorbonne, no anfiteatro Descartes, a


convite do Instituto de Estudos Germanísticos e da Sociedade Francesa de Filosofia, nos
dias 23 e 25 de fevereiro de 1929. O título original destas conferências era: “Einleitung
in die transzendentale Philosophie” (Introdução à Fenomenologia Transcendental).
Depois disso, Husserl foi a convite de Jean Héring a Estrasburgo, onde conferenciou na
Faculdade Protestante de Teologia. As conferências se deram na primeira metade de
março de 1929. Husserl retomou os temas das Conferências de Paris, mas insistiu mais
no tema da experiência do outro (Fremderfahrung), da empatia (Einfühlung), do “alter
ego”, da “intersubjetividade”. Visto que estas conferências foram acompanhadas com
vivo interesse pelos participantes, Husserl resolveu então dedicar-se a escrever uma
introdução à fenomenologia transcendental, para a qual ele quisera dar o título de
“Meditações Cartesianas”. O texto que Husserl escreveu estava pronto em 17 de maio
de 1929. Husserl o entregou a seu assistente Eugen Fink, que reviu o manuscrito e o
enviou a Jean Héring. Este texto foi traduzido para o francês por Gabrielle Peiffer e
Emmanuel Levinas. A tradução foi revista por Alexandre Koyré, outro antigo aluno de
Husserl, e foi editado em francês como “Méditations cartésiennes”, no ano de 1931.
Husserl intencionava publicar o texto do manuscrito em alemão no Jahrbuch (Anuário)
para o verão de 1929. Em carta a Roman Ingarden, Husserl declara que esta deveria ser
a sua “Hauptwerk” (obra capital). Husserl, porém, nunca estava satisfeito com a obra,
continuou tentando aperfeiçoar as suas meditações e foi, assim, postergando a
publicação. Sua intenção era apresentar de modo mais elaborado a fenomenologia
transcendental como como filosofia universal, que inclui em si todas as ontologias, isto
é, todas as ciências que tratam do apriori das regiões do ser em questão, e que, por isso,
serviria de fundamento para todas as ciências positivas. A publicação tinha sido adiada
para 1932 ou 1933, mas, a partir deste ano, a situação política, com o governo de Hitler,
os seus planos de publicação tornaram-se impossíveis, visto que Husserl era judeu. Em
1950 as Meditações Cartesianas foram publicadas nas Obras de Husserl (Husserliana)
como o primeiro volume. Este volume contém as Conferências de Paris, as cinco
Meditações Cartesianas, um sumário de Husserl para as Conferências de Paris e umas
observações críticas de Roman Ingarden (antigo aluno de Husserl, professor em
Cracóvia, na Polônia).

Vamos, agora, percorrer o caminho das Meditações Cartesianas, considerando,


paralelamente, as Conferências de Paris. Nossa intenção é compreender como se
constitui o método (caminho) da fenomenologia transcendental que veio à luz com o
pensamento e a filosofia de Husserl.

I. 1. INTRODUÇÃO ÀS MEDITAÇÕES CARTESIANAS (§§ 1-2)

I. 1.1. (§1) AS MEDITAÇÕES DE DESCARTES COMO PROTÓTIPO DA REFLEXÃO FILOSÓFICA.

Para Husserl, Descartes foi o maior pensador da França. O estudo das suas meditações
influenciou diretamente na transformação da fenomenologia em devir no pensamento
de Husserl em uma nova forma de filosofia transcendental. Por isso, Husserl diz que a
fenomenologia transcendental pode ser considerada quase como um
“neocartesianismo”.

As meditações de Descartes que Husserl tem em mente são as “Meditationes de Prima


Philosophia” – Meditações de Filosofia Primeira. “Filosofia Primeira” é o título que
Aristóteles deu à questão do ser do ente como tal e no todo, à pergunta pelo “ente
enquanto ente”. Primeira é esta filosofia não por ser a primeira que o homem encontra.
Na verdade, no decorrer de sua vida o homem coloca muitas questões, mas só
raramente e muitas vezes tardiamente é que ele se dá conta da “questão do ser” como
tal e no todo. Esta filosofia é primeira, portanto, não numa ordem cronológica de
aprendizagem, mas numa outra ordem: ela é primeira por ser a filosofia principal, a
questão mais radical da filosofia, que inclui em si mesma todas as outras questões que
levam o homem a filosofar. Este aceno talvez seja importante para entendermos que a
filosofia transcendental que é a fenomenologia deva ser compreendida
primordialmente, para falar segundo os títulos comuns no estudo filosófico, não na
dimensão da teoria do conhecimento, mas sim na dimensão da ontologia e da ontologia
universal. A ontologia universal enquanto filosofia transcendental tem em mente a fonte
de todo o conhecimento e de todo o sentido de ser de tudo quanto é, a qual é chamada
por Descartes de “ego cogito”. Em Husserl, este “ego cogito” será tomado como o ego
transcendental, isto é, o ego que não é dado como um objeto no mundo, mas como
condição de possibilidade de toda objetivação, inclusive do eu empírico, que se dá como
objeto no mundo.

O método da fenomenologia transcendental surge, pois, de transformações


(Umbildungen) e uma reformulações (Neubildungen) das “Meditationes” de Descartes.
Estas meditações, diz Husserl, servem de protótipo para a autorreflexão
(Selbstbesinnung) filosófica. De início, é preciso recordar o seu curso “notável” e sua
“ideia condutora”. Esta é dada pela sua meta, que é “uma completa reforma da filosofia
em uma ciência que parte de uma fundamentação absoluta”. Esta reforma da filosofia,
porém, seria a reforma de todas as ciências, já que a filosofia é a ciência universal, em
que todas as demais ciências achariam a sua “unidade sistemática”. É que às ciências
faltam uma autenticidade no tocante à sua fundamentação última, fundamentação que
só pode ser recebida a partir de “visões intelectivas absolutas”. O que Descartes tem em
vista é, pois, a ideia de filosofia como ciência universal, isto é, como unidade universal
das ciências na unidade de uma fundamentação racional. As ciências precisam, então,
alcançar uma reconstrução radical a partir de tal fundamentação e unidade na filosofia.
Mas, onde encontrar este fundamento absoluto e inabalável da verdade, de onde haurir
“visões intelectivas absolutas”? Como satisfazer à ideia de filosofia como ontologia
universal e fundamental?

As meditações de Descartes apresentam uma “filosofia virada para o sujeito”. É a partir


desta virada que Descartes pretendia a reconstrução de todo o saber científico, a partir
de uma fundamentação dada com “visões intelectivas absolutas”. Esta virada, por sua
vez, se dá, segundo Husserl, em “dois níveis significativos” de retorno (Rückgang) ao ego
filosofante. O primeiro nível é apontado por Husserl uma decisão (Entschluss) pessoal.
O segundo nível, que é mais profundo do que o primeiro, é o retorno ao “ego das
cogitationes puras”.

O primeiro nível da virada filosófica para o sujeito nós a caracterizamos como sendo
uma resolução, uma decisão, pessoal, mas não privada, pois ela tem em mente o saber
universal, bem como a função deste saber universal na constituição de uma “cultura da
humanidade no seu todo” (cfr. §2). Com isso entramos no sentido ôntico-existentivo
desta virada filosófica para o sujeito, algo como uma iniciação pessoal, realizada no
concreto da vida e das suas decisões. Ao tratar do sentido desta decisão Husserl fala em
primeira pessoa, como que deixando transparecer que este saber só pode ser querido e
realizado “em primeira pessoa” (eu), por cada um que se dispõe a filosofar. Talvez
convenha reportar estas palavras com uma citação:

Primeiro: todo aquele que queira seriamente tornar-se filósofo deve, “uma vez na vida”,
recolher-se em si próprio e procurar, dentro de si próprio, destruir todas as ciências que,
até então, para ele valiam, para de nova as construir. Filosofia – sabedoria (sagesse) – é
assunto totalmente pessoal do filósofo. Ela deve acontecer como sua sabedoria, como
seu saber, por si próprio adquirido e que continuadamente se esforça pelo universal,
como um saber pelo qual, desde o início, ele pode responder, em cada um do seus
passos, a partir de visões intelectivas absolutas. Se tomei a decisão de viver para esta
meta – que só ela me pode pôr no caminho de um desenvolvimento filosófico – escolhi,
então, com isso, o começo da absoluta indigência de conhecimentos. Neste começo,
terei manifestamente como primeira questão refletir sobre como poderei encontrar um
método de progressão, que possa conduzir-me ao saber autêntico. As meditações
cartesianas não pretendem ser, portanto, um assunto meramente privado do filósofo
Descartes, muito menos uma simples forma literária impressionante para uma
apresentação de fundamentos de Filosofia Primeira. Pelo contrário, elas delineiam o
protótipo das meditações necessárias a todo e qualquer filósofo incipiente, somente a
partir das quais poderá originariamente despontar uma filosofia134.

Aristóteles falava da “sophia”, sabedoria, como sendo uma ciência que trata dos
primeiras causas e dos primeiros princípios de tudo (cfr. Metafísica A, 1, 982a). Este
nome designava “o que há de mais elevado no conjunto das ciências” (Ética a Nicômaco,
X, VII, 2). Descartes tinha em mente, com as meditações de Filosofia Primeira, a
“sagesse”, a sabedoria, na forma de uma ciência universal e, ao mesmo tempo,
fundamental. Mas este saber universal e fundamental não se conquista a não ser por

134
Husserl, E. Meditações Cartesianas e Conferências de Paris (de acordo com o texto de Husserliana I.
Editado por Stephan Strasser. Tradução de Pedro M. S. Alves. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 40.
uma decisão pessoal: a decisão pela filosofia. Decisão que implica, antes de tudo, a
resolução de uma pobreza em matéria de conhecimento. Sem se esvaziar de todo o
conhecimento, sem recolher-se em si mesmo e, na própria interioridade, destruir toda
ciência presumida que já traz consigo na forma de prejulgamentos e preconcepções, um
homem não se torna filósofo, isto é, sua vida não toma um desenvolvimento filosófico.
Um filósofo é, portanto, antes de tudo, um homem pobre em conhecimentos. Quem já
conhece não precisa pensar. Quem se dispõe a começar a pensar, a aprender a pensar,
deve colocar-se na atitude e na posição de quem realmente não sabe, ou seja, deve se
desfazer, em si mesmo, de todo o conhecimento já constituído. Só assim ele pode
retornar à fonte de todo o conhecimento autêntico, de todo o saber fundado e
construído sobre visões intelectivas absolutas e não sobre prejulgamentos.

Daí a necessidade de encontrar um método progressivo que possa conduzir a um saber


autêntico. Este saber é universal, ou seja, tem em mente o todo do ente (do que é) e
aquilo que é do interesse de todo o homem. Entretanto, o modo de conquistar este
saber é pessoal, pois na sua busca o homem engaja a si mesmo com todo o seu ser, com
toda a sua liberdade, em máxima autonomia. Filosofia é, antes de tudo, filosofar. E
filosofar é, acima de tudo, uma atitude de autonomia, de resolução, decisão pessoal, de
construir o próprio saber do universal baseando cada etapa desta construção em
intuições, evidências, visões intelectivas que Husserl chama de “absolutas”, isto é, que
são originárias, dadas em si mesmas a partir de si mesmas. Como já foi dito, porém, se
a filosofia é um assunto pessoal de cada filósofo, este assunto pessoal não deve ser
entendido como sendo “privado”, isto é, do interesse único e exclusivo daquele
indivíduo, sem qualquer interesse para a vida em comunidade e em sociedade, para a
vida de uma cultura ou humanidade. De fato, a filosofia, que é sempre um saber pessoal
que trata do universal, é um saber que é do interesse do todo da cultura de uma
humanidade, ou quiçá, até mesmo, de todos os homens, pois todo o homem é,
originariamente, constitutivamente, ao menos como possibilidade, filósofo.

O segundo nível da virada para o sujeito numa autorreflexão filosófica se dá como um


“regresso ao ego filosofante” no sentido do “ego das cogitationes puras”. Na meditação
de Descartes, este regresso se faz pelo método da dúvida. Se, por um lado, este método
abala todo o dogmatismo, por outro lado, ele não se constitui num procedimento
impostado numa atitude cética. O método da dúvida não é propriamente cético, mas
sim crítico. E não é cético porque ele visa justamente aquilo que o ceticismo nega, ou
seja, o conhecimento absoluto, o fundamento inabalável d verdade, o “ens certum”. Por
isso, por princípio, neste método, só vale como ser (seiend) aquilo que está ao abrigo
total da dúvida135, aquilo que “estiver protegido de toda e qualquer possibilidade
pensável de se tornar duvidoso”. Tudo o que “na vida de experiência e de pensamento
naturais” deixar aberto a possibilidade da dúvida deve ser, portanto, removido. O
método da dúvida é, portanto, uma crítica da experiência natural e de suas evidências.
Ele quer mostrar que “a certeza da experiência sensível, na qual o mundo é dado na vida
natural, não resiste à crítica e, por conseguinte, o ser do mundo deve, neste estádio do
começo, deixar de ser válido” 136. Mas, o que é que permanece absolutamente
indubitável, certo, de uma certeza dada por uma evidência absoluta, apodítica? Para
aquele medita, o que permanece certo, indubitável, evidente de modo apodítico é ele
próprio, ou melhor, o seu si-mesmo, o “ego puro das sua cogitationes”137. É preciso
perder o mundo para se conquistar o ego. O problema que Descartes encontrou depois
foi o de como relacionar esta interioridade pura com a exterioridade objetiva. Por isso,
ele recorreu a Deus e à sua “veracitas” (veracidade), à substância infinita que garante a

135
“Quare jam denuo meditabor quidnam me olim esse crediderim, priusquam in has cogitationes
incidissem; ex quo deinde subducam quidquid allatis rationibus vel minimum potuit infirmari, ut ita
tandem praecise remaneat illud tantum quod certum est & inconcussum” – “Por isso eu agora vou meditar
de novo sobre o que eu antes acreditava ser, antes de cair nestas cogitações; disso eu, então, irei subtrair
o que quer que possa ser infirmado ainda que minimamente pelas razões aduzidas, a fim de que
permaneça precisamente somente aquilo que é certo e inabalável” (Descartes, 1641/1998, p. 162).
136
Pag. 41.
137
Ainda que tudo fosse aniquilado pela dúvida, o ego cogito, ego sum permaneceria de pé em si mesmo,
ou seja, o pensar, a mente, a egoidade como tal traz consigo o privilégio ontológico de permanecer firme
na evidência, na verdade, na certeza de si mesma, mesmo quando tudo vacila e rui tomado pelo vórtice
da dúvida. O ego, isto é, a egoidade, é indubitável, estável em sua verdade, certo de uma certeza firme:
aquilo que é certo e inabalável (quod certum est et inconcussum): “Adeo ut, omnibus satis superque
pensitatis, denique statuendum sit hoc pronunciatum, Ego sum, ego existo, quoties a me profertur, vel
mente concipitur, necessario esse verum” – “Assim, portanto, depois de ter ponderado tudo mais do que
o bastante, pode ser estatuído que isto que é pronunciado: eu sou, eu existo, é necessariamente
verdadeiro, toda a vez que for proferido por mim ou que for concebido pela mente” (Descartes,
1641/1998, p. 162 – tradução nossa, grifo do próprio texto editado). Note-se a expressão “concebido pela
mente”, que indica uma evidência de caráter mental, isto é, apriori racional. Assim, o ego, ou melhor, a
egoidade, ou, melhor ainda, a mente, é apresentada agora como a substantia, o subiectum, o
fundamentum por excelência. Não se trata, aqui, pois, do eu individual, fático, mas do eu enquanto tal,
da essência do eu, da egoidade, ou, como diz Descartes, do ego enquanto dado ao cogito, ao pensamento:
“Cogitare? Hic invenio, cogitatio est, haec sola a me divelli nequit: ego sum, ego existo, certum est.
Quandium autem? Nempe quandiu cogito” – “E o pensar? Eis que encontrei: o pensar é a única coisa que
não me pode ser tirada. Eu sou, eu existo; isto é certo. Mas, por quanto tempo? Certamente, enquanto
eu penso” (Descartes, 1641/1998, p. 166).
relação entre as duas substâncias finitas: a mente (res cogitans)138 e o mundo físico (res
extensa)139. Mais para frente Husserl fará uma crítica deste desdobramento das
meditações de Descartes, mostrando que o problema fora posto de modo inadequado
pelo pensador francês. O que é importante em termos de método para a fenomenologia
é que “todos os meios de inferência sucedem, como deve ser, tendo como fio condutor
princípios que são imanentes ao ego puro, que são “inatos””.

I. 1.2. (§2) NECESSIDADE DE UM NOVO COMEÇO RADICAL DA FILOSOFIA

No § 1 Husserl descreve o caminho de pensamento de Descartes nas Meditações. Ele


pergunta, então, pelo valor e significado “eterno” deste pensamento, o que, na
concepção de Husserl, significa perguntar se os pensamentos aqui expostos são “ainda
apropriados para infundir forças vivas ao nosso tempo”.

O que aconteceu depois de Descartes? Husserl começa colocando em relevo um fato


que, diz ele, dá a pensar: o fato de que as ciências positivas se interessam pouco por
estas meditações. A consequência é que depois de três séculos (hoje, para nós, seriam

138
“Nihil nunc admitto nisi quod necessario sit verum; sum igitur praecise tantùm res cogitans, id est,
mens, sive animus, sive intellectus, sive ratio, voces mihi priùs significatione ignotae. Sum autem res vera,
& vere existens; sed qualis res? Dixi, cogitans” – “Nada agora admito a não ser o que de modo necessário
é verdadeiro; eu sou, portanto, precisamente, somente uma coisa pensante, isto é, mente ou ânimo ou
intelecto ou razão, vocábulos cuja significação me era antes ignota. Eu sou, pois, uma coisa verdadeira, e
verdadeiramente existente; mas, que tipo de coisa? Eu já o disse, uma coisa pensante” (Descartes,
1641/1998, p. 166 – tradução nossa). Mais à frente Descartes diz: “Sed quid igitur sum? Res cogitans. Quid
est hoc? Nempe dubitans, intelligens, affirmans, negans, volens, nolens, imaginans, quoque, & sentiens”
– “Mas, portanto, o que eu sou? Uma coisa pensante. O que é isto? Certamente, uma coisa que duvida,
que entende, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina também, e que sente”
(Descartes, 1641/1998, p. 168).
139
A “res cogitans” é dada a si mesma numa evidência imediata. A mente é uma presença cuja
autodatidade é auto-evidente, por se dar numa intuição imediata. Além disso, ela é uma atenção, um ser
presente junto ao real, que pode trazer em si o caráter de um “perceber claro e distinto” do que quer que
ela perceba ou intua e que tem a capacidade de conter em si, intencionalmente, ou seja, ideal ou
espiritualmente, todas as coisas que ela representa. Esta auto-evidência e esta capacidade de ser a
instância da recepção da evidenciação da forma (ideia, essência) do que quer que seja caracteriza a mente
enquanto “razão pura”. A mente é auto-evidente. Mas, por outro lado, a ela também é dada a evidência
intelectiva da “res extensa” que ela capta: “Atque, quod notandum est, ejus perceptio non visio, non
tactio, non imaginatio est, nec unquam fuit, quamvis prius ita videretur, sed solius mentis inspectio, quae
imperfecta esse potest & confusa, ut prius erat, vel clara & distincta, ut nunc est, prout minus vel magis
ad illa ex quibus constat attendo” – “Mas de qualquer modo, há que se notar que a sua percepção [desta
cera] não é nem um ver, nem um tocar, nem um imaginar, nem foi jamais algo disso, embora antes
parecesse assim, mas um inspecionar da mente somente, que pode ser imperfeito e confuso, como era
antes, ou claro e distinto, como é agora, à medida que eu preste atenção mais ou menos àquilo de que é
constituída” (Descartes, 1641/1998, p. 174).
quatro séculos), o progresso das ciências é apenas ainda um progresso positivo, isto é,
ele até pode ser um grande progresso no âmbito de descobertas e invenções e da
funcionalidade e eficiência, mas é um progresso que se encontra-se atravancado no
âmbito dos seus fundamentos. As ciências permanecem ainda dogmáticas e ingênuas,
quando se tratam de discutir e colocar questões no âmbito dos seus próprios
fundamentos. Sua forma de conceber o real é ainda debilitada por um objetivismo
ingênuo. A filosofia que é pressuposta pelas ciências é ainda pré-crítica. O passo dado
por Descartes não fora seguido. Que passo é este? O passo pelo qual “a filosofia assume
uma viragem radical do objetivismo ingênuo para o subjetivismo transcendental”.

Entretanto, o que aconteceu com a filosofia mesma? Husserl fala de uma


“decomposição da filosofia atual”, que, do mesmo modo, dá a pensar. O seu declínio é
inegável desde o meado do século XIX, diz ele. No início da modernidade a fé religiosa
entrou em descrédito à medida que se exteriorizou numa convenção. Ela perdeu sua
substância, isto é, sua vigência e valência histórica. Em seu lugar, a “humanidade
pensante” elegeu uma “nova grande fé”, a fé em uma “filosofia e ciência autônomas”.
“A cultura humana no seu todo deveria ser conduzida por visões intelectivas científicas,
ser iluminadas por elas e, assim, ser reformada numa nova cultura autônoma” 140. Foi o
que aconteceu? Não. “Entretanto, essa fé caiu na inautenticidade e definhou”. A
filosofia moderna não conseguiu estar à altura de sua tarefa histórica. Uma “filosofia
unitária e viva” não foi constituída. Em seu lugar, o que aconteceu foi o crescimento sem
limites e sem coerência da literatura sobre a filosofia. A verdadeira crítica no filosofar
uns com e uns para os outros se tornou uma crítica aparente. Nos congressos filosóficos,
encontram-se os filósofos, mas não as filosofias. “Falta a unidade de um espaço
espiritual”. Esta situação parece requerer, tanto quanto a situação histórica da filosofia
na época de Descartes, uma nova reforma e um renascimento. As forças
impulsionadoras que se irradiavam das meditações de Descartes perderam a sua
originária vivacidade. Uma reforma e um renascimento só seria possível, se se adotasse,
de novo, o espírito de radicalismo que está presente nas meditações de Descartes.
“Radicalismo” certamente Husserl usa esta expressão com um significado que é distinto
daquele usual em nossos dias, isto é, não como fanatismo e fundamentalismo sectário,

140
Pag. 42.
mas como a tentativa de “ir à raiz” (radix), aos fundamentos, às fontes mesmas de todo
o conhecimento e de todo o saber. Para Husserl, este radicalismo filosófico significa o
retorno ao “ego cogito”, retorno que constitui o passo decisivo de uma filosofia
transcendental. A fenomenologia transcendental é, pois, a retomada das aspirações
mais profundas do pensamento de Descartes e do espírito de seu filosofar. O que não
significa que a fenomenologia transcendental deva se deixar conduzir pelos “extravios
sedutores” nos quais caíram Descartes e seus seguidores. Do caminho da fenomenologia
transcendental nos falará as cinco meditações reunidas por Husserl e que constituem
uma verdadeira e própria introdução à fenomenologia tal como ela se encaminhou na
sua experiência de pensamento, na sua reflexão filosófica.
I. 2. PRIMEIRA MEDITAÇÃO

A primeira meditação trata de “O caminho para o ego transcendental” e compreende os


parágrafos de 3 a 11.

O § 3 trata da “subversão” (Umsturz) cartesiana e da ideia-fim (Zweckidee) diretora de


uma fundamentação (Begründung) da ciência. A subversão consiste na resolução
(Enstchluss) radical de deixar fora de jogo todas as convicções que nos são válidas até
então. A ideia-fim diretora é a da “Ciência Universal” (Mathesis Universalis = Filosofia).
Podemos entender a fenomenologia transcendental como a realização desta ideia, ou,
pelo menos, como o método (caminho) para a realização desta ideia. Em que consiste
esta ciência? Como ela se apresenta? Deve-se pressupor uma ciência já existente como
modelo para a realização desta ideia? A resposta de Husserl é: não. Não se deve
pressupor uma ciência como modelo para a realização da ideia da Ciência Universal. E
aqui entra a crítica de Husserl a Descartes: este foi traído por um preconceito (Vorurteil),
a saber, o de que a Ciência Universal teria como modelo a geometria e, respectivamente,
a ciência matemática da natureza (física), ou seja, para Descartes, a Ciência Universal
deveria ser um sistema axiomático-dedutivo. A dedução seria realizada a partir do
axioma da absoluta autocerteza do ego e dos demais axiomas que seriam oferecidos
pelos princípios axiomáticos inatos ao próprio ego e que constituem o tema das
meditações (a existência de Deus, a dualidade das substâncias: res cogitans e res
extensa). Husserl mantém a ideia-fim de uma Ciência Universal. Mas ele não adota a
pressuposição de que esta ciência tenha que ter a forma de um sistema axiomático-
dedutivo. Nenhuma ciência já existente deve servir de ideal normativo de ciência, nem
a ciência matemática da natureza, nem a matemática, nem a lógica... As ciências
facticamente dadas devem ser submetidas à crítica fenomenológica. Por enquanto,
Husserl deixa em pé somente a ideia-fim de uma Ciência Universal, ainda que esta ideia
se apresente de modo vago – em vaga universalidade (in vager Allgemeinheit), dirá o §
4. Esta ideia é por enquanto apenas algo que é presumido (Präsumption), assumido de
antemão, como algo que é pretendido (Prätention), sem que se possa prejulgar se e em
que medida esta ideia possa ser realizada efetivamente na práxis.

O § 4 trata do desvelamento (Enthüllung) do sentido final da Ciência (Universal) através


de um imergir vivencial (Einleben) nela, ou seja, no seu aspirar, esforçar por alcançar
(Streben) e no seu agir (Handeln). A ideia diretora (Leitidee) de uma Ciência Universal
deve guiar este esforço e este agir. Ela não deve ser tirada das ciência fácticas por meio
de uma abstração comparativa. É preciso encarar, aqui, a Ciência Universal como ideia,
não como fato, como fato da cultura, por exemplo. Esta ideia, porém, reside numa
“pretensão” (Prätention), ou seja, naquilo que é previamente intencionado e no tender
para isso que é intencionado, no esforçar-se por alcançar uma meta. Para desvelar esta
ideia, é preciso imergir no esforço que se orienta para ela como para uma meta.

Husserl considera, aqui, a ciência como fenômeno noemático. Na linguagem de Husserl,


enquanto a expressão “noético” se refere à vivência (Erlebnis) em seu caráter real, a
expressão correlata “noemático” se refere ao conteúdo intencional desta vivência141.
Assim, se se trata de conhecimento, noético é o que se refere à vivência intencional de
conhecer em seu caráter real, noemático é o que se refere ao conteúdo intencional
desta vivência, aquilo que é conhecido. Considerando-se, pois, a ciência não em seu
aspecto noético, mas em seu aspecto noemático, é preciso apreender aquilo que é
básico para a ciência: o fenômeno do “juízo” (Urteil) 142. Husserl introduz, aqui, uma

141
Cfr. Ideias I § 87.
142
A ciência se esforça por pronunciar discursos demonstrativos e fundamentados sobre o real (as coisas
ou estados de coisas). Unidades destes discursos são os enunciados, as predicações ou juízos. Elementos
do juízo são os conceitos ou termos. Por sua vez, os juízos se compõem em conclusões. Por isso, a lógica
não é apenas a doutrina do juízo, mas também a doutrina do conceito (ou do termo), de que o juízo se
compõe, e da conclusão (ou raciocínio), que se compõe de juízos. A lógica não se interessa pela verdade
objetiva dos juízos. Ela se interessa apenas pela sua correção. Ela estuda as regras formais que regem o
pensar e dizer na formação dos juízos e na formação das conclusões. A lógica é um julgamento de juízos.
Ela avalia se os juízos são corretos. Para ela, a verdade é a validade formal dos juízos e das conclusões,
validade que depende, fundamentalmente, de sua correção, ou seja, se os juízos e conclusões obedecem
às regras ou leis que regem o pensar e o dizer justo. Mas, que regras ou leis são estas? Na analítica de
Aristóteles, segundo Husserl, “em autêntico espírito platônico vieram à apreensão ideal-conceitual, ainda
que de modo não completo, as formas puras dos juízos, e as leis racionais puras que nelas se fundam
foram descobertas, nas quais se pronunciam as condições formais de possibilidade da verdade do juízo.
Assim cresceram peças fundamentais de uma lógica pura, e precisamente de uma lógica formal, como
nós podemos dizer também, peças fundamentais de uma pura doutrina da ciência, cujas normas
justamente em razão de sua universalidade formal têm de ser de validade universal absoluta” (Husserl, E.
Erste Philosophie (1923/24) – Erste Teil: kritische Ideengeschichte. Her.: Rudolf Boehm. Husserliana Band
VII. Haag: Martinus Nijhoff, 1956, p. 18). Depois de Aristóteles, o passo seguinte foi dado pelos estoicos.
A principal contribuição da lógica estoica consistiu na doutrina do lektón. “Lektón” significa “o que pode
ser dito”, “o que pode ser exprimido”; a expressão, o enunciado. “Nele se apreende explicitamente e de
modo preciso pela primeira vez a ideia de proposição (Satz), enquanto o juízo julgado no julgar (juízo em
sentido noemático), e as leis silogísticas são referidas às suas formas puras”, diz Husserl (Idem, p. 18-19).
A contribuição dos estoicos, neste último sentido, consistiu em elaborar uma lógica da “consequência”.
Os juízos não somente se seguem um após o outro, mas se seguem um a partir do outro. Um silogismo
não é uma mera série de juízos, mas sim uma conexão de juízos em que um segue a partir do outro
segundo um nexo interno e segundo determinadas leis formais, numa articulação unificadora de sentidos
diversos. Um silogismo conjuga um sentido de juízo com outro sentido de juízo e, assim, produz uma
consideração sobre o ato de julgar (o juízo em sentido noético) e sobre o que é julgado
no ato de julgar (o juízo em sentido noemático). Há juízos imediatos e juízos mediatos.
“Nos juízos mediatos, reside uma referencialidade de sentido relativamente a outros
juízos, de tal maneira que a crença judicativa acerca deles pressupõe a desses outros
juízos – ao modo de uma crença com base em algo já acreditado” (p. 47). Há
conhecimento quando há fundamentação. Os juízos mediatos devem se fundamentar
em juízos imediatos. Estes juízos devem ser verdadeiros, isto é, corretos (a verdade do
juízo é chamada de correção, a falsidade, incorreção). Uma fundamentação é um
raciocínio que pode ser reiterado, isto é, repetido, seguindo-se o nexo dos juízos.

Na fundamentação entra a ideia de evidência. “Na fundamentação autêntica, os juízos


mostram-se como corretos (richtig), como concordantes (stimmend), ou seja, a
fundamentação é a concordância (Übereinstimmung) do juízo com a própria situação
julgada (com a coisa ou o estado-de-coisas)”. O julgar é um presumir intencional. Há, no
julgar, um visar ou intencionar (meinen) uma coisa ou um estado-de-coisas, e este
intencionar é, ao mesmo tempo, um presumir (vermeinen). Mas, o que é presumido
neste presumir intencional? Resposta: que isto ou aquilo é, se dá, acontece; de que isto
ou aquilo é deste ou daquele modo. O juízo, aquilo que é julgado no julgar, é, pois, uma
coisa ou estado-de-coisas presumido. O visar do juízo (judicativo), porém, pode estar
distante do real, do que é e como é de alguma coisa, de algum estado-de-coisa. Há,
porém, um caso de visar judicativo que é privilegiado, por ser um ter-consciência disso
ou daquilo. Este visar judicativo que tem consciência da coisa ela mesma se chama
evidência. Na evidência o que se dá é a coisa ela própria. Nela, o estado-de-coisas “está
presente como ele próprio” (p. 48). Aquele que julga, tem consciência deste estado de
coisas se dando em sua presença direta e imediata, em “carne e osso”, como ele mesmo
e nele mesmo. “Um julgar que simplesmente presume dirige-se (richtet sich), através de
uma transposição consciente (bewusstseinsmässig Überführung), para a evidência
correspondente de acordo com a própria coisa ou estado-de-coisas”. Quando isso
acontece se dá, então, o cumprimento de um presumir, a realização de um visar, aquilo

inferência, uma conclusão; e, isso, segundo determinadas leis puras, necessárias, não casuais,
independentes do conteúdo objetivo dos juízos.
Husserl chamava de Erfüllung, e que se costuma traduzir como “preenchimento” 143. A
transposição ou trasladação (Überführung) do sujeito que julga, de um visar ou presumir
que está longe da coisa para um visar ou presumir que está próximo dela, que a tem
presente, que está consciente dela, e ciente da correção de seu visar ou presumir, é
chamado por Husserl de “Synthesis der stimmenden Deckung” (Síntese do recobrimento
concordante). Podemos dizer que, no caso da evidência acontece uma coincidência
entre o visar e o visado, entre o presumir e o dar-se efetivo do presumido: o juízo
coincide com a coisa ou estado-de-coisas, ele concorda com o real. Evidência acontece,
portanto, como esta síntese do juízo (do seu visar ou presumir) com a coisa ou estado-
de-coisas julgados, é concordância.

Um cientista não se contenta com julgar, emitir juízos sobre o real. Ele quer, antes,
fundamentar os seus juízos, recorrendo à evidência. O juízo, falando-se em sentido
amplo, é um intencionar, um visar que tem em mente um ser (Seinsmeinung). O juízo
intenciona dizer que isto ou aquilo é, que isto ou aquilo é deste ou daquele modo.
Entretanto, assim como há um juízo e uma evidência predicativa, ou seja, própria do
enunciado ou predicação, também há um juízo e uma evidência pré-predicativos. “A
evidência predicativa contém a pré-predicativa”. O que é visado, o que é visto com
evidência, vem à expressão (kommt zum Audruck). E ciência lida com expressões. “Mas
a expressão enquanto tal pode ajustar-se (Anpassen) melhor ou pior ao que é visado e
por si próprio dado, portanto, ela própria tem a sua evidência ou não evidência, que vai
justamente com a predicação” (p. 49). A evidência pré-predicativa é, pois, o vir à
expressão da coisa mesma, o dar-se a si própria da coisa ou o dar-se a si próprio do
estado-de-coisas144.

143
“Erfüllung”, literalmente, significa “preenchimento”. Entretanto, a tradução literal por
“preenchimento” não corresponde à plenitude do uso deste termo. De fato, “Erfüllung” não significa pura
e simplesmente preenchimento, mas também cumprimento, realização, verificação ou averiguação,
atendimento, satisfação. Trata-se, pois, da realização de uma intenção ou de um visar, que pode ser
significativo, judicativo, desiderativo, volitivo, etc. Cfr. nota terminológica do tradutor das Investigações
Lógicas para o italiano, Giovanni Piana.
144
Seja-nos permitido, aqui, abrir um parêntese para trazer a concepção que Heidegger tem da evidência
pré-predicativa. No sentido da evidência pré-predicativa, evidente é o que se ilumina a partir de si mesmo
e em si mesmo. Isto que se evidencia se dá ao homem num perceber imediato, direto, natural. A recepção
desta evidência é o que os medievais chamavam de “acceptio”: aceitação, que, é diferente da
“suppositio”, suposição. Aceitar é perceber e receber aquilo que se mostra a si mesmo, o evidente. O que
se há de aceitar se mostra a si mesmo em si mesmo, na sua identidade. Na aceitação se recebe a própria
coisa em seu mostrar-se direto, imediato, natural. Na aceitação a própria coisa se identifica com aquilo
O § 5 trata de “evidência e a ideia de Ciência autêntica”. Husserl assim define evidência:
“evidência é a experiência de que algo é e é assim” (p. 49). Literalmente, Husserl diz:
evidência é a experiência do sendo (von Seiendem = do ente) e do sendo-assim (So-
Seiendem). Esta experiência consiste em “fitar espiritualmente a própria coisa” (p. 50):
um olhar em que a mente obtém o ente ele mesmo e o seu ser-assim. Quando algo
contraria a evidência, temos uma evidência negativa, a falsidade evidente. Já na vida
cotidiana, pré-científica, nós nos atemos a evidências. Mas, normalmente, no dia a dia,
as evidências são relativas. Já a Ciência, diz Husserl, aspira a verdades, “que
permaneçam válidas uma vez por todas e para qualquer um”, ou seja, ela procura
verdades que sejam imutáveis e universais, ao menos idealmente, mesmo se esta busca
exija uma aproximação ao infinito deste ideal. Ademais, a Ciência Universal, a Filosofia,
pretende alcançar a “universalidade sistemática do conhecimento” (p. 50), pois ela é a
ciência da “unitotalidade do ente enquanto tal” (All-Einheit des Seienden überhautpt).
Além disso, pertence também à ideia de Ciência e Filosofia uma “ordem de
conhecimento indo dos conhecimentos em si primeiros para os conhecimentos em si
posteriores”, sendo que o começo e a progressão se dão não arbitrariamente mas de
maneira fundada, isto é, segundo a “natureza das próprias coisas”. Daqui Husserl retira
um primeiro princípio metódico, que se expressa nas palavras: “não poderei (...) fazer
nem deixar valer nenhum juízo que eu não tenha formado a partir da evidência, a partir
das experiências em que a coisa ou o estado-de-coisas em questão estão para mim
presentes enquanto eles próprios” (p. 51). É a exposição do “Princípio de evidência”, que,
nas Ideias I, aparece com o nome de “Princípio dos princípios” da fenomenologia.
Relacionado com isso está o problema de a expressão (Ausdruck), a linguagem
(Sprache), ser adequada ao que se evidenciou e foi visto de modo pré-predicativo. Por
isso, a fenomenologia implica também num cuidado com a expressão, com a

que o homem diz dela. O que se pode, neste caso, é mostrar a coisa em sua identidade. Não se pode
demonstrar, pois, a demonstração implica em suposição, em conexão de proposições. Aristóteles, neste
sentido, dizia que é uma falta de educação (apaideusia) pedir demonstração daquilo que só se pode
mostrar numa identificação (Met. IV, 4, 1006 a 6 ss). As duas formas de admissão, a aceitação e a
suposição, não têm igual valor. A aceitação é a mais originária. Toda suposição se baseia, em última
instância, numa aceitação. Somente quando uma coisa ou um estado-de-coisas é aceito em sua presença,
em seu dar-se direto, imediato, natural, é que se podem construir suposições. Cfr. Heidegger, Seminários
de Zollikon, p. 34-35; 203.
terminologia, com a nova fundação e fixação de significados, orientados pelas visões
intelectivas que foram crescendo nas experiências de evidência.

O § 6 trata das “diferenciações da evidência” e da “exigência filosófica de uma evidência


apodítica e em si primeira”. O começo da Ciência deve se dar, como queria também
Descartes, numa certeza absoluta ou, o que é a mesma coisa, numa absoluta
indubitabilidade. Mas, diz Husserl, isto carece de uma clarificação. Nós temos infindas
experiências de evidência. Mas as evidências podem ser mais ou menos perfeitas.
Imperfeição, no tocante às evidências, significa “unilateralidade, relativa obscuridade,
indistinção na autodoação da coisa ou do estado-de-coisa” (p. 52). Neste caso, não se
tem um cumprimento ou preenchimento pleno do presumir intencional, especialmente
no tocante ao que é covisado ou pré-visado nesse presumir. As evidências vão sendo
aperfeiçoadas à medida que as experiências concordantes vão crescendo e o presumir
vai ser sendo cumprido, realizado, preenchido, verificado. No tocante às evidências, a
ideia de perfeição ou completude seria a de evidência adequada, deixando-se em aberto
se a ideia de evidência perfeita, isto é, adequada, não é no fim das contas um ideal, uma
ideia que, como gosta de dizer Husserl, “reside no infinito” (p. 53) 145.

Outra forma de perfeição da evidência, de dignidade superior, é a da “apoditicidade”.


Uma evidência pode ser não adequada e ser, porém, apodítica. Apoditicidade significa
“absoluta indubitabilidade”. Os princípios de uma ciência devem ter o caráter de uma
evidência apodítica146. Segundo Husserl, “toda e qualquer evidência é autocaptação de
um ser ou de um ser-assim (Selbsterfassung eines Seienden oder So-seienden) no modo
“ele próprio”, na plena certeza acerca deste ser, a qual, portanto, excluir qualquer

145
O adjetivo “adequada” referido a “evidência” significa, portanto, “perfeita”, no sentido de “completa”.
146
Heidegger trata da diferença entre “evidência assertórica” e “evidência apodítica”. Evidência
assertórica é a que se refere a existência de fatos, isto é, ao factual, a coisas e estados-de-coisa
“individuais”, ao não-necessário. “Evidência apodítica” se refere, porém, à essência, ao que é necessário,
ao que não pode não ser, e que não pode não ser de outro modo de como é. A evidência apodítica é uma
visão intelectiva das relações-de-essência. Ambas as formas de evidência podem ser conjugadas numa
conexão em que se dá a visão intelectiva da necessidade do ser-assim de um estado-de-coisas individual
a partir de razões essenciais do “individual posto” (Cfr. Heidegger, Prolegomena zur Geschichte des
Zeitbegriffs, GA Band 20, p. 68). Uma evidência pode ser apodítica e não ser absoluta, isto é,
incondicionada, como a evidência do enunciado “2 x 2 = 4”. Neste caso, trata-se de uma certeza
condicionada, pois a evidência deste enunciado depende de duas coisas: da premissa da igualdade e da
premissa da identidade – que o 2 é sempre idêntico a ele mesmo (cfr. Seminários de Zollikon, p. 38).
Leibniz falava de “verdades de fato” e de “verdades de essência”; Kant distinguia as modalidades do juízo
em assertórico, problemático e apodíctico.
dúvida” (p. 53). As evidências que se referem à experiência sensível147, que se referem
a fatos, isto é, a coisas e estados-de-coisa, não são necessárias e não excluem a
possibilidade e a pensabilidade de um não-ser, de um não-ser-assim. É que o ser pode
acabar se revelando, na experiência sensível, uma aparência (Schein). As evidências
deste tipo não resistem à reflexão crítica que quer excluir toda dúvida, que quer
constatar a “absoluta impensabilidade” do não-ser daquilo que é enunciado no juízo.
Evidência apodítica implica que aquilo que é julgado não pode não ser e não pode não
ser assim como é, isto é, implica a necessidade.

O § 8 declara que a “evidência acerca da existência do mundo não é apodítica” e que ela
deve, portanto, ser incluída na “subversão cartesiana”. Ao mundo nós nos confiamos,
comumente. Também as ciências costumam ser construídas sobre o chão do mundo, as
ciências empíricas, imediatamente, as ciências a priori, mediatamente. A existência do
mundo é dada numa experiência sensível universal. Entretanto, trata-se de uma
evidência assertória, factual, não essencial e não-necessária. Ademais, a evidência da
existência do mundo não é indubitável. Assim como aquilo que é experimentado na
experiência sensível individual pode ser considerado, posteriormente, como uma
aparência (Schein), do mesmo modo, a experiência sensível universal também, ou
melhor, aquilo que nela é experimentado, pode se revelar uma aparência, uma ilusão.
Afinal, não poderia ser assim que tudo quanto nós experimentamos fosse uma espécie
de “sonho coerente”? (p. 55). Conclusão: não basta pôr fora de validade todas as
ciências, “também ao seu terreno universal, o do mundo da experiência, deveremos nós
retirar a validade ingênua. O ser do mundo. Com base na evidência da experiência
natural, não poderá mais ser, para nós, um fato óbvio, mas deverá antes ser, ele próprio,
um simples fenômeno de validade” (p. 55).

O § 8 trata da “grande reversão” (Umwendung), para o ego cogito enquanto


subjetividade transcendental, que agora passa a ser o último chão do juízo, no qual a
filosofia encontra a sua radical fundação. O mundo que é, o mundo enquanto sendo
(seiende Welt), não é mais esse chão, mas sim a subjetividade transcendental, o “ego
cogito”. Aqui o fenomenólogo, o eu filosofante, o eu que medita, se abstém da crença
no ser (Seinsglauben) do mundo, com outras palavras, ele se abstém da crença na

147
Evidências assertóricas.
pretensão de ser (Seinsanspruch) do mundo (p. 56). Ele perde o mundo. Perder o mundo
significa, porém, perder não somente o mundo circundante concreto da vida, com a
natureza aí inserido, mas também o mundo da socialidade e da cultura, significa perder
não somente os seres que vivem no mundo natural, mas também perder os outros eus
com os quais ele compartilha este mundo natural e o mundo sociocultural, significa,
enfim, perder o seu próprio corpo, perder a si mesmo como uma coisa dentro mundo.
O mundo, para ele, já não é algo que é (seiend), é apenas algo que aparece, é apenas
um fenômeno de ser (Seinsphänomen) (p. 56). Neste momento, portanto, não há uma
decisão entre o ser (Sein) e a aparência (Schein) do mundo. O fenomenólogo se abstém
da crença no mundo, da crença no seu sentido (Sinn) e na sua validade (Validade) como
ser verdadeiro (als wahres Sein). O mundo é, agora, seu fenômeno, algo que aparece
para mim, sem que eu possa crer na sua pretensão de verdade, sem que eu possa decidir
se este aparecer é verdadeiro ser ou se é mera aparência.

Nesta abstenção, porém, em que se perde o mundo, o que é que se ganha? Resposta:
“a corrente (Strom) inteira da minha vida de experiência”. Esta vida (Leben) está aí para
mim (für mich) constantemente. Esta vida está aí presente para mim como um “campo
de presença” (Gegenwartsfelde) que se torna consciente de modo perceptivo, que se dá
na mais originária originalidade, como ela mesma. Ela se dá não somente como o
presente e como presença, mas também como o passado de uma recordação. “Posso
captar o presente como presente, o passado como passado, tal como ele próprio é” (p.
57). Assim, perdendo o mundo, Husserl desvela a vida da consciência e seu misterioso
nexo com a temporalidade. Desvela-se, aqui, o fluxo da vida (Lebenstrom), o seu fluir
constante, com a sua temporalidade própria. Se volto o olhar para esta vida, de início
percebo, de fato, o constante fluir de representações, juízos, atitudes valorativas,
decisões, posições de fins e de meios etc. O fenomenólogo agora volta o olhar, a atenção
da mente, para estas “cogitationes”, para estas vivências, sem pôr em jogo a validade,
sem crer na pretensão de verdade, daquilo que elas intencionam no mundo, deixando-
o ser apenas como “simples fenômeno” (p. 58).

Este universal pôr fora de validade (“inibir”, “pôr fora de jogo”) todas as tomadas de
posição perante o mundo objetivo pré-dado e, assim, desde logo, as tomadas de posição
de ser (as tomadas de posição a respeito do ser, da aparência, do ser de modo possível,
suposto, do ser provável e semelhantes) – ou, como também se costuma dizer, esta
epoché fenomenológica ou este pôr entre parênteses o mundo objetivo – não nos põe
perante um nada. Ao contrário, aquilo de que nos apropriamos precisamente por isso
ou, mais claramente, aquilo de que eu, aquele que medita, por isso mesmo me aproprio
é da minha vida pura com todas as suas vivências e todas as suas coisas visadas,
enquanto puramente visadas, o universo dos fenômenos no sentido da Fenomenologia
(p. 58).

Assim, tudo que é mundano, é tomado em consideração apenas enquanto se dá como


o cogitatum do ego cogito. Vale apenas enquanto é “para mim”, enquanto aquilo que
eu experimento, percebo, de que me recordo, em que penso, a respeito de que julgo,
aquilo que é objeto de minha valoração ou de meu desejo, etc. Ora, experimentar,
perceber, recordar, pensar, julgar, estimar, desejar, e coisas deste tipo, recebe em
Descartes o título de “cogito”. “O mundo não é para mim, em geral, outra coisa senão
um ser que, num tal cogito, está consciente e vale para mim” (p. 58). O seu sentido
(Sinn), a sua validade de ser (Seinsgeltung), universal ou específica, ele tem somente a
partir de tais “cogitationes”. O mundo com o qual eu me relaciono tem em mim próprio
a fonte de seu sentido e de sua validade. O mundo é mundo da minha consciência. A
minha consciência é consciência do mundo. Perder o mundo, perder, isto é, a crença na
sua validade em si, significa, pois, ganhar a mim mesmo “enquanto ego puro, com a
corrente pura de suas cogitationes” (p. 59). O ser do ego puro, do ego cogito, com suas
cogitationes, precede o ser natural do mundo. O seu ser é anterior ao ser do mundo,
isto é, ao seu sentido e à sua validade d ser. Este preceder, esta anterioridade, constitui
a transcendentalidade do ser do ego. O ser do ego puro, do ego cogito, é chamado,
portanto, de ser transcendental. A epoché, enquanto reconduz o mundo, enquanto
fenômeno, ao terreno do ser transcendental (do ego cogito), é chamada por isso de
“redução fenomenológico-transcendental”.

O § 9 fala do “alcance da evidência apodítica do “eu sou””. A questão agora é se esta


redução fenomenológico-transcendental possibilita uma evidência apodítica do ser da
subjetividade transcendental. Já Descartes descobriu a apoditicidade da evidência do
ego sum, respectivamente, do sum cogitans. Trata-se, pois, de uma evidência apodítica,
de uma certeza indubitável, pois o “eu duvido” já pressupõe, por si mesmo, o “eu sou”.
Mas, em que medida esta evidência serve apenas para o presente? Ela vale também
para o passado? É o problema do alcance da evidência apodítica que se põe aqui. Husserl
observa “que a adequação e a apoditicidade de uma evidência não têm de andar de
mãos dadas” (p. 60). Há uma experiência de si mesmo que é transcendental. “Nela, o
ego é originariamente acessível para si próprio” (p. 60). Mas esta experiência não
oferece, de uma vez, toda a vida da consciência. Ela oferece, a cada vez, apenas a sua
vivente auto-presença (die lebendige Selbstgegenwart). Mas, junto com isso que se
oferece como presente vivo da ego, se dá também, como algo que é presumido e visado
junto, o horizonte do não-experimentado. A este horizonte pertence o obscuro passado
próprio, como também as “faculdades transcendentais” e as propriedades habituais
que, a cada vez, pertencem ao eu. O “eu sou” é, pois, um horizonte aberto de
potencialidades e de habitualidades. A vida do ego sum, do ego cogito, do sum cogitans,
deixa presumir, assim, uma amplidão de experiências. O problema sobre a envergadura
ou alcance desta amplidão é que é o problema.

O § 10 apresenta um excurso sobre a falha de Descartes na “viragem transcendental”


(transzendentalen Wendung). Descartes se deixou trair por preconceitos, advindos não
só da escolástica, como mostraram Gilson e Koyré, mas também por preconceitos
advindos do seu deslumbramento com a ciência matemática da natureza. Ele quis fazer
do ego cogito uma proposição axiomática, o fundamento de uma ciência dedutiva-
explicativa do mundo, uma ciência nomológica148, demonstrada ordine geometrico149,
algo semelhante à ciência matemática da natureza. Em Descartes, o ego acaba sendo
interpretado como um “pedacinho do mundo”. O ego cogito puro se torna uma
“substantia cogitans”150, “mens sive animus”151. A mente, enquanto “res cogitans”
acaba se tornando o ponto de partida de inferências sobre o mundo, constituindo assim,
no dizer de Husserl, o contrasenso de um “realismo transcendental”. Para não cair nos
erros de Descartes é preciso ficar fiel ao princípio de evidência ou princípio da pura

148
Que trata das leis naturais.
149
“seguindo a ordem da geometria”. Outra expressão equivalente: “more geometrico”, expressão latina
que significa “à maneira da geometria”. É a ordem dos “Princípios” de Descartes: partindo de definições
e axiomas se deduzem teoremas, seguidos de corolários e esclarecimentos. Definição: determinação
completa e clara do significado de uma palavra ou de um conceito, e portanto, de um estado-de-coisas
com indicação de todas as notas necessárias, e só estas, de sua ordem. Axioma: princípio fundamental,
primeiro princípio, tese primeira, evidente por si mesma (evidência axiomática), indeduzível e isenta de
pressupostos; como pressuposto fundamental de toda demonstração, não é demonstrável em si mesmo;
só pode ser mostrado (na reflexão transcendental). Teorema: enunciado demonstrável numa teoria;
proposição especulativa, que serve de premissa a novos raciocínios. Corolário: proposição que deriva
imediatamente de uma outra em virtude apenas das leis da Lógica (= consequência formal).
150
“Substância pensante”.
151
“Mente ou ânimo”.
intuição, ou seja, não querer dizer mais do que aquilo que se vê, que se percebe no
modo da intuição ou evidência. Descartes realizou a maior de todas as descobertas sem,
contudo, captar o seu sentido próprio, o sentido da subjetividade transcendental.
“Assim, não transpôs a porta de entrada que conduz à autêntica Filosofia
Transcendental” (p. 62).

A primeira meditação termina com o § 11, que trata do “eu psicológico” e do “eu
transcendental”, bem como da “transcendência do mundo”. A vida, em sua validade de
ser (Seinsgeltung), permanece intocada, mesmo se nada se decidiu sobre o ser ou o não
ser do mundo. O eu, a vida do eu, não é um pedaço do mundo. O ego do “ego sum”, do
“ego cogito”, não é um homem, isto é, não é uma coisa intramundana, um ser psicofísico
que aparece no horizonte da experiência sensível, no mundo. O eu não é uma ocorrência
no mundo. Sua vida transcendental não coincide com a vida da alma deste ser psicofísico
que ocorre no mundo, e que é objeto da biologia, da antropologia, da psicologia. O eu
transcendental é o eu que medita, o eu que se experimenta a si mesmo
transcendentalmente, como sendo aquém do ser natural do mundo, como sendo
“fundamento de validação” (p. 63) de toda e qualquer validade e fundamento objetivos.

Através da epoché fenomenológica, reduzo o meu eu natural humano e a minha vida


anímica – o domínio da minha autoexperiência psicológica – ao meu eu fenomenológico-
transcendental, ao domínio da autoexperiência fenomenológico-transcendental. O
mundo objetivo, que é para mim, que para mim era e há-de ser, o único que para mim
pode ser, com todos os seus objetos, ganha a partir de mim próprio, digo eu, todo o
sentido e validade de ser que tem de cada vez para mim, a partir de mim enquanto
aquele eu transcendental que entra em cena, por vez primeira, precisamente com a
epoché transcendental-fenomenológica (p. 63).

Se, por um lado, o eu não é nenhum pedaço do mundo, também, por outro lado, o
mundo e cada objeto mundano não são um pedaço do meu eu. Isso quer dizer: não é
uma parte real (reell), um complexo de dados de sensação ou de atos que se achariam
em mim de modo real (reell). O mundo está “contido em mim”, mas apenas de modo
intencional, irreal (irreell). Ao mundo pertence o caráter de transcendência.
Transcendência do mundo significa: ele não é parte real de mim, está contido em mim
apenas de modo intencional, irreal, como aquilo de que eu tenho consciência, e eu sou
fonte de seu sentido e de sua validade de ser. O mundo é transcendente. O eu é
transcendental, é aquele que precede o mundo, como fonte de sentido e de validade de
ser, como fundamento e suporte da validade da transcendência do mundo.
I. 3. SEGUNDA MEDITAÇÃO

A segunda meditação se intitula, em alemão, “Freilegung des transzendentalen


Erfahrungsfeldes nach seinen universalem Strukturen”. A tradução de Pedro Alves diz:
“Abertura do campo de experiência transcendental segundo as suas estruturas
universais”. É importante a palavra “Freilegung”, traduzido como “abertura”. O verbo
“freilegen” significa abrir um caminho, desentulhar um caminho. Tem também o sentido
de pôr a descoberto. “Frei” é “livre”. “Legen” é “pôr”. Podemos interpretar esta palavra
como indicando o trabalho de liberar. Trata-se, pois, de uma “liberação” que se dá no
sentido de desencobrir um campo, tirar o que está entulhado nele, abrir caminhos nele,
torna-lo capaz de receber a semente, etc. Digamos que o trabalho da fenomenologia
transcendental aparece aqui como a “liberação” do “campo da experiência
transcendental”. Esta liberação se dá segundo, isto é, seguindo as “suas estruturas
universais”. Os §§ 12 a 22 tratam deste trabalho.

O § 12 trata da “ideia de uma fundamentação transcendental do conhecimento”. O “ego


transcendental” – transcendental no sentido do que precede, vem antes, está aquém
de todo o ser e conhecer objetivo – é o fundamento e o chão, no qual se passa todo o
conhecimento objetivo. A fenomenologia trabalha com uma nova ideia de
fundamentação do conhecimento. Trata-se, aqui, de uma fundamentação
transcendental, ou seja, de uma fundamentação do conhecimento objetivo na
subjetividade transcendental. A fundamentação não é entendida, como em Descartes,
a modo de uma fundamentação axiomática-dedutiva, em que uma proposição
fundamental, um axioma – no caso, o “cogito, ergo, sum” – serviria de premissa para
presumidas conclusões, ao modo da ordenação dos juízos na geometria (ordine
geometrico). Com a “epoché” se abre, se libera, uma esfera infinita de ser nova
enquanto esfera de uma experiência de novo tipo, a saber, a transcendental. Husserl
fala de uma “experiência transcendental”. No texto, de cara, não vem nenhuma
definição do que ele entende por “experiência transcendental”. O que seria, aqui,
experiência? A “apreensão imediata de algo dado” e dado “por si mesmo”, em sua
presença direta? Há uma experiência que não é do físico nem do psíquico? Uma
experiência do “ego cogito” enquanto transcendental, isto é, enquanto uma esfera de
ser que não é constituída, mas que é constituinte? Uma experiência do a priori? Husserl
parece apontar para a “dimensão” do a priori. Nós temos uma experiência do real,
efetivo (wirklich). Temos também uma experiência própria da fantasia. A experiência da
fantasia Husserl chama de “experiência do como-se”. Depois, ele trata de um terceiro
tipo de experiência, que implica consigo o “reino das puras possibilidades”, que são as
“possibilidades apriorísticas”. Logo em seguida, ele fala de uma “autoexperiência da vida
transcendental” e de uma “estrutura universal apodítica da experiência do eu”. Em que
consiste isso? Husserl apenas dá um exemplo, alude à “forma temporal imanente da
corrente das vivências”. Na autoexperiência da vida transcendental” se dá o tempo.
Como o tempo é, aqui, entendido? Como a forma pura do fluxo (Strom)152 das vivências.
Toda consciência é consciência de alguma coisa. Toda consciência-de é uma vivência:
um acontecimento da vida, da vida “transcendental”, isto é, da vida tomada não como
algo objetivo, mas como algo que precede a toda a objetividade. Consciência é também
o todo das vivências. As vivências, com suas intencionalidades típicas, fluem no fluxo da
consciência. O que “in-forma”, isto é, forma desde dentro (de modo imanente) este
fluxo é o tempo. Toda consciência só se forma e se estrutura em seu caráter intencional
a partir do tempo imanente, do tempo como forma a priori das vivências do eu. O tempo
seria uma estrutura que rege e forma todas as vivências. O tempo serve, pois, como um
exemplo de uma “estrutura universal apodítica da experiência do eu”. É universal pois
diz respeito não a este ou aquele eu em particular, mas à egoidade como tal, a todo e a
cada eu. É a priori, pois antecede estrutural-ontologicamente toda e qualquer vivência
enquanto tal. E traz consigo uma evidência apodítica: que se faz ver por si mesma.

Ao falar de uma “experiência transcendental” Husserl está indo além de todo o


empirismo, que só reconhece uma experiência natural, física ou psíquica. Estará indo
também além de Kant? É algo que se pode investigar... Qual o alcance ou a envergadura
da experiência? O § 13 fala da “necessidade de se começar por excluir o problema do
alcance do conhecimento transcendental”. A experiência é conhecimento que traz
consigo uma evidência privilegiada. Uma experiência transcendental, então, traz
consigo uma evidência ainda mais privilegiada, uma evidência apodítica (de certeza
absoluta, incondicionada; indubitável; necessária: em que se vê que algo é e não pode
não ser; é assim e não pode ser diversamente). Qual o alcance da experiência, ou

152
Ou corrente, entendida, no sentido da correnteza de um rio, em seu fluir contínuo.
melhor, do conhecimento transcendental? A colocação deste problema seria tarefa de
uma “crítica da autoexperiência transcendental”. Não se pode responder a este
problema logo de início. A resposta a este problema depende justamente da abertura
do campo da experiência transcendental. Não se deve delimita-lo dogmaticamente. É
preciso deixar que ele mesmo se mostre em todo o seu alcance.

Husserl fala de dois níveis de trabalho científico a ser feito. “No primeiro nível, o colossal
(...) domínio da autoexperiência transcendental deve ser percorrido”. Este percorrer
deve acontecer numa “simples entrega ao decurso concordante da evidência que lhe é
inerente”. Este nível ainda não é filosófico em sentido pleno. Falta, aqui, ainda uma
“crítica da experiência transcendental”. O segundo nível é justamente do da “crítica da
experiência transcendental”, e, a partir desta crítica, o da crítica do “conhecimento
transcendental em geral”.

A fenomenologia transcendental aparece, então, como uma ciência que “estabelece a


mais extrema contraposição com as ciências no sentido até aqui vigente”, ou seja, com
as ciências no sentido das “ciências objetivas”. Isso vale mesmo para as ciências que
tratam do “subjetivo”. É que as “ciências objetivas” lidam com o subjetivo-objetivado,
lidam com o “sujeito” que aparece como parte do mundo, com o sujeito que aparece,
por exemplo, como um animal, como um ente psicofísico dentro do mundo, como um
ente social, cultural, político, etc. A fenomenologia transcendental, entretanto,
pretende ser uma “ciência absolutamente subjetiva”, uma ciência que não trata da
subjetividade como algo já dado e posto no mundo, mas da subjetividade como fonte
de conhecimento, de sentido de ser e de validade do mundo enquanto tal. O “objeto”
da fenomenologia transcendental não é nenhum objeto no sentido de algo já dado e
posto no mundo. O “objeto” (Gegenstand) da fenomenologia transcendental é a
subjetividade constituinte, não a subjetividade constituída. Este “objeto” não depende
em nada da decisão sobre o ser ou não ser do mundo. É ab-soluto, solto em si e a partir
de si, independente, incondicionado.

A fenomenologia transcendental começa como pura egologia. De início o ego


meditante, filosofante, trata somente do que se lhe dá na imediata evidência de si
mesmo. Trata do ego e do que nele está incluído como conteúdo noemático-noético.
Isso impõe, de início, a aparência do solipsismo, ainda que transcendental. Os eus dos
outros, como “coisas” do mundo foram suspensos com a epoché. E outros eus
transcendentais ainda não emergiram no horizonte da meditação. O solipsismo se
revelará apenas uma aparência (Schein). A realização de ponta a ponta do caminho das
meditações acabarão conduzindo a uma “fenomenologia da intersubjetividade
transcendental”.

A fenomenologia transcendental de Husserl se desvia do encaminhamento de


pensamento tomado por Descartes. Descartes descobriu o “ego cogito, ego sum”, mas
não abriu, não liberou, o campo infinito da experiência transcendental. A evidência
obtida por ele ficou sem fruto. Descartes se desencaminhou por uma dupla omissão. Em
primeiro lugar, Descartes descurou a “clarificação do sentido puramente metodológico
da epoché transcendental”. Em segundo, descurou também “uma consideração atenta
do fato de que o ego pode explicitar a si próprio ao infinito e de modo sistemático,
através da experiência transcendental”. O ego é um campo de trabalho fenomenológico
prioritário. Mas, ao se tratar do ego trata-se também daquilo que lhe é correlato: “o
mundo no seu todo” (contudo, sem pressupor a sua validade de ser). A fenomenologia
transcendental, por trabalhar neste campo, está separada de todas as ciências positivas,
objetivas, está, por assim, dizer, no contrapé de todas elas.

O § 14 trata do “Fluxo das cogitationes” e do título “cogito-cogitatum”. O tema


fundamental da fenomenologia transcendental é o ego-cogito-cogitatum. O cogito é
entendido aqui, como em Descartes, no sentido amplo de consciência-de. Cada vivência
é uma consciência-de de uma forma típica. O que se chama de “vida da consciência” é
um fluxo de vivências, sendo que cada vivência tem a sua forma de se referir e se
direcionar, de visar e intencionar, aquilo que ela vivencia, o seu conteúdo intencional. O
eu vive nestas vivências a vida da consciência. Podem-se descrever psicologicamente as
vivências. No caso, estas vivências são tomadas como processos efetivos, psíquicos, de
um ente psicofísico que é o homem. Mas uma descrição psicológica, ainda que se
abstenha de teorias sobre as relações entre o corpo e a alma, não é ainda uma
propriamente fenomenologia transcendental. Se a fenomenologia transcendental se
baseasse no psíquico para explicar a constituição do mundo, então ela recairia no
psicologismo. A psicologia pura da consciência é paralela à fenomenologia
transcendental. O conteúdo de ambas pode ser o mesmo. O que diferencia uma da outra
é que a fenomenologia transcendental opera com a redução transcendental. Na
psicologia o homem é tomado como ser psicofísico que vive no mundo. O mundo é
tomado como existente em si mesmo. Na atitude da redução fenomenológica, porém,
o mundo não é tomado como realidade que tem uma validade de ser em si mesma, nela,
o mundo é tomado apenas como “fenômeno da realidade”, ou seja, como o mundo que
se dá e aparece à consciência.

Husserl observa que a epoché não muda nada no mundo, o que muda é o modo de se
relacionar com o mundo e de tomar o mundo em relação à consciência. A percepção de
uma mesa, continua sendo percepção de uma mesa. Só que agora, mesa não é tomada
como uma coisa ocorrente aí num mundo que é absolutamente dado. A mesa aparece
como objeto que se dá à consciência, como o que percebido na percepção. Cada vivência
da consciência é cada vez consciência disso e daquilo. Cada vivência da consciência
intenciona, visa, alguma coisa e traz em si esta coisa no modo do seu ser-intencionado.
Isso que é visado pela vivência da consciência e que ela traz em si mesma no modo do
seu ser-intencionado chama-se “cogitatum”. Na redução transcendental, pois, a mesa
não é mais uma coisa dada num mundo que existe de modo absoluto, incondicionado;
a mesa é um objeto visado pela consciência, no caso, ela é o percebido do perceber. O
percebido está no percepiente segundo o modo da percepção. A percepção de uma casa
visa uma casa, esta casa individual, mas a visa no modo da percepção. A recordação de
uma casa visa (intenciona) uma casa no modo da recordação (como casa recordada).
Outro modo é o de uma casa que é fantasiada. Outro modo é ainda o de uma casa que
está dada de modo perceptivo e que é objeto de um juízo predicativo. Em todas estas
vivências da consciência, a casa é objeto intencional. Intencionalidade é, portanto, a
propriedade da consciência de ser consciência de algo, de trazer em si, enquanto cogito,
o seu cogitatum.

O § 15 trata de reflexão natural e reflexão transcendental. O ato da consciência pode


ser reto e direto, voltado para aquilo de que se é consciente, ou pode flexionar de volta
para si mesmo, numa espécie de retrorreferência. Neste caso, temos uma re-flexão. Por
exemplo, eu posso voltar-me para uma casa numa percepção. Ou posso perceber a
minha própria percepção da casa, atentar para ela. Neste caso, pratico um ato de
reflexão. Há a reflexão natural, isto é, habitual, cotidiana, ou então, a reflexão
psicológica, em que o mundo é o chão dado de antemão sobre o qual se vive se pratica
a reflexão. E há a reflexão transcendental, em que a posição (tese) do mundo como
absoluta dado é inibida (epoché). A reflexão transcendental deve ser livre deste
preconceito. Depois, se na reflexão natural eu sou um participante interessado no
mundo, na reflexão transcendental eu sou um expectador desinteressado do que se dá
na consciência em sua correlação com o mundo. Neste caso os dados objetivos do
mundo são tomados como “cogitata” (plural de cogitatum), isto é, como objetos para
os atos da consciência, e apenas assim (cogitata enquanto cogitata).

O § 16 apresenta um excurso sobre o “ego cogito” como princípio necessário da


reflexão, tanto psicológica, quanto transcendental. O ego concreto é o tema da
descrição fenomenológica na reflexão transcendental. “Ou, para dizer de modo mais
preciso, eu, o fenomenólogo que medita, atribuo-me a tarefa universal do
desvendamento (Enthüllung) de mim mesmo enquanto eu transcendental na minha
plena concreção, por conseguinte, com todos os correlatos intencionais aí incluídos” (p.
76). Aqui vale observar a palavra “concreto”: vem de “concretum”, que é particípio
passado de “concrescere”: concrescer. Concreto é, portanto, o que concresceu (o que
cresceu com). A questão é: com o que concresce o ego? Como se dá a sua concreção?
Resposta: com os “correlatos intencionais”, isto é, com aquilo de que a consciência tem
consciência. A experiência transcendental desvenda assim um ego concreto
correlacionado com o mundo.

O § 17 fala da dupla direção de investigação da correlação consciência-mundo. A


investigação pode ir na direção do cogito, e, então, ser noética (nóesis = modos de
consciência); e pode ir na direção do cogitatum, e, então, ser noemática (nóema =
modos de ser daquilo de que se tem consciência). Fala também da síntese como forma
originária da consciência. Para que eu perceba um cubo, por exemplo, como um único e
mesmo cubo, não obstante os seus múltiplos aspectos, mostrados em diversos
momentos e perspectivas, eu preciso realizar uma síntese (composição) destes aspectos
múltiplos. Também a recordação se dá graças à elaboração da síntese.

O § 18 fala da identificação como forma fundamental de síntese. Esta é uma síntese que
decorre passivamente e que abrange tudo, “sob a forma da contínua consciência interna
do tempo”. Uma coisa é a temporalidade objetiva do cubo percebido. Outra coisa é a
temporalidade interna do perceber de um cubo. O ato de perceber tem trechos e fases
diversos. Em cada fase do perceber, alguns aspectos são mostrados. Mas não seria
possível perceber um cubo como o único e mesmo cubo, se todas as aparições do cubo
não pudessem ser ligadas a uma consciência “em que se constitui a unidade de uma
objetividade intencional, enquanto a mesma de uma multiplicidade de modos de
aparição” (p. 80). O objeto da consciência (tanto real, como o físico e o psíquico, quanto
o categorial) é, portanto, constituído em sua unidade e identidade na consciência e pela
consciência. É, enquanto constituído, uma realização intencional (intentionale Leistung)
da síntese da consciência. Há a síntese passiva, que é de objetos reais; e a síntese ativa,
que é de objetos categoriais.

O § 19 fala de “atualidade e potencialidade da vida intencional”. Atualidade é o caráter


de ser que diz respeito ao que é ou está em ato, isto é, em obra, em ação. Potencialidade
é o caráter de ser do que é possível, não, porém, no modo de uma possibilidade abstrata,
mas sim no modo de uma possibilidade concreta, de uma virtualidade (possibilidade pré-
delineada): “Toda e qualquer atualidade implica, antes, as suas potencialidades, que não
são possibilidades vazias, mas, sim, possibilidades que, na vivência atual respectiva,
estão intencionalmente pré-delineadas quanto ao conteúdo e, sobretudo, dotadas do
caráter de serem algo a realizar pelo eu” (p. 82). Isso quer dizer que cada vivência traz
consigo um horizonte intencional, que pré-delineia as possíveis mudanças no fluxo
temporal da vida da consciência. A percepção, por exemplo, sempre traz consigo
retensão e protensão. Vamos tentar esclarecer isto. Percepções surgem de percepções
e conduzem a percepções. Uma percepção só é possível enquanto provém de outras ou
conduz a outras. A coisa só se dá como idêntica a partir de uma captação dinâmica,
constituída no fluxo motivacional de retensões e protensões, que, por sua vez, supõe o
transcendental e-assim-por-diante da percepção. Para termos uma coisa da percepção
de modo “plástico” diante de nós, precisamos apreender a visão particular como um
momento somente no contexto vivencial do andar em torno dela. A vivência particular
presente contém vivências futuras e passadas, ou melhor, vivências pós-presentes e
ante-presentes. O intuitivo ter-diante-de-si uma coisa espacial em sua plasticidade e
concreticidade abraça a coisa, por assim dizer, com dois braços: o braço das retenções
e o das protensões. A figura plástica e concreta da coisa da percepção é uma forma de
realidade efetiva-dinâmica, que só pode ser captada em sua mobilidade. O estar no
espaço da coisa é, fundamentalmente, um preencher espaço, um ser-arrumado e um
estar-posicionado dentro de um contexto espacial de múltiplos “em” possíveis. Daí
resulta que o perceber de uma coisa como coisa espacial supõe já sempre a vivência do
tempo. Cada ato de percepção traz consigo o horizonte temporal que a ele pertence, o
qual deve ter sido já sempre possibilitado, a fim de que possam se dar protensões e
retensões, mas também recordações e expectativas. Contemplando uma determinada
coisa da percepção, eu vejo não somente esta coisa, mas também o meu advir a ela,
bem como o meu partir dela. Cada percepção atual é a contração de uma história
perceptiva. Eu vejo tanto melhor quanto mais eu deixo estar viva, na mirada atual da
coisa, esta história, que é a história da minha percepção da coisa e, ao mesmo tempo, a
“história” da coisa percebida mesma.

