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FENOMENOLOGIA
Pensar o ser e o nada das coisas no seu vir-a-ser e contra o seu não-ser e mero
aparecer: isso é filosofia. Habitar a clareira da revelação das coisas: é saber, sabença,
ciência. Neste sentido, filosofia não é uma ciência. É a ciência. A ciência ontológica: que
busca pôr em obra e trazer ao discurso e ao conceito o acontecer do ser e da verdade
(re-velação) na existência.
1
Edmund Husserl nasceu em 1959 em Prossnitz (Morávia) e morreu em 1938 em Freiburg (Sul da
Alemanha). A princípio foi estimulado pelos estudos de Bolzano e pela aprendizagem junto a seu mestre
Franz Brentano. Partindo de estudos filosófico-matemáticos e lógico-psicológicos chegou à descoberta do
método fenomenológico.
2
A atuação decisiva de Husserl se deu em seu magistério nas cidades de Göttingen (1901-1916) e Freiburg.
Sobretudo a partir de seu ensinamento em Göttingen surgiram os círculos fenomenológicos, cujos nomes
de destaque são: Adolf Reinach, Edwig Conrad-Martius, Jean Hering, Moritz Geiger, Alexander Pfänder e
Edith Stein. O órgão de expressão desses círculos de investigadores que deram início ao movimento
fenomenológico foi o Jahrbuch für Philosophie und phänomenologische Forschung (Anuário para Filosofia
e Pesquisa Fenomenológica) (12 vols., Halle, 1913-1930). Nesse Anuário publicaram-se importantes obras
da filosofia do século XX, como Ideen zu einer reinen Phänomenologie (Idéias para uma Fenomenologia
Pura), de Husserl; Der Formalismus in der Ethik (O Formalismo na Ética), de Scheler; e Sein und Zeit (Ser e
Tempo), de Heidegger. O prefácio do primeiro volume declarava a convicção comum que unia os
pesquisadores: de que “a única maneira possível de explorar os tesouros legados pela tradição filosófica
[...] é a de aprofundar até às fontes primordiais da intuição e nelas haurir as evidências de ordem
essencial”. A fenomenologia é aí compreendida como método de descrição pura dos dados da intuição
das essências. Convém notar que, aqui, a palavra “intuição” significa uma percepção imediata. Trata-se
de um ver simples e imediato, direto, da coisa mesma. Na fenomenologia reconhece-se, para além da
intuição sensível do objeto sensível singular, uma intuição categorial, que se dá como uma apreensão
evidente das conexões lógicas e matemáticas. Além disso, reconhece-se uma intuição da essência, que se
dá como uma visão intelectual das configurações essenciais dos entes.
3
Max Scheler (*1974, em Munique e +1928, em Frankfurt) recebeu a influência de Husserl sobretudo em
Munique. Orientou suas pesquisas, de modo especial, para a ética e a filosofia da religião. Reconhece,
para além de uma “intuição intelectual” (apreensão imediata da essência) uma “intuição emocional”,
como fundamento da apreensão do valor.
4
Martin Heidegger (1889-1976) lecionou em Freiburg e em Marburg (1923-1928). Foi introduzido na
fenomenologia por Husserl, mas seguiu um caminho próprio através da colocação da questão pelo sentido
do ser (Ontologia Fundamental – Pensamento Histórico do Ser).
exemplo, Gabriel Marcel5, Jean Wahl6, Mikel Dufrenne7, Merleau-Ponty8, Jean-Paul
Sartre9 e Emmanuel Levinas10, Michel Henry11 e Jean-Luc Marion12. A fenomenologia,
assim entendida, atuou ainda como fator decisivo no surgimento da filosofia
hermenêutica contemporânea: com Paul Ricoeur13 e Hans-Georg Gadamer14.
Recentemente teve desenvolvimento significativo nas investigações de Heinrich
Rombach15 (Würzburg – Alemanha). A expansão do movimento fenomenológico se
deu no restante da Europa, sobretudo na Bélgica (Louvain)16, na Holanda17, na
5
Gabriel Marcel (1889-1973): filósofo, dramaturgo e crítico francês. Propõe uma “ontologia concreta”.
Para ele o ser não é um problema do conhecimento, mas o mistério do pensamento, mistério do qual o
homem participa especialmente através de sua reflexão.
6
Jean Wahl (1888-1974): introduziu uma nova leitura de Hegel e de Kierkegaard. Fundou a Revue de
Métaphysique et de Morale. Influenciou Sartre e Levinas.
7
Mikel Dufrenne (1910-1995): dedicou-se sobretudo à fenomenologia da experiência estética.
8
Maurice Merleau-Ponty (1908-1961): marcou presença por sua fenomenologia da percepção, do
comportamento e da corporeidade. Dirigiu, junto com Sartre, a revista Les Temps Modernes (1945-52).
9
Jean-Paul Sartre (1905-1980): filósofo e autor de numerosas novelas e obras de teatro. Representante
do existencialismo e defensor do marxismo. Dirigiu com Ponty a revista Les Temps Modernes. Em L’Etre
et Le Néant (O ser e o nada), de 1943, apresenta uma ontologia fenomenológica que parte do dinamismo
da consciência do eu, enfatizando a liberdade como constitutiva da existência humana.
10
Emmanuel Levinas (1906-1995): enfatizou a ética como filosofia primeira e, nela, o tema da alteridade.
11
Michel Henry (1922-2002): desenvolve uma fenomenologia da vida, a partir da sua imanência no
indivíduo. Possui estudos sobre o corpo, sobre a psicanálise e sobre Marx.
12
Jean-Luc Marion (*1946): investiga a fenomenologia do dom e da doação. Intérprete de Descartes e de
temas do cristianismo.
13
Paul Ricoeur (1913-2005): aplicou a fenomenologia à hermenêutica como teoria da interpretação.
Possui estudos sobre o mito, a hermenêutica bíblica, a psicanálise e a política contemporânea.
14
Hans-Georg Gadamer (1900-2002): Foi aluno de Natorp, Hartmann e Heidegger (em Marburg).
Expoente da hermenêutica filosófica do século XX.
15
Heinrich Rombach (1923-2004): foi aluno de Heidegger. Propôs uma fenomenologia das estruturas
profundas. Seu pensamento tem três vertentes: a ontologia estrutural (ontologia da liberdade); a filosofia
da imagem e a hermética. Desenvolveu significativas contribuições para a filosofia da educação e a
pedagogia. Manteve um rico intercâmbio com a Ásia (Japão, Coréia, etc). No Brasil, seu pensamento
chegou sobretudo através de seu ex-aluno, o frade franciscano frei Hermógenes Harada (1928-2009).
16
Na cidade de Lovaina se desenvolveu um centro de estudos fenomenológicos, onde se destacaram A.
Dondeine e A. De Waelhens. Depois da morte de Husserl (1938), todo o seu espólio foi transferido
clandestinamente, por causa das ameaças do nazismo, para Lovaina, graças à ação do frade franciscano
H.L. Van Breda. Ali se fundaram, então, os Arquivos Husserl. A transcrição e a ordenação dos textos
inéditos de Husserl foram feitas, inicialmente, por obra de dois de seus colaboradores: Eugen Fink e
Ludwig Landgrebe (estes dois, juntamente com G. Funke, O. Becker e H. Reiner foram importantes, na
Alemanha do pós-guerra, por uma Husserl Renaissance). Já a publicação em 28 volumes da obra de
Husserl (a “Husserliana”, ou Edmund Husserl Gesammelte Werke – Obras reunidas de E. Husserl) foi
coordenada por Walter Biemel, Rudolf Boehm e Iso Kern. A partir do Husserl Archives de Lovaina se publica
uma coleção de estudos importantes na literatura fenomenológica: a Phaenomenologica.
17
Destacam-se aí os trabalhos filosóficos de S. Strasser, Van Peursen e H.J. Pos, bem como os trabalhos
de psicologia de Buytendijk e de psicopatologia de H.C. Rümke e Van der Berg.
Suíça18, na Itália19, na Espanha20 e em Portugal21. Para além da Europa, o movimento
fenomenológico se estendeu aos Estados Unidos da América22 e chegou também à
América Latina23 e à Ásia, onde se formou a escola fenomenológica de Kyoto
(Japão)24.
18
Destacam-se aí P. Thévenaz (Filosofia), Biswanger e Kuhn (Psicologia, psiquiatria e antropologia).
19
Destaque para os nomes de A. Banfi e para aqueles ligados ao Movimento de Gallarate: Castelli,
Semerari, Lazzarini, Pucci, Pedroli e E. Paci. O Movimento de Gallarate buscava uma renovação cristã do
espiritualismo e do idealismo da tradição italiana. Enzo Paci foi aluno de A. Banfi e se preocupou
sobretudo com uma renovação das ciências psicológicas e sociais. Também buscou conciliar a última
filosofia de Husserl com uma interpretação de Marx.
20
Na Espanha, sobressaem o nome dos pensadores: José Ortega y Gasset (1883-1955); Xavier Zubiri
(1898-193); Manuel Garcia Morente (1886-1942); e Julián Marías (1914-2005).
21
Em Portugal se destacam: Joaquim de Carvalho, Luis Cabral de Moncada, Miranda Barbosa, Delfim
Santos, José de Brandão, Júlio Fragata, Alexandre Morujão, Gustavo de Fraga, José Enes, Maria Manuela
Saraiva, Henrique Gomes de Araújo, Maria José Cantista, Eduardo de Soveral, Celestino Pires, José
Henrique dos Santos e João Paisana.
22
Dos círculos de primeiros discípulos de Husserl contavam alguns estadunidenses: Hocking, Farber,
Cairns. A partir de 1933, ano da ascensão do nazismo na Alemanha, muitos fenomenólogos da primeira
hora emigraram para os E.U.A: Moritz Geiger, fenomenólogo da estética; Aron Gurwitch, inventor da
teoria de campo da consciência, estudioso da Gestaltpsychologie (Psicologia da Forma), de William James,
Piaget e K. Goldstein; e Alfred Schutz, que aplicou a fenomenologia aos estudos sociológicos. Nos E.U.A,
a fenomenologia se desenvolve em diálogo com a tradição anglófona, sobretudo com o empirismo e com
a filosofia analítica. Exerce forte influência na psicologia da forma e na psicanálise. Na teologia, destaca-
se o nome de Paul Tillich (1886-1965). Nos E.U.A. criou-se a International Phenomenological Society, que
publica, desde 1940, a revista Philosophy and phenomenological Research.
23
A América Hispânica recebeu a fenomenologia especialmente pela mediação do filósofo espanhol
Ortega y Gasset e de seus discípulos. No México, a fenomenologia foi trazida por filósofos espanhóis
exilados durante a Guerra Civil, como José Gaos (1900-1909), Eduardo Nicol (1907-1990) e Joaquin Xirau
(1895-1946). A esses nomes se adiciona o nome do mexicano, filósofo do direito, García Maynes (1908-
1993). Na Argentina sobressaem os nomes de Francisco Romero (1891-1962), Risieri Frondizi (1910-1985)
e Carlos Astrada (1895-1970). No Peru, destaca-se o nome de Alberto Wagner de Reyna (1916-2006). Na
Venezuela sobressaem os nomes de García Bacca (1901-1996) e de Ernesto Mays Vallenilla (*1925). No
Brasil a fenomenologia encontra recepção a partir dos anos 40, por intermédio da leitura de Ortega y
Gasset. O primeiro filósofo a dar atenção à fenomenologia foi Vicente Ferreira da Silva (1916-1963). Em
seguida, a fenomenologia influenciou de modo decisivo a psicologia, através de Nilton Campos (1898-
1963) e Isaías Paim (*1911). Na filosofia, destacam-se os nomes de Gerd Bornheim (1929-2002),
Emmanuel Carneiro Leão (*1929), Gilvan Luiz Fogel (*1947), Ernildo Stein (*1934), Zeljko Loparic
(*1939) e Creuza Capalbo. Na articulação entre filosofia e literatura destaca-se Benedito Nunes (1929);
e na área do Direito, é notável a contribuição de João Alberto Leivas Job (*1936).
24
Essa escola se formou em diálogo com o pensamento ocidental, especialmente com a fenomenologia
de Heidegger. Principais nomes: Kitarô Nishida, Hajime Tanabe, Conde Kuki, Shin-ichi Hisamatsu, Kôichi
Tsujimura e Shizuteru Ueda.
um conceito de método e este conceito de método - e seu "espírito" (sopro de vida,
alento, vitalidade) - possibilitou um modo diverso de colocar questões do
pensamento (filosofia) e de pesquisar problemas do conhecimento (ciência). Deste
modo diverso ou do seu "espírito" foram surgindo pensadores, investigadores,
pesquisadores, e, em torno destes, círculos de pensadores, investigadores,
pesquisadores. O círculo destes círculos, em perene circulação, por meio do
diálogo e da discussão, é o que se chama de "movimento fenomenológico".
Tudo isso tem a ver com a fenomenologia como realidade efetiva, são fatos
que se deixam atestar numa pesquisa historiográfica da história do movimento
fenomenológico. Mas isso não é o essencial. É epifenômeno da fenomenologia. O
essencial, o fenômeno propriamente dito da fenomenologia, é a fenomenologia
como possibilidade. Seguimos assim uma indicação de Heidegger que aponta para
além das realizações já constituídas, na direção da possibilidade-fonte criativa e
inesgotável de novas realizações. A propósito disso, convém recordar duas citações
de Heidegger, onde a fenomenologia no seu próprio é apresentada como
possibilidade. A primeira é de 1927, e aparece em Ser e Tempo:
25
M. HEIDEGGER. Ser e Tempo (Parte I). Petrópolis-RJ: Vozes, 1988, p. 69.
fenomenologia como possibilidade do pensamento. Depois, em que consiste este
“de corresponder ao apelo daquilo que se há de pensar” e em que sentido a
“abertura-manifestação” da “coisa do pensar” (o que nele está em causa, em
questão, a tarefa que está no centro do seu interesse), “permanece um mistério”.
MEDITAÇÃO FENOMENOLÓGICA
26
Thomas Merton. A via de Chuang-Tzu. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 166-168.
se mantenha, enquanto busca, no vazio do não-saber; vazio, que é abertura da
receptividade. Receptividade para que? Resposta: para a coisa mesma na plenitude de
sua evidência. Pensar é receber e captar a coisa mesma vindo à luz na sua evidência.
27
Conferir o poema de Alberto Caeiro (Fernando Pessoa):
28
Aqui não separamos “aisthesis” e “nous”, sensibilidade/percepção e intelecto/razão. A metafísica
separou aisthesis e nous, o aisthetikós (sensibilis) e o noetikós (intelligibilis), o físico e o meta-físico. Mas,
não haveria uma unidade anterior a esta separação, a esta cisão, para a qual o homem meta-físico, que
somos todos nós, já não tem mais um sentido? E se fosse assim que a verdade da aisthesis no homem
fosse o nous? E se o nous fosse, fundamentalmente, aisthesis? Cfr. Ética a Nicômaco VI 12, 1143 b 5.
29
É por isso que Aristóteles, no primeiro livro da Metafísica, falando dos primeiros que filosofaram em
torno da verdade (philosophantas peri tes alétheias), diz que eles foram constrangidos a investigar além
do que tinham pensado até então, à medida que a coisa mesma abriu-lhes caminho (autó tó pragma
hodopoiesen autois) (Metafísica A 3: 983 b 2; 984 a 18-19).
se abrir e por se per-fazer, por se consumar, por se levar a término, à consumação (se
finitizar). Para o pensamento que medita, isto é, que não representa e calcula,
simplesmente, mas que questiona, isto é, busca, investiga, e segue o sentido do
fenômeno, a sua fenomenologia, esta viagem não conduz a outro lugar do que para ali
onde nós já sempre estivemos, desde que começamos a nascer, crescer e morrer a cada
dia:
O pensar que medita não é razão: não é nem percepção do que é pré-dado
(nous), nem representação da consciência, nem cálculo e planificação (ratio). É
encaminhamento na investigação do sentido de ser. É o que nos afina na
correspondência com o que é mais digno de ser pensado. Questionar é a piedade do
pensamento. No caminhar do pensamento vai se abrindo o que é digno de ser
questionado. A dignidade deste está em sua grandeza. É, de fato, o mais vasto, o mais
profundo e o mais originário. É o mistério de ser. O retraimento do ser, enquanto nada,
30
Heidegger, Martin. Ciência e pensamento do sentido. Em: Ensaios e Conferências. Petrópolis/Bragança
Paulista: Vozes/Edusf, 2002, p. 58.
isto é, enquanto nada de ente (nem mesmo entidade do ente). A meditação nos conduz
para a referência de ser com o ser que nos constitui (Da-sein), na qual nós já sempre
estamos, embora displicentemente. O pensar que medita é o pensar do ser. Pertence
ao mistério de ser. Tem como tarefa custodiar a sua verdade (desocultamento –
ocultamento). Tem como encargo dizer o ser. Ou melhor, carece de escutar a palavra do
ser e de a ela corresponder. Assim, em seu encaminhamento, o pensar pode deixar de
ser questão e ser “o simples dizer de uma palavra”31. O pensar está, assim, a serviço da
linguagem (a palavra do ser). É escuta e correspondência a esta palavra do ser. Acontece
que, com isso, já dissemos demais. Antes, precisamos aprender a questionar o que há
de mais digno de ser questionado e, em referência a isso, questionar o sentido da
linguagem. O que é a linguagem? A linguagem é? E se a linguagem não for nenhum ente?
A linguagem vige então como não ente? Ela vige como o ser vige? Como linguagem e ser
se referem um ao outro? Como o homem se refere à linguagem e a linguagem se refere
ao homem a partir da referência de ser e homem? Todas estas perguntas se erguem no
início de nosso curso, como convite a um percurso, isto é, a perfazer um caminho na
experiência da linguagem. É o que nos toca pensar neste exercício deste semestre.
31
Idem, p. 60.
A GÊNESE DA HODIERNA FENOMENOLOGIA EM SEU “KAIRÓS”
32
Cfr. M. Heidegger, SZ, 27.
33
M. Heidegger, SZ, 34.
34
M. Heidegger, SZ, 38.
conhecer e dizer”35. A possibilidade do pensar, portanto, lhe advém justamente do
medir-se com a impossibilidade do conhecer e dizer, com o mistério. Nisso se
atesta a sua finitude. Mas não se trata de uma finitude des-graçada. É, antes, uma
finitude a-graciada. Com efeito, a impossibilidade não é tão somente o nada
negativo de uma possibilidade. O nada da possibilidade do pensamento, na
verdade, diz que o pensamento é atraído e movido justamente por aquilo que ele
mesmo não é. A filosofia é o máximo da autorresponsabilização autônoma do ser
humano através da razão. Mas no seu bojo está a resposta à solicitação de seu outro:
o mistério do ser. Todo o pensador que faz a experiência da doação do mistério
primigênio do ser é fenomenólogo. E não faz sentido aqui falar de predecessores e
sucessores, pois em todo o tempo o pensamento dos pensadores, de diferentes
modos e em diferentes concreções e situações, está sondando o mesmo na sua
desconcertante e enigmática simplicidade.
35
Leão, Emmanuel Carneiro. Aprendendo a Pensar I: o pensamento na modernidade e na religião.
Teresópolis: Daimon Editora, 2008, p. 196.
fenomenológica de Heráclito, de Parmênides, de Platão, de Aristóteles, de
Agostinho, de Dionísio Areopagita, de Anselmo, de Tomás de Aquino, de
Boaventura, de Mestre Eckhart, de Nicolau de Cusa, de Descartes ou Pascal, de
Kant ou Hegel, não é a imposição do “ponto de vista” de Husserl ou de Heidegger
ou de qualquer outro pensador do “movimento fenomenológico”, mas é, antes, a
liberação da fenomenologia de cada um destes pensadores (e, naturalmente, dos
outros não citados) segundo a perfilação que ela toma a cada vez. Quer dizer: em
que sentido no pensar deste ou daquele pensador o pensamento se mede com o
seu outro, com aquilo que não está em seu poder, mas que é justamente o que o
possibilita, o potencia, o “mistério do ser”. Todos os pensadores dizem o mesmo.
Procuram mostrar o Mesmo! Embora o façam em horizontes, perspectivas,
discursos diferentes... Todos participam do mesmo diálogo do pensamento em
torno da coisa que provoca o pensamento a pensar, o “ser”, a “realidade”, a “vida”,
como quisermos chamar isso que não se deixa nomear – ou que só a custo, como
por um balbucio, se deixa evocar.
A palavra de ordem da ciência, que triunfava no século XIX, por sua vez, era:
fatos da experiência. Real é tudo e somente aquilo que se faz acessível através de
uma abordagem empírica. O empirismo constitui a “forma mentis” que perpassa
todas as ciências, sejam aquelas que desde tempos antigos tinham adquirido
autoridade no âmbito do saber e que agora, renovadas, exerciam ainda mais esta
autoridade, sejam aquelas apenas nascentes, portadoras de promessas no âmbito
do saber e do domínio sobre a realidade. A matemática aparece como a
36
E. Husserl, “Der Encyclopaedia Britannica Artikel”, in Phänomenologische Psychologie ( Husserliana IX),
299.
quintessência de todas as demais ciências. Nela se concentra de modo supremo a
idéia metódica de rigor. Toda teoria deve ser construída e desdobrada atendo-se ao
rigor matemático. Por sua vez, tal rigor é essencialmente um rigor formal. Nele, o
puro pensamento adquire uma força de análise e de síntese que domina toda a
possibilidade de desdobramento teorético, partindo de axiomas, isto é, de
proposições imediatamente evidentes, e derivando destes as mais diversas
conclusões. Por sua vez, no cerne do puro pensamento operativo da matemática
está a lógica, isto é, a doutrina dos termos, das proposições e do raciocínio. Na
verdade, as duas disciplinas são tão intimamente conexas que se pode falar de uma
logicidade da matemática, bem como de uma matematicidade da lógica. É possível
analisar os procedimentos raciocinativos da matemática atendo-se aos
desdobramentos de sua linguagem formal, assim como é possível analisar os
conteúdos da lógica reduzindo-os a entidades simbólico-quantitativas. Seja como
for, matemática e lógica designam duas faces do puro pensamento, aquele que rege
toda a elaboração das teorias científicas. Em concreto, porém, são as ciências
naturais que levam adiante o projeto matemático da ciência moderna, isto é, o
projeto de matematizar todo o real. A primeira ciência a operá-lo concretamente é
a física. Sua grande importância está em descobrir as leis que regulam os processos
que ocorrem com os corpos no âmbito espaço-temporal. De particular importância
reveste, neste contexto, a mecânica, ou seja, a explicação das leis que regem o
movimento. Como a física, entre as ciências naturais, goza de uma sua primazia
sobre as demais, e como a mecânica, neste contexto, é uma explicação exemplar
dos fenômenos físicos, as outras ciências, seguindo o modelo da física, tendem a
reduzir todos os fatos da natureza a mecanismos. O mecanicismo, de fato, reina
nas ciências naturais do século XIX, não obstante reações em contrário, como, por
exemplo, a do vitalismo na biologia. Com o predomínio das ciências naturais como
modelo teórico de explicação de todo o real surge a tendência de reduzir toda a
realidade aos fenômenos da natureza. É a hora e a vez do naturalismo.