O § 20 trata do “tipo peculiar da análise intencional”. Análise quer dizer decomposição,


partição. A análise intencional consiste no “desvendamento (Enthüllung) das
potencialidades implicadas nas atualidades de consciência, desvendamento com que se
realiza, sob o aspecto noemático, a explicitação (Auslegung), o tornar distinto
(Verdeutlichung) e, eventualmente, a aclaração (Klärung) do que é visado segundo a
consciência, do sentido objetivo” (p. 84). Todo cogito é um visar. O cogitatum, o visado,
por sua vez, é um “plus”, um mais, no sentido de que ultrapassa o que é explicitamente
visado e visa junto algo de implícito. Na análise intencional, por outro lado, o
fenomenólogo “penetra, com o seu olhar reflexivo, na vida cognitiva anônima, desvenda
os processos sintéticos determinados dos modos de consciência múltiplos e, ainda mais
para trás, os modos do comportamento egoico que tornam compreensível o ser-pura-
e-simplesmente-visado-para-o-eu, o ser intuitivo ou não intuitivo do objectual” (p. 85-
86). Pela análise intencional, o fenomenólogo descobre que, “no fluxo da síntese
intencional, que cria a unidade em toda consciência e que constitui, noética e
noematicamente, a unidade do sentido objetivo, impera uma típica (Typik) de essência,
captável por conceitos rigorosos” (p. 88).

O § 21 apresenta o objeto intencional como “fio condutor transcendental”. A “típica de


essência” generalíssima do fluxo da síntese intencional se apresenta no esquema ego-
cogito-cogitatum. A ela pertencem uma série de tipos particulares (Sondertypen)
noético-noemáticos: percepção, retenção, recordação iterativa, expectativa,
significação, ilustração intuitiva analógica, etc. Os objetos intencionais correlatos podem
trazer o caráter de objetividades reais (que se constituem numa síntese passiva) ou
então de objetividades categoriais (que se constituem numa síntese ativa: atos de
síntese e atos de ideação). Modos de ser dos objetos correspondem a modos de ser da
consciência. Estes, os modos de ser da consciência, permanecem sempre vinculados a
uma típica estrutural (Strukturtypik). “Explicitar sistematicamente essa típica estrutural
é precisamente a tarefa da teoria transcendental, a qual, quando toma como fio
condutor uma generalidade objetiva, se chama teoria da constituição transcendental do
objeto em geral enquanto objeto da correspondente forma ou categoria, ou, no ponto
supremo, da correspondente região” (p. 90). A teoria transcendental requer assim, por
um lado, uma teoria do objeto em geral, e, por conseguinte, uma teoria dos diversos
tipos de objetividades (reais ou categoriais), e, por outro lado, uma teoria da percepção,
uma teoria da significação, uma teoria do juízo, uma teoria da vontade, etc. Objetos
reais e ideais são, assim, fio condutor para a investigação dos modos de consciência em
que eles são constituídos. Para além dos “objetos objetivos”, temos também os “objetos
subjetivos” (vivências imanentes). Toda esta investigação constitutiva (que trata da
constituição dos objetos e suas objetividades nos modos de ser da consciência)
remetem de volta para o “ego na universalidade do seu ser e da sua vida”:

Se tomarmos o mundo objetivo unitário como fio condutor transcendental, então ele
remete para a síntese das percepções objetivas e das outras intuições objetivas
ocorrentes, síntese que se estende ao longo da unidade da vida no seu todo e em virtude
da qual o mundo não só está a todo o momento consciente como unidade, como pode
mesmo tornar-se objeto temático. Em conformidade, o mundo é um problema egológico
universal, do mesmo modo que o é, na direção puramente imanente do olhar, o todo da
vida de consciência na sua temporalidade imanente (p. 91).

O § 22 trata, justamente, da “ideia da unidade universal de todos os objetos”, ou seja,


do mundo objetivo, da tarefa do esclarecimento constitutivo dele. “Cada objeto, cada
objeto em geral (também cada objeto imanente), designa uma estrutura regular do ego
transcendental” (p. 91). A subjetividade transcendental não é um caos de vivências
intencionais, nem mesmo um caos de tipos constitutivos. Em lugar do caos temos uma
ordem estrutural de tipos de vivências correlacionados com os tipos de objetividades.
“A totalidade dos objetos e dos tipos de objeto concebíveis – ou, dito de modo
transcendental, concebíveis para mim enquanto ego transcendental – não é nenhum
caos e, correlativamente, também não o são a totalidade dos tipos de infinitas
multiplicidades que correspondem aos tipos de objeto, os quais se pertencem noética e
noematicamente, de acordo com a sua síntese possível” (p. 91-92).
I.4. TERCEIRA MEDITAÇÃO

A terceira meditação trata da “problemática constitutiva”. À luz desta coloca a questão


sobre “verdade e efetividade” (Wirklichkeit). O § 23 traz à tona que a investigação
constitutiva descobre como correlatos, por um lado, a razão (Vernunft) e o ser e a
verdade; e, por outro lado, a desrazão (Unvernunft) e o não-ser e a falsidade. Mas, o que
significa “razão”? Husserl diz:

Razão não é nenhuma faculdade contingente e fática, não é um nome para fatos
contingentes possíveis, mas antes para uma forma estrutural, essencial e universal, da
subjetividade transcendental em geral. Razão remete para possibilidades de confirmação,
e estas, por seu turno, ultimamente para o tornar evidente e para o ter-na-evidência (p.
94).
O § 24 trata, justamente, do tema da “evidência como autodoação” e de suas “variações”.
Evidência quer dizer “autoaparição”, ou seja, o “apresentar-se-a-si-próprio”, o “dar-se-a-si-
próprio de uma coisa, de um estado-de-coisas, de uma generalidade, de um valor, etc.”.
Evidência é, portanto, um modo de autoaparição, autoapresentação, autodoação, no modo
definitivo da “coisa mesma aí” (Selbst da), do “intuível imediatamente” (unmittelbar
anschaulich), do “originalmente dado” (originaliter gegeben). É o oposto de visar algo (uma
coisa, um estado de coisas, uma generalidade, um valor), de modo confuso ou vazio. Há uma
conexão entre evidência e experiência. Experiência, num sentido comum, é uma evidência
destacada, singular, especial. Do mesmo modo, evidência, qualquer que seja ela, é experiência,
num sentido o mais vasto, e, no entanto, essencialmente unitário. No sentido mais amplo,
evidência é um “fenômeno originário universal da vida intencional” (ein allgemeines
Urphänomen des intentionalen Lebens) (p. 94), é um “traço fundamental da vida intencional
qualquer que seja ela” (Grundzug des intentionalen Lebens überhaupt) (p. 95). Husserl esclarece:

Cada consciência em geral ou tem já o caráter da evidência (ou seja, é autodoadora a


respeito do seu objeto intencional) ou está, por essência, ordenada à passagem para a
autodoação, por conseguinte, à passagem para sínteses de confirmação, que pertencem,
por essência, ao domínio do eu posso (p. 95).

Quando a consciência-de-algo tem o seu visado se autodoando direta e imediatamente,


então ela está na experiência da evidência. Mas a consciência pode visar algo de modo
vazio, apenas a modo de uma presunção (ato de presumir). Então ela precisa de uma
confirmação (Bewährung): se aquilo que ela presume é e é tal como ela presume ou
não. No entanto, no processo da confirmação, a resposta pode ser afirmativa ou
negativa. Isto é, pode dar-se a evidência de que a coisa mesma (ou o estado-de-coisas,
etc.), não simplesmente não é, ou não é tal como se presumia. No dizer de Husserl: “no
processo de confirmação, a confirmação pode reverter-se no seu negativo, pode surgir,
em vez do próprio visado, um outro, e seguramente no modo do ele próprio, com o que
a posição do objeto visado fracassa e este assume, pelo seu lado, o caráter de nulidade”
(p. 95). Assim, pode-se ter uma evidência positiva (de que algo é e é assim como se
presumia) ou uma evidência negativa (de que algo não é e não é assim como se
presumia). Com outras palavras “não-ser (Nicht-sein) é apenas uma modalidade do ser
puro e simples (Modalität des Seins schlechthin), da certeza de ser (Seinsgewissheit) ”
(p. 95). A evidência tem como correlatos o ser e não-ser e suas modificações modais:
ser-possível, ser-provável, ser-duvidoso, etc. Também os atos afetivos (do sentir) e
volitivos (do querer) têm a sua própria experiência de evidência. Os atos do sentir têm
como correlatos os valores; os atos do querer têm como correlato o bem. Assim, o sentir
pode ter ou não ter a evidência do ser-valioso em referência àquilo que se sente, o
querer pode ter ou não ter a evidência do ser-bom em referência àquilo que se quer.

O § 25 trata de “efetividade” [realidade efetiva (Wirklichkeit)] e quase-efetividade


[como-se-fosse-realidade-efetiva (Quasi-Wirklichkeit)]. Realidade efetiva e quase-
realidade efetiva são determinados em referência às modalidades de ser. São
modalidades da efetividade: ser efetivamente, ser efetivamente provável, ser
efetivamente duvidoso, ser efetivamente nulo (nichtig), etc. A estas correspondem
modos de consciência da posicionalidade (atos que põem algo sendo efetivamente,
como sendo efetivamente provável, duvidoso, nulo, etc.). A quase-efetividade pertence
ao domínio da não-efetividade, da não realidade-efetiva, ou melhor, da possibilidade.
Por “possibilidade” entende-se, aqui, “simples concebibilidade” (blosse Erdenklichkeit).
O “possível” coincide, aqui, com o “imaginável”, com o “pensável”, com o “concebível”.
Vem à luz num figurar-se (Sich-denken), num fantasiar (phantasieren), “como se algo
fosse”. O modo de consciência da fantasia não põe algo como efetivamente dado,
apenas põe algo como se fosse, como se fosse assim e assim, etc. Ele desvela, assim,
possibilidades de ser. Também a fantasia (o como-se-fosse) tem uma função importante
como “modo de tornar evidente”, pois ela oferece uma “intuição prefigurativa”
(vorverbildlichenden Anschaung). Trata-se de uma visão que de antemão figura,
imagina, como seria algo. Esta intuição pode conceder preenchimento a um presumir
vazio, isto é, pode confirmar ou não uma presunção. Trata-se de uma “intuição que traz
implicitamente consigo o sentido de que, se chegasse a ser direta, autodoadora, daria
um preenchimento (Erfüllung = preenchimento, cumprimento, plenificação) que
confirmaria a visada no seu sentido de ser” (p. 96). Quer dizer: a intuição prefigurativa,
alcançada na fantasia, oferece a “possibilidade de ser” de um conteúdo.

O § 26 trata da “efetividade como correlato da confirmação evidente”. Na crença, nós


tomamos objetos como válidos para nós (objeto, aqui, tomado em sentido bem amplo:
coisas, vivências, números, estados-de-coisa, leis, teorias, etc.). A crença é um modo
posicional da consciência (ela põe algo como válido-para-mim). A segurança, porém,
sobre o ser efetivo de alguma coisa só se alcança mediante a “síntese da confirmação
evidente, a qual é autodoadora da reta ou verdadeira efetividade” (p. 97). Só a evidência
“faz com que tenha sentido para nós o ser efetivo, verdadeiro, a reta validade de um
objeto, seja qual for a sua forma ou tipo, com todas as determinações que, para nós, lhe
pertencem sob o título de ser-assim verdadeiro” (p. 97). A verdade é entendida, aqui,
como adequação entre o que se presume e o que se mostra na experiência da evidência,
ou seja, como “síntese de confirmação”, que é operada pela razão, entendida, como
acima (p. 94), a modo de forma estrutural, essencial e universal, da subjetividade
transcendental em geral. Esta, a subjetividade transcendental, é o sustentáculo, a
condição de possibilidade, da síntese da confirmação, é o seu “fundamento
transcendental último” (p. 97).

O § 27 fala de “evidência habitual e potencial” e trata da constituição daquilo a que nos


referimos como “objeto que está sendo” ou “objeto que é” (seiendes Gegenstand).
“Cada evidência institui para mim uma posse permanente”. “Posse” (Habe): algo que eu
tenho, algo a que eu sempre de novo me atenho, com o que eu posso sempre de novo
me relacionar (haben = ter; ater-se a; relacionar-se com). A realidade efetiva é algo que
me é dado numa evidência habitual, pois eu posso sempre de novo retornar a ela.
Também a evidência de dados imanentes me é dada numa evidência habitual. Eu posso,
sempre de novo, me recordar de algo, isto é, acessar na minha memória uma
determinada lembrança de determinado fato vivido. Este “sempre de novo” dá o caráter
de iteração (repetição) da evidência habitual. O “eu posso sempre de novo” dá a
característica de potencialidade da evidência habitual (potentia > potere = poder). Por
isso Husserl fala de “evidência habitual e potencial”. O poder repetir uma evidência
adquirida é que constitui o sentido noemático do “objeto que está sendo”, do “objeto
que é”, no sentido de um ser que persiste e permanece (stehendes und bleibendes Sein).
O sentido noemático “Ser permanente” (bleibendes Sein), atribuído a um ente real ou
ideal, ou a um mundo real ou ideal, se constitui, pois, a partir de uma evidência habitual
e potencial, isto é, a partir de uma evidência adquirida que pode ser sempre de novo
restituída. O sentido noemático do “em si” de um ente, de um mundo, de uma verdade
pressupõe a evidência habitual e potencial. A evidência habitual e potencial, por sua vez,
se funda em “certas potencialidades fundadas no eu transcendental e na sua vida” e
remete para “potencialidades da infinitude das visadas que estão sinteticamente
referidas a uma e mesma coisa em geral” e também para “potencialidades da sua
confirmação” (p. 98).

O § 28 fala da “evidência presuntiva da experiência do mundo” e do “mundo como ideia


correlativa de uma perfeita evidência da experiência”. O que chamamos de “mundo” é
um sentido noemático de ser (= a totalidade de tudo o que está efetivamente sendo ou
de tudo o que efetivamente é). Ao mundo atribuímos o caráter de transcendência, isto
é, o caráter de ser “em si”, de ultrapassar a consciência, de transcendê-la. O “em si” no
entanto é um sentido de ser noemático, constituído na experiência e desde a
experiência, portanto, num “para nós”. Não há mundo sem consciência de mundo. O
mundo transcendente é, pois, constituído a partir da subjetividade transcendental:

Que o ser do mundo seja, deste modo e mesmo na evidência autodoadora, transcendente
à consciência e que permaneça necessariamente transcendente, é coisa que não é
alterada por a vida da consciência ser a única instância em que todo o transcendente se
constitui como algo inseparável, e por ela, especialmente enquanto consciência de
mundo, trazer em si o sentido mundo e também o sentido este mundo que efetivamente
é. De um modo derradeiro, é somente o desvendamento dos horizontes de experiência
que esclarece a efetividade do mundo e sua transcendência, e que as patenteia, então,
como inseparáveis do sentido e da efetividade de ser da subjetividade transcendental
constituinte (p. 99).

“Mundo transcendente, efetivamente existente” é, portanto, um sentido noemático de


ser constituído a partir da subjetividade transcendental. “Mundo” é uma ideia: “uma
ideia correlativa à ideia de uma perfeita evidência de experiência”, uma ideia “de uma
síntese completa de experiências possíveis” (p. 100).
O § 29 trata de “regiões ontológico-formais e ontológico-materiais” no contexto da
tarefa da investigação da “constituição transcendental” da “objetividade que é” (seiende
Gegenständlichkeit). Esta investigação inclui, por um lado, investigações ontológico-
formais, que têm em vista o sentido noemático “objeto em geral” (Gegestand
überhaupt); por outro lado, investigações ontológico-materiais, que visam regiões do
mundo objetivo (como, por exemplo, natureza, comunidade humana, cultura, etc). A
investigação da constituição do objeto em geral, como também, das regiões do mundo
objetivo requer o “desvendamento da intencionalidade”, ou seja, a elucidação de como
a “edificação intencional” das suas “evidências constitutivas” (p. 101).
I.5. QUARTA MEDITAÇÃO

A quarta meditação trata do desdobramento dos problemas constitutivos do ego


transcendental mesmo. O § 30 se refere ao “ego transcendental” como “inseparável das
suas vivências”. Afirma que “o ego transcendental (ou a alma, no paralelismo
psicológico) só é o que é em relação com objetividades intencionais” (p. 103). Os objetos
intencionais podem ser imanentes (que se dão numa experiência interna da consciência)
ou transcendentes (mundanos: que se dão numa experiência externa da consciência). O
ego transcendental tem como correlatos sistemas de objetos intencionais, quer
imanentes, quer transcendentes.

O § 31 trata do “eu” como “polo idêntico das vivências”. “O próprio ego é para si um ser
numa evidência contínua, portanto, a si em si mesmo continuamente se constituindo
enquanto ser” (p. 104). O “ego não se capta apenas como vida fluente, mas, sim, como
eu, como o eu que vive isto e aquilo, que vive através deste e daquele cogito como o
mesmo” (p. 104). Assim, a correlação intencional tem dois polos. Um polo é o do
“cogitatum”, que se abre como sistemas de objetos intencionais. Outro polo é o do
“cogito” que reconduz a um “eu idêntico”, isto é, que permanece o mesmo, que é algo
como a fonte das “cogitationes” e que “vive em todas as vivências, enquanto consciência
ativa ou enquanto afetado, e que, através e ao longo das vivências, está referido a todos
os polos-objeto” (p. 104).

O § 32 trata do eu como “substrato de habitualidades”. A vida do eu se rege pela


“legalidade da gênese transcendental”. Em virtude desta legalidade, “com cada ato que
dele irradia com um novo sentido objetivo, este eu adquire uma propriedade nova
permanente” (p. 104). O exemplo dado por Husserl é o da decisão. Se eu, num ato
judicativo (= de julgar), me decido pelo ser ou ser-assim de algo, o ato é efêmero, mas
“eu sou, de um modo permanente, o eu que se decidiu desta ou daquela maneira”, ou
seja, um eu que tem tal ou tal convicção. Decisões valorativas (de atos de sentimento)
e volitivas (de atos de vontade) também criam hábitos, isto é, disposições permanentes
que determinam o eu deste ou daquele modo. “Eu decido-me – a vivência de ato deflui,
mas a decisão persiste duradouramente na sua validade, quer passivamente mergulhe
num sono pesado, quer viva em outros atos; correlativamente, eu sou, de agora em
diante, aquele que está assim decidido, e sou-o enquanto não tiver abandonado a
decisão” (p. 105). O eu, nas decisões que toma, nas convicções que cria, “mostra um
caráter pessoal” (p. 106).

O § 33 trata da “plena concreção do eu enquanto mônada” e põe “o problema da sua


autoconstituição”. Aqui aparece a “palavra leibniziana” “mônada”. A mônada não
simplesmente o eu enquanto polo idêntico e substrato de habitualidades, mas sim o
“ego tomado na sua plena concreção” (p. 106). Este ego traz consigo a evidência de um
mundo circundante, que é para ele de maneira constante. Este ego traz consigo também
a evidência de si mesmo. “Eu sou para mim mesmo e estou-me dado constantemente,
através da evidência da experiência, como eu próprio (Ich selbst) ” (p. 107). Isso levanta
o problema sobre a autoconstituição do ego, isto é, como é que o ego se constitui a si
mesmo. Como o ego é a base transcendental da constituição de todos os objetos
possíveis, então a investigação sobre a autoconstituição do ego decide sobre os
problemas das constituições de todos os tipos de objetos e também da constituição do
objeto em geral:

Dado que o ego concreto monádico compreende a inteira vida de consciência, efetiva e
potencial, será então claro que o problema da explicitação fenomenológica
(phänomenologische Auslegung) deste ego monádico (o problema da sua constituição
para si próprio) deve compreender todos os problemas constitutivos em geral. Como
consequência subsequente, resulta a coincidência da fenomenologia desta
autoconstituição com a Fenomenologia em geral (p. 107).

O § 34 trata da configuração principial (prinzipielle Ausgestaltung) do método


fenomenológico e da análise transcendental enquanto eidética. Surge a necessidade de
refletir mais uma vez sobre o método fenomenológico antes de clarificar melhor a
fenomenologia genética já iniciada com a apresentação do eu como polo e substrato de
habitualidades. Ao mesmo tempo este § 34 faz uma passagem da descrição da
experiência transcendental para o método da descrição eidética. A redução
fenomenológica conduziu ao ego transcendental monádico, enquanto ego concreto,
ego fático, que é absoluto (solto em si mesmo), uno e único. A descrição eidética dá um
passo a mais. Ela visa “possibilidades puras (não factuais) e “necessidades de essência”,
estruturas “a priori”, tipos de vivências intencionais (por exemplo, percepção, retenção,
recordação iterativa, asserir, ter-prazer-em-algo, et.). Se a descrição abstrai (prescinde)
de toda factualidade e varia as possibilidades puras (não factuais) de uma vivência, por
exemplo, da percepção, ela capta, então, o seu eidos. O eidos da percepção é a sua
essência, a sua estrutura geral típica, o que implica nas necessidades de essência que
regem a priori o dar-se de suas possibilidades, “cuja extensão ideal é constituída de
todas as percepções idealiter [idealmente] possíveis enquanto concebibilidades [o que
se pode imaginar e conceber] puras” (p. 109). Necessidade de essência é aquilo que a
priori rege toda a possibilidade e se aplica a qualquer caso singular. Assim, uma análise
eidética da percepção buscaria o que é que necessariamente e geralmente se dá em
toda e qualquer percepção. A essência da percepção é aquilo sem o que uma percepção
não pode ser percepção. A evidência intuitiva das possibilidades puras (que se obtém
pela imaginação que varia as possibilidades puras) tem como correlato uma “consciência
de generalidade intuitiva e apodítica”. A intuição eidética é a visão (apreensão) de algo
de universal e incondicionado: “O próprio eidos é algo universal, visto ou visível, algo
puro incondicionado, a saber, não condicionado por qualquer fato segundo o seu
sentido intuitivo próprio” (p. 109). O eidos é algo de a priori: “Ele está antes de todos os
conceitos, no sentido de significações verbais, as quais, enquanto puros conceitos, terão
antes de se ajustar a ele” (p. 109). Assim como se pode alcançar uma intuição eidética
de um tipo de vivência, por exemplo, da percepção, pode-se também alcançar uma
intuição eidética do ego transcendental. Agora não se considera mais este ou aquele
ego transcendental fático, mas sim o “eidos ego” (p. 110). A intuição eidética do ego se
dá à medida que o fenomenólogo, partindo de seu ego fático, pela imaginação, varia as
possibilidades de ego, abstraindo das factualidades, tentando apreender aquilo que
necessariamente, universalmente e a priori é constitutivo de todo e qualquer ego
enquanto ego.

A Fenomenologia eidética pesquisa, portanto, o a priori universal sem o qual não seria
concebível o eu e um eu transcendental em geral, ou, dado que toda e qualquer
generalidade de essência tem o valor de uma legalidade inquebrantável, ela pesquisa a
legalidade universal de essência que prescreve o seu sentido possível (juntamente com o
seu oposto, o contrassenso) a toda e qualquer asserção fatual sobre o transcendental (p.
110).

A fenomenologia eidética é a primeira realização de uma ciência filosófica, a saber, da


“Filosofia Primeira”. É preciso passar do fato e factual para as possibilidades puras e daí
paras as necessidades de essência e seus princípios apodíticos. Junto com a redução
fenomenológica, a intuição eidética é um momento essencial do método
fenomenológico transcendental: “Assim nos elevamos à visão intelectiva metódica de
que, a par da redução fenomenológica, a intuição eidética é a forma fundamental de
todos os métodos transcendentais particulares, que ambas definem de ponta a ponta o
reto sentido de uma Fenomenologia Transcendental” (p. 111).

O § 35 traz um excurso sobre a “Psicologia interna eidética”. A psicologia é ciência


positiva (não transcendental). Ela é empírica: desponta da experiência interna. Há, no
entanto, certo paralelismo entre a fenomenologia transcendental e a psicologia interna
eidética. O que é o ego transcendental concreto (monádico) na fenomenologia
transcendental é o “eu-homem”, respectivamente, a alma, na psicologia interna.
Também à psicologia pode-se aplicar o método da intuição eidética. Uma psicologia
interna eidética seria uma “teoria eidética pura da alma”. No caso, a intuição eidética
visaria o “eidos alma”.

O § 36 trata do “ego transcendental como universo de formas possíveis de vivência”. “O


a priori universal, que pertence a um ego transcendental enquanto tal, é uma forma de
essência que encerra em si uma infinidade de formas, de tipos apriorísticos de possíveis
atualidades e potencialidades da vida, juntamente com os objetos a constituir nela como
sendo efetivamente” (p. 112). As formas ou tipos singulares de vida não se compõem
arbitrariamente, quer no espaço (coexistência) quer no tempo (sucessão). A
compossibilidade (o ser compossíveis) dos tipos singulares de vida se regula de modo
essencial. Assim, a possibilidade ou a potencialidade de uma criança tornar-se cientista
quando adulta, está assentada numa necessidade de essência: a do homem enquanto
“animal rationale”. Um cientista é uma forma possível de vida, mas esta forma se
assenta no ser racional do homem. Entretanto, um homem não pode ser, desde criança,
cientista. Ele precisa de tempo para desenvolver a potencialidade desta forma de vida.
Há, pois, “legalidades de essência universais da coexistência e da sucessão temporais
egoicas”. Pensemos, por exemplo, nas restrições que as idades da vida impõem aos
seres humanos. A temporalidade rege todas as realizações das formas ou tipos de vida,
suas possibilidades de coexistir e de se suceder: “Pois, seja o que for que surja no meu
ego e, eideticamente, num ego em geral – sejam vivências intencionais, unidades
constituídas, habitualidades egoicas –, tudo tem a sua temporalidade e toma parte,
neste aspecto, no sistema de formas da temporalidade universal, com a qual se constitui
para si mesmo cada ego concebível” (p. 113).

O § 37 aprofunda o tema da temporalidade. Trata do “tempo como forma universal de


toda e qualquer gênese egológica”. As leis essenciais de compossibilidade de formas de
vida (potencialidades e atualidades) são regras que regulam a simultaneidade e a
sucessão do seu poder-ser. São leis do “se – então”, logo, leis de causalidade, em sentido
lato. No entanto, como a palavra “causalidade” é carregada de preconceitos e nos induz
a pensar segundo o âmbito dos acontecimentos físicos – e, ainda por cima,
mecanicisticamente – então é melhor evita-la. No campo da psicologia fenomenológica
(interna - intencional – eidética) e no campo da fenomenologia transcendental, é melhor
falar de “motivação”. Retoma-se então a regência universal da temporalidade:

O universo das vivências que constituem o teor de ser real (reell) do ego transcendental
é um universo compossível unicamente na forma de unidade universal do fluir, na qual
todas as singularidades se inserem elas próprias como aí defluindo. Portanto, já esta
forma generalíssima de todas as formas particulares de vivências concretas e das
formações que, no seu fluxo, se constituem como fluentes, é a forma de uma motivação
que a tudo enlaça e que domina, em particular, cada singularidade, a qual também
poderíamos enunciar como uma legalidade formal de uma gênese universal, de acordo
com a qual se constituem unitariamente, sempre de novo, passado, presente e futuro,
numa certa forma estrutural noético-noemática de modos de doação fluentes (p. 113-
114).

O tempo é, assim, a forma das formas, isto é, a forma que in-forma, dá forma, a todas
as vivências da consciência, a seu fluxo e defluxo. No interior desta forma universal da
temporalidade é que decorre a vida “como uma marcha motivada de operatividades”,
responsáveis pela gênese do ego. “O ego constitui-se para si mesmo na unidade de uma
história” (p. 114). Por outro lado, com a autoconstituição do ego é que se dá a
constituição do mundo objetivo – quer da natureza, quer da cultura (ciências, belas-
artes, técnica), quer de “personalidades de ordem superior” (Estado, Igreja), etc. Com a
fenomenologia genética, isto é, com o tema da gênese do ego e da gênese do mundo
objetivo, passamos de uma fenomenologia estática para uma fenomenologia dinâmica.

O § 38 entra na fenomenologia genética ressaltando a gêneses constitutiva em suas


duas formas fundamentais: “gênese ativa” e “gênese passiva”. Na gênese ativa “o eu
funciona, através de atos egoicos específicos, como produtor, constituinte” (p. 116). Ao
domínio da gênese ativa pertencem as “operações da razão prática”, tomando-se esta
num sentido bem amplo, que inclui também a razão lógica. Aqui se constituem novos
objetos: matemáticos, lógicos, etc. Atos de síntese e atos de ideação produzem objetos
que só são apreensíveis por meio da intuição categorial. As atividades da razão
constituem ou produzem, assim, objetos que têm o caráter de irrealidade, isto é, de
idealidade. Atividades espirituais iniciam-se com a “captação ativa” da intuição
categorial. Atividades racionais-espirituais da consciência, porém, pressupõem algo de
pré-dado, de que elas retiram a matéria para dar forma. Esta matéria é dada numa
síntese passiva. Apresenta-se, assim, “a coisa pré-dada na intuição passiva”, que é
unitária, isto é, uma captação de uma coisa singular, una na sua forma, não obstante os
seus múltiplos modos de aparição. Esta síntese passiva tem, pois, uma história. Assim, a
percepção das coisas têm uma história. Na nossa infância foi-nos preciso aprender a ver
as coisas, antes de nos tornarmos capazes de apreender objetos lógicos, matemáticos,
enfim, objetos que só se nos aparecem numa intuição categorial. Graças à gênese
passiva o eu tem incessantemente uma “cercania de objetos”. Para poder ver objetos
como substratos de propriedades é preciso ter sido exercitado na gênese passiva. O
objeto como substrato de propriedades é a forma final de uma gênese, o que remete,
então para uma instituição originária desta forma. Para se poder ver uma coisa espacial,
um objeto cultural, um utensílio como tais também é preciso ter sido exercitado na
gênese passiva.

O § 39 trata da associação como princípio da gênese passiva. “Associação é um conceito


fundamental fenomenológico-transcendental” (p. 119). É um “título da
intencionalidade” e, como tal, difere do antigo conceito de associação e de leis de
associação (Hume, etc.), “distorção naturalista dos autênticos conceitos intencionais
correspondentes” (p. 119). Ou seja: não se trata de uma legalidade empírica, que rege
“a complexão de dados numa alma – qualquer coisa como uma gravitação interna da
alma” (p. 119). Trata-se, antes, de “uma legalidade intencional de essência da
constituição do ego puro, um domínio de a priori inato sem o qual, portanto, um ego
enquanto tal é impensável” (p. 119). Diz respeito à gênese do ego, que acontece a partir
de uma conexão infinita de operações que se pertencem mutuamente de um modo
sintético, em graus que se devem conjugar por completo com a forma universal e
persistente da temporalidade, forma que abarca tudo o que surge como novo na
consciência.

A fenomenologia genética da constituição das objetividades conduz a fenomenologia a


uma “teoria transcendental do conhecimento” (p. 120), que se difere da teoria do
conhecimento tradicional. Esta é anunciada no § 40. O problema da teoria do
conhecimento tradicional é o da transcendência. Trata-se de esclarecer a possibilidade
do conhecimento. Este problema surge na atitude natural, ou seja, permanece no
terreno do mundo dado. Se, com Brentano, reconhecermos que a intencionalidade é
traço peculiar de fundo da minha vida psíquica, e se os caracteres de ser evidentemente
efetivo, pensado como necessário, contrassenso, pensado como possível, provável, etc.,
são caracteres do objeto intencional que surgem no domínio da minha consciência,
então “toda e qualquer fundamentação, toda e qualquer justificação da verdade e do
ser decorrem, de ponta a ponta, em mim, e a sua resultante final é um caráter no
cogitatum do meu cogito” (p. 121). Isto quer dizer: a justificação da verdade e do ser
decorre na imanência da vida da consciência. Daí surge a pergunta: “Como poderá a
evidência (a clara et distincta perceptio) reivindicar ser algo mais que um caráter de
consciência para mim? Descartes tentou resolver este problema, recorrendo à veracitas
divina.

O § 41 afirma que este problema da transcendência, fundante da teoria do


conhecimento tradicional, é um pseudoproblema, ou seja, é, no fundo, um
contrassenso: “um contrassenso em que o próprio Descartes teve de cair por não ter
topado com o sentido autêntico da sua epoché transcendental e da redução ao ego
puro” (p. 121). Numa outra formulação, este pseudoproblema é assim apresentado:
“como poderei sair da ilha da minha consciência e como poderá adquirir significação
objetiva aquilo que surge na minha consciência como vivência da evidência? ” (p. 122).
Ao formular este problema eu já me apercebo como homem natural, já tenho também
uma apercepção do mundo espacial, já me apreendi como estando no espaço e como
tendo um fora-de-mim. A validade da apercepção do mundo já está pressuposta na
posição da questão sobre a possibilidade do conhecimento transcendente. A epoché e
a redução fenomenológica, seguida da autorreflexão sistemática do ego puro, que abre
o campo da consciência em sua totalidade, reconhece que a transcendência é
constituída nesse ego puro:

A transcendência, em todas as suas formas, é um caráter de ser imanente, que se constitui


no interior do ego. Todo sentido que se possa conceber, todo ser concebível, chame-se
ele imanente ou transcendente, cai no domínio da subjetividade transcendental,
enquanto constituinte de sentido e ser (p. 122).

Por essência, o universo do ser verdadeiro está correlacionado com o universo da


consciência. Por essência, ambos se correspondem – “e aquilo que se corresponde por
essência é, também, concretamente um, um na concreção absoluto única da
subjetividade transcendental” (p. 122). Assim, o universo do ser verdadeiro ou universo
do sentido possível (que inclui também o sem sentido) não é exterior ao universo da
consciência – tanto do eu quanto do nós transcendental (intersubjetividade
transcendental). É para um nós transcendental (intersubjetividade transcendental) que
se dá, com efeito, a validade de um mundo comum fático – “mundo objetivo a todos
comum” (p. 123). Enfim, “todo tipo de ser, tanto real (Real) como ideal (Ideal), se torna
ele próprio compreensível enquanto formação (Gebilde) constituída” na “operatividade
da subjetividade transcendental. Este tipo de compreensibilidade é a mais alta forma de
racionalidade que se pode conceber” (p. 124). A teoria do conhecimento transcendental
tem a ver, então, com a autorreflexão (Selbstbesinnung) sistemática e com a
autoexplicitação (Selbstauslegung) apriorística do ego puro e com a explicitação de
todas as suas constituições. A fenomenologia universal é, pois, um desdobramento da
autoexplicitação do ego, a qual se apresenta, em primeiro lugar, como

Uma autoexplicitação em sentido pleno, que mostra sistematicamente como o ego se


constitui como um ser próprio, enquanto sendo em si e para si, e logo de seguida, em
segundo lugar, como uma autoexplicitação em sentido alargado, que mostra, a partir daí,
como o ego constitui em si, a partir daí, como o ego se constitui em si, em virtude deste
seu ser próprio, também o outro, o objetivo e, em geral, tudo o que para ele tem validade
de ser enquanto não eu no eu (p. 124).

A fenomenologia é, assim desenvolvida, um idealismo transcendental – um idealismo,


porém, diferente do idealismo psicológico, que, “a partir de dados sensuais carecidos de
sentido, quer derivar um mundo pleno de sentido”. Também é um idealismo diferente
daquele idealismo kantiano, que alega a existência de uma transcendência de “coisas-
em-si” por princípio incognoscíveis, ou pelo menos como conceito-limite, “crê poder
manter em aberto a possibilidade de um mundo de coisas-em-si” (p. 124). Trata-se de
um idealismo que consiste na autoexplicitação do ego como constituinte de todo o
sentido de ser. Todo o sentido de ser, todo o tipo de ser concebível, também o da
transcendência que é pré-dado através da experiência e que inclui a objetividade da
natureza, da cultura, do mundo em geral, se constitui no ego, desde o ego, para o ego.
Trata-se, pois, de um idealismo que explicita a gênese de sentido a partir da
intencionalidade constituinte. A fenomenologia transcendental é esta própria
explicitação, ou melhor, é a própria autoexplicitação do ego e daquilo que, por meio da
intencionalidade, nele se constitui: ele mesmo, os outros, o mundo comum objetivo.
Trata-se, pois, de um idealismo que se prova a si mesmo como explicitação e não por
meio de jogos argumentativos, que visam ganhar um troféu “no combate dialético com
os realismos” (p. 124). O idealismo fenomenológico-transcendental, pois, consiste no
trabalho “de autoexplicitação do meu ego meditante, segundo a constituição e o
constituído” (p. 125). Para além da questão da autoconstituição do ego e da constituição
do mundo objetivo, está a questão da constituição dos outros. Esta é mesmo
fundamental para colocar devidamente a questão da constituição do mundo objetivo:
“por meio das constituições alheias, que se constituem no meu próprio ego, constitui-
se para mim (...) o mundo comum para todos nós” (p. 125-126). Daí também vem a
questão da constituição de uma “filosofia como algo comum a todos nós, enquanto
meditamos uns com os outros – a ideia de uma única perenis philosophia” (p. 126). O
fim do § 41 é um aceno para o que vem na quinta meditação – a questão da
intersubjetividade. Mas é também uma declaração sobre o sentido das “Meditações
Cartesianas” como um todo: a fenomenologia universal como ontologia, isto é, como
filosofia primeira:

Se as nossas meditações cartesianas devem ser para nós, como filósofos em formação, a
reta introdução numa filosofia e o começo fundamentante da sua efetividade como ideia
necessariamente prática (um começo a que pertence, portanto, também a evidência de
um caminho a constituir, enquanto necessidade ideal, para a infinidade de trabalho a
realizar), então as nossas próprias meditações deverão conduzir-nos suficientemente
longe para que, sob este aspecto, não deixem em aberto qualquer estranheza quanto à
sua meta e ao seu caminho. Elas devem, tal como o queriam as antigas meditações
cartesianas, desvendar, com uma compreensibilidade sem resto, a problemática universal
pertencente à ideia-final da Filosofia (para nós, portanto, os problemas constitutivos); e
isso implica que elas devem ter já exposto, na maior e, contudo, mais estritamente
delimitada das generalidades, o verdadeiro sentido universal do ser em geral e as suas
estruturas universais – numa generalidade que torne possível, por vez primeira, tanto a
execução do trabalho ontológico, sob a forma de uma filosofia fenomenológica vinculada
ao concreto, como também, numa consequência mais larga, uma ciência filosófica dos
fatos, porque o ente é, para a Filosofia – e, assim, para a investigação correlativa da
Fenomenologia -, uma ideia prática, a ideia da infinitude do trabalho teoreticamente
determinante (p. 126).
I.6. QUINTA MEDITAÇÃO

A quinta meditação trata do desvelamento (Enthüllung) da esfera do ser transcendental


(transzendentalen Seinssphäre) como “intersubjetividade monadológica”. Começa com
o § 42 que expõe o problema da experiência do que é alheio (Fremderfahrung).
Contrapõe-se, assim, à objeção de solipsismo. Os outros ego são, justamente, outros
(isto é, alheios, estranhos, transcendentes à minha consciência). Como, porém, esta
transcendência da alteridade está correlacionada com o transcendental da egoidade?
Surge, então, o desafio de “compreender e desenvolver sistematicamente, num
trabalho concreto, a tarefa de explicitação fenomenológica que nos é indicada pelo
alter-ego (outro eu) ” (p. 128). O sentido desta tarefa é assim elucidado:

Temos de ganhar uma visão sobre a intencionalidade explícita e implícita em que, a partir
do terreno do nosso ego transcendental, o alter-ego se anuncia e se confirma, sobre
como, em que intencionalidades, em que sínteses, em que motivações o sentido alter-
ego se forma em mim e, sob o título de experiência concordante do que me é alheio, se
confirma como sendo e mesmo como estando, a seu modo, ele próprio aí. Estas
experiências e suas operatividades são bem fatos transcendentais da minha esfera
fenomenológica – como, de outro modo senão interrogando-as, poderia eu explicitar, em
todos os seus aspectos, o sentido “outro que é”? (den Sinn seiender Anderer) (p. 128-129).

O § 43 trata do modo ôntico-noemático de datidade (noematisch-ontische


Gegebenheitsweise) do outro, que será tomado como fio condutor transcendental para
a teoria acerca da constituição (= formação de sentido de ser) da experiência do alheio,
isto é, do outro e do que a ele pertence. O eu meditante parte da experiência ôntica que
ele tem do outro. Os outros eu os experiencio, em experiências mutáveis e
concordantes, enquanto entes que estão sendo efetivamente (wirklich Seiende) e os
experiencio a princípio como objetos do mundo (Weltobjekte), embora não como meras
coisas da natureza. Experiencio-os como objetos psicofísicos no mundo (= corpos que
têm vida). Mas, mais propriamente, eu os experiencio como sujeitos para este mundo,
como entes que estão experienciando este mundo, este mesmo mundo que eu
experiencio, que experienciam também a mim mesmo. Eles experienciam a mim como
eu experiencio a eles. Eu tenho experiência do mundo e esta experiência inclui a co-
presença de outros. Surge, assim, o mundo como “mundo que me é alheio, como um
mundo intersubjetivo”, isto é, como mundo que está “sendo para qualquer um, como
mundo acessível para qualquer um nos seus objetos” (p. 130). No entanto, o outro-eu
assim como o mundo intersubjetivo, são, cada vez, sentidos de ser. Enquanto tais
sentidos de ser se formam no eu, isto é, na sua vida intencional constituinte: “todo e
qualquer sentido que um qualquer ente que tenha e possa ter para mim, tanto quanto
ao seu “quid” (o quê = quididade, essência) quanto ao seu ‘é, e é efetivamente’
(existência), é um sentido em ou a partir da minha vida intencional, cujas sínteses
constitutivas, nos sistemas de confirmação concordante, são aquilo a partir de que esse
sentido para mim se aclara e se desvenda” (p. 130). Isto quer dizer: o sentido de ser
“outros-eus”, bem como o sentido de ser “mundo intersubjetivo” se faz para mim e se
forma em mim a partir de mim, isto é, de minha vida intencional, das suas
intencionalidades abertas para o mundo e para os outros. Como o sentido de ser da
alteridade e da intersubjetividade se faz para mim e se forma para mim é que é a
questão. Trata-se do “problema do aí-para-mim (Für-mich-da) dos outros”, tema da
“teoria transcendental da experiência do que me é alheio”, a assim chamada “intropatia”
(Einfühlung – também se traduz por empatia) (p. 130). Esta teoria, no entanto, tem um
alcance maior: ela “funda uma teoria transcendental do mundo objetivo” (p. 130), ou
seja, do mundo que está aí-para-qualquer-um (Für-jederman-da), mundo da natureza
objetiva, mas também do mundo da cultura enquanto mundo que está aí-para-
qualquer-um desta ou daquela comunidade humana.

O § 44 reintroduz a epoché, desta vez, aplicada aos outros enquanto entes objetivos e
mesmo enquanto sujeitos no mundo. Com isso, põe em obra a “redução da experiência
transcendental à esfera de propriedade” (Eigenheitssphäre). Esta é desvelada
tematizando as operatividades da intencionalidade, tanto atual quanto potencial, em
que “o ego se constitui na sua propriedade e constitui unidades sintéticas que são
inseparáveis dele, por conseguinte, que devem ser imputadas à sua propriedade” (p.
131). Abstrai-se (prescinde-se) aqui de tudo o que é alheio, para se descobrir o que é
próprio. Na atitude natural dá-se uma forma de contraposição (Gegenüber): eu e os
outros. Se abstraio dos outros, eu fico só no mundo. Mas este ficar só no mundo ainda
não alcança a dimensão da solidão transcendental, que põe entre parênteses, o próprio
mundo. O ego transcendental concreto (= mônada) que então se desvela compreende,
porém, a intencionalidade dirigida para o alheio, que, por enquanto, fica suspensa
também neste momento da meditação. Em todo o caso, o outro, enquanto outro-eu
(alter-ego), enquanto “eu” remete de volta para mim mesmo: “o outro remete para mim
mesmo, o outro é reflexo de mim mesmo”, isto é, “o outro é análogo de mim mesmo”
(p. 132) [analogon = semelhante na dessemelhança ou dessemelhante na semelhança].
Surge, então, a questão: “como pode o meu ego, no interior de sua propriedade,
constituir, sob o título de ‘experiência alheia’, precisamente algo alheio”? (p. 132). A
colocação desta questão, porém, deve permanecer na atitude transcendental. Ela deve
partir da epoché fenomenológica: “tudo o que antes fora diretamente para nós um ser
é tomado exclusivamente como fenômeno, como um sentido visado que se confirma”
(p. 133). A partir da epoché, o outro é tomado como sentido de ser correlato da
intencionalidade. Antes, porém, de tratar da constituição intencional do alheio, é
preciso explicitar o não-alheio (Nicht-Fremdes), o “próprio-a-mim” (Mir-Eigene). Na
epoché, faz-se abstração (se prescinde de) dos outros, do mundo objetivo (natureza e
cultura), do mundo intersubjetivo. No entanto, mesmo com esta abstração, que
reconduz ao campo da experiência transcendental do ego, “retemos um estrato unitário
e coerente do fenômeno-mundo”, que é condição de possibilidade para que possa haver
uma experiência do alheio, bem como uma experiência do mundo objetivo. Na abstração
da epoché fenomenológica desaparece o sentido de ser “objetivo”, mas permanece o
fenômeno-mundo. Respectivamente, a natureza não desaparece de todo. Ela está
incluída na esfera da minha propriedade, a saber, como “meu soma” (Leib = corpo no
sentido de corpo vivente). Este, o “soma” (Leib = corpo vivente) é mais do que um
simples corpo (Körper = coisa extensa). É o corpo que pertence a mim, em que
experiencio campos sensoriais (sensações táteis de frio, calor, etc.). É o corpo em que
eu imediatamente mando, e de que eu disponho, que eu governo. Os órgãos do meu
corpo com suas cinestesias obedecem a um “eu faço” (Ich tue) e a um “eu posso” (Ich
kann). A partir do meu corpo vivente (Leib = “soma”) e da sua corporeidade (Leiblichkeit
= somaticidade) é que eu tenho o comércio com a natureza. É a partir dele também que
se constitui o fenômeno objetivo do “eu enquanto este homem” (p. 135). Este eu é uma
unidade psicofísica, isto é, uma unidade de corpo e alma. É o eu pessoal, que neste corpo
e por meio dele (note-se a ideia de mediação atribuída ao corpo), “age e padece no
mundo exterior” (p. 135). Vem à luz, assim, o eu constituído (diferente do eu
constituinte), e, com ele, o mundo exterior. Mas tanto o eu constituído quanto o mundo
exterior se formam interiormente, na esfera da subjetividade transcendental, do eu
constituinte:

Eu, o eu-homem reduzido (eu psicofísico), sou, portanto, constituído como membro do
mundo, com o fora-de-mim multíplice, mas eu próprio constituo tudo isso na minha alma
e transporto-o intencionalmente em mim. Se deveras se pudesse mostrar que tudo aquilo
que é constituído como próprio, por conseguinte, também o mundo reduzido, pertence à
essência concreta do sujeito constituinte como determinação interna inseparável, então
o seu mundo próprio encontrar-se-ia, na autoexplicação do eu, como interno e, por outro
lado, encontrar-se-ia o próprio eu, enquanto percorre diretamente este mundo, como um
membro das exterioridades do mundo e ele distinguiria, assim, entre si próprio e mundo
exterior (p. 136-137).

O § 45 coloca a questão de saber “como se relacionam um com o outro o eu-homem,


reduzido à sua pura propriedade, num fenômeno-mundo do mesmo modo reduzido, e
o eu enquanto ego transcendental” (p. 137). A explicação se dá com base na elucidação
da constituição e da redução. O ego transcendental constitui, na sua vida constitutiva,
tudo o que para ele é objetivo e se constitui também a si mesmo enquanto ego idêntico,
isto é, um eu humano e pessoal que se dá no interior de um mundo constituído. A
operação constituinte consuma, pois, uma “autopercepção mundanizante” (p. 137),
mantendo-a numa validação e numa construção continuada. O mundo objetivo pode
ser reduzido (reconduzido) à esfera da propriedade do eu enquanto unidade psicofísica,
mais exatamente, à alma. Por sua vez o eu psicofísico, “humano e pessoal”, e, em
particular, a alma, pode ser reduzido (reconduzido) ao ego transcendental constituinte.
A diferença entre a alma e o ego transcendental reside nisso: que a alma é um
componente “da minha apercepção do mundo”, e, enquanto tal, algo “secundário do
ponto de vista transcendental” (p. 138), uma vez que pertence ao que é constituído,
enquanto o ego transcendental é constituinte, isto é, é fonte de validação e construção
de sentido de ser do que é mundano. À esfera do que é constituído pelo ego
transcendental pertence, por sua vez, tanto o ser do próprio e quanto o ser do alheio. O
que lhe é próprio é inseparável de seu ser concreto. Ao alheio pertence tanto o mundo
objetivo, quanto o alter-ego (outro-eu). “No interior e com os meios deste próprio, ele
constitui, porém, o mundo objetivo enquanto universo de um ser que lhe é alheio e, no
primeiro nível, o alheio no modo alter-ego” (p. 138).
O § 46 trata da propriedade (Eigentlichkeit) como “esfera de atualidades” (do eu faço,
eu atuo) e “potencialidades” (eu posso) do fluxo ou corrente de consciência. De início, o
próprio foi esclarecido como o não-alheio. Falta, porém, caracterizar positivamente o
ego em sua propriedade. Eu sou original e intuitivamente “pré-dado” para mim, antes
de uma percepção captadora, “com um horizonte aberto, sem fim, de peculiaridades
internas que ainda não foram postas a descoberto” (p. 139). O que me é próprio se
descobre por meio da explicação (desdobramento) deste meu eu pré-dado. Surge como
o explicatum (=desdobrado) desta explicação (= deste desdobramento). “Ele desvenda-
se originariamente no olhar experienciante e explicitante que dirijo para mim próprio, a
partir do meu eu sou, perceptiva e mesmo apoditicamente dado, e da sua identidade
persistente consigo próprio, na síntese contínua unitária da autoexperiência originária”
(p. 139). Este idêntico, porém, e o seu próprio, se desdobra com suas peculiaridades,
manifestando “uma infinitude aberta de uma corrente de vivências”, que emerge,
porém, no horizonte de uma temporalidade imanente (futuro, presente, passado). O eu
vive como eu idêntico nesta corrente de vivências, que é a corrente da consciência, isto
é, nas suas atualidades e nas suas potencialidades. “Todas as possibilidades do tipo ‘eu
posso ou poderia pôr em marcha esta ou aquela cadeia de vivências’ [...] pertencem,
manifestamente, a mim mesmo de um modo essencial e próprio” (p. 140). A
autoexplicação do eu, portanto, explicita uma autoexperiência original, sua autodoação
originária, que traz consigo uma autoevidência. Temos, então, a evidência apodítica da
autopercepção transcendental (a do eu sou). Visto, porém, mais de perto, ressalta-se,
por um lado, uma evidência apodítica pura e simples, a das “formas estruturais
universais” do ego, “a saber, aquelas em que, numa universalidade essencial, eu sou e
só assim poderei ser” (p. 141) [evidência do universal-necessário]; e, por outro lado, a
evidência de “dados egológicos singulares”, como, por exemplo, a “evidência certa, mas
imperfeita, da recordação iterativa do meu próprio passado” (p. 141). A explicitação de
dados egológicos singulares, porém, participa da apoditicidade do a priori universal, que
se pode denominar de “vida universal em geral”, que se mostra “na forma da constante
autoconstituição das suas próprias vivências enquanto temporais no quadro de um
tempo universal” (p. 141). Assim, o singular (minhas vivências egológicas singulares) é
explicado (desdobrado e tornado inteligível) à luz do universal (a vida universal em geral
e suas formas estruturais universais, isto é, que determinam necessariamente a
egoidade de todo e qualquer ego). Assim, o universal pré-delineia os caminhos para a
explicação do singular.

O § 47 afirma que “o objeto intencional pertence também à plena concreção monádica


da esfera de propriedade”. “Tanto o percepcionar constituinte quanto o ser-
percepcionado pertencem à minha propriedade concreta” (p. 141). Pertence à esfera de
propriedade do eu transcendental o que lhe é imanente (atualidades, potencialidades e
habitualidades – como, por exemplo, convicções) e também o que lhe é transcendente,
tais como os objetos que são apreendidos pela sensibilidade externa. Pertence a ela
também o mundo no seu todo. Por conseguinte, o transcendente também pertence ao
ego transcendental concreto e fático (=mônada), assim como o imanente. Conclusão:

Desse modo torna-se claro que o ego, concretamente tomado, tem um universo daquilo
que é próprio a si mesmo, o qual pode ser desvendado através de uma explicitação
original apodítica – ou, pelo menos, pré-delineadora de uma forma apodítica – do seu ego
sum apodítico. No interior desta esfera original (da autoexplicação original), encontramos
também um mundo transcendente, que desponta com base no fenômeno intencional
mundo objetivo reduzido ao que me é próprio (...); todavia, todas as correspondentes
aparências, fantasias, puras possibilidades, objectualidades eidéticas, que se nos deparam
como transcendentes, na medida em que estão submetidas à nossa redução à
propriedade, pertencem também a este domínio – ao domínio do que me é próprio e
essencial, daquilo que eu mesmo sou em plena concreção ou, como também dizemos, à
minha mônada (p. 142-143).

O § 48 apresenta “a transcendência do mundo objetivo como uma transcendência de


grau mais elevado que a transcendência primordial”. O ser efetivo (wirkliches Sein) se
constitui originariamente através da concordância da experiência. Efetividade ou
realidade efetiva (Wirklichkeit) é um sentido de ser através do qual o ego “transcende,
de todo em todo, o seu próprio ser” (p. 143). A questão que se levanta é a de como o
ego forma em si, isto é, constitui, este sentido de ser de algo que o transcende, que
transcende, isto é, o seu próprio ser. A redução fenomenológica à esfera da propriedade
chegou ao dado de um “mundo reduzido enquanto transcendência imanente” (p. 144).
Este mundo constitui uma “transcendência primordial”: “Na ordem da constituição de
um mundo alheio ao eu, de um mundo exterior ao meu eu concreto próprio (...), esse
mundo reduzido é a transcendência (ou mundo) em si primeira, primordial, que (...) é
ainda um elemento determinativo do meu ser concreto próprio (p. 144) ”. Porém, como
indica o título deste parágrafo, a “transcendência do mundo objetivo” é uma
“transcendência de grau mais elevado que a transcendência primordial”. A questão é
“tornar compreensível, agora, como, no grau superior e fundado, se realiza a doação de
sentido da transcendência objetiva em sentido próprio, constitutivamente secundária,
enquanto experiência” (p. 144).

O § 49 tenta responder à questão que se acabou de levantar. A primeira indicação é a


de que “o sentido de ser mundo objetivo constitui-se em vários níveis a partir do subsolo
do meu mundo primordial” (p. 144). O primeiro nível é o “nível constitutivo do outro ou
dos outros em geral, isto é, dos ego excluídos do meu ser próprio concreto (de mim
enquanto ego primordial) ” (p. 144-145). Com outras palavras, “o alheio em si primeiro
(o primeiro não eu) é o outro eu” (p. 145). Os que permanecem para mim outros não se
dão isolados, mas constituem uma comunidade, a saber, a “comunidade dos eu, que
inclui a mim próprio, como uma comunidade dos eu que são uns com os outros e uns
para os outros” (p. 145). Por fim a análise constitutiva chega a uma “comunidade de
mônadas”, como uma comunidade “que constitui (na sua intencionalidade constituinte
comunalizada) o mesmo e único mundo” (p. 145). Surge daí a noção de uma
“intersubjetividade transcendental” que tem uma “esfera intersubjetiva de
propriedade, na qual ela constitui intersubjetivamente o mundo objetivo” (p. 145).
Trata-se de um “nós transcendental”, em que se constitui o sentido de ser mundo
objetivo. O mundo objetivo, porém, não transcende a esfera de propriedade desta
intersubjetividade transcendental, mas nela habita enquanto “transcendência
imanente” (p. 145). Com outras palavras, o mundo objetivo é uma ideia, isto é, um
“correlato ideal de uma experiência intersubjetiva que idealmente se realiza e que foi
realizada na concordância – enquanto correlato de uma experiência
intersubjetivamente comunalizada” (p. 145-146). Isto quer dizer que o sentido de ser ou
a ideia de mundo objetivo “está por essência referido à intersubjetividade” (p. 146), que
também idealmente está aberta ao infinito. Isto pressupõe que os sujeitos singulares
que são parte desta intersubjetividade, deste “nós transcendental”, estejam “dotados
de sistemas constitutivos, que se correspondem mutuamente e que são em conjunto
concordantes” (p. 146). Isto leva à afirmação de que “pertence por essência à
constituição do mundo objetivo uma harmonia das mônadas” (p. 146). Estas indicações
do § 49, pois, se apresentam como um “pré-delineamento do percurso de explicitação
intencional da experiência do alheio”, necessário para “solucionar o problema
transcendental”, ou melhor, “realizar efetivamente o Idealismo transcendental da
Fenomenologia” (p. 146).

O § 50 trata da “intencionalidade mediata da experiência do alheio” (Fremderfahrung)


caracterizada como “apresentação” (Appräsentation), a qual se dá como “apercepção
analógica” (analogische Apperzeption). Este parágrafo, que se encontra no caminho da
investigação que visa descrever a constituição do mundo objetivo, procura realizar o
“passo para o outro” (p. 146). Anteriormente, falou-se de “outros puros” (p. 145), ou
seja, de outros que não tinham, ainda, “nenhum sentido mundano” (p. 145). Neste
parágrafo, o “outro puro” parece ser caracterizado como o outro que “ainda não chegou
a revestir o sentido homem” (p. 147). O passo para o outro, neste parágrafo, porém,
pretende alcançar este outro que se apresenta como revestido do sentido homem.
Ponto de partida é a experiência, mais exatamente, a “experiência do alheio”, isto é, do
“não eu”, que, como já foi dito, tem no “outro eu” a sua datidade primordial (p. 145). A
partir da experiência, agora, o outro eu aparece como outro homem. “Experiência é
consciência original; e, de fato, no caso da experiência de um homem, dizemos, em
geral, que o outro está aí diante de nós ‘em pessoa’” (p. 147). O outro, porém, não me
está disponível de modo direto, isto é, o que chega à doação originária na experiência
do outro homem “não é aquilo que pertence à sua essência própria” (p. 147). Com
outras palavras, eu não tenho acesso imediato ao “outro em si próprio”, nem às suas
vivências. O próprio corpo do outro transcende a minha esfera primordial. O outro não
é presente a mim como eu sou a mim próprio, isto é, na imediatez. A apreensão do
outro, com efeito, acontece na “mediatez da intencionalidade”. Por isso o título do § 50
fala de “intencionalidade mediata da experiência do alheio”, do estranho. O outro se me
torna representável numa espécie de um “tornar-copresente” (Mitgegenwärtig-
machen), que é chamada, aqui, de “apresentação” (Appräsentation). O outro não se me
torna representável por meio de uma simples presentificação (Vergegenwärtigung),
como por exemplo, por meio de uma imaginação, mas sim por meio de uma presentação
(Präsentation), ou seja, por meio de uma “autodoação em sentido próprio”, em que ele
se doa “em carne e osso” ou “em pessoa”. Quer dizer: a “apresentação” que funda a
representação do outro se funda ela mesma na “presentação”. É a apresentação que
motiva a aparição do “ser-aí-copresente” (Mitdasein) do outro. A questão é saber como
acontece essa “operação de apresentação” (p. 148) e sua motivação. “Uma primeira
orientação pode ser-nos fornecida pelo sentido da palavra ‘outro’ – outro eu; alter quer
dizer alter-ego, e o ego que está aqui implicado sou eu próprio” (p. 148). Quando “um
outro homem entra no nosso campo perceptivo” apreendemos um outro corpo, que se
mostra como sendo semelhante ao meu próprio corpo. Acontece, assim, uma
“apreensão analogizante” do corpo do outro. Analogia significa semelhança na
dessemelhança. Nesta apreensão eu transfiro os predicados da corporeidade específica
de meu corpo para o corpo do outro. Acontece, assim, uma “transferência aperceptiva
a partir do meu próprio soma” (p. 149). A assim chamada “apreensão analogizante” é
uma “certa apercepção que assemelha” o corpo do outro com o meu corpo. Não se
trata, porém, de uma inferência. “Apercepção não é inferência, não é um ato de
pensamento” (p. 149). A apreensão analogizante ou apercepção que assemelha se
funda, por sua vez, na “instituição originária”, em que se constitui, pela primeira vez um
objeto com um determinado sentido de ser. Quando vemos, então, outro objeto
semelhante, nós operamos uma “transferência analogizante” do sentido de ser daquele
objeto para este. Um exemplo: “a criança, que já vê coisas, compreende pela primeira
vez o sentido finalístico (Zwecksinn) de, digamos, uma tesoura, e, a partir daí, vê
tesouras enquanto tais ao primeiro olhar e de modo imediato, sem ter de fazê-lo,
naturalmente, naturalmente, numa reprodução explícita (in expliziter Reproduktion),
numa comparação e na consumação de uma inferência (im Vollziehen eines Schlusses) ”
(p. 149). As apercepções são muito diversas entre si. Há apercepções do que pertence,
segundo sua gênese, à esfera primordial da propriedade do ego, e há apercepções do
que lhe é alheio, como, dentre estas, a apercepção do que surge “com o sentido alter-
ego” (p. 150).

O § 51 trata do “emparelhamento” (Paarung = formação de pares) como componente


associativamente constituinte da experiência do alheio. Aponta-se para o fato de que
ego e alter ego sempre e necessariamente são dados num originário emparelhamento
(ursprüngliche Paarung). Emparelhamento quer dizer “o surgir configurado como
parelha” (p. 150), ou seja, uma configuração em pares e, subsequentemente, como
grupo, como pluralidade. É um fenômeno universal da esfera transcendental. Trata-se
de “uma protoforma daquela síntese passiva que designamos por associação, por
oposição à síntese passiva de identificação” (p. 150). Numa associação emparelhante,
dois elementos são intuitivamente dados com destaque na unidade de uma consciência,
“enquanto elementos que aparecem distintamente”, mas que formam uma “unidade
de semelhança”. É a partir de emparelhamentos singulares que se forma o sentido de
grupo, como unidade de uma pluralidade (mais que dois). Os elementos que se
emparelham são mostrados à consciência ao mesmo tempo como “juntos” e “distintos”.
No entanto, pode haver uma conformidade com o sentido do outro. Esta conformidade
se dá em gradações. O caso-limite é a igualdade. “No caso que particularmente nos
interessa da associação e apercepção do alter-ego através do ego, realiza-se um
primeiro aparelhamento quando o outro surge no meu campo perceptivo” (p. 151).
Entra neste campo perceptivo um corpo que é semelhante ao meu. Trata-se de um
corpo que é tomado como sendo alheio, que não pertence à minha própria esfera
primordial. No caso, o apresentado por força da apreensão analogizante “jamais pode
vir efetivamente à presença, portanto, à uma percepção em sentido próprio” (p. 150).

O § 52 trata da “apresentação enquanto tipo de experiência” que tem o seu “estilo


próprio de confirmação”. Parte-se da pergunta sobre como é possível a apercepção do
outro. O outro homem se apresenta como uma unidade psicofísica. O que se dá numa
apresentação originária, diretamente, é o seu corpo. Neste corpo e com ele são
indicadas determinações psíquicas. A apresentação originária do corpóreo (somático) e
as indicações do psíquico, porém, se entrelaçam: “neste entrelaçamento, porém, o
corpo somático alheio e o eu alheio que o governa são dados ao modo de uma
experiência unitária transcendente” (p. 152). O outro é, na sua transcendência,
“originaliter (originalmente) inacessível” (p. 152). O originalmente acessível sou eu
próprio e o que pertence a mim mesmo enquanto próprio. Neste caso, acontece uma
autodoação, que permite o cumprimento (Erfüllung) de um juízo presumido, ou, se
quisermos, o preenchimento (Erfüllung) de uma intenção signitiva vazia, ou seja, que
permite uma confirmação (Bewahrung) de um juízo que antes era apenas presumido.
Ao outro, porém, eu só tenho uma acessibilidade indireta. O acesso ao outro se dá por
meio da experiência de sua apresentação, ou melhor, por meio de uma síntese de
experiências de apresentação: “cada experiência está apontada a ulteriores
experiências, preenchendo e confirmando os horizontes apresentados, experiências que
incluem, sob a forma de antecipação inintuitiva, sínteses potencialmente confirmadoras
de uma experiência continuada concordante” (p. 152). A propósito desta continuação
confirmadora se mostra que ela “pode suceder apenas por novas apresentações
transcorrendo de um modo sinteticamente concordante” (p. 152). Por conseguinte, o
alheio surge necessariamente em virtude da sua “constituição de sentido”, o que
significa uma “modificação intencional do meu eu”, do meu “mundo primordial”, com
outras palavras, o outro se constitui fenomenologicamente para mim e em mim como
“modificação do meu ‘eu mesmo’” (Modifikation meines Selbst) (p. 153). “Por outras
palavras, na minha mônada constitui-se apresentativamente uma outra” (p. 153). Trata-
se, enfim, de “um eu apresentado que eu próprio não sou, mas que é antes um
modificado meu, um outro eu” (p. 154). Ao fim do § 52, entretanto, o leitor é recordado
de que esta “explicitação das conexões noemáticas da experiência alheia”, embora
ainda não suficiente, tem como escopo “tornar completamente transparente, a partir
dos conhecimentos adquiridos, a possibilidade e o alcance de uma constituição
transcendental do mundo objetivo e, com isso, do Idealismo fenomenológico-
transcendental” (p. 154).

O § 53 segue perseguindo este escopo e explicitando as “conexões noemáticas da


experiência alheia”, agora, entretanto, indicando “as potencialidades da esfera
primordial e a sua função constitutiva na apercepção do outro” (p. 154). “Na minha
esfera primordial, na mudança de orientações, é constituída a natureza espacial uma”
(p. 155). Esta “natureza espacial” é constituída, pois, “numa referencialidade
intencional” para com a minha corporeidade. O meu corpo é apreendido como existindo
no espaço. Ao mesmo tempo, porém, ele se me aparece como um centro de mudanças
de orientações e movimentações. Com outras palavras, o meu corpo está
“retrorreferido a si próprio”, ou seja, ele “tem como seu modo de doação o aqui central”
(p. 154). Por sua vez, “todo e qualquer outro corpo, e assim o corpo do outro, tem o
modo do ali” (p. 154). Se eu me colocar, porém, ali onde está o outro, este ali se
transforma num aqui. Trago comigo a potencialidade de “converter todo e qualquer ali
num aqui” (p. 155). A cada estar-eu-ali pertence “sistemas de aparição”. De perspectivas
diferentes, eu posso ver a mesma coisa, só que com modos de aparição diversos. A cada
mudança de posição corresponde sistemas de aparição determinados. Estes sistemas de
aparição estão, por sua vez, conectados associativamente. Diversa, porém, é a
“realização associativa da experiência do alheio” (p. 155). “Pois eu não apercebo o outro
simplesmente como um duplicado de mim próprio” (p. 155). Pelo contrário, “o outro é
apercebido apresentativamente como eu de um mundo primordial, ou como uma
mônada em que o seu soma (corpo) é originariamente constituído e experienciado no
modo do aqui absoluto, precisamente como centro funcionante do seu governo” (p.
155). O corpo do outro apresenta-se na minha esfera monádica no modo do ali, mas
enquanto corpo alheio, enquanto corpo de um alter-ego, ele está indiciado no modo
aqui.

O § 54 se propõe dar uma “explicação do sentido da apresentação em que se faz


experiência do alheio” (p. 156). Uma apercepção que assemelha (veränlichende
Apperzeption) confere a um corpo exterior (aussere Körper) um sentido análogo ao meu
próprio corpo (Leib = corpo vivente). Consequentemente, este corpo vivente análogo ao
meu recebe o sentido de corpo “de outro mundo análogo ao meu mundo primordial”
(p. 156). Com outras palavras, o “corpo alheio no ali entra numa associação
emparelhante com o meu corpo no aqui” (p. 157). Este corpo se torna o “núcleo de uma
apresentação”, isto é, com ele se doa a “experiência de um ego coexistente”, que
aparece no modo do ali “como se eu estivesse ali” (p. 157). “Há, portanto, um ego que
é apresentado como outro” (p. 157). Trata-se de um ego tem a peculiaridade de não
exigir nem permitir “um preenchimento por meio de uma presentação” (=doação no
modo de autodoação de uma auto-presença). Com a apresentação do alheio são
fornecidos novos conteúdos apresentativos. “O primeiro teor determinado do outro ego
deve, manifestamente, ser formado pela compreensão da somaticidade
(=corporeidade) do outro e da sua conduta especificamente somática (=corporal): a
compreensão dos membros como mãos que funcionam palpando ou empurrando, como
pés que funcionam andando, como olhos que funcionam vendo etc.” (p. 158). Com isso,
de início, o eu do outro é determinado ainda apenas como o que está governando
aquele corpo. Ulteriores conteúdos da “esfera psíquica superior” são indiciados também
corporalmente. É por meio da “conduta” (Gehaben) no mundo exterior, como ira,
alegria, etc., que se chega à compreensão dos “acontecimentos psíquicos superiores”,
ou seja, à empatia (Einfüllung – também traduz por intropatia ou endopatia)153. Tais
condutas são compreendidas de maneira analogizante, ou seja, são “bem
compreendidas a partir da minha própria conduta em circunstâncias semelhantes” (p.
158). Com outras palavras, os “acontecimentos psíquicos superiores”, que têm o seu
estilo de “conexões sintéticas” e suas “formas de decurso”, “poderão ser para mim
compreensíveis através da referência ao meu próprio estilo de vida, que me é
empiricamente familiar na sua típica aproximada” (p. 158). Por sua vez, a compreensão
da vida anímica do outro abre novas possibilidades de compreensão da vida anímica
própria: “toda e qualquer compreensão conseguida do outro atua abrindo novas
associações e novas possibilidades de entendimento, tal como, ao contrário, dado que
toda associação emparelhante é recíproca, esta compreensão desvenda a vida anímica
própria na sua semelhança e alteridade e, pondo em destaque novos aspectos, torna-os
frutuosos para novas associações” (p. 158).

O § 55 trata da “comunalização (Vergemeinschaftung) das mônadas” e da “primeira


forma de objetividade: a natureza intersubjetiva”. O corpo alheio, enquanto aparecente
na minha esfera primordial, corpo sensivelmente visto, “é efetivamente, sem mais,
experienciado como corpo do outro e não apenas como índice do outro” (p. 159). O
outro se me dá numa “percepção presentante-apresentante” (p. 160). O corpo constitui
o núcleo de presentação da apresentação do outro. Trata-se de uma só percepção, em
que, com a presentação do corpo se dá a apresentação do outro, e, por conseguinte, em
mim, “a consciência do seu ser-ele-próprio-aí” (p. 160). O corpo é o “percepcionado em
sentido próprio”, mas com a percepção dele se dá a “copercepção” de um “excedente”,
de um “coexistente” (Mitdaseiende). Assim, a percepção do outro é transcendente:
“assim, toda e qualquer percepção deste tipo é transcendente, ela põe como ele-
próprio-aí mais do que, de cada vez, ela torna efetivamente (wirklich) presente (präsent)
”. O corpo se presenta na minha esfera primordial, no caso, ganha “o sentido de um
corpo que pertence a outro ego” (p. 160). “Este corpo natural ali, pertencente à minha
esfera, apresenta o outro eu na minha natureza primordialmente constituída, em
virtude da associação aparelhante com o meu soma corpóreo (körperlichen Leib) e com

153
Há um erro de tradução na página 158. Onde está “preenchimento” (que em alemão seria “Erfüllung”)
deve-se ler “empatia” ou “intropatia” (que em alemão é “Einfühlung”, palavra que aparece na página 149
da edição alemã).
o eu psicofísico que aí governa” (p. 161). Com o corpo, é dada, porém, a natureza, a que
este corpo pertence. A natureza primordial do outro, por sua vez, e a minha natureza
primordial, “é a mesma natureza, apenas que no modo de aparição como se eu atuasse
ali, no lugar do corpo somático alheio” (p. 161). Produz-se, assim, “o sentido identitário
da minha natureza primordial e da outra natureza primordial presentificada” (p. 162). A
percepção do outro apreende não um signo ou uma figuração do outro, mas o outro
mesmo, captado numa originalidade efetiva, nesta corporeidade ali. Capto o outro como
uma unidade psicofísico: percebo um corpo, originalmente acessível, embora com
“sombreamentos” (há nuances que percebo e outras que ficam “na sombra”), e, junto
com este corpo, por meio dele, indicativamente, percebo uma alma, por princípio não
originalmente acessível. A natureza objetiva começa a ser percebida, antes de tudo, em
meu corpo e, depois, no corpo do outro. O corpo alheio é “o objeto em si primeiro”, é o
“protofenômeno da objetividade” (p. 163). A presentação do corpo do outro é, porém,
também, a base para a apresentação do outro como tal. Faz parte da apercepção do
outro a experiência de que o mundo que aparece para ele é o mesmo mundo que
aparece para mim, apesar de eu e ele termos sistemas de aparições diversos. O mundo
objetivo aparece como tal “em virtude da confirmação concordante da constituição
aperceptiva” (p. 163), seja pelo sucesso desta seja pelas correções de erros devidos à
anormalidade da percepção. O anormal é uma variante do normal. Nesta mesma linha
vai a distinção entre homem e animal (classificados como superiores e inferiores). O
critério da apercepção do animal é, para o homem, ele mesmo. Assim se explica a
constituição do animal na consciência humana:

Em relação ao animal, o homem é, falando constitutivamente, o caso normal, tal como eu


próprio sou, constitutivamente, norma primitiva para todos os homens; os animais são,
por essência, constituídos para mim como modificações anômalas de minha humanidade,
mesmo que, também entre eles, se possa separar outra vez normalidade de
anormalidade. Trata-se sempre de novo de modificações intencionais na própria
estrutura de sentido, que enquanto tais se atestam. Tudo isto carece certamente de uma
explicação fenomenológica que penetre mais fundo, mas esta exposição de ordem geral
é já suficiente para os nossos fins (p. 164).
FENOMENOLOGIA COMO POSSIBILIDADE DO PENSAMENTO

Podemos compreender a fenomenologia como realidade ou como possibilidade.