Por outro lado, também a história, enquanto ciência dos fatos do passado,
adquire um estatuto de cientificidade rigoroso com a aplicação do novo método,
apoiado sobretudo no estudo das fontes. O desenvolvimento da filologia, bem
como a sistematização da hermenêutica, enquanto disciplina que estuda as técnicas
de interpretação, deu à história um novo vigor no confronto com as fontes e na
interpretação das mesmas, a fim de averiguar com precisão o que realmente pode
ser estabelecido como fato e quais são as condições históricas que determinam a
sua ocorrência. Não obstante este avanço na determinação do método, a relação
do historiador com o objeto da sua ciência permaneceu não muito claro. Surge,
assim, duas diversas orientações: uma segundo a qual é a política a dimensão
histórica por excelência, e outra segundo a qual é, ao invés, a cultura. Seja como
for, em pouco tempo, com o afirmar-se sempre mais forte da consciência histórica
e com o desenvolvimento sempre mais abrangente da própria ciência da história,
surgirá a tendência de explicar todo o real a partir da história. É a hora e a vez do
historicismo.
E Husserl começou na filosofia partindo daquilo que lhe era mais acessível:
da matemática. Na verdade, a própria busca de esclarecer os fundamentos da
matemática o conduzira a uma reflexão filosófica mais abrangente e mais
originária. “A propósito, isto foi característico: o trabalho filosófico de Husserl
começou então não com qualquer problema imaginado ou trazido de fora, mas, de
acordo com o seu caminho de desenvolvimento científico, ele começou a filosofar
37
M. Heidegger, PGZ, 28-29.
38
E. Stein, La ricerca della verità, 62.
sobre o chão que tinha, isto é, sua meditação filosófica, no sentido da metódica de
Brentano, se dirigiu à matemática”39. Assim, a meditação filosófica genuína deve
saber começar. O começo não é meramente uma etapa transitória e destinada a
fazer parte de um passado para sempre pretérito no caminho especulativo de um
pensador. O começo é sempre proveniência e, enquanto tal, determina em certa
medida o caminho que se faz e o destino da própria caminhada através do
pensamento. Além disso, o pensador é solicitado a começar a partir de seu próprio
chão, a pisar o seu próprio chão, a sondar as suas profundidades e a sua
fecundidade; com outras palavras, o pensador é solicitado a não prescindir do seu
caminho pessoal já feito na via especulativa e científica, a ter como ponto de
partida a sua própria história de busca da verdade e a situação em que atualmente
se encontra. Husserl começou a filosofar não adotando esta ou aquela corrente,
esta ou aquela doutrina. “Quando ele chegou a filosofar de modo autônomo, não
se deixou conduzir por uma obra qualquer do passado, mas sim pelos problemas
mesmos”40.
39
M. Heidegger, PGZ, 29.
40
E. Stein, La ricerca della verità, 56.
41
M. Heidegger, PGZ, 29.
ano de 1891 Husserl publicou a nível editorial uma obra que retomava, aprofundava
e ampliava o tema de sua tese, com o título “Philosophie der Arithmetik”. Este
trabalho se desenvolvia no sentido de uma investigação sobre os conceitos
fundamentais da matemática e sobre o método do pensamento matemático,
buscando uma aproximação às coisas mesmas desta ciência seja através de uma
perspectiva lógica seja através de uma perspectiva psicológica, não no sentido da
psicologia genética, mas no da psicologia descritiva de Brentano, a quem ele
dedicara aquela obra, até então publicada em um só volume. Husserl havia
anunciado a publicação futura de um segundo volume, mas nunca chegara a
realizar tal empresa. Tal obra nasceu, sem dúvida, da tentativa de afrontar os
problemas fundamentais da matemática a partir de uma impostação interrogativa
própria da psicologia descritiva de Brentano.
42
M. Heidegger, PGZ, 29-30.
43
E. Husserl, LU, vol. I, V.
44
E. Husserl, LU, vol. I, VI.
origem das representações matemáticas ou da configuração do método prático,
que de fato era determinado psicologicamente, a execução da análise psicológica
me parecia clara e instrutiva. Assim que, porém, se efetuasse uma passagem do
contexto psicológico do pensamento à unidade lógica do conteúdo pensado (à
unidade da teoria), não se deixava vir à tona nenhuma reta continuidade e clareza.
Tanto mais daí me inquietava também a dúvida de princípio sobre como a
objetividade da matemática e de toda ciência em geral fosse compatível com uma
fundamentação psicológica do lógico”45.
45
E. Husserl, LU, vol. I, VII.
46
E. Husserl, LU, vol. I, VII.
47
E. Husserl, LU, vol. I, VIII.
universalis, ou seja, de uma ciência formal mais ampla, dotada do caráter de teoria
das diversas formas de teorias possíveis e, em segundo lugar, a partir do
desenvolvimento positivo e concreto de seis investigações para um esclarecimento
do conhecimento na sua estrutura ideal-lógica essencial. Tais investigações se
movem no âmbito de problemas referentes à linguagem enquanto expressão, ou
seja, ato intencional significante, aos atos de apreensão da essência, às vivências
intencionais em geral e seus conteúdos e, por fim, desembocam na análise de
problemas fundamentais, tais como aquele do conceito de verdade e de evidência,
bem como dos diversos tipos de intuição e da relação entre sensibilidade e
intelecto. Descoberta fundamental destas investigações, precisamente, da Sexta
Investigação é a intuição categorial, a qual terá um papel muito importante na
fenomenologia de Heidegger.
48
E. Husserl, “Der Encyclopaedia Britannica Artikel”, in Phänomenologische Psychologie (Husserliana IX),
297.
da razão. Na modernidade, Descartes funda a philosophia prima sobre
a res cogitans; para Kant a problemática transcendental se move no âmbito da
consciência (Bewusstsein). Também para Husserl a filosofia, enquanto ontologia
fenomenológica e universal é fundamentalmente ciência transcendental da
subjetividade pura.
“E assim, pois, o que tanto outrora, como agora, como em qualquer hora,
49
Aristotele, Metafisica, Z, 1, 1028b.
Prof. Marcos Aurélio Fernandes
I. O QUE É FENOMENOLOGIA?
"O que é fenomenologia?". Faz parte, essencialmente, da fenomenologia, perguntar
sobre si mesma, sem jamais assegurar uma compreensão de si, que dispense de toda
ulterior pergunta. Mas, o perguntar sempre de novo e de modo novo "o que é
fenomenologia?" não é um patinar no mesmo lugar. A pergunta surge, sempre de novo,
a caminho, no destinar do pensamento. Ora, uma das coisas que Husserl nos ensinou, é
que a fenomenologia é um método de investigação filosófica, que pergunta pela
essência das coisas, isto é, pelas suas possibilidades, e não pelas suas factualidades.
Tomemos, pois, a "coisa" chamada "fenomenologia"! A pergunta "o que é
fenomenologia?" pergunta pela essência - e não pelo fato, pela ideia e possibilidade, e
não pela realidade.
Mas, o que é isso: a fenomenologia das coisas? A fenomenologia das coisas é a sua
própria re-velação: o recolhimento (logos) do seu desencobrimento (descoberta,
abertura, desvelamento) e do seu encobrimento (recusa, oclusão, velamento); o
recolhimento do seu ser (presença, vigência) e do seu nada (ausência, retraimento) no
seu vir-a-ser. No entanto, mesmo o mero aparecer só pode acontecer a partir de um
aparecer verdadeiro; mesmo a dissimulação e o engano só podem acontecer a partir de
uma revelação; mesmo o anunciar que não se mostra diretamente, mas mediante outra
coisa, a "manifestação", precisa de algo que se mostra por si mesmo. Isso quer dizer:
sem a fenomenologia das coisas nem mesmo pode haver a não-fenomenologia das
coisas. É o que podemos aprender, lendo o parágrafo 7 de Ser e Tempo.
A FENOMENOLOGIA DO FENÔMENO
50
O prof. Carneiro Leão escreve: “O fenômeno grita em cada esquina e clama pelas praças afora. Está por
toda a parte, na sarjeta e no ferro velho, na vida e na morte, no monte de lixo e no monturo do estrume.
Dá-se abertamente em plena claridade, seja do meio dia, seja da meia noite” (Leão, Emmanuel Carneiro.
“A fenomenologia de Edmund Husserl e a fenomenologia de Martin Heidegger”. In: Revista da Abordagem
Gestáltica. Vol. XII, 2006, p. 15). Em seu poema “Wie wenn am Feiertage...” (Assim como em dia santo...),
Hölderlin evoca o vigor “onipresente”, isto é, todo-atuante (allgegenwärtig) da “Natureza” (Natur), que
vige e vigora “do alto do éter até o fundo abismo” (vom Aether bis zum Abgrund nieder) (Hölderlin.
Poemas. Tradução de Paulo Quintela: Coimbra, Atlântida, 1959², p. 256-257). No oriente, na china, fala-
se de “Tao” (caminho). Um texto desta tradição, vinculada ao pensamento poético do Tao de Chuang-Tzu,
Para os gregos dos primórdios o fenômeno, isto é, o ser em seu aparecer, em sua
revelação, se deu como (phýsis)51. Para entender o sentido inaugural de
(phýsis) é preciso suspender o sentido usual, “físico”, de “natureza”, que traz
consigo sempre, de algum modo, uma indiferença, no sentido do nivelamento e da
igualação de todos os modos de ser do que está sendo ao “ser simplesmente dado”
(Vorhandenheit), a ocorrência indiferente do que está sendo, a factualidade neutra do
“factum brutum” do ente no seu todo. Mas também é preciso suspender os sentidos
meta-físicos (que permanecem em seu cerne físicos) de natureza, persistentes nas
distinções de “natureza e arte”, “natureza e espírito”, “natureza e história”, “natureza e
sobre-natureza” (o sobre-natural como uma versão do meta-físico). (phýsis) é,
aqui, palavra-guia, que evoca o Princípio - (arché) do ente no todo: a origem, não
no sentido do mero começo, mas sim do viger originário, do vigor imperante, que erige
fala de um diálogo entre dois sábios. “Mestre Tung Kwo perguntou a Chuang: ‘Mostre-me onde pode o
Tao ser encontrado’. Respondeu Chuang Tzu: ‘Não há lugar onde ele não possa ser encontrado’. O
primeiro insistiu: ‘Mostre-me, pelo menos, algum lugar preciso onde o Tao possa ser encontrado’. ‘Está
na formiga’, disse Chuang. ‘Está na vegetação do pântano’. Pode você prosseguir na escala das coisas?
‘Está no pedaço de taco’. ‘E onde mais?’ ‘Está neste excremento’. Com isto, Tung Kwo nada mais podia
dizer...” (Merton, Thomas. A via de Chuang Tzu. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 182-183). Por sua vez, na
tradição sapiencial hebraica evoca-se a Sabedoria. No livro dos Provérbios pode-se ler: “Não é a Sabedoria
que está clamando? Não é o discernimento que levanta a sua voz? No alto das alturas, sobre o caminho,
postada nas encruzilhadas; no limiar das portas, na boca das cidades, na passagem das entradas, ela põe-
se a bradar: ‘É a vós, homens, que eu clamo; a vós, filhos de homem!” (Pr. 8, 1-4). Sem querer igualar
estas diversas tradições, pode-se, no entanto, aqui, evocar a identidade nas e das diferenças, no sentido
da comunhão de ser e realizar-se que possibilita toda tradição e tradução, e, por conseguinte, todo o
diálogo de mundos: “é no adro da Linguagem que, nos muitos modos de pensar, a realidade dá o
espetáculo das realizações” (Leão, Emmanuel Carneiro. Aprendendo a Pensar III. Teresópolis: Daimon,
2017, p. 155).
51
O verbo ser, em sua etimologia, nas palavras gregas e latinas, remota a duas raízes: *es e *bhu. A
primeira raiz, *es, traz a significação de viver, respirar. No sânscrito: ásuṣ (indicativo presente: ésmi, ési,
ésti. A forma verbal ésmi aparece nas línguas indo-europeias. Por exemplo, no grego temos o verbo
(eimì) (eu sou). Cf. (esti): é. Em latim, temos o infinitivo esse (ser), a terceira pessoa do singular
do presente do indicativo: est (é) e a primeira pessoa do singular do presente indicativo: sum (sou). A
segunda raiz, *bhu, traz a significação de tornar-se, devir, surgir, crescer. Em sânscrito: bhávati. No grego,
temos (phýo), surgir, brotar, nascer, crescer; em sentido ativo: produzir, gerar, fazer nascer, crescer,
despontar, procriar, dar à luz; em sentido passivo: ser descendente de, ser filho de. Tem algo a ver com
“crescer e aparecer”. Na flexão do verbo ser em latim as duas raízes atuam de maneira complementar:
assim, temos a terceira pessoa do singular do presente do indicativo, est, e a terceira pessoa do singular
do pretérito perfeito, fuit. O mesmo fenômeno acontece no sânscrito e no alemão. No alemão temos esta
raiz presente, por exemplo, em bin (sou), bist (és), bis (sê). Uma terceira raiz, porém, aparece no âmbito
do verbo germânico “sein” (ser). Trata da raiz *wes. Traz a significação de deter-se (aquietar e parar),
morar, habitar, permanecer. Em Grego temos a palavra (hesita), que significa lareira, lar, morada,
casa, e que dá nome a uma deusa: (Hestía) – deusa do fogo e do fogão, da lareira ou do lar. No
mundo latino: Vesta. Em alemão temos esta raiz no verbo ser: “gewesen” (particípio passado do verbo
sein, ser); war: eu era. O particípio wesend está em palavras como an-wesend (presente) e ab-wesend
(ausente). O substantivo Wesen diz perdurar, permanecer, viger, atuar.
e rege, sustentando e governando tudo; a proveniência do provir de do aparecer de todo
aparecimento e desaparecimento, conforme o dito de Anaximandro. O fenômeno, o ser
em sua revelação, é o mais arcaico que há. Por isso é, normalmente, esquecido e
permanece vigendo como o imemorial; mas também é o sempre e cada vez
contemporâneo de tudo e de todos; e, além disso, inesgotavelmente, está sempre
porvir. É o puro vir, graças ao qual advém e sobrevém todo o vindouro.
Fenômeno é ser, dando-se como parusia.
52
“Momentum” vem de “movimentum”.
53
Em alemão, movimentar é bewegen. Traz no seu bojo a significação de caminho: Weg.
54
“Caminhar é pois radicalmente abrir-se ao nascimento do sentido. Esse caminhar não tem fim. Ele
mesmo como a liberdade do manancial do sentido é propriamente princípio e fim. A experiência do
originário, isto é, da fonte nascente do sentido do ser, que Lao Tsé chama de Nada é via, o Tao que
constitui a essência do homem. Homem é o olho d’água do manancial do sentido do ser e como tal ele é
o en-vio que se perde, se abandona à e é usado pela Nascividade do Nada”. Harada, Hermógenes. A via
de Chuang Tzu, s.l., s.d., p. 3 (texto datilografado).
55
“Conhecer a principialidade do que é e está sendo significa nascer com sua juventude, é sintonizar-se
com sua jovialidade com a liberalidade de seu ser, com aquela virtuosidade que cria dinâmica de
realizações. Na história da humanidade e na biografia dos indivíduos fazemos, então, a experiência de um
viço, em que ainda não se cumpriram os passos nem se percorreram as estações da vida inaugural com
nascimento, crescimento e morte, a cada instante, de um desempenho incalculável. A vitalidade da vida
(phýsis) vige, pois, como o Alegre, o Jovial, a jovialidade de ser56. É a
clareira de ser, o livre, isto é, o não alcançado por nenhum uso ou abuso, que liberta,
isto é, que deixa ser a luz, (phós) em sua passagem. Fenômeno é, assim, o medium
da transparência da luz. (phýsis) é o abrir-se e emergir da abertura que deixa luzir
tudo o que está sendo. É o fogo originário de Heráclito: claridade e ardor do ser que, em
seu crepitar, deixa aparecer todo aparecimento e todo desaparecimento. Os mistérios
de Elêusis o exibe na espiga dourada, filho luminoso de Perséfone. Uma conexão
primordial vincula, pois, a experiência de ser como (phýo)e (pháe), isto é,
surgir e brilhar, crescer e aparecer, (phýsis), com(phós), luz, claridade. A
claridade em seu luzir doa a todo aparecer e brilhar, com sua incandescência cada vez
própria, a sua patência. Com isso concede a tudo quanto vem à luz a sua visibilidade,
isto é, a sua perceptibilidade. Fenômeno é a perceptibilidade e a perceptividade do que
está sendo. É no elemento do fenômeno, no fenômeno como elemento, que se tudo se
perfila e se mostra no aspecto e no modo próprio de seu ser:
(eidos),(idéa)57.
em cada um de nós nos faz sentir o apelo de possibilidades a serem conquistadas e sua atração irresistível
por alcançá-las”. Leão, Emmanuel Carneiro. “O último Heidegger” – anotações de aulas ministradas em
2015 (manuscrito).
56
Cf. o poema de Hölderlin intitulado “Heimkunf/An die Verwandten” (Chega ao lar/aos parentes) e a
elucidação de Heidegger, em que se evoca o Alegre (Freudige), o Jovial (das Heitere) como o Altíssimo
(das Höchste) e como o Sagrado (das Heilige). Cf. Heidegger, M. Erläuterungen zu Hölderlins Dichtung (GA
Band 4). Frankfurt a. M.: Vittorio Klostermann, 1981, p. 18 [cf. Explicações da Poesia de Hölderlin. Trad.:
Claudia Pellegrini Drucker. Brasília: UNB, 2013, p. 27).
57
Cf. Heidegger, M. Erläuterungen zu Hölderlins Dichtung (GA Band 4). Frankfurt a. M.: Vittorio
Klostermann, 1981, p. 56 [cf. Explicações da Poesia de Hölderlin. Trad.: Claudia Pellegrini Drucker. Brasília:
UNB, 2013, p. 69).
quer dizer: o (phaínesthai) do(phainómenon) presenta-se e
apresenta-se como (lógos). O vir à luz da revelação do ser tem o caráter de
(lógos).
58
Heidegger, Martin & Fink, Eugen. Heraclito. Barcelona: 1986, p. 29-31.
apelo. Por toda a parte. Em todo o tempo. Ele se se põe, se depõe, se dispõe, se expõe.
E isso é a fenomeno-logia do fenômeno. O ser, o fenômeno originário, se doa. Há ser –
isto quer dizer: ser se dá, se oferece, se disponibiliza. A auto doação do ser, sua auto
mostração, é originária. Sem ela não se dá a auto doação, a auto mostração, a auto
presentação de nada do que é. Sem a fenomenalidade do ser nada do que está sendo
se mostra. No fragmento 1 Heráclito diz: :
“com efeito, tudo vem a ser conforme e de acordo com este Lógos”59. Ser, em sua
fenomenalidade originária, se doa: oferece-se a si mesmo. Ser vige como um. Isto quer
dizer: como único, sem igual; como o simples (sem dobras), o simplicíssimo; como o
mesmo. Esse mesmo aporta e suporta toda diferença. Nele pousa e repousa a
multiplicidade do que está sendo; sua diversidade e variedade; sua ordenação. Por viger
assim, passa despercebido, resta inaparente. Embora vige como o que há de mais
manifesto, resta invisível. Sua mesmidade e simplicidade, fonte de inesgotáveis
diferenças e ordenações, é tomada, então, como uniformidade, como o entediante. Ser
se dá, se mostra, a si mesmo por si mesmo. Mostra-se como a unidade simples que
reúne o todo do ente na sua diferenciação e ordenação. Vige como lógos, isto é, como
(Um: Tudo). A fenomenologia do fenômeno é sua postura inaugural. Sem
esta não acontece a posição do ente. Nada está posto. Não se constata nenhum positum.
Por conseguinte, nenhum saber positivo é possível.
59
Pensadores originários, p. 59.
pois, como mistério. A (alétheia) repousa e vige na (léthe): no
encobrimento, no velamento, do mistério.
60
“Uma estória Zen nos conta que somente mortos escutam silêncio sem fala, ouvem pausa sem som e
calma sem ruído, seguindo o calar de toda balada”. Leão, Emmanuel Carneiro. Aprendendo a Pensar III,
p. 10.
61
Mestre Eckhart Sermão 101.
62
P. 11.
demais notas. A musicalidade deixa ser cada nota e todas elas, em conjunto, como que
na dinâmica de e-vento, de um destinar-se, de um historiar-se, e de seu tornar-se
manifesto. A musicalidade diferencia-se das notas. Ao mesmo tempo, com elas se
identifica referindo-se a elas, nelas e por elas63. A musicalidade permanece, em
passando. Passa, recolhendo, no movimento, a sonoridade dos sons e acolhendo ao
mesmo tempo o nada do silêncio, sua quietude, que nela soa e ressoa originariamente.
Assim é com a fenomenologia de todo o fenômeno.
O que significa pensar? Esta pergunta, por sua vez, é dupla: o que evoca o
pensar? O que provoca a pensar? São questões de peso. Na verdade, elas não dizem
respeito apenas ao pensar, mas, concernem, antes de tudo, ao que é mais digno de ser
questionado e pensado: o mistério de ser mesmo. O que é pensar? Ao perguntarmos
assim já pressupomos: o pensar é... O pensar pertence ao ser. Como é, então, que o
pensar, por e para ser o que ele é, precisa pertencer ao ser? Como se dá o fenômeno do
pensar e sua fenomenologia em relação com o fenômeno do ser e sua fenomenologia?
Com estas perguntas somos convidados a conjugar juntos os verbos ser e pensar... A
questão que concerne à unidade de ser e pensar, na história da filosofia, é uma das mais
difíceis64.
63
Hh
64
Introdução à metafísica...
Logo percebemos que, neste contexto, o pensar se investe de densidade e de
gravidade. Em questão está não o mero representar algo, nem o compor e dividir
representações. Em jogo está não o mero enunciar algo e o seu simples enunciado. Não
está em causa o julgar, o inferir, o raciocinar. Não se trata também do mero cogitar, nem
do tencionar, lembrar, imaginar, supor alguma coisa – uma coisa qualquer. O pensar não
é aqui, propriamente, um fenômeno psíquico, uma ocorrência anímica, um processo
mental. Não é nem mesmo uma função tética da consciência transcendental. Tudo isso
parece derivado, fundado, no pensar em sentido originário. Acaba sendo epifenômeno
do pensar. Mas, então, como se dá, originariamente, o fenômeno do pensar e sua
fenomenologia? O que seria o sentido fundante, essencial, radical, do pensar? Não é o
pensar uma faculdade que o homem tem? Não é o pensar uma operação desta
faculdade? Não é o que nesta operação é posto em obra – o seu resultado? Aqui vale
talvez recordar o adágio medieval latino: agere sequitur esse (o agir segue o ser – dele
decorre). Não é o agir de algo que decide o que ele é. Mas é, antes, o seu ser que decide
o seu agir. Só se pode pôr em obra e em ação as possibilidades de ser que se tem. O
pensar não é propriamente algo que o homem tem; não é, meramente um empenho e
um desempenho do homem. Está certo. É também isso. Mas de modo derivado. O
pensar é constitutivo essencial do homem. O vigor do pensar neste sentido, é que tem
o homem e não o contrário. O pensar constitui o fundo do humano no homem. Neste
sentido funda, rege, permeia, impregna, perpassa, todo o comportamento humano,
todo o seu relacionamento com o ente no todo, sim, com o ser – o mistério de ser. Enfim,
com a fenomenologia do fenômeno.