Realidade e possibilidade não dizem, aqui, porém, duas modalidades de um mesmo
sentido de ser. Dizem, antes, dois sentidos de ser diferentes. Realidade (realitas) diz,
aqui, o sentido de ser da coisa (res), tomado, precisamente, como ocorrência, como
atualidade, como factualidade ou como efetividade. Falamos, por exemplo, de uma
semente que pode vir a se tornar uma árvore, de uma madeira que pode vir a se tornar
mesa, de um bloco de mármore que pode vir a se tornar uma escultura, etc. A partir
deste sentido de ser e dentro de seu horizonte de compreensão, possibilidade é uma
modalidade de ser, que está ordenada para a realidade, na verdade, subordinada a ela.
Se realidade concerne ao ser-real, atualmente existente, efetivo, factualmente dado,
ocorrente, a possibilidade concerne ao que pode ainda tornar-se tal ser, mas que ainda
não se o tornou. Diz, nesta perspectiva, o modo de ser do que pode existir realmente,
do que pode alcançar atualidade, no sentido concreto, isto é, o possível, aqui, é mais do
que o não-contraditório, do que o meramente pensável ou pensado (representado,
concebido como ideia); é potência (capacidade disposta para algo, para uma realização,
para uma atualidade); ou, num sentido mais elevado, o poder-ser de uma coisa que se
desdobra intrinsecamente de seu princípio, de seu fundamento, de sua essência 154.

Podemos, pois, compreender a fenomenologia como algo real, ocorrente, atual,


efetivo, eficiente, eficaz. Ao compreendermos a fenomenologia assim, nós a tomamos
como objeto. Nós a tomamos objetivamente. A partir desta perspectiva e deste
horizonte, podemos tomar a fenomenologia como objeto objetivo ou como objeto
subjetivo. Podemos, por exemplo, compreender a fenomenologia como uma realidade
histórica, como um movimento filosófico, científico, cultural, localizável e datável,
descritível, etc. Podemos compreendê-la como um conjunto de doutrinas, de teorias, e

154
Cfr. Heidegger, Martin. Sobre o Humanismo. Rio de Janeiro-RJ: Tempo Brasileiro, 1967, p. 30: “Sem
dúvida, sob o domínio da ‘lógica’ e da ‘metafísica’, só se pensam as palavras ‘possível’ e ‘possibilidade’
em oposição a ‘realidade’, isto é, a partir de determinada interpretação do Ser, qual seja, da interpretação
metafísica do Ser, como actus e potentia. Essa interpretação se identifica com a distinção de existentia e
essentia.”
coisas semelhantes. Podemos tomá-la, porém, como desempenho subjetivo dos
filósofos e cientistas e agentes da cultura que nesse movimento são inscritos de algum
modo, etc. Nossa ótica não mudaria: com a ótica objetivante focaríamos ora no que é
objetivo ora no que é subjetivo (concernente aos sujeitos: neste caso, filósofos,
cientistas, agentes, produtores de cultura, etc.). Nessa ótica, pressupomos um mundo
já dado e a fenomenologia como algo que ocorre aí nesse mundo já dado, a modo de
fato, em sua efetividade, eficácia, eficiência mais ou menos considerável, importante,
para a história da filosofia, das ideias, da cultura, do espírito do homem contemporâneo.
Nessa consideração, podemos dizer muitas coisas corretas sobre a fenomenologia. A
questão, porém, é se, com ela, alcançamos o essencial e se desvelamos o decisivo
quanto ao ser da fenomenologia, quanto à sua coisa mesma (tomando “coisa” não no
sentido da ocorrência factual, mas no sentido de o que está essencialmente em causa,
em questão).

Podemos, entretanto, compreender a fenomenologia como possibilidade. No


entanto, aqui, possibilidade não diz simplesmente uma modalidade do ser dada a partir
de e em referência ao sentido do ser da realidade, acima descrito. Possibilidade, diz, ao
contrário, aqui, outro sentido de ser.
A fenomenologia como possibilidade de um caminho
(método):

“... O que ela possui de essencial não é ser uma ‘corrente’


filosófica real. Mais elevada do que a realidade está a
possibilidade. A compreensão da fenomenologia depende
unicamente de se apreendê-la como possibilidade”
(Heidegger, Ser e Tempo, p. 70).

“A fenomenologia há de ser concebida, segundo sua


possibilidade, como não notória e óbvia. Uma possibilidade
tem um jeito próprio de se agarrar e de se guardar. Não se
apanha uma possibilidade de maneira temática e
empreendedoramente. Mas, agarrar uma possibilidade
significa: agarrá-la no seu ser e formar-se nele, ou seja,
naquilo que, nela, está esboçado como possibilidades”
(Heidegger, Ontologia – Hermenêutica da Facticidade, p.
74).

Fenomenologia é, essencialmente, uma possibilidade. Possibilidade não no


sentido lógico (o não contraditório), mas no sentido do poder-ser concreto, isto é, que
con-cresce na dinâmica da própria liberdade e auto-responsabilização de quem se acha
afeiçoado pela fenomenologia.

Nós já sempre estamos e não estamos na fenomenologia como possibilidade


concreta. Porque estamos, podemos nos tornar fenomenólogos. Porque não estamos,
temos que nos tornar, sempre de novo, uma vez tocados por essa possibilidade.

Ninguém nunca vem a ser fenomenólogo, a não ser num caminho de experiência
de busca, em que a fenomenologia se torna um querer todo próprio de indagar e investigar.
Aos poucos, esse querer se torna uma necessidade imperiosa, haurida do mais profundo
da própria liberdade. Uma necessidade livre, que molda o ser, o viver, o pensar, o agir,
de quem busca, indaga, investiga. Quando alguém deslancha nessa
possibilidade/necessidade, a fenomenologia se torna um gosto de ser, um prazer de viver,
uma alegria de pensar, sim, se torna jovialidade de uma práxis (fenomenologia =
fenopraxia).
Fenomenologia só é como fáctica, como historial, ou seja, como destinação
concreta da existência, em sua dinâmica de liberdade, isto é, de responsabilidade através
do trabalho:

“Carece dizer que eu não sou um filósofo. Não penso fazer


algo que possa ser, ao menos, comparado a isto. Algo assim
não está, absolutamente, nas minhas intenções. Eu
simplesmente faço aquilo que devo e que considero
necessário. E o faço como posso: não acomodo o meu
trabalho filosófico às tarefas culturais de um ‘hoje
universal’. E não tenho nem mesmo a tendência de
Kierkegaard. Eu trabalho de maneira concretamente fáctica,
a partir do meu ‘eu sou’ – da minha proveniência espiritual
de fato, do meu milieu, dos meus contextos vitais, daquilo
que me é acessível como experiência viva, em que vivo.
Esta facticidade, enquanto existenciária, não é um mero
‘cego estar aí’; encontra-se na existência, junto com ela, e
isto quer dizer, eu vivo o que ‘eu devo’, do que não se fala.
Junto a esta facticidade do ser-assim, junto ao histórico,
encrespa-se o existir, quer dizer, eu vivo as obrigações
íntimas da minha facticidade, e isto, de modo tão radical
quanto o compreendo” (Heidegger, carta a Karl Löwith, de
19 de agosto de 1921).

A fenomenologia não existe como doutrina, mas só como caminho. E caminho só


acontece como história. Todo tema de questionamento é, nesse caminho, apenas pretexto
para seguir perguntando, submetendo-se às evidências das coisas, num empenho
intrépido e jovial de amar a auto-revelação dos fenômenos, revelação que é, sempre, re-
velação: desvelamento e velamento, doação e retraimento.

Fenomenologia é atitude de espera do inesperado e de memória agradecida pela


doação reveladora do ser:

“A espantosa realidade das coisas


É minha descoberta de todos os dias.
Cada coisa é o que é,
E é difícil explicar a alguém quanto isso
me alegra
E quanto isso me basta” (Fernando
Pessoa).
O saber da fenomenologia só pode mesmo ser o saber do não-saber.

“Pouco saber e muita jovialidade é dada aos mortais”


(Hölderlin)
A fenomenologia é um modo “transcendental” de viver, uma fenopráxis da razão,
que acontece historialmente desde o dinamismo da mais radical autonomia da liberdade:

“Em sua universal auto-referência, a fenomenologia


reconhece sua própria função em um possível viver
transcendental da humanidade. Ela reconhece as normas
absolutas que a partir deste viver poder ser sacadas pelo
olhar; mas reconhece também sua estrutura originária,
tendencial/teleológica, na direção de uma descoberta destas
normas e sua efetuação prática e consciente. Ela se
reconhece, então, enquanto função da universal auto-
reflexão da humanidade (transcendental), a serviço de uma
práxis universal da razão, ou seja, a serviço da tendência
que se torna livre pela descoberta, na direção da idéia
universal, radicada no infinito, de uma absoluta perfeição
ou, o que dá na mesma, na direção da idéia – radicada no
infinito – de uma humanidade que, de fato e inteiramente,
fosse e vivesse na verdade e na autenticidade” (Husserl,
Psicologia Fenomenológica, p. 299).

A fenomenologia é um modo de assumir singularmente as questões universais,


que tocam aos homens em sua comunhão e em sua solidão fundamentais. É uma mathesis
universalis sui generis:

“O ‘ser primeiro em si’, que serve de fundamento a tudo o


que há de objetivo no mundo, é a intersubjetividade
transcendental, a totalidade das mônadas que se unem nas
diversas formas de comunidade e comunhão. Mas, no
interior de qualquer esfera monádica, e, a título de
possibilidade ideal, no interior da esfera monádica
imaginável, reaparecem os problemas da realidade
contingente, da morte, do destino, o problema da
possibilidade de uma vida ‘autenticamente’ humana e tendo
um ‘senso’ na acepção mais forte desse termo e, entre esses
problemas, os do ‘sentido’ da história e assim por diante,
subindo cada vez mais alto. Podemos dizer que são esses
problemas éticos e religiosos, mas postos num terreno onde
deve ser colocada toda questão que possa ter um sentido
possível para nós. É assim que se realiza a idéia de uma
filosofia universal de forma bem diferente daquela
representada por Descartes e pelo seu tempo, que foram
seduzidos pela idéia da ciência moderna. Ela não se realiza
sob a forma de um sistema universal de teoria dedutiva,
como se tudo estivesse englobado na unidade de um
cálculo. O sentido essencial dessa ciência transformou-se
radicalmente. Temos diante de nós um sistema de
disciplinas fenomenológicas, do qual a base fundamental
não é o axioma ego cogito, mas uma plena, inteira e
universal tomada de consciência de si mesmo... O oráculo
délfico   adquiriu um novo sentido. A
ciência positiva é uma ciência do ser, a qual se perdeu no
mundo. É preciso de início perder o mundo pela  para
reencontra-lo, em seguida, numa tomada de consciência
universal de si mesmo. Noli foras ire, disse Santo
Agostinho, in te redi, in interiore homine habitat veritas”.

O Princípio dos princípios no método fenomenológico

A aprendizagem da fenomenologia consiste, antes de tudo, em aprender a ver. A


paixão pelo ver gera, no pensar, a atitude de cuidar de ser pura recepção do que se mostra.
O pensamento é desafiado a se ater àquilo que se mostra, ao fenômeno. O seu falar precisa
se tornar um dizer, isto é, um deixar e fazer ver o que se mostra em si mesmo e a partir
de si mesmo. Precisa se tornar, então, a ressonância e a repercussão do próprio vir à fala
do que se evidencia, ou seja, do que emerge, do que vem à luz. Isso significa: ir às coisas
mesmas.

“Para mim, um homem que não contempla parece mal estar


vivendo; e um filósofo que não cultiva e não pratica
contemplação não é digno deste nome: ele não é um filósofo
mas um profissional da ciência e, entre os filisteus, o mais
filisteu” (Brentano, Carta a Stumpf).

“O ensino de Husserl acontecia na forma de um exercício


passo a passo do ‘ver’ fenomenológico, que exigia, ao
mesmo tempo, um não contar com o uso de conhecimentos
filosóficos não examinados, mas também a renúncia a
trazer para o diálogo a autoridade dos grandes
pensadores...” (Heidegger, à Coisa do pensar, p. 86).

“... Husserl me abriu os olhos...” (Heidegger, Ontologia –


Hermenêutica da facticidade, p. 5).

“O exercício fenomenológico é mais importante do que ler


Hegel” (Heidegger, Seminário de Le Tohr, 1968).

“Para mim, trata-se, realmente, de exercitar-se em uma


fenomenologia do que é simples e, por isto, não aparece.
Através da leitura de livros, ninguém chega ao ‘ver’
fenomenológico... Para mim, trata-se, antes de tudo, de
praticar o ‘ver fenomenológico’...” (Heidegger, Cartas a
Roger Munier, 16 de abril e 11 de agosto de 1973).
Aqui, porém, não roçamos o problema metódico fundamental da fenomenologia?
De certo que sim. Trata-se da pergunta pelo modo de ser da abertura científica – onde
este termo é entendido no sentido da ciência filosófica, ontológica – da esfera das
vivências. Qual o princípio metódico que guia toda investigação fenomenológica?
Husserl assim apresentou o “princípio dos princípios” da fenomenologia:

“No princípio de todos os princípios: que toda visão


originariamente doadora é uma fonte justa do
conhecimento; que tudo aquilo que se nos oferece
originariamente numa “intuição” (por assim dizer em sua
realidade efetiva, em carne e osso), há que ser tomado
simplesmente como aquilo que se mostra, mas também só
nos limites em que se dá aí – assim, nenhuma teoria
pensável pode nos induzir a erro”155.

Tal apresentação do princípio metódico da fenomenologia não faz desta uma


investigação teorética, uma busca de conhecimento? Não faz dela uma ciência positiva e,
até mesmo, empírica? Não determina o seu método como um procedimento teorético?
Como negar que a fenomenologia tenha escopos teoréticos? Como negar o racionalismo
matemático, o esprit de géométrie, que parece estar à sua base? Não se entende ela a si
mesma como “ciência de rigor”, enquanto ciência filosófica?

Certamente, trata-se de theoria, isto é, de um ver, mas de um ver simples e


originário daquilo que de modo simples e originário se mostra. Seria, portanto, errôneo
interpretar a visão, a “intuição”, deste ver, como a visualização teorética que
anteriormente descrevemos. Certamente, trata-se de conhecimento, no sentido de uma
radicalização daquela “tomada de conhecimento” própria da experiência fáctica da vida.
Seria, por conseguinte, equivocado interpretar este conhecer como sendo o conhecimento
teorético, objetivante, generalizante do simplesmente dado. Decerto, trata-se de ciência,
de um saber todo próprio, ontológico. Seria, por isso, errado interpretar esta ciência como
tendo o modo de ser das ciências positivas, ônticas. De certo, está em jogo uma certa
empiria, uma certa atenção àquilo que nos oferece o chão da nossa experiência, bem como
o respeito pelos limites desta, mas não está dito qual a envergadura desta experiência e
bem pode ser que um tal empirismo seja mais radical do que o empirismo das ciências
positivas em geral, naturais ou humanas156. Seria, portanto, um erro interpretar o

155
E. HUSSERL, Ideen I, 43-44.
156
Brentano, mestre de Husserl, havia almejado realizar o sonho de outros pensadores, como Descartes
e Leibniz, a saber, lançar os fundamentos e construir a filosofia como uma ciência universal – uma
empirismo fenomenológico como experimentalismo científico. De seguro, a
fenomenologia se compreende a si mesma como uma realização, a mais plena, da razão.
Mas não está dito que a racionalidade da razão se reduz à racionalidade científica,
matemática, ao esprit de géométrie, nem que seja esta a racionalidade originária. Pode ser
que a racionalidade procurada pela fenomenologia, num deixar e fazer desabrochar, seja
primordialmente a racionalidade própria do esprit de finesse. É possível, também, que a
razão não seja algo simplesmente dado ao homem, mas a conquista de um modo de ser
na busca da verdade, conquista que é sempre historial, que supõe um engajamento na
vida, uma busca apaixonada, arriscada, mas ao mesmo tempo intrépida, do conhecimento
do mistério do ser, ou seja, da recepção de sua doação na sua retração. Pode ser que o
rigor da ciência fenomenológica nada tenha a ver com a exatidão do conhecimento
científico-positivo, mas se atenha a um outro rigor, a uma outra lógica, que seja, muito
mais, uma ausculta do lógos, do recolhimento da infinita riqueza da vida no uno de seu
mistério.

Que o princípio apresentado por Husserl não possa ser entendido como uma
proposição teorética, como um axioma ou algo parecido, já se vê do fato de que ele é
apresentado como um princípio dos princípios, ou seja, como algo que pre-jaz a todos os
princípios, a toda teoria e ciência. Tal princípio, portanto, não é de natureza teorética. Mas
também não é de natureza prática, se entendermos por práxis apenas a ação dada no
horizonte da experiência do viver cotidiano ou, de modo ainda mais pobre, como um mero
fazer isto ou aquilo. Talvez, no ponto instaurador de um tal princípio, theoria e práxis
sejam o mesmo. É que a theoria, o empenho por um ver originário que vê de modo
originário e simples aquilo que de modo originário e simples se oferece, isto é, se doa na

Mathesis Universalis. A seu ver, esta ciência deveria ser rigorosamente empírica. Com outras palavras, ela
deveria voltar-se para a vida do ego, da res cogitans ou consciência, atendo-se às consistências factuais
(Tatbestände). Não se tratava, nesta empreitada, de partir de teorias já prontas e de, em seguida, deduzir
suas conseqüências, mas de ter uma abordagem que se atém à coisa mesma, que seja “objetiva”
(sachlich). Neste caso, a experiência seria a verdadeira mestra do fenomenólogo. Experiência, aqui, no
entanto, não deve ser entendida de modo redutivista, decidindo de antemão o seu âmbito como sendo o
apenas sensível e o passível de experimentação e cálculo. O fenomenólogo precisa deixar-ser a
experiência e colhê-la no seu perfil essencial. Ele não trabalha tanto com generalizações, mas com
intuições formais, ou seja, com apreensões claras e distintas de estruturas essenciais dos fenômenos. O
seu trabalho é descritivo, no sentido de se ater ao que as coisas mesmas mostram, de intuir suas formas,
estruturas, essências. Isto implica, antes de tudo, respeitar o modo de acesso às coisas mesmas e as
dimensões, em que elas se deixam encontrar. O pensar fenomenológico, isto é, filosófico, pode e deve
ser empírico, isto é, fiel à experiência. Só que esta fidelidade consiste num deixar-ser a experiência como
experiência. Deixar-ser, no entanto, é uma exigência muito mais radical para o pensar, do que a de ir até
a experiência com decisões teóricas e metódicas já tomadas. Neste sentido, todo o empirismo e
positivismo tradicionais mostram-se insuficientemente empíricos. Cfr. M. HEIDEGGER, PGZ, 23-28.
sua evidência, é a radicalização do engajamento no viver, uma radicalização e
plenificação da intenção originária da vida assumida com veracidade, a atitude originária
do vivenciar e do viver como tal, a absoluta simpatia da vida que é idêntica com o
vivenciar mesmo157. É que, na vivência, a vida não somente acontece como vida, mas ela
vibra em si mesma, ela se estremece, goza de si mesma, sofre consigo mesma, rejubila-
se e aflige-se em si mesma. Assim, a vida na sua plenitude e auto-suficiência, como
aparece na imagem arquetípica da serpente que morde a sua própria cauda (a Uroboros),
é ponto de partida e o ponto de chegada de todo o filosofar, de todo o empenho
fenomenológico.

A fenomenologia quer ser não somente uma “intuição hermenêutica” ou quiçá uma
“intuição hermética” da vida158. Ela quer ser vida, e vida fenomenológica. A atitude

157
Podemos, agora, recordar o ponto de partida de um fenomenológo francês contemporâneo, que
desenvolve uma reflexão acerca da vida justamente num encontro e confronto com Husserl e Heidegger:
Michel Henry. É-nos impossível, aqui, avaliar este encontro e confronto. Apenas acenamos para o modo
de ser pático (pathétique) da vida, por ele ressaltado: ‘... Só porque tem aquilo que revela em um abraço
que nada pode interromper, ela [a vida] é e pode ser vida. A vida se abraça, se experimenta, sem distância,
sem diferença. Só assim ela pode experimentar a si mesma, pode ser ela mesma aquilo que experimenta
– consequentemente, ser, ao mesmo tempo, aquilo que experimenta e aquilo que é experimentado. Na
auto-revelação da vida nasce a realidade, toda possível realidade. O conteúdo da vida, que esta
experimenta, seja a vida mesma, remete a uma condição mais fundamental, à essência mesma do ‘viver’;
ou seja, a um modo de revelação, cuja fenomenicidade específica é a carne de um páthos, uma matéria
afetiva pura, de que se acha radicalmente excluída toda cisão e toda a separação. Unicamente porque tal
é a matéria fenomenológica de que é feita esta revelação, pode-se dizer que nela, aquilo que se revela e
aquilo que é revelado são o mesmo. É esta substância fenomenológica pática que define e contém toda
‘realidade’ concebível”. M. HENRY, Io sono la verità – Per una filosofia del cristianesimo, Queriniana,
Brescia, 1997, p. 50-51.
158
Parece que o sentido genuíno da “hermenêutica” é a “hermética”, ou seja, a escuta e a
correspondência à linguagem do mistério e ao mistério da linguagem. A expressão “hermenêutico” (em
grego hermeneutiké) deriva do verbo grego hermeneuein, o qual foi traduzido pelos romanos por
interpretari, interpretar. Neste sentido é que a hermenéia foi entendida como a arte da interpretação e o
hermeneus como o intérprete. A partir daí se compreendeu a hermenêutica como um exercício de
esclarecer, no sentido de conduzir uma coisa estranha e obscura para o âmbito claro e familiar da razão
e do discurso. Nesta concepção de hermenêutica, permanece pressuposto que a razão e o discurso são a
coisa mais clara do mundo. Também está pressuposto que a racionalidade e a discursividade são o
decisivo e o originário. Ora, o decisivo e o originário não são a racionalidade e a discursividade, mas o
mistério e o inefável. Nós pensamos e falamos não para apreendermos e esgotarmos o mistério do ser
nas malhas de nossa lógica e de nossa linguagem. Nós pensamos e falamos por podermos nos calar diante
da fala do mistério e por poder responder, cor-responder ao mistério da fala. Assim, hermeneuien,
interpretar, não significa conduzir alguma coisa para a claridade do que se pode pensar a partir da
racionalidade matemática, bem como para os limites do que se pode dizer a partir da linguagem lógica;
significa, ao contrário, reconduzir alguma coisa ao seu lugar de origem no mistério da linguagem e na
linguagem do mistério. É por isso que a palavra hermeneus remete ao nome de Hermes, o mensageiro, o
anunciador dos deuses, ou seja, aquele que atua a embaixada do destino divino, que traz a mensagem do
envio do mistério. Hermeneuta é aquele que deixa ser a fala do mistério, a sua auto-exposição, a sua
abertura, que é ao mesmo tempo oclusão, como a rosácea das catedrais góticas medievais nos dá a
entender. Porque o mistério se abre à medida que se fecha, se dá à medida que se subtrai, torna-se
manifesto, ocultando-se, em suma, só ser revela como mistério, o sentido da hermenêutica será, pois,
fundamental da fenomenologia só se torna absoluta se nós nela vivemos. O viver na
atitude fenomenológica não conduz à construção de algum sistema conceptual. Conduz o
próprio viver a uma crescente potenciação e elevação de si mesmo. A atitude
fenomenológica fala de uma aptidão, que não se conquista de hoje para amanhã, como se
se tratasse de um hábito qualquer, de um uniforme que se pudesse tirar e pôr a qualquer
momento. Uma tal aptidão exige a aprendizagem de um rigor todo próprio: o rigor de se
ater ao que se mostra, enquanto e à medida que se mostra, ou melhor, em perseguir o
ocultamento do que, mostrando-se, retrai-se para dentro do seu mistério.

O método na fenomenologia é decisivo. Não porque a fenomenologia é uma técnica,


mas porque ela é essencialmente um caminho do pensar, ou melhor, um pensar do
caminho. O pensar, que está a caminho, que se deixa a-viar na investigação dos vestígios
dos envios do mistério não pode ter como método senão aquilo que são as exigências do
próprio caminho. Neste sentido, o seu método não é construído a partir de fora, mas é
constituído a partir da dinâmica do próprio caminhar. Por isso seria um erro fatal
considerar a fenomenologia uma corrente filosófica, um ponto de vista que se impõe de
antemão aos fenômenos. Seria a negação da própria fenomenologia. O que é
fenomenologia, portanto, não se pode dizer de antemão. Ela só é à medida que adotamos
a atitude originária apontada acima no “princípio de todos os princípios”.

O viver fenomenológico se cumprirá no assumir, a partir da vibração na absoluta


simpatia da vida, a intenção originária da vida veraz. Dizíamos que isto nada tem a ver
com o esteticismo da vivência. É, antes, um projeto ético. Mas a fenomenologia é um
projeto ético não por prescrever uma doutrina moral. Ela o é por buscar dar à existência
humana, assumida na responsabilização pela verdade, uma consistência toda própria. O
sentido deste projeto, que está à base da fenomenologia, Husserl apresenta com as
seguintes palavras:

“Em sua universal auto-referência, a fenomenologia


reconhece sua própria função em um possível viver
transcendental da humanidade. Ela reconhece as normas

tornar-se, em última instância, hermética. Neste sentido é que H. Rombach, certamente numa original
apropriação da concepção de hermenêutica de M. Heidegger (tal como aparece, por exemplo, em
Unterwegs zu Sprache) entendeu a “hermética” como um Ansatz (ponto de partida, arranque) do seu
filosofar. Cfr. M. HEIDEGGER, Unterwegs zu Sprache (US), Günther Neske, Stuttgart, 1997, p. 121-122; H.
ROMBACH, Welt und Gegenwelt – Umdenken über die Wirklichkeit: die philosophische Hermetik, Herder,
Basel, 1983, p. 15-17; E. C. LEÃO, Aprendendo a pensar, vol. I, Vozes, Petrópolis, 2000, p. 248.
absolutas que a partir deste viver podem ser sacadas pelo
olhar; mas reconhece também sua estrutura originária,
tendencial-teleológica, na direção de uma descoberta destas
normas e sua efetuação prática e consciente. Ela se
reconhece então, enquanto função da universal auto-
reflexão da humanidade (transcendental), a serviço de uma
práxis universal da razão, ou seja, a serviço da tendência
que se torna livre pela descoberta, na direção da idéia
universal, radicada no infinito, de uma absoluta perfeição
ou, o que dá na mesma, na direção da idéia – radicada no
infinito – de uma humanidade que, de fato e inteiramente,
fosse e vivesse na verdade e na autenticidade”159.

Sim, a fenomenologia, enquanto “intuição hermenêutica” da vida não é uma mera


descrição da vida, como se fosse possível considerar a vida um objeto; é um intus ire, um
ir para dentro, um introduzir-se, um ir ao fundo do e no mistério da vida mesma. Um tal
engajamento é já um querer viver a vida de modo fenomenológico, ou seja, fazendo e
deixando que a vida aconteça, se realize, segundo a sua verdade, ou seja, segundo suas
possibilidades mais altas de transparência, de nitidez, de iluminação. Neste sentido, a
fenomenologia é fenopráxis, ou seja, a dinâmica do engajamento humano (práxis) no
sentido do fazer e deixar vir à luz (phaíno) a vida na sua plenitude.

FENOMENOLOGIA COMO POSSIBILIDADE DO PENSAR


PERGUNTADOR.

FENOMENOLOGIA:
REALIDADE X POSSIBILIDADE

I.1. Fenomenologia como realidade:

159
E. HUSSERL, Phänomenologische Psychologie (Ph.Psych.), Husserliana, Band IX, Martinus Nijhoff, Den
Haag, 1962, p. 299.
Nós estamos acostumados a representar a Fenomenologia como um
movimento filosófico emergente no início do século XX:

✓ que surgiu com as investigações matemáticas, lógicas, psicológicas, de teoria


do conhecimento e de crítica da razão, conduzidas por Edmund Husserl (1859-
1938), cujas obras principais apresentam os seguintes títulos:

- Filosofia da Aritmética (1891);

- Investigações Lógicas (1900/1901);

- A idéia da fenomenologia (5 Lições: 1907);

- A filosofia como ciência de rigor (1910);

- Idéias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica


(Volume I em 1913);

- Meditações Cartesianas (1931).

✓ que se constituiu como um círculo de círculos de investigadores no trabalho


investigativo dos pesquisadores e pensadores de Göttingen e de Freiburg, o qual
foi documentado no Jahrbuch für Philosophie und phänomenologische
Forschung (Anuário para filosofia e pesquisa fenomenológica) [Principais nomes:
J. Daubert, A. Pfänder, T. Lipps, H. Lipps, A. Reinach, Mortiz Geiger, Dietriech von
Hildebrand, Hedwig Conrad Martius, E. Stein, A. Koyré, J. Hering, Roman
Ingarden, Fritz Kaufmann, Gerda Walter, Hebert Spiegelberg, etc];

✓ que tomou impulso considerável nos trabalhos de Max Scheler (1874-1928), o


qual abordou, sobretudo, a fenomenologia da afetividade, dos valores, da ética,
da religião, etc;

✓ que irrompeu na ontologia fundamental e no pensamento da história do ser em


Martin Heidegger (1889-1976) [Obras completas: cerca de 102 títulos – marco:
Ser e Tempo, 1927];

✓ que tornou fecundo o empenho de vários pensadores franceses, como, por


exemplo, Merleau-Ponty, Sartre, Levinas;
✓ que se espalhou pelos Países Baixos, pelos Estados Unidos da América, América
Latina e que chegou até mesmo à Ásia, na escola fenomenológica de Kioto, no
Japão e, aos poucos, foi se constituindo numa grande tendência da filosofia e das
ciências contemporâneas;

✓ Trata-se, pois, de um movimento, não de uma escola. Um movimento, que seria


constituído como círculo de círculos de investigadores, que têm uma impostação
ou atitude investigativa comum, mas que não se estabelece no modo de uma
doutrina uniforme. Neste sentido, há várias tendências fenomenológicas, no
movimento da fenomenologia. Em todo o caso, é inegável que a fenomenologia
está na raiz de um considerável ímpeto de renovação da filosofia e, por
conseguinte, das ciências positivas e até mesmo de vários âmbitos de vida e
cultura, na primeira metade do século XX.

✓ Esta apreensão da fenomenologia como movimento é correta. Só que, talvez, ela


não colha o mais essencial da fenomenologia: ela capta a fenomenologia como
uma realidade já dada e constituída positiva e factualmente e não como
dinâmica de possibilidade por se constituir;

✓ Sem falar que, certamente, o que aparece a uma constatação historiográfica


como a expansão do movimento fenomenológico na superfície da cultura e
civilização européia e, por conseguinte, ocidental, e seu encontro com o mundo
oriental, talvez não nos deixe ver que a fenomenologia está na raiz mesma das
tendências mais profundas e ocultas de nossa época, isto é, do modo de se rever
e de, por assim dizer, se re-fundar o sentido da modernidade.

I.2 A fenomenologia como possibilidade:

“... O que ela possui de essencial não é ser uma ‘corrente’ filosófica
real. Mais elevada do que a realidade está a possibilidade. A compreensão da
fenomenologia depende unicamente de se apreendê-la como possibilidade” (Heidegger,
Ser e Tempo, p. 70).

“A fenomenologia há de ser concebida, segundo sua possibilidade,


como não notória e óbvia. Uma possibilidade tem um jeito próprio de se agarrar e de se
guardar. Não se apanha uma possibilidade de maneira temática e
empreendedoramente. Mas, agarrar uma possibilidade significa: agarrá-la no seu ser e
formar-se nele, ou seja, naquilo que, nela, está esboçado como possibilidades”
(Heidegger, Ontologia – Hermenêutica da Facticidade, p. 74).

✓ Fenomenologia é, essencialmente, uma possibilidade. Possibilidade não no


sentido lógico (o não contraditório), mas no sentido do poder-ser concreto, isto
é, que con-cresce na dinâmica da própria liberdade e auto-responsabilização de
quem se acha afeiçoado pela fenomenologia.

✓ Nós já sempre estamos e não estamos na fenomenologia como possibilidade


concreta. Porque estamos, podemos nos tornar fenomenólogos. Porque não
estamos, temos que nos tornar, sempre de novo, uma vez tocados por essa
possibilidade.

✓ Ninguém nunca vem a ser fenomenólogo, a não ser num caminho de experiência
de busca, em que a fenomenologia se torna um querer todo próprio de indagar
e investigar.

✓ Aos poucos, esse querer se torna uma necessidade imperiosa, haurida do mais
profundo da própria liberdade. Uma necessidade livre, que molda o ser, o viver,
o pensar, o agir, de quem busca, indaga, investiga.

✓ Quando alguém deslancha nessa possibilidade/necessidade, a fenomenologia se


torna um gosto de ser, um prazer de viver, uma alegria de pensar, sim, se torna
jovialidade de uma práxis (fenomenologia = fenopraxia).

✓ Fenomenologia só é como fáctica, como historial, ou seja, como destinação


concreta da existência, em sua dinâmica de liberdade, isto é, de responsabilidade
através do trabalho:

✓ “Carece dizer que eu não sou um filósofo. Não penso fazer algo que possa ser,
ao menos, comparado a isto. Algo assim não está, absolutamente, nas minhas
intenções. Eu simplesmente faço aquilo que devo e que considero necessário. E
o faço como posso: não acomodo o meu trabalho filosófico às tarefas culturais
de um ‘hoje universal’. E não tenho nem mesmo a tendência de Kierkegaard. Eu
trabalho de maneira concretamente fáctica, a partir do meu ‘eu sou’ – da minha
proveniência espiritual de fato, do meu milieu, dos meus contextos vitais,
daquilo que me é acessível como experiência viva, em que vivo. Esta facticidade,
enquanto existenciária, não é um mero ‘cego estar aí’; encontra-se na existência,
junto com ela, e isto quer dizer, eu vivo o que ‘eu devo’, do que não se fala. Junto
a esta facticidade do ser-assim, junto ao histórico, encrespa-se o existir, quer
dizer, eu vivo as obrigações íntimas da minha facticidade, e isto, de modo tão
radical quanto o compreendo” (Heidegger, carta a Karl Löwith, de 19 de agosto
de 1921).

✓ A fenomenologia não existe como doutrina, mas só como caminho. E caminho


só acontece como história. Todo tema de questionamento é, nesse caminho,
apenas pretexto para seguir perguntando, submetendo-se às evidências das
coisas, num empenho intrépido e jovial de amar a auto-revelação dos
fenômenos, revelação que é, sempre, re-velação: desvelamento e velamento,
doação e retraimento.

✓ Fenomenologia é atitude de espera do inesperado e de memória agradecida pela


doação reveladora do ser:

“A espantosa realidade das coisas

É minha descoberta de todos os dias.

Cada coisa é o que é,

E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra

E quanto isso me basta” (Fernando Pessoa).

✓ O saber da fenomenologia só pode mesmo ser o saber do não-saber.

✓ “Em primeiro lugar, quem quiser realmente tornar-se filósofo deverá ‘uma vez
na vida’ voltar-se para si mesmo e, dentro de si, procurar inverter todas as
ciências admitidas até aqui e tentar reconstruí-las. A filosofia – a sabedoria – é
de qualquer forma um assunto pessoal do filósofo. Ela deve constituir-se como
algo dele, ser a sua sabedoria, seu saber, que, embora se volte para o universal,
seja adquirida por ele e a qual ele possa ter condições de justificar desde a
origem e em cada uma de suas etapas, apoiando-se em intuições absolutas. A
partir do momento em que tomei a decisão de me voltar para esse objetivo,
decisão essa que só pode me levar à vida e ao desenvolvimento filosófico,
consequentemente, fiz meu voto de pobreza em matéria de conhecimento.
Desde então fica claro que será necessário perguntar como poderia encontrar
um método que me desse o caminho a seguir para chegar ao saber verdadeiro”
(Husserl, Meditações Cartesianas, p. 20).

“Pouco saber e muita jovialidade é dada aos mortais” (Hölderlin)

✓ A fenomenologia é um modo “transcendental” de viver, uma fenopráxis da


razão, que acontece historialmente desde o dinamismo da mais radical
autonomia da liberdade:

“Em sua universal auto-referência, a fenomenologia reconhece sua


própria função em um possível viver transcendental da humanidade. Ela reconhece as
normas absolutas que a partir deste viver poder ser sacadas pelo olhar; mas reconhece
também sua estrutura originária, tendencial/teleológica, na direção de uma descoberta
destas normas e sua efetuação prática e consciente. Ela se reconhece, então, enquanto
função da universal auto-reflexão da humanidade (transcendental), a serviço de uma
práxis universal da razão, ou seja, a serviço da tendência que se torna livre pela
descoberta, na direção da idéia universal, radicada no infinito, de uma absoluta
perfeição ou, o que dá na mesma, na direção da idéia – radicada no infinito – de uma
humanidade que, de fato e inteiramente, fosse e vivesse na verdade e na autenticidade”
(Husserl, Psicologia Fenomenológica, p. 299).

✓ A fenomenologia é um modo de assumir singularmente as questões universais,


que tocam aos homens em sua comunhão e em sua solidão fundamentais. É uma
mathesis universalis sui generis:

“O ‘ser primeiro em si’, que serve de fundamento a tudo o que há de


objetivo no mundo, é a intersubjetividade transcendental, a totalidade das mônadas
que se unem nas diversas formas de comunidade e comunhão. Mas, no interior de
qualquer esfera monádica, e, a título de possibilidade ideal, no interior da esfera
monádica imaginável, reaparecem os problemas da realidade contingente, da morte, do
destino, o problema da possibilidade de uma vida ‘autenticamente’ humana e tendo um
‘senso’ na acepção mais forte desse termo e, entre esses problemas, os do ‘sentido’ da
história e assim por diante, subindo cada vez mais alto.

Podemos dizer que são esses problemas éticos e religiosos, mas postos
num terreno onde deve ser colocada toda questão que possa ter um sentido possível
para nós. É assim que se realiza a idéia de uma filosofia universal de forma bem diferente
daquela representada por Descartes e pelo seu tempo, que foram seduzidos pela idéia
da ciência moderna. Ela não se realiza sob a forma de um sistema universal de teoria
dedutiva, como se tudo estivesse englobado na unidade de um cálculo. O sentido
essencial dessa ciência transformou-se radicalmente. Temos diante de nós um sistema
de disciplinas fenomenológicas, do qual a base fundamental não é o axioma ego cogito,
mas uma plena, inteira e universal tomada de consciência de si mesmo... O oráculo
délfico gnwte seauton adquiriu um novo sentido. A ciência positiva é uma ciência do ser,
a qual se perdeu no mundo. É preciso de início perder o mundo pela epoch para
reencontra-lo, em seguida, numa tomada de consciência universal de si mesmo. Noli
foras ire, disse Santo Agostinho, in te redi, in interiore homine habitat veritas”.

II. FENOMENOLOGIA COMO PENSAR PERGUNTADOR

– A fenomenologia supõe a disposição de aprender a pensar. O aprender,


no entanto, se cumpre desde a disponibilidade do desaprender:

✓ “Muitas são as diferenças entre a atitude de aprender e a atitude de estudar.


Quem vai estudar quer mais conhecimentos e informações para saber mais, para
poder mais, para assegurar-se mais. Quem vai aprender quer esvaziar-se mais e
desaprender mais para arriscar-se mais a ser mais. Se não se apostar a vida, não
se aprende nada. Quando se estuda, cresce o receituário, isto é, o repertório das
receitas; aumentam, em conseqüência, as possibilidades de fazer. Quando se
aprende, crescem as possibilidades de ser e realizar-se; aumentam, em
conseqüência, as possibilidades de viver e de morrer” (Emmanuel Carneiro
Leão).

– Aprender é tornar-se capaz de receber o que já sempre nos foi dado:


✓ “Este verdadeiro aprender é, por conseqüência, um tomar muito peculiar, um
tomar no qual aquele que toma, toma, no fundo, aquilo que já tem. A este
aprender corresponde, também, o ensinar. Ensinar é um dar, um oferecer; no
ensinar, não é oferecido o ensinável, mas é dada somente ao aluno a indicação
de ele próprio tomar aquilo que já tem. Quando o aluno recebe apenas qualquer
coisa de oferecido, não aprende. Aprende, pela primeira vez, quando
experimenta aquilo que toma como sendo o que, verdadeiramente, já tem.

O verdadeiro aprender está, pela primeira vez, onde o tomar aquilo que
já se tem é um dar a si mesmo e é experimentado enquanto tal. Por isso, ensinar não
significa senão deixar os outros aprender, quer dizer, um conduzir mútuo até a
aprendizagem. Aprender é mais difícil do que ensinar; assim, somente quem pode
aprender verdadeiramente – e somente na medida em que tal consegue – pode
verdadeiramente ensinar. O verdadeiro professor diferencia-se do aluno somente
porque pode aprender melhor e quer aprender mais autenticamente. Em todo o ensinar
é o professor quem mais aprende” (Heidegger, O que é uma coisa?, p. 79-80).

✓ A aprendizagem da fenomenologia consiste, antes de tudo, em aprender a ver.


A paixão pelo ver gera, no pensar, a atitude de cuidar de ser pura recepção do
que se mostra. O pensamento é desafiado a se ater àquilo que se mostra, ao
fenômeno. O seu falar precisa se tornar um dizer, isto é, um deixar e fazer ver o
que se mostra em si mesmo e a partir de si mesmo. Precisa se tornar, então, a
ressonância e a repercussão do próprio vir à fala do que se evidencia, ou seja, do
que emerge, do que vem à luz. Isso significa: ir às coisas mesmas.

“Para mim, um homem que não contempla parece mal estar vivendo; e
um filósofo que não cultiva e não pratica contemplação não é digno deste nome: ele
não é um filósofo mas um profissional da ciência e, entre os filisteus, o mais filisteu”
(Brentano, Carta a Stumpf).

“O ensino de Husserl acontecia na forma de um exercício passo a passo


do ‘ver’ fenomenológico, que exigia, ao mesmo tempo, um não contar com o uso de
conhecimentos filosóficos não examinados, mas também a renúncia a trazer para o
diálogo a autoridade dos grandes pensadores...” (Heidegger, à Coisa do pensar, p. 86).
“... Husserl me abriu os olhos...” (Heidegger, Ontologia – Hermenêutica
da facticidade, p. 5).

“O exercício fenomenológico é mais importante do que ler Hegel”


(Heidegger, Seminário de Le Tohr, 1968).

“Para mim, trata-se, realmente, de exercitar-se em uma fenomenologia


do que é simples e, por isto, não aparece. Através da leitura de livros, ninguém chega ao
‘ver’ fenomenológico... Para mim, trata-se, antes de tudo, de praticar o ‘ver
fenomenológico’...” (Heidegger, Cartas a Roger Munier, 16 de abril e 11 de agosto de
1973).

– Fenomenologia é o ver simples e singelo do que é simples e singelo:

✓ “O simples guarda na verdade o enigma do que permanece e é grande. De chofre


surge inesperado entre os homens e, não obstante, necessita crescer e
amadurecer durante longo tempo. No invisível do que é sempre o Mesmo,
protege seus dons. O alcance e a envergadura de todas as coisas maduras, que
demoram em torno do Caminho, é que instauram mundo (...).

✓ E assim o homem se dissipa e erra sem caminho. Para o dissipado o simples


parece uniforme. O uniforme causa tédio e náusea. Os entediados pela náusea
só acham monotonia à sua volta. O Simples já se retirou. Sua força silenciosa
sucumbiu.

✓ Não há dúvida, diminui rápido o número daqueles que conhecem o Simples,


como uma conquista própria de sua propriedade. Mas estes poucos serão por
toda parte os que permanecerão” (Heidegger, O caminho do campo).

– Fenomenologia é ver com os ouvidos e escutar com visão:

“Tão logo nós temos a coisa diante dos olhos e, no coração, o ouvido
colado à palavra, vinga o pensar” (Heidegger, Da experiência do pensar).

– Fenomenologia é o pensar da experiência e a experiência do pensar:

“Poucos são experientes o bastante na diferença entre um objeto de


erudição e uma coisa pensada” (Heidegger, Da experiência do pensar).
– O devotamento do pensar consiste em perguntar:

✓ “Pôr perguntas; perguntas não são idéias casuais; perguntas também não são os
hoje usuais ‘problemas’, que ‘a gente’ apanha do ouvir dizer e do ter lido e
decora com o gesto aparente de profundidade de pensamento. Perguntas
crescem do confronto com as ‘coisas’. E coisas só estão aí, onde existem olhos”.

– Perguntando, o pensamento responde e corresponde ao que o provoca


a pensar.

✓ “E hoje? O tempo da filosofia fenomenológica parece ter passado. Ela já vale


como algo do passado, que ainda figura historiograficamente ao lado de outras
correntes da filosofia. Só que a fenomenologia não é, naquilo que ela tem de
mais próprio, uma corrente. Ela é a possibilidade do pensar que, de tempos em
tempos, se transforma e que, só por isso, permanece – a saber, a possibilidade
do corresponder ao apelo daquilo que se há de pensar. Se a fenomenologia for
experimentada e considerada assim, então ela pode desaparecer, enquanto
título, em favor da coisa do pensar, cuja revelação permanece um mistério”
(Heidegger, À coisa do pensar, p. 90).

– O que provoca a pensar, o fenômeno por excelência, o que passa sempre


batido à visão, ou seja, o mais próximo e o mais simples. Fenomenologia
é o ver simples e singelo do que é simples e singelo:

✓ “O simples guarda na verdade o enigma do que permanece e é grande. De chofre


surge inesperado entre os homens e, não obstante, necessita crescer e
amadurecer durante longo tempo. No invisível do que é sempre o Mesmo,
protege seus dons. O alcance e a envergadura de todas as coisas maduras, que
demoram em torno do Caminho, é que instauram mundo (...).

✓ E assim o homem se dissipa e erra sem caminho. Para o dissipado o simples


parece uniforme. O uniforme causa tédio e náusea. Os entediados pela náusea
só acham monotonia à sua volta. O Simples já se retirou. Sua força silenciosa
sucumbiu.
✓ Não há dúvida, diminui rápido o número daqueles que conhecem o Simples,
como uma conquista própria de sua propriedade. Mas estes poucos serão por
toda parte os que permanecerão” (Heidegger, O caminho do campo).
A QUESTÃO "SER E TEMPO": DA ESSÊNCIA DA PERGUNTA À
PERGUNTA DA ESSÊNCIA – O TAO DO PENSAMENTO DO SER.

Prof. Marcos Aurélio Fernandes

O livro Ser e Tempo faz neste ano noventa anos de publicação. O melhor modo
de celebrar um livro de filosofia é dispondo-se lê-lo como livro de filosofia, isto é, a lê-lo
no interesse do pensamento. Pensar é memorar. Isto é: trazer à re-cordação. A
cordialidade do pensar, no entanto, consiste em agradecer a dádiva da familiar e ao
mesmo tempo estranha doação do ser. A doação do ser é-nos familiar, uma vez que é
na imensidão aberta do ser que o homem é. O homem habita na clareira do ser. A partir
dela e nela é que ele se torna o homem humano, a travessia, que ele é. Estranha, porém,
é a doação do ser, uma vez que esta doação só vige como doação em se retraindo
sempre de novo. No dizer de Heráclito: - surgimento já tende
ao encobrimento160. Mas o encobrimento do ser, seu mistério, é também sua dádiva.
Sua recusa é um presente. Na reserva do seu encobrimento o mistério de ser preserva,
isto é, guarda e resguarda, seu tesouro. Seu encobrimento é proteção. Subtraindo-se ao
uso e ao abuso do homem, o mistério de ser em retração, atrai o homem para a
gratuidade do desnecessário.

Mais importante que todo o útil é o não-útil. O desnecessário. É a riqueza da


gratuidade. A cháris. Sófocles escreveu:  “a
gratuidade é o que sempre faz apelo à gratuidade”161. Pensar é “eucharistia”, isto é,
ação de dar graças, de agradecer, dizer obrigado. Pensar é agradecer, quer dizer,
responder com gratuidade à gratuidade do mistério do ser, de sua vigência, que se dá
como doação em retraimento, surgimento furtivo, em fuga para o encobrimento, como
um raio em seu relampejo repentino. O poeta Hölderlin, certa vez, depois de uma tempo

160
Anaximandro, Parmênides, Heráclito. Os Pensadores Originários. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 90-91.
161
Apud Heidegger, Martin. “...Poeticamente o Homem Habita” (conferência de 1951). Em: Ensaios e
Conferências. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 180.
de errância por várias paragens, retornando para a sua terra natal, a Suábia, escreveu
um poema, chamado Retorno. Na última estrofe ele escreveu: “................................... e
quando repousamos da vida do dia, dizei, como é que agradeço: Invoco o Alto?”162.
Heidegger, num texto de 1969, comenta: “Agradecer só sabe quem fez a experiência de
sentir-se grato àquilo que o determina, que ele próprio não é. Sentir-se grato significa:
saber ou pelo menos suspeitar ou mesmo apenas perguntar: onde é que moramos? E é
esta pergunta pela morada do homem em nossa época que por uns rápidos momentos
queria perguntar e não responder”163.

O pensamento, entretanto, em perguntando, já está respondendo. Isto quer


dizer: perguntar é o modo de o pensamento responder, melhor, corresponder à doação
do mistério de ser. Neste empenho de perguntar para poder responder e corresponder
ao apelo da gratuidade do mistério, o pensamento se torna, essencialmente, espera do
inesperado. Como espera do inesperado, o pensar é, essencialmente, provisório. Na sua
provisoriedade, o pensamento lança sementes de meditação, como um modo de cuidar
do porvir. O pensamento de hoje se torna, então, porvindouro. No hoje, ele retoma a
vigência do que foi e se recolheu no ter sido, para, na abertura do tempo-espaço de
hoje, responder ao apelo que vem do porvir. O apelo do porvir que nos alcança hoje nos
interroga sobre a morada do homem. Hölderlin diz: “Invoco o Alto”. A pergunta que
Heidegger põe, então é: “será que nossa morada ainda mora numa reserva do Alto? ”164.
Talvez o maior desafio e o maior apelo que nos são postos pelo porvir, hoje, é a questão
de nossa morada na terra. Morar não é apenas residir. Morar é ser-em. Ser-em-o-
mundo, habitando na terra. Habitar, porém, é cuidar. Cuidar não é só cultivar e
construir, é também proteger e venerar. Hölderlin escreveu num poema, recordado por
Heidegger numa conferência de 1951, intitulada “... poeticamente o homem habita...”:

Deve um homem, no esforço mais sincero que é a


vida, / levantar os olhos e dizer: assim / quero ser também?
Sim. Enquanto perdurar junto ao coração / a amizade, pura,
o homem pode medir-se / sem infelicidade com o divino. É
deus desconhecido? / Ele aparece como o céu? / Acredito

162
Apud Heidegger,
163
Heidegger, Martin. A questão da morada do homem (1969). In: Revista Vozes 1977, n. 4, p. 53.
164
Idem, p. 54.
mais / que seja assim. É a medida dos homens. / Cheio de
méritos, mas poeticamente / o homem habita esta terra.
Mais puro, porém, / do que a sombra da noite com as
estrelas, / se assim posso dizer, é / o homem, esse que se
chama imagem do divino. / Existe sobre a terra uma medida?
Não há / nenhuma165.

O apelo do porvir que nos alcança hoje é o do habitar poético. Não é mais o
habitar cheio de méritos, é o habitar poético. Poético é o habitar que adensa a
manifestatividade do ser. A manifestatividade do ser se adensa na poesia originária que
é a Linguagem166. A manifestatividade do ser é sua verdade. O ser, porém, se manifesta
como o que se doa e se retrai, se desvela e se vela, isto é, como mistério. A aberta do
mistério de ser é o campo aberto em que o homem, enquanto viandante, está a
caminho. A esta amplidão aberta do ser “Ser e Tempo” chama de Da-sein. É como
viandante nela que o homem vem a ser o homem humano que ele é: a travessia. No
atravessar dessa travessia, que é a experiência, o homem é provocado a, pensando,
seguir o sentido de ser, atraído pelo seu retraimento.

O caminho do homem no campo da manifestatividade do ser, no entanto, se dá,


sempre de novo, como linguagem. A linguagem é o caminho no qual e para o qual
estamos sempre a caminho. O caminho pertence ao campo, isto é, “à clareira liberadora
onde tudo o que está claro alcança, juntamente o que está encoberto, o livro. O liberar-
encobrir do campo é aquele en-caminhar em que surgem os caminhos que pertencem
ao campo”167. O caminho é o que nos permite acesso. É o que nos possibilita chegar às
coisas. O caminho é o que nos deixa alcançar o que nos vem ao encontro, o que nos
alcança, e alcançando-nos, nos interpela, nos solicita, nos intima. A clareira, o campo
aberto da manifestatividade do ser, concede caminhos. Ela é o que encaminha, isto é,
avia o homem na sua travessia. Ela abre, franqueia caminhos ao homem. O caminho em
que todos os caminhos humanos são encaminhados, porém, é a linguagem. A
linguagem, entendida como lógos, é caminho. O lógos é o um que tudo reúne. Todos os

165
Apud Heidegger, Martin. “...Poeticamente o Homem Habita” (conferência de 1951). Em: Ensaios e
Conferências. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 171.
166
Cf. Heidegger, Martin. Introdução à Metafísica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1987, p. 193.
167
Heidegger, Martin. A caminho da linguagem. Petrópolis / Bragança Paulista: Vozes / Edusf, 2003, p.
154.
seres se reúnem no ser. Heráclito dizia: “tudo vem de acordo com o Lógos”168;
auscultando o Lógos, “é sábio concordar que tudo é um”169. Esse Lógos é, para ele, como
o fogo, que, sobrevindo, distingue e reúne todas as coisas170. Advertiu que o homem
está sempre lidando com o Lógos171. Entretanto, “com o Logos, que é sempre, os
homens se comportam como quem não compreende tanto antes como depois de já ter
ouvido”172. É o que Ser e Tempo chama de esquecimento do ser. “Indolente, o homem
é surpreendido pelo Lógos em tudo”173. No texto intitulado “a essência da linguagem”
(1957-1958), Heidegger adverte-nos que linguagem é caminho e recorda-nos que a
palavra guia do pensamento poético de Lao-Tsé, Tao, significa caminho. E ele arrisca
dizer que “o tao poderia ser, no entanto, o caminho que tudo en-caminha”, isto é, “um
caminho que tudo en-caminha, rasgando para tudo a sua via”. E sentencia: “tudo é
caminho”174.

O pensar que se inaugura em Ser e Tempo é um pensar que encaminha o homem


para o habitar poético, isto é, para o adensamento do mistério de ser em seu
desencobrimento e encobrimento, no seu deixar-se usar e nos seu poupar-se. E esse
adensamento da manifestatividade misteriosa do ser se dá como adensamento da
linguagem. Nesse adensamento, o homem acolhe sua mortalidade, como habitante da
terra sob o céu, e se mede com o divino. Tanto o cantar de Hölderlin quanto o pensar
de Heidegger nos endereça para esse habitar poético.

O pensar de Heidegger pode ser chamado de pensamento do ser. Seu intuito é


adensar a manifestatividade misteriosa do ser. O ser é a partir de que este pensar pensa.
O ser é o elemento no qual este pensar pensa. O ser é a proveniência de que este pensar
recebe o seu envio. O ser é o destino para o qual este pensar se encaminha. Este pensar
pensa agradecendo a parusia do ser. Este pensar pensa esperando o inesperado dessa
mesma parusia. É na dinâmica temporal deste agradecimento para o que foi e desta
espera do advento repentino de um outro princípio, que nos alcança desde o porvir, que

168
Cf. Fragmento 1.
169
Fragmento 50.
170
Fragmento 66.
171
Fragmento 72.
172
Fragmento 1.
173
Fragmento 87.
174
Heidegger, Martin. A caminho da linguagem. Petrópolis / Bragança Paulista: Vozes / Edusf, 2003, p.
155-156.
pensa o pensamento de Ser e Tempo. É uma obra provisória. Melhor: nem é obra. É
caminho. É o caminho. É preparação. Hoje, noventa anos depois, a vigência da tarefa a
que se propôs Ser e Tempo ainda nos diz respeito. Essa tarefa é: preparar a colocação
da questão do sentido do ser.

Entretanto, o que significa isso: “questão do sentido do ser? ”.

Antes de tudo, perguntamos: o que é isso – uma questão?

Assim perguntando, perguntamos pela essência da questão. É a pergunta pelo


ser da questão. Assim, tentando pensar a questão do ser, somos, antes de tudo,
provocados, interpelados, talvez mesmo intimados, a pensar o ser da questão.

Perguntamos pela essência da questão175. Uma questão é uma pergunta. Quase


parece que não precisamos perguntar o que é uma pergunta. Todos os dias
encontramos este fenômeno. É algo trivial. É como um trevo, uma encruzilhada, por
onde os caminhos humanos sempre de novo passam. Todos sabemos o que é uma
pergunta. No entanto, sabemos enquanto não perguntamos. Se perguntamos, no
sentido de perguntar pela essência e pela origem da pergunta, já não sabemos. A
essência da pergunta não é uma pergunta. É o que constitui a pergunta enquanto
pergunta. A origem da pergunta não é uma causa de uma pergunta. A origem da
pergunta é o que deixa e faz ser a pergunta segundo a sua essência. A origem da
pergunta é sua proveniência essencial. É a partir de que e através de que a pergunta vige
como pergunta.

A pergunta, no sentido da proposição interrogativa, se realiza num perguntar.


Perguntar é um comportamento intencional. Intencionalidade quer dizer o dirigir-se
humano para alguma coisa. Certamente, para aquilo que é perguntado. Mas o perguntar
e o perguntado aparecem na existência do homem em múltiplas dimensões. Consoante
isso, há diversos tipos de perguntas. Um tipo de pergunta é a interrogação realizada na
comunicação, isto é, no ser-com-o-outro. O perguntador e o interrogado se relacionam
com aquilo que é perguntado na pergunta, isto é, com aquilo a que a pergunta visa. Aqui

175
Fundamental, no que se segue, é a tese de doutorado de Heinrich Rombach, que começou com a
orientação de Heidegger: “Sobre a origem e a essência da questão”. Über Ursprung und Wesen der Frage.
Freiburg / München: Verlag Karl Alber, s.d.
a pergunta emerge do ser-com, isto é, da convivência humana, dos seus
relacionamentos, da sua conversação. O ser-com, no entanto, emerge sempre de uma
situação. A situação está situada no ser-no-mundo. Ela emerge de um mundo
compartilhado com os outros. O ser-com em uma situação é já uma alocução. No ser-
com dá-se o dirigir a palavra a alguém. A interrogação se dá na relação, isto é, no
relacionamento da convivência humana. Relacionar-se é, no ser-com, corresponder.
Corresponder é responder à solicitação do outro, relacionar-se de acordo com ela. Co-
responder é res-ponder. A relação existencial é sempre de alguma maneira
correspondência e resposta à interpelação do outro. Sua essência fundamental é ser
aproximado e deixar-se interessar, um corresponder, uma solicitação, um responder por
baseado no ser tornado claro em si da relação. Dependendo da situação em que se
relacionam o perguntador e o interrogado a pergunta toma um rumo, uma direção. Este
rumo, esta direção, é o sentido da pergunta. Por exemplo, uma situação é se estou no
trânsito e quero pedir uma informação sobre como chegar a tal ou tal lugar; outra
situação é se estou aprendendo matemática e solicito ao professor o esclarecimento de
um tema a respeito do qual ainda não alcancei um entendimento claro. O
comportamento interrogativo supõe que o homem se relaciona com as coisas, com os
entes, juntos dos quais ele é, no mundo, como ser descobridor. Descobrir, ser-
descobridor, é uma possibilidade fundamental de nosso ser-no-mundo, que é sempre e
cada vez em situação. A situação desvela o mundo. O ser-descobridor é uma
possibilidade deste desvelamento. Ele se refere aos entes juntos dos quais nós somos,
na ocupação. O ser-descobridor junto dos entes pressupõe o ser-aberto no sentido da
abertura de mundo, que nos constitui como seres humanos. Pressupõe o ser-em do ser-
no-mundo como um ser-aberto para a abertura do mundo, supõe a existência, no
sentido do estar-fora-de-si junto aos entes e a insistência na manifestatividade do ser.

A comunicação e a conversação, como exercício de relacionamento no ser-uns-


com-os-outros, se dá, antes de tudo, como compartilhamento de um mundo comum.
Desde o fundo desse ser-com surge a conversa e, por conseguinte, a pergunta dialógica.
Nós somos, fundamentalmente, uma conversa, como nos acena a palavra poética de
Hölderlin:

Tanta experiência, por quantas manhãs,


Tem feito o homem, desde que somos uma conversa

E escutamos uns aos outros; em breve, somos,


porém, canto.176

Somos uma conversa. Esta se dá de início e na maior parte das vezes no falatório
do cotidiano, a que Ser e Tempo dedica o § 35. Somos uma conversa. Mas, seremos, em
breve, canto? O que é ser canto? O que é cantar? Escutemos outro poeta, Rilke. No
terceiro dos Sonetas a Orfeu, ele diz:

Cantar, como tu ensinas, não é cobiça / Nem


conquista de algo que por fim se alcança. / Cantar é existir
(...) / Um sopro pelo nada. Um vibrar em deus. Um vento177.

Enquanto ainda não somos um cantar, somos uma conversa. Há, certamente,
diversas possibilidades de sermos uma conversa, em várias dimensões da convivência
humana. A conversa, entretanto, é decisiva:

É que tudo o que o homem conhece, sente, pensa,


sabe ou faz, só se torna realmente significativo, só adquire
sentido essencial, enquanto se puder conversar a seu
respeito, na medida que dele se puder falar a partir da
linguagem. (...). Enquanto vivermos, pensarmos e agirmos na
terra, só faz sentido o que pudermos falar uns com os outros,
o que puder receber uma significação na e da Linguagem178.

Deste ser-conversa emerge a pergunta dialógica. Nesta, o outro não é


simplesmente o interrogado a respeito de algo a que se visa na ocupação. Aqui o outro
é um parceiro na solicitude pela própria relação, no interesse do próprio
relacionamento. Aqui o que está em questão não é simplesmente o conhecer um estado
de coisas ou o entender algo, mas o entender-se um com o outro, o compreender-se
mutuamente no relacionamento, no mundo compartilhado enquanto tal. Aqui o falar e,
em falando, o interrogar requer a capacidade de escutar. Escutar o outro, porém, quer
dizer ser capaz de compreender o outro nos caminhos em que ele se avia. O diálogo

176
Hölderlin. Friedensfeier (Festa da Paz).
177
P. 25.
178
Leão, E. C. Filosofia Contemporânea. P. 174.
acontece, aqui, como um fenômeno de encontro com o outro, que não é um isso, mas
um tu. Acontece, portanto, um relacionamento tu a tu, no interior de um nós, de uma
esfera de convivência, de um mundo compartilhado. O encontro pode ser também não
simplesmente um vir ao encontro; pode ser também um vir de encontro, um encontrão;
pode ser um desencontro. O diálogo pode atravancar-se. O diálogo pode deslanchar.
Seja como for, cada um será remetido de volta a si mesmo; e terá de deixar-se aviar,
cada um a seu modo, para o fundo comum da abertura da manifestatividade do ser,
para o abismo desvelante das possibilidades de ser, que nós chamamos “vida”. A
pergunta dialógica tem como escopo clarear o próprio relacionamento, melhor,
franquear o seu deslanche. Mas todo o relacionamento humano se relaciona com o
fundo-abismo da “vida”, isto é, da manifestatividade do mistério de ser, com a amplidão
aberta do ser. É o que nos recorda um texto do Tao (caminho de pensamento) de Chuang
Tzu:

Havia três amigos / discutindo sobre a vida. / Disse


um deles: / “Poderão os homens viver juntos / e nada saber
sobre a vida? / Trabalhar juntos / e nada produzir? / Podem
voar pelo espaço / e se esquecer de que existe / o mundo
sem fim? ” Os três amigos entreolharam-se / e começaram a
rir. / Não sabiam responder. / Assim, ficaram mais amigos do
que antes.

Depois, um deles morreu. / Confúcio / Enviou um


discípulo para ajudar os dois outros / a cantar suas
exéquias.../ O discípulo observou que um amigo / compusera
uma canção. / Enquanto o outro tocava o alaúde, /
Cantaram: “Ei, Sung Hu! Aonde vai você? / Ei, Sung Um! /
Você foi / Aonde você já estava. / E aqui estamos - / que
diabo! Aqui estamos!”

Em seguida, o discípulo de Confúcio lançou-se contra


eles e exclamou: “Posso saber onde vocês encontraram isto
nas rubricas das exéquias? Esta algazarra frívola em presença
do que partiu? Os dois amigos entreolharam-se e riram:
“Pobre criatura! ”, disseram, “não conhece a nova liturgia!
”179.

Outro tipo de pergunta é o da pesquisa no processo do conhecimento. É uma


pergunta que visa a descoberta. Aqui a pergunta aparece naquilo que ela,
fundamentalmente, é: uma busca. A pergunta aparece no seu caráter de questão
(quaestio), isto é, da realização de um buscar (quaerere). No § 2 de Ser e Tempo lemos:
“todo questionar é um buscar. Toda busca retira do que se busca a sua direção prévia.
Questionar é buscar cientemente o ente naquilo que ele é e como ele é” 180. Isto é: o
questionar é um buscar conhecedor, cognoscente. A condução desse buscar vem
daquilo que é buscado. Como alguém que procura poderia recusar o que lhe vem ao
encontro como não sendo o que ele procura ou então reconhecer em alguma coisa
aquilo que ele estava procurando, se ele não tivesse, por antecipação, certo saber
daquilo que ele estava procurando? Assim, de certo modo, é preciso já ter de alguma
maneira aquilo que se procura para se poder, ao encontrá-lo, reconhecê-lo e aceitá-
lo181. O ter é, neste caso, um relacionamento de ser com aquilo que se busca. É um
comportar-se para com ele, para com a direção e a condução que vem dele. Toda a
busca requer que se responda e se corresponda ao modo de ser daquilo que é buscado.
Cada buscado, para ser encontrado, requer um modo peculiar de acesso, requer um
modo de se ater a ele. O perder é um modo do ter. O encontrar, outro modo do ter. O
modo de possuir, de perder, de buscar, de encontrar, é dado pela coisa mesma em
questão e pelo modo de ter que ela requer. O ter (que é um relacionamento de ser com
o ser daquilo que se tem) se consoante o que é e o como é daquilo que se tem, isto é,
daquilo a que se atém. Cada buscado tem um modo próprio de clarear-se e também de
se deixar apreender. Na busca, é preciso obedecer, isto é, escutar e seguir, a
reivindicação do buscado, isto é, carece de pôr-se de acordo com a seu apelo, com aquilo
que ele requer, desde o seu ser182.

179
P. 89-90.
180
P. 40.
181
Cf. Agostinho. Confissões, livro X 17. Heidegger, M. Fenomenologia da Vida Religiosa, p. 172-173.
182
Cf. Heidegger, Martin. Phänomelogische Interpretationen zu Aristoteles. Einführung in die
phänomenologische Forschung. P. 18.
O questionar da questão é, pois, um relacionamento de ser com o ser daquilo
que se procura na realização de uma busca cognoscente. O buscar deve saber aquilo
que busca. O buscado deve ser, ao mesmo tempo, presente e ausente para aquele que
busca. Se aquele que busca já não estiver junto ao que busca, melhor, se aquele que
busca não tiver presente e em mira o buscado, se não tiver a orientação prévia que vem
dele, não pode buscá-lo nem encontrá-lo. Por outro lado, não precisaria buscar se o
buscado não estivesse ausente. Para que haja a busca é preciso que aquilo que se busca
se retraia, se subtraia, da presença. Sua vigência se dá, justamente, na ausência e como
ausência.

A busca (Suchen) ciente, cognoscente, pode se transformar em investigação


(Untersuchung). A investigação não somente tem o cuidado para com o buscado, mas
também para com o próprio buscar. Esta requer um rigor no buscar. Neste caso, não se
põe uma pergunta a torto e a direito, a esmo, grosso modo. É preciso que o questionar
se realize como um franquear possibilidades de desvelamento do que se questiona. Uma
investigação pode se dar no modo de uma pesquisa (Forschung) científica. Neste caso,
o cuidado com a elaboração do projeto e o rigor com o método é determinante na
condução da investigação que visa um conhecimento objetivo daquilo que se pesquisa.
Cada tipo de ciência (formal ou material, pertencente ao campo das ciências da natureza
ou das ciências humanas) terá seu modo de lançar o projeto e de impostar o seu método,
que implica sempre um processo de demonstração, justificação, prova. A resposta
positiva a uma pergunta da pesquisa será uma confirmação, que significará um
empoderamento do projeto. Uma resposta negativa será uma desilusão. Mas a
desilusão traz também a sua evidência. E esta evidência é também decisiva para o
encaminhamento da pesquisa. A pesquisa científica, no entanto, também pressupõe
abertura de mundo, com algo a ser descoberto. As diversas ciências investigam, através
da pesquisa, diversos âmbitos do ente, sendo, porém, orientadas por uma pré-
compreensão, usualmente latente, implícita, tácita, do ser daquele âmbito do ente, isto
é, toda a ciência ôntica e positiva se funda num conhecimento ontológico, que se
relaciona com o ser do ente tornado objeto de pesquisa. Conhecer é um relacionamento
de ser com o ser daquilo que se conhece. É um ser-descobridor que se relaciona com
aquilo que é descoberto no seu que é e no seu como é. Este ser descobridor está sempre
se relacionando com o desencobrimento e com o encobrimento, com o que se doa e
com o que se retrai ao conhecimento. E, na busca e como busca, o buscado ao mesmo
tempo vige como presença e como ausência, como patência e latência. Só assim é que
é necessário e ao mesmo tempo possível uma investigação.

Um terceiro tipo de questão é aquela que se realiza como uma decisão sobre o
próprio ser que somos. Talvez as demais formas de questão estejam fundadas sobre
esta questão, em que se decide sobre o todo de nosso ser-no-mundo, e de nosso
relacionamento com o ser de tudo o que é, com o ser do ente no todo. Neste questionar
está em questão mais do que um tomar conhecimento informativo, mais do que a
produção de um conhecimento objetivo. Neste questionar está em questão o existir
humano como tal e no seu todo em seu relacionamento de ser com o sentido de ser que
concerne ao ser do ente no todo. Trata-se de um relacionamento decisivo. Nele se
decide sobre se somos e o que somos, se o ente é e como é. Decisivo, neste questionar,
é se o homem se deixa conduzir para dentro da premência do questionar.

Na decisão, o que está em jogo, não é esta ou aquela escolha, não é esta ou
aquela resolução, fazer isto ou aquilo, fazer ou não fazer determinada coisa; na decisão,
o que está em jogo não é um fazer ou agir, mas o nosso próprio ser, ou melhor, o nosso
próprio poder-ser. O que está em jogo na decisão – entendida em sentido fundamental
– não é ser isto ou aquilo, mas ser simplesmente e propriamente o que já somos. A
decisão não se refere a uma parte de nossa vida. A decisão concerne à nossa existência
em seu todo.

A decisão é uma questão radical. Aqui vale o dito de Agostinho – quaestio mihi
factus sum: tornei-me uma questão para mim mesmo. Na questão da decisão o homem
não é somente o que questiona, mas é também o que é questionado. Com a questão
que é a decisão a existência humana aparece em sua questionabilidade radical. Nesta
questão não está em questão o que o homem sabe, mas o que o homem é. Ou dito de
modo melhor: o que está em questão na decisão não é o que o homem pode saber,
pode fazer, pode conquistar, mas o que ele pode ser. Na questão da decisão, o
questionado é o próprio homem, e isto, no seu ser, no seu poder-ser. Ao pôr em questão
o homem e sua existência, a decisão provoca o homem e o conclama a ser, a ser
propriamente o que ele é. A intencionalidade da decisão, portanto, tem em mira o ser
do homem – o seu ser mais próprio – o seu existir em sentido próprio, isto é, autêntico.
Aqui vale o dito do poeta Píndaro – “vem a ser o que tu és”. Nós poderíamos dizer: “vem
a ser o que tu propriamente podes ser”, a partir do fundo, ou melhor, a partir do abismo
de tua liberdade.