65
Na Apologia (21b) este não saber se refere propriamente ao que há de mais sublime e decisivo na vida
do homem: o belo e o bom (- oudèn kalón kagathòn eidénai: nada saber
do belo e do bom). Na tradição cristã, isso aparece também, a seu modo. Mestre Eckhart, do mesmo
modo, viu na pobreza do não saber a fonte da riqueza do pensar. Seguia, assim, a lição de Dionísio
Areopagita, o qual ensinava que era dentro das abscônditas trevas silenciosas (caligem), que o homem
chegava ao conhecimento do Deus desconhecido e supradivino. Do “medium silentium” a palavra lhe vem
furtivamente, isto é, como uma revelação que brilha e clareia e, ao mesmo tempo, se esconde. É o advir
da palavra secreta no meio da noite, na hora mais silenciosa. Trata-se de algo anterior ao intelecto.
Falando da “utilidade” dessa “palavra secreta” ele diz: “Toda a verdade que os mestre já ensinaram com
seu próprio intelecto e compreensão ou que devem ensinar sempre mais até o último dia, todos esses
jamais compreenderão o mínimo que seja desse saber e desse fundo. Embora se chame de não-saber e
ignorância, possui interiormente mais do que todo saber e conhecimento fora dele. Pois esse não-saber
cativa-te e te atrai para fora de todas as coisas sabidas e de ti mesmo. Foi o que teve em mente Cristo
quando disse: ‘Quem não renunciar a si mesmo e não deixa pai e mãe e tudo que é exterior, esse não é
digno de mim’ (Mt 10, 37-38). Ele quer dizer: quem não deixar toda exterioridade das criaturas, esse não
A fenomenologia do fenômeno, o mistério de ser, o dar-se do ser e do nada do
ser é a revelação originária que funda, permeia, perpassa, impregna o pensar. A
possibilidade de pensar acontece a partir do desencobrimento do ser -
(alétheia), que, por sua vez, repousa no encobrimento do mistério, na
(léthe). O pensar recebe o seu poder-ser da (synousía), isto é, do ser-
com, da companhia da (alétheia). Pensar é ser-com o ser, melhor, com a
verdade (revelação) do ser. O seu poder-ser se dá, com efeito, a partir do gosto por esta
revelação do ser. Pensar é amar esta revelação. Pensamento é (philía), amor,
acordo, harmonia, com o ser, isto é, com a (phýsis), o surgimento que ama
esconder-se; o qual é (lógos): unidade que tudo reúne e em que tudo repousa,
ou seja, o (hen panta) – um: tudo. Enfim, pensar é amor ao (sophón)
– o(lógos) originário, ou melhor, a(alétheia). Pensar é, enfim,
(philosophía).
(lógos) é, agora, o falar e dizer dos mortais (os humanos). Este falar se
determina essencialmente como algo mais do que a articulação de sons significativos.
Nem a voz articulada como tal – a (phoné); nem o ato signitivo e significativo – o
(semainein) – e sua articulação de significações, alcançam “o âmbito em que
acontece a moldagem originária da Linguagem” no homem66. A compreensão da
pode ser concebido nem gerado nesse divino nascimento” (S 101, p. 198). A iluminação da “docta
Ignorantia” de Nicolau de Cusa também tem a ver com isso. Será por acaso que Francisco de Assis se
declarava “simplex et idiota”, “ignorans et idiota”, “idiota et subditus”? De Paulo - apóstolo da “loucura
da cruz” – ao “Idiota” de Dostojewski este tema repercute na tradição cristã (Rombach, p. 147). No
pensamento do Tao, a seu modo, a nesciência como saber do nada se torna clara. Na recriação poética
de Carneiro Leão uma antiga história de Chuang Tzu ressoa assim: “No tempo de mando, desmando e
comando da China Imperial, um Imperador Amarelo não possuía a pérola cor da noite. Mandou, então, a
ciência pesquisar. Mas debalde a ciência não encontrou a pérola cor da noite. O Imperador mandou a
técnica inventar. Mas a técnica também não encontrou a pérola cor da noite. O Imperador mandou a
análise calcular. Mas em vão, a análise não encontrou a pérola cor da noite. O Imperador mandou a
filosofia investigar. Mas, sem sucesso, também a filosofia não encontrou a pérola cor da noite. O
Imperador mandou a arte criar. Mas outro fracasso, a arte não achou a pérola cor da noite. O Imperador
achou tudo muito estranho e ficou ainda mais abismado quando, com o tempo, descobriu que o nada que
não fora enviado, que não pesquisa, que não inventa, que não calcula, que não investiga, que não cria
nada é a pérola cor da noite. Desde então, o Imperador Amarelo deixou de somente mandar, de somente
desmandar, de somente comandar os chineses, para poder no e com o nada ser também a pérola cor da
noite”.
66
P. 188.
linguagem a partir da língua - (glossa) – fica aquém do vigor originário da
Linguagem – do (lógos) – no homem. A língua vem a ser língua a partir do viger
da Linguagem. Sem a essência (vigência) da Linguagem a língua não é língua. A
Linguagem, em seu ser essencial, originário, está aquém e além, da língua, vale dizer, da
(phoné semantiké) – da voz, do som vocal, da fonação significativa e
designativa. Isto quer dizer: também o fenômeno da “expressão” não desvela o
essencial da Linguagem no homem.
67
Aqui usa-se esta palavra sem a conotação lógico-matemática. Não podemos entrar, aqui, no caráter de
predicação e de comunicação-declaração. Nem podemos, por brevidade, tratar do caráter de
(phoné metá phantasías) – articulação verbal em que algo é visualizado; nem,
ainda, do caráter de (sýnthesis), de com-posição, do(lógos
aphophantikós) que, pensado a partir da (apóphansis), da demonstração, consiste em deixar
e fazer ver algo como algo, na medida em que se dá em conjunto com outro.
68
Cfr. De interpretatione cap. 1-6; Met. Z. 4 e Eth. Nic. Z.
(phainómenon), o que vem à luz, o que se mostra a si mesmo por si mesmo.
Neste sentido, a fala cumpre sua função originária quando é fenomeno-lógica, isto é,
quando é um (lógos) propriamente dito, quando deixa vir à fala, manifesta,
torna patente, o que se abre e vem à luz. “O(lógos) leva o fenômeno, isto é,
aquilo que se põe à disposição, a aparecer por si mesmo, a brilhar à luz de seu mostrar-
se (cf. Ser e Tempo, § 7B)”69. A fala, no acontecer do discurso humano, é sempre de novo
e de modo novo provocada a deixar ver aquilo de que fala, seja para o próprio falante,
seja para os que o escutam, e que conversam e dialogam, no falar uns com os outros.
69
P. 188.
partir dele mesmo, aquilo que se mostra, tal como ele se mostra a partir dele mesmo.
Este é o sentido formal de uma investigação que queira se denominar de fenomeno-
logia. É este sentido, primeiramente, que se intenciona com a máxima: “às coisas
mesmas!” (zu den Sachen selbst). O fenômeno, porém, pode ser o que está sendo, o
ente; e pode ser aquilo pelo que o que está sendo está sendo, quer dizer, o ser. Contudo,
o fenômeno, em sentido próprio e primordial, que a investigação fenomenológico-
filosófica tem em mira é, justamente, o ser do que está sendo. Com outras palavras, a
investigação fenomenológica visa, essencialmente, à fenomenologia do fenômeno
originário: à revelação e ao mistério do ser. Neste sentido, ela põe em obra uma
“redução” que consiste na re-con-dução de tudo o que está sendo ao seu lugar originária
na clareira, isto é, na aberta, e no mistério do ser. Pensar é, neste sentido, deixar
aparecer o espetáculo da realidade se dando e se retraindo na realização de todo o real.
É reconduzir tudo o que está sendo e não sendo, a vigência de todo o presente e de todo
o ausente, ao seu lugar junto ao desencobrimento – (alétheia) – e ao
encobrimento originário - (léthe) – do mistério de ser.
70
P. 195.
71
P. 15. O pensamento de Nicolau de Cusa, neste sentido, traz uma importante contribuição para a
consideração do pertencimento do singular ao universal e do universal ao singular. Não obstante sua
linguagem e seu aparato conceitual serem impregnados pela metafísica enquanto onto-teo-logia, o seu
pensamento oferece elementos para uma investigação fenomenológica fecunda. Evoquemos, aqui,
brevemente esta contribuição. Cada ente do mundo e o mundo mesmo é caracterizado, aqui, como “finita
infinitas” (infinidade finita). O todo está todo em cada parte. O mundo está todo em cada ente particular.
O mundo é lua na lua e sol no sol. A identidade do universo está na diversidade; a sua unidade (uni-
versum) está na pluralidade. A uni-versalidade da uni-totalidade está em todas as coisas e em cada uma
delas: “omnia in omnibus”. Tudo é um. Cada coisa é, de modo contraído, todo o universo. Saber é, para
Nicolau de Cusa, reconduzir a pluralidade das coisas à unidade do mundo. A entidade do mundo, porém,
se caracteriza como uma “quiditas contracta” (quididade, essência contraída). A unidade infinita do ser,
da realidade, porém, se manifesta a modo de “quiditas absoluta” (quididade, essência absoluta), em Deus.
Em Deus se dá a “entitas absoluta” (entidade absoluta). A unidade de todas as coisas tem sua origem,
assim, na infinidade, isto é, no ser sem fim do criador. O ser do ente (a entidade) é, em última instância,
a unidade infinita. Tudo o que está sendo, todas as coisas, está com-plicado em Deus e ex-plicado no
mundo. Deus é a unidade infinita matricial da uni-totalidade do mundo, que é infinidade finita.
segue o envio sábio do (Lógos). Mas, para poder dizer, isto é, mostrar isso, é
preciso auscultar o (Lógos) – não a este ou a aquele pensador. Na verdade, todos
os pensadores dizem o Mesmo. O diálogo do pensamento só é possível na medida em
que todos dizem o Mesmo. Dizer o mesmo, no entanto, não falar o igual. Nas diferenças
das posições filosóficas de cada pensador vige a identidade comum: o Mesmo que pro-
voca pensar, a coisa mesma, que está em causa em todo o empenho de pensamento.
Assim, a mesma fenomenologia do pensamento se concretiza de modo cada vez diverso
no diálogo dos pensadores. Todo o pensamento, à medida que corresponde à
provocação do Mesmo – o unicamente digno de ser pensado em tudo o que se pensa (o
mistério de ser e realizar que a tudo e a todos acomuna), é fenomenológico. Por isso,
uma (philía) oculta vige na pluralidade, na diversidade, nas divergências das
posições de pensamento dos filósofos. É, no fundo, a (philía) da
(philo-sophía), do amor ao único (sophón), ao (lógos).
72
Metafísica 984 a 19.
adensamento do mistério do ser na Linguagem. Linguagem não é, aqui, instrumento de
expressão do homem. Linguagem é o sempre mesmo, mas nunca igual apelo do mistério
do ser, que clama em toda a parte e a todo o tempo, solicitando do homem – mortal –
a ausculta necessária e a livre correspondência. Assim, se a fenomenologia do
fenômeno, o dizer originário da Linguagem, do (lógos), é tautologia – dizer o
mesmo em inesgotável diferenciação –, a fenomenologia do pensar é homo-logia:
correspondência ao dizer do (lógos), à sua Saga73.
73
Homologia é a qualidade do que é homólogo. Costuma-se entender homologia como a repetição das
mesmas palavras, mesmas figuras, etc. Na geometria, chamam-se de homólogos os elementos que se
correspondem ordenadamente em figuras semelhantes (lados, ângulos, diagonais, segmentos, vértices,
etc.). Na biologia, homólogos são os corpos orgânicos que executam as mesmas funções e sofrem as
mesmas metamorfoses. Por extensão, homólogo é o que é correspondente, embora diverso. Semelhança,
assim como igualdade, pressupõe diversidade. Só os diferentes, os diversos, podem ser semelhantes ou
iguais. A igualdade pressupõe diferença. E, no entanto, os iguais, embora diversos, só podem ser iguais se
se realiza uma identidade em algum quesito (por exemplo, mesma figura, mesma grandeza, mesma cor,
etc.). Assim, sem diferença e identidade não há igualdade. O idêntico, porém, é ele mesmo para si mesmo.
Uma homologia de ser e pensar só é possível enquanto ser é outro do pensar e pensar é outro do ser.
Mas, nesta alteridade, repousa uma identidade. Pensar e ser coincidem num comum pertencimento. Se
correspondem mutuamente. Em grego, (homologia) significa pacto, acordo, paz, concordância
entre os que se pertencem. É o próprio da (philía) implícito na palavra (philosophía).
Por sua vez, (homólogos) é adjetivo que significa: o que está/é de acordo, consentâneo;
correspondente. E o verbo (homologéo) quer dizer estar de acordo, concordar, ser unânime;
consentir, conceder, reconhecer, confessar, admitir. No Novo Testamento aparece o verbo
(exomologéo), que significa confessar (professar, isto é, declarar a fé em Cristo, por
exemplo). Em latim, o verbo é “confiteri” – de onde vem “confessio”, confissão. Em Agostinho é uma
palavra fundamental. Confessar significa, aqui, reconhecer, assumir com gratidão e alegria, declarar como
sua própria identidade, como o seu próprio, a gratuita pertença e atinência à fonte da vida. Significa louvar
a Deus pela salvação, isto é, pela recondução à saúde, ao vigor essencial da vida (salus = saúde, salvação).
Por isso, mais do que confessar a própria miséria humana, as “Confissões” confessam (louvam) a
misericórdia divina. “Confessar tem nas Confissões o sentido positivo do evento pascal, de proclamar a
grandeza, de engradecer a libertação dos homens pela verdade de Deus (...). As Confissões não proclamam
a libertação de um homem, nem de alguns, ou de muitos homens. As Confissões proclamam a libertação
de todos os homens e assim anunciam para todo o mundo a verdade libertadora de Deus (...). A Confissão
é uma exigência da verdade”. Leão, Emmanuel Carneiro. Aprendendo a Pensar I: O pensamento na
modernidade e na religião. Teresópolis: Daimon, 2008, p. 169-173.
de 1900 e 1901, faz aparição histórica pela primeira vez a ideia de fenomenologia
enquanto um conceito de método de investigação filosófica. Tal conceito de método
busca dar à filosofia o caráter essencial de uma ciência rigorosa que, por sua vez,
enquanto ontologia universal, possibilite às ciências não-filosóficas, isto é, ônticas,
positivas, uma fundamentação radical e transparente; e que, enquanto modo rigoroso
de indagação e investigação de questões fundamentais, possibilite, na práxis, aos
indivíduos e às comunidades humanas, uma existência segundo a verdade e a
veracidade, o que Husserl chamou de “viver transcendental”.
A obra de Husserl se estende num arco de cerca de cinquenta anos: de 1887, marcado
pela sua tese de habilitação – Sobre o conceito de número – até 1937, ano dos últimos
manuscritos. Os textos que Husserl publicou em vida são poucos, em relação aos muitos
manuscritos que ele deixou como legado para os pósteros. Estes manuscritos foram
resgatados, logo após a morte de Husserl, pelo frade franciscano Leo Van Breda, e
transportados em segredo, contra o controle do governo nacional-socialista da
Alemanha, para a Bélgica, e formam os Arquivos Husserl, que estão em Lovaina. Estes
manuscritos somam cerca de 40.000 folhas estenografadas. Cerca de 10.000 foram
datilografadas por seus assistentes Edith Stein, Ludwig Landgrebe e Eugen Fink. Depois
da guerra, mais precisamente, depois de 1950 os escritos de Husserl começaram a ser
publicados. Suas obras completas se chamam Husserliana. O volume que o abre – que é
o texto fundamental da fenomenologia transcendental – é constituído pelas Meditações
Cartesianas. O sítio dos Arquivos Husserl, hoje, informa a lista dos volumes da
Husserliana, perfazendo um total de 40 volumes.
Husserl nasceu no ano de 1859 em Prossnitz, na Morávia, região da Europa central que
constitui atualmente a parte oriental da República Checa. Começou seus estudos
superiores em 1876 estudando em Leipzig, astronomia, física, matemática e filosofia. Ali
conheceu Thomas G. Masaryck, futuro presidente da Tchecoslováquia, que atraiu sua
atenção para a filosofia moderna (Descartes, Leibniz e o empirismo) e lhe falou de Franz
Brentano, cujo encontro foi decisivo para a adesão de Husserl à filosofia. Em 1878 se
matriculou em matemática e filosofia na Universidade de Berlim. Estudou matemática
com Karl Weierstrass e filosofia com Friedrich Paulsen. Em 1881 deixou Berlim e foi para
Viena. Ali, no outono de 1882, conseguiu o doutoramento com um trabalho intitulado
“Contribuições para a teoria do cálculo das variações”. No semestre de verão de 1883
Husserl retornou a Berlim, onde atuou como assistente de Weierstrass.
Em Viena Husserl encontrou-se de novo com Masaryck, sob cuja influência Husserl
começou a estudar o Novo Testamento. A experiência religiosa o remeteu de volta da
matemática à filosofia. Por este tempo, Husserl ansiava “por meio de uma ciência
filosófica rigorosa encontrar o caminho para Deus e para uma vida verdadeira”, como
ele mesmo diria mais tarde74. Desde o seu primeiro contato com a filosofia, Husserl tem
a preocupação com a cientificidade da filosofia e com o seu rigor. Mas encontrava
dificuldade de reconhecer algo assim na filosofia de seu tempo. A filosofia da época,
desencantada com a especulação idealista, destronada pelas ciências empíricas,
indecisa e vaga na compreensão de sua própria cientificidade e de sua relação para com
as demais ciências, não podia aparecer aos seus olhos uma ciência digna deste nome. O
contato de Husserl com a filosofia em Berlim não o entusiasmou:
O que ele ouvia de filosofia não ultrapassava aquilo que cada estudante aprendia nas
lições. O que Paulsen dizia era leal e gentil, mas não era apto para entusiasmar Husserl
para a filosofia como uma disciplina científica. Só depois de seu doutorado ele frequentou
as lições de um homem, de quem naquele tempo muito se falava, e a impressão pessoal
diante da paixão do perguntar e do refletir – esta fora a impressão que Brentano fizera a
Husserl – o segurou; e ele permaneceu junto dele dois anos, de 1884 a 1886. Brentano
decidiu então a direção científica que o trabalho de Husserl tomou. A sua oscilação entre
matemática e filosofia foi resolvida. Através da impressão que Brentano como professor
e investigador deixara sobre ele, abriu-se-lhe, dentro da filosofia improdutiva de seu
tempo, a possibilidade de uma filosofia científica”75.
Mas, como Husserl mesmo caracterizava esta impressão que lhe fez Brentano? Mais
tarde, ao escrever suas recordações do filósofo vienense, ele falou do seu modo de
filosofar. Este modo já pode, em certo sentido e em certa medida, caracterizar o espírito
do método que Husserl mais tarde iria chamar de “fenomenológico”:
74
Cfr. “Edmund Husserl und die Phänomenologische Bewegung: Zeugnisse in Text und Bild” – Im Auftrag
des Husserl-Archivs Freiburg im Breisgau. Herausgegeben von Hans Rainer Sepp. Freiburg/München:
Verlag Karl Alber, p. 131.
75
Heidegger, Prolegomena zur Geschichte des Zeitsbegriffs (PGZ), p. 28-29.
Primeiramente, das suas preleções, eu hauri a convicção, que me deu a coragem de
escolher a filosofia como vocação de vida, a saber, a convicção de que também a filosofia
seja um campo de trabalho sério, que também ela poderia e, com isso, também deveria
ser tratada no espírito da mais rigorosa ciência. O puro ater-se à coisa em questão (reine
Sachlichkeit), com o qual ele se dirigia para um confronto corpo a corpo com todos os
problemas, seu modo de tratamento segundo aporias, a ponderação fina, dialética, dos
diferentes argumentos possíveis, a cisão de equivocações, a recondução de todos os
conceitos filosóficos (philosophischen Begriffe) às suas fontes originárias na intuição
(Anschauung) – tudo isso encheu-me de admiração e de segura confiança76.
Uma outra recordação de Brentano da parte de Husserl chama a atenção para o modo
como Brentano entendia a sua vocação filosófica. De Brentano ele diz:
Era seguro de sua própria filosofia. Na verdade, sua autoconfiança era suprema. Sua
íntima certeza de estar na direção certa e de ser o fundador da única filosofia científica
era firme. Dar plena forma a esta filosofia dentro dos limites da estrutura da doutrina
sistemática fundamental que ele considerava segura: isto foi o que ele sentiu ser sua
vocação proveniente de dentro e do alto. Eu gostaria de chamar esta convicção de sua
missão, que era absolutamente livre de dúvida, o fato básico de sua vida. Sem essa, é
impossível compreender a personalidade de Brentano, e consequentemente, passar um
juízo justo a respeito do homem ele mesmo77.
76
Cfr. “Edmund Husserl und die Phänomenologische Bewegung: Zeugnisse in Text und Bild” – Im Auftrag
des Husserl-Archivs Freiburg im Breisgau. Herausgegeben von Hans Rainer Sepp. Freiburg/München:
Verlag Karl Alber, p. 132.
77
E. Husserl, “Erinnerungen an Franz Brentano”, in O. Kraus, Franz Brentano, 160.
78
Søren Kierkegaard's Journals and Papers, V A 98, 1844.
da análise linguística da predicação, ele resolve adotar uma perspectiva ontológica. Este
texto seria fundamental para a iniciação do jovem Heidegger na filosofia. Para
Heidegger, o importante nesta história é que “Brentano mesmo, através do fato de ter-
se ocupado com a filosofia grega, conquistou horizontes originários para a impostação
interrogativa filosófica”79.
A filosofia há de proceder no seu campo assim como as ciências naturais, isto é, ela há de
tirar os seus conceitos a partir das suas coisas mesmas (aus ihren Sachen selbst). Esta tese
não é a proclamação de uma tosca transferência da metódica científica para a filosofia,
mas ao contrário, a interrupção da metódica científica e a exigência de que a filosofia deva
proceder – tomando fundamentalmente em consideração o modo de ser próprio das
coisas que lhe competem – como as ciências naturais no seu campo80.
79
Heidegger, PGZ, p. 23.
80
M. Heidegger, PGZ, 24.
é que o interesse pela psicologia começa a se tornar predominante. Para Brentano,
como também para os filósofos da modernidade em geral, os quais de uma maneira ou
de outra tiveram que filosofar sem poder prescindir de Descartes, a consciência tem um
papel privilegiado como tema da filosofia. Também para Brentano, por conseguinte, a
psicologia, enquanto ciência da consciência, deveria constituir o ponto de partida para
uma reforma da filosofia no seu todo. Tal psicologia ele concebeu e formulou nos termos
de uma “psicologia a partir do ponto de vista empírico” (1874) ou ainda de uma
“psicologia descritiva e analítica” (1894). O trabalho de Brentano na psicologia teve uma
influência significativa nos primórdios da formação do pensamento de Husserl.
81
M. Heidegger, PGZ, 24.
mediatizada pela interpretação matematizante. O empírico é o imediato da experiência
e sua autodatidade. Heidegger assim elucida o sentido deste “empirismo” que
poderíamos bem chamar de “fenomenológico” que serviu de
Brentano tentou criar as bases para a ciência da consciência, das vivências, do psíquico
em sentido lato, porque as subsistências e consistências factuais (Tatbestände) são
acolhidos, no modo como elas são dados neste campo. Ele começou não com teorias
sobre o anímico, sobre a alma mesma, sobre a conexão do anímico com o fisiológico-
biológico, mas esclareceu antes de tudo o que é dado, caso se fale de psíquico, de
vivências. Sua obra-prima ‘Psicologia a partir do ponto de vista empírico’ (1874) é divida
em dois livros, no primeiro o discurso versa acerca da psicologia como ciência, no
segundo, dos fenômenos psíquicos em geral. ‘Empírico’ significa aqui o mesmo que não
dedutivo, no sentido das ciências naturais, mas tanto como atinente à coisa em questão
(sachlich), não construtivo82.
Em Brentano, a filosofia aparecia aos olhos de Husserl como uma atividade científica,
empenhada apaixonadamente no exercício de perguntar e de refletir, considerar,
meditar e contemplar; aparecia como interessada em afrontar os problemas de modo
rigoroso, através do confronto com as coisas mesmas em questão. Edith Stein resume
esta experiência: “O procedimento especulativo de Brentano, a maneira como ensinava,
fizeram-no compreender que a filosofia podia ser alguma coisa de diversa de um
discursos de estetas, que esta, afrontada retamente, podia satisfazer a mais profunda
exigência de rigor científico, que ele como matemático era habituado a pretender”83 .
Por recomendação de Brentano, em 1886, Husserl foi para Halle para se habilitar com
Karl Stumpf. Este tinha estudado com Brentano em Würzburg. Foi um dos maiores
psicólogos de seu tempo e o seu trabalho teve grande incidência sobre a psicologia
experimental84. Ele concebera a filosofia como “mathesis universalis” (saber do todo).
A filosofia deveria, segundo ele, basear-se nos fenômenos. Os fenômenos, por sua vez,
são entendidos por ele como dados da experiência. Numa sua aula inaugural em Berlim,
ele recorre às palavras de Dilthey, para caracterizar o ethos de seu trabalho filosófico:
“Nós repudiamos construção, amamos investigação e reagimos ceticamente contra a
82
M. Heidegger, PGZ, 25.
83
E. Stein, La ricerca della verità, 62.
84
Foi através dele que muitos investigadores psicólogos vislumbraram a possibilidade de renovar a
própria psicologia científico-experimental a partir do método fenomenológico. O modo de Stumpf
aproximar-se das questões da psicologia permitiu o surgimento da Gestalttheorie com o trabalho de
psicólogos como Wolfgang Köhler, Max Wertheimer e Kurt Koffka; através dele também tomaram impulso
o movimento “dinâmicas de grupo”, com Kurt Lewin e, indiretamente, a nova “psicologia fenomenológica”
de Donald Snygg e Arthur W. Combs.
maquinaria de um sistema… Nós estamos contentes se, ao fim de uma longa vida,
tivermos dirigido múltiplas setas de pesquisa científica que tiverem conduzido para
dentro da profundidade das coisas. Nós estamos contentes de morrer a caminho”85.
A Stumpf Husserl dedicaria as suas Investigações Lógicas. Sua tese de habilitação, com
a qual alcançou a livre docência, foi apresentada em 1887 e versava sobre O conceito de
número. Este momento marca o começo da carreira docente de Husserl. A partir daí,
Husserl, passa a se entender como um incansável “trabalhador filosófico”. Desde então
trilhou um caminho ininterrupto de diálogo de pensamento consigo mesmo. “O medium
do seu diálogo é o escrever”86. As 40.000 folhas manuscritas o testemunham. Husserl
não gostava das grandes palavras da filosofia. Numa analogia com o dinheiro, as grandes
palavras seriam como as notas grandes. Seria necessário trocá-las por moedinhas. Mais
tarde, ele recordará este tempo de Halle: “No trabalho filosófico eu resolvi renunciar
aos grandes objetivos e ficar feliz se eu, nos pântanos de infundada falta de clareza,
pudesse alcançar pelo trabalho aqui e ali um pequeno chão firme. Assim eu sobrevivi de
desespero em desespero, de recolhimento em recolhimento”.
Husserl começou na filosofia partindo daquilo que lhe era mais acessível: da
matemática. Em 1891, publicou seu primeiro livro: “Philosophie der Arithmetik”
(Filosofia da Aritmética). Sua preocupação central era a de elucidar conceitos
fundamentais da matemática. Na verdade, a própria busca de esclarecer os
fundamentos da matemática o conduzira a uma reflexão filosófica mais abrangente e
mais originária. Edith Stein anota: “Quando ele chegou a filosofar de modo autônomo,
não se deixou conduzir por uma obra qualquer do passado, mas sim pelos problemas
mesmos”87. E Heidegger diz a respeito do começo do pensador Husserl: “A propósito,
isto foi característico: o trabalho filosófico de Husserl começou então não com qualquer
problema imaginado ou trazido de fora, mas, de acordo com o seu caminho de
desenvolvimento científico, ele começou a filosofar sobre o chão que tinha, isto é, sua
meditação filosófica, no sentido da metódica de Brentano, se dirigiu à matemática”88.
85
Cfr. H. Spiegelberg, The Phenomenological Movement, p. 55.
86
Cfr. “Edmund Husserl und die Phänomenologische Bewegung: Zeugnisse in Text und Bild” – Im Auftrag
des Husserl-Archivs Freiburg im Breisgau. Herausgegeben von Hans Rainer Sepp. Freiburg/München:
Verlag Karl Alber, p. 160.
87
E. Stein, La ricerca della verità, 56.
88
M. Heidegger, PGZ, 29.
O interesse de Husserl não se resume a uma teoria do conhecimento matemático, mas
é, antes, ontológico. O que ele procura elucidar, antes de tudo, é o estatuto ontológico
do objeto da matemática89. Sua pergunta é: o que é o número? Heidegger corrobora
esta observação: “Ele se ocupou antes de tudo, falando de um modo tradicional, com a
lógica da matemática. Mas não só a teoria do pensar matemático e do conhecimento
matemático, mas sim antes de tudo a análise da estrutura dos objetos da matemática –
o número – se tornou tema de suas reflexões”90.
Outra perspectiva adotada por Husserl, para tentar colocar a questão sobre o ser do
número, é a lógica. A sua concepção da lógica, no entanto, muda, entre a tese de
89
Cfr. Françoise Dastur. Husserl: des mathématiques à l’histoire. Paris: PUF, 1995, p. 20.
90
M. Heidegger, PGZ, p. 29.
habilitação e a publicação de “Filosofia da Aritmética”. Antes, ele a encarava como uma
disciplina prática: a “tecnologia do julgamento justo”. Depois, passou a encará-la como
uma ciência a priori que diz respeito não ao espírito que julga, mas sim ao reino das
significações ideais. A análise matemática seria uma disciplina teórica particular no
domínio do que Husserl chamou de “teoria das multiplicidades”. Nas Investigações
Lógicas, ele irá definir multiplicidade como “um domínio que é determinado unicamente
pelo fato de que é submetido a uma teoria da forma”. Trata-se de um domínio de
objetos definidos unicamente pelas relações estabelecidas entre eles dentro de um
sistema formal.
Husserl retomará, então, a distinção de Kant entre lógica pura e lógica aplicada, mesmo
manifestando suas reservas e críticas com relação à lógica efetivamente por ele
desenvolvida91. Para que Husserl vislumbrasse possibilidades de preparar os caminhos
em vista desta lógica pura os aportes de Leibniz, Bolzano e Herbart foram importantes.
Mas estas contribuições mesmas têm antecedentes, por exemplo, na doutrina do
“lektón” dos estoicos (o “dicibile”, retomado por Agostinho nas suas considerações
sobre a linguagem). No (lektón), dirá Husserl, “se apreende explicitamente e de
modo preciso pela primeira vez a ideia de proposição (Satz), enquanto o juízo julgado
no julgar (juízo em sentido noemático), e as leis silogísticas são referidas às suas formas
puras”92. Já Platão e Aristóteles tinham fundado a lógica formal considerando as formas
puras do “lógos apophántikós”. No primeiro volume de “Erstes Philosophie” (Primeira
Filosofia) em que ele intenta realizar uma história das ideias crítica, ele declara, a
respeito da gênese histórica da lógica:
91
“O fato de que nós nos sentimos mais próximos à concepção de lógica de Kant do que, por exemplo,
daquela de Mill ou de Sigwart, não quer dizer que nós apreciamos todo o seu conteúdo e a configuração
determinada que ele deu à sua ideia de uma lógica pura. Nós concordamos com Kant na tendência
principal, mas não achamos que ele tenha descoberto claramente a essência da disciplina intencionada e
tenha trazido ela mesma à representação segundo o seu conteúdo adequado”. E. Husserl, logische
Untersuchungen (LU), vol. I, 215.
92
Idem, p. 18-19.
fundamentais de uma pura doutrina da ciência, cujas normas justamente em razão de sua
universalidade formal têm de ser de validade universal absoluta93.
Do vêm certas noções apresentadas por Bolzano e por Herbart, que Husserl
retoma de modo importante nas Investigações Lógicas, em sua argumentação contra o
psicologismo. Do vem, por exemplo, a noção de “verdade em si” de Bolzano,
retomada nas Investigações Lógicas de Husserl, para defender a posição, segundo a qual
o domínio daquilo que é lógico é essencialmente objetivo, há um seu próprio “in se”,
não dependendo, por conseguinte, da subjetividade de quem pensa ou expressa, seja
um homem ou não. Diz Husserl nas Investigações Lógicas: “O que é verdadeiro é, é
absoluto, é ‘em si’ verdadeiro; a verdade é identicamente uma, quer sejam homens ou
não homens, anjos ou deuses, os que, julgando, a apreendem”94. A verdade é, pois, uma
unidade ideal, que é sempre a mesma, ainda que os atos de juízo sejam muitos e
variados, e executados por vários sujeitos, diversos numericamente ou até mesmo
especificamente. A lógica ganha, assim, o caráter de objetividade. A concepção segundo
a qual o conceito é algo de objetivo, de subsistente em si mesmo, isto é, de
independente em relação à disposição ou à atuação psicológica de quem o pensa,
ajudará Husserl a entrever a possibilidade de uma superação do psicologismo. Do
vem também a posição de Herbart, segundo a qual a lógica se ocupa do pensado
(das Gedachte), isto é, do conceito em sua unidade ideal e em sua identidade
permanente consigo mesmo, e não do pensamento, entendido como processo psíquico
cognitivo real, intimamente conexo a mecanismos fisiológico-cerebrais, que é tomado
93
Husserl, E. Erste Philosophie (1923/24) – Erste Teil: kritische Ideengeschichte. Her.: Rudolf Boehm.
Husserliana Band VII. Haag: Martinus Nijhoff, 1956, p. 18.
94
GA 21, p. 45.
em consideração pela psicologia. O conceito não é nada de real, não é nem físico, nem
psíquico. Não são partes dos atos psíquicos. “Conceito”, em sentido lógico, isto é, não
psicológico, se refere ao concebido, ao pensado como tal, abstraindo-se do modo em
que nós o pensamos, isto é, o recebemos, o produzimos e reproduzimos, pelos nossos
atos reais. A lógica pura teria como objeto as relações do pensado (Verhältnisse des
Gedachten), ou seja, os conteúdos de nossas representações. Estas, por sua vez,
possuem o caráter essencial de idealidade, isto é, são relações ideais, onde ideal é
entendido como o contrário de real. O ideal – e não o real – é o que subsiste em si
mesmo de modo permanente e sempre idêntico. Somente o real está sujeito às leis do
devir e da necessidade natural, física ou psíquica. O ideal não está. Assim, para dizer com
Leibniz, a lógica não trata de “verdades de fato” (verités de fait), que tratam de
objetualidade reais, mas sim de “verdades de razão” (verités de raison), que tratam de
objetualidade ideais.
95
LU, § 66, p. 179 (trad.), grifo de Husserl.
O motivo estimulante para o início da filosofia moderna, a ideia de um aperfeiçoamento
e nova configuração das ciências, conduziu também em Leibniz a esforços ininterruptos
em torno de uma lógica reformada. Mas, mais inteligentemente do que seus
predecessores, ao invés de difamar a lógica escolástica como formalismo vazio, ele
apreendeu-a como um precioso estágio preliminar da verdadeira lógica que, não obstante
sua imperfeição, seria capaz de oferecer uma verdadeira ajuda ao pensamento. Seu
aperfeiçoamento, na direção de uma disciplina de rigor e de forma matemática, de uma
matemática universal, num sentido o mais alto e mais compreensivo, é uma meta à qual
ele dedica sempre novos esforços96.
A esfera da mathématique universelle aqui concebida seria portanto muito mais ampla do
que a esfera do cálculo lógico, em cuja construção Leibniz muito se empenhou, sem com
isto levar a cabo completamente. Propriamente, Leibniz teve que compreender sob esta
matemática universal toda a mathesis universalis, no sentido quantitativo usual – que
constitui o conceito leibniziano mais estreito de mathesis universalis – tanto é que ele
repetidamente designou os puros argumentos matemáticos de ‘argumenta in forma’.
Mas a esta deveria pertencer também a ars combinatoria, seu speciosa generalis, seu
doctrina de formis abstracta, que constitui a parte fundamental da mathesis universalis
em um sentido mais amplo, mas não no sentido amplíssimo acima indicado, enquanto
esta mesma é distinta da lógica como campo subordinado. Leibniz define a ars
combinatoria, especialmente interessante para nós, como ‘doctrina de formulis seu
ordinis, similitudinis, relationis etc. expressionibus in universum’. Ela é aqui contraposta
como scientia generalis de qualitate à scientia generalis de quantitate (à matemática
universal em sentido habitual)97.
Na verdade, aquilo que será a meta dos trabalhos de Husserl naqueles anos, anunciado
como uma Lógica pura, consistirá, segundo o seu sentido mais próprio, não somente na
elaboração de uma lógica matemática no sentido de uma disciplina baseada sobre o
cálculo lógico, mas terá a vastidão de uma ciência que retoma fundamentalmente a ideia
da mathesis universalis tal como a entende Leibniz.
96
E. Husserl, LU, vol. I, 220.
97
E. Husserl, LU, vol. I, 221.
Em breve, porém, as questões se alargaram no âmbito dos princípios (ins Prinzipielle) e as
investigações empurraram para os conceitos fundamentais do pensamento em geral
(Fundamentalbegriffen des Denkens überhaupt) e dos objetos em geral; cresceu a tarefa
de uma lógica científica e, unida a esta, a reflexão sobre os meios e caminhos metódicos
da correta sondagem dos objetos da lógica. Isto significava uma apreensão mais radical
daquilo que fora dado com a psicologia descritiva e, ao mesmo tempo, uma fundamental
crítica contra a confusão contemporânea da postura interrogativa da psicologia genética
com a lógica. Este trabalho junto aos objetos fundamentais da lógica ocupou Husserl por
mais de doze anos. Os primeiros resultados deste trabalho formam o conteúdo da obra
que foi publicada em dois volumes nos anos de 1900 e 1901 com o título ‘Logische
Untersuchungen’ (‘Investigações Lógicas’). Com esta obra veio à primeira irrupção a
investigação fenomenológica. Este tornou-se o livro fundamental da fenomenologia98.
98
M. Heidegger, PGZ, 29-30.
II.2. FENOMENOLOGIA COMO PRINCÍPIO DE TRABALHO NA PESQUISA FILOSÓFICA.
A TENDÊNCIA DO MÉTODO FENOMENOLÓGICO.
99
Heidegger, M. Logik: Die Frage nach der Wahrheit (1925/1926). Frankfurt am Main: Vittorio
Klostermann, 1995, p. 31.
100
Idem.
filosofia; pois, pode-se finalmente mostrar, que a análise não vai sem essa opinião prévia
e que, por isso, representa uma parte essencial da pesquisa filosófica101.
101
Idem, p. 32-33.
Contudo, a psicologia não perdeu sua ambiguidade. No fim do século XIX, a psicologia
se bifurca em duas direções: Uma psicologia explicativa-causal, que procurava explicar
os fenômenos psíquicos a partir de conexões causais do anímico com o corpóreo,
entendido fisiologicamente (Psicologia experimental, genética - Wundt); E uma
psicologia compreensiva, que procurava compreender os fenômenos psíquicos como
tais, ou seja, como vivências dadas imediatamente à consciência e compreender as
conexões de vivências como conexões de motivos, fundadas pelo caráter da
intencionalidade (Psicologia empírica, descritiva, intencional, fenomenológica -
Brentano).
O psicologismo encarou a lógica como um ramo ou setor da psicologia. Assim como não
era muito claro em que consistia propriamente a psicologia, também não era muito
claro o que era a lógica. Para alguns a lógica seria uma arte ou técnica: a arte ou técnica
do pensamento correto. Para outros, a lógica seria uma ciência descritiva do
pensamento. Para outros, ainda, a lógica seria uma ciência normativa, que estabelece
as normas do pensar correto. Para J. S. Mill, a lógica seria uma arte ou técnica, cujos
fundamentos científicos se encontram na psicologia. Afinal, é a psicologia que estuda,
entre outras coisas, os atos psíquicos relacionados com o pensar: representar, julgar,
raciocinar, etc. Para o psicologismo a lógica estuda o pensamento no sentido do ato de
pensar e de suas leis. Essas leis não seriam simplesmente leis normativas, mas leis no
sentido de leis naturais. A lógica seria a física do pensamento (Th. Lipps). Por exemplo:
o princípio de não contradição não expressaria uma necessidade objetiva, mas sim uma
necessidade subjetiva, ou melhor, uma incapacidade natural do homem (a partir de sua
estrutura psicofísica) de pensar contraditoriamente. A necessidade dos princípios
lógicos não seria uma necessidade absoluta, mas relativa: relativa à espécie humana e à
sua estrutura psicofísica. Consequências do psicologismo na lógica: relativismo
(específico: antropologismo) e ceticismo. Com isso, o psicologismo levaria a
impossibilitar a condição mesma fundante de toda a ciência e de toda a teoria: a verdade
como validade objetiva e universal.
102
E. Husserl, LU, vol. I, 112.
conhecimento nem fundação de conhecimento. Destes dois modos de ceticismo há que
se distinguir ainda o ceticismo metafísico, isto é, aquele que nega a existência ou a
cognoscibilidade de “coisas em si”. Este não é, porém, o caso do psicologismo, que deve
ser entendido no sentido de um ceticismo lógico. Note-se que já da definição se pode
ver que o conceito de teoria cética é intrinsecamente absurdo: é uma teoria que nega
as condições de possibilidade de toda e qualquer teoria.
103
E. Husserl, LU, vol. I, 124.
104
Cfr. E. Husserl, LU, vol. I, 116.
II.4. INVESTIGAÇÃO ACERCA DA ESSÊNCIA DO FENÔMENO PSÍQUICO – A
REDESCOBERTA DA INTENCIONALIDADE.
Por que a crítica do psicologismo teve de ser – em seu sentido mais próprio – crítica da
psicologia? Por que o psicologismo seria algo a se rejeitar? O psicologismo haveria de
ser rejeitado, não porque a psicologia queria penetrar ali onde não é o seu lugar, mas
porque ele era a aplicação de uma psicologia, que não dominava, não compreendia a
fundo, o seu tema. “Não porque o psicologismo seria uma violação de algo, mas porque
seria a violação de algo, que não é psicologia, e porque ele enquanto tal é confuso”105.
Havia, naquele tempo, a tendência de se tomar a psicologia por uma física – uma
mecânica – do psíquico. Não havia clareza, na psicologia nascente, da coisa mesma da
sua investigação – o fenômeno psíquico em seu ser. Daí, surgia a necessidade da
pergunta: qual é a essência do psíquico? O que torna o psíquico o que ele é?
A crítica do psicologismo tinha de ser uma crítica da psicologia. Esta crítica não dizia
respeito aos préstimos prestados pela psicologia no campo das pesquisas ôntico-
positivas. Ela dizia respeito ao movimento principal de uma investigação, no sentido de
um esclarecimento fundamental, de uma determinação essencial do seu campo coisal.
Este é o movimento filosófico de uma ciência: quando ele pergunta pelo ser do ente que
ela toma por objeto de pesquisa – e assim, procura rever criticamente (numa
perspectiva ontológica) os seus conceitos fundamentais106. Assim, era necessário para a
105
Heidegger, M. Logik: Die Frage nach der Wahrheit (1925/1926). Frankfurt am Main: Vittorio
Klostermann, 1995, p. 98.
106
Heidegger lembra que Husserl, no seu discurso de entrada na Universidade de Freiburg, para evocar a
tarefa do filósofo, comparou-o com Galileu Galilei. Esta fala, diz Heidegger, foi mal compreendida. O
sentido dela era, segundo ele, mostrar que Galilei só se tornou o fundador da ciência moderna, pelo fato
de que ele, enquanto físico, era filósofo. Experimento com a natureza, já havia antes de Galilei. A
compreensão da determinação do movimento como um traço característico da natureza, também. O
importante em Galilei foi o movimento de interrogação do ser do fenômeno físico.
psicologia colocar a pergunta pelo ser do ente que ela investiga objetivamente – o
fenômeno psíquico. O que é que constitui o psíquico enquanto psíquico?
Uma investigação nesta direção tinha sido posta em movimento por Franz Brentano. A
resposta obtida por ele foi: o que propriamente é no fenômeno psíquico, a sua
determinação fundamental, é a intencionalidade.