Se a decisão põe o homem em questão naquilo que ele propriamente pode ser,
então não é a decisão que está em poder do homem, mas é o homem que está em poder
da decisão. Ser homem é estar sujeito à necessidade da decisão, que é a necessidade da
liberdade. Mesmo se o homem responde à necessidade da decisão não decidindo, esta
resposta é ainda um estar sujeito à decisão. Escolher a não decisão só é possível porque
a decisão já se impôs ao homem como uma necessidade de sua liberdade. O homem
pode escolher viver sem entrar propriamente numa relação positiva com a necessidade
da decisão, mas já esta escolha, que assinala uma fuga, uma omissão ou uma ignorância
da decisão, é já uma atitude que responde ao apelo questionador e interpelador da
decisão, embora a resposta se dê num modo negativo ou privativo.

Não obstante isso, a necessidade da decisão não se impõe desde fora ao homem.
Ela não se impõe a partir desta ou daquela conjuntura objetiva dos fatos, também não
se impõe a partir desta ou daquela situação factual subjetiva. A necessidade da decisão
não tem nenhuma causa, não tem nenhum fundamento, que não venha dela mesma,
ou seja, que não venha do fundo ou abismo mesmo da liberdade que nos constitui como
seres humanos.

A decisão é uma cisão. Ela corta os vínculos objetivos e subjetivos em que o


homem costuma se apoiar em seu ser-no-mundo. Na decisão a existência do homem é
trazida para a sua solidão e para a sua singularidade. Para a solidão: pois na decisão o
homem está só. Para a singularidade: porque, por um lado, a decisão é cada vez única,
singular, e, por outro lado, o homem que entra num relacionamento positivo com a
decisão assume a existência como a sua existência, aquela existência, cujo ser lhe toca
ser, de modo único, irrepetível, incomparável. Com a decisão, o homem se torna o que
ele propriamente é: uma palavra única da vida, uma palavra que uma vez dita na
história, não se repete mais.
A decisão traz consigo uma gravidade que lhe é própria. Ela traz à tona a
seriedade da liberdade da existência. A decisão revela o caráter de perigo que a
experiência da existência traz consigo. É que a decisão expõe que o ser que somos está
sempre em jogo, que ser homem é ter que ser, é poder ganhar-se ou perder-se. Na
decisão o homem aparece como um ser em passagem, como uma corda estendida sobre
o abismo da liberdade. A decisão é um parar e um estremecer, tocado pela vertigem do
abismo da liberdade. Esta vertigem se chama angústia. Por tudo isso, a experiência da
decisão não pode nunca ser reduzida a um experimento. Não pode haver experimentos
com a liberdade. Aqui não há lugar para o procedimento de tentativas e erros, como no
campo da ciência, por exemplo. Já Aristóteles notara isso. A seriedade e a gravidade da
decisão não o permitem. Ademais, neste contexto, erro não é um mero erro de cálculo,
um desacerto operacional, aqui erro é errância, é seguir vida no desatino, no desvario.

Por tudo o que já foi dito, pode-se logo intuir que há uma grande diferença entre
uma resolução e a decisão. A resolução visa uma ação. Na resolução, o homem pondera,
delibera, resolve-se por escolher esta ou aquela possibilidade fática de agir. Ser
resolvido, ser resoluto, por sua vez, significa ter a energia para comandar a si mesmo
aquilo que foi deliberado, ou seja, ter a força de ânimo para se impor a si mesmo a
prática daquilo que foi deliberado. A resolução tem, ademais, o caráter de uma opção.
Uma vez feita a opção por esta possibilidade fática de agir excluem-se outras
possibilidades que lhe são incompatíveis. Por isso, cada vez que o homem opta, na
resolução, por uma possibilidade fática de ação, ele está renunciando a outras
possibilidades que são incompatíveis com aquela pela qual ele optou. Na resolução, o
homem, de partida, já deve ter saltado por cima de outras possiblidades de ação, ao
optar por aquela que ele considerou a mais útil, conveniente ou favorável. E o homem
permanece resolvido, resoluto, enquanto não põe em questão aquilo pelo que ele
optou.

Na decisão não se trata de optar por isso ou aquilo. Na decisão trata-se de ser ou
não ser decidido na existência e como existente. O decisivo na decisão é se e como o
homem se põe na decisão. Ou melhor: o decisivo na decisão é se e como o homem se
deixa pôr em questão e suporta estar em questão na própria decisão. Aquilo pelo que o
homem decide não está dado de antemão, como possibilidade fática de ação. O decisivo
na decisão é se o homem vem a si na própria realização da decisão. Aquilo pelo que ele
decide só aparece neste e com este vir a si mesmo que se dá na própria realização da
decisão.

Por conseguinte, o que é decisão não pode ser entendido a partir do conceito de
escolha. Na escolha optamos entre coisas diversas, resolvemos por esta ou aquela
possibilidade, entre diversas possibilidades fáticas de ação, que já estão de algum modo
dadas, que são subjacentes na situação mesma em que o homem se encontra. As
escolhas povoam a nossa cotidianidade. A decisão, porém, transcende a cotidianidade,
apesar de ela se dar a partir da cotidianidade e de repercutir sobre a cotidianidade.

Na decisão, aquilo que deve ser decidido é o próprio ser do homem, é o seu
próprio existir e este existir no seu todo. O decisivo não é, portanto, decidir por isto ou
aquilo, mas decidir por ser si mesmo, por tornar-se propriamente um si mesmo. O
decisivo na decisão é como o homem se deixa pôr em questão na decisão mesma e se
ele se deixa pôr em questão.

A decisão é, portanto, uma exigência que alcança o homem desde o fundo de


seu existir, de sua liberdade, e que reivindica dele que ele se torne uma presença. Ser
uma presença significa, aqui, ser e estar aí para a decisão, ser e estar de prontidão, livre
para a decisão. Se tomarmos a decisão como uma ação, devemos dizer que nesta ação
o agir e o objeto ou o fim da ação não são diversos ou extrínsecos um ao outro, pelo
contrário, na ação que é a decisão o agente e o agido são o mesmo, coincidem. Na ação
de decisão não está em questão fazer isto ou aquilo, mas que o agente, em agindo,
perfaça a si mesmo: torne-se decidido para a decisão. A decisão, o ser decidido na
existência, não é um meio para alcançar um fim. O sentido da decisão não vem de fora,
não lhe é extrínseco; mas lhe é imanente e intrínseco.

Ser-homem é estar posto em poder da decisão. Ser homem é responder ao apelo


da decisão. Por isso, ser homem é exercer a responsabilidade de dar sentido a tudo o
que é e não é, à vida e à morte. Queiramos ou não, saibamos ou não, o que caracteriza
a essência do homem é o doar-se ao dar-se do sentido do ser dos entes na sua totali-
dade. Assim, no tornar-se decidido da existência todas as coisas, o mundo histórico do
homem, o céu e a terra são co-implicados. Tudo que o homem faz e não faz, tudo que o
homem pensa e não pensa, sente e não sente, sabe e não sabe, tudo que o homem é e
não é atinge, não somente a ele, mas sempre de novo os entes na sua totalidade,
inclusive a ele mesmo, enquanto um ente dessa totalidade. A essência do homem está,
pois, nisso: ele é responsável pelo seu ser e pelo ser dos entes na sua totalidade. Se o
homem é uma questão para si mesmo, a resposta a esta questão se dá na decisão, pela
qual ele assume não isto ou aquilo, mas assume, de antemão, assumir a
responsabilidade de ter que dar sentido a tudo o que acontece ou não acontece em sua
existência. O acontecer da autorresponsabilização é, pois, a resposta, na decisão, à
questão em que o homem se vê, silenciosamente, no fundo, no abismo de sua alma,
interpelado, questionado, pelo mistério de ser mesmo.

Ser e Tempo é uma questão desse tipo. É uma questão-decisão. E é uma questão
em que está em questão a essência e a origem da questão ela mesma. É o pensar
assumindo a responsabilidade de ser. É o pensar respondendo à provocação do mistério
de ser. É o pensar correspondendo, doando-se, à doação misteriosa do mistério de ser.
É um perguntar essencial, no sentido de realizar a essência da pergunta e também no
sentido de pergunta pela essência do ser, isto é, pela sua vigência e pelo seu sentido.
Para se encontrar com o pensamento de Ser e Tempo deve-se recolher todas as
perguntas reconduzindo-as para o fundo-abismo da pergunta pela essência do ser, isto
é, pelo seu sentido e pela sua vigência. É preciso deixar que esta questão brote da
unidade de nosso ser. “Por isso, o importante é deixar a periferia e ir para o centro da
vida. Pois, somente no centro a pergunta é essencial. No centro, todo nosso ser se
transforma numa única pergunta. Todo nosso ser é pergunta”183.

A questão de Ser e Tempo é mais do que a questão diretriz da filosofia, que, no


dizer de Aristóteles, é a pergunta (tì tò ón?) – o que é o ente. O que se busca
com a questão não é o ser do ente, a sua entidade, em cujo encaminhamento a filosofia
sempre de novo se encontra e na qual ela sempre de novo se ache como que numa
aporia, num impasse, num intransitado. O que se busca é o sentido do ser. O ente e
mesmo e sua entidade, cada vez compreendido desse ou daquele modo, nas estações
do encaminhamento da história dessa questão, que é a essência da história do ocidente,

183
Leão, Emmanuel Carneiro. Filosofia Grega: uma introdução. Teresópolis: Daimon, 2010, p. 28.
é apenas o interrogado desta questão. O que se visa com ela é outra coisa do que o ente
e sua entidade. O que se visa é o sentido do ser, a partir do qual a entidade do ente se
dá a cada vez dessa ou daquela maneira nas épocas da história. O que se visa é o sentido
do ser, a saber, a manifestatividade do ser enquanto ser, não do ente ou do ser do
ente184. Com outras palavras, o que se visa é a “verdade do ser”, o seu dar-se. Ser
homem é encontrar a morada na verdade do ser. É nela existir e insistir. É a partir dela
que o homem descobre o ente que ele não é. É a partir dela que o homem se abre no
seu ser como um si mesmo. E, somente a partir do ser-si-mesmo é que se pode dar eu e
nós. Para o homem o ser na vastidão aberta do ser, o Da-sein, antecede a consciência.
A consciência se enraíza no Da-sein e não o contrário.

Morando na verdade do ser, o homem é sempre de novo alcançado pelo apelo


que convoca a ser o que ele é. A questão do sentido do ser é, no fundo, um modo de o
homem responder a esse apelo. Estar no ser significa estar na clareira do ocultar-se. O
ocultar-se clareia a si como tal e, com isto, oculta e mostra o que está oculto nele. O
ocultar-se clareia a si como que mostra no oculto. Esse oculto é o livre, que liberta. É a
partir do relacionamento com este encobrimento, com o mistério enquanto mistério,
que o homem se liberta dos usos e abusos do relacionamento com o ente e se liberta
para a gratuidade fontana do ser. Somente a partir do relacionamento com a liberdade
da gratuidade do mistério é que o homem alcança a sua própria liberdade. Liberdade é,
para o homem, um ser-livre-e-aberto para uma solicitação do mistério de ser. O homem
está na clareira do ser de modo aberto. Este estar na clareira do ser torna-o um
interpelado pelo ser. É por e para responder a esta interpelação que ele questiona o
sentido do ser e se deixa pôr a si mesmo em questão, numa decisão sobre o que ele se
torna185.

A questão do sentido do ser é a questão que busca pensar sua manifestatividade.


Isto quer dizer: receber e agradecer sua doação misteriosa. É a questão pelo ser
enquanto ser e não a questão pelo ente enquanto ente. É a questão pela essência do
ser, isto é, pela sua vigência. É a questão pelo ser do ser. Verdade do ser é
desencobrimento e encobrimento. É no encobrimento que o ser enquanto ser se

184
Cf. Heidegger, Martin. Introdução à Metafísica. P. 111.
185
Cf. Heidegger, Martin. Seminário de Zollikon, 202.
resguarda. Pensar é resguardar este resguardo. A leitura de Ser e Tempo não é outra
coisa do que um contínuo convite a se recolher neste resguardo, morando no mistério
do ser. É nessa morada do mistério do ser que o homem encontra o seu lar – o seu ethos
– no dizer de Heráclito, o obscuro: “ethos anthropou Daimon”. Ethos é a estada do
homem, o lugar de sua morada. O dito de Heráclito pode ser assim lido: o homem mora,
enquanto homem humano, na cercania do mistério. Pensar é, pois, agradecer a dádiva
dessa morada. Voltemos, pois, mais uma vez, ao um dito poético de Hölderlin, que
celebra o retorno ao lar: “................................... e quando repousamos da vida do dia,
dizei, como é que agradeço: Invoco o Alto?”186. E a esse outro dizer, que adensa na
Linguagem nossa experiência de ser-homem na clareira do ser: “ Enquanto perdurar
junto ao coração / a amizade, pura, o homem pode medir-se / sem infelicidade com o
divino”. Não é esta amizade, a philia da philosophía?

Brasília, 12 de setembro de 2017.

PENSAR HOJE

Marcos Aurélio Fernandes187

O que maximamente a partir de si mesmo dá a


pensar – o que mais cabe pensar cuidadosamente – deve
mostrar-se no fato de ainda não pensarmos188.

186
Apud Heidegger,
187
Professor na Universidade Católica de Brasília.
188
HEIDEGGER, M. Ensaios e conferências. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001, p. 114.
O presente artigo é uma meditação sobre o pensar em nossos dias. Entende o
pensar não no sentido psicológico ou lógico, mas ontologicamente, isto é, como
referência fundamental do ser ao homem. O pensar é apresentado como memória e
espera do ser em sua parusia nas destinações do tempo. Em seguida, procura-se
evidenciar o momento presente como uma provocação para o pensamento. Trata-se da
provocação do kairós de uma crise radical. Neste kairós, a provocação se torna
convocação para a passagem, o que requer do homem que ama pensar a paciência e a
perseverança e uma fé que deve amparar aqueles que, no deserto da época
contemporânea, buscam cuidar do espírito, isto é, da referência fundamental do ser ao
homem.

Palavras-chave: pensar, ser, memória, espera, tempo, crise, cuidado, fé.

1. O que provoca e evoca o pensar?

Nós não entendemos, aqui, a palavra “pensar” no sentido psicológico e lógico


como o ato de representar, julgar, raciocinar, inferir. Nem entendemos, propriamente,
o uso do verbo “pensar” no sentido mais amplo, ou seja, como cogitar, isto é, tencionar,
lembrar, imaginar, supor. A palavra “pensar” aqui também não indica uma atividade
psíquica ou uma faculdade da alma, ao lado de outras, a saber, ao lado do sentir e do
querer. Pensar, aqui, não é nem mesmo o ato pelo qual a consciência se constitui como
consciência, o ato pelo qual o eu se põe a si mesmo como sujeito representador do real
e o não-eu como objeto representado. Pensar, aqui, não é uma possibilidade que o
homem tem. É, antes, uma possibilidade que tem o homem, na sua raiz, no seu fundo,
na sua essência, antes mesmo de toda e qual representação e raciocínio, também antes
de toda e qualquer consciência de alguma coisa. O pensar não é uma propriedade do
homem, o homem é que é uma propriedade do pensar e isso no seu todo. Na raiz, isto
é, no fundo e na essência do ser humano, ser e pensar é o mesmo.

Entendemos, aqui, a palavra “pensar” num sentido ontológico e essencial. O


pensar, nesse sentido ontológico e essencial, enquanto constitui a humanidade do
homem no seu fundo, acontece antes de toda e qualquer consciência e reflexão. Ele
funda, rege, perpassa e consuma todo o comportamento humano com todo e qualquer
ente enquanto ente, tanto com o ente que ele é, quanto com o ente que ele não é. O
pensar é a própria presença humana no seu modo de ser, isto é, enquanto existência,
enquanto abertura disposta e exposta para a relação com o ser. O pensar é o próprio
fundo da humanidade do homem enquanto relação com o ser.

A humanidade do homem consiste em ser o lugar onde irrompe e se instaura a


percepção do ser, aquilo que os gregos dos primórdios, em especial Parmênides,
chamaram de  (noein). Esse perceber é, fundamentalmente, um receber e acolher
o presentear-se do ser, dando-se e retirando-se, desvelando-se e velando-se, em toda
apresentação e representação do ente enquanto ente.

O pensar é um ver. Um ver simples e imediato. Aquele ver que acontece como a
evidência do ser. Aquele ver que nos constitui como o espaço de abertura da iluminação
do ser, e, por conseguinte da configuração do mundo. Esse ver coincide com o simples
fato de existirmos. Pois existir é ser esse ver, é ser essa iluminação, essa claridade do
ser. Ser homem é suportar essa abertura. Esse ver somos nós mesmos. Entretanto, nem
sempre vemos que vemos. Nem sempre apreendemos essa apreensão do ser, que
somos nós mesmos. Nem sempre nos damos conta de que somos esse ver e que o
simples fato de existirmos já nos constitui como essa abertura da iluminação do ser. Se
essa apreensão da evidência do ser é o que nos faz ser o que somos, nem sempre
estamos acordados para essa mesma evidência, a evidência do “eu sou”, onde o “sou”
põe o próprio eu e todas as suas possibilidades.

Pensar é perceber o ser. A percepção do ser não é somente recepção e


acolhimento, mas é também recolhimento. O pensar é um perceber recolhido e um
recolhimento perceptivo, aquilo que os gregos chamaram de  (légein). Pensar é
colher e recolher, apreender e compreender o ser como  (logos), isto é, como o
Um unificador de tudo. Pensar é deixar-ser a unidade do ser na multiplicidade dos entes
e a multiplicidade dos entes na unidade do ser. É deixar-ser a identidade na diferença e
a diferença na identidade. Esse deixar-ser, porém, é, fundamentalmente, uma decisão
e um cuidado. Pensar é cuidar do Todo, é obediência ao apelo, que veio à tona no dito
do poeta Periandro, e que diz:    (meléta to pan): cuida do ser em todo o
ente.

A língua portuguesa ainda guardou, na semântica do verbo “pensar”, esse


sentido de cuidado. Num uso mais raro e arcaico, com efeito, pensar significa “cuidar ou
tratar convenientemente de alguma coisa”. É nesse sentido que Manuel Bandeira
escreve num verso: “As grandes mãos da sombra evangélica pensam / as feridas que a
vida abriu em cada peito”189. As mãos pensam feridas no sentido de cobri-las de
cuidado, de tratá-las com desvelo, de encobri-las de proteção, de, através do
tratamento, deixá-las curar, isto é, deixar que o corpo mesmo, na sua vitalidade,
reconstitua o que está dilacerado, reintegre o que está cortado, recobre vigor e dê
consistência ao que está enfermo. Pensar é curar, isto é, é cuidar de reconduzir tudo ao
vigor originário do ser, que tudo une e reúne, que tudo congrega e integra.

O cuidado por colher, acolher e recolher o sentido do ser em toda a concreção


do ente aparece na formação da palavra latina intellectus. Essa nos remete ao verbo
intelligere, que se compõe de inter ou intus mais legere que significa “ler”. Nesse
sentido, o verbo intelligere pode ser interpretado como ler por entre as linhas, ler nas
entrelinhas, isto é, recolher o fio dourado do sentido do ser por entre as tessituras das
significações do ente. Tomás de Aquino distinguia o intellectus da ratio. O intellectus
está para a ratio como o repouso para o movimento, como a plenitude do encontro para
a carência da busca. O intellectus se dá como simples aprehensio, ou seja, como simples
apreensão, a saber, simples e direta captação do ser. Simples é a evidência do ser, pois
o ser se dá todo, inteiro, a cada vez, e de maneira direta e imediata, numa evidência
originária, tão originária que não chama atenção para si, mas concede-se a si mesmo
como o que há de mais comum e ordinário, retraindo-se no pudor de sua humildade. O
mistério de ser, de fato, se dá igualmente e todo por toda a parte e em todo o momento,

189
BANDEIRA, Manuel. Estrela da Vida Inteira, p. 14. Apud Holanda Ferreira, Aurélio B. Dicionário Aurélio,
verbete “Pensar”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
no aparecer de cada coisa, da mais sublime à mais ordinária. Como nos conta uma
história chinesa, que evoca a onipresença do mistério de ser sob o nome do Tao
(caminho):

Mestre Tung Kwo perguntou a Chuang: “mostre-


me onde pode o Tao ser encontrado”. Respondeu
Chuang-Tzu: “não há lugar onde ele não possa ser
encontrado”. O primeiro insistiu: “Mostre-me, pelo
menos, algum lugar preciso onde o Tao possa ser
encontrado”. “Está na formiga”, disse Chuang. “Está ele
em algum dos seres inferiores?” “Está na vegetação do
pântano”. “Pode você prosseguir na escala das coisas?”
“Está no pedaço de taco”. “E onde mais?” “Está neste
excremento”. Com isto, Tung Kwo nada mais podia dizer.
Mas Chuang continuou: “Nenhuma de suas perguntas é
pertinente. São como perguntas de fiscais no mercado,
controlando o peso dos porcos, espetando-os nas suas
partes mais tenras. Por que procurar o Tao examinando
‘toda escala do ser’, como se o que chamássemos
‘mínimo’ possuísse quantidade inferior do Tao? O Tao é
Grande em tudo, Completo em tudo, Universal em tudo,
Integral em tudo. Estes três aspectos são distintos, mas a
Realidade é o Uno”190.

Pensar é ser. É ser a abertura da revelação da Grandeza de ser, dando-se e


retraindo-se, como presença e ausência, em toda a parte e a todo o momento. A
Grandeza de ser não é maior nas coisas grandiosas e sublimes e menor nas coisas
pequenas e ordinárias. A Grandeza de ser é grande em tudo: completa, universal, íntegra
em tudo. O pensar é a exposição e o recolhimento desta Grandeza de ser. E esta é a
essência do intelecto. A palavra intellectus diz, aqui, portanto, não uma potência entre
outras da mente, mas a essência mesma da mente: a “flor do intelecto” (nóou anthos)
de Proclo, o ápice da mente (apex mentis) de Boaventura, o fundo da alma (Grund der
Seele) de Mestre Eckhart. Trata-se daquela abertura abissal e originária em que a alma
se dá como centelha (scintilla) do espírito, isto é, enquanto faísca e cintilação do fogo
divino, cujo abrir-se e fechar-se instantâneo, constituem o lugar do salto em que o
mundo se faz mundo.

190
MERTON, Thomas. A via de Chuang Tzu. Petrópolis: Vozes, 2002 (10ª Ed.), p. 182-183.
2. o pensar como memória e espera da parusia do ser nas
destinações do tempo

Somente por ser um ser é que o pensar pode ser também um agir. Sem o penhor
do pensar como ser não haveria o empenho e desempenho do pensar como agir. O
pensar age pensando. Sua ação não produz nada. Não é um fazer isso ou aquilo. Sua
ação não consiste num fazer, mas num perfazer, num consumar. O que o pensamento
consuma? Consuma a relação do homem com o ser. Pois pensar é cuidar do ser. Pelo
pensar, o homem se torna o pastor do ser191. Mas, em que consiste a dinâmica do pensar
enquanto cuidado com o ser?

Pensar é, antes de tudo, guardar a memória do ser. Pensar é recordar. Recordar


é resgatar e resguardar do esquecimento. Esquecimento é retraimento. Aquilo de que
nos esquecemos se nos retrai, “passa batido”, desapercebido. Pensar é recordar a
doação originária e primigênia do ser. Trata-se dessa doação principial, fontal, que,
justamente por se dar como princípio, fonte e início, já sempre se retraiu em si mesma
e subtraiu a si mesma, para deixar ser o que a partir dela mesma se principia, emana e
inicia: os cursos e percursos do ente, suas vicissitudes e peripécias na precipitação do
tempo. Pois a fonte só é fonte à medida que se ab-nega como fonte, para deixar-ser os
mananciais que dela emanam. Dessa memória do ser que é o pensar nós andamos quase
sempre esquecidos. Quase sempre nós só nos ocupamos e nos preocupamos mesmo
com os entes, empenhando-nos junto a eles e no meio deles. Platão entendia que
aprender é recordar. Recordar, no sentido grego, é resgatar do velamento, do
retraimento, do encobrimento ( − alêteúein). Aprender é apreender o que já
sempre nos foi dado: a própria possibilidade de apreender a auto-evidência do ser. A
memória do ser os gregos celebraram no mito e na arte como Mnemosyne, a filha do
Céu e da Terra, que, unindo-se ao deus do raio, Zeus, concebe e gera as musas de todas

191
HEIDEGGER, M. Sobre o Humanismo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967, p. 50s.
as artes. O pensar, com efeito, não é memória meramente reprodutiva do real, é, ao
contrário, memória criativa do possível, ou seja, recordação que retorna sempre às
fontes de ser, às possibilidades guardadas e resguardadas na origem, e, desse modo, é
também uma memória projetiva, precursora e inventiva, uma memória, enfim, que
antevê e antecipa sempre de novo novas possibilidades de realização do real. Enquanto
memória cordial que recorda a dádiva do ser, pensar (em alemão, denken) é agradecer
(danken). Agradecer é receber cordialmente a doação cordial da dádiva. A cordialidade
do receber se consuma na jovialidade do empenho de fazer frutificar a dádiva doada,
como a terra agradece ao céu a dádiva da chuva verdejando-se, florescendo-se e
frutificando-se nas plantas e árvores.

Pensar é também, mas de modo não menos originário, espera do ser. Esperar
não é, aqui, tecer expectativas sobre os entes. Não é calcular de antemão as
possibilidades dos entes. Aqui, esperar o ser é, ao contrário, não se fechar em nenhuma
expectativa em relação aos entes. Esperar é, pois, abandonar e desprender-se de todo
o cálculo do auto-asseguramento e abrir-se na disponibilidade para o puro advir e
sobrevir do ser, em suas irrupções e iluminações repentinas em meio às tempestades e
bonanças do tempo. A espera do ser é espera do inesperado, como já dizia Heráclito (no
frag. 18). É que o pensar não espera nada, melhor, só espera mesmo o nada. Esperar o
nada não é desesperança e nem desespero. É esperança genuína, pois é aguardar o
inusitado e o imprevisível, o advir da gratuidade, que torna possível a impossibilidade.
Por saber esperar, o pensar é cuidado pela maturação do ser, que se dá somente no
tempo devido, azado, oportuno (no  − kairós). Por que sabe esperar, o pensar é
lerdo, moroso, pachorrento, sobretudo para um mundo que vive da velocidade do
progresso científico e tecnológico. Entretanto, a lerdeza do pensar é indicativa de sua
magnanimidade e de sua paciência ante as demoras e as recusas do ser na aridez do
tempo. O pensar sabe que é pela paciência que o homem salva o vigor de sua vida.
Compreende que o crescer da liberdade humana é como todo o crescer. Implica a
paciência de lançar raízes na escuridão da terra para poder erguer-se na claridade do
céu. Pois:
“crescer significa abrir-se à amplidão dos céus,
mas também deitar raízes na escuridão da terra. Tudo o
que é maduro, só chega à maturidade, se o homem for,
ao mesmo tempo, ambas as coisas: disponível para o
apelo do mais alto céu e abrigado na proteção da terra,
que tudo sustenta” 192.

O pensar é histórico. Pensa sempre a partir de uma época. Dá-se sempre na


correspondência ao apelo do ser no tempo. Pois o tempo é o pronome do ser. Pensar é
auscultar o apelo silencioso do ser nas vicissitudes e peripécias de uma época. Cada
época é um deter-se, um reter-se e um conter-se do ser ( − epoché). É um modo
como o ser se destina ao homem, no jogo de vigência e retraimento, de presença e
ausência. Ser é tempo, não como  (chronos), nem mesmo como  (kairós),
mas antes como  (aion). Do ser como tempo, diz um fragmento de Heráclito:
     −    (aiôn paîs esti paízôn,
pesseúôn: paidós he basileíe – o tempo é criança jogando, jogando o jogo das pedras:
o reinado da criança)193. O modo de ser da criança é a inocência do divertimento, ou
seja, a jovialidade que se esquece de si para se dar no sim cordial de uma liberdade
criativa. O ser se deixa, se abandona, se esquece de si, para deixar-ser, cada vez na
configuração de uma época, o aparecimento do ente no seu todo como mundo
histórico. Nesse deixar-ser o ser libera o ente para aparecer no tempo-espaço de uma
época do mundo. Esse tempo-espaço constitui a moldura a partir da qual o homem
pensa, cria, ama, funda e institui formas de convivência.

“Quando o filósofo começa a pensar, o sacerdote


a oferecer o sacrifício, o homem de estado a dominar e o
artista a formar, já se decidiu – de modo epocal – sobre
as molduras fundamentais do seu fazer”194.

192
HEIDEGGER, Martin. O caminho do campo (1949). In: Revista Vozes, ano 71, maio de 1977, n. 4, p. 326.
193
HERÁCLITO. Os pensadores originários. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 72-73 (frag. 52).
194
ROMBACH, H. Leben des Geistes – ein Buch der Bilder zur Fundamentalgeschichte der Menschheit.
Freiburg/Basel/Wien: Herder, 1977, p. 7.
Essa moldura constitui a verdade do ser: a sua parousia, ou seja, o modo como o
ser se dá se retraindo, se presenteia se retirando, se destina se resguardando. Pensar é
sempre pensar a verdade do ser, quer dizer, é seguir o seu sentido, acolhendo os seus
envios, recolhendo os seus acenos, deixando-se atrair pela força de tração de seu
retraimento. Pensar é escutar a palavra do ser, dando-se nas falas e silêncios do tempo.
Pensar é cuidar da verdade do ser. O ser mesmo se confia ao cuidado do pensar, pois
carece do seu desvelo, isto é, da correspondência cuidadosa do homem.

Pensar é apreender o dar-se do ser, é guardar a memória do ser, esperar a sua


parusia, seguir o seu sentido, guardar a sua verdade. Mas, o que diz, afinal, a palavra
“ser”?

Mas o Ser – o que é o Ser? É ele mesmo. O


pensamento vindouro terá de aprender a fazer essa
experiência e a dizê-la. O “Ser” não é nem Deus nem um
fundamento do mundo. O Ser está mais distante do que
todo ente e, não obstante, está mais próximo do que
qualquer ente, seja um rochedo, um animal, uma obra
d’arte, uma máquina, seja um anjo ou Deus. O Ser é o
mais próximo. E, todavia, para o homem é a proximidade
o que lhe está mais distante. Em primeira aproximação, o
homem se atém sempre, e somente, ao ente. Sem dúvida,
sempre que o pensamento representa o ente como ente,
refere-se ao Ser. No entanto, não pensa, na verdade,
senão o ente como tal e nunca o Ser como tal...”195.

O ser é simples. É o simples. Só a muito custo é que o homem se comporta de


modo apropriado para com o simples. Para tal, o homem precisa caminhar o mais longo
de todos os caminhos, que é o caminho que nos conduz ao que nos está mais próximo.
É que, centrado e fechado nos horizontes de sua consciência e de sua subjetividade, o
homem já não tem mais um sentido para o ser, pois todo o sentido já se reduziu a
funcionalidade e objetividade, instrumentalidade e recurso. Hoje, em meio ao domínio

195
HEIDEGGER, M. Sobre o Humanismo, p. 51. As maiúsculas seguem a opção do tradutor. Ao escrever
ser como Ser, ou seja, com a inicial maiúscula, o tradutor está buscando se referir ao ser não como mera
entidade do ente, isto é, ao ser não compreendido a partir do ente, mas ao ser apreendido a partir dele
mesmo.
total da complexidade, já não temos olhos para o simples. Por isso, o caminho do pensar
requer uma longa espera, a espera de um crescimento e amadurecimento que não seja
intempestivo. Num tempo onde só se experimenta a veloz transitoriedade de todas as
coisas, esta espera parece por demais longa.

“O simples guarda na verdade o enigma do que


permanece e é grande. De chofre surge inesperado entre
os homens e, não obstante, necessita crescer e
amadurecer durante longo tempo. No invisível do que é
sempre o Mesmo, protege seus dons. O alcance e a
envergadura de todas as coisas maduras, que demoram
em torno do Caminho, é que instauram mundo. Como diz
Eckhart, o velho mestre de vida e leitura: no não dito de
sua linguagem é que Deus é Deus” 196.

A espera do inesperado é, na verdade, a acolhida perseverante e paciente da


doação e retraimento, da presença e ausência do mistério de ser, dito e não-dito nos
cursos, percursos e discursos do tempo. É que a autoridade do mistério nada tem a ver
com a violência do poder da subjetividade e de seus projetos de conquista da terra. A
autoridade do mistério de ser consiste em um poder que soa como impotência, pois seu
vigor e rigor são fraqueza e ternura.

Por ser simples, o Ser permanece misterioso, a


proximidade calma de um vigor (Walten), que não se
impõe197.

Pensar é cuidar do ser. O cuidado do ser é a vida do espírito, na qual o homem


se experimenta a si mesmo como homem em confronto com o seu mundo e em relação
primordial com a terra:

“No aberto desta relação do Ser para com a


essência do homem, nós experimentamos o ‘espírito’ –

196
HEIDEGGER, M. O caminho do campo (1949). In: Revista Vozes, ano 71, maio de 1977, n. 4, p. 327.
197
HEIDEGGER, M. Sobre o Humanismo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967, p. 54.
ele é o que suavemente reina (das Waltende) vigorando
a partir do ser e, presumivelmente, em favor do ser” 198.

Mas, o que significa, aqui, a palavra “espírito”? Ela diz a dinâmica histórica da
verdade do ser a partir da qual se dá o incessante e vivo diálogo do homem com o
mundo:

“O espírito constitui cada vez uma configuração


humana do mundo. Não obstante, ele é uno em toda a
riqueza de manifestação do mundo histórico. Ele está em
movimento, tornando-se e perecendo. Mas quando
perece, então ele está se transformando em outras e
novas figuras. Ele vive. Permanece atuante, caso se
encontrem suas figuras e caso elas conquistem, a partir
do confronto vivo, cada vez sua nova forma. O espírito,
aquilo que nós denominamos assim, é possível somente
enquanto o evento vivo, enquanto o infindável diálogo do
homem e da história do mundo”199.

Hoje, falar em espírito tornou-se algo altamente questionável, não só por causa
dos materialismos, mas também por causa dos espiritualismos. É que, tanto uns como
os outros são pólos de um mesmo movimento da metafísica enquanto forma da
experiência do ser do ente, da verdade do ser e da existência do homem no ocidente há
cerca de dois mil e quinhentos anos. Vivemos hoje não simplesmente uma crise
espiritual, nem uma crise do espírito, mas a crise do espírito. Trata-se de uma crise
mortal. Tudo aquilo que fazia respirar e dava alento ao homem ocidental sofreu uma
imensa perder de valência histórica. O espírito foi se expirando na lenta morte que dura
já alguns séculos. Com essa morte lenta, vão perdendo vigor a ética, a política, o direito,
a educação e a religião. A única dimensão da vida humana que parece se impor com
todo o vigor é a economia. Assim, no campo da ação cotidiana o ser humano sofre uma
imensa pressão que o compele a reduzir todos os parâmetros de seu agir aos critérios
do interesse e da utilidade pragmática. Os valores que valem efetivamente acabam

198
Hölderlin, Friedrich. Apud: Heidegger, Martin. Die Armut. In: Heidegger Studien, Vol. 10, 1994, Berlin:
Duncker & Humblot, p. 7.
199
Rombach, Heinrich. Leben des Geistes – ein Buch der Bilder zur Fundamentalgeschichte der Menschheit.
Freiburg/Basel/Wien: Herder, 1977, p. 40.
sendo os econômicos e somente a partir deles é que se medem os valores éticos,
estéticos e religiosos. Já não há mais infra e superestrutura. Arte, Moral, Política, Direito,
Educação, Religião, tudo se fragmenta. O ente metafísico que tudo sustenta já não é o
Estado ou a Sociedade, mas o Mercado, na dinâmica de um novo capitalismo, o
capitalismo globalizado. A ciência moderna revelou sua essência no domínio planetário
da técnica e no triunfo da razão instrumental. Universidades e instituições de pesquisa
funcionam nesta lógica da razão instrumental a serviço do mercado global. A educação
universitária se nivela a qualificação profissional para o mercado. Renuncia-se à
universalidade do saber e à pretensão de formação do ser humano em sua
integralidade. Em meio ao domínio da política única, da economia única e do
“pensamento” único, haverá ainda possibilidade de criação? Haverá ainda um sopro que
faça os ossos ressequidos do desértico mundo atual se erguer e ganharem corpo e
sangue, vitalidade, sensibilidade e compreensão?

Tudo se torna, hoje, uma questão de produção e de consumo. Tudo se torna


insumo para a sociedade da produção, que, ultimamente se apresenta como sociedade
do conhecimento. Mas, o conhecimento já não é outra coisa do que know-how. Tudo se
funcionaliza e se torna componente de algum sistema. Entretanto, podem-se reprimir
as perguntas mais radicais, que tocam de cheio o ser humano no mais íntimo e na
radicalidade de sua existência e historicidade? Não estamos todos por demais abalados
em nossos próprios fundamentos? A partir donde construir possibilidades novas de
passagem e ultrapassagem dessa crise? Pode o espírito que morre nos presentear com
uma nova parusia, com uma nova presença, vigor e vitalidade? Pensar em meio à morte
do espírito não requer fé? Mas, há uma fé do pensar? Em que consiste esta fé?

3. O “crer” do pensar

O que é, no contexto do pensar, crer? Tomemos como fio condutor uma


indicação de Nietzsche:
O que é uma fé? Como ela surge? Toda fé é um
ter-por-verdadeiro 200.

Em alemão, a expressão aqui traduzida por “ter-por-verdadeiro” se diz Für-wahr-


halten. Fé é atinência (Haltung) ao verdadeiro. O verbo halten, aqui traduzido por “ter”,
diz, na verdade, ater-se, no sentido de apegar-se a, apoiar-se em. Nesse sentido, fé é
apegar-se ao verdadeiro, quer dizer, é apoiar-se, reger-se, sustentar-se, ficar de pé,
amparando-se no verdadeiro. Segundo essa compreensão de fé, o verdadeiro é o apoio
(Halt) em que o homem se apóia, para poder ficar de pé na sua existência. Esse ficar de
pé, porém, para o homem criativo, “que não acredita em mais nada”, isto é, que pensa
criativamente, à medida que conhece, cria e ama, só se dá a partir do salto de sua
liberdade. É nesse sentido que Nietzsche adverte:

Vós, os que conseguis ficar de pé por si mesmos –


vós deveis aprender a colocar-vos a vós mesmos de pé,
do contrário caireis201.

A fé do pensar é exercício de extrema e radical autonomia da liberdade, onde o


homem se posiciona a si mesmo a partir de si mesmo, ou seja, a partir do verdadeiro
por ele encontrado na busca do questionar. Somente essa autonomia dá vigor de
resistência e consistência à existência do homem. É por isso que Nietzsche adverte:

Quem não crê, tem na consciência uma vida


fugaz202.

Pela fé, ou seja, pela capacidade de se ater ao verdadeiro, de se apoiar na


verdade, o homem se põe de pé e insiste e resiste nas demoras do tempo, crescendo e

200
NIETZSCHE, F. Vontade de Potência, n. 15, 1887.
201
Nietzsches Werke, XII, 250, n. 67. Apud HEIDEGGER, M. Nietzsche I. Stuttgart: Neske, 1998, p. 346.
202
Nietzsches Werke, XII, n. 128. Apud HEIDEGGER. Nietzsche I. Stuttgart: Neske, 1998, p. 353.
amadurecendo, fundando o que permanece. O homem histórico é, pois, desafiado a ser
capaz de ater-se ao verdadeiro e somente atendo-se ao verdadeiro é que ele persevera
e permanece de pé na passagem do tempo.

Entretanto, o verdadeiro não é verdadeiro a não ser por força e graça da verdade.
A verdade não é o verdadeiro. A verdade é o que torna tal o verdadeiro. O verdadeiro
está para o ente como a verdade está para o ser. Se chamarmos de “fé” o ater-se ao
verdadeiro do ente, não deveríamos chamar ainda mais ao ater-se à verdade do ser?
Não poderíamos entender de modo novo o “crer” do pensar, no sentido acima descrito,
como o seu modo de se relacionar e de se comportar com o ser, isto é, o seu modo de
estar atento, recordar, esperar, seguir e custodiar a verdade do ser? Com outras
palavras, não poderíamos entender o “crer” do pensar como o estar de pé do homem
na relação com o ser, como o cuidar do ser na morada da linguagem, como o viver a vida
do espírito na correspondência ao apelo e ao silêncio do ser através das palavras do
tempo? E a reverência, a veneração, a piedade desse “crer” não consiste, justamente,
na disposição de, sempre de novo e de modo novo, perguntar, questionar, buscar,
indagar o sentido do ser?

O crer do pensar, nesse caso, não seria o contrário do saber. Seria, antes, o saber
essencial, entendido como o saborear em que ao homem é dado o gosto, a afeição, o
amor pela revelação do ser. Trata-se, pois, de um saber que cresce e matura a partir do
perguntar que indaga, sempre de novo, pelo sentido do ser. Se entendermos assim o
“crer” e o “saber”, então, merecem o nome de crentes, propriamente, aqueles que
perguntam, sondando o sentido do ser:

Os perguntadores deste tipo são os originária e


propriamente crentes, ou seja, aqueles que,
fundamentalmente, tomam a sério a verdade mesma e
não somente o verdadeiro; aqueles que põem a decisão
se a essência da verdade vige e se esta vigência carrega e
conduz a nós, os que sabem, os que crêem, os que agem,
os que criam, em breve, os históricos203.

203
HEIDEGGER, M. Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis). Gesammtausgabe Band 65. Frankfurt am
Main: Vittorio Klostermann, 1994, p. 369.
Para o pensar, “crer” é encontrar demora (Aufenthalt) na verdade do ser; é
encontrar apoio e amparo (Halt) no ser mesmo. Pensar é sondar (ergründen) o ser como
fundo e fundamento (Grund) do ente. Afinal, a pergunta fundamental do pensamento
não é a pergunta pelo fundamento mesmo de todo o ente? Não é aquela pergunta que
Leibniz tão bem formulou ao indagar: “porquoi Il y a plutot quelque chose que rien?”
(por que há alguma coisa, em vez do nada?).

Entretanto, o ser só aparece como fundo e fundamento do ente à medida que é


apreendido a partir do ente! Nele mesmo e a partir dele mesmo, o ser não tem fundo,
nem fundamento, justamente por ser fundo e fundamento do ente, ou seja, do fato de
haver alguma coisa e não nada. Isso quer dizer que, nele mesmo e a partir dele mesmo,
o ser vige e vigora como o que não tem fundamento, como aquilo em relação ao qual
não faz sentido perguntar “por quê”,com outras palavras, o ser vige e vigora, nele
mesmo, como o sem-fundo, o não-ente, isto é, como o abismo do nada, melhor ainda,
como o abismo do nada do “sem por quê”, como o abismo do nada da gratuidade.

O abismo do nada da gratuidade foi apreendido no pensamento místico de


Eckhart (séc. XIV) e de Angelus Silesius (séc. XVII). Convém, aqui, reportar os seus ditos,
a fim de acenarmos para esse nada, para esse abismo da gratuidade. Para o vivente, ser
é viver, recorda Eckhart. E no Sermão V da sua obra latina, ele diz:

“Fosse possível perguntar sem fim à vida: o que é


viver e por que vida?, a resposta seria sempre a unidade
da vida no viver, a identidade de vida e viver: vivo porque
vivo, vivo por e para viver”204

Por sua vez, o abismo do nada da gratuidade que rege e sustenta o nascer,
crescer e consumar de todo o viver foi cantado nos versos pensantes do médico, poeta
e místico Johannes Schäfler, sob o pseudônimo de Angelus Silesius (o Anjo da Silésia):

204
Mestre Eckhart, apud LEÃO, E. C. Aprendendo a pensar I: o pensamento na modernidade e na religião
(edição aumentada e revisada). Teresópolis: Daimon Editora, 2008, p. 261s.
“A rosa é sem por quê / floresce por florescer /
não olha pra seu buquê / nem pergunta se alguém a vê”
205
.

No abismo do nada da gratuidade, que deixa ser (sein lässt) o aparecer e o tornar-
se presente de todo o ente, o pensar repousa e se recolhe. A ele o pensar se abandona
e se entrega (sich verlässt). No vigorar de seu mistério (Geheimnis), o pensar encontra a
serenidade (Gelassenheit) da origem, onde todas as coisas encontram o seu estar-em-
casa e onde o homem encontra a sua demora mais própria (Aufenthat). Pois o pensar se
aquieta no saber jovial e sereno da liberdade criativa.

“Agora, porém, é justamente o Ser, que todo


ente, a cada vez e sempre de novo, deixa ser, o que é e
como é, o Libertador, o que deixa cada coisa repousar em
sua essência, isto é, o que a cada coisa trata com cuidado
e carinho” 206.

Pensar é, pois, um salto. Trata-se, porém, de um salto que, justamente ao saltar,


abre o abismo em que salta. Esse salto é a verdadeira passagem. Trata-se, porém, de
uma passagem que, justamente ao passar, lança uma ponte sobre o abismo, recebendo
o chão em que se apóiam os seus próprios passos. Por isso, o salto para dentro do
abismo do nada da gratuidade não é um salto para o sem-chão. É antes, o salto que
deixa emergir o chão, a Terra, onde o pensar, por conseguinte, a existência do homem,
encontra demora e morada, recolhendo-se na sua finitude.

Nietzsche nos fala desde uma experiência do pensar, em que a radicalidade do


questionar que busca as origens conduz ao deserto da solidão e da angústia e, por fim,
como numa passagem inusitada, reencontra o sagrado em meio à desolação da terra.
Assim, numa anotação para o Zaratustra, datada de 1883, ele escreve:

“Fui atrás das origens – o que me alienou de todas


as venerações: e tudo ao redor se tornou solitário e
estranho para mim. Mas, por fim, do seio do mistério
rebentou de novo o venerando mesmo – e eis que nasceu

205
SILESIUS, A. Cherubinischer Wandersmann / Il Pellegrino Cherubico (I, 289). Torino: Paoline, 1992, n.
289, p. 156.
206
HEIDEGGER, M. Die Armut. In: Heidegger Studien, Vol. 10, 1994, Berlin: Duncker & Humblot, p. 9.
para mim a árvore do futuro. Agora vivo sentado em sua
sombra” 207.

O pensar impõe, na sua radicalidade, a capacidade de “alienar-se de todas as


venerações”, ou seja, a capacidade de des-crer. “Eu não creio em mais nada – esse é o
justo modo de pensar de um homem criativo”, diz Nietzsche208. Esse não crer em mais
nada não é indicação de ceticismo ou niilismo. Não é desespero diante de todo
conhecimento e ação. Não é fugir de toda decisão e tomada de posição. Se assim fosse
não seria um modo de pensar ajustado ao modo de ser de um homem criativo. Pois
quem não aposta na possibilidade do conhecimento e da ação e não arrisca decisões e
tomadas de posição jamais pode ser criativo. O não crer em mais nada, enquanto justo
modo de pensar de um homem criativo, deve significar, pois, outra coisa. Talvez
signifique, justamente, a precisão e o rigor crítico do pensar, enquanto esse não está
disposto a acolher sem mais o que lhe é dado. Para o pensar nada está dado pronto,
tudo é uma tarefa de responsabilização humana. O pensar não se fixa na realidade,
antes, ele deixa ser as possibilidades sempre novas e criadoras da vida. O pensar não se
detém nas formas rígidas e estereotipadas da vida, ao contrário, ele se dá na forma de
um olhar projetivo e criativo, que intui no fundo da vida possibilidades novas de
configuração. A capacidade de intuir essas possibilidades latentes da vida e de trazê-las
à fala faz do pensar um modo de ser criativo, isto é, que comunica a vitalidade da vida
em toda obra. Essa capacidade criativa irmana o pensar ao criar e ao amar. “Todo criar
é comunicar. Aquele que conhece, aquele que cria e aquele que ama são um”, diz
Nietzsche209. Por isso, o pensador, o artista e o santo são um, a partir do fundo abissal
da vida.

Nosso tempo é um tempo de passagem. O homem da passagem deve poder ser


um homem criativo. Ele deve poder passar da desolação e angústia gerada pela busca
radical do pensamento, e sua conseqüente “perda de veneração”, para o reencontro
livre, jovial e sereno do que é por si mesmo digno de veneração. O homem que pensa
deve poder ser não somente aquele que se encontrou no deserto da dúvida, isto é, no

207
Apud LEÃO, E. C. Heidegger e a ética. In: Revista Tempo Brasileiro, n. 157, Rio de Janeiro, 2004, p. 63.
208
Nietzsches Werke, XII, p. 250. Apud HEIDEGGER, M. Nietzsche I. Stuttgart: Neske, 1998, p. 346.
209
Nietzsches Werke, XII, p. 250. Apud HEIDEGGER, M. Nietzsche I. Stuttgart: Neske, 1998, p. 347.
ermo e na desolação do questionamento, mas também aquele que se encontrou com o
inusitado e inesperado irromper da “árvore do futuro” e que pôde aprender a se
descansar à sua sombra.
FENOMENOLOGIA E CRÍTICA DA CIÊNCIA
PROF. MARCOS AURÉLIO FERNANDES
(UNIVERSIDADE CATÓLICA DE BRASÍLIA)

Ponto de partida para a nossa reflexão, aqui e agora, é a pergunta sobre a possibilidade de
a fenomenologia, em meio à crise de fundamento da ciência e de sentido da racionalidade
científica moderna, oferecer contribuições para uma reflexão sobre um novo tipo de
racionalidade e uma nova compreensão do conhecimento científico. O que se propõe,
com esta reflexão, é dar algumas indicações sobre uma crítica da racionalidade científica
moderna, em movimento no pensar de Husserl, Heidegger e Rombach, assim como de
vislumbrar o que está em jogo na emergência de novos paradigmas nas ciências,
caracterizados hoje, por exemplo, como “pensamento complexo” e “pensamento
sistêmico”.

Palavras-chave: fenomenologia, ciência, sistema, estrutura, Husserl, Heidegger,


Rombach.

1. TRÊS FENOMENOLOGIAS

Dos pensadores que vamos tomar como referência nesta exposição, Husserl e Heidegger
dispensam a necessidade de apresentações. Já Rombach, falecido em 5 de fevereiro de
2004, precisa ser apresentado ao público brasileiro. A propósito, Hermógenes Harada,
que foi aluno de Rombach, escreveu um artigo na revista de filosofia e mística medieval,
intitulada “Scintilla”, um artigo de apresentação e de diálogo e confrontação com a
filosofia de Rombach (HARADA, 2004, p. 67-96). Deste texto, a título de apresentação,
tiramos uma apresentação feita por Margarete Röhrig e Georg Stenger, editores do escrito
comemorativo intitulado “Philosophie der Struktur – “Fahrzeug” der Zukunft? Für
Heinrich Rombach” (Filosofia da estrutura – “veículo” do futuro? Para Heinrich
Rombach):

Na sua atuação e nas suas obras Rombach levou um passo para


frente através da sua “Ontologia Estrutural” a orientação
fenomenológica inaugurada e fundada por Husserl e Heidegger,
dando-lhe uma modulação, que a faz viável em referência a
ciências modernas e as fomenta, sem perder de vista o que foi
alcançado pela viragem ontológica do passo dado por
Heidegger. Rombach, além da posição-inaugural da sua
Ontologia Estrutural, desenvolveu mais duas posições-
inaugurais filosóficas denominadas: Filosofia da Imagem e a
Filosofia Hermética. A Filosofia da Imagem empreende uma
tentativa em des-cobrir as ‘filosofias fundamentais’ que se
ocultam sob as culturas, em enraizando essas filosofias
fundamentais na dimensão-profundidade da “imagem”, que
precede todos os fenômenos culturais particulares e suas obras
literárias. A sucesssão-seqüência das ‘filosofias fundamentais’ e
suas grandes eras perfazem a “História fundamental” da
Humanidade. E por fim, a ‘Filosofia Hermética’ apresenta a
concepção dos ‘mundos’, que como tais efetua uma
fundamentação filosófica do ‘pensar intercultural’, um pensar
que tanto espiritual-, como humano-historialmente está ‘a
tempo’. Inspirações decisivas nessa direção recebeu Rombach
em 1980 por ocasião de uma estadia no Japão como professor-
visitante, como também nas diversas viagens de pesquisas
antropológicas à Índia, ao Egito e à África do Sul.

Com suas diversas posições-inaugurais e métodos Rombach


abriu campos inteiramente novos e até então não tematizados do
trabalho filosófico e assim surgiu em Würzburg uma “Escola”,
que pode ser considerada como continuação da “Escola de
Freiburg” em conexão a Husserl e Heidegger, e que é ao mesmo
tempo um lugar filosófico de encontro ‘intercultural’ ou
respetivamente de um ‘diálogo intermundano’ (Apud HARADA,
2004, p. 69-70).

A respeito da referência e da diferença entre o pensamento de Heidegger e o de Rombach,


podemos perceber algo a partir da própria auto-apresentação feita pelo próprio Rombach,
que está expresso no mesmo artigo de Harada na revista Scintilla:
Considero-me ligado à “Escola de Freiburg”, que se caracteriza,
antes de tudo, pelo conjunto determinado por Husserl e
Heidegger. A esse conjunto pode-se chamar de fenomenologia,
embora aqui se fale de fenômeno, cada vez, de modo diferente.
Em Husserl, encontramos a intuição fundamental de que todo o
conhecer, compreender e agir está dentro do grande conjunto da
“Consciência” e que esta se fundamenta numa estrutura de fundo
transcendental. Aqui, fenomenologia é a análise dessa estrutura
do fundo permanente e unitário.

Em Heidegger, encontramos o conhecimento de que a estrutura


da Consciência está enraizada na estrutura mais fundamental do
“Dasein”. Aqui, fenomenologia é a “analítica do Dasein”, a qual
pertence a investigação do “compreender” e do “ser”,
explicitado nesse compreender. O Heidegger-tardio realiza a
conhecida “viragem”, segundo a qual o Ser não é mais
considerado fundamentado no Dasein, mas sim o Dasein no Ser.
O próprio Ser envia ao Dasein, cada vez, uma aberta historial
que se expõe em “palavras fundamentais” e perfaz cada vez
epocalmente uma “verdade do Ser”.

Com a minha própria fenomenologia tento receber esse


pensamento, mas para ampliá-lo, em vendo a “aberta do Ser”
não somente no compreender do Homem, mas em cada forma de
realidade da Vida. Também plantas, animais, conjunturas da
realidade como tais são cada vez auto-interpretação do Ser, que
se expõe aberta em intrincados traços fundamentais, em
“estruturas” ou “fenômenos fundamentais”. Todo ser, não
somente o Homem, é “expoente”; tudo consiste em estruturas que
cada vez realizam um determinado modo do Ser, um determinado
fazer-se presente de Ser. A minha “Fenomenologia Estrutural”
intenciona considerar os fenômenos fundamentais que sustentam
o ser-homem, como mais elementares do que “Dasein” e “Ser”.
Os fenômenos fundamentais possuem uma vida própria que se
adianta ao Dasein humano e subjazem como “fenômenos de
profundidade” a toda a vida humana e historial. Expus a
“Fenomenologia das estruturas de profundidade” no livro
“Fenomenologia da Consciência presente” (1980). Aqui, o
“presente” dessa Consciência consiste no conhecimento
lentamente crescente da vida própria das estruturas de
profundidade (Apud HARADA, 2004, p. 74-75).

Neste trabalho, tentar-se-á expor como aparece, para as três fenomenologias – a de


Husserl, a de Heidegger e a de Rombach –, o caráter epocal da ciência moderna, incluindo
aí as suas crises e transformações, mesmo as mais recentes.

2. A CRÍTICA DA CIÊNCIA EM HUSSERL

Em Husserl, a fenomenologia emerge como uma teoria crítica da razão e como um


conceito de método investigativo filosófico transcendental. Emerge como uma reflexão
transcendental acerca da possibilidade de fundação e fundamentação das ciências. Trata-
se de uma reflexão sobre as condições de possibilidade do conhecimento e, por
conseguinte, da ciência, que se funda sobre o conhecimento. Em diferença da crítica de
Descartes e de Kant, porém, a crítica fenomenológica operada por Husserl não toma de
antemão uma ciência como modelo para reconstruir o edifício das ciências ou para
refundar o sentido da racionalidade, como, por exemplo, a geometria ou a física. A crítica
de Husserl adverte na positividade e no positivismo da ciência moderna uma forma de
consciência esquecida de si mesma. A ciência positiva é a ciência do ser, que se perdeu
no mundo. Por isso, o começo da meditação fenomenológica se dá justamente com a
epoché, e isso quer dizer: é preciso perder o mundo para reencontrar o ser. “É preciso de
início perder o mundo pela epoché, para reencontrá-lo em seguida numa tomada de
consciência universal de si mesmo” (HUSSERL, 2001, p. 170). Para Husserl, a ciência
parecia muito crítica em relação a seus objetos, mas muito ingênua em relação à
objetividade enquanto tal, alheia a si mesma como forma de consciência e esquecida de
sua própria subjetividade. Além disso, disso, nesta forma alienada de consciência da
ciência positiva, a crença num mundo absolutamente e simplesmente dado, levava a uma
coisificação e naturalização grotesca de tudo. O maior perigo da ciência está em ser chata:
nas formas do mecanicismo e do cientificismo tudo é nivelado. Ela tende a operar o
achatamento de toda dimensão ou modo de ser ao modo de ser da ocorrência física, com
outras palavras, tende a operar a redução da res cogitans, de suas cogitationes e cogitata,
à res extensa. Nesta tendência, a dimensão noética das idéias ou essências é reduzida a
algo de psíquico, no sentido do anímico empírico. O psíquico mesmo, com toda a sua
gama de vivências anímicas, é reduzido ao orgânico, isto é, ao biológico. E o biológico,
com todo o dinamismo de sua vitalidade orgânica, é reduzido ao físico. Daí a crítica de
Husserl ao naturalismo, na primeira parte do artigo “Filosofia como Ciência de Rigor”
(cfr. HUSSERL, 1998, 13-70). Na tendência dominante da ciência moderna, no
naturalismo, tudo se torna chato, tudo se torna unidimensional. Da mesma maneira, todo
o rigor é reduzido a exatidão. Como se a única maneira de ser rigoroso e preciso, na
pesquisa, fosse ser exato, no sentido da exatidão do cálculo matemático e da mensuração
experimental. Por outro lado, o sentido de totalidade do conhecimento se perde na
fragmentação de um sem fim de ciências particulares, cada vez mais especializadas. Para
Husserl, a retomada da ideia da possibilidade de uma Mathesis Universalis só seria
possível numa “tomada de consciência universal de si mesmo” por parte do sujeito que
conhece, valora e age. Que esta tomada de consciência de si mesmo traz consigo todo um
“ethos”, isto é, toda uma forma de viver, pode-se perceber na seguinte declaração:

“Em sua universal autorreferência, a fenomenologia reconhece


sua própria função em um possível viver transcendental da
humanidade. Ela reconhece as normas absolutas que a partir
deste viver podem ser sacadas pelo olhar; mas reconhece também
sua estrutura originária, tendencial-teleológica, na direção de
uma descoberta destas normas e sua efetuação prática e
consciente. Ela se reconhece então, enquanto função da universal
autorreflexão da humanidade (transcendental), a serviço de uma
práxis universal da razão, ou seja, a serviço da tendência que se
torna livre pela descoberta, na direção da idéia universal,
radicada no infinito, de uma absoluta perfeição ou, o que dá no
mesmo, na direção da idéia – radicada no infinito – de uma
humanidade que, de fato e inteiramente, fosse e vivesse na
verdade e na autenticidade” (HUSSERL, 1962, p. 279).
Entretanto, esta tomada de consciência da subjetividade enquanto tal só seria plena se
neutralizasse toda representação do sujeito como objeto, isto é, como uma coisa dentro
do mundo. Ora, a ciência, mesmo quando trata do sujeito e da subjetividade, como o faz
no caso das ciências humanas, o faz tratando-o como objeto, isto é, pondo-o no plano do
mundo já dado. A ciência positiva é incapaz de deixar ser o sujeito como sujeito. Ela só
pode lidar com o sujeito como objeto. Daí, a necessidade de uma redução transcendental:
a recondução ao cogito e às suas cogitata, à intencionalidade e à sua dinâmica
constitutiva, ao ego monádico e à intersubjetividade monádica (Cfr. HUSSERL, 2001,
passim). Descobrem-se, assim, as estruturas a priori da subjetividade transcendental
como constituidoras de sentidos que vigoram nas várias dimensões do mundo objetivo,
incluindo natureza e cultura. Intencionalidade e constituição se tornam o fio condutor para
analisar diversos tipos de objetividade, diversos horizontes de aparecimentos objetivos,
diversas dimensões de fenômenos, enfim, o mundo como uma transcendência imanente
e como uma realidade estruturada multidimensionalmente, numa vinculação intencional
com uma subjetividade que é também estruturada multidimensionalmente. A
fenomenologia husserliana mostra a unidade consciência-mundo como não chata, isto é,
como não unidimensional, ou seja, como estruturada de modo multidimensional. A
fenomenologia transcendental, neste sentido, torna possível o emergir de uma nova
racionalidade teorética, axiológica e prática, cujo medium natural já não é o mundo
constituído, mas a consciência constituinte. E esta consciência entendida, enfim, não na
solidão monádica do solipsismo e sim na comunhão e comunidade monádica da
intersubjetividade. A fenomenologia aparece, por conseguinte, como uma sondagem dos
fundos e fundamentos, a partir dos quais a consciência edifica todo o mundo do
conhecimento e constrói o conhecimento do mundo; uma sondagem dos fundos e
fundamentos, a partir dos quais a consciência institui os seus valores e dá sentidos à sua
ação.
Fenomenologia, enquanto fenomenologia transcendental da consciência, é o abrir-se e o
recolher-se da vida intencional. A consciência é ato, quer dizer, aquela transição e
passagem na qual e para a qual se constitui o mundo e, no horizonte do mundo, toda e
qualquer objetividade, em várias dimensões e modos de ser de aparição dos objetos. Na
dinâmica operativa desta passagem, a consciência está, sempre de novo, instituindo e
constituindo o mundo objetivo. Na fenomenologia da consciência, toda manifestação e
aparição se reconduz a esta dinâmica, que é a intencionalidade operativa da consciência:
o ato. Neste sentido, o mundo perde o caráter de absoluto. O mundo é o horizonte, aberto
pela própria consciência, em que toda objetividade aparece como correlata à operação
instituidora, constituidora e conferidora de sentido, própria do dinamismo da consciência.
Tudo o que o homem sabe e não sabe, tudo o que ele é e não é, emerge daí. Cada ego é,
porém, uma mônada: a abertura que abre, cada vez de modo singular, perspectivamente,
o todo, isto é, a realidade universal. Ao mesmo tempo, porém, cada ego está em comunhão
com os outros egos. A intercomunicação dos egos é, pois, a fonte mesma da evidência do
“em si” do mundo e da tese de sua realidade, o que dá à ciência o seu positum e a sua
positividade, as condições de possibilidade de toda a sua objetivação.

3. A CRÍTICA DA CIÊNCIA EM HEIDEGGER

Em Heidegger, a reflexão filosófica e fenomenológica sobre a ciência, seus campos de


experiência e as estruturas a priori que sustentam suas pesquisas se dá, de início, no
âmbito das ontologias regionais. As ciências positivas são necessariamente ciências
particulares, isto quer dizer, elas tomam como objeto de pesquisa determinados campos,
setores ou regiões da realidade, que lhe são dados de antemão, a modo de positum, como
o número para a aritmética, a figura para a geometria, a natureza para a física, plantas
para a botânica, animais para a zoologia, e assim por diante. Entretanto, uma tomada de
consciência das subjetividades e das estruturas transcendentais que sustentam as
objetividades das ciências em suas diversas dimensões, só chega a uma transparência
maior, caso se interrogue o sentido de ser, a ontologia, que está à base de cada campo de
experiência transcendental, com suas formas de consciência, suas intencionalidades e
suas objetividades constituídas. Mas, as ontologias que estão à base das diversas ciências
positivas só se esclarecem, caso sejam reconduzidas à ontologia fundamental (cfr.
HEIDEGGER, 1988a, p. 34-38). A ontologia fundamental, por sua vez, é a questão pelo
sentido do ser do ente no seu todo. Como, no entanto, este questionamento, de início,
precisa tomar um ente como o interrogado exemplar, a ontologia fundamental se volta
para o ente humano, que é aquele que compreende e que é capaz de perguntar pelo sentido
do ser (cfr. HEIDEEGGER, 1988a, p. 30-34).
O ente humano aqui, porém, não é apreendido simplesmente como sujeito e seu ser não
é concebido como subjetividade. O ente humano é apreendido em referência ao ser, como
aquele ente em que se dá a compreensão do ser. O homem edifica sua humanidade a partir
desta referência ontológica, que se dá de modo privilegiado por meio da compreensão e
da linguagem. O nome Dasein evoca justamente este referimento fundamental e fundante
da humanidade do homem ao mistério do ser, que acontece como compreensão e
linguagem. Graças a este referimento, o homem se torna o “aí” (Da) do “ser” (Sein). Este
“tornar-se”, porém, é, essencialmente, uma tarefa da liberdade. A humanidade não é dada
ao homem a modo de uma ocorrência, como um fato bruto. Antes, ela lhe é dada como
uma tarefa da liberdade, num “ter que ser” (cfr. HEIDEGGER, 1988a, p. 77-81). O
homem não é simplesmente humano, ele tem que se tornar humano. O homem não é
simplesmente o aí do ser, pois este ser o aí do ser só se dá como possibilidade, isto é,
como dinâmica de um poder-ser. Na dinâmica do poder-ser o ser interpela o homem. Ser
humano é escutar e corresponder a esta interpelação. Escutando e correspondendo à
interpelação do ser, o homem se abre como a abertura do ser e para o ser. Ele se torna
aquilo que ele é, ou seja, se torna aquilo que ele é destinado a ser, segundo sua vocação
de ente ontológico: ser o lugar, a instância, a abertura, em que o ser se irrompe e vem à
luz, tornando-se linguagem. Com outras palavras: ser a clareira do ser: “o homem se
essencializa, de tal sorte que ele é o ‘lugar’ (Da), isto é, a clareira do ser. Esse ‘ser’ do
lugar (Da), e só ele, possui o caráter fundamental da ec-sistência, isto é, da in-sistência
ec-stática na Verdade do Ser” (HEIDEGGER, 1967, p. 43).
Entretanto, essa compreensão do ser, que só acontece como e num poder-ser, de início e
na maior parte das vezes encontra-se velada, desconhecida para a consciência humana,
além de se dar operativamente de maneira vaga e mediana, tanto na ingenuidade da vida
pré-científica cotidiana, quanto no rigor do conhecimento científico. A pergunta pelo
sentido do ser não emerge no horizonte da ciência. Ela apenas se insinua na reflexão dos
cientistas em situações de crise de fundamentos, crise que atinge tanto o modo de
conceber os objetos, quanto o modo de conceber os métodos e a própria cientificidade de
suas ciências.
A ciência é um modo de existência que, assim como todo outro modo existencial, é
radicalmente histórico. Ela partilha da historicidade humana. Mas esta historicidade não
é simplesmente factual. Ela é, antes de tudo, uma historicidade em jogo diante das
possibilidades de ser ou não ser a escuta à interpelação do ser. Ora, de início e na maior
parte das vezes, os povos da humanidade em geral e o ocidente em especial se deixaram
levar pela força deste esquecimento (cfr. HEIDEGGER, 1987, p. 64). A história se torna,
assim, a destinação do abandono do ser. O esquecimento do ser é tanto mais radical
quanto mais o ente é o único foco de preocupação do homem, tanto no conhecer, quanto
no valorar e agir. Ora, a ciência moderna pode ser vista como uma forma existencial
histórica onde este esquecimento do ser chega, em nossos tempos, ao seu paroxismo. Este
esquecimento se torna até mesmo reduplicativo: esquecimento do esquecimento. A
ciência moderna é, assim, um acontecimento da ressonância (Anklang) do abandono do
ser (Seinsverlassenheit) (cfr. HEIDEGGER, 1994, p. 141-166). Torna-se até mesmo
necessário perguntar se ainda haverá, em meio a este esquecimento, lugar para um
despertar e para uma recordação da interpelação do mistério do ser.
Em meio ao esquecimento do ser, a ciência moderna se mostra como uma potência
histórica de grande força e de ampla envergadura. Graças às pretensões totalitárias que
ela guarda em si mesma esta potência se mostra até mesmo como prepotência. A ciência
é tomada não como uma forma de conhecimento, mas como a forma por excelência de
conhecimento. Em sua ótica o homem vê toda a realidade. Em sua ótica ele valoriza todos
os saberes. O que não é científico é considerado sem rigor. O que é científico é
considerado um saber rigoroso e seguro. Outras formas de conhecimento ou são excluídas
ou são absorvidas em seu bojo, como expressões culturais tornadas objeto de pesquisa. A
ciência não somente tem poder. Ela é poder. Entretanto, é questionável se esse poder se
assenta no vigor da autoridade, entendida como capacidade de criação, de fazer e deixar
crescer, ou se esse poder é antes a inessência, o avesso do poder autêntico, o poder-
autoridade. O poder da ciência se mostra em sua essência técnica, em seu método, em sua
linguagem e no sentido de sua movimentação.
A técnica é o a priori da ciência moderna (Cfr. HEIDEGGER, 1989, p. 16-19). A ciência
é técnica não por aplicar seus conhecimentos ou resultados na configuração das diversas
tecnologias. Também não é técnica por usar das tecnologias para alcançar seus resultados.
Ela é técnica em si mesma, desde o seu fundamento, na sua intenção mais íntima, em sua
ótica mesma e no modo como ela se instala em meio ao real. Seu saber é poder, consiste
em explorar o real em todas as suas dimensões, trazendo a descoberto tudo o que pode
ser objetivado. Ela se empenha em forçar o universo a abrir sua intimidade e a revelar
seus segredos, para aproveitar de suas riquezas e submeter suas forças ao uso e gozo dos
humanos. Já no seu modo de se autoconstituir a ciência é técnica. Ela é um modo de se
instalar no real. Ela é um processo metódico de organização da pesquisa. Os diversos
elementos do método científico se articulam como momentos funcionais e dispositivos
de uma infinita produção de conhecimento. Ela se institui a partir dos direcionamentos da
investigação. A investigação tem como escopo explicar o real. Explicar é trazer o
desconhecido para o âmbito do conhecido. A investigação previamente prepara para si
mesma e autorregula as condições de toda a explicação. Em marcha, ela constrói e
desconstrói as concatenações explicativas. Ciência é artifício. O saber-poder da ciência
está a serviço da factibilidade, da instrumentalização, da funcionalização, da
sistematização. Por meio deste processo técnico, tudo é proposto, exposto, disposto; tudo
é reunido na ótica da disponibilidade de uma produção que compõe todas as coisas,
transformando-as em recursos de sistemas e sistemas de sistemas. A ciência se mostra
assim como um grande agenciamento e empreendimento funcionalizante e sistematizador
de todos os recursos da natureza e da história, do mundo objetivo e do mundo subjetivo.
O poder da ciência se mostra ainda na sua concepção de método e de linguagem. Por meio
do método, ela direciona a investigação, lança diante de si e põe debaixo de si o solo que
servirá de fundamento para a construção de novos conhecimentos, na exploração da
região do real e do setor objetivo que lhe interessa. À ciência não interessa a verdade do
ser. Interessa-lhe apenas a correção dos fatos. Ela renuncia ao verdadeiro, para se dedicar
apenas ao correto. O método procura garantir o rigor da investigação em relação ao seu
campo de pesquisa. Ele regula os procedimentos da pesquisa. Visa garantir o modo
adequado de produzir hipóteses e provas. É eurística e crítica: arte de descobrir hipóteses
racionalmente formuladas e de submetê-las à resposta da experiência, quer esta resposta
consista no sim de uma verificação, quer consista no não de uma falsificação. O modo
como a ciência entende a própria experiência é indicativo desta dinâmica de poder. A
experiência científica é, com efeito, algo mais do que a simples experiência. Ela é
experiência da experiência: experimento. Experimentos são experiências realizadas e
controladas com vistas à observação, vale dizer, à decisão a cerca de determinadas
perguntas, formuladas com base no projeto de determinadas teorias. O experimento é uma
espécie toda própria, portanto, de experiência, que se distingue qualitativa e
decisivamente da experiência cotidiana, pois, enquanto a experiência cotidiana é
imediata, a experiência do experimento só pode acontecer graças a diversas mediações.
O poder da ciência se expressa de modo especial no seu modo de conceber a linguagem,
a saber, como informação. Ciência é controle. O poder da ciência se mostra como domínio
do real e controle de si mesmo por meio da auto-organização metódica. A auto-
organização do método científico e sua autorregulação se mostram em sua concepção
cibernética da linguagem. A cibernética apresenta-se como o estudo dos mecanismos de
controle inseridos nos processos de retroação (feedback), seja de seres vivos, seja de
máquinas. O controle é, fundamentalmente, controle da informação. Entendido de modo
cibernético, o controle da informação no método científico é um processo autocrático.
Este processo governa a si mesmo. Neste governo, logra superar dicotomias, produzindo
a compatibilidade de opostos, unindo numa só composição objetos e sujeitos, o mundo
dos corpos e o mundo dos cérebros, máquinas e consciências. Pois tudo se compõe num
processo autocrático de produção de informações. A linguagem se torna o principal modo
de produzir informações (Cfr. HEIDEGGER, 1988b, p. 33).
Na era da ciência técnica, que culmina em nossos dias como o tempo da tecnologia da
informação e da hegemonia do virtual, essa perspectiva instrumental-técnica da
linguagem é desdobrada em toda a sua envergadura. E ela se desenvolve a partir de uma
afinidade intrínseca com uma compreensão da linguagem também determinada pela
lógica, que, por sua vez, pressupõe uma compreensão instrumental da linguagem. A
linguagem se apresenta, então, como um recurso de informação, a serviço da
informatização, isto é, do controle técnico e virtual de todos os processos de realização
do real.
A linguagem se transformou em informação. A comunicação em transmissão de
informações. A aprendizagem em retroalimentação de informações. A retroalimentação
encontra-se a serviço do controle exercido pelo mundo da comunidade científica e da
sociedade da produção. A vida passa a ser regida a partir do conhecimento, desenvolvido
por meio do controle sistemático das informações, conhecimento que é essencialmente
técnico, a serviço da factibilidade: know-how. A linguagem, assim, já não é um privilégio
do homem; é também um desempenho das máquinas produzidas pelo homem. A
informatização controla tanto a linguagem dos homens quanto a linguagem das máquinas.
Por causa de sua controlabilidade, a linguagem artificial é tomada como o modelo ideal
de linguagem. Comparada à linguagem natural ou tradicional (aquela que nos é própria
segundo a nossa constituição de ser e que nos é dada desde o princípio), a linguagem
artificial se mostra muito mais eficiente. Se se elege a eficiência e a utilidade como
critério último da correção da linguagem, e este é o caso da ciência, então encara-se como
progresso a superação das imperfeições da linguagem natural ou tradicional através da
linguagem artificial (cfr. HEIDEGGER, 1989, p. 20-28).
O poder da ciência se mostra, ainda, no sentido de toda a sua movimentação. Ciência é
mobilização total. A marcha da investigação acontece como uma subida, uma decidida
ascensão, uma elevação e potencialização das próprias possibilidades de conhecimento.
A ciência procede com uma visão pragmática de seu próprio funcionamento: ela visa
resultados. No entanto, nenhum resultado é definitivo em sua marcha. Todo resultado
alcançado é ponto de partida para a busca de novos resultados. Cada meta remete a outra
meta ulterior. A busca científica projeta-se no infinito. Ela é um empreendimento aberto
ao infinito. Ela experimenta sua temporalidade como um progresso infinito. Nos últimos
tempos, porém, a onipotência e a prepotência da ciência se demonstraram ameaçadoras
para o homem e para a vida na terra. O progresso científico arriscou tornar-se um
progressivo distanciamento do homem de sua própria humanidade. Cada novo grito de
júbilo pelas descobertas científicas e pelos feitos tecnológicos podem se tornar, de
repente, um grito de horror. Entretanto, o maior perigo não é o de não ser, mas o de ser.
Não é o da destruição, que acaba com o real, mas o da desertificação, que seca as fontes
de criação do espírito humano, devido à unilateralidade da racionalidade científica.