107
Brentano usou a expressão “fenômenos Psíquicos” (psychische Phänomene) no contexto de seu esforço
por elucidar o objeto temático da psicologia. Tal esforço fez vir à tona a sua obra intitulada Psychologie
vom empirischen Standpunkt (editada em 2 volumes no ano de 1874 em Viena), cuja tradução usual soa:
“Psicologia do ponto de vista empírico”. Porém, a tradução de Standpunkt por “ponto de vista” não é
exata, pois Stand não significa propriamente “vista”, mas literalmente o posto onde algo ou alguém se
encontra, a sua posição, a sua situação. É que o substantivo Stand vem do verbo stehen, que significa
estar de pé, erguer-se, permanecer de pé, permanecer, ficar. Stand seria portanto a “estância”, isto é, o
lugar, o chão que dá firmeza para que alguém ou algo fique de pé, o fundo a partir do qual algo se ergue
e se afirma. O Standpunkt da psicologia, para Brentano, deveria ser a empiria. Aqui, no entanto, a
expressão “empírico” não deve ser entendida no sentido de “experimental”, como se a psicologia devesse
simplesmente aplicar os métodos das ciências naturais para observar, mensurar e controlar os dados
factuais da vida psíquica humana. Um tal procedimento permaneceria cego, se antes não tivesse
garantido um acesso apropriado àquilo que Brentano chama de “fenômeno psíquico” e que é bastante
diferente, no seu modo de ser, daquilo que nas ciências naturais se chamava de “fenômeno físico”. A
psicologia deve, portanto, antes de tudo, garantir o acesso às “consistências factuais” (Tatbestände) da
vida psíquica, no modo como elas são imediatamente acessíveis, ou seja, a partir delas mesmas e não a
partir de teorias sobre a conexão do anímico com o corpóreo, do psíquico com o fisiológico. A psicologia
seria uma ciência que investiga a vida psíquica e suas datidades (fenômenos), a partir da experiência na
qual estas datidades se manifestam de modo direto. A experiência, e não o experimento, é a mestra da
psicologia. O psicólogo, porém, não se detém meramente numa classificação arbitrária, casual ou
aleatória das datidades psíquicas. Na sua descrição, ele tenta colher cada vez de novo o eidos (), ou
seja, a estrutura essencial, o perfil estrutural, o typos () daquilo que se mostra e se faz ver, do
phainomenon (), da idea (). O psicólogo, na acepção de Brentano, descreve e classifica
os fenômenos psíquicos não a partir de um esquema pré-fixado e imposto de fora. Descrever significa
fazer ver o que se mostra a partir da experiência. Classificar significa ordenar os fenômenos de modo
natural e não de modo forçado, artificioso. De modo natural, significa, aqui, seguindo a natureza da coisa,
aquilo que a coisa é e como ela é. Com outras palavras, a classificação implica o conhecimento prévio da
natureza dos objetos temáticos, do que eles são e como são, a apreensão da forma essencial dos mesmos,
o caráter distintivo, o perfil ou a estrutura essencial dos mesmos. Um tal modo de proceder, que adere à
coisa e se conforma a ela (sachgemäss) é o que Brentano chama de “empírico”. A psicologia pretendida
por Brentano é, portanto, fenomenologia e a fenomenologia é a ciência empírica e objetiva (sachlich) por
excelência. Diante dela todo o empirismo positivista e todo o objetivismo cientificista se mostram como
pálidos reflexos de sua idéia, pois não são suficientemente empíricos, mas somente artificiosamente
experimentais.
fenômenos, ou seja, ordená-los segundo as suas tipologias essenciais, seria necessário
captar a essência mesma daquilo que se chama de “fenômeno psíquico”.
Perguntar pela essência do “fenômeno psíquico em geral e como tal” significa indagar
aquilo que faz com ele seja o que é, ou como diziam os medievais, indagar aquilo que
constitui a sua “quididade”108. Na tentativa de responder a esta pergunta nós somos
obrigados, agora, a encetar a via da descoberta fundamental da fenomenologia, que se
denomina intencionalidade. Esta será, pois, o fio condutor para abrirmos a essência da
nossa auto-experiência da vida.
Para começar, pois, convém citar textualmente Brentano, quem auxiliou Husserl a, nas
suas Investigações Lógicas, chegar a conceber a ideia da fenomenologia. Vamos, pois, à
citação:
108
Termo derivado do latim quidditas que, por sua vez, é a forma abstrata do interrogativo quid. A
quididade responde à pergunta: o que é? Inclui o conjunto dos predicados que significam a constituição
ontológica de uma coisa.
109
F. BRENTANO, Psicologia dal punto di vista empirico, vol. I, Luigi Reverdito Editore, 1989, p. 175.
110
Brentano mesmo parece estar cônscio das ambiguidades da expressão de seu pensamento. Tais
ambiguidades fazem parte da dificuldade de dizer o que se mostra. Há que se procurar as palavras
adequadas. Brentano vai buscar na tradição, especificamente no âmbito do pensamento escolástico
medieval, a linguagem para dizer a sua nova descoberta. Segundo suas indicações, apresentadas em uma
nota de rodapé do texto acima citado, já Aristóteles fez referência a esta peculiaridade psíquica quando,
nos seus livros sobre a alma (Peri Psyché, – De anima), diz que o objeto da sensibilidade,
enquanto sentido, é contido no senciente, que o órgão sensorial o capta de modo imaterial e que este,
enfim, enquanto objeto representado ou pensado se situa no intelecto pensante. Também Tomás de
Aquino ensina que o pensado está intencionalmente no pensante, assim como o amado no amante e o
desejado no desejador ( o que abre perspectivas para a compreensão teológica do mistério da Trindade).
Segundo a mesma nota é o vislumbre de uma tal idéia que possibilitou, embora assumida de modo
confuso, que Fílon de Alexandria chegasse à sua doutrina do lógos (), que Agostinho formulasse a
doutrina do verbum mentis, e que Anselmo pudesse elaborar o seu famoso “argumento ontológico” da
existência de Deus. Há de se notar, porém, que os pensadores da tradição parecem ter apenas entrevisto
pois, é superar as dificuldades terminológicas da expressão de seu pensamento e nos
deixarmos remeter para a coisa mesma para a qual ele está acenando.
Aqui a linguagem pode dar margem a equívocos fatais que, em vez de desvelar a
intencionalidade, justamente a encobrem. Assim, pode facilmente induzir a erro o dizer
que os objetos percebidos, imaginados, pensados, desejados, etc. “entram na
consciência” ou, vice-versa, que “a consciência, ou o ‘eu’, entra em relação” com aqueles
objetos, ou então que estes “são assumidos na consciência” segundo esta ou aquela
modalidade; ou ainda que os fenômenos psíquicos, ou seja, as vivências intencionais,
“contêm em si alguma coisa como objeto”. Todo este modo de se expressar pode
conduzir a, no mínimo, dois equívocos: em primeiro lugar, que se trate de um
acontecimento real que ocorre entre duas “coisas”, a saber, a consciência, ou o eu, e a
coisa tornada “consciente”; em segundo lugar, que se trate de uma relação entre duas
coisas que podem realmente se encontrar de igual maneira na consciência, o ato e o
objeto intencional, como se um conteúdo psíquico fosse encaixado em outro111.
a intencionalidade, não retirando dela o princípio de toda uma nova e original investigação da “alma”. O
fato de Brentano recorrer à tradição para falar da intencionalidade pode parecer que constitui uma
negação da originalidade da sua descoberta ou ainda um recurso a dogmas metafisicos. Por outro lado,
o fato de um fenomenólogo recorrer a Aristóteles e aos escolásticos medievais para falar de suas
descobertas não significa necessariamente que ele, usando do argumento de autoridade, recorre a
dogmas metafísicos. Pode significar, ao contrário, que ele vê em autores da tradição outros tantos
fenomenólogos que, a seu modo, conseguiram investiga, seguindo o dar-se das coisas mesmas e, assim,
puderam entrever o mesmo, que agora constitui a coisa ou a causa da fenomenologia. A intencionalidade,
aquém de todo dogma metafísico, é algo que se mostra justamente a quem, num olhar livre de pre-
julgamentos, tem olhos para ver.
111
Cfr. E. HUSSERL, LU II/1, 371.
112
Segundo outra nota colocada por Brentano ao texto acima citado, os medievais, aludindo à a in-
existência intencional, usavam a expressão “ser objetivamente em alguma coisa” ou, sua equivalente, “ser
objetivamente imanente”. Com nossas palavras: a coisa percebida, pensada, imaginada, desejada, etc está
objetualmente no ato da percepção, do pensamento, da imaginação, do desejo, etc. Isto é o que parece
querer dizer a expressão in-existência intencional. A objetualidade in-existe no próprio ato, ou seja, ela
existe de modo intencional no ato mesmo: ela “inexistit menti”, quer dizer, “existit in menti”. É o que
parece indicar Tomás quando diz que “omne cognitum est in cognoscente per modum cognoscentis”, todo
conhecido está no conhecedor ao modo do conhecedor; isso o leva a afirmar que a “veritas principalius
in intellectu quam in re reperiatur”, a verdade se deixa encontrar de modo mais primordial no intelecto
que na coisa (De veritate, quaestio 1, articulus 2). Com outras palavras, o modo de ser daquele que
conhece é primordial e decisivo no conhecimento das coisas. Graças ao modo de ser da mens (intellectus,
anima) todas as coisas se tornam conhecíveis ou inteligíveis. O ens se converte em veritas. A mens ou a
anima não é, portanto, um ente qualquer, mas é o ens que tem o privilégio de ser a estância onde tudo
aquilo que é possa se mostrar como sendo, possa ser no modo do dar-se a conhecer, através quer da
sensibilitas quer da ratio ou da intelligentia. Por conseguinte, a anima é o “ens quod natum est convenire
Dizer que um objeto é intencionado no modo deste ou daquele ato não significa que a
consciência, de maneira voluntária ou mesmo voluntariosa, almeje isto ou aquilo.
Também não quer dizer necessariamente que a consciência esteja voltada, numa
observação atenta, para o objeto, ou seja, que ela esteja a notá-lo, a apreendê-lo de
modo temático113. Tentemos, no entanto, esclarecer, positivamente, aquilo que
constitui o sentido da descoberta de Brentano.
cum omni ente”, o ente ao qual é próprio, por natureza, convir com todo ente: graças às suas potências
cognitivas e apetitivas as coisas se dão no modo de ser do verum e do bonum (cfr. De veritate, q. 1, art.
1c). Este poder “con-vir”, poder convergir com todas as coisas, próprio da alma, foi o que fez Aristóteles
afirmar: a alma é de certo modo todos os entes ( − De anima
8, 431b 21).
113
Há, entretanto, uma relação intrínseca entre intenção e atenção, a qual não podemos abordar aqui e
agora. Por ora basta dizer que não é a atenção que constitui a essência da intenção, na acepção
fenomenológica deste termo, mas se dá justamente o contrário, ou seja, é a intenção a possibilitar que
este ou aquele ato, a seu modo, se volte com atenção para a sua objetualidade. A respeito disso, cfr. E.
HUSSERL, LU II/1, 405-411.
114
A palavra “intenção” deriva do latim “intentio”: segundo explicitação de Tomás de Aquino, “intentio,
sicut ipsum nomen sonat, significat ‘in aliud tendere’ (intenção, como o próprio nome diz, significa ‘tender
para um outro’) (Summa theologica, I-II, q. 12, aa. I,5; q. 1, a. 2).
115
Cfr. E. HUSSERL, LU II/1, 372-373.
Isto pode parecer um mero jogo linguístico ou pode ainda parecer que estamos dizendo
uma obviedade cuja banalidade não tem tamanho. Mas tentemos ver mais de perto esta
obviedade e talvez vislumbraremos que, aí, se dá algo, que nada tem de banal e que
estamos a fazer outra coisa do que a jogar com palavras.
Cada tipo de ato psíquico possui uma estrutura essencial pré-formada: é, cada vez, um
determinado tipo de referimento intencional. Cada ato apreende o seu objeto de modo
diferenciado, todo próprio, o qual é pré-determinado em sua própria estrutura. Com
outras palavras, em cada tipo de ato está em jogo um tipo de referimento diferente e,
em cada tipo de referimento, o objeto é cunhado, moldado, configurado de modo
diverso. Por exemplo, quando, ao meu olhar, um homem “amável” se transforma num
homem “odiável”, o que se dá não é o fato de que aquele mesmo homem agora aparece
numa outra luz, mas o fato de que aquele mesmo homem se altera inteiramente, ele é
totalmente re-configurado, sua aparição se reestrutura de ponta a cabeça, até nos seus
traços mínimos. A sua fisionomia, o seu olhar, a sua mão, a sua roupa, a sua voz, tudo
que nele, antes, era-me amável, agora se me parece odiável. Um homem digno de
desprezo, de ódio ou de pena é outro em relação a um homem digno de estima ou de
amizade, ainda que este homem seja a mesma pessoa. Ele não somente possui outras
propriedades caracterológicas, mas ele é, por assim dizer, de dentro para fora,
inteiramente re-constituído116.
Nós dizemos que um ato é o mesmo quando a sua essência intencional é a mesma, ainda
que apresentem diferenças descritivas de cunho acidental. É que a essência intencional
não constitui o ato na sua inteireza ou completeza: são possíveis sempre variações
acidentais, isto é, que não tocam a intenção propriamente dita, ou seja, o referimento
intencional com o seu sentido apreensional.
116
Cfr. H. ROMBACH, Phänomenologie des gegenwärtigen Bewusstseins, Alber, Freiburg
(Breisgau)/München, 1980, p. 39.
intencional, ou seja, possuem o mesmo referimento intencional com um mesmo sentido
apreensional.
Identidade essencial não é o mesmo que identidade individual: cada ato no qual eu, a
cada vez, vivo, é único e singular. Neste sentido da identidade individual do ato, eu
mesmo nunca terei, por exemplo, a mesma percepção de uma mesma coisa. Muito
menos, ainda neste sentido, eu e outra pessoa poderemos ter a mesma percepção ou a
mesma fantasia ou o mesmo desejo, etc. Identidade essencial não é ainda o mesmo que
relação de perfeita igualdade, como se pudesse haver uma duplicata de um ato. Cada
ato é uma vivência absolutamente singular e irrepetível, a partir deste ponto de vista.
Antes, porém, de avançarmos, elucidemos ainda mais o que até agora chamamos de
referimento intencional. Em suma: este referimento não é o mesmo que uma relação
ocasional e ocorrencial entre um sujeito psíquico e uma coisa física; não é algo que se
dá a posteriori como que ligando dois conteúdos psíquicos; ao contrário, este
referimento intencional é um traço essencial, uma estrutura a priori dos atos ou
vivências; por conseguinte, à medida que se dá atualmente uma vivência é dado, eo ipso,
o referimento intencional; este referimento intencional é cada vez um modo de ser
consciência-de; por fim, cada tipo de referimento possui o seu próprio modo de
apreender a sua objetualidade, ou seja, que cada tipo de ato possui o seu próprio “ver”
e, por assim dizer, o seu próprio “olho”. Portanto, o “dirigir-se a” uma objetualidade tem
117
Cfr. E. HUSSERL, Ideen I, 64.
o modo de ser de um “ser consciência-de” e este, por sua vez, pode ser caracterizado
como uma “mirada-para”118.
Ao ato mesmo pertence uma mirada-para, que lhe é imanente e que nunca lhe pode
faltar119. Este mirar-para é, de acordo com a modalidade de consciência que lhe é
própria, cada vez diferente: na percepção é perceptivo, na imaginação é imaginativo, no
prazer é prazeroso, no desejar é desiderativo, no amor é amoroso, no ódio é odioso, e
assim por diante. Isto quer dizer que cada ato tem o seu mirar-para e que este mirar-
para nunca é um ato ulterior, que se acrescenta àquele ato como tal, algo assim como
um voltar-a-atenção-para, ou como um captar de modo objetivante qualquer aquilo que
se anunciou em e através do ato mesmo, mas quer dizer que este mirar-para, este visar,
lhe é imanente. Ora, o voltar-a-atenção para e o captar objetivante daquilo que
usualmente se chama de percepção externa ou interna, ou seja, da percepção imanente
e transcendente, são apenas modos derivados e específicos de atos, portanto, modos
do referimento intencional, do mirar-para, e não a sua essência mesma. Este mirar-para
é já a condição da possibilidade daqueles atos e não o contrário.
118
Com esta expressão portuguesa, “mirada-para”, traduzimos a alemã “Blick-auf”. Com efeito, o verbo
blicken significa mirar, olhar. Aqui nós tomamos a palavra “mirar” em toda a riqueza de significados nos
quais o dirigir-se-a adquire o sentido de olhar: cravar a vista em, fitar os olhos em; fitar, encarar; voltar os
olhos para fitar; dar uma olhadela, espreitar; avistar, enxergar; olhar, visando; pôr o fito em; aspirar a,
pretender; ter em vista, visar.
119
Cfr. E. HUSSERL, Ideen I,. 65.
mim”, ao qual corresponde, entretanto, algo “fora de mim”, como uma coisa real física.
Segundo esta interpretação a percepção seria uma relação, especificamente, uma
coordenação entre a realidade da consciência (o sujeito) e a realidade da coisa externa
à consciência (o objeto). A intencionalidade seria uma coordenação entre um fenômeno
psíquico (imanente) e um objeto físico (transcendente). Daí surge o problema
epistemológico, a saber, a pergunta sobre como é que o psíquico, saindo de si, alcança
o âmbito físico, como é que, a um processo psíquico corresponde um objeto real. Trata-
se, porém, de um pseudo-problema, que se dissolve tão logo se evidencia que seus
pressupostos já são o resultado de uma compreensão equivocada do fenômeno da
percepção (relação entre dentro e fora, psíquico e físico, imanente e transcendente),
compreensão que parte do dogma da relação sujeito-objeto.
Todavia, não é necessário que a percepção seja uma relação entre a consciência e algo
físico, “externo” à consciência. É o caso, por exemplo, de uma alucinação. Neste caso,
ao processo psíquico não corresponde nenhum objeto real, dá-se uma percepção sem
que surja uma relação com alguma coisa fora da percepção mesma. O mesmo caso é o
de uma percepção falaz. A percepção, qualquer que seja, mesmo uma percepção
presumida, falaz, ilusória, é sempre intencional. Não é necessário que o objeto
intencional seja real, para que se dê uma percepção como tal e para que esta seja
intencional. Já a percepção presumida é um ato intencional: um dirigir-se a alguma
coisa, no caso, um dirigir-se a um percebido presumido. Não é assim que uma percepção
seja intencional só graças ao fato de que um elemento físico entre em relação com o
psíquico e não seja mais intencional se este real não existisse, mas é a percepção em si
mesma, autêntica ou falaz, “normal” ou “patológica”, a ser intencional. Com outras
palavras, intencionalidade não é uma propriedade que se acrescentaria à percepção em
certos casos, mas a percepção é por natureza, a priori, intencional, prescindindo do fato
de o percebido ser realiter simplesmente dado ou não. E justamente porque a
percepção como tal é um dirigir-se a alguma coisa, porque a intencionalidade constitui
a estrutura do comportamento mesmo, é que pode se dar algo como a percepção falaz
e a alucinação.
120
HEIDEGGER, M. Prolegomena zur Geschichte des Zeitbegriffs, Gesamausgabe – Band 20. Frankfurt am
Main: Vittorio Klostermann, 1994, p. 39-40.
121
HEIDEGGER, M. Prolegomena zur Geschichte des Zeitbegriffs, Gesamausgabe – Band 20. Frankfurt am
Main: Vittorio Klostermann, 1994, p. 48.
intencionado, ou seja, do seu ser-percebido, ser-representado, julgado, imaginado,
recordado, amado, odiado...
Uma cadeira é percebida do mesmo modo como um par de sapatos, como uma pedra,
uma casa e coisas semelhantes. Quer dizer, a estrutura da perceptividade do percebido
é a mesma em todas as possibilidades do perceber. Mesmo percepções que se dão por
vias sensoriais diversas são idênticas na sua estrutura intencional: a perceptividade deve
ser uma estrutura idêntica para uma cor ou forma visual, para um som, para um cheiro,
para um sabor e para algo de tátil. Com esta alusão, porém, não estamos restringindo a
percepção à sensação, nem o percebido ao que é dado sensorialmente, nem a
perceptividade à sensorialidade, nem a sensorialidade ao limite do que se pode
apreender pelas vias dos cinco sentidos. Apenas estamos indicando que, por mais
diversas que sejam as possibilidades em que são aviadas a percepção, ou seja, o
perceber, a estrutura da perceptividade será a mesma.
122
Aqui usamos a palavra perceptividade (Wahrgenomenheit) para tentar dizer a constituição ontológica
da percepção, vale dizer, do perceber e do percebido, em sua unidade indissolúvel. De fato, a palavra
“percepção” fala justamente da unidade do perceber (intentio / noesis) e do percebido (intentum /
noema). Perceptividade, por sua vez, acena para a condição da possibilidade da percepção em sua dupla
estrutura intencional. Nos remete, pois, ao que, anteriormente, chamamos de evidência, ou seja, a
pregnância da clareza, a intensidade e intensificação da claridade enquanto doação da coisa mesma, na
sua viva datidade, na sua mais concreta presença, “em carne e osso”, “em pessoa” (leibhaft). É esta clareza
que faz da percepção o modo mais originário e primordial de apreensão, sendo que, outros modos de se
comportar com o ente almejam, sempre, sua plenificação e consumação nesta clareza da percepção. Esta
clareza é, pois, a condição da possibilidade de toda vidência intencional e de toda manifestação do
intencionado. Cfr. M. HEIDEGGER, PGZ, 52-58 e Grundprobleme der Phänomenologie (GPh),
Gesamtausgabe, Band 24, Vittorio Klostermann, Frankfurt a. M., 1997, p. 64-67.
O ser-percebido e a estrutura da perceptividade fazem parte, essencialmente, do
perceber enquanto tal, isto é, de sua intencionalidade. A pergunta que se levanta,
porém, é: em que consiste a perceptividade do ser-percebido? Comecemos a responder
a esta pergunta tentando caracterizar o próprio da autodatidade do percebido para o
perceber.
Comecemos por investigar o percebido desta percepção escolhida como caso exemplar:
a percepção natural de uma coisa. Do que se trata? De uma cadeira. O que vejo, quando
olho para uma cadeira? A resposta é simples e desconcertante, mas não desprovida de
uma riqueza fenomenal: quando eu olho para a cadeira eu vejo a cadeira mesma! O que
quer dizer esta trivialidade? Que quando eu percebo a cadeira eu não estou vendo
“representações” da cadeira, não estou apreendendo nenhuma imagem da cadeira, não
estou advertindo sensações da cadeira, mas simplesmente estou vendo a cadeira, eu a
vejo simplesmente – vejo ela mesma.
123
Husserl, E. Logische Untersuchungen II/2: Elemente einer phänomenologischen Aufklärung der
Erkenntnis. Tübingen: Max Niemeyer, p. 116.
124
Heidegger, M. Prolegomena zur Geschichte des Zeitbegrif fs: Gesammtausgabe 20. Frankfurt am Main:
Vittorio Klostermann, p. 54.
presente em carne e osso [leibhaftig anwesend]125 (HEIDEGGER, 1995: 103). Como já
dissemos, na percepção se dá não uma mera presentificação, mas sim uma presentação
da coisa mesma. No entanto no caso de uma percepção sensível de uma coisa material,
“por mais adequada que possa ser uma percepção, o ente percebido se mostra sempre
cada vez somente em um determinado sombreamento [Abschattung] ” (HEIDEGGER,
1994a: 65). Em vez de sombreamento, podemos dizer também “nuança”. No caso da
percepção sensível de uma coisa material, o visado do perceber é sempre a coisa mesma
em sua totalidade, mas o que eu apreendo é sempre esta coisa desde determinada
perspectiva e sob um determinado aspecto. Eu vejo, por exemplo, a parte superior da
cadeira, enquanto não consigo ver a superfície inferior. Todavia, não penso, por isso,
que as pernas da cadeira foram serradas, porque, no meu perceber, naturalmente conto
com o mostrar-se nuançado das coisas percebidas. Num movimento em torno da coisa,
os aspectos que vêm à luz de modo nuançado podem mudar, no entanto, no perceber
e com o perceber acontece também a consciência de que este percebido é o mesmo
ente, a mesma coisa. Esta consciência da “idemidade” [Selbigkeit] do percebido faz parte
do ato de perceber. Aspectividade, nuança e idemidade são traços caraterísticos da
perceptibilidade de uma coisa material apreendida por uma percepção sensível126.
O mundo da percepção, com efeito, tem um estilo todo próprio. É diferente, por
exemplo, do mundo dos números. O mundo perceptivo é caracterizado pela tessitura
ou concreção. Já o mundo dos números é caracterizado pelo “despedaçamento”, ou
125
Heidegger, M. Logik: die Frage nach der Wahrheit: Gesammtausgabe 21. Frankfurt am Main: Vittorio
Klostermann, p. 103.
126
ROMBACH, H. (1980). Phänomenologie des Gegenwärtigen Bewusstseins. Freiburg i.B./ München:
Alber, p. 171-191.
seja, pela discreção. Com outras palavras, a coisa do mundo perceptivo é um concretum,
enquanto a do mundo numérico é um discretum. Com efeito, no mundo perceptivo cada
coisa que vejo me conduz a outra coisa, cada percepção passa para outra percepção, de
tal modo que, o que eu chamo de mundo perceptivo comporta sempre a estrutura de
um “e-assim-por-diante”. Já no mundo dos números não existe passagem entre um
número e um outro, uma vez que um número pode ser subdividido infinitamente. A
concreção é um traço fundamental do mundo perceptivo. Este não tem limites. Em
percebendo eu estou sempre já para além do que percebo, à medida que, a priori, o
conteúdo da percepção remete para ulteriores conteúdos de percepção. Cada
percepção implica um número ilimitado de ulteriores percepções do mesmo objeto e de
objetos singulares distintos daquele objeto. Este estrutural “e-assim-por-diante”, faz
parte, essencialmente da vivência intencional da percepção. Nele eu capto o mundo
como uma abertura de grande vastidão. Com cada percepção é posto também o inteiro
mundo da percepção. Com efeito, o percebido é sempre percebido como algo que está
“no” mundo, ou melhor, dentro dele, ou seja, como o que é intramundano, espacial127.
Ao mesmo tempo, o passar de uma percepção para outra implica numa certa retenção
das percepções anteriores e uma certa protenção para percepções ulteriores. Uma
percepção só é possível enquanto provém de outras e conduz a outras. A percepção
atual de um objeto estático só é possível a partir do dinamismo de retenção e protenção
da percepção. As percepções passadas são retidas, mas isto não significa dizer que a
percepção seja algo como uma recordação. Ao mesmo tempo, em cada percepção já
atua a abertura prospectiva para uma nova percepção, o que não quer dizer que
percepção seja algo como um esperar. Toda percepção produz protenções, ou seja,
127
Cfr. E. HUSSERL, Ideen I, 28-30. Também cfr. H. ROMBACH, Phänomenologie des gegenwärtigen
Bewusstseins, Alber, Freiburg/München, 1980, p. 60-66.
expectativas dadas de antemão, de tal modo que a próxima percepção tem que se
perfilar confirmando ou refutando as expectativas que se tinham surgido. O adormecer,
por exemplo, é um retrair de protenções, ou seja, adormeço à medida que o horizonte
protencional de expectativas abaixa o facho, as percepções perdem o caráter reflexivo,
e a auto-consciência se desliga do mundo perceptivo. Também pertence
intrinsecamente à percepção a retenção. Cada percepção contém sempre um conteúdo
que advém de uma percepção precedente. A percepção atual retém a percepção
precedente e faz desta seu conteúdo atual, não em todos os detalhes, mas naqueles
traços essenciais, ou seja, naqueles que são significativos para a contenção motivacional
de toda a série perceptiva. O fluir das percepções seguem, portanto, uma cadência
própria, uma espécie de melodia fundamental, de afinação composicional. É assim que
emerge a forma perceptiva (Gestalt), com sua figura e fundo. A forma concreta que
percebo é já uma síntese que emerge a partir da intencionalidade da minha percepção
e na composição desta forma já atua de modo decisivo o meu interesse. É a partir deste
interesse que eu destaco determinadas qualidades figurativas e deixo de fundo outras.
A cadência do fluir das vivências perceptivas, portanto, em suas sequências de retenções
e protenções é que decide daquilo que vejo concretamente128.
128
Cfr. E. HUSSERL, Zur Phänomenologie des inneren Zeitbewusstseins (PhZ), Husserliana, Band X,
Martinus Nijhoff, Haag, 1966, p. 19-72; Cfr. também H. ROMBACH, Phänomenologie des gegenwärtigen
Bewusstseins, 195-200.
129
Cf. HEIDEGGER, M. Prolegomena zur Geschichte des Zeitbegriffs. Frankfurt a.M.: Vittorio Klostermann,
1994, p. 57-58.
130
Cf. ROMBACH, H. Phänomenologie des gegenwärtigen Bewusstseins. Freiburg i.B./München: Alber,
1980, p. 171-191.
enquanto tal somente visando-a desde uma determinada perspectiva: de cima ou de
baixo, de frente ou por detrás; sob determinados aspectos: no seu formato, na sua cor,
na sua extensão; em determinadas nuanças: como cadeira amarelada, não muito dura,
nem muito macia, etc. Tentemos, pois, elucidar este dado fenomenal.
A diferenciação entre figura e fundo está, por sua vez, intimamente unida à
diferenciação entre coisa e nuança, ou seja, entre a coisa mesma e suas manifestações.
A condição de possibilidade do fato de a coisa mesma aparecer através de suas múltiplas
manifestações ou nuanças consiste na reflexividade da visão, ou seja, no fato de que a
percepção não somente vê, mas ela se vê, vendo. À medida que o ver da percepção se
vê vendo, ele pode relacionar o múltiplo conteúdo fatual da visão com a coisa, que é
sempre, ao mesmo tempo, dada e não dada. Aqui a coisa é co-apreendida como a
plenitude de todas as suas possíveis nuanças ou manifestações. Isto faz com que a coisa
seja concebida como uma substância, como um subjectum, e suas manifestações como
acidentes, ou seja, propriedades; ao mesmo tempo, a relação entre substância e
acidentes, entre sujeito e propriedades é vista como uma relação de fundação, ou seja,
como um relação entre fundamento e fundado, entre razão e conseqüência, ou ainda,
alguma vez, como relação entre causa e efeito.
Na reflexividade reside a mobilidade da percepção. Tal mobilidade, por sua vez, nasce
com e do fenômeno da percepção mesmo. Não é causada desde fora. É uma espécie de
auto-movimento mais primordial do que o da locomoção. O auto-movimento da
percepção é a mobilidade originária do nosso corpo.
Ver que se vê é, ao mesmo tempo, ver aquilo que se vê. Quanto mais reflexividade, tanto
mais objetividade. A riqueza das possibilidades da percepção é constituída na dupla
relação do ser-em-relevo de figura e fundo e do ser-em-contraste de coisa e
manifestação. Uma percepção é tanto mais percepção quanto mais a intensidade da
atencionalidade mantém vivaz aquele ser-em-relevo e aquele ser-em-contraste.
Quando eu, por exemplo, numa tardinha de inverno, sentado sobre uma pedra, no cimo
de uma montanha, olho para o horizonte e contemplo o ocaso, então faço a experiência
de ser um corpo na captação do escurecer do dia e do cair da noite; na captação, em
minha pele, do ficar mais frio do clima; na captação do cricrilar dos grilos e do canto dos
pássaros que vão se recolher e, em tudo isto, na captação do silêncio em que tudo
parece imergir. Prestar atenção a alguma coisa significa apreender esta coisa em um
contexto de movimento, a saber, de um movimento de possibilidades através das quais
o único e mesmo estado de coisas pode ser dado em diferentes nuanças. A percepção
não é um receber meramente passivo. O percipere é, sim, um recipere, mas trata-se de
um receber todo próprio, acolhedor, bem disposto, por conseguinte, de um receber que
está longe de ser mera passividade, mas que é um agir, quiçá, a mais elementar e, ao
mesmo tempo, a mais exigente de todas as ações.
A perspectiva é o realismo da percepção. Onde são dadas perspectivas, ali as coisas são
dadas como coisas, como reais e objetivas. O que nós chamamos de efetividade é
constituída na percepção, a saber, através da perspectividade. É a percepção mesma
que dá a efetividade. Ela é o modo da doação da realidade efetiva mesma. É por esta
razão que a palavra “percepção” é dita, em alemão, Wahrnenhmung, e “perceber” é
dito Wahrnehmen. Nehmen é o verbo tomar. Wahr corresponde ao adjetivo
“verdadeiro”. Percepção é, segundo este aceno etimológico, uma apreensão do que é
verdadeiro, isto é, real, efetivo, do que se dá em carne e osso, do que é liberado para o
aberto do mundo. É, por conseguinte, um dar-se da verdade, da Wahrheit. Também em
latim a palavra “veritas” (verdade) conota firmeza, resistência, estabilidade,
confiabilidade. Neste sentido, “verus” (verdadeiro) é o que se mostra “severus”
(rigoroso, grave, consistente); é o que “persevera”, ao ser submetido a provas; é o que
se pode “asseverar”, isto é, afirmar com certeza, com segurança.
Isto que nós, aqui, chamamos de realismo da percepção e que salientamos em contraste
com a fantasia e o sonho, nos mostra que a percepção traz em si e consigo a tese, isto
é, a posição da realidade, ou então, com outras palavras, que a realidade é constituída
no próprio ato intencional da percepção. A consciência percepiente é,
fundamentalmente, uma consciência tética, posicional. A esta estrutura tética,
pertence, invariavelmente, a auto-confiança própria da percepção131. O perceber
sempre crê em si mesmo. Ele toma o que nele se dá por uma informação fatual em que
se pode confiar. Tal confiança se dá porque o perceber apreende não somente o objeto
no modo de sua presença em carne e osso, como também apreende a sua relação com
o objeto que se lhe oferece, captando este objeto como constituído na e para esta
relação intencional. Assim, a percepção é, cada vez, não somente a apreensão de um
objeto numa referência intencional, mas é também uma apreensão daquela referência
mesma. A apreensão desta referência é sempre clara e distinta, ainda que o objeto nela
131
Cf. HUSSERL, E. Ideen zu einer reinen Phänomenologie und phänomenologischen Philosophie, Erstes
Buch. Tübingen: Max Niemeyer, 1993, p. 213-255.
apreendido seja obscuro e indistinto. A percepção de um vulto na neblina é clara e
distinta em si mesma. Ela se sabe perfeitamente como a percepção de uma “figura”
obscura e indistinta. Por serem sempre claras em si mesmas, as percepções não podem,
rigorosamente falando, se enganarem. Daí a sua inabalável e irrenunciável auto-
confiança. O fato de que podem acontecer ilusões perceptivas de qualquer espécie, não
é uma objeção contra esta auto-confiança. Uma ilusão, enquanto acontece, subsiste
como real. Somente através de uma nova percepção é que a outra percepção pode
aparecer como ilusória. Um pedaço de pau mergulhado na água se me mostra como
dobrado. Ao retirá-lo da água, percebo-o como reto. A minha percepção se auto-regula
e corrige a si mesma, dando-me um saber da ilusão óptica anterior, isto é, revelando a
ilusão como ilusão, a partir de uma nova percepção. Ademais, esta auto-confiança
subsiste na percepção, ainda quando um saber não perceptivo a desmarcara como
simulação. Assim, todos os dias nós vemos o sol nascer e se pôr. Ainda que saibamos,
por informação científica, que o sol não nasce nem se põe, mas que o fenômeno que
assisto é resultado dos movimentos de translação e rotação de dois astros, o sol e a
terra, a percepção cotidiana do nascer e do pôr do sol não deixa de ser válida e
verdadeira em si mesma. O saber acerca da percepção não penetra na percepção. Esta
guarda continuamente em si sua auto-confiança enquanto seu modo de saber. A auto-
confiança faz da percepção o fundamento e o centro de todo vivenciar e a sua condição
última de verdade.
Em sentido amplo, porém, poderíamos afirmar que os diversos atos intencionais são
variações da percepção, o que significa dizer que, de certo modo, todos os atos
intencionais são, ao seu modo, perceptivos. A percepção pura e simples funciona como
base para a percepção própria e complexa dos atos graduados, ou seja, da simples
representação, da imaginação, da recordação, da expectativa, do sentimento, do juízo...
É que, da percepção elementar surgem outros tipos de percepção. A simples
representação é uma percepção, um ver, de algo que se mostra em si mesmo, mas que
não se mostra em carne e osso. A imaginação é uma apreensão, uma percepção de algo
imaginário. A recordação é uma apreensão, uma visualização de algo vivido que é
atualizado. A expectativa é também a abertura de um olhar que focaliza a atenção para
o que está se dando dispondo-se a vislumbrar o novo que pode, a qualquer momento,
se dar. Da mesma forma, o sentimento apreende algo que é amado ou odiado, que traz
prazer ou desprazer; e o juízo declara um estado de coisas apreendido como sendo desta
ou daquela maneira. Caso nós consideremos percepção como toda a apreensão de algo
como algo, então todos os atos intencionais não vão ser outra coisa que percepção, ou
132
Cf. HUSSERL, E. Zur Phänomenologie des inneren Zeitbewusstseins. Den Haag: Martinus Nijhoff, Haag,
1966, p. 133-134.
seja, diferentes variantes de percepção. Caso consideremos percepção como apreensão
de algo que se dá em carne e osso, todos os atos intencionais não vão ser outra coisa
que vivências constituídas a partir da percepção ou em função dela. A percepção é,
neste sentido, o ponto de partida e o ponto de chegada de todo vivenciar, o centro a
partir do qual saem e para onde retornam todos os atos intencionais da consciência. É
por isto que dizíamos que a percepção é o fundamento e o centro de todo o vivenciar.
Toda a vivência intencional, por sua vez, constitui sempre um modo de eu estar-junto
daquilo que se me apresenta deste ou daquele modo. Os atos intencionais possuem,
com efeito, cada vez, um modo de tornar presente aquilo que é intencionado. A
percepção, em sentido estrito, torna presente o percebido no modo de sua presença
em carne e osso e o seu estar-junto é, por isto, um estar-junto privilegiado. Já a mera
representação torna presente aquilo em que simplesmente penso no modo de uma
presença vaga e o seu estar-junto é, por isto mesmo, insatisfatório e disperso. A
recordação torna presente o recordado no modo de uma presença-ausente, por causa
da irreversibilidade do “já não mais” do passado. O mesmo se diga da expectativa, só
que por uma razão inversa, ou seja, porque aquilo que se espera só pode ser presente
no modo de um “ainda-não”, de um “pode-e-não-pode ser que aconteça”. A imaginação
torna presente algo imaginário e o estar junto de algo imaginário, por mais convincente
que seja, sempre dura somente enquanto dura a confiança naquele imaginário,
confiança que pode ser rompida sempre que, de novo, voltamos à realidade do mundo
concreto. Quanto aos atos volitivos – o desejar e o querer – são, cada vez, um estar-
junto daquilo que desejo ou quero, mas que aguarda pela satisfação, pela posse ou
fruição daquilo que se deseja ou se busca. Da mesma forma, o amor é tanto mais feliz
quanto mais passa do desejo para a fruição daquilo que desejava. Já o ódio visa livrar-se
daquilo que causa repulsa e, por isto, fundamentalmente, visa eliminar ou destruir a
presença daquilo que odeia.
O decisivo não é que a percepção retrate fielmente a realidade, mas que a auto-
confiança co-pertence à constituição da perceptividade do percebido enquanto tal; e
esta pertença não é ulterior e suplementar, mas necessária, intrínseca e essencial. O
fato de se poder enganar nas percepções, não no sentido de uma ilusão óptica, mas no
sentido de um erro objetual, não é uma objeção, pois cada “retificação” de um erro
objetual pressupõe de novo a auto-confiança da percepção posterior. Não há modo de
corrigir e retificar uma percepção a não ser através de uma nova percepção. Por isto, a
percepção é, “eo ipso”, em última instância, doadora. A percepção, enquanto tal,
constitui a primordialidade da experiência. Aqui, porém, a palavra experiência tem um
sentido pré-científico. Fala de um modo privilegiado de encontro com algo, de um topar
em algo, que nos vem de encontro ou ao encontro de nós, isto é, que nos oferece
resistência ou nos afeta. Na experiência, nós sofremos a realidade. Experimentar é, pois,
fundamentalmente, um suportar a manifestação do real. Na experiência, somos
assaltados pela avalanche da realidade em suas dinâmicas de realização, somos
solicitados pelas coisas, somos provocados a nos relacionar com elas, como algo que nos
diz respeito, que nos toca e nos interessa. A sensibilidade é justamente este poder-ser-
afetado-pelas coisas numa dinâmica de receptividade e de suportação, a saber, da
doação do real, através da percepção133.
133
Cf. HEIDEGGER, M. Beiträge zur Philosophie (vom Ereignis) – Gesamtausgabe, Band 65. Frankfurt a.M.:
Vittorio Klostermann, 1994, p. 159-166.
MEDITAÇÕES CARTESIANAS
Anotações do Prof. Marcos Aurélio Fernandes
Para Husserl, Descartes foi o maior pensador da França. O estudo das suas meditações
influenciou diretamente na transformação da fenomenologia em devir no pensamento
de Husserl em uma nova forma de filosofia transcendental. Por isso, Husserl diz que a
fenomenologia transcendental pode ser considerada quase como um
“neocartesianismo”.
O primeiro nível da virada filosófica para o sujeito nós a caracterizamos como sendo
uma resolução, uma decisão, pessoal, mas não privada, pois ela tem em mente o saber
universal, bem como a função deste saber universal na constituição de uma “cultura da
humanidade no seu todo” (cfr. §2). Com isso entramos no sentido ôntico-existentivo
desta virada filosófica para o sujeito, algo como uma iniciação pessoal, realizada no
concreto da vida e das suas decisões. Ao tratar do sentido desta decisão Husserl fala em
primeira pessoa, como que deixando transparecer que este saber só pode ser querido e
realizado “em primeira pessoa” (eu), por cada um que se dispõe a filosofar. Talvez
convenha reportar estas palavras com uma citação:
Primeiro: todo aquele que queira seriamente tornar-se filósofo deve, “uma vez na vida”,
recolher-se em si próprio e procurar, dentro de si próprio, destruir todas as ciências que,
até então, para ele valiam, para de nova as construir. Filosofia – sabedoria (sagesse) – é
assunto totalmente pessoal do filósofo. Ela deve acontecer como sua sabedoria, como
seu saber, por si próprio adquirido e que continuadamente se esforça pelo universal,
como um saber pelo qual, desde o início, ele pode responder, em cada um do seus
passos, a partir de visões intelectivas absolutas. Se tomei a decisão de viver para esta
meta – que só ela me pode pôr no caminho de um desenvolvimento filosófico – escolhi,
então, com isso, o começo da absoluta indigência de conhecimentos. Neste começo,
terei manifestamente como primeira questão refletir sobre como poderei encontrar um
método de progressão, que possa conduzir-me ao saber autêntico. As meditações
cartesianas não pretendem ser, portanto, um assunto meramente privado do filósofo
Descartes, muito menos uma simples forma literária impressionante para uma
apresentação de fundamentos de Filosofia Primeira. Pelo contrário, elas delineiam o
protótipo das meditações necessárias a todo e qualquer filósofo incipiente, somente a
partir das quais poderá originariamente despontar uma filosofia134.
Aristóteles falava da “sophia”, sabedoria, como sendo uma ciência que trata dos
primeiras causas e dos primeiros princípios de tudo (cfr. Metafísica A, 1, 982a). Este
nome designava “o que há de mais elevado no conjunto das ciências” (Ética a Nicômaco,
X, VII, 2). Descartes tinha em mente, com as meditações de Filosofia Primeira, a
“sagesse”, a sabedoria, na forma de uma ciência universal e, ao mesmo tempo,
fundamental. Mas este saber universal e fundamental não se conquista a não ser por
134
Husserl, E. Meditações Cartesianas e Conferências de Paris (de acordo com o texto de Husserliana I.
Editado por Stephan Strasser. Tradução de Pedro M. S. Alves. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 40.
uma decisão pessoal: a decisão pela filosofia. Decisão que implica, antes de tudo, a
resolução de uma pobreza em matéria de conhecimento. Sem se esvaziar de todo o
conhecimento, sem recolher-se em si mesmo e, na própria interioridade, destruir toda
ciência presumida que já traz consigo na forma de prejulgamentos e preconcepções, um
homem não se torna filósofo, isto é, sua vida não toma um desenvolvimento filosófico.
Um filósofo é, portanto, antes de tudo, um homem pobre em conhecimentos. Quem já
conhece não precisa pensar. Quem se dispõe a começar a pensar, a aprender a pensar,
deve colocar-se na atitude e na posição de quem realmente não sabe, ou seja, deve se
desfazer, em si mesmo, de todo o conhecimento já constituído. Só assim ele pode
retornar à fonte de todo o conhecimento autêntico, de todo o saber fundado e
construído sobre visões intelectivas absolutas e não sobre prejulgamentos.
135
“Quare jam denuo meditabor quidnam me olim esse crediderim, priusquam in has cogitationes
incidissem; ex quo deinde subducam quidquid allatis rationibus vel minimum potuit infirmari, ut ita
tandem praecise remaneat illud tantum quod certum est & inconcussum” – “Por isso eu agora vou meditar
de novo sobre o que eu antes acreditava ser, antes de cair nestas cogitações; disso eu, então, irei subtrair
o que quer que possa ser infirmado ainda que minimamente pelas razões aduzidas, a fim de que
permaneça precisamente somente aquilo que é certo e inabalável” (Descartes, 1641/1998, p. 162).
136
Pag. 41.
137
Ainda que tudo fosse aniquilado pela dúvida, o ego cogito, ego sum permaneceria de pé em si mesmo,
ou seja, o pensar, a mente, a egoidade como tal traz consigo o privilégio ontológico de permanecer firme
na evidência, na verdade, na certeza de si mesma, mesmo quando tudo vacila e rui tomado pelo vórtice
da dúvida. O ego, isto é, a egoidade, é indubitável, estável em sua verdade, certo de uma certeza firme:
aquilo que é certo e inabalável (quod certum est et inconcussum): “Adeo ut, omnibus satis superque
pensitatis, denique statuendum sit hoc pronunciatum, Ego sum, ego existo, quoties a me profertur, vel
mente concipitur, necessario esse verum” – “Assim, portanto, depois de ter ponderado tudo mais do que
o bastante, pode ser estatuído que isto que é pronunciado: eu sou, eu existo, é necessariamente
verdadeiro, toda a vez que for proferido por mim ou que for concebido pela mente” (Descartes,
1641/1998, p. 162 – tradução nossa, grifo do próprio texto editado). Note-se a expressão “concebido pela
mente”, que indica uma evidência de caráter mental, isto é, apriori racional. Assim, o ego, ou melhor, a
egoidade, ou, melhor ainda, a mente, é apresentada agora como a substantia, o subiectum, o
fundamentum por excelência. Não se trata, aqui, pois, do eu individual, fático, mas do eu enquanto tal,
da essência do eu, da egoidade, ou, como diz Descartes, do ego enquanto dado ao cogito, ao pensamento:
“Cogitare? Hic invenio, cogitatio est, haec sola a me divelli nequit: ego sum, ego existo, certum est.