4. AUTO-LIMITAÇÃO E TRANSFORMAÇÃO DA CIÊNCIA EM SUAS


BASES ONTOLÓGICAS

Apesar de toda essa potência e prepotência, nos últimos séculos não faltaram movimentos
internos à própria ciência, que tenham tentado assumir os seus limites e a sua finitude
humana, radicalmente humana. Já o cientista e filósofo Pascal, no século XVII, que foi
tão decisivo para a ciência, havia visto a necessidade de tornar a razão razoável, isto é, de
saber discernir quando se deve usar a razão e quando se deve submetê-la (Cfr.
ROMBACH, 1977, p. 266). Talvez nós pudéssemos dizer: é essencial que se conheça os
limites da ciência, para que ela seja tomada como o que ela é: não como saber, mas como
poder, isto é, não como possibilidade de guardar a verdade do ser, mas como simples
possibilidade de manter o domínio do ente (Cfr. ROMBACH, 1977, p. 257).
De início, Galileo Galilei ainda pensava que as construções do conhecimento científico,
baseadas em hipóteses projetadas racional e matematicamente e em experiências
controladas metodicamente, eram como pontes que se lançavam entre o intelecto e a
natureza. À medida que as construções se tornavam cada vez mais rigorosas e exatas elas
se adequavam cada vez mais à realidade. Os fatos eram vistos à luz de um sistema
hipotético-dedutivo. E as hipóteses eram confirmadas ou refutadas pelos fatos da
experiência, de uma experiência que era experimento, isto é, experiência controlada
metódica e matematicamente. Contudo, Pascal observou que cada nova hipótese é
superada por outra hipótese. Na ciência, jamais acontece algo como uma adequação
última e perfeita à realidade. Sua aproximação é, no melhor dos casos, assintótica. Seu
caminho é infinito e a cada momento a ciência está igualmente distante da meta de um
conhecimento da realidade. A ciência não lida com a realidade, mas com as aparências.
Ela não conhece verdade, mas só correção. O espírito de geometria, que domina nas
ciências da natureza, não pode ser aplicado à ordem do espírito, isto é, ao reino da
liberdade, em que rege o espírito de fineza, muito menos à ordem da caridade. A ciência
é apenas uma forma de conhecimento e de saber, uma forma limitada à ordem do corpo
e da natureza. Questões existenciais de sentido, questões metafísicas e religiosas não
pertencem ao seu domínio. Além disso, a ciência permanece sempre um feixe hipotético,
assim como a natureza, vista em sua ótica. Enquanto uma hipótese não for contradita, ela
permanece apenas provável e, portanto, não escapa ao poder da dúvida. Para que uma
hipótese seja declarada verdadeira não basta que todas as aparências oferecidas pala
experiência a confirmem, enquanto que, para que uma hipótese seja declarada falsa, basta
apenas uma manifestação da experiência a contradiga. Assim, já no século XVII, Pascal
antecipava aquilo que hoje se chama “racionalismo crítico” (Cfr. ROMBACH, 1977, p.
267).
No começo da ciência moderna, o ente no seu todo deixou de ser compreendido
ontologicamente como substância e passou a ser compreendido a partir de uma ontologia
funcional. A substância se dissolveu em redes de relações. A qualidade tomou o sentido
de aparência subjetiva e a quantidade se tornou o critério de racionalidade objetiva. Se
antes, na metafísica clássica, a terra era o reino da matéria e de sua instabilidade e
transitoriedade e o céu era o reino do espírito e de sua estabilidade e permanência, a partir
do começo da ciência moderna, a terra se tornou um astro celeste e os astros celestes se
tornaram outras tantas terras, mas a divisão metafísica passou a se operar na distinção
entre o sensível-empírico e o racional-matemático. Graças a essa decisão metafísica,
tornou-se possível matematizar toda a natureza e relativizar todo o real. Entretanto,
Descartes e Newton ainda continuaram a supor algo de absoluto na natureza: o espaço,
entendido como extensão. No século XX, porém, a teoria da relatividade, de Einstein,
levou a renunciar à hipótese de um espaço e de um tempo absolutos. Espaço e tempo não
são mais conceitos absolutos, mas categorias relacionais que só valem no contexto de um
sistema de referências. Assim, todas as outras determinações dos corpos são relativas, isto
é, relacionais. Uma proposição é científica somente se ela vale em referência a
determinados fatos e propriedades. O sistema de referências a partir donde esta
proposição enuncia algo sobre fatos e propriedades das coisas deve, pois, ser indicado.
Uma tese se torna hipótese se ela vale de modo apenas relativo no contexto de um sistema
de referências. Por sua vez, as descobertas científicas do século XX – contradição da luz
como onda e corpúsculo (Planck, Einstein, Bohr), o problema da desordem molecular
(Boltzman) e o princípio da incerteza na mecânica quântica (Heisenberg) – indicaram que
não há sistemas de referências que sejam fixos e estáveis. A natureza se mostra como uma
rede de relações. A totalidade das hipóteses de uma ciência não pode ser verificada, pode
apenas ser falsificada. O progresso da ciência não conduz a um saber definitivo, ele jamais
alcança a realidade mesma. Galilei entendia a ciência como uma ponte firme que se lança
entre o intelecto e a realidade. Popper a comparou com uma construção no pântano ou na
água. Nós poderíamos compará-la com uma plataforma de petróleo no oceano. A
fundação da ciência nunca alcança os fundamentos da natureza. Na ciência, não se trata
de alcançar um saber fundamental, trata-se apenas de construir um conhecimento que seja
firme e consistente em si mesmo e, ao mesmo tempo, resistente e produtivo. O homem é
a medida da ciência, não a realidade.
A autolimitação da ciência se dá também no modo como se entende a relação observador-
observado (Cfr. ROMBACH, 1977, p. 270-278). A princípio, se entendia que um fato da
realidade, constatado por um observador, era explicado no horizonte de uma teoria.
Supunha-se que havia uma realidade com fatos “em si”; que o observador permanecia
inalterado, que por meio do ser observado o fato não se modificava. Em seguida, novas
concepções alteraram esta interpretação. Para a apresentação e explicação de um fato, não
basta uma teoria, é preciso outras. Não basta uma hipótese e uma verificação. A
correspondência entre hipótese e fato pode ser ilusória. Por isso, é preciso lançar outras
hipóteses e fazer outras verificações. Contudo, como Pascal já ensinava, nem o conjunto
de todas as verificações concordantes são indubitáveis, mas somente a “falsificação”. Por
um lado, uma nova teoria pode corrigir a impressão que se tem da realidade e a explicação
do fato. Por outro, porém, variam-se as situações de observação, com a invenção de novos
sensores e detectores, capazes de apreender novos aspectos da realidade.
Mais recentemente, entende-se que nenhuma teoria é verdadeira por si mesma. Que todas
as teorias se corrigem mutuamente. “Realidade” é justamente a constante coação e
obrigação de retificações do conhecimento. Correspondentemente às diversas teorias
temos diversas situações experimentais de fundo, que condicionam a construção das
teorias. Criam-se teorias mais refinadas, com métodos mais refinados, com hipóteses de
apresentação e hipóteses de representação mais precisas. A “coisa” estudada é um ponto
de imaginário de intersecção de diversas teorias. Também o “observador” é um ponto
imaginário de intersecção de diversas situações de observação. A ciência se torna uma
crítica auto-elucidação do processo da pesquisa. A pesquisa, por sua vez, não somente
caminha para frente (progresso), no sentido do conhecimento da coisa, mas também
caminha para trás (regresso), no sentido do controle das condições de observação e das
condições de construções teóricas. A ciência progride quando é também capaz de
regredir, ou seja, de retornar sobre suas próprias condições de observação. É então que o
observador e construtor do conhecimento entra em questão. A ciência é um
empreendimento humano.
As ciências da natureza são ciências humanas. A ciência é produto da mente humana, que
é formada e constituída temporal e historicamente. Ela é produto de uma
intersubjetividade, de uma pluralidade de mentes humanas que interagem segundo
condições históricas e sociais. Ela é uma construção sócio-histórica. Daí a importância de
se conhecer modelos genéticos da construção do conhecimento, como também da
aprendizagem. Nesta situação e concepção, ciências da natureza e ciências humanas não
estão separadas, mas são dois polos de uma mesma dinâmica de construção do
conhecimento. No contexto das ciências humanas, por sua vez, se repete o mesmo
processo que se dá no contexto das ciências da natureza: aspectos elementares fundam
aspectos complexos, aspectos complexos corrigem aspectos elementares. Entre aspectos
elementares e complexos se dá um contínuo processo de elucidação. Nas ciências
humanas, em diferença das ciências da natureza, contudo, a vinculação entre observador
e observado é de um outro rigor. Nas ciências humanas, o rigor não é exatidão. Para usar
a linguagem de Pascal, aqui não se trata de “espírito de geometria”, mas de “espírito de
fineza”. Não obstante, as ciências humanas possuem seu próprio rigor, sua própria
precisão, apesar da grande inexatidão e oscilação de seu objeto temático: o ser humano,
psiquicamente, socialmente e historicamente constituído e constituinte. Também as
ciências humanas são um processo crítico de auto-elucidação, só que esta auto-elucidação
é concernente ao conhecimento do homem. A tarefa das ciências humanas é, assim, a
autocrítica do homem, da sociedade e da cultura.
O conhecimento científico, portanto, se constrói por meio de uma pluralidade de ciências,
que não somente interagem, mas também se interpenetram mutuamente. Os polos
natureza e homem são apenas centros de gravidade dos conhecimentos. Ciências
particulares se aglutinam com outras ciências particulares, formando grupos
determinados de ciências: ciências exatas da natureza, ciências descritivas da natureza,
ciências sociais, ciências históricas. Algumas se encontram no permeio entre ciências
naturais e ciências humanas, como é o caso, por exemplo, da psicologia. Contudo, a
localização das ciências no todo do conhecimento científico não é fixa e unívoca. Assim
como o sistema das ciências, que é, portanto, um sistema aberto de sistemas abertos, não
é fixo e estável. Há contínuos deslocamentos. O todo é, portanto, inquieto, flexível,
dinâmico. As ciências não se diferem e se referem somente a partir da referência aos
objetos, mas também segundo a diversidade de formas de tratamento dos objetos, pontos
de vista e horizontes de pesquisa, como ainda segundo os modos de acesso aos próprios
objetos e os modos de apresentação do conhecido e de comunicação do conhecimento.
Nesta pluralidade e complexidade, instabilidade e dinamicidade que é a construção do
conhecimento, não há lugar para interpretações redutivistas da realidade e nem para a
imposição de grupos de ciências como modelos para as demais. O conhecimento é
multidimensional.
A multidimensionalidade do conhecimento científico possibilita desfazer a rigidez e o
fechamento dos sistemas científicos. A ciência se torna, assim, a auto-apreensão de
diversas camadas ou estratos estruturais do conhecimento, a apreensão, portanto, de
diversas dimensões de relações com o real, um real que também é concebido como
complexo, como uma tessitura de relações multidimensionais e estruturais. Cada
dimensão do real estudada traz em si diversos horizontes de pesquisa. Um e mesmo
fenômeno pode ser interpretado de maneiras diversas, a partir de diversos pontos de
partida, de situações observadoras diversas, situado em diversos horizontes de
objetificação, horizontes que, por sua vez, pertencem a diversas dimensões do real. A
pluridimensionalidade do conhecimento do real, por conseguinte, induz a uma visão do
método aberta. Não se tratam de um mero perspectivismo e de um mero pluralismo, mas
se trata de, na pluralidade e multidimensionalidade, descobrir correspondências internas,
que possibilitem um diálogo interdisciplinar. Assim, a ciência deixa de ser a busca do
conhecimento claro e distinto do mundo, para ser a busca de transparência do próprio
conhecimento: auto-apreensão elucidativa do conhecimento.
Esse modelo genético de autocompreensão da ciência mostra uma passagem epocal no
âmbito do conhecimento: a passagem do sistema para a estrutura. Algo semelhante à
passagem que se deu no início da modernidade, quando se passou da substância para o
sistema. Na antiguidade, a ciência era o conhecimento da essência, dos princípios e causas
das substâncias. O conhecimento era entendido como concordância com o real. Na
modernidade, a realidade deixa de viger como substância, para vigorar como sistema. O
conhecimento deixa de ser apreensão do essencial, para vir a ser relacional e sistemático.
Em lugar da busca da essência entrou a investigação das leis; em lugar das causas, as
determinações fundamentadoras; em lugar da concordância com o real, a coerência
interna do sistema.
Entretanto, também a compreensão sistemática do real e do conhecimento mostra-se
questionável nos últimos tempos. Heinrich Rombach percebeu nas tendências mais
profundas de nosso tempo, em vários âmbitos, como, por exemplo na arte, mas também
na ciência, a tendência a desfazer a compreensão da realidade como sistema e a preparar
uma outra compreensão ontológica, mais viva, flexível, mais humana, que ele denominou
de ontologia da estrutura (Cfr. ROMBACH, 2003, p. 7-14).
O sistema é ainda uma compreensão da totalidade que não se libertou de todo de uma
concepção substancialista (que, defasada, se identifica, grosso modo, com uma concepção
fixista, estática e coisificada da realidade). O sistema é ainda entendido mecanicamente,
deterministicamente. Pode-se duvidar se esta concepção é superada, mesmo ali onde se
fala de “sistema aberto”, em lugar de “sistema fechado”. Neste sentido, a concepção de
sistema é ainda originária de uma visão da realidade a partir do mecânico, ou, na melhor
das hipóteses, do orgânico. Já a estrutura é uma concepção de totalidade cuja matriz é a
dimensão da liberdade. Sistema, bem entendido, é uma passagem para a concepção da
estrutura. Estrutura é uma totalidade “sui generis”. É dinâmica, viva, fluente, flexível,
autogeradora, autorreguladora, autocrítica e auto-corretora, amante da originalidade e da
criatividade, da liberdade e da reciprocidade. Na estrutura, o todo está todo em toda a
parte; cada parte é o todo, é uma perspectiva e uma concreção do todo. É uma “afinação”
e uma “constelação”. Uma estrutura está em contínuo processo de correção,
reconstituição e potencialização. É aberta para transformações, para rupturas e saltos.
Nela, nada é mais ou menos importante. Cada coisa é importante, a partir da concretude
de cada situação. Na estrutura, o todo não é o resultado da união das partes. Ao contrário,
o todo atua previamente como poder organizador, que põe e dispõe numa conjuntura
funcional, as partes. Cada parte colabora com as outras partes a partir e em vista do todo.
Cada parte é um momento funcional do todo. Os momentos se condicionam mutuamente,
mas também são condicionados pelo todo. O conhecimento, entendido estruturalmente,
já não pergunta por leis, mas por princípios; já não busca determinações, mas correlações
interativas ou interrelações recursivas; em lugar da coerência e produtividade do sistema,
busca a fecundidade do conhecimento. A produtividade é mecânica, a fecundidade é
criatividade vivente.
O que parece estar em jogo, nesta mudança epocal de uma concepção sistemática da
realidade e do conhecimento para uma concepção estrutural da realidade e do
conhecimento é, de novo, o surgimento de um novo mundo e de um novo homem.
Homem e mundo se pertencem. Desde a antiguidade o homem mesmo se compreendeu
como “minor mundus”, como microcosmo. O homem é a medida do mundo e o mundo é
a medida do homem. Hoje, mundo e homem solicitam serem pensados e conhecidos em
sua multidimensionalidade. O que é, entretanto, dimensão? A palavra “dimensão”, na sua
formação, guarda uma relação com o verbo mensurar, isto é, medir. Dimensão é aquilo a
partir do que se pode medir e avaliar uma extensão. Ela é um horizonte e princípio de
medida e de valoração. O ser humano existe, medindo-se com o Céu e a Terra, medindo-
se com o seu mundo, com as coisas, com os outros seres humanos, com as suas atitudes,
etc. É a partir deste medir-se que ele se responsabiliza por avaliar tudo o que se coloca
sob o seu cuidado. Na passagem do sistema para a estrutura, certamente, está em jogo um
outro modo de o homem medir-se com o mundo. O mundo e o homem do sistema, seja
ele fechado ou aberto, são ainda artificiais e mecânicos, por mais que seus mecanismos
sejam dinâmicos e interativos. Eles acabam sendo, assim, desumanos. O sistema é muito
produtivo e efetivo. Mas ameaça extinguir a criatividade, a fecundidade, a liberdade, a
flexibilidade, tudo que é vivente e humano.
O desafio do futuro que nos atinge hoje, a interpelação do futuro que nos solicita hoje o
pensamento quando se trata de pensar o sentido epocal da ciência pode, pois, se dizer com
uma pergunta: será possível o surgimento de uma ciência humana?
Nos últimos séculos, a metafísica do sistema operante na ciência produziu um mundo
imundo, isto é, desmundanizado, esvaziado de sentido, e também um homem desumano.
A marcha da ciência muitas vezes se demonstrou cega ou pelo menos unilateral. O homem
da era da ciência poderia ser comparado a Polifemo, o gigante de um olho só que Odisseu
teve que enfrentar. O homem da era da ciência demonstra um poder gigantesco. Mas tem
um olho só: o olho da ciência. Não seria o momento oportuno, o kairós, de o homem
despertar outros olhos para ver a realidade? Não seria o momento de o homem ver com
outros olhos aquilo que não se faz visível no horizonte do conhecimento científico? O
homem de hoje, com a ciência nova de nossos dias, despertou um olhar para a
complexidade do ente. Mas, ele ainda poderá despertar um olhar para o Simples? Para
além das transformações da ciência de hoje, o que o grande desafio é se o homem ainda
vai ser capaz de ver não o complexo, mas o simples, não o simples da
unidimensionalidade, mas o simples daquela simplicidade que recolhe na unidade o
homem e a natureza, o mundo e a terra, o mortal e o divino.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
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_______________ Die Welt als lebendige Struktur – Probleme und Lösungen der
Strukturontologie. Freiburg: Rombach Druck und Verlaghaus, 2003.
A DELIMITAÇÃO, DA PARTE DE HUSSERL, DO CAMPO TEMÁTICO DA
FENOMENOLOGIA. A CAMINHO DA FENOMENOLOGIA TRANSCENDENTAL.
Nos anos sucessivos à publicação das Investigações Lógicas, Husserl levou
adiante o trabalho de delimitar o campo temático da fenomenologia. Partindo do
conceito de intencionalidade, procedeu-se a uma análise dos comportamentos não
somente teoréticos, como também práticos e estéticos. Também a idéia da
fenomenologia enquanto ciência e método é elaborada. No ano de 1907 ele dera um
curso de cinco preleções intitulado Die Idee der Phänomenologie (A idéia da
fenomenologia). Nesta ele diz: “Fenomenologia: esta designa uma ciência, um conjunto
de disciplinas científicas; mas designa ao mesmo tempo e antes de tudo um método e
uma atitude de pensamento: a atitude de pensamento especificamente filosófica e o
método especificamente filosófico”210. No pensamento de Husserl, portanto, a
fenomenologia não constituiria uma “corrente filosófica”, mas seria o nome para o
método e a atitude de pensamento da própria filosofia, entendida não como
mundividência (Weltanschauung) ou mera teoria do conhecimento (Erkenntnistheorie)
no sentido de uma descrição empírica do estado factual e do procedimento factual das
ciências, mas entendida ela mesma como uma ciência, a saber, uma ciência primordial,
uma Vorwissenchaft, que teria como terreno de investigação não somente a dimensão
teorética, como também aquela dimensão pre-teorética da vida em si mesma, onde nós
antes de tudo e na maior parte das vezes nos movemos.

Enquanto tentava clarear e delimitar a idéia e o campo temático da


fenomenologia Husserl se dedicava também a um confronto com a filosofia da época211.
Neste período, sob a inspiração de Max Scheler, começara a ser traduzido em alemão a
obra de Bergson. A partir do contato com esta obra, Husserl irá interessar-se sempre
mais pelo problema do tempo. Resultado dos seus estudos sobre este problema serão
publicados no Jahrbuch, no ano de 1928, sob os cuidados de Martin Heidegger, com o
título Vorlesungen zur Phänomenologie des inneren Zeitbewusstseins (Preleções sobre a
fenomenologia da consciência interior do tempo). Neste período Husserl se dedicará
também a estudos de Kant, sobretudo de sua filosofia prática, e ao confronto com a

210
E. Husserl, Die Idee der Phänomenologie, 23.
211
Cfr. M. Heidegger, 124-129.
Escola de Marburgo, sobretudo com Paul Natorp, em relação ao qual Husserl reconhecia
suas afinidades, sem que por isso esquecer as diferenças que reinava entre os dois.
Ainda neste mesmo período o estudo de Dilthey o ajudará a dirigir o olhar do âmbito
das ciências da natureza, com o qual era originariamente familiarizado, para o âmbito
das ciências do espírito.

A partir da fermentação de todas estas investigações e da meditação destes


diversos problemas surgirá, na revista “Logos” de 1910/11, o escrito intitulado
Philosophie als Strenge Wissenschaft (Filosofia como ciência rigorosa). A respeito deste
escrito diz Heidegger: “o ensaio tem um caráter programático; ele não é um programa
de trabalho, mas nasceu a partir do trabalho e sobre o pano de fundo de um trabalho
de dez anos. Esta obra suscitou, quase sem exceção, o horror entre os filósofos” 212. De
fato, nesta obra, Husserl ataca frontalmente duas tendências da filosofia, enquanto
subordinada às ciências positivas, o naturalismo, que reduz o saber da totalidade à
natureza tal como é entendida pelas ciências naturais, e o historicismo, que reduz tudo
à história tal como é entendida pelas ciências do espírito. Para ele, a fenomenologia era
a possibilidade única da filosofia futura de afirmar-se como ciência toda própria,
autônoma e primordial para as outras ciências, sejam ciências da natureza, sejam
ciências da história. A esta ciência é atribuído caráter de rigor, enquanto às ciências
positivas em geral é atribuído o caráter de exatidão.

Entre os fenomenólogos o ensaio de Husserl de 1911 provocara um impulso para


um intenso trabalho coletivo. Resultado desta união fora a criação do orgão de
divulgação das investigações fenomenológicas, o Jahrbuch für Philosophie und
phänomenologische Forschung (Anuário para a filosofia e investigação fenomenológica),
cujo primeiro número saiu no ano de 1913. Os primeiros dois volumes contêm artigos
dos curadores: Husserl, Scheler, Reinach, Pfänder e Geiger. Os outros volumes
apresentarão artigos de outros fenomenólogos.

Por este tempo, a fenomenologia, no pensar de Husserl, foi se aviando cada vez
no caminho de uma “filosofia transcendental”. “Transcendental”, no sentido de Kant e
de Husserl, diz respeito a aquilo que não deriva da experiência, mas que é condição de

212
M. Heidegger, PGZ, 127.
possibilidade da realização de qualquer experiência possível. O “transcendental” tem a
ver com o “matemático” e com a “mathesis universalis”. É no caminho do
“transcendental” que se avia a fenomenologia na experiência de pensar de Husserl.
Tentemos, pois, elucidar os conceitos de “experiência”, de “matemático”, de “mathesis
universalis”, e, em seguida, vejamos como se configura a fenomenologia enquanto
fenomenologia transcendental no caminho de pensamento de Husserl.

I.4.1. O CONCEITO DE EXPERIÊNCIA

O conceito de experiência é muito amplo. Trata-se de uma palavra polissêmica e


cujos sentidos podem variar em diversas dimensões e situações epocais. Heidegger, em
Beiträge zur Philosophie (p. 159-166), ao meditar acerca do sentido da ciência, anota
algumas observações acerca deste conceito. O que chamamos de experimento pertence
a um conceito mais amplo, de diversos níveis e modos, denominado experiência.
Experimentar (Erfahren) diz, antes de tudo, um esbarrar em, um topar com, um dar-se
contra, um encontrar. Na experiência, algo nos golpeia, nos toca, nos pressiona, algo
que, sem a nossa intervenção, nos vem de encontro e nos “afeta”. Assim, neste nível
elementar, mais do que fazer experiências, nós sofremos experiências. Está em jogo uma
certa passividade em relação ao real, que nos afeta (Kant falou de passividade e
espontaneidade como dois componentes do conhecimento; Husserl investigou esta
passividade da experiência sob o título de gênesis passiva). O sentido de uma tal
passividade, no entanto, é a receptividade, o deixar-se impressionar por, a abertura da
sensibilidade. Num segundo momento, experimentar parece significar um ir de encontro
a algo que, de imediato, não nos toca. Trata-se de abrir caminho para uma nova
descoberta, através do olhar circunspecto, que procura, examina, espia, inspeciona,
revê, um determinado estado de coisas, uma determinada conjuntura ou situação
(Sachverhalt). Num terceiro momento, este ir ao encontro de, próprio do experimentar
no segundo nível, adquire o sentido de um pôr à prova, de um provar algo, no horizonte
de uma determinada interrogação, indagação, inquirição, e isto no modo do “se-então”.
Aqui, o examinar se transforma num observar, que, por sua vez, pode lançar mão de
outros instrumentos de apreensão e de visualização. O experimentado, antes
determinado como um buscado, agora é caracterizado como algo que é perseguido e
indagado pela pesquisa. Num quarto momento, por fim, o ir de encontro, que lança mão
de recursos de observação e que examina pondo à prova, repetidamente, as conexões
e relações dos estados de coisa, visa a apreensão de determinadas regularidades do se-
então. Este pôr à prova da empeiria (experiência), portanto, lida sempre com o recurso
da hypólepsis (conjectura). A regra, a lei, porém, só aparece na conjuntura de uma
mensuração. Experimento só é possível onde se lida com a precisão de uma
mensuração, partindo-se de um projeto matematizante da natureza. Justamente este
projeto é a condição para a necessidade e a possibilidade do experimento. O simples
lidar com fatos da observação e com a mensuração ainda não constitui o experimento
no sentido moderno, mas, precisamente, o projeto de matematização da natureza.
Assim, a empeiria dos gregos, o experiri, a experientia e o experimentum dos medievais
(p. ex., Roger Bacon), ainda não constitui o próprio do experimentalismo moderno.

Na pesquisa da ciência moderna, a experiência é subsumida a partir e dentro do


projeto intelectual e, assim, se transforma em experimento e se põe à disposição da
formação de hipóteses e teorias, em vista do conhecimento e do saber.

No contexto da pesquisa científica, a experiência é a conjunção de múltiplas


percepções e representações. Nós nunca experimentamos coisas, mas conexões de
coisas e conexões de conexões de coisas. O fundo, a partir do qual é possível tais
conexões, é constituído pelas categorias (causa-efeito, substância-acidente, fim-meio,
possibilidade-realização, sentido-expressão, etc.). Para que múltiplas representações
sejam conectadas numa experiência, é preciso que, de antemão, as categorias
possibilitem a comparabilidade das representações. É a regularidade e universalidade
da experiência, partilhada de maneira intersubjetiva, que permite emergir o sentido de
objetividade do mundo. Contudo, tal não aconteceria se as representações, com as
quais lidamos, não estivessem fundadas, por sua vez, em percepções. É que as
representações surgem justamente da conjunção de múltiplas percepções. É a dinâmica
temporal de expectativas e memória (protensão e retensão) da percepção a nos
possibilitar a captação das coisas ao interno das conexões coisais. Nenhuma percepção,
no entanto, seria possível, se não houvesse um ser afetado pelas coisas, característico
das sensações. A percepção, com efeito, organiza, guiada pelo sentido do espaço, os
“dados hyléticos” (materiais) numa determinada “forma” ou “figura”, por nós percebida
como a coisa-e-suas-propriedades.

A experiência científica, porém, é algo mais. Ela é experiência da


experiência. Uma certa reflexividade, portanto, é a condição de possibilidade para a
experiência se constituir num experimento. Na ciência, nós não somente fazemos
experiências, mas fazemos experiências com nossas experiências, ou seja,
experimentos. Experimentos são experiências realizadas e controladas com vistas à
observação, vale dizer, à decisão acerca de determinadas perguntas, formuladas com
base no projeto de determinadas teorias. A reflexividade da experiência leva, por sua
vez, a produzir instrumentos de expansão do raio da observação (microscópios,
telescópios, radar, etc) e a desenvolver um sensorium muito mais abrangente do que
aquele da sensibilidade cotidiana. A reflexividade da experiência exige, ainda, que se
aperfeiçoe, do ponto de vista qualitativo e quantitativo, as condições dos experimentos
e que se alargue, cada vez mais, a envergadura de seu âmbito. Como se pode ver, a
experiência, no âmbito da pesquisa científica, adquire contornos e determinações
essenciais, fundamentalmente diferentes daquelas determinações e contornos da
experiência cotidiana do mundo da vida. O experimento é uma espécie toda própria,
portanto, de experiência, que se distingue qualitativa e decisivamente da experiência
cotidiana, pois, enquanto a experiência cotidiana é imediata, a experiência do
experimento só pode acontecer graças a diversas mediações.

A interpretação das experiências, na pesquisa, é operada sempre com vistas a


responder a determinadas perguntas ou investigações, que, por sua vez, lançam
determinadas hipóteses, corroboradoras ou não de determinados projetos teóricos. A
pesquisa move o método experimental já sempre no horizonte de um conhecimento,
que permanece sempre, do início ao fim, hipotético. Com efeito, o conhecimento
científico só se desenvolve a partir da renúncia às perguntas pelo sentido. Como
podemos aprender com Galilei, na pesquisa, o intelecto projeta hipóteses e os
experimentos averiguam a correção ou a falsidade delas. O experimento diz sim ou não
ao projeto hipotético. Se diz não, então uma nova hipótese tem que ser lançada. A
hipótese vale, enquanto a experiência não a refuta. Não quer dizer, porém, que a
hipótese possa ser transformada numa tese verdadeira acerca da realidade. A hipótese
permanece hipótese, isto é, em aberto, uma vez que, potencialmente, uma nova
experiência pode, a qualquer momento falsificar a hipótese213. Toda hipótese, por
conseguinte, permanece sempre em suspensão. Ela se mantém na renúncia a ser uma
tese sobre a realidade. Na ciência, não existe verdade, enquanto adequação com a
realidade, mas existe somente certezas assertórias – não apodíticas –, baseadas, por sua
vez, na coerência interna de um sistema teórico, o qual também é, no seu todo,
hipotético, uma vez que não pode ser nem refutado, nem confirmado. O todo das
hipóteses permanece sempre, no fundo, uma suposição. Certeza só pode haver no
interno do sistema das hipóteses, mas não com relação ao sistema como tal. No
experimento nós não experimentamos a verdade das coisas, mas apenas a verdade de
nossas hipóteses sobre as coisas. A ciência é, ao seu modo, uma espécie de douta
ignorância. No saber científico, nós conhecemos as coisas em suas mútuas relações, mas
não as conhecemos no Todo e na sua verdade originária. Com outras palavras, nós até
podemos saber com certeza e segurança algo acerca das coisas, mas não podemos saber
o que elas, em sua verdade originária, são.

I.4.2. SOBRE O MATEMÁTICO E A “MATHESIS UNIVERSALIS”

O que transforma a experiência em experimento é o matemático. Mas, o que é


isto “o matemático”?

Nossa tentação é responder, determinando o matemático a partir da


matemática e, esta, por sua vez, entendida como uma disciplina já consolidada. Talvez
o caminho deva ser o inverso: entender a matemática a partir do matemático. Vimos já
que Husserl não se pôs a fazer “filosofia da matemática”, mas sim uma “investigação
fenomenológica fundamental sobre o matemático”. Do mesmo modo, não se pôs a fazer
“filosofia da lógica”, mas sim uma “investigação fenomenológica fundamental sobre o
lógico”. A crise da matemática e a crise da lógica pôs em questão os conceitos

213
O falsificacionismo, que afirma ser a falsificação e não a verificação, o motor da pesquisa científica, não
é uma novidade da teoria da ciência contemporânea (Popper e Albert). Já fora desenvolvido com grande
acuidade por Pascal, a partir de Descartes e Galilei. Este último, por sua vez, recebeu esta orientação de
Giordano Bruno e, através dele, de Nicolau de Cusa, cujas obras principais, no tocante a este tema, são
De Docta Ignorantia e De conjecturis.
fundamentais do pensamento matemático e lógico. A investigação de Husserl não era
de “teoria do conhecimento” em sentido usual. Era, antes, uma elucidação, um trazer e
deixar vir à evidência o ser do matemático, respectivamente, o ser do lógico. Aqui, o
ente matemático, respectivamente, o ente lógico é interrogado, compreendido e
interpretado com base em seu modo de ser, isto é, de essencializar, de viger. A questão
do sentido de ser – quer do ser do ente matemático, quer do ser do ente lógico – é o
que moveu Husserl nas suas primeiras tentativas até as Investigações Lógicas. A questão
que não quer calar, porém, é como que Husserl, seguindo este caminho, se deparou com
a psicologia brentaniana, e, nela, com a intencionalidade, e, a partir dela, na
“fenomenologia transcendental”, que pretende transcender toda a psicologia.

“O matemático” nos remete de volta ao pensamento grego. Em grego,


“mathematikós” significa “dedicado à aprendizagem”, “estudioso no aprender”. “Tó
máthema” significa “o que se há de aprender”; no plural, “tà mathémata”, “as coisas
que hão de ser aprendidas”. “Máthesis” é a própria aprendizagem. “Mantháno” é, por
sua vez, “aprender”, mas também, “habituar-se”, “vir a conhecer ou a saber”, “captar
com a visão”, “ver”, “apreender”, “reconhecer”, “dar-se conta de”, “compreender”.

À primeira vista, aprender é um relacionamento com as coisas, em que entra em


jogo um apreender, um captar, um tomar, o que pressupõe um receber, o que, por sua
vez, pressupõe um dar-se das coisas, em seus significados e sentidos, a nós, os
aprendizes da realidade, das realizações, do real. Estas coisas que se dão, isto é, que
vêm à luz e se deixam ver, apreender, captar, os gregos chamavam de “tà phainómena”.
Para eles, “tà phainómena” era sinônimo de “tà onta”: o Todo, a totalidade do que é.
Aprender é, portanto, um relacionamento de ser com o ser de tudo o que é. É o que é,
como é, este relacionamento? É um apreender e ver, no sentido de recepcionar-
percepcionar, dito brevemente, de pensar (noein). O pensar constitui a nós mesmos em
nosso relacionamento de ser com o ser de tudo o que é. O pensar é um receber, um
estar aberto, para manifestação, a revelação, a doação do ser de tudo o que é. Este
pensar não é uma propriedade do homem. O homem é que é uma propriedade deste
pensar. Ser homem é pertencer ao pensar. Pensar, porém, é ser. Pensar é a abertura
que deixa irromper, vir à evidência, tornar-se “fenômeno” o ser de tudo o que é. O
pensar, portanto, deixa ser o ser de tudo o que é. Este pensar nos constitui: nós o somos,
sempre, desde que somos homens. Ser-homem é pertencer a esta abertura da
manifestação do ser de tudo o que é.

Tudo o que é, o ente no todo, o que os gregos chamavam de “tà onta”, “tà
phainómena”, porém, se dá em diversos modos. Aristóteles dizia: “tò on légetai
pollachôs” – o que está sendo, o que é, se deixa vir à fala de diversos modos. abrindo
diversas “regiões de coisas”. Os gregos tinham vários nomes para nomear estas “regiões
de coisas”. Vejamos. Primeiramente, “tà physiká”: as coisas da “physis”, do surgir e
eclodir – são as coisas que surgem e eclodem por si mesmas, “naturalmente”. Em
segundo lugar, “tà poioumena”: as coisas da “poíesis”, da produção – são as coisas que
são produzidas, isto é, que são trazidas à presença, à medida que são feitas,
manufaturadas, fabricadas pelas mãos dos homens. Em terceiro lugar, vêm “Tà
chrémata”: as coisas da “chréia”, do uso – são as coisas enquanto estão sendo usadas,
enquanto estão “à mão” (cheír). Estas, por sua vez, podem tanto “tà physiká” quanto
“tà poioumena”, contanto que sejam tomadas na perspectiva do uso, isto é, da utilidade,
do emprego (chresis), do prestar para isso ou para aquilo, da necessidade (chreón). Em
quarto lugar, “tà prágmata”: as coisas da “práxis” – as coisas que se dão na ação. O
“prattein”, agir, se diferencia do “poiein”, fazer, pôr em obra. É que, na ação, o fazer é
um perfazer-se daquele que age, de um modo ou de outro, num sentido ou noutro. O
pôr em obra é, na verdade, um pôr em obra a si mesmo. Na ação, o homem é o poeta e
o poema de si mesmo, de sua liberdade. É na ação que o homem nasce, cresce e
amadurece, se consuma e morre, a cada dia, a cada nova situação, dando-se a si mesmo
uma fisionomia singular, e, ao mesmo tempo, se responsabilizando pelo Todo. Ação é a
vida do homem como cuidado. Neste sentido, os gregos tinham o dito, expresso por
Periandro, poeta e um dos sete sábios da antiguidade grega: “méleta to pan!” – cuida
do Todo (responsabiliza-te pelo Todo). Somente porque o viver do homem é cuidado
por si enquanto cuidado pelo todo (autorresponsabilização enquanto responsabilização
pelo Todo) é que o homem se constitui a si mesmo na ação. E, somente por ser um ente
que se consuma na ação, é que o homem precisa se ocupar com as coisas da natureza,
bem como com as coisas que ele mesmo faz, no sentido de fabricar, aprontar.

Aprender é um relacionamento de ser-pensar com o ser de tudo o que é. Mas


este relacionamento tem dois níveis. Um é o nível do uso. O homem não aprende coisas.
Aprende o uso delas. Aprender é, neste sentido, dispor do uso das coisas, da sua
utilidade, da sua serventia, do seu prestar para isso ou para aquilo. Aprender é, aqui,
apropriar-se do uso das coisas. Este aprender só acontece no exercício do uso e da lida
com as próprias coisas. Ainda aqui são possíveis diversas situações de aprendizagem.
Por exemplo: posso aprender a usar um carro como um simples usuário que pega carona
com outrem. Posso aprender também a usar o carro como motorista. Para aprender a
dirigir um carro eu tenho que, por assim dizer, me entender com o carro e isso, enquanto
eu o dirijo. Eu tenho que, por assim dizer, desenvolver uma série de habilidades, que me
permitem, no próprio uso, ter a competência de conduzir um carro. Desta competência,
porém, faz parte não somente saber fazer um carro andar, mas também saber
locomover-me com o carro pelas vias, reconhecendo e respeitando as leis de trânsito,
etc. Este entendimento que eu desenvolvo do carro, porém, é restrito. Eu sei apenas
usar, operacionalizar o carro. Mas, se o carro estraga, eu preciso levá-lo para uma oficina
mecânica. Outros podem aprender não somente a usar um carro, mas podem também
aprender a conhecer como funciona um carro, ou podem, ainda mais, aprender como
produzir um carro. O aprender a conhecer como funciona e o aprender a conhecer como
se produz carros são níveis diversos de aprendizagem. Chamamos de “know how” este
tipo de conhecimento. Uma é aprendizagem de quem trabalha em uma oficina
mecânica, outra, a aprendizagem de um engenheiro automotivo, outra, ainda, a de
quem inventa novas formas de veículos, etc.

Num segundo nível, trata-se de aprender a conhecer o que é e como é alguma


coisa, ou seja, de aprender a conhecer a “coisa mesma”, o ente na perspectiva de seu
ser, o ser da coisa como tal, a sua coisidade. O saber do ser de qualquer coisa que seja é
prévio a toda a objetivação e a toda a investigação científica. Este saber costuma ser
indeterminado: se não se pergunta o que é se sabe, se se pergunta, já não se sabe
(Agostinho). O saber primeiro é operativo: é um compreender o ser de alguma coisa
simplesmente se relacionando com ela no modo como ela requer que o relacionamento
aconteça. O saber segundo é temático: é um tomar conhecimento, um reconhecer, o
que já sabíamos e sabíamos simplesmente sendo no relacionamento com a coisa. Trata-
se de uma investigação que perpassa toda a “região coisal” em que aquela coisa se dá.
O aprender a conhecer deste segundo nível é o que os gregos chamam de “máthesis”.
Conhecer é, aqui, reconhecer: tomar conhecimento de algo que já se sabe, isto
é, o que é e como é alguma coisa. Trata-se de saber o “é”. Embora eu e as coisas sejamos
diferentes, podemos nos relacionar, porque, fundamentalmente, em sendo, sei o ser de
tudo o que é. A humanidade do homem, e, por conseguinte o pensar, enquanto
constitutivo desta humanidade, consiste em ser o lugar da revelação do mistério de ser,
da sua vigência, que inclui, cada vez e sempre de novo, o presente e o ausente, o patente
e o latente, o pleno e o vazio, o algo e o nada, de tudo aquilo que, de alguma forma, é,
foi, ou será, recolhendo-os na dinâmica temporal de passado, presente e futuro.

O pensar que somos não incide sobre, antes, coincide com o ser do que é. O ser
não está fora do pensar e nem o pensar está fora do ser. Pois o pensar, que nos constitui
como homens, consiste em percepcionar o ser de tudo o que é. Os gregos chamam de
noein a este percepcionar do ser. Este percepcionar é, antes de tudo, um admitir. É uma
recepção, uma aceitação e um acolhimento da realidade: um deixar vir de encontro
aquilo que se mostra, que aparece, tal como se mostra. Percepcionar é também um
tomar depoimento do que o que se mostra e aparece como sendo diz de si. Ora,
fenômeno é o que aparece, isto é, o que se manifesta, e, se manifestando, se divulga,
dá notícia de si. “Phainomenon”, fenômeno, vem de “phainesthai”: pôr-se a brilhar,
aparecer no próprio brilho214. Pensar é o a recepção que acolhe e recolhe o dar-se de
tudo aquilo que se põe a brilhar, que aparece no seu próprio brilho. Além disso, noein
(pensar = percepcionar) significa também um deter esta aparição do ser em si mesmo,
e, por conseguinte, um conter esta aparição na forma do conceito.

A unidade de pensar e ser não é uma igualdade vazia, no sentido da indiferença.


Nem é uma mera equivalência e um mero equacionamento. Trata-se, antes, da unidade
do que tende a opor-se. A realidade tende a retirar-se em toda a realização do real. O
pensar tende a deter a doação da realidade e a persegui-la em sua retirada, atraído pela
sua retração. Em todo o caso, o pensar e o ser, mesmo se opondo, se pertencem
mutuamente. Foi o que Parmênides disse em seu poema: “tauton d’esti noein te kai
ouneken esti nóema” – “o mesmo é o percepcionar (noein) e aquilo (nóema) em virtude
de que o percepcionar se dá”. Isto quer dizer: com a aparição do ser se dá também o

214
Heidegger, M. A caminho da linguagem, 104.
percepcionar-pensar. O percepcionar pertence ele mesmo ao acontecer do ser e à sua
manifestação ou revelação. O caráter manifestativo do ser já se dispõe a ser recebido,
acolhido, percepcionado no pensar. O ser do homem se determina a partir do
acontecimento da correspondência essencial entre o ser (a realidade que se manifesta)
e o pensar (o percepcionar do ser). O homem somente chega a ser homem à medida
que entra neste acontecimento, tornando-se pertencente a ele. Neste sentido, o pensar
não é uma propriedade do homem, mas é o que homem que é propriedade do pensar.

Ser homem é manter um relacionamento de ser com o ser de tudo o que é a


partir do percepcionar-pensar (noein). Na época moderna, a unidade de ser-pensar
acontece historicamente como a auto-evidenciação do “cogito-sum”. No “cogito” a
“mens” (mente, espírito) em seu “esse” (ser) se dá a si mesma para si mesma, vem de si
mesma para si mesma. Todo o aprender do que quer que seja se funda neste apreender
em que a mente é dada a si mesma desde si mesma em si mesma. Todo o conhecer se
funda e se centra no “conhece-te a ti mesmo! ”, dele provém e para ele retorna. Todo o
conhecer se desdobra e se explica desde o conhecimento de si.

O conhecimento do mundo, sempre experimental e, ao mesmo tempo,


hipotético, se dá, como dizia Galileu Galilei, por um “mente concipere” (um conceber
com a mente). Conceber com a mente significa lançar um projeto de intelecção que se
estende por sobre as coisas, abrindo os espaços de jogo, onde as coisas se mostram,
onde os fatos de deixam inteligir desde princípios (conhecimento dedutivo) ou em vista
de princípios (conhecimento indutivo). Assim, por exemplo, na moderna ciência
matemática da natureza, o projeto abre de antemão o espaço de manifestação dos
entes naturais desde algumas determinações fundamentais tidas em alta conta
(axiomas), como: espaço homogêneo, tempo homogêneo, corpos homogêneos,
movimentos homogeneamente mensuráveis como deslocamentos de pontos de massa,
etc. Isso quer dizer: o projeto matematizante da natureza é axiomático; o lance
conceptual prévio constitui o esboço fundamental do quadro em que cada coisa e cada
estado-de-coisa ou conjuntura há de se manifestar. Por isso, a “natureza” das ciências
naturais é outra totalidade de significações e de sentido do que a “natureza” da
experiência cotidiana. A “natureza” da física matemática é a “res extensa”. A “natureza”
da experiência cotidiana é o ambiente de nosso “mundo circundante”, com outras
significações e sentidos. Trata-se do que Heidegger chamou de ser-no-mundo e Husserl
chamou de “mundo-da-vida”:

Quando, de manhã cedo, um físico sai de casa para ir pesquisar


no laboratório o efeito de Compton [215] e sente brilhar nos olhos os
raios de sol, a luz não lhe fala, em primeiro lugar como fenômeno de
uma mecânica e ondulatória. Fala como fenômeno de um mundo
carregado de sentido para o homem, como integrante de um cosmos,
na acepção grega da palavra, isto é, de um universo cheio de coisas a
perceber, de caminhos a percorrer, de trabalhos a cumprir, de obras a
realizar. A luz fala, sobretudo, de um mundo em que ele nasce e
cresce, ama e odeia, vive e morre a todo instante. Sem este mundo
originário, o físico não poderia empreender suas pesquisas, pois não
lhe seria possível nem mesmo existir. E, ao atingir-lhe os olhos, a luz
não somente fala, a luz é tudo isto. Não só podemos usar a mesma
palavra para dizer tanto um fenômeno externo, a luz do sol, como um
fenômeno interno, a luz da razão, porque nem o sol está somente fora
de nós, nem a razão está exclusivamente dentro de nós, e sim porque
sempre e necessariamente realizamos nossa existência na estrutura
ser-no-mundo. A necessidade de um esquematismo espacial,
temporal e gestual para dizer e compreender todos os modos de ser e
agir mostra à saciedade que a presença fundadora de uma existência
não se dá na órbita de consciência de um cogito sem mundo, nem na
complementaridade recíproca de sujeito e objeto. Abrange, ao
contrário, todas as peripécias de uma co-presença originária que se
realiza através de uma história de tempos, espaços e gestos, que se
desenvolve num mundo de interesses e explorações, de lutas e
fracassos, de libertação e escravidão216.

Fundada sobre o mundo-da-vida ou o ser-no-mundo, a ciência transforma a


experiência em experimento em virtude da matematização do real, considerado como
objeto. O projeto da matematização é o que determina o modo de acesso e de
tratamento da região coisal que subjaz a toda a pesquisa positiva, em que as coisas da
“natureza” (no sentido do ambiente dado na experiência cotidiano de ser-no-mundo)
podem se manifestar objetivamente, por exemplo, enquanto corpos, corpúsculos ou
ondas. Estes objetos, por sua vez, são o que são e como são, apenas e à medida em que
se mostram dentro do âmbito prévio do projeto aberto pela matematização. Como as
coisas se mostram aí é, neste caso, pretraçado pelo projeto. O projeto determina a
transformação da experiência em experimento ou experimentação. Com outras
palavras, a ciência moderna é experimental por causa do projeto matemático, que salta

215
Efeito Compton é a diminuição de energia (aumento de comprimento de onda) de um fóton de raios X
ou de raio gama, quando ele interage com a matéria.
216
Carneiro Leão, Emmanuel. Aprendendo a Pensar II. Teresópolis: 2010, p. 210-211.
de antemão por sobre o domínio dos fatos, predeterminando e pretraçando o seu modo
de ser e de aparecer. A mensuração quantitativa de relações não define o matemático.
O projeto matemático é que determina como se dará esta mensuração quantitativa das
relações entre coisas e estados-de-coisa. A mensuração e o cálculo não são o
fundamento do projeto matemático, mas o contrário, o projeto matemático é que
determina como e em que sentido que se dará a mensuração e o cálculo no lidar com
as coisas, os estados-de-coisa e os fatos.

O matemático é, pois, um projeto que se funda a si mesmo desde si mesmo e,


que, de antemão, se lança por sobre todo o mundo das coisas. É o fundamento absoluto
para todo o saber. O matemático é, na linguagem de Descartes, o “cogito: sum”; é, na
linguagem de Kant, o “transcendental”.

O “eu penso” é auto-evidência. Fundamento absoluto: nada pressupõe (cfr. a


exigência de “Voraussetzungslosigkeit” – ausência de pressuposição – no método
fenomenológico segundo de Husserl). O “eu penso” é doação de si para si da “mens”
(mente, espírito). A “mathesis universalis” é o saber da totalidade desde este
fundamento absoluto. Somente um saber que se desdobra e se explica a partir deste
saber de si (autoconhecimento) pode ser uma ciência fundada. Ciência é o
desdobramento do espírito, de sua auto-evidência, de seu autoconhecimento e de sua
autoposição como “eu penso”. A auto-evidência do espírito já fora tematizada por
Agostinho:

“Somos, conhecemos que somos e amamos esse ser e esse


conhecer (...). Como conheço que existo, assim também conheço que
conheço. E quando amo essas duas coisas, acrescento-lhes o próprio
amor, algo que não é de menor valia” (A Cidade de Deus XI 26).

“Pois sendo evidente que és, não podes ser o que és senão
enquanto vives; teu ser vivo é igualmente evidente (...). Por
conseguinte, é também evidente o terceiro elemento, o fato de
compreenderes (intelligere)” (Livre Arbítrio II, 7).

Quem, porém, pode duvidar que a alma vive, recorda,


entende, quer, pensa, sabe e julga? Pois, mesmo se duvida, vive; se
duvida, lembra-se do motivo de sua dúvida; se duvida, entende que
duvida; se duvida, quer estar certo; se duvida, pensa; se duvida, sabe
que não sabe; se duvida, julga que não deve consentir
temerariamente. Ainda que duvide de outras coisas não deve duvidar
de sua dúvida. Visto que se não existisse, seria impossível duvidar de
alguma coisa (Da Trindade X 10, 14).

É preciso lembrar também a advertência de Agostinho: “noli foras ire, in te redi,


in interiore homine habitat veritas” – não vás para fora, retorna a ti mesmo, no homem
interior habita a verdade ( frase que Husserl coloca ao fim das suas “Meditações
Cartesianas”). No “De Magistro”, Agostinho elucida o que é aprender – o que os gregos
chamaram de “mathesis”. Aprender é ser ensinado pela verdade interior. A palavra dos
mestres humanos serve somente para evocar e provocar a buscar as coisas mesmas na
sua evidência própria. Engana-se, quem pensa que a aparente transmissão de
informações dá conhecimento. O conhecimento vem da intuição: ou da experiência
direta da coisa mesma por meio da percepção, no caso das coisas sensíveis, ou da
intuição direta que acontece por graça da iluminação, no caso do inteligível. A função
da linguagem na comunicação didática, portanto, é de “admonitio”: de admoestação. O
mestre pode apenas aludir à coisa, evocando-a, e, ao mesmo tempo, advertindo e
admoestando o aluno para buscar a sua evidência por meio da intuição da percepção
direta ou por meio da iluminação interior do inteligível. Com outras palavras, nenhum
mestre humano pode fazer o outro ver, ele só pode provocar, convidar e advertir o seu
aluno para que se ponha em busca da verdade e procure alcançar a evidência daquilo
que se há de ver. Nas Confissões (livro XI, 8), Agostinho diz que aprender é se deixar
ensinar, é voltar-se para a verdade que nos ensina, como princípio, “de dentro”. Trata-
se da “veritas intus docente” do De Libero Arbitrio (2, 19).

Descartes faz da “dúvida metódica” uma forma de redução (leia-se


“recondução”) a este fundamento absoluto de todo o saber: a auto-evidência da mente,
do espírito. A “dúvida metódica” não é uma assepsia, nem um estágio preparatório do
saber. É, antes, a demonstração da falta de consistência de um saber alienado do
espírito, do autoconhecimento, da autoevidência, da autofundação do espírito. Ela
testemunha o perigo da perda de si do espírito em um “saber” em que o espírito (mens)
se aliena de sua essência. Husserl, no final das suas “Meditações Cartesianas”, como
uma última advertência, une o oráculo délfico do autoconhecimento e a sentença
agostiniana que recomenda “retornar a si mesmo”, adverte:
Gnoti seautón – eis que estas palavras délficas ganharam uma
nova significação. Ciência positiva é ciência perdida no mundo. Deve-
se primeiro perder o mundo pela epoché, para ganhá-lo numa
autorreflexão universal. Noli foras ire, disse Agostinho, in te redi, in
interiore homine habitat veritas (p. 195).

Ao saber de si como fundamento de todo outro saber Descartes chama de “bona


mens” ou então de “universali sapientia”. Neste saber, a “coisa mesma” a ser sabida não
está fora do espírito, mas nele, é sua presença e atualidade. Ela é o ser-para-si do próprio
espírito. É o aparecer e brilhar, o irradiar e o resplandecer do espírito mesmo. A “coisa
mesma” a ser sabida não vem de fora, mas cresce desde a evidência do espírito. A “coisa
mesma” se dá na auto-evidência do espírito. “Evidentia”: a verdade da “coisa mesma”,
com a qual e na qual, a coisa aparece e brilha, se mostra a partir de si, se dá a ver,
saltando e irradiando-se desde a interioridade do espírito (evideri). A evidência é um
sinal e um indício do ser-junto-de-si do espírito. Ciência é conhecimento certo e evidente
(Cfr. a segunda das Regras para a direção do Espírito). Descartes distingue entre
“noscere” (conhecer) e “imaginari” (imaginar). Conhecer é saber, no sentido de ter-
visto ou de ter uma evidência, uma clareza do conhecido. Imaginar é representar,
fantasiar, apreender alguma coisa como provável. O conhecimento de si do espírito não
é provável. É certo: auto-evidente. O “eu penso” é auto-evidência e auto-posição.
“Cogitans sum”: em pensando, sou. O “eu penso” é, pois, o fundamento, o sustentáculo,
a substância, no sentido da subjacência da auto-identidade, auto-evidência, auto-
posição: o subiectum. No Cogito, isto é, em pensando, em coagitando a modo do lance
de projeto, portanto em projetando a possibilidade a priori de todos os entes no seu
todo, se inaugura, se funda o modo de ser, em cuja dinâmica os entes vem de encontro
ao lance do projeto, isto é, de encontro a “Mim”, como ob-jecto, isto é, o explícito do
projeto que sou eu mesmo: assim o sujeito-eu vem a si como objeto.

Para Descartes, a verdade da coisa, do real, do ente no seu todo, deve estar
fundada na verdade da mente217. Com que direito, porém? Em razão de que? Em razão
de sua indubitabilidade. A Meditação II das “Meditationes de Prima Philosophia” de

217
“Adeo ut, omnibus satis superque pensitatis, denique statuendum sit hoc pronunciatum, Ego sum, ego
existo, quoties a me profertur, vel mente concipitur, necessário esse verum” – “Assim, portanto, depois de
ter ponderado tudo mais do que o bastante, pode ser estatuído que isto que é pronunciado: eu sou, eu
existo, é necessariamente verdadeiro, toda a vez que for proferido por mim ou que for concebido pela
mente” (Descartes, 1641/1998, p. 162 – tradução nossa, grifo do próprio texto editado).
Descartes nos introduz na justificação ontológica deste direito. Ainda que tudo fosse
aniquilado pela dúvida, o ego cogito, ego sum permaneceria de pé em si mesmo, ou
seja, o pensar, a mente, a egoidade como tal traz consigo o privilégio ontológico de
permanecer firme na evidência, na verdade, na certeza de si mesma, mesmo quando
tudo é tomado pelo vórtice da dúvida. O ego, isto é, a egoidade, é indubitável, estável
em sua verdade, certo de uma certeza firme: aquilo que é certo e inabalável (quod
certum est et inconcussum) 218. Assim, o ego, ou melhor, a egoidade, ou, melhor ainda,
a mente, é apresentada agora como a substantia, o subiectum, o fundamentum por
excelência. Não se trata, aqui, pois, do eu individual, fático, mas do eu enquanto tal, da
essência do eu, da egoidade, ou, como diz Descartes, do ego enquanto dado ao cogito,
ao pensamento219, ou seja, do ego enquanto res cogitans, enquanto mens (mente)220. A
indubitabilidade do ego pertence à essência da mente como tal (cfr. Rombach, 1981, p.
448). A mente é uma presença cuja autodatidade é auto-evidente, por se dar numa
intuição imediata. Além disso, ela é uma atenção, um ser presente junto ao real, que
pode trazer em si o caráter de um “perceber claro e distinto” do que quer que ela
perceba ou intua221, e que tem a capacidade de conter em si, intencionalmente, ou seja,

218
“Quare jam denuo meditabor quidnam me olim esse crediderim, priusquam in has cogitationes
incidissem; ex quo deinde subducam quidquid allatis rationibus vel minimum potuit infirmari, ut ita
tandem praecise remaneat illud tantum quod certum est & inconcussum” – “Por isso eu agora vou meditar
de novo sobre o que eu antes acreditava ser, antes de cair nestas cogitações; disso eu, então, irei subtrair
o que quer que possa ser infirmado ainda que minimamente pelas razões aduzidas, a fim de que
permaneça precisamente somente aquilo que é certo e inabalável” (Descartes, 1641/1998, p. 162).
219
“Cogitare? Hic invenio, cogitatio est, haec sola a me divelli nequit: ego sum, ego existo, certum est.
Quandium autem? Nempe quandiu cogito” – “E o pensar? Eis que encontrei: o pensar é a única coisa que
não me pode ser tirada. Eu sou, eu existo; isto é certo. Mas, por quanto tempo? Certamente, enquanto
eu penso” (Descartes, 1641/1998, p. 166).
220
“Nihil nunc admitto nisi quod necessario sit verum; sum igitur praecise tantùm res cogitans, id est,
mens, sive animus, sive intellectus, sive ratio, voces mihi priùs significatione ignotae. Sum autem res vera,
& vere existens; sed qualis res? Dixi, cogitans” – “Nada agora admito a não ser o que de modo necessário
é verdadeiro; eu sou, portanto, precisamente, somente uma coisa pensante, isto é, mente ou ânimo ou
intelecto ou razão, vocábulos cuja significação me era antes ignota. Eu sou, pois, uma coisa verdadeira, e
verdadeiramente existente; mas, que tipo de coisa? Eu já o disse, uma coisa pensante” (Descartes,
1641/1998, p. 166 – tradução nossa). Mais à frente Descartes diz: “Sed quid igitur sum? Res cogitans. Quid
est hoc? Nempe dubitans, intelligens, affirmans, negans, volens, nolens, imaginans, quoque, & sentiens”
– “Mas, portanto, o que eu sou? Uma coisa pensante. O que é isto? Certamente, uma coisa que duvida,
que entende, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina também, e que sente”
(Descartes, 1641/1998, p. 168).
221
“Atque, quod notandum est, ejus perceptio non visio, non tactio, non imaginatio est, nec unquam fuit,
quamvis prius ita videretur, sed solius mentis inspectio, quae imperfecta esse potest & confusa, ut prius
erat, vel clara & distincta, ut nunc est, prout minus vel magis ad illa ex quibus constat attendo” – “Mas de
qualquer modo, há que se notar que a sua percepção [desta cera] não é nem um ver, nem um tocar, nem
um imaginar, nem foi jamais algo disso, embora antes parecesse assim, mas um inspecionar da mente
ideal ou espiritualmente, todas as coisas que ela representa. Esta auto-evidência e esta
capacidade de ser a instância da recepção da evidenciação da forma (ideia, essência) do
que quer que seja caracteriza a mente enquanto “razão pura”.

I.4.3. O MATEMÁTICO COMO RAZÃO PURA E COMO TRANSCENDENTAL. A


REVOLUÇÃO COPERNICANA DO PENSAMENTO MODERNO.

Em Kant, o matemático chama-se, justamente, “razão pura”. O saber que daí


emana se chama, em Kant, “transcendental”.

No ano de 1769 Kant, segundo seu próprio testemunho, teria feito a experiência
do pensamento como de uma iluminação, ou seja, como o surgir de “uma grande luz”.
No ano seguinte ele escreveu a sua dissertação para tornar-se professor ordinário da
universidade de sua cidade natal, Königsberg, a qual se intitulava “De mundis sensibilis
atque intelligibilis forma et principiis”222; um escrito que funciona como um divisor de
águas entre o período pre-crítico e o período crítico do seu pensamento. Neste escrito,
que queria ser uma propedêutica à metafísica entendida como conhecimento dos
princípios do intelecto puro, ele apresenta a distinção entre conhecimento sensível e
conhecimento inteligível. O conhecimento sensível nos faz representar as coisas uti
apparent e não sicuti sunt, ou seja, as coisas como estas se nos aparecem e se nos dão
afetando-nos (“fenômenos”). O conhecimento inteligível, por sua vez, nos faz
representar os conceitos puros do intelecto, os quais não podem ser colhidos pela
percepção sensível e se referem às coisas sicuti sunt, ou seja, como são em si mesmas
(“noumeno”). Até então Kant tinha feito diversas tentativas de conciliar ciência (trata-
se basicamente da física de Newton à qual ele dedicaria sempre uma grande admiração
e um grande empenho de elucidação) e metafísica ( da qual ele dizia ter o destino de ser
enamorado e que ele reconheceria sempre como uma insuperável exigência do espírito
humano). Uma vez acordado, graças às sacudidelas de Hume, do seu sono dogmático,
ele dedicaria o período de mais de um decênio a uma cerrada meditação até trazer à

somente, que pode ser imperfeito e confuso, como era antes, ou claro e distinto, como é agora, à medida
que eu preste atenção mais ou menos àquilo de que é constituída” (Descartes, 1641/1998, p. 174).
222
Cfr. I. Kant, Forma e principi del mondo sensibile e del mondo intelligibile.
luz, no ano de l781 a sua Crítica da Razão Pura, cujo destino seria o de operar uma
verdadeira “revolução copernicana” no âmbito da história do pensamento ocidental223.

Kant fez a descoberta de que o conhecimento propriamente científico está


baseado sobre juízos que não são nem analíticos (quando o predicado está já contido
no sujeito), nem sintéticos a posteriori( quando o predicado acrescenta algo que não
estava já contido no sujeito e quando os mesmos, simultaneamente, provêm da
experiência), mas sim juízos sintéticos a priori ( que expressam conteúdos que são o
resultado de uma síntese ou reunião e que, no entanto, têm o caráter de universalidade
e necessidade, não podendo ser provenientes da experiência, já que os dados da
experiência são sempre particulares e contingentes). Todos as proposições
fundamentais da matemática, da geometria e da física são sintéticos a priori (axiomas,
teoremas, leis). Também o são as proposições metafísicas. Perguntando pela condição
da possibilidade dos juízos sintéticos a priori, Kant foi conduzido à descoberta da função
fundamental que, no conhecimento, exerce o sujeito, isto é, a razão (tomada aqui em
sentido lato, isto é, como faculdade gnoseológica em geral e não como a faculdade que
se refere às idéias tal como as entendia Kant).

O fundamento dos juízos sintéticos a priori é o sujeito que sente e que pensa, ou
melhor, não este ou aquele sujeito empírico, mas a subjetividade estrutural humana
com as suas leis que regulam seja a sensibilidade seja o intelecto. Às estruturas da
sensibilidade e do intelecto Kant atribui o adjetivo de transcendentais. O sujeito do
conhecimento é transcendental, isto é, não pode ser conhecido como um dado da
experiência, isto é, como um objeto. Ao contrário, o sujeito é a condição da possibilidade
para que se dê algo como “experiência” e para que os dados da experiência sejam
recolhidos e ordenados desta ou daquela maneira. Transcendental é o sujeito e tudo
aquilo que estruturalmente pertence a ele. Transcendental é a condição da possibilidade
da cognoscibilidade dos objetos (da sua intuibilidade e pensabilidade).

No prefácio para a Segunda Edição da Crítica da Razão Pura de


1789, Kant define transcendental com as seguintes palavras: “Chamo
transcendental todo conhecimento que não se ocupa tanto com
objetos (Gegenstand) mas com nosso modo de conhecer objetos
(Gegenstand), quaisquer que sejam (überhaupt), enquanto nos é dado

223
Cfr. I. Kant, Kritik der reinen Vernunft.
a priori”. (Ich nenne transzendental jede Erkenntnis die nicht so sehr
mit den Gegenstäden, sondern mit unserer Erkenntnisart der
Gegenstände überhaupt beschäftligt). Esta definição de
transcendental se transformou em método e orientou o modo do
conhecimento filosófico até Schelling. É o método chamado de
transcendental. Com ele Kant inaugura o pensamento crítico que na
idade moderna moldou o pensamento do chamado Idealismo Alemão.
A prática do pensamento crítico se estendeu através de Reinhold,
Fichte e Schelling principalmente até depois de Hegel tanto na Direita
quanto na Esquerda Hegeliana. As características desta revolução,
chamada por Kant de “revolução copernicana”, são as funções a priori
do sujeito que antecedem à experiência e estruturam todo
conhecimento válido, i. é, real ou, em termos kantianos, produzem
juízos extensivos (Erweitenrungseurteile) e não somente explicativos
(Erläuterungsurteile) do conhecimento objetivo. Até Kant o
conhecimento metafísico só conhecia ou o método indutivo e
empírico, um procedimento que sobe da intuição sensível, onde nos
são concedidos os dados (Gegenstände) para o conhecimenbto
intelectivo onde os dados são pensados e entendidos, ou o método
dedutivo que desce do pensamento para a experiência. Kant foi o
primeiro pensador da metafísica que se ocupou com as condições de
possibilidade do conhecimento objetivo. O desafio era: como o sujeito
deve ser estruturado e constituído para poder conhecer objetos com
os dados? É a organização do sujeito que assegura a produção de
conhecimentos válidos, seja referentes aos objetos seja referente ao
sujeito. A estruturação que aparelha a consciência para vir a ser sujeito
de conhecimento e constitui o objeto para ser objeto conhecido, é
horizontal, quer dizer dá-se num plano linear de funções e atividades
do real na plataforma de produção do ser humano. É o homem
reduzido a sujeito de representação e ação (Emanuel Carneiro Leão).

Transcendental é aquilo que o sujeito previamente lança e põe no projeto do


conhecimento dos objetos, no ato mesmo de conhecê-los. Quando se trata da sensação,
isto é, do conhecimento sensível, transcendentais são as formas prévias segundo as
quais são ordenados todos os dados da experiência, ou seja, as formas puras da intuição:
o espaço e o tempo. Quando se trata do pensamento, ou seja, do conhecimento
inteligível, transcendentais são as categorias, conceitos puros do intelecto, verdadeiras
leges mentes, que regulam o uso da faculdade intelectiva.

Fundamento do objeto é, portanto, o sujeito. O objeto só pode se contrapor ao


sujeito porque, no fundo, o supõe. O objeto não é outra coisa senão representação do
sujeito. Mas o sujeito permanece sempre idêntico a si mesmo em toda a mudança e
variação das representações. O “eu penso” (Ich denke) acompanha, imutável, ou seja,
sempre idêntico a si mesmo, todas as representações. O “eu penso” é o ponto focal
onde reúne-se a multiplicidade de tudo aquilo que é percebido e concebido. Tal ponto
focal que se constitui na instância estrutural do sujeito, a qual apresenta as
características de ser unitária e originária, transcendental e sempre idêntica a si mesma
é chamada de consciência. O “eu penso” é ele mesmo representação, mas
representação originária, pois não pode ser objeto de uma intuição, no sentido de uma
percepção empírica. O “eu penso” é, pois, uma representação que não provém de uma
receptividade ou passividade, mas sim de uma espontaneidade. O “eu penso” é dado de
modo imediato como apercepção originária ou pura. Tal apercepção é o que caracteriza
a consciência como autoconsciência. A unidade subjetiva da multiplicidade objetiva que
se dá na autoconsciência é chamada por Kant de unidade transcendental da
autoconsciência. O nosso pensamento é, no fundo, uma atividade unificadora,
sintetizadora. A forma do intelecto é a apercepção originária. À capacidade de produzir
e de configurar, sintetizando, representações que são intermediárias entre o sensível e
o inteligível Kant chamou de imaginação transcendental. Esta produz “esquemas”
transcendentais que possibilitam aplicar as categorias aos objetos. O professor Emanuel
Carneiro Leão discorre sobre o papel da imaginação transcendental na pesquisa
científica, isto é, no tratamento dos problemas da ciência:

Todo problema requer que não se fique preso, mas se


desprenda do já conhecido nas explicações e operações das teorias
vigentes e se proceda para debater-se com as experiências
inauguradas por novos caminhos. É assim que o aparecimento de um
problema no já conhecido é o primeiro passo na caminhada do
progresso e desenvolvimento. Donde surge, porém, a
problematicidade de um problema? Qualquer que seja o
encaminhamento de uma resposta, trata-se sempre de uma alavanca
que empurra a ciência para desbravar-se e desbravar novos caminhos.
Pois provar e verificar as consequências de uma teoria não é o único
desafio do progresso. Toda ciência vive também e sobretudo da
inventividade do cientista, e não apenas de deduções de antigas
teorias. O cientista é a não ciência na vida da ciência, empurrando o
progresso e crescimento. O desapego e desprendimento das teorias
constituem o móvel do progresso científico. O mais importante dom
de um pesquisador não é nem a calculação nem a verificação de
qualquer tipo nem a teoretização. É a fantasia que na Primeira Crítica
da Razão Pura, Kant chamou de “Transzendentale Einbildungskraft”,
Imaginação Transcendental. Pois antes das teorias e dos testes de
experimentação, trata-se sempre de se encontrar perguntas novas
que sejam frutíferas e agenciadoras de inversões. É o momento e fator
de criatividade que se vem associar ao desempenho e invenções da
prática científica. Claro que a vida da ciência está em solucionar
problemas. Todavia é mais importante e decisivo formular questões
novas e inventar perguntas. Trata-se do reconhecimento tácito de que
a vida da ciência pressupõe e convive com a criatividade humana além
do exercício do conhecimento. Sem homem não há ciência, sem
homem não existe cientista. Para vir a ser cientista, todo cientista
precisa ser mais do que cientista, precisa ser humano.