Quandium autem? Nempe quandiu cogito” – “E o pensar? Eis que encontrei: o pensar é a única coisa que
não me pode ser tirada. Eu sou, eu existo; isto é certo. Mas, por quanto tempo? Certamente, enquanto
eu penso” (Descartes, 1641/1998, p. 166).
relação entre as duas substâncias finitas: a mente (res cogitans)138 e o mundo físico (res
extensa)139. Mais para frente Husserl fará uma crítica deste desdobramento das
meditações de Descartes, mostrando que o problema fora posto de modo inadequado
pelo pensador francês. O que é importante em termos de método para a fenomenologia
é que “todos os meios de inferência sucedem, como deve ser, tendo como fio condutor
princípios que são imanentes ao ego puro, que são “inatos””.
138
“Nihil nunc admitto nisi quod necessario sit verum; sum igitur praecise tantùm res cogitans, id est,
mens, sive animus, sive intellectus, sive ratio, voces mihi priùs significatione ignotae. Sum autem res vera,
& vere existens; sed qualis res? Dixi, cogitans” – “Nada agora admito a não ser o que de modo necessário
é verdadeiro; eu sou, portanto, precisamente, somente uma coisa pensante, isto é, mente ou ânimo ou
intelecto ou razão, vocábulos cuja significação me era antes ignota. Eu sou, pois, uma coisa verdadeira, e
verdadeiramente existente; mas, que tipo de coisa? Eu já o disse, uma coisa pensante” (Descartes,
1641/1998, p. 166 – tradução nossa). Mais à frente Descartes diz: “Sed quid igitur sum? Res cogitans. Quid
est hoc? Nempe dubitans, intelligens, affirmans, negans, volens, nolens, imaginans, quoque, & sentiens”
– “Mas, portanto, o que eu sou? Uma coisa pensante. O que é isto? Certamente, uma coisa que duvida,
que entende, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina também, e que sente”
(Descartes, 1641/1998, p. 168).
139
A “res cogitans” é dada a si mesma numa evidência imediata. A mente é uma presença cuja
autodatidade é auto-evidente, por se dar numa intuição imediata. Além disso, ela é uma atenção, um ser
presente junto ao real, que pode trazer em si o caráter de um “perceber claro e distinto” do que quer que
ela perceba ou intua e que tem a capacidade de conter em si, intencionalmente, ou seja, ideal ou
espiritualmente, todas as coisas que ela representa. Esta auto-evidência e esta capacidade de ser a
instância da recepção da evidenciação da forma (ideia, essência) do que quer que seja caracteriza a mente
enquanto “razão pura”. A mente é auto-evidente. Mas, por outro lado, a ela também é dada a evidência
intelectiva da “res extensa” que ela capta: “Atque, quod notandum est, ejus perceptio non visio, non
tactio, non imaginatio est, nec unquam fuit, quamvis prius ita videretur, sed solius mentis inspectio, quae
imperfecta esse potest & confusa, ut prius erat, vel clara & distincta, ut nunc est, prout minus vel magis
ad illa ex quibus constat attendo” – “Mas de qualquer modo, há que se notar que a sua percepção [desta
cera] não é nem um ver, nem um tocar, nem um imaginar, nem foi jamais algo disso, embora antes
parecesse assim, mas um inspecionar da mente somente, que pode ser imperfeito e confuso, como era
antes, ou claro e distinto, como é agora, à medida que eu preste atenção mais ou menos àquilo de que é
constituída” (Descartes, 1641/1998, p. 174).
quatro séculos), o progresso das ciências é apenas ainda um progresso positivo, isto é,
ele até pode ser um grande progresso no âmbito de descobertas e invenções e da
funcionalidade e eficiência, mas é um progresso que se encontra-se atravancado no
âmbito dos seus fundamentos. As ciências permanecem ainda dogmáticas e ingênuas,
quando se tratam de discutir e colocar questões no âmbito dos seus próprios
fundamentos. Sua forma de conceber o real é ainda debilitada por um objetivismo
ingênuo. A filosofia que é pressuposta pelas ciências é ainda pré-crítica. O passo dado
por Descartes não fora seguido. Que passo é este? O passo pelo qual “a filosofia assume
uma viragem radical do objetivismo ingênuo para o subjetivismo transcendental”.
140
Pag. 42.
mas como a tentativa de “ir à raiz” (radix), aos fundamentos, às fontes mesmas de todo
o conhecimento e de todo o saber. Para Husserl, este radicalismo filosófico significa o
retorno ao “ego cogito”, retorno que constitui o passo decisivo de uma filosofia
transcendental. A fenomenologia transcendental é, pois, a retomada das aspirações
mais profundas do pensamento de Descartes e do espírito de seu filosofar. O que não
significa que a fenomenologia transcendental deva se deixar conduzir pelos “extravios
sedutores” nos quais caíram Descartes e seus seguidores. Do caminho da fenomenologia
transcendental nos falará as cinco meditações reunidas por Husserl e que constituem
uma verdadeira e própria introdução à fenomenologia tal como ela se encaminhou na
sua experiência de pensamento, na sua reflexão filosófica.
I. 2. PRIMEIRA MEDITAÇÃO
141
Cfr. Ideias I § 87.
142
A ciência se esforça por pronunciar discursos demonstrativos e fundamentados sobre o real (as coisas
ou estados de coisas). Unidades destes discursos são os enunciados, as predicações ou juízos. Elementos
do juízo são os conceitos ou termos. Por sua vez, os juízos se compõem em conclusões. Por isso, a lógica
não é apenas a doutrina do juízo, mas também a doutrina do conceito (ou do termo), de que o juízo se
compõe, e da conclusão (ou raciocínio), que se compõe de juízos. A lógica não se interessa pela verdade
objetiva dos juízos. Ela se interessa apenas pela sua correção. Ela estuda as regras formais que regem o
pensar e dizer na formação dos juízos e na formação das conclusões. A lógica é um julgamento de juízos.
Ela avalia se os juízos são corretos. Para ela, a verdade é a validade formal dos juízos e das conclusões,
validade que depende, fundamentalmente, de sua correção, ou seja, se os juízos e conclusões obedecem
às regras ou leis que regem o pensar e o dizer justo. Mas, que regras ou leis são estas? Na analítica de
Aristóteles, segundo Husserl, “em autêntico espírito platônico vieram à apreensão ideal-conceitual, ainda
que de modo não completo, as formas puras dos juízos, e as leis racionais puras que nelas se fundam
foram descobertas, nas quais se pronunciam as condições formais de possibilidade da verdade do juízo.
Assim cresceram peças fundamentais de uma lógica pura, e precisamente de uma lógica formal, como
nós podemos dizer também, peças fundamentais de uma pura doutrina da ciência, cujas normas
justamente em razão de sua universalidade formal têm de ser de validade universal absoluta” (Husserl, E.
Erste Philosophie (1923/24) – Erste Teil: kritische Ideengeschichte. Her.: Rudolf Boehm. Husserliana Band
VII. Haag: Martinus Nijhoff, 1956, p. 18). Depois de Aristóteles, o passo seguinte foi dado pelos estoicos.
A principal contribuição da lógica estoica consistiu na doutrina do lektón. “Lektón” significa “o que pode
ser dito”, “o que pode ser exprimido”; a expressão, o enunciado. “Nele se apreende explicitamente e de
modo preciso pela primeira vez a ideia de proposição (Satz), enquanto o juízo julgado no julgar (juízo em
sentido noemático), e as leis silogísticas são referidas às suas formas puras”, diz Husserl (Idem, p. 18-19).
A contribuição dos estoicos, neste último sentido, consistiu em elaborar uma lógica da “consequência”.
Os juízos não somente se seguem um após o outro, mas se seguem um a partir do outro. Um silogismo
não é uma mera série de juízos, mas sim uma conexão de juízos em que um segue a partir do outro
segundo um nexo interno e segundo determinadas leis formais, numa articulação unificadora de sentidos
diversos. Um silogismo conjuga um sentido de juízo com outro sentido de juízo e, assim, produz uma
consideração sobre o ato de julgar (o juízo em sentido noético) e sobre o que é julgado
no ato de julgar (o juízo em sentido noemático). Há juízos imediatos e juízos mediatos.
“Nos juízos mediatos, reside uma referencialidade de sentido relativamente a outros
juízos, de tal maneira que a crença judicativa acerca deles pressupõe a desses outros
juízos – ao modo de uma crença com base em algo já acreditado” (p. 47). Há
conhecimento quando há fundamentação. Os juízos mediatos devem se fundamentar
em juízos imediatos. Estes juízos devem ser verdadeiros, isto é, corretos (a verdade do
juízo é chamada de correção, a falsidade, incorreção). Uma fundamentação é um
raciocínio que pode ser reiterado, isto é, repetido, seguindo-se o nexo dos juízos.
inferência, uma conclusão; e, isso, segundo determinadas leis puras, necessárias, não casuais,
independentes do conteúdo objetivo dos juízos.
Husserl chamava de Erfüllung, e que se costuma traduzir como “preenchimento” 143. A
transposição ou trasladação (Überführung) do sujeito que julga, de um visar ou presumir
que está longe da coisa para um visar ou presumir que está próximo dela, que a tem
presente, que está consciente dela, e ciente da correção de seu visar ou presumir, é
chamado por Husserl de “Synthesis der stimmenden Deckung” (Síntese do recobrimento
concordante). Podemos dizer que, no caso da evidência acontece uma coincidência
entre o visar e o visado, entre o presumir e o dar-se efetivo do presumido: o juízo
coincide com a coisa ou estado-de-coisas, ele concorda com o real. Evidência acontece,
portanto, como esta síntese do juízo (do seu visar ou presumir) com a coisa ou estado-
de-coisas julgados, é concordância.
Um cientista não se contenta com julgar, emitir juízos sobre o real. Ele quer, antes,
fundamentar os seus juízos, recorrendo à evidência. O juízo, falando-se em sentido
amplo, é um intencionar, um visar que tem em mente um ser (Seinsmeinung). O juízo
intenciona dizer que isto ou aquilo é, que isto ou aquilo é deste ou daquele modo.
Entretanto, assim como há um juízo e uma evidência predicativa, ou seja, própria do
enunciado ou predicação, também há um juízo e uma evidência pré-predicativos. “A
evidência predicativa contém a pré-predicativa”. O que é visado, o que é visto com
evidência, vem à expressão (kommt zum Audruck). E ciência lida com expressões. “Mas
a expressão enquanto tal pode ajustar-se (Anpassen) melhor ou pior ao que é visado e
por si próprio dado, portanto, ela própria tem a sua evidência ou não evidência, que vai
justamente com a predicação” (p. 49). A evidência pré-predicativa é, pois, o vir à
expressão da coisa mesma, o dar-se a si própria da coisa ou o dar-se a si próprio do
estado-de-coisas144.
143
“Erfüllung”, literalmente, significa “preenchimento”. Entretanto, a tradução literal por
“preenchimento” não corresponde à plenitude do uso deste termo. De fato, “Erfüllung” não significa pura
e simplesmente preenchimento, mas também cumprimento, realização, verificação ou averiguação,
atendimento, satisfação. Trata-se, pois, da realização de uma intenção ou de um visar, que pode ser
significativo, judicativo, desiderativo, volitivo, etc. Cfr. nota terminológica do tradutor das Investigações
Lógicas para o italiano, Giovanni Piana.
144
Seja-nos permitido, aqui, abrir um parêntese para trazer a concepção que Heidegger tem da evidência
pré-predicativa. No sentido da evidência pré-predicativa, evidente é o que se ilumina a partir de si mesmo
e em si mesmo. Isto que se evidencia se dá ao homem num perceber imediato, direto, natural. A recepção
desta evidência é o que os medievais chamavam de “acceptio”: aceitação, que, é diferente da
“suppositio”, suposição. Aceitar é perceber e receber aquilo que se mostra a si mesmo, o evidente. O que
se há de aceitar se mostra a si mesmo em si mesmo, na sua identidade. Na aceitação se recebe a própria
coisa em seu mostrar-se direto, imediato, natural. Na aceitação a própria coisa se identifica com aquilo
O § 5 trata de “evidência e a ideia de Ciência autêntica”. Husserl assim define evidência:
“evidência é a experiência de que algo é e é assim” (p. 49). Literalmente, Husserl diz:
evidência é a experiência do sendo (von Seiendem = do ente) e do sendo-assim (So-
Seiendem). Esta experiência consiste em “fitar espiritualmente a própria coisa” (p. 50):
um olhar em que a mente obtém o ente ele mesmo e o seu ser-assim. Quando algo
contraria a evidência, temos uma evidência negativa, a falsidade evidente. Já na vida
cotidiana, pré-científica, nós nos atemos a evidências. Mas, normalmente, no dia a dia,
as evidências são relativas. Já a Ciência, diz Husserl, aspira a verdades, “que
permaneçam válidas uma vez por todas e para qualquer um”, ou seja, ela procura
verdades que sejam imutáveis e universais, ao menos idealmente, mesmo se esta busca
exija uma aproximação ao infinito deste ideal. Ademais, a Ciência Universal, a Filosofia,
pretende alcançar a “universalidade sistemática do conhecimento” (p. 50), pois ela é a
ciência da “unitotalidade do ente enquanto tal” (All-Einheit des Seienden überhautpt).
Além disso, pertence também à ideia de Ciência e Filosofia uma “ordem de
conhecimento indo dos conhecimentos em si primeiros para os conhecimentos em si
posteriores”, sendo que o começo e a progressão se dão não arbitrariamente mas de
maneira fundada, isto é, segundo a “natureza das próprias coisas”. Daqui Husserl retira
um primeiro princípio metódico, que se expressa nas palavras: “não poderei (...) fazer
nem deixar valer nenhum juízo que eu não tenha formado a partir da evidência, a partir
das experiências em que a coisa ou o estado-de-coisas em questão estão para mim
presentes enquanto eles próprios” (p. 51). É a exposição do “Princípio de evidência”, que,
nas Ideias I, aparece com o nome de “Princípio dos princípios” da fenomenologia.
Relacionado com isso está o problema de a expressão (Ausdruck), a linguagem
(Sprache), ser adequada ao que se evidenciou e foi visto de modo pré-predicativo. Por
isso, a fenomenologia implica também num cuidado com a expressão, com a
que o homem diz dela. O que se pode, neste caso, é mostrar a coisa em sua identidade. Não se pode
demonstrar, pois, a demonstração implica em suposição, em conexão de proposições. Aristóteles, neste
sentido, dizia que é uma falta de educação (apaideusia) pedir demonstração daquilo que só se pode
mostrar numa identificação (Met. IV, 4, 1006 a 6 ss). As duas formas de admissão, a aceitação e a
suposição, não têm igual valor. A aceitação é a mais originária. Toda suposição se baseia, em última
instância, numa aceitação. Somente quando uma coisa ou um estado-de-coisas é aceito em sua presença,
em seu dar-se direto, imediato, natural, é que se podem construir suposições. Cfr. Heidegger, Seminários
de Zollikon, p. 34-35; 203.
terminologia, com a nova fundação e fixação de significados, orientados pelas visões
intelectivas que foram crescendo nas experiências de evidência.
145
O adjetivo “adequada” referido a “evidência” significa, portanto, “perfeita”, no sentido de “completa”.
146
Heidegger trata da diferença entre “evidência assertórica” e “evidência apodítica”. Evidência
assertórica é a que se refere a existência de fatos, isto é, ao factual, a coisas e estados-de-coisa
“individuais”, ao não-necessário. “Evidência apodítica” se refere, porém, à essência, ao que é necessário,
ao que não pode não ser, e que não pode não ser de outro modo de como é. A evidência apodítica é uma
visão intelectiva das relações-de-essência. Ambas as formas de evidência podem ser conjugadas numa
conexão em que se dá a visão intelectiva da necessidade do ser-assim de um estado-de-coisas individual
a partir de razões essenciais do “individual posto” (Cfr. Heidegger, Prolegomena zur Geschichte des
Zeitbegriffs, GA Band 20, p. 68). Uma evidência pode ser apodítica e não ser absoluta, isto é,
incondicionada, como a evidência do enunciado “2 x 2 = 4”. Neste caso, trata-se de uma certeza
condicionada, pois a evidência deste enunciado depende de duas coisas: da premissa da igualdade e da
premissa da identidade – que o 2 é sempre idêntico a ele mesmo (cfr. Seminários de Zollikon, p. 38).
Leibniz falava de “verdades de fato” e de “verdades de essência”; Kant distinguia as modalidades do juízo
em assertórico, problemático e apodíctico.
dúvida” (p. 53). As evidências que se referem à experiência sensível147, que se referem
a fatos, isto é, a coisas e estados-de-coisa, não são necessárias e não excluem a
possibilidade e a pensabilidade de um não-ser, de um não-ser-assim. É que o ser pode
acabar se revelando, na experiência sensível, uma aparência (Schein). As evidências
deste tipo não resistem à reflexão crítica que quer excluir toda dúvida, que quer
constatar a “absoluta impensabilidade” do não-ser daquilo que é enunciado no juízo.
Evidência apodítica implica que aquilo que é julgado não pode não ser e não pode não
ser assim como é, isto é, implica a necessidade.
O § 8 declara que a “evidência acerca da existência do mundo não é apodítica” e que ela
deve, portanto, ser incluída na “subversão cartesiana”. Ao mundo nós nos confiamos,
comumente. Também as ciências costumam ser construídas sobre o chão do mundo, as
ciências empíricas, imediatamente, as ciências a priori, mediatamente. A existência do
mundo é dada numa experiência sensível universal. Entretanto, trata-se de uma
evidência assertória, factual, não essencial e não-necessária. Ademais, a evidência da
existência do mundo não é indubitável. Assim como aquilo que é experimentado na
experiência sensível individual pode ser considerado, posteriormente, como uma
aparência (Schein), do mesmo modo, a experiência sensível universal também, ou
melhor, aquilo que nela é experimentado, pode se revelar uma aparência, uma ilusão.
Afinal, não poderia ser assim que tudo quanto nós experimentamos fosse uma espécie
de “sonho coerente”? (p. 55). Conclusão: não basta pôr fora de validade todas as
ciências, “também ao seu terreno universal, o do mundo da experiência, deveremos nós
retirar a validade ingênua. O ser do mundo. Com base na evidência da experiência
natural, não poderá mais ser, para nós, um fato óbvio, mas deverá antes ser, ele próprio,
um simples fenômeno de validade” (p. 55).
147
Evidências assertóricas.
pretensão de ser (Seinsanspruch) do mundo (p. 56). Ele perde o mundo. Perder o mundo
significa, porém, perder não somente o mundo circundante concreto da vida, com a
natureza aí inserido, mas também o mundo da socialidade e da cultura, significa perder
não somente os seres que vivem no mundo natural, mas também perder os outros eus
com os quais ele compartilha este mundo natural e o mundo sociocultural, significa,
enfim, perder o seu próprio corpo, perder a si mesmo como uma coisa dentro mundo.
O mundo, para ele, já não é algo que é (seiend), é apenas algo que aparece, é apenas
um fenômeno de ser (Seinsphänomen) (p. 56). Neste momento, portanto, não há uma
decisão entre o ser (Sein) e a aparência (Schein) do mundo. O fenomenólogo se abstém
da crença no mundo, da crença no seu sentido (Sinn) e na sua validade (Validade) como
ser verdadeiro (als wahres Sein). O mundo é, agora, seu fenômeno, algo que aparece
para mim, sem que eu possa crer na sua pretensão de verdade, sem que eu possa decidir
se este aparecer é verdadeiro ser ou se é mera aparência.
Nesta abstenção, porém, em que se perde o mundo, o que é que se ganha? Resposta:
“a corrente (Strom) inteira da minha vida de experiência”. Esta vida (Leben) está aí para
mim (für mich) constantemente. Esta vida está aí presente para mim como um “campo
de presença” (Gegenwartsfelde) que se torna consciente de modo perceptivo, que se dá
na mais originária originalidade, como ela mesma. Ela se dá não somente como o
presente e como presença, mas também como o passado de uma recordação. “Posso
captar o presente como presente, o passado como passado, tal como ele próprio é” (p.
57). Assim, perdendo o mundo, Husserl desvela a vida da consciência e seu misterioso
nexo com a temporalidade. Desvela-se, aqui, o fluxo da vida (Lebenstrom), o seu fluir
constante, com a sua temporalidade própria. Se volto o olhar para esta vida, de início
percebo, de fato, o constante fluir de representações, juízos, atitudes valorativas,
decisões, posições de fins e de meios etc. O fenomenólogo agora volta o olhar, a atenção
da mente, para estas “cogitationes”, para estas vivências, sem pôr em jogo a validade,
sem crer na pretensão de verdade, daquilo que elas intencionam no mundo, deixando-
o ser apenas como “simples fenômeno” (p. 58).
Este universal pôr fora de validade (“inibir”, “pôr fora de jogo”) todas as tomadas de
posição perante o mundo objetivo pré-dado e, assim, desde logo, as tomadas de posição
de ser (as tomadas de posição a respeito do ser, da aparência, do ser de modo possível,
suposto, do ser provável e semelhantes) – ou, como também se costuma dizer, esta
epoché fenomenológica ou este pôr entre parênteses o mundo objetivo – não nos põe
perante um nada. Ao contrário, aquilo de que nos apropriamos precisamente por isso
ou, mais claramente, aquilo de que eu, aquele que medita, por isso mesmo me aproprio
é da minha vida pura com todas as suas vivências e todas as suas coisas visadas,
enquanto puramente visadas, o universo dos fenômenos no sentido da Fenomenologia
(p. 58).
148
Que trata das leis naturais.
149
“seguindo a ordem da geometria”. Outra expressão equivalente: “more geometrico”, expressão latina
que significa “à maneira da geometria”. É a ordem dos “Princípios” de Descartes: partindo de definições
e axiomas se deduzem teoremas, seguidos de corolários e esclarecimentos. Definição: determinação
completa e clara do significado de uma palavra ou de um conceito, e portanto, de um estado-de-coisas
com indicação de todas as notas necessárias, e só estas, de sua ordem. Axioma: princípio fundamental,
primeiro princípio, tese primeira, evidente por si mesma (evidência axiomática), indeduzível e isenta de
pressupostos; como pressuposto fundamental de toda demonstração, não é demonstrável em si mesmo;
só pode ser mostrado (na reflexão transcendental). Teorema: enunciado demonstrável numa teoria;
proposição especulativa, que serve de premissa a novos raciocínios. Corolário: proposição que deriva
imediatamente de uma outra em virtude apenas das leis da Lógica (= consequência formal).
150
“Substância pensante”.