Subjetividade e objetividade se pertencem como momentos correlativos de uma


mesma funcionalidade, que é o processo da representação. O representar, porém, se
funda no refletir, na reflexão. Refletir é, fundamentalmente, estar a caminho de si
mesmo. Só que este caminho tem um sentido de um regresso. Reflexão é um retorno
sobre si mesmo, um virar, um voltar para si mesmo, um dobrar-se sobre si mesmo (Cfr.
N II, p. 397). Só há objeto lá onde houver sujeito, ou melhor, um “ego cogito”, um “eu
penso”, uma “apercepção transcendental”, ou seja, uma “consciência de si”. Reflexão
é, pois, um redobrar-se sobre si. Na intuição, a consciência põe, no sentido de fazer
presente, algo como algo, e isso ela o faz em referência a si mesma, para si mesma. O
tornar presente, pondo diante de si algo como algo, se dá à medida que a consciência
retorna para si, remete-se de volta para si mesma, fornecendo-se, ante de tudo, a si
mesma para si mesma. Somente a partir da reflexão é que pode haver a formação do
conceito, em que algo é posto como algo e posto como “idêntico”, ou seja, como uma
“mesmidade” fixa e constante (Cfr. N II, p. 422 – 425).

I.4.4. SUBJETIDADE E SUBJETIVIDADE

A subjetividade é o fundamento “histórico-ontológico” da modernidade.


“Subjetividade” é, aqui, um título ontológico: diz o ser do ser-sujeito, tal como este é
compreendido na modernidade, a saber, no horizonte da egoidade (ser-eu), ou, mais
exatamente, no horizonte da ipseidade (ser-si-mesmo). “Subjetividade” nomeia o
ontológico da modernidade. “Com o termo “ontológico” queremos indicar determinado
sentido do ser, que age, no fundo do ente no seu todo, constituindo os gonzos principais
das ramificações na estruturação do mundo. Esses gonzos principais se expressam nos
chamados conceitos ou categorias de fundo de determinado mundo constituído”
(Harada, 2009, p. 132). Os gonzos de uma estruturação do mundo constituem aquilo
que Heidegger chama de “posição metafísica de fundo”. No curso de 1940, intitulado
“Der europäische Nihilismus” (O niilismo europeu)224, Heidegger expõe em que consiste
isso. Segundo ele, “uma posição metafísica de fundo” (eine metaphysische
Grundstellung), se articula de modo quádruplo, e se determina:

1. pelo modo como o homem é homem e, isto quer dizer, pelo


modo como o homem é si mesmo (selbst) e, nisso, se sabe a si mesmo;
2. pelo projeto do ente sobre o ser; 3. pela delimitação da essência da
verdade do ente; 4. Pela maneira segundo a qual, a cada vez, o homem
toma a “medida” e dá a medida para a verdade do ente (N II, p. 120)225.

A estruturação do mundo moderno a partir da subjetividade é uma destinação


da verdade do ente na era da metafísica, este dia histórico de aproximadamente dois
milênios e meio, cujo alvor se anunciou no surgimento da filosofia (leia-se “metafísica”)
em Platão e Aristóteles. A subjetividade enquanto o ontológico da modernidade é, na
verdade, apenas uma concreção histórico-ontológica da era metafísica, ou seja, uma
concreção da destinação do projeto do ente sobre o ser, que comporta uma
determinação toda própria da essência da verdade do ente no seu todo. Com outras
palavras, a subjetividade é apenas uma concreção histórica do modo como se dá, para
o homem ocidental, a parusia do ente como tal e no seu todo: o dar-se sub-reptício do
ser, advindo e, ao mesmo tempo, se retraindo em tudo quanto está sendo e à medida
que está sendo, respectivamente, em todo o modo de ser, incluindo aí, bem no meio do
ente em seu todo, o homem e o seu mundo histórico, o modo como homem é homem,
isto é, o modo como ele é si mesmo e se sabe a si mesmo neste modo de ser, bem como
o modo como o homem recebe e dá a medida com a qual ele dimensiona a verdade do
ente, quer dizer, a manifestação da “realidade” enquanto tal e no seu todo. Nessa era,
o ser do ente como tal e no todo (a “realidade”) é compreendido no horizonte da
subjetidade. Na meditação histórico-ontológica de Heidegger, que transcende o
horizonte dos fatos e de seus condicionamentos, bem como o horizonte da época e da
consciência epocal, reconduzindo o aparecimento histórico-ôntico à sua raiz histórico-
ontológica (cfr. Volpi, 1989, p. 69), a subjetividade é a culminância da era da metafísica,

224
Este curso, ministrado no segundo trimestre de 1940, foi publicado primeiramente em 1961, no
segundo volume do livro de Heidegger intitulado “Nietzsche” e, posteriormente, foi publicado no volume
48 das suas obras completas. Seguiremos, aqui, o texto do livro “Nietzsche II”.
225
Os textos de Heidegger serão indicados por siglas. Cfr. as referências bibliográficas. Quando os textos
citados não forem de língua portuguesa a tradução será do autor deste artigo.
ou seja, daquele pensar que, por aproximadamente dois milênios e meio, experimenta
e compreende o ser a partir do referimento da subjetidade.

Qual a diferença entre subjetividade (Subjektivität) e subjetidade (Subiectität)?


Como Heidegger distingue entre uma e outra? Em “Die Metaphysik als Geschichte des
Seins” (A metafísica como história do ser)226, texto de 1941, em que Heidegger se
concentra em sua confrontação histórico-ontológica com a metafísica, esta diferença é
nomeada e elucidada. Vejamos:

O nome subjetidade deve enfatizar que o ser é determinado,


sim, partindo do subiectum, mas não necessariamente por meio de um
eu. Ademais, ao mesmo tempo o título contém uma remissão ao
hypokeímenon e, portanto, ao início da metafísica, mas também o
prenúncio do proceder da metafísica moderna, a qual, com efeito,
reivindica a “egoidade” (Ichheit) e, sobretudo, a ipseidade (Selbstheit)
do espírito como traço essencial da verdadeira realidade (N II, p. 411).

Desde o início de sua história, com Platão, a metafísica esboçou uma


compreensão do ser a partir do ente e, de modo especial, a partir de um “sujeito”
(hypokeímenon, em grego; subiectum, em latim). Somente na modernidade é que o
sujeito, ou seja, o fundo ou fundamento da entidade (ser) do ente, do seu irromper e
aparecer, consistir e subsistir, foi identificado com a egoidade ou com a ipseidade do
espírito (Geist – o termo latino seria “mens”, mente). O ser-sujeito no sentido da
subjetividade (determinado a partir da egoidade e ipseidade do espírito) é apenas uma
concreção histórica do ser-sujeito em sentido mais fundamental-ontológico. Na
antiguidade e na idade média o ser-sujeito foi determinado mais ampla e
fundamentalmente a partir da noção de “substância” (ousia, em grego; substantia, em
latim). A metafísica compreendeu a substância, ou melhor, a substancialidade (o ser ou
entidade do ente) numa tríplice referência ou ponto de vista: primeiramente, a partir da
“natureza” (physis, em grego; natura, em latim) ou do mundo (kosmos, em grego,
mundus, em latim); depois, a partir de “Deus” (theós, em grego; deus, em latim); ou,
ainda, a partir da alma (psykhé, em grego; anima, em latim). Desde o começo da
modernidade a alma (anima) tem sido experimentada, compreendida e interpretada
como “animus” ou “mens” (mente, espírito; em alemão: Geist), ou, mais precisamente,

226
Este texto foi publicado no segundo volume do livro sobre Nietzsche. Faremos a citação deste texto
nesta edição de 1961.
como “ratio” (razão; em alemão: Vernunf). A alma enquanto mente ou razão, ainda por
cima determinada a partir da egoidade e da ipseidade, tornou-se a realidade verdadeira,
à medida que também a verdade foi entendida como certeza: o ente mais certo,
indubitável, é a mente, com sua autoconsciência, isto é, o “eu penso – eu sou”:

Se por subjetividade se entende isto, a saber, que a essência


da realidade em verdade – isto é, para a autocerteza da
autoconsciência – é mens sive animus227, ratio228, Vernunft229,,
“Geist”230, então a “subjetividade” aparece como um modo da
subjetidade. Esta última não caracteriza necessariamente o ser a partir
da actualitas da apetição que representa, já que subjetidade significa
também: o ente é subiectum no sentido do ens actu231, seja este o
actus purus232 ou o mundus233 enquanto ens creatum234. Subjetidade
quer dizer, enfim: o ente é subiectum235 no sentido do
hypokeímenon236 que, enquanto prote ousía237, tem a sua distinção no
ser presente do que é a cada vez (N II, p. 411).

O traço fundamental da subjetidade enquanto subjetividade consiste em o


sujeito querer-se a si mesmo, e, assim, em erguer-se autonomamente no sentido de pôr-
se de pé a si mesmo e de produzir-se, ou seja, de pôr-se a si mesmo diante de si mesmo.
Na modernidade, a subjetividade (a subjetidade como egoidade e ipseidade) aparece
como autoposição e autoprodução. Isto quer dizer: a egoidade se quer a si mesma, se
busca a si mesma, se produz e se fornece a si mesma. O “eu penso” se transforma em
“eu ajo” e o “eu ajo” e em “eu quero”:

A subjetidade não é um artefato do homem, mas o homem se


assegura como aquele ente que é conforme ao ente enquanto tal,
porque ele se quer como sujeito-eu e como sujeito-nós, se põe diante
de si mesmo, por si mesmo, se remete a si mesmo (N II, p. 346).

No horizonte da experiência e da compreensão moderna do ser, a mente é a


realidade verdadeira e primordial, mas, na mente, se sobressai tanto o pensar

227
Mente ou ânimo/espírito (em latim) (tradução nossa).
228
Razão (em latim) (tradução nossa).
229
Razão (em alemão) (tradução nossa).
230
Espírito (em alemão) (tradução nossa).
231
Ente em ato (em latim) (tradução nossa).
232
Ato puro, realidade pura (em latim) (tradução nossa).
233
Mundo (em latim) (tradução nossa).
234
Ente criado, criatura (em latim) (tradução nossa).
235
Sujeito (em latim: o que está lançado por debaixo) (tradução nossa).
236
Sujeito (em grego: o que subjaz) (tradução nossa).
237
Substância primeira (em grego: aquilo que é vigente e presente em sentido primordial, o indivíduo, o
singular) (tradução nossa).
(repraesentatio) quanto o querer ou apetecer (appetitio), sendo que, por fim, o querer
se afirma como cada vez mais decisivo, à medida que a realidade se torna
funcionalidade. É a partir do horizonte da funcionalidade como operacionalidade,
eficiência e eficácia, que se impõe também a correspondência entre as funções da
subjetividade e as funções da objetividade.
FENOMENOLOGIA COMO PENSAMENTO MEDITATIVO
O pensar não é aqui tomado em sentido psicológico ou lógico, isto é, como um
representar e, por conseguinte, conceituar, definir, propor enunciados, estabelecer
teses, raciocinar, inferir, tirar conclusões, argumentar, construir teorias, para elaborar
uma ciência, etc. Entendemos o pensar, aqui, não como atividade que produz
conhecimento, ciência. Também não entendemos o pensar no sentido técnico, de
cálculo, combinação de informações. Pensar é, aqui, tomado no sentido filosófico, como
meditar. O que está em jogo, portanto, neste nosso exercício de aprendizagem
filosófica, é a meditação a respeito da linguagem.

Entretanto, o que é meditar?

Meditar é uma prática, um exercício, um trabalho do pensamento, do intelecto,


da mente. É algo assim como o exercício de um atleta ou o trabalho de um artesão.
Requer, antes de tudo, ânimo, e uma dedicação atenciosa, cuidadosa, devotada para
com a obra a ser realizada, consumada, e para com as exigências de sua gênese. A
meditação é um exercício de reflexão da mente. O que é reflexão? É uma flexão, isto é,
um dobrar-se. Mas é um dobrar-se que se recolhe, que se concentra, na coisa em
questão. Pensemos, por exemplo, no artesão que se dobra sobre a matéria, para dar
forma a um artefato. Tenhamos em mente um oleiro se dobrando sobre o barro para
fazer um jarro. Ele se concentra todo na obra para que ela possa vir à luz, na sua
perfeição. Junto ao torno, ele vai seguindo um ductus (uma condução) do barro e, ao
mesmo tempo, suas mãos, dançando, vão perfilando o barro. É a dinâmica de um
trabalho manual, que não acontece sem vontade, mas também não acontece de modo
arbitrário, voluntarioso. Requer um pensamento unificado em que forma e matéria
constituam uma unidade individuada, singular. Para podermos vislumbrar um pouco
algo deste trabalho artesanal da meditação, vamos considerar uma história contada por
Chuang-Tzu (na versão de Thomas Merton):

Khing, o mestre entalhador, fez uma armação para


sinos, de madeira preciosa. Quando terminou, todos que
aquilo viram ficaram surpresos. Disseram que devia ser obra
dos espíritos. O Príncipe de Lu disse ao mestre entalhador:
“Qual é o seu segredo?”.

Khing respondeu: “Sou apenas operário: Não tenho


segredos. Há só isso: Quando comecei a pensar no trabalho
que me ordenaste protegi meu espírito, não o desperdicei
em ninharias, que não vinham ao caso. Jejuei, a fim de pôr
meu coração em repouso. Depois de jejuar três dias, esqueci-
me do lucro e do sucesso. Depois de cinco dias esqueci-me
do louvor e das críticas. Depois de sete dias esqueci-me do
meu corpo com todos os seus membros. Nesta época, todo
pensamento de Vossa Alteza e da corte se evanescera. Tudo
aquilo que me distraía do trabalho desaparecera. Eu me
recolhera ao único pensamento da armação do sino. Depois,
fui à floresta ver as árvores em sua própria condição natural.
Quando a árvore certa apareceu a meus olhos, a armação do
sino também apareceu, nitidamente, sem qualquer dúvida.
Tudo o que tinha a fazer era esticar a mão e começar. Se eu
não houvesse encontrado essa determinada árvore não
haveria qualquer armação para o sino. O que aconteceu?
Meu próprio pensamento unificado encontrou o potencial
escondido na madeira; deste encontro ao vivo surgiu a obra
que você atribuiu aos espíritos. (XIX, 10)238.

O importante, aqui, é que o artesão se abstém de tudo o que não é o interesse


pelo surgimento da obra ela mesma, pela plenitude de sua gênese, pela sua con-
sumação, ou per-feição. Esta abstinência ele chama de jejum. Nesta abstinência ele se
tem, ele se conquista, para deixar-ser a gênese da obra. Em sua renúncia ele se
desprende de tudo quanto não é a pura disposição de deixar-ser a gênese da obra. A
renúncia não apenas tira, ela dá. Ela tira a agitação e a dispersão em ninharias: lucro e
sucesso, louvor e crítica.... Ela dá o repouso e a concentração no único necessário, no
essencial: a gênese da obra.

238
Thomas Merton. A via de Chuang-Tzu. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 166-168.
Tomemos este aceno como indicação da dinâmica de uma meditação
fenomenológica, isto é, do “pensamento unificado”, que deixa vir à luz (phaínesthai) a
unidade singular da obra, como o fenômeno que acolhe e recolhe vazio e plenitude,
mente e mão, possibilidade (potência) e realização, forma e matéria, céu e terra...

A abstinência, a suspensão (epoché), que se realiza como a pura e simples


recepção, na espera do inesperado, é o pensamento. Esta receptividade livre e grata
caracteriza o que os medievais chamavam de “intellectus” (Intelecto) e que os gregos
chamavam de “nous”. Ela é uma atenção cordial e cheia de boa-vontade, que, ao mesmo
tempo, guarda fielmente a memória do único necessário, se esquecendo de tudo o mais,
e, na busca investigadora, aguarda pacientemente o inesperado. Requer que a mente
se mantenha, enquanto busca, no vazio do não-saber; vazio, que é abertura da
receptividade. Receptividade para que? Resposta: para a coisa mesma na plenitude de
sua evidência. Pensar é receber e captar a coisa mesma vindo à luz na sua evidência.

O exercício do pensar meditante acontece, aqui, como redução e ideação. Como


é isso? Redução: um prescindir de tudo o mais que não seja a coisa ela mesma, isto é,
que não seja o interesse da coisa em questão; e, ao mesmo tempo, um concentrar-se
na disposição de ser um puro e simples receber, um puro e simples captar do que
simplesmente se doa, de modo imediato, na sua evidência. O ser do homem, aquilo que
os medievais chamavam de “anima” (alma) ou “animus” (ânimo, espírito) ou “mens”
(mente), os gregos de “nous”, e que Heidegger chama de Da-sein (ser o aí para a
proximidade do ser) é o vigor cordial desta abertura para a evidência, para o simples
ver, para o simples captar do vir à luz, do fenômeno, entendido como manifestação e
brilho do ser. Ser-homem é existir, isto é, insistir nesta abertura. Meditar é ser homem,
isto é, é ser o vazio para a receptividade da doação do ser em sua verdade
(manifestação, desocultação), em seu caráter repentino, inesperado. Esta recepção é
decisão. É conquista da liberdade do espírito. Liberdade de tudo o que não deixa-ser
esta receptividade. Liberdade para receber a doação de ser e para perseverar nela e
suportá-la cordialmente, gratamente. O ser que se doa é a coisa mesma. No entanto,
“coisa” quer dizer, aqui, não um objeto, mas algo que nos concerne no mundo, no
sentido de “o que está em questão”, o que interessa. Pois ser não é nenhuma coisa. Ser
não é nenhum ente. Ser é, antes, um nada. Mas um nada que deixa-ser tudo no seu
próprio, cada coisa, que, em sua simplicidade, é o recolhimento de céu e terra, ponto
de concentração e de expansão do mundo. Ser é o nada (nenhuma coisa) que deixa ser
tudo, cada coisa, o mundo (o ente no todo). Este nada é fundo-abismo da possibilidade-
de-ser. Vazio que deixa ser, possibilita, a plenitude das possibilidades-de-ser.

O toque e o lance da iluminação, que vislumbra, a possibilidade de ser de uma


gênese, de uma coisa-obra, e, por conseguinte, de uma constituição de mundo, chama-
se ideação ou intuição eidética. “Intuição”, aqui, significa a visão que dá a evidência da
coisa mesma. “Eidética” remete a “eidos”. “Eidos” não é, aqui, ideia, no sentido de
representação de um objeto. “Eidos” é o nome grego para o aparecimento da
possibilidade-de-ser. O “eidos” não é nenhuma coisa. Não é uma coisa por trás da coisa
ou uma coisa acima da coisa, num “mundo das ideias” etc. É o nada que vige como
doação de ser, possibilitação da possibilidade de ser, de cada coisa, no seu próprio e no
todo. O vislumbre eidético capta a possibilidade da gênese no seu todo, que integra
matéria-e-forma (essencialização da coisa), potência-e-ato (existencialização da coisa).
O artesão, no seu obrar deve poder seguir o ductus (condução) da gênese da coisa, deve
poder ser obediente (aberto e receptivo no seguimento) para com a interpelação da
gênese da obra, para o que ela requer, no tocante ao seu material (matéria) e à sua
perfilação (forma, aspecto). Ele deve poder seguir a interpelação da obra no seu surgir,
crescer e consumar (dýnamis/enérgeia/entelécheia ou potentia/actus), até que apareça
uma obra singular, que brilha e repousa em si mesma. Este poder que responde e
corresponde à interpelação da obra chama-se arte. A arte é, pois, uma forma de
meditação, uma “héxis meta lógou” (atitude com reflexão), uma forma de pensamento
meditativo-criativo, poético. E, vice-versa, a meditação é uma arte: o poder-ser da
receptividade para a verdade-do-ser, para sua manifestação, desocultação, como fonte
para as possibilidades-de-ser, para a gênese do mundo. A meditação filosófica é a
poética do pensamento que é, ao mesmo tempo, reflexivo e criativo.

Filosofia é pensamento reflexivo. Pensamento que se dobra todo na obediência


(escuta) da verdade do ser. Espera do inesperado. Acolhida de sua interpelação. Filosofia
procura re-pensar o que dá a pensar, o que é digno de ser pensado: o mistério de ser, o
nada que deixa ser cada coisa no seu próprio, no todo, fundo-abismo de possibilidades-
de-ser, fonte de toda a criação. Por isso, a filosofia não lida com fatos. É que todo fato é
um feito. Já está pronto. Filosofia cuida da gênese das possibilidades-de-ser. Por isso,
para a meditação filosófica, tudo está em suspensão, em aberto, no caos (abertura
primigênia), para que, de repente, algo se ilumine, se deixe vislumbrar, no vigor e no
brilho de sua possibilidade de ser, e, assim, deixe-ser mundo, no frescor e no brilho
singular da natividade, em que a coisa se mostra como sendo pela primeira vez, sim,
como sendo pela primeira e última vez, em sua singularidade. Por isso, filosofia é
pensamento criativo: pois deixa surgir e adensar a manifestação da verdade de ser, na
manifestação do ente, da coisa em sua singularidade e universalidade. Singularidade,
porém, aqui, não é particularidade. Singularidade é o um recolhendo e expandindo tudo.
O todo não é, aqui, generalidade. O todo é universalidade. É o “hen: panta” (um: tudo)
de Heráclito. Cada coisa reúne mundo. O todo se dá todo em cada coisa. Singularidade
e universalidade não se opõe e se excluem, antes, se compõem e se incluem, numa
unidade perfeita.

O pensamento meditativo (reflexivo-criativo) da filosofia acontece, a cada vez,


como experiência da gênese de um sentido de ser. Mas, o que é, como é, isso – gênese
de um sentido de ser? Chamamos de “ser” o abismo-nada (não ente) que, como vazio,
deixa ser (viger) a plenitude das possibilidades de ser dos entes, como mundo. O ser vige
como fundo-abismo (insondável), como nada criativo (inesgotável) das possibilidades de
ser dos entes (mundo). Deixa eclodir, a cada vez, mundo. O mundo está sempre
nascendo, crescendo e se consumando, numa constante novidade239. Co-nascer com a
gênese do mundo é sentido fenomenológico do conhecimento (gignosko / cognoscere

239
Conferir o poema de Alberto Caeiro (Fernando Pessoa):

O meu olhar é nítido como um girassol.


Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...
/ conaitre). Conhecer, aqui, pois, é co-nascer, não é re-presentar. É receber a
presentação, isto é, a autodoação (Selbstgegebenheit) do ser vigendo no surgir do ente
no todo, do mundo. Pensar é receber os vislumbres genéticos de um mundo em
surgimento – mundo que se dá como horizonte de todos os horizontes de aparição do
ente. Ao olhar do pensamento está sempre se dando o espetáculo da revelação do
mistério do ser (doação e retraimento) e, com isso, a contínua constelação de mundos,
cada qual com sua idêntica e diferença, mundos do mundo (ente no todo). Isso implica
a tarefa de também investigar como se dá a gênese deste ou daquele mundo, como se
constituem as coisas que pertence a este mundo (ex.: natureza, história, etc.). Por
exemplo: uma cruz – pode ser vista, a modo (no horizonte de compreensão) de objeto
físico como dois pedaços de madeira que se entrecruzam, com suas características
(extensão, peso, etc); mas pode ser vista como um símbolo cósmico; pode ser vista,
ainda, como um símbolo cristão, histórico, etc. Cada um destes “modos de ver” abre
todo um mundo. O mundo da física é diverso do mundo da natureza experimentada pré-
cientificamente, que é diverso do mundo experimentado na fé cristã, etc...

A meditação (Besinnung) fenomenológica busca seguir o sentido (Sinn) do


fenômeno como gênese de constituição de mundo. O sentido é o lógos (a linguagem –
o recolhimento) do fenômeno. É a fenomenologia do fenômeno acontecendo. O sentido
se nos dá e um e como sentir, como um pathos240. Acontece como um toque prévio que
se nos doa, um atingimento que se nos sobrevém e advém. Acontece, antes de tudo,
como um pathos, como uma passividade receptiva, como a receptividade de uma
experiência. É algo como o percutir e o repercutir de uma percussão. O toque é a
abertura da possibilidade do todo. Este toque acontece como um envio prévio, um
encaminhamento, que se anuncia como uma dádiva do porvir, que deixa e faz emergir
caminhos de realização, de consumação. Este toque é algo repentino, que se dá num
instante, num piscar de olhos, mas que traz consigo a semente de um porvir. Neste
piscar de olhos evidenciam-se possibilidades de ser, como um relâmpago, que ilumina a
escura e deixa entrever caminhos por se abrir. Esta evidenciação chama-se intuição. Este

240
Aqui não separamos “aisthesis” e “nous”, sensibilidade/percepção e intelecto/razão. A metafísica
separou aisthesis e nous, o aisthetikós (sensibilis) e o noetikós (intelligibilis), o físico e o meta-físico. Mas,
não haveria uma unidade anterior a esta separação, a esta cisão, para a qual o homem meta-físico, que
somos todos nós, já não tem mais um sentido? E se fosse assim que a verdade da aisthesis no homem
fosse o nous? E se o nous fosse, fundamentalmente, aisthesis? Cfr. Ética a Nicômaco VI 12, 1143 b 5.
toque nos en-via, nos em-caminha. Em que direção? Na direção que a coisa mesma toma
a partir dela mesma. Pensar, meditar, quer dizer deixar-se encaminhar na direção que
os fenômenos desvelam, é seguir o ductus (a condução) do fenômeno, das coisas
mesmas241. O acontecer do sentido como sentido é, pois, em sua plenitude, um envio,
um em-via, uma passagem, uma travessia, uma via-gem. Sentido é tomar-rumo, é viajar
a partir de um encaminhamento, de um envio. O sentido é, pois, dádiva (como toque
prévio de uma abertura) e, ao mesmo tempo, tarefa: caminho por se fazer, isto é, por
se abrir e por se per-fazer, por se consumar, por se levar a término, à consumação (se
finitizar). Para o pensamento que medita, isto é, que não representa e calcula,
simplesmente, mas que questiona, isto é, busca, investiga, e segue o sentido do
fenômeno, a sua fenomenologia, esta viagem não conduz a outro lugar do que para ali
onde nós já sempre estivemos, desde que começamos a nascer, crescer e morrer a cada
dia:

Encaminhar na direção do que é digno de ser


questionado não é uma aventura, mas um retorno ao lar.

O alemão sinnan, sinnen, pensar o sentido, diz


encaminhar na direção que uma causa já tomou por si
mesma. Entregar-se ao sentido é a essência do pensamento
que pensa o sentido. Este significa mais do que simples
consciência de alguma coisa. Ainda não pensamos o sentido
quando estamos apenas na consciência. Pensar o sentido é
muito mais. É a serenidade em face do que é digno de ser
questionado.

No pensamento do sentido, chegamos


propriamente onde, de há muito, já nos encontramos,
embora sem tê-lo experienciado e percebido. No
pensamento do sentido, encaminhamo-nos para um lugar

241
É por isso que Aristóteles, no primeiro livro da Metafísica, falando dos primeiros que filosofaram em
torno da verdade (philosophantas peri tes alétheias), diz que eles foram constrangidos a investigar além
do que tinham pensado até então, à medida que a coisa mesma abriu-lhes caminho (autó tó pragma
hodopoiesen autois) (Metafísica A 3: 983 b 2; 984 a 18-19).
onde se abre, então, o espaço que atravessa e percorre tudo
que fazemos ou deixamos de fazer242.

O pensar que medita não é razão: não é nem percepção do que é pré-dado
(nous), nem representação da consciência, nem cálculo e planificação (ratio). É
encaminhamento na investigação do sentido de ser. É o que nos afina na
correspondência com o que é mais digno de ser pensado. Questionar é a piedade do
pensamento. No caminhar do pensamento vai se abrindo o que é digno de ser
questionado. A dignidade deste está em sua grandeza. É, de fato, o mais vasto, o mais
profundo e o mais originário. É o mistério de ser. O retraimento do ser, enquanto nada,
isto é, enquanto nada de ente (nem mesmo entidade do ente). A meditação nos conduz
para a referência de ser com o ser que nos constitui (Da-sein), na qual nós já sempre
estamos, embora displicentemente. O pensar que medita é o pensar do ser. Pertence
ao mistério de ser. Tem como tarefa custodiar a sua verdade (desocultamento –
ocultamento). Tem como encargo dizer o ser. Ou melhor, carece de escutar a palavra do
ser e de a ela corresponder. Assim, em seu encaminhamento, o pensar pode deixar de
ser questão e ser “o simples dizer de uma palavra”243. O pensar está, assim, a serviço da
linguagem (a palavra do ser). É escuta e correspondência a esta palavra do ser. Acontece
que, com isso, já dissemos demais. Antes, precisamos aprender a questionar o que há
de mais digno de ser questionado e, em referência a isso, questionar o sentido da
linguagem. O que é a linguagem? A linguagem é? E se a linguagem não for nenhum ente?
A linguagem vige então como não ente? Ela vige como o ser vige? Como linguagem e ser
se referem um ao outro? Como o homem se refere à linguagem e a linguagem se refere
ao homem a partir da referência de ser e homem? Todas estas perguntas se erguem no
início de nosso curso, como convite a um percurso, isto é, a perfazer um caminho na
experiência da linguagem. É o que nos toca pensar neste exercício deste semestre.

242
Heidegger, Martin. Ciência e pensamento do sentido. Em: Ensaios e Conferências. Petrópolis/Bragança
Paulista: Vozes/Edusf, 2002, p. 58.
243
Idem, p. 60.
FENOMENOLOGIA COMO EXPERIÊNCIA DA LINGUAGEM
Normalmente, na filosofia moderna, a experiência costuma ser tomada como
uma forma de conhecimento. A experiência precede o conhecimento racional, isto é, o
pensamento discursivo (logos, ratio). Trata-se de um conhecimento pré-predicativo. É a
apreensão imediata de algo que nos é dado. Ela atesta, na sua imediatez, a presença do
experimentado (“em carne e osso”, diria Husserl). Nela se dá uma presentação do
experimentado e não uma mera presentificação de algo não acessível na sua imediatez
de sua presença. Por este modo de doação, a experiência possui uma evidência
privilegiada. A evidência da experiência é o saltar a vista de uma coisa ou estado de
coisas. É o vir à manifestação, no qual a coisa em questão se dá originariamente por si
mesma (fenômeno).

Costuma-se distinguir entre experiência externa e experiência interna. A


experiência externa se dá a partir da percepção sensível; a interna, a partir da apreensão
de estados anímicos (psíquicos). Esta distinção, porém, tem algumas desvantagens para
o pensamento da experiência. Ela reduz todo o ser ao real e já trabalha com a divisão do
real entre físico e psíquico. Existe apenas uma experiência empírica ou há também uma
experiência transcendental (Husserl)? Existe, por exemplo, uma experiência, uma
intuição, uma evidência do não real, do ideal, por exemplo? Pode-se ter experiência, por
exemplo, de “verdades”, de “valores” (do bem, do belo, do justo), etc.? Tem-se
experiência apenas do ente ou também há uma experiência do ser, do nada...
(Heidegger)? Há uma experiência do divino, de um deus, do Deus? O fato é que a noção
do empirismo é muito restrita. O empirismo, de antemão, decide algo sobre os limites
da experiência. Ele só reconhece a experiência física, sensível (externa) e a psíquica
(interna). Podemos ousar dizer, talvez, que da experiência, em sentido pleno, faz parte
a presença de algo dado, sua inserção no campo de significado que se tem
compreendido previamente (a priori), que não se experimenta da mesma maneira que
o sensível em sentido usual. Trata-se, aqui, da questão da possibilidade da experiência
de significados fundamentais prévios, de um a priori244. Por exemplo, não temos uma

244
Kant interpreta o a priori transcendentalmente. Isto quer dizer: o a priori diz respeito não ao ser como
tal, mas ao conhecer como tal. Mas, não há um a priori de caráter ontológico? Temos experiência de algo
assim? Para Kant, um conceito pode ser empírico, se se obtém a partir da experiência, ou pode ser puro,
se é anterior a toda a experiência possível. O a priori é o que possibilita a experimentabilidade por parte
experiência do tempo e do espaço? Talvez o conceito de experiência seja um conceito
não unívoco, seja analógico, isto é, se aplique a diversos âmbitos com significações
diferentes, mas não disparatadas...

O conceito de experiência é muito amplo. Trata-se de uma palavra polissêmica e


cujos sentidos podem variar em diversas dimensões e situações epocais. Heidegger, em
Beiträge zur Philosophie (p. 159-166)245, ao meditar acerca do sentido da ciência, anota
algumas observações acerca deste conceito. O que chamamos de experimento pertence
a um conceito mais amplo, de diversos níveis e modos, denominado experiência.
Vejamos os diversos níveis de compreensão do que seja experiência.

Experimentar (Erfahren) diz, antes de tudo, um esbarrar em, um topar com, um


dar-se contra, um encontrar. Na experiência, algo nos golpeia, nos toca, nos pressiona,
algo que, sem a nossa intervenção, nos vem de encontro e nos “afeta”. Assim, neste

da consciência. Se o predicado de um juízo estiver já contido no conceito do sujeito, então se trata de um


juízo analítico a priori. Se o predicado de um juízo acrescentar algo de novo ao conceito do sujeito, de
modo que o vínculo entre sujeito e predicado, for proveniente unicamente da experiência, isto é, se for
empírico, então se trata de um juízo sintético a posteriori. Se o predicado de um juízo acrescentar algo de
novo ao conceito do sujeito e estiver ligado com este não só empiricamente (a posteriori), mas de modo
necessário, de antemão (a priori), então se trata de um juízo sintético a priori. Kant fez a descoberta de
que o conhecimento propriamente científico está baseado sobre juízos que não são nem analíticos
(quando o predicado está já contido no sujeito), nem sintéticos a posteriori( quando o predicado
acrescenta algo que não estava já contido no sujeito e quando os mesmos, simultaneamente, provêm da
experiência), mas sim juízos sintéticos a priori ( que expressam conteúdos que são o resultado de uma
síntese ou reunião e que, no entanto, têm o caráter de universalidade e necessidade, não podendo ser
provenientes da experiência, já que os dados da experiência são sempre particulares e contingentes).
Todos as proposições fundamentais da matemática, da geometria e da física são sintéticos a priori
(axiomas, teoremas, leis). Também o são as proposições metafísicas. Perguntando pela condição da
possibilidade dos juízos sintéticos a priori, Kant foi conduzido à descoberta da função fundamental que,
no conhecimento, exerce o sujeito, isto é, a razão (tomada aqui em sentido lato, isto é, como faculdade
gnoseológica em geral e não como a faculdade que se refere às idéias tal como as entendia Kant). O
fundamento dos juízos sintéticos a priori é o sujeito que sente e que pensa, ou melhor, não este ou aquele
sujeito empírico, mas a subjetividade estrutural humana com as suas leis que regulam seja a sensibilidade
seja o intelecto. Às estruturas da sensibilidade e do intelecto Kant atribui o adjetivo de transcendentais.
O sujeito do conhecimento é transcendental, isto é, não pode ser conhecido como um dado da
experiência, isto é, como um objeto. Ao contrário, o sujeito é a condição da possibilidade para que se dê
algo como “experiência” e para que os dados da experiência sejam recolhidos e ordenados desta ou
daquela maneira. Transcendental é o sujeito e tudo aquilo que estruturalmente pertence a ele.
Transcendental é a condição da possibilidade da cognoscibilidade dos objetos (da sua intuibilidade e
pensabilidade). Transcendental é aquilo que o sujeito previamente lança e põe no projeto do
conhecimento dos objetos, no ato mesmo de conhecê-los. Quando se trata da sensação, isto é, do
conhecimento sensível, transcendentais são as formas prévias segundo as quais são ordenados todos os
dados da experiência, ou seja, as formas puras da intuição: o espaço e o tempo. Quando se trata do
pensamento, ou seja, do conhecimento inteligível, transcendentais são as categorias, conceitos puros do
intelecto, verdadeiras leges mentes, que regulam o uso da faculdade intelectiva.
245
Heidegger, Martin. Contribuições à Filosofia: Do Acontecimento Apropriador. Rio de Janeiro: Via Vérita,
2015, p. 157-164.
nível elementar, mais do que fazer experiências, nós sofremos experiências. Está em
jogo uma certa passividade em relação ao real, que nos afeta (Kant falou de passividade
e espontaneidade como dois componentes do conhecimento; Husserl investigou esta
passividade da experiência sob o título de gênesis passiva). O sentido de uma tal
passividade, no entanto, é a receptividade, o deixar-se impressionar por, a abertura da
sensibilidade.

Num segundo momento, experimentar parece significar um ir de encontro a algo


que, de imediato, não nos toca. Trata-se de abrir caminho para uma nova descoberta,
através do olhar circunspecto, que procura, examina, espia, inspeciona, revê, um
determinado estado de coisas, uma determinada conjuntura ou situação (Sachverhalt).

Num terceiro momento, este ir ao encontro de, próprio do experimentar no


segundo nível, adquire o sentido de um pôr à prova, de um provar algo, no horizonte de
uma determinada interrogação, indagação, inquirição, e isto no modo do “se-então”.
Aqui, o examinar se transforma num observar, que, por sua vez, pode lançar mão de
outros instrumentos de apreensão e de visualização. O experimentado, antes
determinado como um buscado, agora é caracterizado como algo que é perseguido e
indagado pela pesquisa.

Num quarto momento, por fim, o ir de encontro, que lança mão de recursos de
observação e que examina pondo à prova, repetidamente, as conexões e relações dos
estados de coisa, visa a apreensão de determinadas regularidades do se-então. Este pôr
à prova da empeiria (experiência), portanto, lida sempre com o recurso da hypólepsis
(conjectura). A regra, a lei, porém, só aparece na conjuntura de uma mensuração.
Experimento só é possível onde se lida com a precisão de uma mensuração, partindo-se
de um projeto matematizante da natureza. Justamente este projeto é a condição para
a necessidade e a possibilidade do experimento. O simples lidar com fatos da
observação e com a mensuração ainda não constitui o experimento no sentido
moderno, mas, precisamente, o projeto de matematização da natureza. Assim, a
empeiria dos gregos, o experiri, a experientia e o experimentum dos medievais (p. ex.,
Roger Bacon), ainda não constitui o próprio do experimentalismo moderno.
Ao falarmos de experiência, aqui, vamos nos mover no nível mais amplo e
fundamental (o primeiro). Falamos, aqui, do empírico no seu sentido mais vasto e
originário. Significa, aqui, um ser atingido, afetado, pelo real, pelas realizações, pela
realidade. É algo como o “full contact” (contato pleno) de uma luta corpo a corpo. A
experiência se dá, aqui, como uma simples apreensão: “significa, portanto, perceber,
captar algo, de imediato e corpo a corpo, de cabo a rabo, de tal forma que esse algo,
aquilo que se capta, torne-se trans- (per) – parente (aparecente). Trata-se, pois, da
percepção simples, imediata, da coisa ela mesma: evidência”246. Experiência, aqui,
portanto, quer dizer a evidência corpo a corpo da e na vida em sua simplicidade e
imediatez, o seu modo de captação, a simples apreensão (ver simples). Experiência não
é, aqui, portanto, em nenhum sentido, experimento, uma vez que o experimentado é
sempre mediato e mediatizado247. Falamos de experiência, aqui, portanto, de
experiência em sentido pré-científico, no sentido do “mundo da vida” (Husserl), da
“experiência fáctica” (Heidegger). Mas, o que é, como é, o que aqui chamamos de
“experiência fáctica da vida”? O que é experienciar, aqui? O que é o experienciado?
Podemos dizer que, aqui, não se trata de experienciar um objeto, seja ele objetivo
(objeto-objeto), seja ele subjetivo (objeto-sujeito). Husserl fala, nas Meditações
Cartesianas, de experiência transcendental248. Aqui, o experienciar e o experienciado

246
Harada, Hermógenes. Fragmentos de pensamento humano-franciscano. Org.: Ênio Paulo Giachini.
Curitiba: Ed. Bom Jesus, 2016, p. 127.
247
Na pesquisa da ciência moderna, a experiência é subsumida a partir e dentro do projeto intelectual (o
matemático) e, assim, se transforma em experimento e se põe à disposição da formação de hipóteses e
teorias, em vista do conhecimento e do saber. Uma conexão de percepções e representações é submetida
a categorias. A experiência científica é experiência da experiência. Uma certa reflexividade, portanto, é a
condição de possibilidade para a experiência se constituir num experimento. Na ciência, nós não somente
fazemos experiências, mas fazemos experiências com nossas experiências, ou seja, experimentos.
Experimentos são experiências realizadas e controladas com vistas à observação, vale dizer, à decisão
acerca de determinadas perguntas, formuladas com base no projeto de determinadas teorias. A
reflexividade da experiência leva, por sua vez, a produzir instrumentos de expansão do raio da observação
(microscópios, telescópios, radar, etc) e a desenvolver um sensorium muito mais abrangente do que
aquele da sensibilidade cotidiana. A reflexividade da experiência exige, ainda, que se aperfeiçoe, do ponto
de vista qualitativo e quantitativo, as condições dos experimentos e que se alargue, cada vez mais, a
envergadura de seu âmbito. Como se pode ver, a experiência, no âmbito da pesquisa científica, adquire
contornos e determinações essenciais, fundamentalmente diferentes daquelas determinações e
contornos da experiência cotidiana do mundo da vida. O experimento é uma espécie toda própria,
portanto, de experiência, que se distingue qualitativa e decisivamente da experiência cotidiana, pois,
enquanto a experiência cotidiana é imediata, a experiência do experimento só pode acontecer graças a
diversas mediações.

248
Cfr. a segunda meditação, que se intitula, em alemão, “Freilegung des transzendentalen
Erfahrungsfeldes nach seinen universalem Strukturen”. A tradução de Pedro Alves diz: “Abertura do
são o mesmo. Somos nós mesmos. Trata-se da nossa vida como vida transcendental,
isto é, anterior a toda a objetivação. Heidegger propôs que a fenomenologia fosse uma
ciência originária, a saber, a ciência originária da vida, leia-se, da experiência da vida
fáctica249. A vida não é acessível como objeto. Ela é acessível naquilo que Heidegger
chama de “intuição hermenêutica”250. Esta não tem nada de teorética, no sentido usual
(de teoria científica). É uma apreensão que se dá na vida, a partir da vida, voltada para
a vida, como ela se doa, em si e por si. Ela se dá não como processo objetivante, mas
tem o caráter de acontecimento, de evento. O que nela se desvela não é objeto. É
situação, é mundo. A intuição hermenêutica se dá com o próprio viver a vida em seu
caráter de abertura de mundo, mais precisamente, de mundo histórico. “Intuir”
significa, aqui, “ver”. Trata-se de um “ver simples”. Este ver simples é um acontecer. É
“a própria presença, a própria abertura, a clareira que é o próprio experienciar, o próprio
vivenciar, o manifesto, a ‘aparescência’, o phainómenon: o Da-sein ou o ser-no-
mundo”251.

A experiência tem algo de originário, ou seja, algo de princípio (arché), de origem


(Ur-sprung: proto-salto). Hölderlin, em seu Hino do Reno, evoca a força do princípio, da
fonte, da origem, em seu caráter de mistério: “um mistério, o que brota de puro
princípio. Nem a poesia pode desvendar”. O mistério da experiência nós chamamos de
mística. Mística é a experiência radical de simplesmente viver252. Também Rilke, no
começo de sua obra Sonetos a Orfeu (1ª Parte, Soneto 1), fez a experiência poética da
experiência como princípio e origem, como uma eclosão, uma emergência súbita:

campo de experiência transcendental segundo as suas estruturas universais”. É importante a palavra


“Freilegung”, traduzido como “abertura”. O verbo “freilegen” significa abrir um caminho, desentulhar um
caminho. Tem também o sentido de pôr a descoberto. “Frei” é “livre”. “Legen” é “pôr”. Podemos
interpretar esta palavra como indicando o trabalho de liberar. Trata-se, pois, de uma “liberação” que se
dá no sentido de desencobrir um campo, tirar o que está entulhado nele, abrir caminhos nele, torna-lo
capaz de receber a semente, etc. Digamos que o trabalho da fenomenologia transcendental aparece aqui
como a “liberação” do “campo da experiência transcendental”. Esta liberação se dá segundo, isto é,
seguindo as “suas estruturas universais”. Os §§ 12 a 22 tratam deste trabalho. Aqui não podemos entrar
nos detalhes desta meditação de Husserl.
249
Cfr. Heidegger, Martin. Grundprobleme der Phänomenologie (1919/1920) (GA 58), p. 65-128.
250
Cfr. Zur Bestimmung der Philosophie (GA 56/57), p. 116-117.
251
Harada, Hermógenes. Fragmentos de pensamento humano-franciscano. Org.: Ênio Paulo Giachini.
Curitiba: Ed. Bom Jesus, 2016, p. 132.
252
Leão, Emmanuel Carneiro. A Mística de Eckhart em Eckhart. Cfr. Aprendendo a Pensar I (Ed. Daimon),
p. 248.
Da Stieg ein Baum. O reine Übersteigung!

O Orpheus singt! O hoher Bau im Ohr!

Und alles schwieg. Doch selbst in der Verschweigung

ging neuer Anfang, Wink und Wandlung vor253.

A experiência, pois, é algo como uma irrupção, uma emergência, originária. A


partir daí podemos dizer:

Fazer uma experiência com algo, seja com uma coisa,


com um ser humano, com um deus, significa que esse algo
nos atropela, nos vem ao encontro, chega até nós, nos
avassala e transforma. “Fazer” não diz aqui de maneira
alguma que nós mesmos produzimos e operacionalizamos a
experiência. Fazer tem aqui o sentido de atravessar, sofrer,
receber o que nos vem ao encontro, harmonizando-nos e
sintonizando-nos com ele. É esse algo que se faz, que se
envia, que se articula.254

Nós não fazemos experiência. Talvez seja mais exato dizer que nós sofremos
experiência. Pois aquilo de que nós fazemos experiência sobrevém a nós, nos atinge e
atropela. Toca-nos. Faz-nos dar de cara e topar com ele. Nisso, nossos olhos se abrem.
Acontece a descoberta. Nós nos encontramos, então, afeiçoados desse ou daquele
modo com isso que nos atingiu. Entretanto, talvez seja melhor ainda dizer que o
essencial não é que nós fazemos nem que nós sofremos a experiência, mas seja dizer
que a experiência mesma se faz. O fazer-se da experiência não é nem ativo nem passivo,
mas é, antes, medial. A experiência é o medium no qual nós vamos nos transformando,
quer em fazendo quer em sofrendo. Essa transformação, no entanto, é uma
transformação que acontece num caminho, na destinação de uma história, na travessia
do viver. No caminho da experiência, nós afinamos e desafinamos com aquilo de que a

253
“Então elevou-se uma árvore! Pura Elevação! / Orfeu está cantando! / Uma grande árvore no ouvido!
/ E tudo silenciou! / Mas mesmo no silêncio unânime, / Nasceu novo princípio, gesto e transformação!” .
Cfr. Sonetos a Orfeu/ Elegias de Duíno. Petrópolis: Vozes, 1989, p. 20-21.
254
Heidegger, Martin. A caminho da linguagem. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora
Universitária São Francisco, 2003, p. 120.
experiência é experiência. Mas tanto o afinar-se quanto o desafinar-se se dá como busca
de dispor-se para receber o vigor essencial daquilo de que a experiência é experiência.
No nosso caso, queremos fazer uma experiência com a linguagem. Isso quer dizer:
queremos nos afinar com a linguagem, fazendo a travessia do caminho para ela.

Fazer uma experiência com a linguagem significa


portanto: deixarmo-nos tocar propriamente pela
reivindicação da linguagem, a ela nos entregando e com ela
nos harmonizando. Se é verdade que o homem, quer o saiba
ou não, encontra na linguagem a morada própria de sua
presença, então uma experiência que façamos com a
linguagem haverá de nos tocar na articulação mais íntima de
nossa presença. Nós, nós que falamos a linguagem, podemos
nos transformar com essas experiências, da noite para o dia
ou com o tempo. Mas talvez fazer uma experiência com a
linguagem seja algo grande demais para nós, homens de
hoje, mesmo quando essa experiência só chega ao ponto de
nos tornar por uma primeira vez atentos para a nossa relação
com a linguagem e a partir daí permanecermos
compenetrados nessa relação255.

A experiência é um modo de ser do homem. Experiência não é tanto uma coisa


que o homem faz, mas sim a maneira como o homem existe enquanto homem. E a
existência do homem é temporal-histórica. Isto quer dizer: experiência diz como o
homem é e se torna, com o tempo, em um modo de caminhar a vida. Experiência é
movimento da vida humana em sua temporalidade, que é maturação. É o crescimento
da identidade humana. Experiência é, pois, algo como “história de uma alma”, isto é,
como uma caminhada, na qual cresce em nós uma compreensão viva, bem
experimentada que nos transforma e se torna a identidade de cada um de nós.
Experiência, portanto, pressupõe uma demora, um morar, ou melhor, um persistir, um
perseverar, um permanecer em um caminho, que tem o modo de ser de história
(acontecimento do existir, destinação).

255
Heidegger, Martin.Op. Cit., p. 120.
Experiência só se dá como caminho. É um caminhar a vida. É um “caminhar
bastante”. Da disposição de caminhar bastante um caminho nos fala um diálogo de
“Alice no país das maravilhas”. Trata-se de um diálogo entre Alice e o Gato da Duquesa,
o Gato de Cheshire, também conhecido como Gato Que Ri ou Gato Que Faz Careta256.
Ele se caracteriza por seu sorriso pronunciado e sua capacidade de aparecer e
desaparecer. Alice entabula uma insólita conversa com o Gato que dá a pensar.

(Alice) “ficou um pouco espantada de ver o Gato de


Cheshire sobre um ramo de árvore a alguns metros de
distância...

O Gato apenas sorriu quando viu Alice. Parecia de


boa índole, ela pensou, mas não deixava de ter garras muito

256
Carroll obteve seu nome na expressão idiomática da língua inglesa "sorrir como um Cheshire Cat". É
representado nas figuras de Jonh Tenniel e considerado representativo da raça British Shorthair, devido
à forma da boca, considerada como um sorriso.
longas e um número respeitável de dentes, por isso ela
sentiu que devia ser tratado com respeito.

“Gatinho de Cheshire” começou um pouco tímida,


pois não sabia se ele gostaria do nome, mas ele abriu ainda
mais o sorriso. “Vamos, parece ter gostado até agora”,
pensou Alice, e continuou. “Poderia me dizer, por favor, que
caminho devo tomar para sair daqui?”

“Isso depende bastante de onde você quer chegar”,


disse o Gato.

“O lugar não importa muito...”, disse Alice.

“Então não importa que caminho você vai tomar”,


disse o Gato.

“...desde que eu chegue em algum lugar”,


acrescentou Alice em forma de explicação.

“Oh, você vai certamente chegar a algum lugar”,


disse o Gato, “se caminhar bastante”257.

Vida humana é caminho: via e viagem – do útero ao seio da terra. Nesta viagem
e como viagem acontece a experiência. “Fazer uma experiência significa literalmente:
eundo assequi; no andar, estando a caminho, alcançar uma coisa, andando, chegar num
caminho”258. Na experiência como caminho há riscos, e, com o enfrentamento dos
riscos, desventuras e venturas. Neste sentido, toda experiência é risco, é um ser posto
à prova, uma tentação. Em grego, a palavra para o que nós chamamos de “tentação” é
“peirasmós”. A raiz é “per-” – a mesma que se dá, na língua grega, em “péras” (limite),
e no latim, em “experientia” (experiência) e em “peritus” (perito, experto). Ela acena
para o empenho de instalar-se no limite de uma paisagem, de percorrer uma via, de
seguir um envio, com suas vicissitudes e peripécias, a tentativa de uma busca, em que
acontece um ser exposto a riscos, um ser posto à prova, um ser tentado. Toda esta
dinâmica pode ser chamada de “experiência”. E toda experiência é “tentação”, pois, nela

257
Carroll, Lewis. Alice no País das Maravilhas. Porto Alegre: L&M Pocket, 1998, p. 83-84.
258
Heidegger, M. A caminho da linguagem, p. 130.
se inscreve tanto a tentativa quanto o risco, o perigo (per-iculum!), que esta tentativa
traz consigo. Esta tentativa-tentação-experiência tanto pode deslanchar, alcançar o que
ela almeja e ser bem-aventurada, feliz, quanto pode empacar, frustrar-se e resultar
infeliz, mal-aventurada. O homem que é bem-aventurado na travessia da experiência –
travessia em que ele tem de se afinar sempre de novo com o que o enviou nessa via e
viagem – torna-se um perito. Um perito é alguém que sabe, não de “ouvir falar”, mas
desde a experiência. O seu saber – que é um entender no sentido de entender-se com
e sem familiarizado com, um “ser do ramo” – surge de um conhecer que se dá “corpo a
corpo”, numa luta, num embate, num combate com a realidade, seus desafios e suas
adversidades. Este embate “corpo a corpo” constitui a vida do espírito.

Experiência é, pois, caminho. Viagem originária (Er-fahrung). Isso nos alerta para
reconsiderarmos o que significa fazer experiência com alguma coisa:

Fazer a experiência de alguma coisa significa: a


caminho, num caminho, alcançar alguma coisa. Fazer uma
experiência com alguma coisa significa que, para
alcançarmos o que conseguimos alcançar quando estamos a
caminho, é preciso que isso nos alcance e comova, que nos
venha ao encontro e nos tome, transformando-nos em sua
direção259.

Nós buscamos, neste curso, nos dispor para uma experiência pensante da
linguagem. Há um texto de Heidegger que se intitula “Da experiência do pensar”. Numa
das suas anotações, somos advertidos para a dinâmica de risco, de perigo, da
experiência de pensar e da necessidade de paciência para suportar esta dinâmica: “Weg
und Waage / Steg und Sage / finden sich in einen Gang. // Geh und trage / Fehl und
Frage / deinen Pfad entlang. ”260. Uma outra anotação assinala que há uma diferença
que, para a experiência do pensar é fundamental: “Wenig sind erfahren genug im
Unterschied zwischen einem gelehrten Gegenstand und einer gedachten Sache”261 .

259
Heidegger, M. A caminho da linguagem, p. 137.
260
“Caminho e Balança / Senda e Saga / acham-se num passo // anda e suporta / Falta e Pergunta / ao
longo da tua senda.”
261
“Poucos são experimentados o bastante na diferença entre um objeto de erudição e uma coisa
pensada”.
Esta diferença precisamos levar em consideração no nosso propósito de pensar
a linguagem. Heidegger de novo nos adverte:

Mas fazer uma experiência com a linguagem é algo


bem distinto de se adquirir conhecimentos sobre a
linguagem. Esses conhecimentos nos são proporcionados e
promovidos infinitamente pela ciência da linguagem, pela
lingüística e pela filologia das diferentes línguas e linguagens,
pela psicologia e pela filosofia da linguagem. Atualmente, o
alvo cada vez mais mirado pela investigação científica e
filosófica das línguas é a produção do que se chama de
"metalinguagem". Tomando como ponto de partida a
produção dessa supralinguagem, a filosofia científica
compreende-se conseqüentemente como metalingüística.
Isso soa como metafísica. Na verdade, não apenas soa como
é metafísica. Metalingüística é a metafísica da contínua
tecnicização de todas as línguas, com vistas a torná-las um
mero instrumento de informação capaz de funcionar
interplanetariamente, ou seja, globalmente. Metalinguagem
e esputinique, metalingüística e técnica de foguetes são o
mesmo262.

Dizer isso não significa porém desvalorizar a


pesquisa científica e filosófica das línguas e da linguagem.
Essa pesquisa tem todo o seu direito e valor. A seu modo, ela
está sempre ensinando coisas muito úteis. No entanto, uma
coisa são os conhecimentos científicos e filosóficos sobre a
linguagem e outra é a experiência que fazemos com a
linguagem. Nenhum de nós tem em mãos o poder de decidir
se a tentativa de nos colocarmos na possibilidade de uma tal
experiência será bem-sucedida, e em que extensão o que
talvez seja bem-sucedido consiga alcançar cada um de nós
em particular.

262
A caminho da linguagem, p. 122.
Entretanto, o que está em jogo na experiência pensante da linguagem? Vejamos:

O que ainda resta a fazer é indicar os caminhos que


possam nos colocar na possibilidade de fazer uma
experiência com a linguagem. Esses caminhos de há muito já
existem. Só raramente, porém, é que são percorridos de
maneira que a possível experiência com a linguagem venha
por sua vez à linguagem. Nas experiências que fazemos com
a linguagem, é a própria linguagem que vem à linguagem.
Poder-se-ia acreditar que isso acontece toda vez que se fala.
Todavia, por mais que falemos uma língua, a linguagem
propriamente nunca vem à palavra. Muito vem à linguagem
quando se fala, sobretudo aquilo sobre o que falamos: um
fato, uma ocorrência, uma questão, uma preocupação. Mas
nós só somos capazes de falar uma língua, de agir na fala com
relação e sobre alguma coisa porque a linguagem ela mesma
não vem à linguagem na fala cotidiana, ficando nela
resguardada.

Mas onde a linguagem como linguagem vem à


palavra? Raramente, lá onde não encontramos a palavra
certa para dizer o que nos concerne, o que nos provoca,
oprime ou entusiasma. Nesse momento, ficamos sem dizer
o que queríamos dizer e assim, sem nos darmos bem conta,
a própria linguagem nos toca, muito de longe, por instantes
e fugidiamente, com o seu vigor.

Quando se trata de trazer à linguagem algo que


nunca foi dito, tudo fica na dependência de a linguagem
conceder ou recusar a palavra apropriada. Um desses casos
é o do poeta. Um poeta pode até mesmo chegar ao ponto de
a seu modo, isto é, poeticamente, trazer à linguagem a
experiência que ele faz com a linguagem.
A COISA DA FENOMENOLOGIA E A FENOMENOLOGIA DA
COISA.
Marcos Aurélio Fernandes

Grupo Anarchai – UnB

13 de novembro de 2017

1) Fenomenologia não é realidade, mas possibilidade: a possibilidade de


corresponder à reivindicação do que há de se pensar, da “coisa” (Sache) do
pensar: o ser em sua manifestatividade263.
2) A intenção fundamental da fenomenologia, como conceito de método, está
focada em captar a dinâmica de significância que o fenômeno consegue
mostrar de si mesmo na sua pertença cada vez singular ao todo da vida. É a
partir do todo da vida que o fenômeno aparece numa relação significativa
com o homem. O “para-onde” da redução transcendental, deste modo, é a
vida.
3) O encaminhamento da investigação fenomenológica em Husserl acontece
como análise fenomenológica da intencionalidade. Esta análise realiza uma
tríplice recondução do fenômeno à sua origem. A redução fenomenológica
tematiza o surgimento do fenômeno enquanto fenômeno para a consciência
(como o fenômeno vem a si e se manifesta em sua significância para a
condição humana). Todo o positivo ou transcendente (não somente o físico,
mas também o psíquico) se evidencia como tendo a sua fonte de sentido e
de validade na consciência transcendental (que não é a alma, isto é, o
psíquico, em sua positividade, que também permanece transcendente). A
redução eidética, por sua vez, investiga a forma formadora (estrutura
estruturante) do fenômeno. A redução transcendental, enfim, investiga o

263
Zur Sache des Denkens. Tübingen: Max Niemeyer, 1988, p. 90. Cf. também Sein und Zeit, p. 38.
processo gerador de todas as estruturações de sentido. Em Husserl, a gênese
das estruturações de sentido se dá a partir do “ego transcendental puro”.
4) Pela redução transcendental todo o positivo se torna problemático
(ingenuidade transcendental). A redução transcendental põe em obra uma
neutralização de toda a thesis (posição de validade transcendente) do mundo
(físico e psíquico; real e ideal), realizando uma des-materialização, uma des-
substalização de tudo o que é objetivo. Nisso, reconduz toda a insistente
autonomia do objeto à sua gênese constitutiva, à fonte originante, isto é, à
vida intencional do eu transcendental, à evidência da auto-presença da
consciência, à sua mediação, isto é, a representação, na qual a imanência da
autoclarificação da presentação é a medida de todo o mundo, físico ou
psíquico, real ou ideal. A redução transcendental inibe toda apercepção
transcendente e sua validação. Ela “põe entre parênteses”, isto é, a
neutraliza e a toma como aquilo que ela é: um intencionar subjetivo que
opera um pôr validante (epoché)264. Também a alma (o anímico ou psíquico)
é submetida à redução transcendental. Isto é: o psíquico como algo que é ele
mesmo transcendente é neutralizado também. Essa epoché, mais do que
uma suspensão (da posição da apercepção transcendente e de sua validade),
é uma contenção da força do movimento transiente que se dá no acontecer
da vivência intencional, enquanto correlação de consciência-de-algo e o algo
de que a consciência é consciência. Esta contenção pode ser encarada como
a concentração para um salto. A redução transcendental é uma espécie de
salto, ou seja, de mudança de impostação da inteira forma de vida: da
positividade (vida positiva) para a transcendentalidade (vida transcendental).
5) A partir da redução transcendental, todo o fenômeno aparece como um
conteúdo cujo sentido é gerado a partir da vida transcendental intencional
da consciência. Aqui a investigação fenomenológica se torna constitutiva e
genética. Ela se centra na experiência intuitiva da verdade que se dá como
gênese de um determinado conteúdo constituído (nóema) a partir do
relacionamento do fenômeno como a vida transcendental da consciência e a

264
vivência que a cada vez se dá (nóesis). Todo conhecimento objetivo é o co-
nascimento disso que é conhecido com o cognoscente em sua vida
transcendental intencional. Os objetos (Objekte) se mostram na consciência
e para a consciência em suas mais diversas objetualidades (ex.: objetos-
coisas; objetos-anímicos; objetos-lógicos; objetos-valores; objetos-estéticos,
etc). O mundo dos objetos aparece como uma contextura, isto é, como uma
tecitura e uma tessitura de diferentes e variegadas modalidades de
objetualidades. Essas objetualidades constituem, por assim dizer, horizontes
dentro e a partir dos quais cada objeto vem ao encontro da consciência
transcendental como objeto deste ou daquele tipo objetual. Cada um desses
horizontes é constituído através de uma objetivação correspondente ao tipo
de intencionalidade que o gera em sua estruturação de sentido e o valida
deste ou daquele modo. O mundo é o horizonte de todos os horizontes dessa
experiência de aparecimento de objetos e objetualidades.
6) O passo ou a passagem (salto?) da fenomenologia em Husserl para a
fenomenologia em Heidegger se dá como uma mudança do lugar originário
do lógos do fenômeno: da consciência enquanto vida transcendental
intencional para a vida enquanto existência (ser-no-mundo, cuidado)265. A
fenomenologia se torna, aqui, ciência originária pré-teorética da vida. O
mundo se manifesta e se dá ao eu como horizonte de todos os horizontes de
aparecimento das coisas. As coisas que emergem como sendo no mundo e
como pertencendo ao nosso mundo circundante não aparecem como meros
objetos, mas sim como significâncias. A coisa intramundana não é uma mera
coisa, um objeto, que, por acréscimo, é apreendida como significativa para
isso ou para aquilo, recebendo um valor, mas o primário na aparição da coisa
intramundana é o seu caráter significável (das Bedeutsame). “Vivendo em
um mundo circundante, por toda a parte e sempre algo está se significando
para mim, tudo é mundano (welthaft), ‘mundifica’ (es weltet), o que não
coincide com o ‘valoriza-se’ (es wertet)” 266..

265
Cf. o confronto Husserl-Heidegger na elaboração da segunda versão do artigo para a Enciclopédia
Britânica (1928): HUA IX (phänomenologische Psychologie), 1962, p. 271-277.
266
Cf. Heidegger, Martin. Zur Bestimmung der Philosophie (GA 56/57) § 14, p. 73.
7) A vivência não é processo (psíquico), mas evento do viver267. O eu não é uma
coisa (psíquica), mas uma abertura de mundo. “Só no ressoar-com de cada
eu próprio é que se vivencia um algo mundano-circunstante, é que acontece
mundo, e onde e quando acontece mundo para mim, eu estou de alguma
maneira bem ali, juntinho”268. A vivência se dá como um evento originário da
vida. Ela não é um processo psíquico; não é objeto. Ela é um evento que, à
medida que acontece e se manifesta, faz aparecer o eu como um si-mesmo
próprio que tem seu acontecer e sua manifestação juntamente na vivência e
com a vivência – este eu que vibra junto com a vivência, oscila junto com ela,
cada vez numa determinada afinação e num determinado modo. O ser da
vivência não é nem físico nem psíquico). A vivência é evento da vida269. Ela
se ergue desde e se funda no fundo-abismo da vida. O caráter de evento
(Ereignischarakter) da vivência está, assim, a cada vez e sempre de novo, em
correspondência com o caráter de significância daquilo que lhe aparece
como o vivenciado. Vida quer dizer, aqui, porém, existência. Aqui a palavra
“existência” é restrita ao modo de ser da vida humana (Bíos). Diz o
“ontologicum” (o recolhimento do ser) do humano. Quer dizer ponto-de-
salto, irrupção, abertura de mundo, clareira do desvelamento do sentido de
ser, o franquear da responsabilidade livre e criativa pelo sentido
(manifestatividade) do ser.
8) O passo e a passagem da fenomenologia de Husserl para a fenomenologia de
Heidegger se dá como uma mudança de lugar (Ortsverlegung) do lógos do
fenômeno270. Nessa mudança, o foco de toda a evidência da relação
significativa do fenômeno com o homem se transfere da consciência para a
“aberta” ou a “clareira” (Lichtung) do ser, isto é, para a amplidão aberta (die
offene Weite) do ser, em que o ser humano, fundamentalmente, recebe a

267
Cf. Heidegger, Martin. Zur Bestimmung der Philosophie (GA 56/57) § 15.
268
Zur Bestimmung der Philosophie, Gesammtausgabe – Band 56/57. Frankfurt am Main: Vittorio
Klostermann, , 1987, p. 73.
269
Zur Bestimmung der Philosophie, Gesammtausgabe – Band 56/57. Frankfurt am Main: Vittorio
Klostermann, , 1987, p. 75.
270
Heidegger, Martin. Seminare (GA Band 15). Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1986, p. 385.
Trata-se, aqui, de um pronunciamento de Heidegger, no Seminário de Zähringen, acontecido 6 e 7 de
setembro de 1973.
possibilidade de, cada vez no envio de uma travessia, se deixar encaminhar
neste ou naquele rumo, e, assim, de maneiras diversas, chegar às coisas que
lhe concernem271. A consciência se funda nesse ser-na-amplidão-aberta-do-
ser que Heidegger chama de Da-sein. Essa amplidão aberta do ser na qual o
homem encontra a sua morada é também chamada de Clareira do ser. A
consciência está enraizada na clareira do ser e não vice-versa. Existência quer
dizer, neste sentido, in-sistência na abertura do desvelamento do ser272.
9) Na fenomenologia da consciência, a vigência e a presença do ente se dão ao
modo da objetualidade (Gegenständlicheit) do objeto. O que vem ao
encontro do homem no espaço aberto do ser-no-mundo é, neste horizonte,
apreendido e compreendido como objeto (Gegenstand). A relação
significativa do ente com o homem se determina, aqui, a partir do horizonte
de compreensão do ser como objetualidade. Objeto é o fenômeno do ente
(do vigente-presente) enquanto se dá para, na e pela consciência. É para a
consciência que todo objeto se doa em sua objetualidade. É no medium da
consciência intencional que todo objeto se deixa apreender e compreender
como objeto em sua objetualidade típica, específica, ou no horizonte da
objetualidade em geral. O objeto, no entanto, é constituído enquanto tal
mediante a representação (Vorstellung). É em virtude da representação que
a presença do objeto pode se dar. É a representação que põe o objeto como
objeto diante da consciência, como algo que lhe está contraposto
(gegenüber) 273. É em virtude do cogito que o objeto aparece na forma de um
cogitatum: o percebido para um perceber, o recordado para um recordar, o
imaginado para um imaginar, o amado para o amar, o odiado para o odiar,
etc. Assim, na fenomenologia da consciência, o ente só pode ser o nóema de
uma nóesis. O ente só se torna presente como ob-jeto, isto é, como o “Stand”
(o posto, o status) do “gegen” (contra, verso, adverso), como “Gegenstand”
(o contraposto, o adverso).

271
Idem, p. 380.
272
Cf. Heidegger, Martin. O retorno ao fundamento da metafísica. In: Conferências e escritos filosóficos
(Pensadores). São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 82.
273
Cf. Heidegger, Martin. Seminare (GA Band 15). Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1986, p. 386.
10) Na fenomenologia da aberta do ser, porém, a visada intencional torna-se um
“schlichtes Sehen” (simples ver). O que se deixa apreender neste simples ver
não é objeto (que implica a mediação de uma representação), mas é o ente
mesmo em carne e osso (leibhaftig). A doação viva, “em carne e osso”, “em
pessoa”, do ente ele mesmo é o grau maior de intensidade e pregnância da
claridade intuitiva em que o ente irrompe e emerge na clareira do ser. É o
“terminus ad quem” de toda a plenificação de um intencionar vazio. É nela
que se dá a experiência de uma evidência originária. Podemos chamar a
simples apreensão de percepção (em sentido amplo). Na fenomenologia da
consciência, por exemplo, um sapato é um exemplo de aparecimento de um
objeto sensível. Na fenomenologia da clareira do ser, porém, um sapato é
uma coisa (Ding). Nesta fenomenologia, o ser-no-mundo (In-der-Welt-sein) é
o modo primário de encontro (Begegnung) com o ente. O ser-no-mundo
aparece como faktum primordial, não derivado, prévio a toda a apreensão
da consciência274. No horizonte de compreensão do ser-no-mundo o sapato
é apreendido como sapato, na percepção natural, isto é, na percepção
congênere ao ser-no-mundo, em que o relacionamento perceptivo se dirige
à coisa percebida, se orienta para ela, no uso, neste caso, no calçar. Aqui a
coisa, em sua significância mundana, presenta-se e apresenta-se, vindo ao
encontro, no uso, no manuseio, na lida, e, assim, é compreendida como o
ente que ela é não no horizonte do ser simplesmente dado (Vorhandenheit),
mas sim no horizonte da manualidade (Zuhandenheit). Essa compreensão de
ser operativa que se dá na realização mesma da ocupação (Besorgen)
pertence ao ser-no-mundo, à facticidade deste faktum primordial, que, por
sua vez, pertence à “cura” (Sorge), em que se funda a constituição ontológica
do homem, do humano, da humanidade.
11) A intencionalidade se abre, assim, como ser-no-mundo, que, por sua vez, se
abre como clareira do ser. Objeto enquanto “Objekt”, objeto enquanto
“Gegenstand” e coisa (Ding) enquanto coisa-de-uso que se dá no horizonte
da manualidade (Zuhandenheit) são como que gradações de concreção, de

274
Cf. Heidegger, Martin. Seminare (GA Band 15). Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1986, p. 372.
pregnância e de intensidade da clarificação da presença/vigência do ente na
clareira do ser. O objeto enquanto Objekt resulta de uma objetivação
teorética. É desmundanizado e desvitalizado. É algo como um nó em que se
dá a junção ou o entrelaçamento de diferentes fios de uma rede funcional. O
objeto enquanto Gegenstand é algo mundano, se constitui num lance de
abertura do mundo da vida. Na época da funcionalidade técnica, porém,
tanto o objeto enquanto Objekt quanto o objeto enquanto Gegenstand
tendem a se transformar em dispositivo275. Entretanto, o Gegenstand pode
se transformar em coisa (Ding). Neste caso, o Gegenstand se dá como
reunião da abertura de uma paisagem (Gegend). A intencionalidade agora

275
Na época da técnica a presença do ente já não é a presença como vigência no desvelado, não é nem
mesmo mais a presença do ente no sentido da presença-objetual, que se dá na e para o representar
(vorstellen), mas sim a presença do que está posto em função de uma disponibilidade, do que está a
postos para um desencobrimento desafiador (herausfordernden Entbergen), que explora, isto é, extrai
do encobrimento o que quer que seja, predispondo-o para ser processado, estocado, encomendado,
enfim, empregado. É o real como encomenda; a realidade como encomendabilidade, conforme o famoso
texto intitulado “Die Frage nach der Technik” (A questão da técnica), de 1953 (cfr. VA, p. 18-23). Neste
texto, Heidegger já advertia o fim do objeto (Gegenstand). O real já não é mais caracterizado em sua
presença como o que está contraposto ao ego como objeto de representação (Gegestand ou Objekt), mas
sim como o que está assegurado e sob controle, a postos para ser empregado, enfim, o que se dá numa
disponibilidade para uma efetividade (Bestand). Em uma conferência dada por Heidegger em 30 de
outubro de 1965, por ocasião de celebrações em honra de Ludwig Binswanger, que fora publicada em
1984 sob o título “Zur Frage nach der Bestimmung der Sache des Denkens” (Para a questão da
determinação da coisa do pensar), Heidegger adverte que, em sua consumação, a filosofia se dissolve em
ciências autônomas, da natureza e da história, e que a cibernética exerce em relação a estas um papel
unificador, não no sentido de uma ciência fundamental, mas sim no sentido de uma unidade
rigorosamente técnica. E acrescenta: “a cibernética é predisposta (eingestellt) para preparar e fabricar
(bereit- und herzustellen) a perspectiva sobre os processos comumente controláveis” (FC p. 32). No texto
de 1965, Heidegger retoma esta transformação ontológica. Ele diz: “entrementes, porém, a presença
daquilo que é presente perdeu também o seu sentido de objetividade. Aquilo que é presente diz respeito
ao homem de hoje como algo que se pode sempre empregar” (FC, p. 35). Ora, o que é empregável é
empregável para quem? Para os homens individuais, que enquanto sujeitos se contrapõem aos objetos?
A resposta é: não. É empregável para o ser-um-com-o-outro e o ser-um-para-o-outro da sociedade. Seria,
então a sociedade, o nós, o novo sujeito? Também não. Na verdade, o homem, quer como indivíduo, quer
como sociedade, quer, ainda como humanidade da civilização planetária da técnica, está ele mesmo posto
no pertencimento à disponibilidade. Não só no sentido de que ele mesmo e tudo o que é humano é posto
como recurso a ser explorado e empregado em vista da eficiência, mas também no sentido de que o
homem é chamado a participar deste modo de desencobrimento, empreendendo a empreitada da técnica
(cfr. VA, p. 22). Em um texto de 1969 (quando Heidegger tinha completado 80 anos), ele diz: “o homem
de hoje pensa que se faz a si mesmo e às coisas às sua volta. Não lhe chega nem lhe é acessível que a
encomendabilidade do acervo constante de encomendas em estoque não seja senão um destino velado
do que os gregos pensaram como a vigência do vigente” (MH, p. 54). O fim da objetividade é também o
fim da subjetividade? O que é da subjetidade no fim da subjetividade? Outra forma de subjetidade
substitui a subjetividade? Ou, com o fim da metafísica, chega ao fim também toda forma de subjetidade?
Em que tudo isso desemboca? No nada? Ou o declínio (Untergang) em que finda o dia ocidental de dois
milênios e meio é o acontecer de uma derrocada (Niedergang) ou é o apelo para uma passagem
(Übergang) que requer uma outra vigência do homem, aberta para uma outra parusia do ser?
aparece não mais como consciência de, mas sim como o orientar-se em um
mundo, para dentro das cercanias de uma paisagem, uma in-sistência para
dentro de uma região fenomenal mundana, enfim, intencionalidade é, aqui,
ser-no-mundo, sendo que este ser-em é habitar, cuidar. O Gegenstand, por
exemplo, um buriti, vem ao encontro como concentração pregnante do
horizonte de toda uma paisagem. O Gegenstand pode ser, neste sentido,
tanto uma coisa no sentido de ente natural () quanto no sentido de
ente produzido pela inventividade humana (). O Gegenstand passando
a ser coisa (Ding) já anuncia, pois, o horizonte do uso e da práxis276. Aqui a
coisa (res) é o real (realis) enquanto concerne ao homem em seu mundo,
tomado, agora, no sentido da contextura do cuidado (ocupação, solicitude).
O sentido de ser passa do que é dado ante à mão (Vorhandenheit) para o que
é dado à mão (Zuhandenheit). Em todo o caso, aqui, o Gegenstand aponta
para a existência humana enquanto ser-no-mundo, quer dizer, enquanto
cuidado (Sorge).
12) Na verdade, todo algo (etwas), seja ele objeto no sentido de Objekt, seja ele
objeto no sentido de Gegenstand, ou mais propriamente uma coisa (Ding),
se dá numa significância e, enquanto tal, pode fazer aparecer, em maior ou
menor grau de intensidade, o seu caráter mundano, tomando-se mundo,
aqui, no sentido de mundo da vida, ser-no-mundo. No entanto, nas
variedades do “algo” enquanto objeto Objekt, objeto Gegenstand e coisa
(Ding) há justamente uma gradação crescente no indicar e no deixar aparecer
mundo e vida (existência). A percepção natural de uma coisa, por exemplo,
um sapato, entrevê no sapato uma concentração de mundo, a saber, do

276
Os gregos tinham vários nomes para nomear estas “regiões de coisas”. Vejamos. Primeiramente, “tà
physiká”: as coisas da “physis”, do surgir e eclodir – são as coisas que surgem e eclodem por si mesmas,
“naturalmente”. Em segundo lugar, “tà poioumena”: as coisas da “poíesis”, da produção – são as coisas
que são produzidas, isto é, que são trazidas à presença, à medida que são feitas, manufaturadas,
fabricadas pelas mãos dos homens. Em terceiro lugar, vêm “Tà chrémata”: as coisas da “chréia”, do uso –
são as coisas enquanto estão sendo usadas, enquanto estão “à mão” (cheír). Estas, por sua vez, podem
ser tanto “tà physiká” quanto “tà poioumena”, contanto que sejam tomadas na perspectiva do uso, isto
é, da utilidade, do emprego (chresis), do prestar para isso ou para aquilo, da necessidade (chreón). Em
quarto lugar, “tà prágmata”: as coisas da “práxis” – as coisas que se dão na ação. O “prattein”, agir, se
diferencia do “poiein”, fazer, pôr em obra. É que, na ação, o fazer é um perfazer-se daquele que age, de
um modo ou de outro, num sentido ou noutro. O pôr em obra é, na verdade, um pôr em obra a si mesmo.
Na ação, o homem é o poeta e o poema de si mesmo, de sua liberdade.
mundo circundante, do mundo compartilhado da convivência, do mundo
próprio do seu usuário.
13) Na verdade, a palavra “coisa” oscila em sua significação. Pode significar, em
sentido amplo, qualquer coisa (res, aliquid), no sentido do ente, isto é, do
que não é nada. “Coisa” pode significar, em segundo lugar, o que está a cada
vez em causa, em questão, no cuidado humano: aquilo que nos concerne e
nos interessa e nos interpela deste ou daquele modo. Por fim, “coisa” pode
significar também aquilo que está ao alcance da mão e à mão, quer como
coisa da natureza, quer como coisa da inventividade humana277.
14) Na tradição ocidental, a coisalidade da coisa foi interpretada a partir da
categoria de substância. No nosso realismo ingênuo, esta interpretação,
defasada, faz aparecer a coisa como suporte de propriedades. Assim,
supomos a substância como o núcleo de uma coisa, imutável, resistente, que
é suporte para suas características casuais, os acidentes278. Prescindindo
mesmo da ingenuidade transcendental desse realismo, pode-se indagar se
esta interpretação da coisalidade da coisa seja tão natural e evidente quanto
pretende, se não seja antes um ataque a ela279. É uma interpretação ampla e
distanciada das coisas, que não as deixa aparecer na sua concretude,
espontaneidade e proximidade.
15) Uma outra intepretação da coisa a propõe como um “aisthetón”, isto é, como
o que é perceptível nos sentidos da sensibilidade, através das sensações.
Nesta interpretação, a coisa nada mais é do que a unidade de uma
multiplicidade do dado nos sentidos280. No entanto, por mais evidente que
parece ser esta interpretação, também parece não deixar ser a coisalidade
da coisa tal como a experimentamos no cotidiano. Na percepção natural
(cotidiana) das coisas jamais percebemos primeiramente uma afluência de
sensações, mas percebemos a cada vez esta ou aquela coisa em sua
significância mundana (por exemplo, não ouvimos ruídos, mas ouvimos o

277
Cf. Heidegger, Martin. Die Frage nach dem Ding, p. 3-5 (O que é uma coisa? P. 16-18).
278
Heidegger, M. A origem da obra de arte. Lisboa: 1977, p. 16.
279
Idem, p. 17.
280
Idem, p. 18.
cantar do pássaro, o roncar do motor de um carro, etc.). “Muito mais próximo
do que todas as sensações estão, para nós, as coisas”281.
16) Enquanto a primeira interpretação mantém a coisa muito distanciada de nós,
a segunda a faz vir excessivamente sobre nós. Em ambas as interpretações,
a coisa desaparece. “A coisa deve deixar-se no seu estar-em-si. Deve
apreender-se no caráter de consistência que lhe é própria”282.
17) Uma terceira interpretação da coisalidade da coisa na tradição ocidental
toma a coisa como matéria enformada (hýle + morphé). Nesta intepretação,
a coisa nos interpela através de seu aspecto (eidos). Mas também esta
interpretação contém um ataque à coisa em sua coisalidade. Ela é tirada do
âmbito da fabricação – neste sentido, ela corresponde à coisa enquanto
instrumento ou apetrecho – e estendida a toda e qualquer coisa, também à
coisa da natureza. É uma interpretação técnica da natureza.
18) Estes três modos tradicionais de interpretar a coisalidade da coisa acabam,
pois, barrando o acesso ao que pretendem deixar e fazer acessar. Não deixam
a coisa repousar no seu ser-coisa283.
19) Na última interpretação, o instrumento e seu ser, a sua instrumentalidade,
que reside, fundamentalmente, na serventia, serve como fio condutor para
se pensar a coisalidade da coisa.
20) A coisalidade da coisa se deixa ver, na imediatez do uso, como uma reunião
ou concentração de um horizonte do ser-no-mundo. O ser-em, porém, do
ser-no-mundo é, fundamentalmente, habitar e cuidar. É em habitando e
cuidando que o homem rege e sustenta a abertura de mundo na qual ele
insiste. Um exemplo de como uma coisa de uso reúne e concentra a abertura
de mundo na leitura que Heidegger faz de uma pintura de Van Gogh que
apresenta um par de sapatos de camponesa.
Da abertura escura do interior gasto do artefato
para calçar, fita-nos a canseira dos passos da labuta. No
peso rude e elementar dos sapatos está retida a
tenacidade do lento caminhar pelos sulcos que se
estendem até longe, sempre iguais, pelo campo, sobre o

281
Idem, p. 19.
282
Ibidem.
283
Idem, p. 23.
qual sopra um vento agreste. Sobre o couro, jaz a
umidade e a fertilidade do chão. Sob as solas, arrasta-se
a solidão do caminho do campo, pela noite que cai. No
artefato para calçar, pulsa o apelo calado da terra, a sua
silenciosa oferta do grão maduro e a sua inexplicável
recusa na desolada improdutividade do campo invernal.
Por este artefato passa o calado temor pela segurança do
pão, a silenciosa alegria de vencer uma vez mais a miséria,
o estremecimento na chegada do nascimento e o frêmito
ante a ameaça da morte. À terra pertence este artefato e
no mundo da camponesa ele está abrigado. É a partir
desta abrigada pertença que surge e se firma o próprio
artefato, para o seu repousar-em-si-mesmo.

Tudo isto, porém, possivelmente, vemo-lo no


artefato para calçar que está no quadro. A camponesa, ao
contrário, simplesmente calça os sapatos. Como se este
simples calçar fosse assim tão simples. Sempre que a
camponesa, já noite alta, sob um duro, mas saudável,
cansaço, tira os sapatos e, na madrugada ainda escura,
volta a lançar mão deles, ou sempre que, em dia de festa,
passa ao largo deles, tudo isto ela sabe sem considerar e
observar. O ser artefato do artefato consiste,
precisamente, na sua serventia. Mas esta mesma repousa
na plenitude do ser essencial do artefato. Denominamo-
la de confiabilidade. Graças a ela a camponesa, através do
artefato, é confiada ao apelo silencioso da terra; graças à
confiabilidade do artefato ela é ciente de seu mundo.
Mundo e terra estão ali para ela, e para aqueles que a seu
modo estão com ela, somente assim: no artefato. Nós
dizemos “somente” e, com isto, erramos. Com efeito, a
confiabilidade do artefato apenas dá ao simples mundo a
sua proteção e assegura à terra a liberdade de sua
contínua afluência284.

21) A coisa anuncia o mundo nela mesma. Ela, em seu caráter de confiabilidade,
repousa na familiaridade do mundo. Não só isso. Ela deixa ser o embate de
mundo e terra. O embate ou combate é constituído pela reunião de
opostos285. Mundo, aqui, não é a simples reunião das coisas que ocorrem,
nem é a totalidade das coisas reais ou possíveis, contáveis ou incontáveis,
conhecidas ou desconhecidas. Também não é uma mera moldura espaço-
temporal para as coisas. Nós dizíamos, anteriormente, que a vida está
sempre acontecendo, que o mundo está sempre se tornando evento. O

284
A origem da obra de arte. Tradução diferente das versões editadas.
285
Cf. Heráclito: o Hen Panta (Um: Tudo) como Pólemos (combate, confrontação) e como Lógos (colheita,
reunião).
mundo está sempre mundificando. E este mundificar do mundo não é nunca
apreensível a modo de objeto. Contudo, em tudo que nós apreendemos, em
cada percepção, de modo concomitante com a apreensão, dá-se o instaurar-
se do mundo. Com efeito, a coisa que a apreensão da percepção apreende é,
cada vez, apreendida como coisa do mundo. O mundo não é objeto da
apreensão, mas é o horizonte no qual e à mercê do qual eu posso captar a
coisa enquanto tal. Ademais, o mundo é sempre mundo da vida: é historial.
O mundo é prenhe de sentido. Nele vibram as experiências humanas:
nascimento e morte, alegria e dor, desgraça e benção, vitória e derrota,
miséria e abundância. O mundo está acontecendo ali onde estas
experiências, ou seja, as experiências da vida, estão se dando e isto de modo
historial. Onde estão em jogo as decisões essenciais da nossa história, onde
estas são tomadas ou deixadas, assumidas ou questionadas, ali o mundo está
se dando. O mundo é a abertura que se abre dos vastos caminhos das
decisões simples e essenciais no destino historial de um povo. O mundo só
surge com o ser historial do homem. Entretanto, o homem, assim como todos
os seres vivos e tudo o que surge e vem à luz a partir do chão, onde estão
radicados e fundados, é filho da terra. A terra fala do mistério da origem. Faz
surgir e vir à luz gratuitamente pedras e plantas, animais e homens e, como
se tomada de pudor e humildade, se retrai em si mesma. Numa tal ocultação,
porém, a terra recolhe a raiz de todas as coisas e lhes dá guarida e proteção.
22) Mundo e terra são essencialmente diferentes um do outro e, todavia,
inseparáveis. Fundamentalmente, está sempre vigorando um combate entre
mundo e terra. Com efeito, o mundo aspira, no seu repousar sobre a terra, a
sobrepujá-la. O mundo quer a abertura, o desvelamento, a claridade. A terra,
porém, como aquela que gera e dá guarida, quer conter em si o mundo, quer
retê-lo, e ama o esconder-se, a ocultação, o velamento, a obscuridade do
mistério. Mas é por graça deste combate que o mundo permanece mundo e
a terra permanece terra. Neste combate eles não se destroem, mas cada um
faz surgir o outro na sua identidade e diferença. De fato, um precisa sempre
do outro. A terra não pode renunciar ao aberto do mundo, caso ela queira
permanecer o que é: a matriz, a geratriz e a protetora de tudo o que vem à
luz no aberto do mundo. Por sua vez, o mundo não pode nunca libertar-se da
terra, carece de sempre de novo lançar raízes na obscuridade originária de
onde provém e para onde retornam todos os nossos empenhos e
desempenhos historiais. Em cada coisa está se dando o combate de mundo
e terra. Quanto mais forte for este combate, tanto maior a intimidade dos
combatentes; e tanto melhor para coisa: pois a coisa vige a partir da vibração
do acontecimento do mundo e a partir da geração e da proteção da terra.
23) O homem sustenta a abertura da clareira do ser na qual ele insiste no modo
de um habitar e cuidar. Habitar é o modo como os mortais são e estão sobre
a terra sob o céu, vivendo em comunidade, em face dos deuses286. Mortais
são os homens, porque morrem. Morrer, aqui, porém, é ser capaz da morte
como morte. Por ter que morrer um dia, o homem tem que morrer todo o
dia, isto é, tem que sustentar a mortalidade que marca a sua vida, a cada
momento. Os mortais habitam à medida que salvam a terra, acolhem o céu
como céu, aguardam os deuses como deuses, procuram se tornar capazes da
morte como morte. Habitar é resguardar a abertura deste quarteto.
Habitando, o homem aprende a morar e a demorar na proximidade das
coisas287.
24) A coisa vige como a reunião integradora do quarteto. Tomemos o
exemplo de uma jarra.Como se mostra a coisalidade da coisa, no caso da
coisa-jarra?
25) Ali está a jarra, recém saída das mãos do oleiro. Ela subsiste em si e por si
mesma só porque, na pro-dução, ela foi con-duzida a ser e estar em si
mesma. O oleiro moldou a jarra com a argila que fora tirada da terra e
preparada para a moldagem. A jarra é feita de argila. A argila ganhou uma
consistência e uma forma e, graças a isto, a jarra pode pousar, seja sobre o
chão, seja sobre a mesa ou em um banco. A jarra é uma coisa, como
receptáculo. A jarra fora produzida por ser e para ser este receptáculo que
ela é destinada a ser. A pro-dução intro-duz a jarra no seu modo próprio de
ser. Mas, uma vez produzida a obra, a produção deixa a coisa ser o que ela é,

286
Heidegger, Martin. Construir, habitar, pensar. In: Ensaios e Conferências, p. 128-129. (Texto de 1951).
287
Idem, p. 129-131.
deixa-a subsistir em si e por si mesma. A coisa como obra produzida, porém,
só vigora plenamente em seu ser quando posta em uso. Um receptáculo é
determinado como tal a partir do seu uso: o receber. É por isso que o oleiro,
ao moldar a argila, deu à sua obra a sua forma devida, forma esta
caracterizada pelo vazio. Com efeito, o vazio da jarra está em função da sua
serventia: do receber. O vazio da jarra recebe, acolhendo e retendo em si
mesmo o que nele se vaza. O receber da jarra é, por conseguinte, também
um doar. A jarra cumpre sua serventia em receber, mas este cumprir uma
serventia, recebendo, é já o modo como a jarra se doa em seu ser. O doar-se
da jarra recolhe em si o receber da vaza no seu duplo significado. A doação
da jarra acolhe e recolhe a doação da vaza. A doação da vaza pode ser uma
bebida. Então ela dá água, dá vinho para beber:

“Na água doada, perdura a fonte. Na fonte


perdura todo o conjunto das pedras e todo o
adormecimento obscuro da terra, que recebe chuva e
orvalho do céu. Na água da fonte, perduram as núpcias
de céu e terra. As núpcias perduram no vinho que a fruta
da vinha concede e no qual a força alimentadora da terra
e o sol do céu se confiam um ao outro. Na doação da
água, na doação do vinho perduram, cada vez, céu e terra.
A doação da vaza é, porém, o ser-jarra da jarra. Na
vigência da jarra, perduram céu e terra.

A doação da vaza é bebida para os mortais. É ela


que lhes refresca a sede. É ela que lhes refrigera o lazer.
É ela que lhes alegra os encontros, a convivência. Mas, às
vezes, o dom da jarra se doa na e para uma consagração.
Desta vez, a vaza da sagração não mata a sede, acalenta
a celebração da festa, no aconchego do alto. Aqui a
doação da vaza nem se doa numa tenda nem se faz
bebida dos mortais. Agora a vaza se torna poção dedicada
aos imortais. A doação da vaza encontra, na poção, o
dom, em sentido próprio. É no dom da poção consagrada
que, ao vazar, a jarra vive, como doação dispensatriz de
dons... Consumado na plenitude de sua vigência, pensado
no apelo de sua provocação e dito na fidelidade de sua
eloquência, vazar significa: oferecer, sacrificar e, assim,
doar...

Na doação da vaza, no sentido da bebida, vivem,


a seu modo, os mortais. Na doação da vaza, entendida,
como oferenda, vivem, a seu modo, os imortais, que
recebem, de volta na doação da oferta, a doação da
dádiva. Na doação da vaza, vivem, cada qual de modo
diferente, os mortais e os imortais. Na doação da vaza,
vivem terra e céu. Na doação da vaza, vivem, em
conjunto, terra e céu, mortais e imortais. Os quatro
pertencem, a partir de sua união, a uma conjunção.
Antecipando-se a todos os seres, eles se conjugam numa
única quadratura de reunião.

Na doação da vaza, vive a simplicidade dos


quatro”288.

26) A partir desta descrição fenomenológica, na qual aparece, a partir da coisa-


jarra, a quadratura do quarteto formado por céu e terra, mortais e imortais,
o que é o ser-coisa da coisa? Nossa resposta não pode ser que um aceno: a
coisa é coisa na medida em que coisifica. Mas o que é coisificar? É recolher e
reunir, numa unidade simples, a conjunção de uma multiplicidade. A coisa
vige e vigora reunindo, conjugando, numa unidade simples, as diferenças. A
coisa também acontece e este acontecer é um recolher, reunindo e
conjugando. No fazer-se evento, a coisa se apropria da quadratura e assim se
torna ela própria. A coisa é, enquanto nela demora, perdura, a unidade
simples dos diferentes: céu e terra, mortais e imortais:
Coisificando, a coisa deixa perdurar a união dos
quatro, terra e céu, mortais e imortais, na simplicidade da
sua quadratura, que a partir de si se unifica.

A terra é o sustentáculo da construção, a


fecundidade na aproximação, estimulando o conjunto
das águas e dos minerais, da vegetação e da fauna.

Quando pensamos terra, já pensamos também,


caso pensemos, nos outros três, a partir da simplicidade
dos quatro.

O céu é o caminho do sol, o curso da lua, o brilho


das constelações, as estações do ano, luz e claridade do
dia, a escuridão e densidade da noite, o favor e as
intempéries do clima, a procissão de nuvens e a
profundeza azul do éter.

288
M. HEIDEGGER, VA, p. 164-166.
Quando dizemos céu, já pensamos também, caso
pensemos, nos outros três, a partir da simplicidade dos
quatro.

Os imortais são acenos dos mensageiros da


divindade. É na regência encoberta da divindade, que
Deus aparece, em sua vigência essencial, que o retira de
qualquer comparação com o que é e está sendo.

Quando invocamos os imortais, já pensamos


também, caso pensemos, nos outros três, a partir da
simplicidade dos quatro.

Os mortais são os homens. São assim chamados


porque podem morrer. Morrer significa: saber a morte,
como morte. Somente o homem morre. O animal finda.
Pois não tem a morte nem diante de si, nem atrás de si. A
morte é o escrínio do Nada, do que nunca, em nível
algum, é algo que simplesmente é e está sendo. Ao
contrário, o Nada está vigindo e em vigor, como o próprio
ser. Escrínio do nada, a morte é o resguardo do ser.
Chamamos aqui de mortais os mortais – não por
chegarem ao fim e finarem sua vida na terra, mas porque
eles sabem a morte, como morte. Os homens são mortais
antes de findar sua vida. Os mortais são mortais, por
serem e vingarem, no resguardo do ser. São a referência
vigente ao ser, como ser” .

27) Aqui a investigação fenomenológica da coisa (Ding) toca a coisa mesma


(Sache selbst), isto é, a coisa (Sache) do pensar. A coisa mesma não é nem
objeto Objekt nem objeto Gegenstand nem coisa (Ding). A coisa mesma
aparece aqui como a pregnância da totalidade una e quádrupla em que, a
partir da coisa, de sua coisificação, o mundo se mundifica. A coisa mesma é
a plenitude de intensidade da clarificação da clareira do ser. É o viger e o
perdurar do desencobrimento e do encobrimento que se dá com a clareira.
Evoca não só o desencobrimento do quarteto, mas, nele e com ele, o
encobrimento que vige no céu e na terra, na morte e na dimensão dos deuses
(mensageiros da deidade, que, ela mesma, se retira de toda a comparação).
28) Nessa fenomenologia, não atua em primeiro plano a consciência e sim a
presença entendida como dinâmica de presentificação de ser e não ser a
partir do sendo. O fenômeno se dá, então, como a coisa mesma, no sentido
do que evoca, provoca, interpela o pensar: o simples e uno mistério de ser
na sua duplicidade de desencobrimento e encobrimento – ou, se quisermos,
a vida em seu insondável retraimento.
29) Assim, do objeto Objekt para o objeto Gegenstand para a coisa e da coisa
para a coisa mesma abre-se a imensidão cada vez mais vasta do ser
(distância). Mas também se dá cada vez mais o recolhimento na unidade
simples (proximidade). Tudo se recolhe no fundo-abismo das possibilidades
de ser: na vida em seu inesgotável retraimento (nada). Tudo se torna sempre
e cada vez mais nascivo, originário, na novidade e no frescor do que se dá em
sua unicidade e perdura a cada vez.
30) Somos conduzidos, assim, ao Ereignis, à parusia do ser. A parusia (Ereignis)
vige e se essencializa (west) como a originária (Er-) manifestação e auto-
mostração (-äugnis) do mistério de ser, como mistério, isto é, como abertura
que deixa e faz pressentir o encobrimento, o velamento, a oclusão, a fuga,
no dar-se da vigência do presente, que recolhe e acolhe em si, a vigência
retraída do passado e do futuro. Parusia (Ereignis) vige, pois, como a mira
originária (Ur-äugnis), que deixa e faz aparecer, na coincidência de ser e
pensar, a aberta (Lichtung) da presença (Da-sein), e que, assim, deixa e faz o
homem morar na verdade de ser, entre desencobrimento (mundo) e
encobrimento (terra). É o mistério de ser que nos fita do fundo de tudo o que
emerge e se mostra e do fundo de nós mesmos. É o que nos interpela para o
pensar. No pensamento nós apenas correspondemos a esta interpelação.

Pequenos caminhos, que conduzem da coisa ao mundo

Segundo os limites desta nossa reflexão, somos constrangidos a percorrer


pequenos caminhos. Pobres caminhosinhos – “veredas” do pensamento, no
“grande sertão” da vida. Mas não os menosprezemos. Como acabamos de dizer,
pode ser que eles nos instruam ainda mais do que se, de modo ainda despreparados,
percorrêssemos os grandes.
1.1. A coisa como instrumento

Tentemos nos aviar, pois, num caminho para determinar a coisalidade da


coisa. Já decidimos tomar a palavra “coisa” no seu sentido mais restrito e na sua
acepção mais ordinária e cotidiana, isto é, como simples coisa e não como
sinônimo de ente como tal, ou seja, de algo que não é nada. Também excluímos,
aqui, a acepção de coisa como “causa”, evento que põe algo em questão, que
solicita e provoca uma responsabilização. Vamos ser mais rasteiros. Estamos
tentando dizer o que constitui a coisalidade das coisas da nossa lida e labuta
cotidiana, as que se encontram ao nosso redor em nosso mundo circunstante. Trata-
se, de imediato, numa determinação ainda mais restrita, das coisas inanimadas e
das coisas de uso.

Tentando responder à nossa pergunta sobre a coisa percebida na percepção


natural acabamos nos deparando com a mera coisa, com a coisa desmundanizada,
ou seja, com a coisa entendida como ente simplesmente dado no espaço e no
tempo, como suporte de propriedades. Com isto nós acabamos perdendo o mundo
de vista. A coisalidade da coisa foi determinada a partir da mera coisa, a partir de
um processo de objetivação e de generalização. Deste modo, nós perdemos de vista
o que é percebido na percepção cotidiana da ocupação. Não vimos que estas coisas,
que nos vem ao encontro no mundo da vida se dão a modo de instrumentos, de
coisas de uso, de apetrechos.

3.1.1. O percebido do perceber como coisa de uso da lida cotidiana

O grande desafio para a nossa reflexão em torno da coisa como o intentum


da intentio, que é o perceber, é ater-nos àquilo que se mostra e ao modo como se
mostra. Para isto temos de tentar tematizar o que se dá à percepção no seu modo
mais natural e cotidiano de efetuação. O que propriamente percebemos quando, no
cotidiano, em meio às ocupações da lida e da faina diária, percebemos as coisas?

Uma resposta a esta pergunta, que se apresenta logo de cara, poderia ser
extraviante para nós. Trata-se de dizer que, no seu imediato vir ao nosso encontro
no horizonte do mundo da experiência da vida, as coisas são aquilo que nós temos
diante de nossa vista, que podemos ouvir, tocar, etc. A coisa seria o perceptível
através dos sentidos, o sensível da nossa sensibilidade. Até aí nada de errado.
Porém, uma tentação seria dizer que a coisa nada mais é do que uma unidade de
uma multiplicidade de dados sensoriais ou sensações. Esta unidade pode ser uma
soma, uma síntese, ou ainda outras espécies de totalidade. Contudo, se formos nos
confrontar com a nossa experiência efetiva das coisas reais, com a nossa vivência
cotidiana da percepção e com aquilo que nela é vivenciado, não encontraremos
algo como a unidade da multiplicidade de sensações. Jamais, no dar-se imediato
das coisas, nós percebemos, primordial e propriamente, uma afluência de
sensações. Nós não ouvimos, por exemplo, sons ou ruídos, ouvimos a chuva que
cai sobre o telhado fazendo um barulhinho bom, ouvimos o vento furioso a
envergar as árvores lá fora, ouvimos um samba, que toca na casa do vizinho ao
lado, numa tarde de domingo, ouvimos o ônibus que passa às cinco e meia da
manhã começando mais um dia de trabalho, numa plena e penosa segunda-feira.
Seria preciso uma atitude teorética e abstrata para ouvir meras sensações acústicas.
Isto significa que, muito mais próximo do que todas as sensações estão, para nós,
as próprias coisas. Mas esta proximidade é enigmática. Se queremos entendê-la,
será preciso deixar que a coisa seja o que ela é, que ela repouse no seu ser-em-si e
se mostre como aquilo que ela é289.

Como já vimos, a percepção natural cotidiana se dá, usualmente, em meio à


ocupação, ao lidar no mundo com as coisas que se dão como coisas de uso,
instrumentos, dentro do nosso mundo circunstante. Esta lida já se dispersou em
uma multiplicidade de modos de ocupação: produzir, arranjar, consertar, melhorar,
tratar, cultivar, empreender, e assim por diante. As coisas que nos são temáticas,

289
Cfr. M. HEIDEGGER, Holzwege (HW), Vittorio Klostermann, Frankfurt am Main, 1994, p. 10-11.
agora, são as coisas que usamos, produzimos... Queremos, pois, determinar a
coisalidade destas coisas. Queremos determinar o ser deste ente que, certamente,
não é um ente simplesmente dado, mas um ente que está à mão, no uso, na
produção, no cultivo, no trato, etc. Aqui, devemos nos abster de tomar o caminho
da compreensão do ser destas coisas como entes simplesmente dados, como
substâncias, como suportes de propriedades, ou seja, como entes dotados do caráter
de substancialidade, materialidade, extensão, duração, pois tais categorias já
supõem uma desmundanização destas coisas, uma modificação radical no modo
de compreendê-las no seu ser coisa, compreensão que é sempre derivada, menos
originária.

Os gregos chamavam as coisas que se nos dão, que vêm ao nosso encontro
na lida cotidiana, /prágmata, ou seja, aquilo com que se lida na
práxis, no empenho do viver, ou seja, na ocupação. Elas não são meras
coisas. São coisas de uso, são instrumentos, tomando-se esta palavra num sentido
bastante amplo. Aqui, por instrumento designamos todo e qualquer ente que vem
ao encontro na ocupação290. No nosso cotidiano, estamos continuamente fazendo
recurso a instrumentos, ou seja, àquilo que podemos usar desta ou daquela forma,
àquilo que produzimos deste ou daquele modo. Encontramos, em nosso mundo
circunstante, instrumentos dos mais diversos tipos: coisas que servem para
produzir outras coisas; coisas que servem para suprir nossas necessidades básicas:
alimentar-se, vestir-se, morar; coisas que servem para escrever, para se locomover,
para se divertir, para se informar. Tudo aquilo que, de certo modo, serve para isto
ou para aquilo cai debaixo do nosso conceito de instrumento, não só as
ferramentas.

Como é que se dá a percepção de um instrumento? Não se dá, caso por


percepção entendamos a visualização de algo simplesmente dado. Se dá, à medida
que o instrumento eu o percebo propriamente só no uso dele291. Ou seja, perceber

290
Cfr. M. HEIDEGGER, SZ, 66-72.
291
Todo o comportar-se com o, à medida que é intencional, visa o ente, de algum modo. Visando-o,
compreende-o e interpreta-o como isto ou aquilo. Todo comportamento, em seu caráter intencional, é,
pois, um ter-em-mira-alguma-coisa, uma visão ou vidência, que deixa vir à luz a coisa na sua significância.
O lidar com o instrumento, deste modo, não é cego, mas possui sua própria visão. A vidência da lida com
um instrumento não significa tê-lo diante de mim como uma ocorrência, visualizá-
lo como tal, descrever suas configurações ou suas propriedades. Perceber um
instrumento significa “senti-lo” no seu próprio uso. Assim, se vou a uma
concessionária e observo um carro que está ali na vitrine eu ainda não o percebi
propriamente, mas só de modo impróprio. Mas se faço um “test-drive” já começo
a percebê-lo no próprio uso. Portanto, o modo próprio de perceber uma coisa de
uso é usando-a.

3.1.2. Instrumento, totalidade instrumental, totalidade referencial e


conjuntura.

Ademais, eu nunca percebo pura e simplesmente um instrumento. A rigor,


um instrumento nunca “é”. É que o instrumento só pode se dar em conexão com
outros instrumentos, como pertencente a um todo instrumental ao qual ele
pertence. Lápis, por exemplo, pertence a uma totalidade instrumental, que é o todo
dos instrumentos que servem para escrever ou, quiçá, para desenhar. Instrumentos
para escrever: lápis, caneta, papel, borracha. Todo instrumento pertence a uma
totalidade instrumental; remete para outros instrumentos, requer outras coisas que,
por natureza, o acompanham. Martelo chama prego. Martelo e prego chamam
madeira. A minha percepção está sempre guiada, no uso, para as conexões
instrumentais; ela sempre apreende a coisa de uso na sua singularidade a partir da
pluralidade instrumental que compõe a totalidade à qual ela pertence.

Todo instrumento é “algo para...”. É a partir do ser-para que é constituído o


conjunto utensiliário. Utensílios de cozinha: panelas, frigideiras, facas, colheres,
garfos. Entra neste conjunto aquilo que serve para preparar os alimentos. Numa

as coisas do nosso mundo circunstante, nós chamamos de circunvisão. Esta difere, radicalmente, da
vidência da observação da coisa como mera coisa, ou seja, como ser simplesmente dado, a qual nós
chamamos de visualização. Já a vidência daquilo que constitui o dar-se da vida mesma no seu aparecer
originário, nós chamamos de transparência. Cfr. M. HEIDEGGER, SZ, 69.
totalidade instrumental um instrumento sempre remete a outro, algo sempre possui
uma referência para com algo. É a partir da pertinência a outros instrumentos que
eu apreendo um instrumento. Instrumentos para escrever: caderno, caneta, lápis,
borracha, computador, mesa, luminária, quarto. Como? Quarto? Isto pode causar
estranheza, mas o quarto aqui não é o “vazio entre quatro paredes” preenchido por
muitas coisas de uso. O quarto, enquanto meu ambiente de trabalho, enquanto o
ambiente onde eu estudo e escrevo é o primeiro que me vem ao encontro dentro
de meu mundo circunstante, no meu empenho, na minha ocupação com o escrever.
É a partir dele que as coisas estão arranjadas deste ou daquele modo, para servir a
isto ou aquilo. Antes de perceber instrumentos singulares eu percebo tais arranjos
dentro do meu ambiente de trabalho, onde me movo em minhas ocupações.

O lidar com as coisas não as apreende como coisas que apenas ocorrem num
espaço vazio e homogêneo por elas preenchido. Percebe as coisas, os arranjos de
coisas e os espaços de modo diferenciado, pleno, concreto a partir do interesse do
próprio empenho. Quanto menos eu olho um instrumento de fora, tanto mais eu o
percebo. Quanto mais íntima é a minha relação com um martelo, por exemplo,
mais ele se descobre para mim no seu uso. “Ter intimidade com uma coisa”
significa ter habilidade no saber usá-la. É no manuseio que a coisa se descobre
propriamente para mim. O instrumento se descobre na sua “manualidade”, ou seja,
como o que se dá propriamente “estando à mão”. O ser-em-si do instrumento só se
revela quando eu o percebo operativamente, no uso e na vida. O ver de fora o
instrumento, ou seja, fora da ocupação com ele, o visualizá-lo teoricamente não
descobre propriamente o instrumento na sua instrumentalidade, ou seja, a partir do
seu caráter de ser “à mão”. Contudo, o lidar com a coisa não é cego: tem a sua
própria visão, uma visão que é circunvisão. A circunvisão dá, ao lidar com o todo
instrumental, a necessária segurança, a habilidade no manuseio, a praticidade no
uso. É que a atitude prática não é “ateórica”, no sentido de ser desprovida de visão.
A práxis possui sua própria teoria: o agir possui sua própria visão; e isto não em
virtude da aplicação de um saber teorético, mas graças à teoria que faz parte da
própria práxis, teoria que é operativa, que não precisa ser tematizada reflexiva ou
teoreticamente para ser atuada. A práxis não é desprovida de teoria, da mesma
forma que a teoria não é desprovida de práxis, de ação, de empenho, de ocupação.

O instrumento é percebido de modo a-temático, pre-reflexivo, pre-teorético;


dito de modo positivo: é percebido operativamente. Quanto melhor um
instrumento funciona, menos ele “dá na vista”. Quando estou fazendo uma obra
com determinadas ferramentas, o fazer me leva a concentrar-me na obra e não nas
ferramentas. Uma ferramenta é útil à medida que se retrai como tal e deixa aparecer
somente o processo do fazer da obra. O que primeiro está à mão não deve ser a
ferramenta, mas a obra. É ela que sustenta o todo de referências das ferramentas.

Ademais, toda obra, que vem à luz num produção, possui um “para que”. O
sapato é produzido para ser calçado, a roupa para ser vestida, a casa para ser
habitada, o relógio para se ler o tempo, e assim por diante. Tudo o que entra na
configuração da obra está a serviço do seu “para que”. Peso ou leveza, dureza ou
maciez, forma e cor, tudo se define em vista do melhor uso. Aquilo que, numa
visualização da coisa como um ente simplesmente dado, se define como
propriedade, numa visão operativa da produção da coisa se mostra como
peculiaridades exigidas pelo próprio uso.

Toda obra tem, outrossim, o seu “de que”. A produção de uma obra já é
sempre o emprego de algo em algo. Toda obra nos remete aos “materiais” de que
é feita: o sapato é de couro; a casa é de tijolo; o livro é de papel; o armário é de
metal. Tudo isto nos remete à natureza: aos animais e plantas, à terra com seu solo,
com seus metais, com suas florestas, com seus rios e mares, ao fogo e ao ar. A
natureza se descobre, no cotidiano, a partir do mundo da vida, ou seja, a partir das
ocupações através das quais nós produzimos aquilo que é necessário para o nosso
uso. A mata se descobre como reserva florestal, a montanha como pedreira, o rio
como represa, o vento como o que move os moinhos e as velas. A natureza se
mostra, portanto, em certa medida como o que também está à mão. Contudo, ela
nunca é só isto. Na sua grandeza, na sua imprevisibilidade, na sua imponência ou
violência, ela encanta, fascina, ao mesmo tempo que apavora e faz tremer.
Toda obra é, ademais, algo para ser usado por alguém. Em situações
meramente artesanais, a obra possui uma referência ao portador ou ao usuário,
muitas vezes personalizada. Na produção em série esta referência não desaparece,
mas ela é indeterminada. Com a obra se revela não somente a natureza, mas
também o mundo da convivência humana, o mundo partilhado, doméstico ou
público. Uma roupa: é produzida para homem ou mulher, para criança ou adulto.
Uma casa numa vila popular e uma mansão no setor “nobre” de uma cidade já nos
dizem algo a respeito de quem ali vai habitar.

O ser-em-si do instrumento ou da obra, portanto, não consiste na sua


materialidade e na sua forma, embora matéria e forma sejam determinações da
coisa que só se tornam compreensíveis a partir da intencionalidade da produção.
Com efeito, há de se interpretar matéria e forma a partir da dinâmica do ser da
manualidade, ou seja, da instrumentalidade do instrumento e não vice-versa. É a
serventia da coisa que define que matéria e que forma ela deve ter. Um cântaro,
um machado, um par de sapatos vão definir, a partir de sua serventia, que
configuração e que qualidades a coisa deve ter e de que materiais ela deverá ser
feita. Assim, o cântaro deve poder ser um recipiente impermeável; o machado
precisa ser duro e cortante; os sapatos, macios e anatômicos em relação aos pés.
Matéria e forma não constituem, de modo algum, determinações originais da mera
coisa, mas da coisa enquanto coisa de uso, enquanto coisa que tem esta ou aquela
serventia, enquanto instrumento292.

A mera coisa é a coisa despojada do seu caráter de serventia, de instrumento


ou de obra. A mera coisa é um instrumento despojado da sua instrumentalidade293.
É a coisa compreendida não mais no seu horizonte do seu “estar à mão”, da sua
manualidade, mas a coisa entendida no horizonte da compreensão do ser como
ente simplesmente dado. Mas, como é que o instrumento perde a sua
instrumentalidade e se mostra como algo de simplesmente dado?

292
Cfr. M. HEIDEGGER, HW, 11-14.
293
Cfr. M. HEIDEGGER, SZ, 72-76.
Na ocupação, o ente que está imediatamente à mão pode ser encontrado como
algo que não é passível de ser empregado ou como algo que não se acha em
condições de cumprir seu emprego específico. Aquela ferramenta está danificada,
aquele material é imprestável. Estou usando um instrumento e, de repente, ele se
estraga. A surpresa faz-me ver o ente que está à mão como um “troço” queaí está.
Ao usá-lo sempre talvez ele nem dava na vista. Agora ele se mostra como o que
não pode ser mais usado. Uma ponte, por exemplo: eu a usava todos os dias para
ir à escola e, neste uso, ela nem se fazia notar; de repente ela cai e ali está ela na
sua impossibilidade de uso. Talvez somente agora eu me dê conta de sua
(in)consistência, de sua espessura, de sua configuração, etc. A partir desta
experiência o instrumento se mostra como uma ocorrência.

Outra possibilidade é a de que algo que me é necessário, agora, me vem a


faltar. Eu sou pressionado pela situação a usá-lo, mas ele não está ao meu alcance,
não me está à mão. Por exemplo: estou viajando de carro pela estrada e o pneu
fura; procuro o “macaco” no porta-malas do carro e não o encontro. Mais uma vez
eu faço a experiência do instrumento como ocorrência; só que não na sua presença,
mas na importunidade da sua ausência.

Uma terceira possibilidade é a de que, enquanto me ocupo com isto ou aquilo,


uma outra coisa me impede de realizar bem o meu trabalho. Aquela coisa me
atrapalha, ela se intromete no meu afazer, perturbando-o. Eu tento me livrar dela,
mas ela sempre de novo me atrapalha. Por exemplo: um cordão que se enrosca no
pneu da bicicleta, uma pedra no sapato, etc. A coisa se mostra na sua impertinência
e, a partir daí, se dá como algo simplesmente dado.

No cotidiano da nossa língua brasileira chamamos a coisa de uso que aparece


no seu ser simplesmente dado de “troço”. Este termo designa a mera coisa a partir
do horizonte da coisa de uso, do instrumento na sua instrumentalidade. A mera
coisa, aqui, ainda não é enfocada e tematizada a partir de uma impostação teorética,
como a mera coisa que se torna objeto da pesquisa científica. Aqui, a mera coisa,
embora já se desmundanize, ainda tem mundo, pois aparece como um elemento
perturbador no mundo da vida. Lá, a mera coisa se desmundaniza, perde a
significação vital que ela tinha. Aqui, se dá uma perturbação da referência da coisa
enquanto coisa de uso. Lá, a coisa perde suas referências instrumentais e se dá
apenas como uma substância com propriedades, relações e funções.

Na não-surpresa, não-importunidade, não-impertinência a coisa de uso está


em seu ser-em-si. O ser-em-si da coisa de uso, do instrumento, consiste na sua
realização plena e normal de suas referências: do seu “ser para”, do seu “ser para
isto”, do seu “ser feito disto”, do seu “ser para o uso deste ou daquele”. Assim, o
que nós chamamos de coisa se abre em diversas direções, remete para uma
totalidade instrumental, remete para o uso, para o material, para o usuário. O ser-
em-si do instrumento é um tal abrir-se no uso.

A coisa de uso é algo que se dá dentro do mundo. Dizer isto não é o mesmo
que dizer que a coisa de uso ocupa um lugar no espaço homogêneo de um mundo
que é compreendido como pura extensão. O instrumento se dá dentro do mundo.
O mundo é o contexto “em que” nós já sempre vivemos. O instrumento só pode
ser encontrado e usado como tal porque, com tal encontro e uso, já se abriu um
mundo para nós. É o mundo que permite que se instaure uma totalidade
instrumental, uma totalidade referencial, uma espacialização toda própria das
coisas de uso no modo como elas são, sempre de novo, arranjadas, arrumadas.

Antes de falar do mundo, porém, examinemos ainda o que quer dizer esta
“totalidade referencial” aberta no contexto do mundo294. Toda coisa de uso abre
uma totalidade de referências: ela remete a um conjunto utensiliário, remete a
possibilidades de uso, remete aos usuários, remete a materiais usados na sua
produção. Ao apreender uma coisa de uso como tal, implícita e operativamente eu
já apreendo também esta totalidade referencial. Com outras palavras, eu já
apreendo implicitamente o mundo no qual esta coisa de uso surge. Assim, ao ver
uma cama, uma rede de dormir, um tatami, cada uma destas coisas me falam de
mundos distintos, onde o dormir se dá em modalidades culturais diferenciadas.
Uma lança feita com um pau e uma pedra lascada me fala de um mundo diferente
do de uma metralhadora. As coisas concentram, enquanto nós de relações

294
Cfr. M. HEIDEGGER, SZ, 83.
referenciais, o mundo em si mesmas, ao mesmo tempo em que o insinuam. Toda
coisa remete a, se refere a, e isto de modo operativo e implícito.

Um tipo de instrumento, porém, tem a possibilidade de tornar explícitas as


suas referências: trata-se do sinal. Os sinais são instrumentos peculiares e, de certa
forma privilegiados, pois possuem o caráter instrumental específico que consiste
em mostrar. A ação de mostrar, porém, difere de caso para caso, de acordo com o
tipo de sinal. Uma coisa pode mostrar como vestígio, como resto, como
monumento, como documento, como testemunho, como símbolo, como expressão,
como manifestação, como significado, como anúncio, como prenúncio, e assim
por diante. O sinal tem o poder de fazer ver explicitamente o que se dá
implicitamente numa circunvisão. Assim, os sinais de trânsitos chamam a atenção
para o que se dá ao longo de um percurso, aquilo de que se deve precaver, aquilo
de que se pode dispor. Ao dar seta, enquanto dirijo, faço ver ao outro a direção que
meu veículo está para tomar e ajudo-o a orientar-se também ele naquele espaço de
tráfego. Sinal é, portanto, um instrumento que, explicitamente, eleva um todo
instrumental à circunvisão, de modo que a determinação mundana do manual se
anuncie conjuntamente. Por isto o sinal, ao invés dos outros instrumentos, deve dar
na vista, deve causar surpresa, deve chamar a atenção para si, a fim de cumprir a
sua função. Contudo, só podemos compreender os sinais porque vivemos em um
mundo circunstante, em um mundo partilhado da convivência, em um mundo
próprio carregado de sentido humano, que já sempre foram compreendidos como
sendo o “nosso mundo”295.

O que está “à mão”, o manual, vem ao encontro dentro do mundo296. Em toda


percepção das coisas de uso, do instrumento ou manual, já se deu sempre, também
e primordialmente, uma iluminação do mundo. Embora não de forma temática, re-
flexiva, o mundo já se descobre antecipadamente em todo o encontro com a coisa.

295
Há de se entender o ser-sinal do sinal a partir do ser-essencialmente-referencial da coisa de uso e não
o contrário, ou seja, não é o caráter referencial dos instrumentos que se funda sobre o sinal e o processo
de assinalar que é próprio deste utensílio, ao contrário, o poder assinalar e sinalizar do sinal só se dá
porque o ser sempre constituído a partir de uma totalidade referencial faz parte da essência do
instrumento como instrumento.
296
Cfr. M. HEIDEGGER, SZ, 83-88.
É a partir da iluminação do mundo que a coisa pode vir ao meu encontro, que ela
pode ser liberada para uma circunvisão, que ela pode remeter para lá e para cá no
desabrochar de sua estrutura referencial.

O ser da coisa de uso tem a estrutura da referência. Isto significa: o seu ser-
em-si consiste justamente no estar referida a. Percebê-la significa descobri-la,
captando a dinâmica de suas remissões. O instrumento satisfaz uma função,
cumpre um uso. Eu me dou por satisfeito com aquela coisa quando, no seu operar,
ela já percorreu suas possibilidades e realizou suas funções. Da mesma forma, eu
me dou por satisfeito com uma obra quando ela repousa na plenitude de uma
condição, onde os recursos de que se dispôs para trazê-la à tona encontram sua real
efetivação, onde suas virtualidades aparecem plenamente concretizadas. A coisa
atingiu a sua conjuntura mais própria. O “para que” de sua serventia, o “em que”
de sua possibilidade de emprego se satisfazem.

3.2. Do instrumento ao mundo da vida

O instrumento não é um ente simplesmente dado. É um ente à mão. O seu ser


lhe advém da produção e do uso. Como tal, o instrumento já remete ao que ele não
é, ao contexto em que ele surge e se insere: o mundo da vida, com suas
necessidades de produção e de uso. Convém, pois, seguir esta remissão do
instrumento e explicitar este “contexto em que” ele surge como obra e se presta a
este ou aquele uso.

3.2.1 A vida como o para quê sem para quê da conjuntura – descoberta da
coisa intramundana e o a priori da abertura do mundo

A nossa reflexão não pode, pois, se contentar com somente delinear a coisa
de uso no seu ser referencial e conjuntural. Nós perguntamos, agora, pelo “para
quê” do “para quê” da coisa de uso. Será ele também algo de coisal, algo de
utilitário? O martelo satisfaz o uso de pregar. O pregar satisfaz a necessidade de
construir uma habitação. O construir uma habitação satisfaz a necessidade de
proteger-se contra as intempéries. A proteção contra as intempéries satisfaz a
necessidade de abrigo e moradia. O habitar satisfaz uma necessidade do viver. E o
viver...?!

Antes de cada instrumento ou coisa de uso está a totalidade instrumental.


Antes de cada totalidade instrumental está a totalidade referencial que constitui a
conjuntura em que a totalidade instrumental se constitui. Antes de toda conjuntura
está o mundo do uso e da vida. A totalidade dos “para quês” sempre começa e
termina numa instância onde já não se dá nenhum “para quê”. O “para quê”
primordial, o viver, já não é um “para isto e para aquilo”. É que todo o “para quê”
que procuramos para a vida já é sempre um momento da vida, já está dentro da
vida. Ainda que pensemos em um “para quê” para além da vida, este além é já
sempre um além do aquém, uma meta posta a partir da vida e em função da vida.
É que nada é mais precioso do que a vida. Com efeito, se o homem ganha todas as
coisas do mundo, mas perde a sua vida, aquele ganhar não é outra coisa que uma
perda. E a vida é mais do que a veste e do que o alimento. Sim, a vida é a última
instância a que se remete todo o conjunto de coisas e de referências que se dão a
partir do instrumento. A vida é o “para quê” sem “para quê”, é o “porquê sem por
quê” como a rosa do poeta Angelus Silesius (1624-1677):

“Die Ros ist ohn Warum: sie blühet, weil sie blühet,

Sie acht nicht ihrer selbst, fragt nicht, ob man sie siehet”.

“A rosa é sem por quê: ela floresce por florescer,

Não olha para si mesma, não pergunta se alguém a vê”297.

297
A. SILESIUS, Il pellegrino cherubico, versão bilingüe alemão-italiano aos cuidados de Giovanna Fozzer e
Marco Vannini, Paoline, Torino, 1992, n. 289, livro I, p. 156.
O acontecer da vida, o seu desabrochar, o seu florescer, é um evento gratuito.
Dissemos: gratuito. Com isto não estamos dizendo: fortuito. Pois deste modo
estaríamos dizendo que é o acaso a presidir o acontecer da vida, qual uma força
sinistra e estranha a ela mesma. Não estamos fazendo este tipo de declaração.
Estamos apenas acenando para um modo do dar-se do sentido da vida na sua
totalidade a partir dela mesma: o acontecer da vida, o tornar-se “próprio” dela
mesma, o vir-a-si da vida na sua plenitude, no qual ela abraça consigo todas as
coisas, com outras palavras, o evento a-propriador da vida é um dom, um presente,
um mistério de gratuidade e graciosidade.

Eis, então, que mais uma vez nós nos encontramos em face da vida. Sempre
começamos com a coisa e acabamos sendo conduzidos à vida. À medida que
somos pressionados pelos fenômenos, parece ser natural que isto aconteça. Cada
coisa que encontramos nos fala da vida. Uma coisa é sempre mais do que uma
coisa: ela é um ponto onde se concentra e se expande o mundo, a saber, o mundo
da própria vida.

O perceber uma coisa é já sempre um descobrir a coisa a partir do horizonte


do mundo. Este descobrir, por sua vez, só se dá a partir da abertura do mundo. As
coisas se descobrem. O mundo se abre. A descoberta das coisas só se dá com base
na abertura do mundo. Esta abertura do mundo já deve ter acontecido, a fim de que
a coisa seja descoberta. Só que este “já ter acontecido”, o seu passado, não é um
passado cronológico, mas ontológico, isto é, um tal passado não fala de um
processo que ocorreu anteriormente dentro de uma duração cronológica, ao
contrário, fala de uma condição de possibilidade, de um a priori: para que as coisas
sejam descobertas na percepção é necessário que, de antemão, se dê a abertura do
mundo.

3.2.2 A coisa no seu caráter de significância – o anúncio do mundo na


significância da coisa
A percepção natural cotidiana é a descoberta de algo que vem ao encontro
dentro do mundo. Este “algo que vem ao encontro” é já sempre compreendido
como isto ou aquilo. No cotidiano, quando eu pergunto “o que é isto?”, não estou
pedindo uma informação teórica sobre a coisa, mas estou indagando “para que
serve?”, “o que agente pode fazer com isto?”, “para quem isto é destinado?”,
“quem faz este tipo de coisa?”. A coisa é compreendida como coisa de uso, como
algo que eu encontro no mundo de minha ocupação, mundo que é já sempre
também um mundo compartilhado com os outros. A coisa é compreendida como
esta coisa. A percepção já é uma compreensão, uma captação da coisa como esta
coisa: do sapato como sapato, do livro como livro, do relógio como relógio. Não é
assim que eu primeiro apreendo uma coisa na sua nua e crua factualidade e depois
lhe atribuo este ou aquele significado. Cada vez, eu apreendo uma coisa como tal
coisa, isto é, eu apreendo a coisa dentro de uma determinada significância298. A
nua e crua factualidade, o ser desprovido de mundo, o ser desvitalizado da coisa é
o resultado de uma abstração, não o ponto de partida da percepção natural concreta
no viver cotidiano.

Contudo, o que estamos querendo dizer quando falamos de “significância”?


Tudo o que eu apreendo intencionalmente já traz o caráter de significância. Isto
não quer dizer que por primeiro eu apreendo uma coisa e depois lhe atribuo um
significado para mim. Nem quer dizer que eu primeiro a apreendo e depois lhe dou
uma valor. Não quer dizer, ainda, que primeiro eu apreendo a coisa e depois lhe
atribuo uma finalidade. Para que eu possa atribuir um significado específico a uma
coisa, dentro de uma explicitação teórica; para que eu possa valorar uma coisa ou
atribuir-lhe uma finalidade específica, a coisa já deve ter sido descoberta como isto
ou aquilo, já deve ter sido compreendida em sua significância.

Por outro lado, também o “alguma coisa”, que eu experimento como


indeterminado, eu só posso apreender na sua indeterminação, a partir do contexto
de significância em que apreendo as demais coisas. Assim, um barulho que escuto
na casa, durante a noite, já me fala de algo desconhecido, estranho, sinistro,

298
Cfr. M. HEIDEGGER, GP, 102-110.
perigoso. Posso ir atrás e ver que “não era nada”, era só um gato que passeava pelo
telhado. A coisa se determinou. Mas já na sua indeterminação ela me falava de
algo que eu não sabia bem o que era. A significância é a condição para que eu saiba
da coisa, para que eu tome conhecimento dela, num grau de clareza e determinação
maior ou menor.

Do mesmo modo, uma coisa que não me tem a menor importância, só pode
me parecer “insignificante” a partir da significância. Uma coisa, que me é
desprezível ou indiferente, só pode se me manifestar assim, porque já foi
descoberta como esta tal coisa. Trata-se de uma coisa que não me interessa, que
não me faz sentido, ou que, ao meu ver, não presta para nada. Contudo, tais modos
privativos de valorar uma coisa já supõe que a coisa tenha vindo ao meu encontro,
dentro do horizonte de minhas ocupações e preocupações vitais e já tenha sido
descoberta como isto ou aquilo.

A coisa que me vem ao encontro dentro do mundo se mostra como isto ou


aquilo299. Ela instaura um conjunto de referências, ela remete a isto ou aquilo, ela
soa desta ou daquela maneira em meu mundo, ela fala disto ou daquilo em minha
vida. A coisa significa a si mesma. Mas o seu poder significar a si mesma só é
possível porque ela já é descoberta como coisa que vem ao encontro dentro do
mundo, isto é, dentro de uma totalidade estrutural de sentidos e significações. Que
a coisa se faça encontrar e descobrir deste ou daquele modo e que ela se dê a
compreender como isto ou aquilo – isto só é possível porque ao apreendê-la numa
percepção concreta, um mundo já se me abriu. Com a coisa se anuncia o mundo
da vida, ou melhor, os mundos da vida: o mundo circunstante, o mundo partilhado
da convivência, o mundo próprio pessoal. Estas diversas denominações de mundo,
entretanto, não indicam regiões, áreas do mundo, mas indicam dimensões
fenomenais da mundanidade do mundo. A coisa só pode ser apreendida na sua
significância a partir da abertura do mundo, ou dos mundos.

299
Cfr. M. HEIDEGGER, Ontologie (Hermeneutik der Faktizität) (OHF), Gesamtausgabe – Band 63, Vittorio
Klostermann, Frankfurt am Main, 1995, p. 93-104.
Como se dá o anúncio do caráter mundano do que vem ao encontro dentro
do mundo? Se dá à medida que a coisa se mostra como coisa que serve para, que
pode ser empregada em, que é útil nisto ou naquilo; ou então como coisa que não
serve para, que é imprestável ou inútil. O estar aí da coisa de uso ou instrumento é
um estar aí para isto ou para aquilo. O seu “ser para isto” é um estar à mão para a
ocupação. Ocupar-se com alguma coisa é um demorar-se junto à coisa tendo o que
fazer com ela. No estar à mão para a ocupação o “ser para” da coisa se anuncia:
para comer, vestir, morar, divertir, instruir, etc. A coisa se mostra a partir de uma
totalidade de referências já sempre compreendida a partir de uma multiplicidade
de tendências da vida. O “ser para isto” e o “ser para” da coisa não são atributos
que se colam à coisa nua e crua. São o modo como a coisa articula o seu mostrar-
se a partir dela mesma. O estar-aí da coisa e o seu mostrar-se em si mesma e como
si mesma se articula como o “ser para isto”, onde este “ser para isto” remete
primordialmente a um “ser para” que se radica sempre no bojo da vida e de suas
necessidades. A coisa anuncia o mundo circunstante não como mero espaço que a
circunda de modo indiferente, mas como mundo de afazeres, como mundo da
ocupação. A espacialidade deste mundo circunstante é toda própria. Assim, ao
apreender o livro que me está diante, em meu quarto, eu já o apreendi como livro
que faz parte de uma biblioteca particular, que por sua vez, faz parte de um
conjunto de coisas que uso para estudar, as quais estão (mal) arrumadas em meu
quarto, enquanto meu ambiente de estudo e trabalho. Neste sentido, o que primeiro
se dá é o quarto enquanto instrumento de estudo, enquanto parte integrante de meu
mundo circunstante. Mas com este mundo circunstante já se anuncia também o
meu mundo próprio pessoal. Os livros que leio, os autores de que gosto, as áreas
de leitura de que gosto; os quadros e fotografias que estão coladas na parede, os
símbolos religiosos que o decoram, as recordações de lugares onde já estive ou
vivi – tudo isto fala do meu mundo próprio pessoal. Não existe uma fronteira
unívoca entre a dimensão “mundo circunstante” e “mundo próprio pessoal”. Estes
mundos se interpenetram dinamicamente no meu viver. E a coisa se mostra sempre
numa vibração significativa a partir do movimento incessante de eclosão e
interpenetração das várias dimensões do mundo da vida.
Entretanto, a coisa não anuncia somente o mundo circunstante e o mundo
próprio pessoal. Ela anuncia também o mundo enquanto mundo da convivência. A
coisa sempre fala de um ser-uns-com-os-outros. Aquela mesa de bar fala do amigo
que já se foi. Uma simples mesa! E quanto uma mesa pode guardar em si das
alegrias e das tristezas da história de um encontro, do mundo de uma convivência,
da partilha de uma vida?! Não que a coisa seja em si e depois adquira uma valência
sentimental a partir das emoções que experimento ao percebê-la. É a percepção
das coisas que já está sempre disposta numa tonância emocional. Mesmo o
“cinzento” da indiferença, neutralidade, normalidade cotidianas em que apreendo
as coisas no dia a dia, já é uma tal tonalidade. Nesta nuança cinzenta do viver as
coisas me falam de outras pessoas na neutralidade em que estas pessoas convivem
comigo: os outros são simplesmente aqueles com quem partilho o mesmo meio de
transporte, a mesma rua; eles são os produtores, os comerciantes, os consumidores
com quem partilho a vida cotidiana no âmbito público. As coisas produzidas em
série falam do mundo público de um “nós” que é indeterminado. Mas a camisa
feita sob medida pela mãe ao filho pode sempre reter em si a memória de um
cuidado, de uma ternura e de um carinho que, por anos, pareciam naturais e
passavam desapercebidos. As coisas, com efeito, sempre falam de um ser-com-os-
outros, sempre falam de um mundo do “nós”, ainda que aquele ser-com-os-outros
seja vivido na indiferença e que este mundo do “nós” seja experimentado como o
mundo de todo o mundo, como o mundo do “a gente”, o mundo impessoal de uma
convivência social massificada.

As coisas nos tocam. Nos afetam em nosso mundo da vida. Cada vivência é
um vibrar no acontecimento da vida. O viver é um estremecimento. Isto é verdade
mesmo ali onde nós “não vibramos”, entendendo agora o “vibrar” como índice de
uma intensidade subjetiva da vivência. Não convém entender o “vibrar” assim, de
modo subjetivo. O simples estar vivendo já é um vibrar no acontecimento da vida.
Talvez a exaltação e o entusiasmo, assim como a depressão e o desespero, sejam
modos do vibrar que ainda estão na dissonância com os ritmos da temporalidade
do viver. Tanto é que o oscilar de uma possibilidade para outra indicam um
descompasso, uma errância subjetiva. A vida tem os seus ritmos, tem os seus
tempos. Mesmo quando estamos vivendo na normalidade do cotidiano estamos
sendo conduzidos na dança do viver, estamos seguindo os ritmos do tempo da vida.
É na cotidianidade que experimentamos o mundo da vida como nosso mundo
familiar. Enquanto me ocupo com esta ou aquela coisa; enquanto uso este ou
aquele instrumento; no meio de minha ocupação eu sou tomado pelo mundo. O
mundo é aquilo que não dá na vista, por ser o mais próximo e o mais familiar. Só
a partir da familiaridade da estrutura significante do mundo é que o que me vem
ao encontro dentro do mundo pode se me mostrar como estranho, como
perturbador, ameaçador, sinistro, enigmático, misterioso. Somente porque eu
sempre estou, na familiaridade constante com o mundo, contando com as coisas
desta ou daquela maneira, a partir deste ou daquele cálculo, fazendo tais ou tais
planos, - somente por isto – é que eu posso tomar algo por incerto, por preocupante,
ameaçador ou até mesmo por sinistro. O lidar com as coisas, o ir para lá e para cá
perseguindo suas referências e suas conjunturas, o ocupar-se-com é o índice de um
caráter essencial, estrutural, que parece perpassar todo o viver humano: o cuidado.
Só posso me ocupar e me preocupar com as coisas porque o viver humano já é um
ter que cuidar de, um ter que se responsabilizar por, um ter que ser, assumindo
tudo que vem, tudo o que se apresenta no seu caráter de significância. Mesmo a
negligência e a despreocupação só podem se dar como tais porque o viver é sempre
uma tarefa, que eu preciso assumir e pelo que eu tenho, cada vez, de me
responsabilizar.

3.3. De como a coisa anuncia o mundo nela mesma

As coisas com que nós lidamos, no nosso cotidiano, falam sempre de algo
que é maior do que elas mesmas, enquanto meras coisas de uso. Elas falam do
mundo em que surgem e em que são usadas, ou melhor, elas recolhem em si
mesmas as falas do mundo em que elas aparecem e se mantêm. Sondemos, agora,
como se dá esta fala, este anúncio do mundo, na linguagem das coisas mesmas.
3.3.1. A coisa, em seu caráter de confiabilidade, repousa na familiaridade do
mundo

Eis que na análise do percebido da percepção nós sempre de novo nos


deparamos com o mundo, com a vida, que é sempre um viver em um mundo. É
que a coisa que se mostra na percepção não é nunca a “mera coisa”, o ente
simplesmente dado, desmundanizado, desvitalizado. A percepção tem que seguir
um caminho incomum para poder apreender, numa visualização observadora, uma
coisa como “mera coisa”. Seguindo por suas vias normais, naturais, cotidianas, a
percepção descobre sempre algo de mundano, ou melhor, de intramundano.
Tentamos mostrar isto falando do instrumento e do modo como ele é
compreendido no imediato da experiência do lidar com ele. Mostrou-se que a coisa
que eu apreendo no uso e na vida se dá sempre a partir da estrutura da significância
do mundo, com a qual eu guardo, de início e na maior parte das vezes, uma relação
de familiaridade. A percepção natural descobre a coisa como coisa do mundo; e
isto porque, no descobrir a coisa, já se abriu o mundo. A percepção, enquanto
vivência intencional, é um acontecimento da vida, é um instaurar-se do mundo. A
coisa que percebo sempre significa a si mesma, falando, ressoando, como coisa do
mundo. Ela tem a possibilidade de anunciar o mundo em si mesma.

Neste sentido é que, ao ver um amigo que me saúda na rua, eu não vejo
primeiro um corpo no espaço, um corpo que exerce o movimento de balançar a
mão para lá e para cá e depois interpreto que aquele balançar de mão significa que
aquele corpo é o de um amigo e que ele me saúda. Tal modo de explicitar o
fenômeno seria uma aberração. Eu vejo o amigo que me saúda. Eu compreendo
imediatamente o seu gesto como um aceno amigável, uma saudação. O que eu vejo
de imediato não é um mero corpo no espaço. É que o “corporar” do corpo do meu
amigo, no instante em que ele aparece no gesto da saudação, fala de um mundo de
sentido, do mundo da amizade, o qual é sempre um mundo historial, uma totalidade
significativa que surge a partir da história de um encontro.
Do mesmo modo, no ritmo do viver cotidiano eu não ouço meros ruídos:
ouço a panela de pressão na cozinha, ouço o mensageiro do vento em meu quarto,
ouço o ruído do ônibus que passa na rua, o latido do cão do vizinho, a algazarra
das crianças lá fora. Tudo isto que ouço fala de um mundo: o mundo onde eu vivo,
onde me empenho nas pelejas da vida; o mundo que partilho com os outros; o
mundo onde eu vibro como ser vivente e mortal que sou.

O percebido da percepção está, pois, impregnado de mundo. Ele é cada vez


um centro de concentração e de difusão do mundo. A coisalidade da coisa
percebida só pode ser compreendida a partir da significância do mundo. Tentemos
firmar esta intuição fenomenológica, conquistada ao longo deste capítulo, fazendo
o exercício de ver a coisa que se dá dentro do mundo, ajudados pela sua
explicitação a partir da linguagem da arte.

Tomemos como exemplo um par de sapatos. Ao perceber o sapato, que


acabou de ser feito na sapataria, abre-se-me uma totalidade significativa que me
fala em diferentes direções e em diferentes dimensões. Vejo o sapato na sapataria.
Ele é de couro. Este foi curtido em um curtume. Um material de borracha lhe serve
de sola. O cadarço é de tecido. Ao lado do sapato, apenas terminado, percebo os
instrumentos que o sapateiro usou para confeccionar a sua obra. Uma tesoura, um
molde, uma cola, prego, martelo, um suporte, uma graxa, uma escova. Tudo isto
está espalhado na sua oficina, na sua sapataria, colocado num arranjo mais ou
menos definido, mais ou menos organizado. A sapataria é iluminada por uma
lâmpada meio amarelada. As paredes são rústicas. Nelas pendem alguns quadros,
um cartaz anunciando o preço dos serviços e da obras, um calendário que faz
propaganda da sapataria. Sobre o balcão, notas e recibos; um rádio que toca uma
música sertaneja e uma fotografia com a esposa e os filhos do sapateiro. Não se
anuncia aqui um mundo? Aquele par de sapatos ali, posto sobre a estante,
esperando pelo seu comprador, não é ele um centro de concentração e de difusão
de um mundo?

E quando o sapato sai da sapataria e passa a ser usado? Ali está ele: bem
ajustado ao pé do seu destinatário. Mas um tal ajuste não se deu de imediato. Foi
preciso que o seu usuário aturasse o tempo do lassear do sapato. De início, sapato
novo, o menino que o recebeu como presente de seu pai, com os olhos brilhantes,
até se recusava usá-lo durante o caminho que levava da roça à Matriz no vilarejo.
Depois o sapato foi ficando velho, começou a gastar a sola. Ganhou um novo
solado. E o menino foi crescendo. O sapato não cabia mais no pé. Ali estava o
sapato: agora um sapatinho de menino, encostado lá no quartinho da bagunça. Não
servia mais. Entretanto, recolhia em si a memória de tempos difíceis, de pobreza,
indigência; mas eram tempos bons, tempos em que a família era unida, em que a
figura do pai e da mãe pairava sobre todas as coisas, qual uma bênção e uma graça.

Eis uma descrição trivial. Sua linguagem é pobre. Não tem o poder de trazer
à tona a coisa em toda a pregnância de seu mundo. Na pobreza do que é trivial se
esconde uma riqueza. Talvez só a arte pode trazer à fala uma tal riqueza. Por isso
deixamos a nossa descrição trivial do sapato e nos voltamos para uma obra de arte.
Trata-se de uma pintura de Van Gogh: os sapatos da camponesa. A pintura retrata
um par de sapatos de camponês e nada mais. E todavia...

“Da abertura escura do interior gasto do artefato para calçar, fita-nos a canseira dos
passos da labuta. No peso rude e elementar dos sapatos está retida a tenacidade do
lento caminhar pelos sulcos que se estendem até longe, sempre iguais, pelo campo,
sobre o qual sopra um vento agreste. Sobre o couro, jaz a umidade e a fertilidade
do chão. Sob as solas, arrasta-se a solidão do caminho do campo, pela noite que cai.
No artefato para calçar, pulsa o apelo calado da terra, a sua silenciosa oferta do grão
maduro e a sua inexplicável recusa na desolada improdutividade do campo invernal.
Por este artefato passa o calado temor pela segurança do pão, a silenciosa alegria
de vencer uma vez mais a miséria, o estremecimento na chegada do nascimento e o
frêmito ante a ameaça da morte. À terra pertence este artefato e no mundo da
camponesa ele está abrigado. É a partir desta abrigada pertença que surge e se firma
o próprio artefato, para o seu repousar-em-si-mesmo.

Tudo isto, porém, possivelmente, vemo-lo no artefato para calçar que está no
quadro. A camponesa, ao contrário, simplesmente calça os sapatos. Como se este
simples calçar fosse assim tão simples. Sempre que a camponesa, já noite alta, sob
um duro, mas saudável, cansaço, tira os sapatos e, na madrugada ainda escura, volta
a lançar mão deles, ou sempre que, em dia de festa, passa ao largo deles, tudo isto
ela sabe sem considerar e observar. O ser artefato do artefato consiste,
precisamente, na sua serventia. Mas esta mesma repousa na plenitude do ser
essencial do artefato. Denominamo-la de confiabilidade. Graças a ela a camponesa,
através do artefato, é confiada ao apelo silencioso da terra; graças à confiabilidade
do artefato ela é ciente de seu mundo. Mundo e terra estão ali para ela, e para aqueles
que a seu modo estão com ela, somente assim: no artefato. Nós dizemos “somente”
e, com isto, erramos. Com efeito, a confiabilidade do artefato apenas dá ao simples
mundo a sua proteção e assegura à terra a liberdade de sua contínua afluência”300.

Eis como, na coisa de uso se concentra e se expande o mundo. A coisalidade


da coisa de uso encontra sua essência mais própria na experiência de sua
confiabilidade no horizonte da familiaridade característica do mundo e da proteção
característica da terra301.

3.3.2. A coisa deixa ser o embate de mundo e terra.

Com esta análise, porém, descobrimos que na coisa se dá algo mais do que o
mundo. Juntamente com o mundo se dá a terra. Podemos intuir isto se nos
concentramos em captar o sentido do aparecimento de uma obra de arte, por
exemplo, a manifestação de um templo grego:

300
M. HEIDEGGER, HW, 19-20.
301
“Confiabilidade” foi a tradução que encontramos para a palavra alemã “Verlässilichkeit”. Literalmente,
a palavra diz: o próprio daquilo a que se pode abandonar, em que se pode confiar, fiar (sich verlassen).
Incluído nesta palavra está o étimo “lassen”, que significa deixar, abandonar. Em todo o uso está implícito
um deixar ser, um abandonar-se, um ser tomado pelo mundo, um repousar na quietude da profundidade
abissal, imensa, inesgotável, da plenitude da vida. Somente a partir desta familiaridade do mundo e do
abrigo da terra é que algo como a angústia do nada pode ser sentida em sua estranheza e que o abismo
do ser pode ser experimentado como abismo. Quando isto acontece, rompe-se a tranqüilidade do viver
cotidiano e irrompe o dar-se de um sentido do ser incompreensível, inefável, quiçá, fascinante e pavoroso
ao mesmo tempo. Então o mundo aparece na sua estranheza e insignificância e todas as coisas se
mostram na sua não confiabilidade. A vida emerge na sua transitoriedade. Tudo vibra no sopro do nada.
Será possível um abandono sereno a este mistério do nada? Como se caracteriza este abandono? Fé? A
nossa reflexão, aqui, esbarra, sem poder ir mais longe.
“Um edifício, um templo grego, não imita nada. Está ali, simplesmente erguido
nos vales entre os rochedos. O edifício encerra a forma do deus e nesta ocultação
deixa-a assomar através do pórtico para o recinto sagrado. Graças ao templo, o deus
vigora no templo. Este vigorar do deus é, em si, o estender-se e o delimitar-se do
recinto como sagrado. O templo e seu recinto, porém, não se perdem no
indeterminado. É a obra templo que, por princípio e ao mesmo tempo, ajusta e
recolhe em torno de si a unidade daquelas vias e referências, nas quais nascimento
e morte, desgraça e bênção, vitória e derrota, resistência e ruína, assumem para o
ser humano a figura de seu destino. A amplidão vigorosa destas referências que se
abrem é o mundo deste povo historial. Somente a partir dele e nele é que o povo
retorna para si mesmo para levar a cabo a sua destinação.

Ali de pé repousa o edifício sobre o chão rochoso. Este repousar da obra vai
buscar no rochedo o mistério do suportar maciço e, contudo, não forçado a nada.
Ali de pé, o edifício resiste à tempestade que se abate sobre ele e assim mostra, por
princípio, a tempestade mesma em sua violência. O brilho e o esplendor das pedras
conjugadas, aparecendo mesmo apenas por graça do sol, no entanto, fazem
aparecer, por princípio, a luz do dia, a amplidão do céu, as trevas da noite. O seguro
erguer-se faz visível o espaço invisível do ar. A imperturbabilidade da obra
contrasta com as vagas da maré e, a partir de sua quietude, deixa aparecer a sua
fúria. A árvore e a erva, a águia e o touro, a serpente e o grilo, por princípio, se
salientam em sua figura e assim se manifestam como aquilo que são. A este vir à
luz e levantar-se, ele próprio e na totalidade, chamavam os gregos, antigamente, de
physis. Ela ilumina, ao mesmo tempo, aquilo sobre que e em que o homem
funda o seu habitar. A isto nós chamamos terra. Daquilo que esta palavra, aqui, diz,
há que se manter distante seja a representação de uma massa de matéria depositada,
seja a mera representação de um planeta. A terra é aquilo onde o surgir alberga tudo
aquilo que surge e, precisamente, enquanto tal. Naquilo que surge vigora a terra,
como o que dá guarida”302.

302
M. HEIDEGGER, HW, 27-28.
Eis que, de repente, a coisa, especialmente a coisa como obra de arte, faz
aparecer que, por toda a parte, está em jogo a conjunção e a oposição de mundo e
terra. Mundo, aqui, não é a simples reunião das coisas que ocorrem, nem é a
totalidade das coisas reais ou possíveis, contáveis ou incontáveis, conhecidas ou
desconhecidas. Também não é uma mera moldura espaço-temporal para as coisas.
Nós dizíamos, anteriormente, que a vida está sempre acontecendo, que o mundo
está sempre se tornando evento. O mundo está sempre mundificando. E este
mundificar do mundo não é nunca apreensível a modo de objeto. Contudo, em tudo
que nós apreendemos, em cada percepção, de modo concomitante com a
apreensão, dá-se o instaurar-se do mundo. Com efeito, a coisa que a apreensão da
percepção apreende é, cada vez, apreendida como coisa do mundo. O mundo não
é objeto da apreensão, mas é o horizonte no qual e à mercê do qual eu posso captar
a coisa enquanto tal. Ademais, o mundo é sempre mundo da vida: é historial. O
mundo é prenhe de sentido. Nele vibram as experiências humanas: nascimento e
morte, alegria e dor, desgraça e benção, vitória e derrota, miséria e abundância. O
mundo está acontecendo ali onde estas experiências, ou seja, as experiências da
vida, estão se dando e isto de modo historial. Onde estão em jogo as decisões
essenciais da nossa história, onde estas são tomadas ou deixadas, assumidas ou
questionadas, ali o mundo está se dando. O mundo é a abertura que se abre dos
vastos caminhos das decisões simples e essenciais no destino historial de um povo.
O mundo só surge com o ser historial do homem.

Entretanto, o homem, assim como todos os seres vivos e tudo o que surge e
vem à luz a partir do chão, onde estão radicados e fundados, é filho da terra. A
terra fala do mistério da origem. Faz surgir e vir à luz gratuitamente pedras e
plantas, animais e homens e, como se tomada de pudor e humildade, se retrai em
si mesma. Numa tal ocultação, porém, a terra recolhe a raiz de todas as coisas e
lhes dá guarida e proteção.

Mundo e terra são essencialmente diferentes um do outro e, todavia,


inseparáveis. Fundamentalmente, está sempre vigorando um combate entre mundo
e terra. Com efeito, o mundo aspira, no seu repousar sobre a terra, a sobrepujá-la.
O mundo quer a abertura, o desvelamento, a claridade. A terra, porém, como
aquela que gera e dá guarida, quer conter em si o mundo, quer retê-lo, e ama o
esconder-se, a ocultação, o velamento, a obscuridade do mistério. Mas é por graça
deste combate que o mundo permanece mundo e a terra permanece terra. Neste
combate eles não se destroem, mas cada um faz surgir o outro na sua identidade e
diferença. De fato, um precisa sempre do outro. A terra não pode renunciar ao
aberto do mundo, caso ela queira permanecer o que é: a matriz, a geratriz e a
protetora de tudo o que vem à luz no aberto do mundo. Por sua vez, o mundo não
pode nunca libertar-se da terra, carece de sempre de novo lançar raízes na
obscuridade originária de onde provém e para onde retornam todos os nossos
empenhos e desempenhos historiais303.

Em cada coisa está se dando o combate de mundo e terra. Quanto mais forte
for este combate, tanto maior a intimidade dos combatentes; e tanto melhor para
coisa: pois a coisa vige a partir da vibração do acontecimento do mundo e a partir
da geração e da proteção da terra. Será, porém, que o ser-coisa da coisa pode ser
contemplado numa articulação ainda mais rica?

3.3.3. A coisa “coisifica”, reunindo, na sua simplicidade, os diferentes: céu e


terra, imortais e mortais

Tentemos tornar presente, como um último exercício do ver fenomenológico


em torno da coisa, o que se dá no aparecimento de uma jarra304. Como se mostra a
coisalidade da coisa, no caso da coisa-jarra?

Ali está a jarra, recém saída das mãos do oleiro. Ela subsiste em si e por si
mesma só porque, na pro-dução, ela foi con-duzida a ser e estar em si mesma. O
oleiro moldou a jarra com a argila que fora tirada da terra e preparada para a
moldagem. A jarra é feita de argila. A argila ganhou uma consistência e uma forma

303
Cfr. M. HEIDEGGER, HW, 29-36.
304
Cfr. M. HEIDEGGER, Vorträge und Aufsätze (VA), Günther Neske, Stuttgart, 1997, p. 158-166.
e, graças a isto, a jarra pode pousar, seja sobre o chão, seja sobre a mesa ou em um
banco. A jarra é uma coisa, como receptáculo. A jarra fora produzida por ser e para
ser este receptáculo que ela é destinada a ser. A pro-dução intro-duz a jarra no seu
modo próprio de ser. Mas, uma vez produzida a obra, a produção deixa a coisa ser
o que ela é, deixa-a subsistir em si e por si mesma. A coisa como obra produzida,
porém, só vigora plenamente em seu ser quando posta em uso. Um receptáculo é
determinado como tal a partir do seu uso: o receber. É por isso que o oleiro, ao
moldar a argila, deu à sua obra a sua forma devida, forma esta caracterizada pelo
vazio. Com efeito, o vazio da jarra está em função da sua serventia: do receber. O
vazio da jarra recebe, acolhendo e retendo em si mesmo o que nele se vaza. O
receber da jarra é, por conseguinte, também um doar. A jarra cumpre sua serventia
em receber, mas este cumprir uma serventia, recebendo, é já o modo como a jarra
se doa em seu ser. O doar-se da jarra recolhe em si o receber da vaza no seu duplo
significado. A doação da jarra acolhe e recolhe a doação da vaza. A doação da vaza
pode ser uma bebida. Então ela dá água, dá vinho para beber:

“Na água doada, perdura a fonte. Na fonte perdura todo o conjunto das pedras e
todo o adormecimento obscuro da terra, que recebe chuva e orvalho do céu. Na água
da fonte, perduram as núpcias de céu e terra. As núpcias perduram no vinho que a
fruta da vinha concede e no qual a força alimentadora da terra e o sol do céu se
confiam um ao outro. Na doação da água, na doação do vinho perduram, cada vez,
céu e terra. A doação da vaza é, porém, o ser-jarra da jarra. Na vigência da jarra,
perduram céu e terra.

A doação da vaza é bebida para os mortais. É ela que lhes refresca a sede. É
ela que lhes refrigera o lazer. É ela que lhes alegra os encontros, a convivência.
Mas, às vezes, o dom da jarra se doa na e para uma consagração. Desta vez, a vaza
da sagração não mata a sede, acalenta a celebração da festa, no aconchego do alto.
Aqui a doação da vaza nem se doa numa tenda nem se faz bebida dos mortais. Agora
a vaza se torna poção dedicada aos imortais. A doação da vaza encontra, na poção,
o dom, em sentido próprio. É no dom da poção consagrada que, ao vazar, a jarra
vive, como doação dispensatriz de dons... Consumado na plenitude de sua vigência,
pensado no apelo de sua provocação e dito na fidelidade de sua eloquência, vazar
significa: oferecer, sacrificar e, assim, doar...

Na doação da vaza, no sentido da bebida, vivem, a seu modo, os mortais. Na


doação da vaza, entendida, como oferenda, vivem, a seu modo, os imortais, que
recebem, de volta na doação da oferta, a doação da dádiva. Na doação da vaza,
vivem, cada qual de modo diferente, os mortais e os imortais. Na doação da vaza,
vivem terra e céu. Na doação da vaza, vivem, em conjunto, terra e céu, mortais e
imortais. Os quatro pertencem, a partir de sua união, a uma conjunção.
Antecipando-se a todos os seres, eles se conjugam numa única quadratura de
reunião.

Na doação da vaza, vive a simplicidade dos quatro”305.

A partir desta descrição fenomenológica, na qual aparece, a partir da coisa-


jarra, a quadratura do quarteto formado por céu e terra, mortais e imortais, o que é
o ser-coisa da coisa? Nossa resposta não pode ser que um aceno: a coisa é coisa na
medida em que coisifica. Mas o que é coisificar? É recolher e reunir, numa unidade
simples, a conjunção de uma multiplicidade. A coisa vige e vigora reunindo,
conjugando, numa unidade simples, as diferenças. A coisa também acontece e este
acontecer é um recolher, reunindo e conjugando. No fazer-se evento, a coisa se
apropria da quadratura e assim se torna ela própria. A coisa é, enquanto nela
demora, perdura, a unidade simples dos diferentes: céu e terra, mortais e imortais:

“Coisificando, a coisa deixa perdurar a união dos quatro, terra e céu, mortais e
imortais, na simplicidade da sua quadratura, que a partir de si se unifica.

A terra é o sustentáculo da construção, a fecundidade na aproximação,


estimulando o conjunto das águas e dos minerais, da vegetação e da fauna.

Quando pensamos terra, já pensamos também, caso pensemos, nos outros


três, a partir da simplicidade dos quatro.

305
M. HEIDEGGER, VA, p. 164-166.
O céu é o caminho do sol, o curso da lua, o brilho das constelações, as estações
do ano, luz e claridade do dia, a escuridão e densidade da noite, o favor e as
intempéries do clima, a procissão de nuvens e a profundeza azul do éter.

Quando dizemos céu, já pensamos também, caso pensemos, nos outros três,
a partir da simplicidade dos quatro.

Os imortais são acenos dos mensageiros da divindade. É na regência


encoberta da divindade, que Deus aparece, em sua vigência essencial, que o retira
de qualquer comparação com o que é e está sendo.

Quando invocamos os imortais, já pensamos também, caso pensemos, nos


outros três, a partir da simplicidade dos quatro.

Os mortais são os homens. São assim chamados porque podem morrer.


Morrer significa: saber a morte, como morte. Somente o homem morre. O animal
finda. Pois não tem a morte nem diante de si, nem atrás de si. A morte é o escrínio
do Nada, do que nunca, em nível algum, é algo que simplesmente é e está sendo.
Ao contrário, o Nada está vigindo e em vigor, como o próprio ser. Escrínio do nada,
a morte é o resguardo do ser. Chamamos aqui de mortais os mortais – não por
chegarem ao fim e finarem sua vida na terra, mas porque eles sabem a morte, como
morte. Os homens são mortais antes de findar sua vida. Os mortais são mortais, por
serem e vingarem, no resguardo do ser. São a referência vigente ao ser, como
ser”306.

Eis até onde nos conduziu a nossa reflexão. Talvez, desta vez, o salto tenha
sido maior do que o esperado. Da simples análise do intentum da intentio que é a
percepção, perseguindo o ser da coisa que é o “alguma coisa” do perceber, nós
passamos da mera coisa, enquanto coisa desmundanizada, para a coisa de uso,
enquanto ente intramundano; deste nós passamos ao mundo; o mundo nos
apareceu no combate com a terra; e, contemplando mais de perto este combate, eis
que do interior de sua intimidade se nos mostrou a quadratura de céu e terra,
mortais e imortais. Por sua vez, lançando o olhar para a simplicidade una deste

306
M. HEIDEGGER, VA, 170-171.
quatro, acabamos sendo remetidos ao âmbito do inefável. Fomos colocados em
face de mistérios que mal podem ser nomeados com palavras como “Deus”,
“morte”, “ser”, “nada”. Aqui, deixemos que estas palavras apenas acenem para o
imperscrutável. Elas não são conceitos, são nomes. Elas não definem, apenas
acenam. Tentar pensar o que elas provocam pensar seria uma outra tarefa, bem
mais primordial. Aqui é necessário que a nossa reflexão guarde a sua modéstia.

Quando começamos a refletir, partimos da banalidade e trivialidade de um


quarto, do meu ambiente de trabalho. Eis que, como suspeitávamos, esta
trivialidade e tantas outras mais, que nós levantamos ao analisar o intentum da
intentio que é a percepção, escondem uma riqueza inesgotável, um tesouro que,
certamente, constitui o mais digno de ser pensado. Nossa reflexão é modesta. É
apenas preliminar. Trata-se de ver com olhos simples o simples que se nos doa
bem perto de nós. Seguindo este simples, descobrimos sempre o extraordinário.
Mas talvez o filosofar consista justamente nisso, como nos recorda uma “estória”
acerca de Heráclito de Éfeso, que nos foi transmitida por Aristóteles, com a qual
gostaríamos de fechar este capítulo:

“Diz-se que Heráclito assim teria respondido aos estranhos vindos para lhe colocar
algumas perguntas. Ao chegarem, viram-no aquecendo-se junto ao forno. Ali
permaneceram em pé (impressionados sobretudo porque) ele encorajou os
hesitantes a entrar, pronunciando as seguintes palavras: “mesmo aqui, os deuses
também estão presentes”307.

307
ARISTÓTELES, De part. Anima, A 5.645a 17, in Der Anfang des abendländischen Denkens (Heraklit), SS
1943, M. Heidegger, Gesamtausgabe, Band 55, p. 6.
CONSCIÊNCIA, VIVÊNCIA E VIDA: UM PERCURSO FENOMENOLÓGICO 308

Resumo: o artigo propõe um percurso de reflexão fenomenológica, que tem como foco
o fenômeno da consciência. Analisando a estrutura intencional das vivências, a qual
constitui o traça essencial da consciência, a reflexão remonta até à região fenomenal
originária chamada comumente de “vida”. Através de uma análise intencional de uma
vivência simples, básica e privilegiada, a percepção, chega-se a perceber o caráter de
mundanidade da vida. O mundo é sempre mundo da vida e a vida é sempre vida em um
mundo. A vivência acontece à medida que acontece vida, que acontece mundo. O dar-
se do eu não pode ser compreendido a não ser em seu enraizamento no acontecer da
vida e, concretamente, em seu ser-no-mundo.

Palavras-chave: consciência, vivência, vida, eu, percepção, intencionalidade,


fenomenologia.

I. O PROBLEMA DE UMA INVESTIGAÇÃO ACERCA DA CONSCIÊNCIA

A fenomenologia é o ver simples do que é simples. Cometeríamos, no entanto, um


engano, se pensássemos ser fácil o simples. O simples é o mais difícil, pois exige de nós
uma verdadeira conversão do olhar: exige que descubramos, na pobreza daquilo que
desprezamos, uma fonte inesgotável de riqueza. O simples é por nós tão desprezado
que nem mesmo entra na conta daquilo que, ostensiva e conscientemente,
desprezamos. Passa-nos despercebido. Nós o ignoramos.

A via fenomenológica é aquela que nos envia e avia rumo a este próximo e simples.
Trata-se daquela luz primordial, em cuja vigência o mundo se torna mundo e nós nos
tornamos nós mesmos.

Para nós, que vivemos numa era em que a realidade do real é definida em termos da
funcionalidade da relação sujeito-objeto, ou seja, é definida em termos de subjetividade
e objetividade, a via fenomenológica se impõe como uma passagem: da consciência para
a vida, através da vivência. É a passagem desse caminho que tentaremos percorrer nas
páginas que se seguem.

308
Marcos Aurélio Fernandes, Universidade Católica de Brasília.
Tentamos, em seguida, nos deixar, pela força do pensamento, reconduzir ao mais
originário. O primeiro passo – ainda muito distante da meta, mas sempre um primeiro
passo – consiste em voltar-nos das coisas para nós mesmos com nossas vivências. O
mundo, o mundo das coisas e o mundo das pessoas, o mundo do real e do ideal, enfim,
o todo do ente só se nos faz acessível, só se nos dá, a partir de nossas vivências. O que,
de início, chamamos de mundo é o mundo da vida, ou seja, o mundo no qual nós
vivemos. Trata-se do mundo das nossas percepções, imaginações, dos nossos
sentimentos e desejos, dos nossos pensamentos, dos nossos atos valorativos e volitivos,
do nosso engajamento prático e dos nossos interesses teoréticos. Se nos detemos numa
atitude reflexiva a esse mundo acabamos nos dando conta do constante, incessante,
imenso fluir destas vivências, de suas efluências, afluências, influências, confluências,
refluxos, enfim, da fluência da vida como de um manancial inesgotável, nunca igual a si
mesmo. Graças ao olhar da reflexão, podemos contemplar o ir e vir destas vivências,
suas co-agitações, ou seja, as cogitações em que se movimenta a nossa vida interior, a
vida da nossa consciência.

I.1. O tríplice significado do título “consciência” – uma primeira


indicação formal do seu sentido.

Como ponto de partida deste nosso passo na investigação, precisamos ter em mente o
tríplice significado de “consciência”, a saber, consciência como apercepção das próprias
vivências, como o eu fenomenal, que, nesta e para esta apercepção se constitui e
consciência como totalidade estrutural intencional dos atos.

Através da reflexão abre-se para nós o horizonte da compreensão do que se chama


consciência: a esfera global das conexões de vivências. Tais vivências são captadas de
modo peculiar através do que se convencionou chamar de percepção imanente309. Eu

309
Husserl, em vez de falar de percepção externa e interna, prefere falar de percepção imanente e
transcendente. Elucidemos, primeiramente, o que ele chama de percepção imanente. Vivendo no cogito,
ou seja, vivenciando minhas próprias vivências, normalmente eu não tenho a cogitatio mesma como
objeto intencional, mas ela pode vir a tornar-se tal. É que ao cogito pertence, por princípio, a possibilidade
de uma mirada reflexiva, naturalmente, porém, na forma de uma nova cogitatio, que se dirige, no modo
de uma captação simples, à vivência mesma. Com outras palavras, nós podemos, sempre de novo, voltar
o nosso olhar para as nossas próprias vivências: percepções, fantasias, recordações, desejos, sentimentos,
etc., e captá-las como objetos desta nossa reflexão. Ora, Husserl chama de atos imanentemente dirigidos
ou vivências intencionais imanentemente referidas aqueles ou aquelas, a cuja essência é inerente o fato
de que os seus objetos intencionais pertencem, como elas próprias, ao mesmo fluxo vivencial. Portanto,
estes são atos referidos a atos (cogitatio que mira a uma cogitatio). Por sua vez, transcendentalmente
dirigidas são aquelas vivências onde isto não se dá: atos dirigidos a coisas do mundo circunstante, a
vivências de outra consciência, a essências, etc. Pode-se dizer que, no caso da percepção imanente, o
perceber e o percebido perfazem essencialmente uma unidade imediata, uma única cogitatio concreta. Só
abstratamente é que se pode separar o perceber e o percebido, tão estreita é esta unidade. Aqui o objeto
é de tal modo incluído no ato que ele não possui nenhuma independência em relação ao ato como tal.
sou consciente destas vivências. A região global das vivências é aquela que está na
possibilidade de se tornar consciente para mim na percepção imanente. Consciência, no
sentido de percepção interna, ou seja, percepção do imanente, ou ainda, apercepção,
está imediatamente relacionada com o primeiro conceito de consciência, isto é,
enquanto região fenomenal das vivências (HEIDEGGER, 1994a, p. 55). Tal região abrange
todos os conteúdos conscienciais e, de um modo mais determinante, todas as vivências
intencionais, ou seja, determinada classe de vivências que possuem a característica de
se dirigir a alguma coisa. Cada vivência intencional é caracterizada por ser consciência-
de-alguma-coisa. A consciência abrange vivências intencionais atuais e potenciais.
Muitas das vivências intencionais permanecem como o fundo vivencial da consciência.
Aquelas vivências intencionais, que são trazidas atualmente à luz da consciência, ou seja,
que são atuadas de modo reflexo num ego-cogito explícito são denominadas de atos310.

Deste modo vem à luz, numa primeira indicação formal, a concatenação do tríplice
conceito de consciência:

“Consciência é o título regional para o teor integral de vivências anímicas


que, enquanto tais, tornam-se acessíveis, por meio da consciência, no
sentido do íntimo dar-se conta, e de tal modo que este íntimo dar-se conta
pode encontrar uma classe peculiar de vivências que são caracterizadas
como consciência-de-alguma-coisa” (HEIDEGGER, 1994a, 55).

Portanto, o título “consciência”, num primeiro momento, indica uma região de


fenômenos, cujo acesso é dado pela percepção imanente ou apercepção, e cuja
abrangência abriga em si aquela determinada classe de vivências, ou seja, os atos, que
são de fundamental importância para a estrutura da consciência como tal (HEIDEGGER,
1994a, 56).

I.2. Dificuldade de abrir a região fenomenal indicada pelo título


“consciência” – epoché da investigação ôntico-empírica e aviamento a
uma abordagem ontológico-estrutural.

A nossa investigação, inevitavelmente, esbarra num tema de difícil abordagem, um


tema que exige de nós esforços fenomenológicos imprescindíveis. Eis que, ao falarmos
de “consciência”, abre-se, diante de nós, uma região de fenômenos, que nos é muito

Por outro lado, no caso das percepções de coisas, por exemplo, a coisa percebida é suposta como estando
fora de unidade com o perceber mesmo, é percebida justamente como algo de transcendente à
consciência mesma (HUSSERL, 1993, 67-69).
310
Nas “Investigações Lógicas” o nome de ato ainda se confunde com o de vivências intencionais. A
distinção agora apresentada foi operada por Husserl após a publicação daquela sua obra fundamental
(HEIDEGGER, 1994, 55).
familiar, do ponto de vista ôntico, mas que é extremamente difícil de esclarecer do
ponto de vista ontológico. Somos colocados ante o desafio de trilharmos um caminho,
o nosso, por meio desta região já tanto explorada, mas que mantém, ainda o seu
mistério.

Esta região fenomenal, numa amplitude, profundidade e originariedade incomparáveis,


constitui, sempre, um campo de interesse especulativo privilegiado para os pensadores
antigos e medievais. Na época moderna, a situação não é muito diferente. Desde o
início, mais precisamente, desde Descartes, esta região fenomenal, sob o título de
“consciência”, foi objeto de intensos, profundos e fatigantes estudos dos filósofos da
época moderna311. Os filósofos pós-cartesianos, ao seu modo, procuraram resolver as
dificuldades que a abertura desta região fenomenal oferece312. Com Husserl ela se

311
Com Descartes acontece uma transformação radical da compreensão da totalidade do ente e do
homem em meio a esta totalidade. Anteriormente, na idade média e no mundo grego, fazia-se de modo
inteiramente natural a experiência da vida interior, ou seja, se experienciava a vida anímica ou
intrapsíquica sem que a mesma se tornasse tema de uma reflexão objetivante. Os gregos não conheciam
o que os modernos chamam de “consciência”. Com efeito, a syneídesis/ dos gregos e dos
cristãos possui um sentido eminentemente moral e não psicológico. É verdade que Aristóteles, ao analisar
a percepção, constata que nós percebemos o ver do próprio perceber. Nós temos uma
aísthesis/ do ver (De Anima  2, 425 b 12 sqq). Esta indicação de Aristóteles pode estar
apontando para uma direção diferente, porém, daquela da concepção moderna da consciência; diferente
e talvez até mais originária do que a do concepção da consciência como autoconsciência: do cogito como
cogito me cogitare. Pode-se afirmar que no mundo grego e na idade média ainda não se dá uma cisão
entre sujeito e objeto, consciência e coisa, imanência e transcendência. Somente com o advento da
ciência moderna, com o predomínio da atitude teorética, observadora, reflexiva, é que emerge a
consciência como uma esfera interna contraposta ao mundo como esfera externa e, com isso, uma
percepção interior contraposta a uma exterior. A alma ( − anima), a qual no mundo grego e
medieval tinha uma extensão, vastidão e uma profundidade muito maior, reduz-se agora à estreiteza e
superficialidade da consciência, do ego. O saber a respeito do anímico se transforma, de ciência do
espiritual e da razão, no sentido mais originário e vasto destas palavras, em ciência da consciência, uma
ciência que ganha o seu objeto na assim chamada experiência interior através da percepção imanente.
312
Para a filosofia moderna em geral, o cogito é o modo de acesso privilegiado no conhecimento do
anímico. Contudo, o que significa isto – o Cogito? O cogito compreende “tudo aquilo que é em mim e do
qual eu sou imediatamente consciente” (Descartes, Meditações, Resposta II, definição I). Em duvidando,
pensando, negando, afirmando, querendo, sentindo, imaginando, enfim, em toda e qualquer cogitatio eu
sou sempre dado a mim mesmo numa evidência imediata. É na experiência do cogito que se me dá de
modo imediato a evidência da cogitatio e do cogitatum, bem como a evidência de mim mesmo, do meu
ego, uma vez que todo cogito é cogito me cogitare. Neste sentido, o sum do ego é determinado a partir
da cogitatio: ego sum res cogitans. Por sua vez, a consciência, enquanto consciência do mundo e
consciência de si (autoconsciência), na medida em que é tomada como res é interpretada no sentido da
substantia. Mas o ego não é uma substância qualquer. Em relação ao ser de todo e qualquer ente que ele
mesmo não é, o ego é por excelência o subjectum, pois é o substractum de todas as cogitationes. A
centralidade e o caráter fundamental do sujeito enquanto consciência continuam a ser afirmados no
empirismo inglês, como aparece, por exemplo, na tese de Berkeley: esse est percipi. Em Kant a
subjetividade é analisada de modo mais profundo a partir da problemática transcendental. Depois dele,
o idealismo alemão, aproveitando as deixas de Kant e tentando resolver as suas aporias, caminhou para
uma metafísica do eu. Assim, para Hegel a consciência é o ponto de partida da reflexão filosófica. Quando
a consciência se desenvolve de forma a conquistar a sua verdade plena (conceito), então ela se torna
espírito. Antes, porém, ela deverá ter se tornado autoconsciência e razão. A autoconsciência é a
superação da consciência. É que a consciência supõe uma relação de sujeito-objeto onde o objeto está
fora dela mesma, como outro dela, como o independente. A autoconsciência é justamente a supressão
desta alteridade e exterioridade: a verdade da consciência é a autoconsciência, e esta é o fundamento
tornou o tema fundamental da consideração fenomenológica313. A partir dela, como de
um positum, desenvolveu-se a ciência positiva, de caráter experimental, que passou-se
a denominar de psicologia314. De início, o que mudou foi a impostação fundamental da
investigação. Numa época em que reinava a anti-metafísica, ou seja, a hostilidade a tudo
quanto, por assim dizer, cheirava a especulação e a conceituação; numa época em que
a palavra de ordem era ir aos fatos da experiência, as ciências experimentais celebraram
o seu triunfo e a psicologia tentou emergir, como tal, a partir de um fundo, malgrado
seu, metafísico de materialismo, cientificismo, positivismo, mecanicismo e biologismo.
Através de um demorado processo, em que colaboraram diversos pesquisadores, a
psicologia, assim ao menos parece, atingiu o grau de ciência experimental no projeto
científico de Wundt315. Dizemos “ao menos parece”, uma vez que a discussão sobre a
cientificidade e o caráter de rigor do método desta ciência é uma questão que deve
permanecer em aberto e que não podemos discuti-la aqui. Em todo o caso, foi Willhelm

daquela; de tal modo que na existência a consciência de um outro objeto é autoconsciência; eu sei o
objeto como meu, por isso, neste objeto eu sei a mim mesmo.
313
A fenomenologia em Husserl caminha na direção de uma fenomenologia da consciência ou da
subjetividade transcendental. Nós caminharemos, seguindo os passos da investigação fenomenológica de
Heidegger, para além de uma fenomenologia da consciência e da subjetividade transcendental. Deter-
nos-emos nela somente à medida que esta constituir, para a nossa reflexão, uma espécie de antecâmara
que nos conduz a um âmbito mais originário da fenomenologia. Não deixaremos de aproveitar as suas
deixas e, quando for necessário, não deixaremos de apresentar as devidas críticas que justificam a tomada
de outro rumo da reflexão fenomenológica.
314
No século XIX as ciências naturais começam a conquistar a “cidade fortificada” da consciência, até
então em poder da filosofia. Elas penetram, com seu método próprio, numa região, que, até então, era
explorada somente de modo filosófico. Já o empirismo inglês abandona um estudo metafísico da alma (de
sua substancialidade, espiritualidade e imortalidade) e assume uma abordagem empírica da mesma.
Lança-se como mote da investigação: “não ciência da alma como uma substância, mas ciência das
manifestações anímicas, daquilo que se dá na experiência interior”.
315
É na Alemanha que a psicologia dá passos decisivos na direção de se tornar uma ciência experimental.
O movimento nesta direção se dá lentamente com o trabalho de alguns pesquisadores, antecessores de
Wundt. Assim, Herbart, aluno de Fichte, contra a afirmação de Kant, de que uma psicologia enquanto
ciência empírica seria impossível, pois ficaria sempre no nível da descrição e não alcançaria nunca o rigor
matemático que caracteriza as ciências naturais, ousou apresentar um programa de ciência da alma
humana onde a matemática, ou seja, a mensuração e o cálculo, tivesse uma importância decisiva. Tirando
o objeto temático da psicologia do domínio do qualitativo e transferindo-o para o domínio do
quantitativo, ele trabalhou na elaboração de uma teoria da mensuração dos fenômenos psíquicos. Assim,
ele reconduziu todo acontecimento psíquico a um movimento de simples representações no espaço vazio
da consciência, sob influências impulsivas e repulsivas. Johannes Müller, para quem a psicologia deveria
estar em íntima conexão com a fisiologia (nemo psychologus nisi physiologus), lança a teoria específica
dos nervos: a qualidade das sensações que recebemos não depende do tipo de estímulo (mecânico,
elétrico, luminoso) que é exercitado sobre os órgãos dos sentidos, mas sim do tipo de órgão sensorial que
é excitado (nervos óticos: sensações visuais; nervos auditivos: sensações auditivas, etc). Heimholtz, aluno
de Müller, fundou a fisiologia ótica e acústica, sempre em conexão com supostos problemas da teoria do
conhecimento: inferiu que as nossas sensações não são imagens dos objetos do mundo externo, mas são
apenas sinais, índices daquilo que ocorre fora de nós. E. H. Weber descobriu a lei que leva o seu nome, ou
seja, a lei sobre o nexo entre a grandeza do estímulo e a “grandeza da sensação”: a intensidade da
sensação é proporcional ao estímulo. A partir desta descoberta Fechner desenvolveu a “psicofísica”, ou
seja, a teoria da mensuração dos fenômenos psíquicos e sua funcional dependência das grandezas dos
estímulos: descobriu que os estímulos crescem em progressão geométrica, enquanto as sensações em
progressão aritmética. Isto quer dizer que a relação entre estímulos e sensações pode ser representada
por uma curva logarítmica (HEIDEGGER, 1993, 213).
Wundt quem fundou o primeiro instituto para psicologia experimental em Leipzig. Ali
ele e seus alunos (europeus e americanos) dedicaram-se experimentalmente a quatro
campos de pesquisa: a psicofisiologia dos sentidos, o tempo de reação aos estímulos, a
psicofísica e a associação mental. Ocupou-se também com as atividades psíquicas
superiores (processos intelectivos e volitivos). Intuiu que estas não poderiam ser
explicadas a partir de sensações e por isso introduziu a “síntese criativa”: o resultado de
uma combinação de elementos psíquicos não é a mera soma destes, mas alguma coisa
de nova e original em relação àqueles. Com Wundt se afirma a tendência fundamental
da moderna psicologia “experimental” que consiste na explicação dos acontecimentos
psíquicos através de uma conexão unitária que tem o caráter de lei e através da
regulação mediante condições fundamentais últimas, que têm suas raízes em conexões
últimas de elementos psíquicos (HEIDEGGER, 1993, 213).

Poderíamos nos sentir tentados a seguir uma investigação da consciência, baseando-nos


nos resultados mais recentes da psicologia experimental sobre isso. No entanto, tal
procedimento, talvez, ser-nos-ia contraproducente, não só por causa da grande
variedade de correntes ou abordagens, que constitui hoje o que chamamos de
psicologia, mas sobretudo porque a direção de nossa investigação não é ôntico-positiva
e sim fenomenológico-ontológica316. Por isso, vamos operar uma epoché em relação às
ciências positivas, precisamente, em relação à psicologia, esta ciência que, em mais de
uma perspectiva e nas suas várias configurações guarda relação com a fenomenologia,
enquanto fenomenologia transcendental, ou seja, fenomenologia eidética da
consciência ou da subjetividade transcendental317. Tentaremos abrir um caminho,

316
Aqui não podemos entrar numa apresentação aprofundada da relação entre fenomenologia e
psicologia. Damos apenas algumas indicações a respeito do assunto. Antes de tudo convém lembrar que
a fenomenologia de Husserl surge a partir de um confronto contra o psicologismo, ou seja, contra a
pretensão de se fundar a lógica sobre a psicologia. A refutação do psicologismo na lógica, Husserl efetua
no primeiro volume das “Investigações Lógicas” (1900), que se intitula “Prolegômenos para a lógica pura”.
No famoso artigo da revista Logos (1910/11), intitulado “Filosofia como ciência de rigor”, Husserl combate
o naturalismo e o historicismo. Ali Husserl afirma a necessidade de uma ciência da consciência, ou melhor,
de uma fenomenologia da consciência, a qual deveria contrastar com a ciência natural da consciência, ou
“psicologia exata”, que incorre no erro capital de uma naturalização da consciência. Nasce, então, a
compreensão de uma tarefa singular: fundar uma psicologia originária, uma psicologia que não fosse mais
ingênua, fenomenologicamente falando. O método experimental fica apenas no nível das conexões de
fatos e pressupõe aquilo que nenhum experimento é capaz de realizar: a análise da consciência mesma.
Somente uma fenomenologia sistemática da consciência seria capaz de dar às investigações positivas e
empíricas da psicologia uma base segura, conceitos fundamentais claros e direções metodológicas
apropriadas à investigação da vida psíquica.
317
No volume I das “Idéias para uma fenomenologia pura e uma filosofia fenomenológica” (publicado em
1913 no Anuário para filosofia e investigação fenomenológica), Husserl compreende a fenomenologia
como a essência da própria filosofia enquanto ciência rigorosa e originária em seu método, ou seja, como
ciência fundamental da filosofia, com outras palavras, como filosofia primeira. “Fenomenologia pura”
quer dizer: “fenomenologia transcendental”. Transcendental, porém, é a subjetividade que conhece, age,
põe valores. A fenomenologia conserva as vivências da consciência (esta é o resíduo fenomenológico que
permanece, uma vez que é operada a epoché de todo conhecimento posicional) como seu âmbito
temático, agora, todavia, na sondagem sistemática projetada e assegurada da estrutura dos atos das
vivências, juntamente com a sondagem dos objetos, no tocante à sua objetualidade, que são vivenciados
portanto, abstendo-nos de enveredar pelos âmbitos das ciências positivas, voltando-nos
para o mundo da vida, melhor, para o mundo da experiência pré-científica.

Trata-se de um caminho de investigação filosófica. A intencionalidade é nosso fio


condutor. Só que a primeira instância onde se nos apresenta a intencionalidade é já
problemática e deve ser submetida a uma crítica, visando um aprofundamento daquilo
que esta descoberta nos revela. De início, a intencionalidade se nos apresenta como
uma estrutura das vivências que constituem a consciência. Em vez de enveredar-nos
inopinadamente, de improviso, na direção de uma fenomenologia pura e simples da
consciência ou de uma subjetividade transcendental, queremos nos deter naquilo que
chamamos de vivências e submeter este dado a um exame mais atento, pois poderia ser
uma suposição tanto fecunda como fatal para a nossa reflexão. Sem considerarmos a
ambigüidade que este título “vivência” traz consigo, poderíamos incorrer em aporias
das quais dificilmente poderíamos escapar.

II. A “VIVÊNCIA” COMO UM PROBLEMA FENOMENOLÓGICO


PRIVILEGIADO, OU SEJA, COMO CHANCE DE ABRIR A REGIÃO
FENOMENAL DA VIDA

A nossa decisão de operar uma epoché em relação ao saber científico, no caso


específico, em relação à psicologia, enquanto ciência positiva, constitui um rompimento
com o primado do teorético na consideração da vida. Tal rompimento não é motivado
tanto em função de ceder a um primado do prático, mas é motivado sobretudo porque
toda esfera do teorético já pressupõe o chão do âmbito pré-teorético, toda a dimensão

nos atos. À consciência transcendental, tornada acessível através do método das reduções
fenomenológicas (redução eidética e redução transcendental), corresponde o eu transcendental, o eu
mais íntimo no eu, qual pólo subjetivo dos atos egóicos, o eu constituinte do próprio eu constituído (eu
empírico – personalidade), o eu que está à base da constituição do próprio mundo, o pólo subjetivo ao
qual se refere o mundo constituído enquanto pólo objetivo, o núcleo a partir de cuja atividade primordial
surge a constituição da totalidade do que pode se tornar acessível no cogito. Uma tal ciência de essências
(eidética), uma tal fenomenologia da consciência ou da subjetividade transcendental, é o pressuposto
para a fundação de toda e qualquer ciência de fatos (empírica), que deve pressupor sempre uma
compreensão da constituição de seu âmbito objetivo temático. Trata-se de uma ontologia fundamental e
universal, à qual deve se subordinar toda ontologia regional. À medida que as ciências positivas (como a
psicologia, por exemplo) se fundassem fenomenologicamente nas suas ontologias regionais e estas na
ontologia fundamental e universal, que coincide, ao ver de Husserl, com a fenomenologia transcendental,
então se realizaria uma reforma geral do saber e o início daquilo que gerações anteriores sonharam e
chamaram de “mathesis universalis” (Descartes, Leibniz). As bases para uma psicologia fenomenológica
estão apresentadas no volume IX da Husserliana. Aí se encontram os textos de preleções dadas por
Husserl em 1925, com o título de “Psicologia Fenomenológica”, além das conferências de Amsterdam
(1926) sobre o mesmo tema e do artigo, destinado à Enciclopédia Britânica (1928), que marca o
rompimento entre Husserl e Heidegger.
do saber científico já pressupõe a dimensão, mais originária, da vida pré-científica. Tal
dimensão nós chamamos, de modo ainda indeterminado, de mundo da vida.

Nós consideramos que a fenomenologia é a ciência originária desta dimensão originária,


aqui denominada, provisoriamente, de mundo da vida. Ao investigar sobre a
intencionalidade nós tentaremos reconduzir esta investigação ao mundo da vida.
Tomando o atalho que nos desvia de uma fenomenologia transcendental da consciência
não estamos querendo retornar para aquém do saber crítico, voltando-nos para a
direção de um realismo ingênuo, mas estamos querendo ir, por um caminho mais curto,
talvez, para aquela dimensão ainda mais originária do que a dimensão da consciência e
da subjetividade transcendental: a dimensão para a qual acenamos – e por agora só
podemos oferecer um aceno – com a expressão “mundo da vida”.

Quando pusemos em relevo a intencionalidade como estrutura das vivências, como o


estrutural dirigir-se-a-alguma coisa, como o mirar-a-alguma-coisa, o ser-consciência-de-
alguma-coisa, não questionamos o conceito de vivência e sua relação com a vida, relação
que se infere da própria palavra. Antes, portanto, de seguir adiante seguindo o fio
condutor da intencionalidade, é preciso ver o que isto, que chamamos de vivência, cuja
estrutura a priori é constituída pela intencionalidade, tem a ver com a vida. Deste modo,
o título “vivência” constitui, para nós, um problema privilegiado, que pode nos abrir um
acesso para a profundidade, amplidão e originariedade da vida318.

II.1. A questão acerca do ser da psyché /

Ao colocarmos o problema da “vivência”, a nossa primeira tendência é a de interpretá-


la como fenômeno psíquico e, por sua vez, interpretar o psíquico no sentido do objeto
da psicologia319. É certo que a intencionalidade não é algo de físico, mas isto não significa
que seja algo de psíquico, nem necessariamente uma junção do psíquico com o físico.
Este modo de representar a intencionalidade representaria um extravio. É que, com
“físico” e “psíquico” nós entendemos, usualmente, duas regiões do ser, cujos modos de
ser são diferenciados, mas que pressupõem um comum sentido do ser que permanece
inquestionado: ser como ocorrência, ser como ser simplesmente dado.

318
Usamos, aqui, a palavra “problema”, numa acepção diferenciada daquela própria do uso comum. “Pro-
blema” vem do grego pro-bállein: “pro-” indica, aqui, a abertura da possibilidade de manifestação; “-
bállein”, o lançar e o jogar, o acertar e o atingir. “Pro-blema” é, pois, tomado na acepção de um
movimento que, no próprio lance de jogo, atinge a si mesmo, abrindo-se como a possibilidade de uma
manifestação. Decidimos, pois, assumir a vivência como um problema, ou seja, como aquela instância
onde pode abrir-se, para nós, a manifestação da vida no seu sentido mais originário.
319
Desta maneira, Brentano chegou à descoberta da intencionalidade justamente tentando definir o
psíquico em oposição ao físico, fenômeno psíquico em contraste com fenômeno físico, o objeto da
psicologia em contraste com a natureza em geral, enquanto objeto das ciências naturais.
Com efeito, o psíquico, no sentido da psicologia, é um ser, contudo, não um ser em
repouso, mas um ser em constante alteração, uma conexão de processos que decorrem
no tempo, um ser caracterizado justamente pela temporalidade, que não preenche
espaço, uma esfera de ocorrências que pode ser desmontada reconduzindo-as a
processos elementares que se referem a fatos fundamentais (sensações,
representações, etc). A construção de processos superiores é regulada por legalidades
que regem o processo psíquico como tal e que, portanto, explicam o psíquico nele
mesmo. A atomização e a construção dos processos psíquicos pressupõem a unidade do
psíquico como uma concatenação objetiva, ou seja, de processos ou elementos que se
dão a modo de coisas, ocorrências, fatos, só que de natureza psíquica e não física. Tais
processos podem ser “descritos” empiricamente e “explicados” com base nas leis que
os regem, leis psíquicas, diferentes das leis físicas, mas, no fundo similares, pois também
no âmbito psíquico se depara com algo como “energia psíquica”, “causalidade psíquica”,
etc (HEIDEGGER, 1987a, 61).

Deste modo, a tendência de fundo é interpretar aquilo que os gregos, de modo e


originário, chamavam de psyché/ e que os medievais chamavam variadamente de
anima, animus, spiritus, intellectus, mens, o que indicava uma gama de fenômenos
pertencentes ao mundo do si-mesmo, na direção do que os modernos chamam de o
psíquico. Tende-se – ao menos de início e como tendência dominante – a uma psicologia
sem alma. Desalmando-se o psíquico, o mesmo é conduzido à dimensão do meramente
biológico, onde o vivente é restringido à dimensão do orgânico. Por sua vez, através de
um processo de desvitalização, o psíquico é reduzido a uma espécie de química mental:
pode-se atomizar os processos psíquicos reconduzindo-os a elementos últimos e
simples; do mesmo modo, pode-se estabelecer as diversas composições possíveis de se
ocorrer na esfera do psíquico. Atomizando e decompondo-se a química mental, pode-
se descobrir, em última instância, uma espécie de física, de dinâmica psíquica, e
estabelecer as leis que regem a energia psíquica e que assim determinam o
comportamento do indivíduo da espécie animal que é o homem. Esta, ao menos, é a
tendência dominante de uma ciência do psíquico que se compreende a si mesma a partir
do padrão das ciências naturais.

Mas, o que acontece se nós andarmos em outra direção e, em vez de permanecermos


na representação naturalista do psíquico, apropriarmo-nos da descoberta do sujeito?
Pode ser que a situação melhore, contudo, ainda não nos garante um ponto de partida
originário. Com efeito, um processo psíquico como tal, enquanto coisa isolada, não
explica nada, e processos psíquicos, como sensações, percepções, representações da
memória, só são esclarecidos, caso decorram em um sujeito que conhece, sente, age,
põe valores, se relaciona, etc. Certamente, com o sujeito, a conexão objetiva, factual,
do psíquico ganha um ponto de unidade também ele factual, objetivo, mas com isso
permanecemos ainda no mesmo nível do posicional. Continuamos na esfera do ser
enquanto ocorrência.
Assim, para se compreender bem a intencionalidade, enquanto estrutura das vivências,
seria necessário retornar à dimensão originária da psyché/, ou seja, da vida. Mas
isto só é possível se compreendermos a vida de modo não biológico (é altamente
questionável se a biologia moderna sabe alguma coisa acerca da vida) e a psyché de
modo mais originário do que o que usualmente se entende por psíquico, no âmbito da
psicologia em geral (é altamente questionável se a psicologia moderna sabe alguma
coisa acerca da psyché).

II.2. O modo de ser da vivência: não coisa, mas comportamento da vida –


a não referência da vivência ao meu eu, enquanto “este” eu; o
enraizamento do meu eu no acontecer da vida enquanto tal.

Toda vivência é vivência de alguma coisa e este vivenciar tem o modo de ser de um
dirigir-se-a-alguma-coisa, ser-consciência-de-alguma-coisa, mirar-a-alguma-coisa. Dito
de modo ainda mais formal: todo vivenciar é vivenciar-alguma-coisa, sendo, ao mesmo
tempo vivência-da-vivência, consciência-da-consciência: autoconsciência enquanto
consciência de alguma coisa. Em percebendo, em imaginando, em sentindo, em
recordando, em querendo, em pensando, eu vivencio alguma coisa, ao mesmo tempo
em que vivencio, cada vez, a vivência mesma.

Caso nós dirijamos um olhar simples para o que de modo simples e imediato se dá cada
vez na vivência, não apreenderemos de modo algum um processo, uma ocorrência, algo
de objetivo, de factual. O considerar a vivência como algo que ocorre em mim, como um
processo na minha psique, como uma ocorrência psíquica em geral, já é uma
interpretação que não apreende o que se dá, de fato, em meu viver, cada vez que tenho,
isto é, realizo ou sofro, esta ou aquela vivência. A coisificação e objetivação da vivência
já é um cair fora da dimensão originária em que vivência se dá como vivência: da
dimensão originária da vida.

Em toda e qualquer vivência, cada vez, eu me comporto com, eu me dirijo a, me refiro


a alguma coisa. Por sua vez, este comportar-se-com tem o modo de ser de um mirar-a,
de um ser-consciência-de-alguma coisa. A rigor, somente um ente dotado do modo de
ser intencional é que pode se comportar-com, relacionar-se-com, dirigir-se-a alguma
coisa. Podemos chamar de comportamentos as vivências intencionais. Mas, aqui,
convém prevenir-nos de interpretar tais comportamentos de modo
comportamentalista, ou seja, como mecanismos psíquicos. Isto significaria, mais uma
vez, perder de vista a essência intencional dos mesmos. A percepção é um
comportamento. Assim também o são os demais atos ou vivências intencionais: a
recordação, a imaginação, o amor, o ódio, o querer, o desejar, o pensar, etc.

Eu me comporto: em todo e qualquer cogito como cogitante, ou seja, na percepção como


percipiente, no amor como amante, no ódio como odiante, no desejo como desejante,
no pensar como pensante, e assim por diante. Mas há algo de estranho nisto tudo:
vendo, de modo simples, o que se dá, cada vez, em cada vivência, nunca se mostra algo
como um “eu”. É como se, em vez de dizer “eu vivencio”, se pudesse dizer “vivencia-se”
e este vivenciar é cada vez um vivencia-se-alguma-coisa. É como se o “sujeito” de cada
vivência fosse, não tanto eu mesmo, mas a vida. A percepção é vida percipiente, a
imaginação é vida imaginante, o pensamento é vida pensante, a pergunta é vida
perguntante, o desejo é vida desejante.... Mas, poder-se-ia objetar, não sou eu que vivo
cada vez esta vida que se dá através dos diversos comportamentos que eu assumo,
realizo ou sofro? Certamente. Eu, contudo, com a minha consciência, com a minha
subjetividade, já estou enraizado nesta vida, que vive em mim, que eu vivencio, na qual
eu vivo e sou vivido. Os comportamentos, antes de serem meus comportamentos, são
comportamentos da vida: modos de a vida se portar, se trazer a si mesma, em mim e
através de mim.

Todo vivenciar alguma coisa é também e antes de tudo um viver, que se abre para
alguma coisa, um desabrochar da vida. Que cada vivência, enquanto auto-efetivação e
auto-afeição da vida, precise, cada vez, de um eu individual para se concretizar, já não é
um dado particular, ou seja, já não é um dado, que diz respeito apenas ao meu eu
individual, mas é um dado universal, pois toca a todos os eus. Assim, o que chamamos
de “eu” não é a fonte da vivência, mas apenas uma sua passagem; é certamente uma
condição, necessária, mas não suficiente. Que a vida, através do desabrochar e da
fluência de suas infindas vivências, constitua, cada vez, um eu, que, como subjetividade
empírica, individual, com esta ou aquela fisionomia e identidade particular –, este
acontecimento não depende, em última instância, de cada eu individual, não é algo que
lhe está ao arbítrio, mas o seu ser “eu” já o pressupõe. Com outras palavras:

“Justamente porque o sentido da vivência é sem referência ao meu eu


(enquanto este eu, que é assim e assim) é que, no entanto, não se há de ver,
na mirada simples, a referência de certo modo necessária ao eu e o eu
mesmo” (HEIDEGGER, 1987a, 69).

Em que medida a referência ao eu pertence, necessariamente, ao sentido da vivência,


embora não apareça no horizonte de visibilidade daquilo que a vivência vivencia? À
medida que a vivência é, cada vez, minha vivência, isto é, a vivência que se apresenta
aqui, em mim, e que eu vivencio agora320. Eu estou aí, junto da vivência que vivencio,

320
Só que seria errôneo interpretar o “aqui” no sentido da espacialidade do espaço físico
e o “agora” no sentido da temporalidade do tempo físico. O “aqui” se refere a uma espacialidade
eu vivo nela, ela pertence à minha vida, não obstante seja, segundo o seu sentido,
desvinculada de mim, sim, de certo modo, absolutamente distante de mim (HEIDEGGER,
1987a, 69).

Eu posso fazer a experiência das minhas vivências, e de mim mesmo se dando sempre
junto com minhas vivências, mas toda tentativa de objetivar a vivência e o meu eu, de
apreendê-los como uma coisa, um processo, um fato, um objeto, resulta vão, pois
falsifica o sentido mais próprio de ser destes fenômenos. O vivenciar não é nenhuma
coisa, não é também uma ocorrência, algo que começa e termina como um pro-cesso.
O “comportar-se com” não é uma coisa à qual se ajunta uma outra coisa, o “algo” com
que se comporta. Na verdade, o vivenciar e o vivenciado, como tais, não são nunca
acoplados como objetos que meramente ocorrem, que brutalmente existem. Esta não
coisalidade da vivência, do eu, da intencionalidade é já uma boa indicação para nossa
reflexão, embora seja ainda uma indicação apenas negativa, que precisa de ulterior
clarificação.

II.3. Vivência: não processo, mas evento – a significância do que se


manifesta na vivência e para a vivência e o dar-se da vivência como o
acontecer do mundo da vida.

Tentemos tornar presente, de modo mais claro, aquilo que estamos dizendo. Façamos
esta presentificação com base numa vivência concreta: a vivência da percepção.

Quando, neste momento, falamos de “percepção” estamos pensando num caso bem
concreto de percepção: a percepção de uma coisa, que se dá aqui, diante de mim, no
meu ambiente de trabalho, no meu mundo circunstante. Tentemos ver de modo simples
o que acontece com e na percepção de alguma coisa, no caso, na percepção desta mesa
onde escrevo, desta escrivaninha. Para poder ver de modo simples, porém, é preciso
afastar toda interpretação, que já parte de determinados pressupostos inquestionados:
tal como o pressuposto de que a percepção é algo que se dá numa relação de sujeito-
objeto, de que é um resultado da combinação de sensações, é o produto de estímulos
nervosos, etc. Tentemos ver de modo imediato o que se dá de modo imediato.

originária, assim como o “agora” pertence a uma temporalidade originária, que não podem ser
compreendidos a partir da espacialidade e da temporalidade das coisas. Por outro lado, também
seria problemático interpretar o “aqui” e o “agora” no sentido de uma espacialidade e
temporalidade psíquica, se continuamos compreendendo o psíquico a partir do físico. Há que se
interpretar a espacialidade e a temporalidade da nossa presença no seu modo de ser mais
próprio e só aí poder dizer o que significa uma provável espacialidade ou temporalidade
“psíquica”. O caminho contrário é inviável.
Entrando no meu quarto, eu vejo a minha escrivaninha. O que vejo, quando vejo a minha
escrivaninha? Vejo uma coisa de madeira, de cor amarelada, alta e larga tantos
centímetros? Não, eu vejo a minha escrivaninha: este móvel útil como apoio para
escrever; móvel que se dá junto com outros móveis deste quarto, tais como cadeiras e
estante de livros; móvel que traz em si um computador, uma luminária, lápis, caneta,
papel, disquetes, livros. Se um visitante entrar em meu quarto, verá esta mesa da
mesma forma e saberá: ali está a mesa onde meu amigo trabalha, onde ele escreve sua
tese, onde estuda e prepara suas aulas. É verdade que, tanto eu quanto meu amigo
vemos esta mesa como uma coisa feita de madeira, de cor amarelada, que possui esta
extensão, este cumprimento, esta largura. Mas não é assim que, primeiro vejo esta coisa
como mera coisa de madeira, para então colar sobre ela um significado: o de
escrivaninha. Vejo desde já uma escrivaninha, este móvel que tem esta utilidade
específica: servir de apoio para ler e escrever. Vejo-a como este móvel que aparece junto
de outros móveis. Vejo de que ele é feito, se está bem conservado ou não, se precisa de
uma nova pintura ou não. Mas isto nada tem a ver com ver a escrivaninha como um
mero objeto que ocorre aí no espaço, com esta ou aquela extensão, esta ou aquela
configuração. Ao ver esta escrivaninha eu não a vejo como mera coisa extensa, mas
como coisa-de-uso. Eu não a vejo como uma coisa, que primeiro aparece na sua brutal
existência, no existir enquanto ocorrer nu e cru, mas eu a vejo como coisa com este
significado: o de ser escrivaninha. O significado não é algo que se cola à coisa de modo
posterior à percepção da coisa na sua crueza. A coisa, percebida como coisa de uso, já
aparece com um significado: escrivaninha. Contudo, vamos supor que alguém nunca
tenha visto uma escrivaninha na sua vida, não saiba ler nem escrever. Ao entrar no meu
quarto ele verá a escrivaninha como mera coisa de madeira, os livros como papéis
tingidos com manchas pretas, o computador como uma caixa de metal qualquer?
Certamente que não! Ele verá “trens”, “troços” que, para ele, não servem para nada.
Mas um “troço” não é uma mera coisa. Um “troço” é uma coisa de uso que adquire a
significação de importunidade, ou cuja referência de uso, a referência do seu “para-que-
serve” permanece indeterminada. Pode ser que este alguém, sendo meu amigo, me
respeita e respeita o meu trabalho. Neste caso, ao entrar no meu quarto ele irá ver o
meu ambiente de trabalho com todas as suas “tralhas” e, mesmo não sabendo o que
fazer com elas, irá considerá-las como coisas que fazem parte do mundo deste amigo,
deste amigo que, diferente dele, passou anos estudando na escola e até hoje gosta de
estudar, que sempre está preocupado em escrever...

Na vivência da percepção desta escrivaninha algo se me dá a partir do meu mundo


circunstante imediato. Trata-se deste algo mundano-circunstante, a saber, a
escrivaninha, que aparece, cada vez, a partir desta ou daquela perspectiva, nesta ou
naquela iluminação, dentro deste ou daquele fundo perceptivo. Trata-se desta
escrivaninha, que nunca aparece isolada, mas sempre dentro de uma conexão
instrumental: livros, papéis, lápis, caneta, computador... No entanto, mesmo se eu visse
esta escrivaninha em outro lugar, jogada em qualquer parte, eu a veria como algo, que
foi jogado fora ou como algo, que está fora do lugar. Sempre, portanto, como algo, que
remete a outros algos, com que mantém uma relação de referência instrumental. Todas
estas coisas, que vejo no meu quarto, juntamente com a escrivaninha, não são meras
coisas, que existem primeiro para depois ter um significado. São coisas, que já aparecem
como tendo este ou aquele significado. O significado da coisa, o seu ser-para-isso ou
para aquilo, ou o seu indeterminado ser-para, é o que percebo por primeiro, quando
vejo uma coisa de uso dentro do meu quarto321.

Vivendo, cada vez, num mundo circunstante, sempre e por toda a parte, tudo é dotado
do caráter de mundo, tudo é significativo para o mundo da vida. Por toda a parte e
sempre o mundo acontece como mundo (HEIDEGGER, 1987a, 70-73).

O mundo acontece. Está sempre acontecendo. A vida acontece. Está sempre


acontecendo. Mundo e vida se pertencem. O mundo é mundo da vida. O mundo é, cada
vez, o mundo vivenciado por mim. Eu sou, cada vez, no vivenciar o acontecimento do
mundo. Em cada vivência, no desabrochar de cada evento da vida, eu já sou lançado no
mundo, eu já estou no aberto do mundo. O meu eu vibra, ressoa, em cada vivência. E
assim, o eu de cada um está sempre vibrando, oscilando, ressoando com cada vivência
que acontece no viver de cada um:

“Só no ressoar-com de cada eu próprio é que se vivencia um algo mundano-


circunstante, é que acontece mundo, e onde e quando acontece mundo para
mim, eu estou de alguma maneira bem ali, juntinho” (HEIDEGGER, 1987a,
73).

Tudo quanto se dá com o mundo tem o poder de me tocar, de me afetar, de me afeiçoar.


Somente a mera coisa, o mero objeto, resultado de uma desmundanização do mundo e
de uma desvitalização da vida, não me toca. Ela permanece o indiferente322. Ao
contrário, quando o mundo se dá – e ele se dá sempre, pois mesmo quando nós
operamos uma desvitalização da vida e uma desmundanização do mundo em favor de
uma objetivação que se contenta em observar meras coisas, mesmo ali o mundo é o
chão a partir donde isto se torna possível – quando o mundo acontece, ali algo me vem

321
Faz parte da essência intencional (intentionales Wesen) de todo o ato (Akt) o seu sentido apreensional
(Auffassungssinn), juntamente com a sua modalidade própria de ser consciência-de (Bewusstseinsweise).
Com efeito, cada modalidade de ser-consciência-de é uma modalidade de ter-em-mira-alguma-coisa,
sendo que, este “alguma coisa” jamais se dá como algo neutro, mas sim como um algo determinado, que
apresenta este ou aquele significado para a consciência. Neste sentido, a intencionalidade é constituinte
da significância de tudo aquilo que pode ser vivenciado na experiência da vida. Todo ato é, enquanto
intencional, um dar significado àquilo, que, nele e para ele, se manifesta (bedeutungsverleihender Akt).
Por conseguinte, todo o ato, enquanto intencional, possui a sua essência significacional
(bedeutungsmässigen Wesen). Todo “alguma coisa” vivenciado terá, pois, o sentido de significância
(Bedeutsamkeit). O mundo será, portanto, a totalidade da significância, em que eu, cada vez, vivo.
322
O “neutro”, o in-diferente da desmundanização, contudo, ainda é um modo de significância.
de encontro, algo me toca, me provoca, me fascina. Disto é testemunha a poesia, a arte,
a experiência religiosa, o pensar filosófico, que se compreende como tal.

A primeira condição para compreendermos melhor a intencionalidade é não


interpretarmos as vivências como ocorrências, ainda que como ocorrências psíquicas, é
não objetivá-las, não representá-las, não fixá-las. Elas não são coisas. Não são nem
mesmo processos psíquicos. Vendo, de modo simples, a vivência e apreendendo-a assim
como ela se dá, de modo imediato, eu não vejo nada de psíquico. Vivência não é algo de
psíquico, uma ocorrência que se passa na esfera da minha consciência, como em uma
cápsula, algo de que me aproprio só posteriormente e desde fora. Aliás, aqui não tem
mais sentido falar de um “dentro” em oposição a um “fora”, como não tem mais sentido
falar de “psíquico” e de “físico”.

Entretanto, as vivências acontecem. Nelas e com elas está se dando constantemente o


acontecimento da vida, o acontecimento do mundo, o acontecimento do mundo da
vida, do meu viver-no-mundo. A vida é sempre mundana323. É sempre historial324. Neste
sentido, podemos compreender a vivência intencional como evento. O processo é
apenas uma pálida reminiscência do evento. Um resto, um algo que sobrou da
desvitalização da vida, da desmundanização do mundo. O vivenciar não é um processo
que passa por mim e que eu posso representar como um objeto. No vivenciar, eu
aconteço e, por outro lado, acontece algo comigo (HEIDEGGER, 1987a, 75)325. As
vivências vivem a partir do mais próprio da vida, elas vivem a vida a partir do próprio da
vida.

323
Aqui o adjetivo “mundana”, referida à vida, não tem a conotação usual que esta palavra recebe a partir
de um juízo moral ou a partir de uma concepção religiosa ou sacral qualquer. É tomada no seu sentido
literal: trata-se daquilo que guarda uma relação íntima com o mundo. Por sua vez, não deve também ser
entendida no sentido daquilo que ocorre dentro do mundo. Aqui a palavra vida não significa algo que
ocorre dentro do mundo, uma propriedade de entes que nós chamamos de viventes (plantas, animais) e
que ocorrem dentro do mundo. Ao contrário, aqui a palavra vida está acenando para o acontecer do
mundo nele mesmo, no seu próprio.
324
Por enquanto é inevitável que palavras primordiais como “mundo” e “vida” permaneçam
indeterminados. Vamos dando apenas alguns acenos para, na medida em que a reflexão avançar, revelar
a profundidade daquilo que, aqui, apenas se anuncia. Assim, o aceno para a historicidade e temporalidade
originária da vida deve aparecer, aqui, como apenas um aceno. Muito ainda nos falta para chegarmos a
esclarecer o que este aceno está insinuando.
325
Estamos traduzindo, aqui, o verbo alemão “es ereignet” por acontece. Tudo porém depende de se
entender o verbo “acontece” não na indiferença do “ocorre”. A palavra evento quer se referir aqui ao
acontecer como inauguração de uma nova possibilidade da vida mesma. É assim que um poeta canta: “...
E da minha infinita tristeza aconteceu você” (Jobim). O verbo “er-eignen” parece sugerir que “Ereignis” é
o que faz com que algo seja propriamente o que é, o que pro-voca algo a ser o seu próprio (“eigen”) ser.
Esta palavra, que terá um peso decisivo no pensamento de Heidegger a partir dos anos trinta, aqui
aparece de modo ainda não determinado em sua profundidade, amplidão e originariedade. Mas o modo
como ela aparece aqui pode ser o pressentimento do que jaz mais profundamente e que já de algum
modo se anuncia neste nível da reflexão fenomenológica.
III. A VIVÊNCIA DA PERCEPÇÃO COMO CASO EXEMPLAR PARA A
ANÁLISE DA INTENCIONALIDADE

Se compreendo que cada vivência, por mais cotidiana e modesta que seja, a percepção
natural de uma coisa, por exemplo, é um evento onde cada vez acontece a vida,
acontece o mundo, onde eu mesmo “aconteço” como ser-no-mundo-da-vida, então
abre-se, para mim, um novo caminho para a compreensão daquilo, a que a descoberta
da intencionalidade quer conduzir.

O desafio primeiro deste caminho é deixar vir à fala a vida na sua pregnância. Trazer à
fala não significa necessariamente representar e objetivar. Vivendo, somos provocados
a deixar vir à fala, na imediaticidade do seu dar-se, a vida mesma, o mundo que ela faz
surgir, a cada vez. As palavras devem ser ressonância, vibração da vida mesma. Elas
devem provir da vida e, no curso de seu discurso, jamais deixar para traz sua
proveniência. Elas hão de expressar as motivações e as tendências da vida. A linguagem
ela mesma há de poder acontecer com a vida. O pensar e o falar devem se tornar não
objetivantes, ou seja, devem poder vivenciar o viver da vida mesma e, no vivenciar, já
compreender e expor, na linguagem, o que aí se abre e se revela. Somente em uma tal
intuição hermenêutica podemos seguir o fio condutor da intencionalidade como
descoberta fundamental da investigação fenomenológica (HEIDEGGER, 1987a, 117).

III.1. Necessidade de manter o que, até aqui, evidenciou-se acerca da


intencionalidade, em vista de uma incursão na região originária da vida

Por agora, estamos acenando para esta região de fenômenos: a vida. Nós tentamos, de
início, realizar a fenomenologia como a ciência originária desta região originária e
fundamental, que aqui chamamos com o nome, ainda um pouco indeterminado, de
vida. Por sua vez, aqui a palavra ciência não deve, certamente, ter nada a ver com
objetivação ou com construção teorética, já que esta região não se deixa objetivar e
toda tentativa de sistematização, de construção teorética, soa arbitrária e acaba
fechando o acesso aos fenômenos, em vez de abrí-los. Trata-se, portanto, não de uma
ciência positiva, ôntica, mas de uma ciência fundamental, ontológica.

A fim de fazer uma incursão nesta região originária da vida nós queremos seguir o fio
condutor daquilo, que foi anunciado inicialmente como estrutura das vivências da vida,
que se dá, de modo imediato, na nossa experiência: a intencionalidade. Nós tentamos
uma compreensão mais aprofundada do seu sentido mais próprio e da sua constituição.
Dizíamos que cada vivência, cada ato ou comportamento, é caracterizado pela intentio,
ou seja, pelo dirigir-se a alguma coisa. Dizíamos também que este dirigir-se-a tem o
modo de ser de um mirar a alguma coisa e de um ser consciência de alguma coisa.
Assim, o representar é representar de alguma coisa, a recordação é recordação de
alguma coisa, esperar, amar, odiar são sempre esperar, amar, odiar alguma coisa. Já
dissemos que isto pode soar como uma imensa banalidade. Pode também ser tomado
como uma mera tautologia. Contudo, já no primeiro passo da nossa investigação,
começamos a descobrir que aí se esconde uma estrutura peculiar, a priori, de toda
vivência, a estrutura do referimento intencional. É preciso abordar essa estrutura,
guardando sempre o cuidado de não entender a intencionalidade como relação
indeterminada de algo psíquico com algo físico. E alertados para a indicação de que o
que chamamos de vivência nada tem a ver com a ocorrência de algo psíquico dentro de
uma “cápsula” chamada consciência, tentemos agora seguir de modo mais concreto e
explícito o fio condutor da intencionalidade.

III.2. O caso exemplar da percepção natural concreta

Tentemos isto partindo de um caso exemplar, mais facilmente acessível, de


comportamento ou vivência intencional: uma percepção natural concreta, a saber, de
uma cadeira, que se encontra, aqui, em meu quarto. De fato, esta vivência é muito
cotidiana e facilmente acessível: não preciso de um esforço considerável para perceber
esta cadeira que se encontra em meu quarto. Todas as vezes que eu entro nele eu a
noto ali, ainda que eu não me interesse especificamente por ela. Às vezes ela se
encontra em meu caminho, e eu preciso arredá-la para poder passar ou para poder
pegar um livro que se encontra na estante por detrás da cadeira. Portanto, nada de
extraordinário. E, no entanto, talvez não seja fácil assim descrever a percepção desta
cadeira. Toda a dificuldade, com efeito, está em ver de modo simples o que nesta
simples percepção se dá e manter o que se viu em toda a análise, a qual não deve ficar
no mero relevamento ôntico e empírico da cadeira e do estado de coisas descoberto
pela percepção, mas deve partir para uma consideração ontológica, ou seja, uma
consideração a respeito do ser, da estrutura a priori da percepção mesma, enquanto
ato, comportamento, ou vivência intencional.

Além disso, é preciso trazer à fala a percepção na sua “naturalidade” e “concretude”.


Com “naturalidade” não entendemos aquilo que uma visão naturalística da percepção
põe em relevo, mas justamente o contrário. Uma investigação da audição ou da visão,
por exemplo, numa perspectiva naturalística, realizada em laboratório, seria um modo
mediato de abordagem da percepção; não só: mediato e artificial, técnico, reconstruído.
Tal método não nos abriria o acesso ao que constitui o sentido intencional da percepção
pois, na sua impostação fisicista, já ignorou totalmente que visão e audição são dotadas
de caráter intencional. Somente se conseguirmos manter um olhar fenomenológico
para o que se mostra de modo natural e imediato na percepção, a partir da percepção
e como percepção, é que conseguiremos também trazer à fala, de modo apropriado, o
que se dá como o fenômeno, a coisa mesma d