151
“Mente ou ânimo”.
intuição, ou seja, não querer dizer mais do que aquilo que se vê, que se percebe no
modo da intuição ou evidência. Descartes realizou a maior de todas as descobertas sem,
contudo, captar o seu sentido próprio, o sentido da subjetividade transcendental.
“Assim, não transpôs a porta de entrada que conduz à autêntica Filosofia
Transcendental” (p. 62).
A primeira meditação termina com o § 11, que trata do “eu psicológico” e do “eu
transcendental”, bem como da “transcendência do mundo”. A vida, em sua validade de
ser (Seinsgeltung), permanece intocada, mesmo se nada se decidiu sobre o ser ou o não
ser do mundo. O eu, a vida do eu, não é um pedaço do mundo. O ego do “ego sum”, do
“ego cogito”, não é um homem, isto é, não é uma coisa intramundana, um ser psicofísico
que aparece no horizonte da experiência sensível, no mundo. O eu não é uma ocorrência
no mundo. Sua vida transcendental não coincide com a vida da alma deste ser psicofísico
que ocorre no mundo, e que é objeto da biologia, da antropologia, da psicologia. O eu
transcendental é o eu que medita, o eu que se experimenta a si mesmo
transcendentalmente, como sendo aquém do ser natural do mundo, como sendo
“fundamento de validação” (p. 63) de toda e qualquer validade e fundamento objetivos.
Se, por um lado, o eu não é nenhum pedaço do mundo, também, por outro lado, o
mundo e cada objeto mundano não são um pedaço do meu eu. Isso quer dizer: não é
uma parte real (reell), um complexo de dados de sensação ou de atos que se achariam
em mim de modo real (reell). O mundo está “contido em mim”, mas apenas de modo
intencional, irreal (irreell). Ao mundo pertence o caráter de transcendência.
Transcendência do mundo significa: ele não é parte real de mim, está contido em mim
apenas de modo intencional, irreal, como aquilo de que eu tenho consciência, e eu sou
fonte de seu sentido e de sua validade de ser. O mundo é transcendente. O eu é
transcendental, é aquele que precede o mundo, como fonte de sentido e de validade de
ser, como fundamento e suporte da validade da transcendência do mundo.
I. 3. SEGUNDA MEDITAÇÃO
152
Ou corrente, entendida, no sentido da correnteza de um rio, em seu fluir contínuo.
melhor, do conhecimento transcendental? A colocação deste problema seria tarefa de
uma “crítica da autoexperiência transcendental”. Não se pode responder a este
problema logo de início. A resposta a este problema depende justamente da abertura
do campo da experiência transcendental. Não se deve delimita-lo dogmaticamente. É
preciso deixar que ele mesmo se mostre em todo o seu alcance.
Husserl fala de dois níveis de trabalho científico a ser feito. “No primeiro nível, o colossal
(...) domínio da autoexperiência transcendental deve ser percorrido”. Este percorrer
deve acontecer numa “simples entrega ao decurso concordante da evidência que lhe é
inerente”. Este nível ainda não é filosófico em sentido pleno. Falta, aqui, ainda uma
“crítica da experiência transcendental”. O segundo nível é justamente do da “crítica da
experiência transcendental”, e, a partir desta crítica, o da crítica do “conhecimento
transcendental em geral”.
Husserl observa que a epoché não muda nada no mundo, o que muda é o modo de se
relacionar com o mundo e de tomar o mundo em relação à consciência. A percepção de
uma mesa, continua sendo percepção de uma mesa. Só que agora, mesa não é tomada
como uma coisa ocorrente aí num mundo que é absolutamente dado. A mesa aparece
como objeto que se dá à consciência, como o que percebido na percepção. Cada vivência
da consciência é cada vez consciência disso e daquilo. Cada vivência da consciência
intenciona, visa, alguma coisa e traz em si esta coisa no modo do seu ser-intencionado.
Isso que é visado pela vivência da consciência e que ela traz em si mesma no modo do
seu ser-intencionado chama-se “cogitatum”. Na redução transcendental, pois, a mesa
não é mais uma coisa dada num mundo que existe de modo absoluto, incondicionado;
a mesa é um objeto visado pela consciência, no caso, ela é o percebido do perceber. O
percebido está no percepiente segundo o modo da percepção. A percepção de uma casa
visa uma casa, esta casa individual, mas a visa no modo da percepção. A recordação de
uma casa visa (intenciona) uma casa no modo da recordação (como casa recordada).
Outro modo é o de uma casa que é fantasiada. Outro modo é ainda o de uma casa que
está dada de modo perceptivo e que é objeto de um juízo predicativo. Em todas estas
vivências da consciência, a casa é objeto intencional. Intencionalidade é, portanto, a
propriedade da consciência de ser consciência de algo, de trazer em si, enquanto cogito,
o seu cogitatum.
O § 18 fala da identificação como forma fundamental de síntese. Esta é uma síntese que
decorre passivamente e que abrange tudo, “sob a forma da contínua consciência interna
do tempo”. Uma coisa é a temporalidade objetiva do cubo percebido. Outra coisa é a
temporalidade interna do perceber de um cubo. O ato de perceber tem trechos e fases
diversos. Em cada fase do perceber, alguns aspectos são mostrados. Mas não seria
possível perceber um cubo como o único e mesmo cubo, se todas as aparições do cubo
não pudessem ser ligadas a uma consciência “em que se constitui a unidade de uma
objetividade intencional, enquanto a mesma de uma multiplicidade de modos de
aparição” (p. 80). O objeto da consciência (tanto real, como o físico e o psíquico, quanto
o categorial) é, portanto, constituído em sua unidade e identidade na consciência e pela
consciência. É, enquanto constituído, uma realização intencional (intentionale Leistung)
da síntese da consciência. Há a síntese passiva, que é de objetos reais; e a síntese ativa,
que é de objetos categoriais.
Se tomarmos o mundo objetivo unitário como fio condutor transcendental, então ele
remete para a síntese das percepções objetivas e das outras intuições objetivas
ocorrentes, síntese que se estende ao longo da unidade da vida no seu todo e em virtude
da qual o mundo não só está a todo o momento consciente como unidade, como pode
mesmo tornar-se objeto temático. Em conformidade, o mundo é um problema egológico
universal, do mesmo modo que o é, na direção puramente imanente do olhar, o todo da
vida de consciência na sua temporalidade imanente (p. 91).
Razão não é nenhuma faculdade contingente e fática, não é um nome para fatos
contingentes possíveis, mas antes para uma forma estrutural, essencial e universal, da
subjetividade transcendental em geral. Razão remete para possibilidades de confirmação,
e estas, por seu turno, ultimamente para o tornar evidente e para o ter-na-evidência (p.
94).
O § 24 trata, justamente, do tema da “evidência como autodoação” e de suas “variações”.
Evidência quer dizer “autoaparição”, ou seja, o “apresentar-se-a-si-próprio”, o “dar-se-a-si-
próprio de uma coisa, de um estado-de-coisas, de uma generalidade, de um valor, etc.”.
Evidência é, portanto, um modo de autoaparição, autoapresentação, autodoação, no modo
definitivo da “coisa mesma aí” (Selbst da), do “intuível imediatamente” (unmittelbar
anschaulich), do “originalmente dado” (originaliter gegeben). É o oposto de visar algo (uma
coisa, um estado de coisas, uma generalidade, um valor), de modo confuso ou vazio. Há uma
conexão entre evidência e experiência. Experiência, num sentido comum, é uma evidência
destacada, singular, especial. Do mesmo modo, evidência, qualquer que seja ela, é experiência,
num sentido o mais vasto, e, no entanto, essencialmente unitário. No sentido mais amplo,
evidência é um “fenômeno originário universal da vida intencional” (ein allgemeines
Urphänomen des intentionalen Lebens) (p. 94), é um “traço fundamental da vida intencional
qualquer que seja ela” (Grundzug des intentionalen Lebens überhaupt) (p. 95). Husserl esclarece:
Que o ser do mundo seja, deste modo e mesmo na evidência autodoadora, transcendente
à consciência e que permaneça necessariamente transcendente, é coisa que não é
alterada por a vida da consciência ser a única instância em que todo o transcendente se
constitui como algo inseparável, e por ela, especialmente enquanto consciência de
mundo, trazer em si o sentido mundo e também o sentido este mundo que efetivamente
é. De um modo derradeiro, é somente o desvendamento dos horizontes de experiência
que esclarece a efetividade do mundo e sua transcendência, e que as patenteia, então,
como inseparáveis do sentido e da efetividade de ser da subjetividade transcendental
constituinte (p. 99).
O § 31 trata do “eu” como “polo idêntico das vivências”. “O próprio ego é para si um ser
numa evidência contínua, portanto, a si em si mesmo continuamente se constituindo
enquanto ser” (p. 104). O “ego não se capta apenas como vida fluente, mas, sim, como
eu, como o eu que vive isto e aquilo, que vive através deste e daquele cogito como o
mesmo” (p. 104). Assim, a correlação intencional tem dois polos. Um polo é o do
“cogitatum”, que se abre como sistemas de objetos intencionais. Outro polo é o do
“cogito” que reconduz a um “eu idêntico”, isto é, que permanece o mesmo, que é algo
como a fonte das “cogitationes” e que “vive em todas as vivências, enquanto consciência
ativa ou enquanto afetado, e que, através e ao longo das vivências, está referido a todos
os polos-objeto” (p. 104).
Dado que o ego concreto monádico compreende a inteira vida de consciência, efetiva e
potencial, será então claro que o problema da explicitação fenomenológica
(phänomenologische Auslegung) deste ego monádico (o problema da sua constituição
para si próprio) deve compreender todos os problemas constitutivos em geral. Como
consequência subsequente, resulta a coincidência da fenomenologia desta
autoconstituição com a Fenomenologia em geral (p. 107).
A Fenomenologia eidética pesquisa, portanto, o a priori universal sem o qual não seria
concebível o eu e um eu transcendental em geral, ou, dado que toda e qualquer
generalidade de essência tem o valor de uma legalidade inquebrantável, ela pesquisa a
legalidade universal de essência que prescreve o seu sentido possível (juntamente com o
seu oposto, o contrassenso) a toda e qualquer asserção fatual sobre o transcendental (p.
110).
O universo das vivências que constituem o teor de ser real (reell) do ego transcendental
é um universo compossível unicamente na forma de unidade universal do fluir, na qual
todas as singularidades se inserem elas próprias como aí defluindo. Portanto, já esta
forma generalíssima de todas as formas particulares de vivências concretas e das
formações que, no seu fluxo, se constituem como fluentes, é a forma de uma motivação
que a tudo enlaça e que domina, em particular, cada singularidade, a qual também
poderíamos enunciar como uma legalidade formal de uma gênese universal, de acordo
com a qual se constituem unitariamente, sempre de novo, passado, presente e futuro,
numa certa forma estrutural noético-noemática de modos de doação fluentes (p. 113-
114).
O tempo é, assim, a forma das formas, isto é, a forma que in-forma, dá forma, a todas
as vivências da consciência, a seu fluxo e defluxo. No interior desta forma universal da
temporalidade é que decorre a vida “como uma marcha motivada de operatividades”,
responsáveis pela gênese do ego. “O ego constitui-se para si mesmo na unidade de uma
história” (p. 114). Por outro lado, com a autoconstituição do ego é que se dá a
constituição do mundo objetivo – quer da natureza, quer da cultura (ciências, belas-
artes, técnica), quer de “personalidades de ordem superior” (Estado, Igreja), etc. Com a
fenomenologia genética, isto é, com o tema da gênese do ego e da gênese do mundo
objetivo, passamos de uma fenomenologia estática para uma fenomenologia dinâmica.
Se as nossas meditações cartesianas devem ser para nós, como filósofos em formação, a
reta introdução numa filosofia e o começo fundamentante da sua efetividade como ideia
necessariamente prática (um começo a que pertence, portanto, também a evidência de
um caminho a constituir, enquanto necessidade ideal, para a infinidade de trabalho a
realizar), então as nossas próprias meditações deverão conduzir-nos suficientemente
longe para que, sob este aspecto, não deixem em aberto qualquer estranheza quanto à
sua meta e ao seu caminho. Elas devem, tal como o queriam as antigas meditações
cartesianas, desvendar, com uma compreensibilidade sem resto, a problemática universal
pertencente à ideia-final da Filosofia (para nós, portanto, os problemas constitutivos); e
isso implica que elas devem ter já exposto, na maior e, contudo, mais estritamente
delimitada das generalidades, o verdadeiro sentido universal do ser em geral e as suas
estruturas universais – numa generalidade que torne possível, por vez primeira, tanto a
execução do trabalho ontológico, sob a forma de uma filosofia fenomenológica vinculada
ao concreto, como também, numa consequência mais larga, uma ciência filosófica dos
fatos, porque o ente é, para a Filosofia – e, assim, para a investigação correlativa da
Fenomenologia -, uma ideia prática, a ideia da infinitude do trabalho teoreticamente
determinante (p. 126).
I.6. QUINTA MEDITAÇÃO
Temos de ganhar uma visão sobre a intencionalidade explícita e implícita em que, a partir
do terreno do nosso ego transcendental, o alter-ego se anuncia e se confirma, sobre
como, em que intencionalidades, em que sínteses, em que motivações o sentido alter-
ego se forma em mim e, sob o título de experiência concordante do que me é alheio, se
confirma como sendo e mesmo como estando, a seu modo, ele próprio aí. Estas
experiências e suas operatividades são bem fatos transcendentais da minha esfera
fenomenológica – como, de outro modo senão interrogando-as, poderia eu explicitar, em
todos os seus aspectos, o sentido “outro que é”? (den Sinn seiender Anderer) (p. 128-129).
O § 44 reintroduz a epoché, desta vez, aplicada aos outros enquanto entes objetivos e
mesmo enquanto sujeitos no mundo. Com isso, põe em obra a “redução da experiência
transcendental à esfera de propriedade” (Eigenheitssphäre). Esta é desvelada
tematizando as operatividades da intencionalidade, tanto atual quanto potencial, em
que “o ego se constitui na sua propriedade e constitui unidades sintéticas que são
inseparáveis dele, por conseguinte, que devem ser imputadas à sua propriedade” (p.
131). Abstrai-se (prescinde-se) aqui de tudo o que é alheio, para se descobrir o que é
próprio. Na atitude natural dá-se uma forma de contraposição (Gegenüber): eu e os
outros. Se abstraio dos outros, eu fico só no mundo. Mas este ficar só no mundo ainda
não alcança a dimensão da solidão transcendental, que põe entre parênteses, o próprio
mundo. O ego transcendental concreto (= mônada) que então se desvela compreende,
porém, a intencionalidade dirigida para o alheio, que, por enquanto, fica suspensa
também neste momento da meditação. Em todo o caso, o outro, enquanto outro-eu
(alter-ego), enquanto “eu” remete de volta para mim mesmo: “o outro remete para mim
mesmo, o outro é reflexo de mim mesmo”, isto é, “o outro é análogo de mim mesmo”
(p. 132) [analogon = semelhante na dessemelhança ou dessemelhante na semelhança].
Surge, então, a questão: “como pode o meu ego, no interior de sua propriedade,
constituir, sob o título de ‘experiência alheia’, precisamente algo alheio”? (p. 132). A
colocação desta questão, porém, deve permanecer na atitude transcendental. Ela deve
partir da epoché fenomenológica: “tudo o que antes fora diretamente para nós um ser
é tomado exclusivamente como fenômeno, como um sentido visado que se confirma”
(p. 133). A partir da epoché, o outro é tomado como sentido de ser correlato da
intencionalidade. Antes, porém, de tratar da constituição intencional do alheio, é
preciso explicitar o não-alheio (Nicht-Fremdes), o “próprio-a-mim” (Mir-Eigene). Na
epoché, faz-se abstração (se prescinde de) dos outros, do mundo objetivo (natureza e
cultura), do mundo intersubjetivo. No entanto, mesmo com esta abstração, que
reconduz ao campo da experiência transcendental do ego, “retemos um estrato unitário
e coerente do fenômeno-mundo”, que é condição de possibilidade para que possa haver
uma experiência do alheio, bem como uma experiência do mundo objetivo. Na abstração
da epoché fenomenológica desaparece o sentido de ser “objetivo”, mas permanece o
fenômeno-mundo. Respectivamente, a natureza não desaparece de todo. Ela está
incluída na esfera da minha propriedade, a saber, como “meu soma” (Leib = corpo no
sentido de corpo vivente). Este, o “soma” (Leib = corpo vivente) é mais do que um
simples corpo (Körper = coisa extensa). É o corpo que pertence a mim, em que
experiencio campos sensoriais (sensações táteis de frio, calor, etc.). É o corpo em que
eu imediatamente mando, e de que eu disponho, que eu governo. Os órgãos do meu
corpo com suas cinestesias obedecem a um “eu faço” (Ich tue) e a um “eu posso” (Ich
kann). A partir do meu corpo vivente (Leib = “soma”) e da sua corporeidade (Leiblichkeit
= somaticidade) é que eu tenho o comércio com a natureza. É a partir dele também que
se constitui o fenômeno objetivo do “eu enquanto este homem” (p. 135). Este eu é uma
unidade psicofísica, isto é, uma unidade de corpo e alma. É o eu pessoal, que neste corpo
e por meio dele (note-se a ideia de mediação atribuída ao corpo), “age e padece no
mundo exterior” (p. 135). Vem à luz, assim, o eu constituído (diferente do eu
constituinte), e, com ele, o mundo exterior. Mas tanto o eu constituído quanto o mundo
exterior se formam interiormente, na esfera da subjetividade transcendental, do eu
constituinte:
Eu, o eu-homem reduzido (eu psicofísico), sou, portanto, constituído como membro do
mundo, com o fora-de-mim multíplice, mas eu próprio constituo tudo isso na minha alma
e transporto-o intencionalmente em mim. Se deveras se pudesse mostrar que tudo aquilo
que é constituído como próprio, por conseguinte, também o mundo reduzido, pertence à
essência concreta do sujeito constituinte como determinação interna inseparável, então
o seu mundo próprio encontrar-se-ia, na autoexplicação do eu, como interno e, por outro
lado, encontrar-se-ia o próprio eu, enquanto percorre diretamente este mundo, como um
membro das exterioridades do mundo e ele distinguiria, assim, entre si próprio e mundo
exterior (p. 136-137).
Desse modo torna-se claro que o ego, concretamente tomado, tem um universo daquilo
que é próprio a si mesmo, o qual pode ser desvendado através de uma explicitação
original apodítica – ou, pelo menos, pré-delineadora de uma forma apodítica – do seu ego
sum apodítico. No interior desta esfera original (da autoexplicação original), encontramos
também um mundo transcendente, que desponta com base no fenômeno intencional
mundo objetivo reduzido ao que me é próprio (...); todavia, todas as correspondentes
aparências, fantasias, puras possibilidades, objectualidades eidéticas, que se nos deparam
como transcendentes, na medida em que estão submetidas à nossa redução à
propriedade, pertencem também a este domínio – ao domínio do que me é próprio e
essencial, daquilo que eu mesmo sou em plena concreção ou, como também dizemos, à
minha mônada (p. 142-143).
153
Há um erro de tradução na página 158. Onde está “preenchimento” (que em alemão seria “Erfüllung”)
deve-se ler “empatia” ou “intropatia” (que em alemão é “Einfühlung”, palavra que aparece na página 149
da edição alemã).
o eu psicofísico que aí governa” (p. 161). Com o corpo, é dada, porém, a natureza, a que
este corpo pertence. A natureza primordial do outro, por sua vez, e a minha natureza
primordial, “é a mesma natureza, apenas que no modo de aparição como se eu atuasse
ali, no lugar do corpo somático alheio” (p. 161). Produz-se, assim, “o sentido identitário
da minha natureza primordial e da outra natureza primordial presentificada” (p. 162). A
percepção do outro apreende não um signo ou uma figuração do outro, mas o outro
mesmo, captado numa originalidade efetiva, nesta corporeidade ali. Capto o outro como
uma unidade psicofísico: percebo um corpo, originalmente acessível, embora com
“sombreamentos” (há nuances que percebo e outras que ficam “na sombra”), e, junto
com este corpo, por meio dele, indicativamente, percebo uma alma, por princípio não
originalmente acessível. A natureza objetiva começa a ser percebida, antes de tudo, em
meu corpo e, depois, no corpo do outro. O corpo alheio é “o objeto em si primeiro”, é o
“protofenômeno da objetividade” (p. 163). A presentação do corpo do outro é, porém,
também, a base para a apresentação do outro como tal. Faz parte da apercepção do
outro a experiência de que o mundo que aparece para ele é o mesmo mundo que
aparece para mim, apesar de eu e ele termos sistemas de aparições diversos. O mundo
objetivo aparece como tal “em virtude da confirmação concordante da constituição
aperceptiva” (p. 163), seja pelo sucesso desta seja pelas correções de erros devidos à
anormalidade da percepção. O anormal é uma variante do normal. Nesta mesma linha
vai a distinção entre homem e animal (classificados como superiores e inferiores). O
critério da apercepção do animal é, para o homem, ele mesmo. Assim se explica a
constituição do animal na consciência humana:
154
Cfr. Heidegger, Martin. Sobre o Humanismo. Rio de Janeiro-RJ: Tempo Brasileiro, 1967, p. 30: “Sem
dúvida, sob o domínio da ‘lógica’ e da ‘metafísica’, só se pensam as palavras ‘possível’ e ‘possibilidade’
em oposição a ‘realidade’, isto é, a partir de determinada interpretação do Ser, qual seja, da interpretação
metafísica do Ser, como actus e potentia. Essa interpretação se identifica com a distinção de existentia e
essentia.”
coisas semelhantes. Podemos tomá-la, porém, como desempenho subjetivo dos
filósofos e cientistas e agentes da cultura que nesse movimento são inscritos de algum
modo, etc. Nossa ótica não mudaria: com a ótica objetivante focaríamos ora no que é
objetivo ora no que é subjetivo (concernente aos sujeitos: neste caso, filósofos,
cientistas, agentes, produtores de cultura, etc.). Nessa ótica, pressupomos um mundo
já dado e a fenomenologia como algo que ocorre aí nesse mundo já dado, a modo de
fato, em sua efetividade, eficácia, eficiência mais ou menos considerável, importante,
para a história da filosofia, das ideias, da cultura, do espírito do homem contemporâneo.
Nessa consideração, podemos dizer muitas coisas corretas sobre a fenomenologia. A
questão, porém, é se, com ela, alcançamos o essencial e se desvelamos o decisivo
quanto ao ser da fenomenologia, quanto à sua coisa mesma (tomando “coisa” não no
sentido da ocorrência factual, mas no sentido de o que está essencialmente em causa,
em questão).
Ninguém nunca vem a ser fenomenólogo, a não ser num caminho de experiência
de busca, em que a fenomenologia se torna um querer todo próprio de indagar e investigar.
Aos poucos, esse querer se torna uma necessidade imperiosa, haurida do mais profundo
da própria liberdade. Uma necessidade livre, que molda o ser, o viver, o pensar, o agir,
de quem busca, indaga, investiga. Quando alguém deslancha nessa
possibilidade/necessidade, a fenomenologia se torna um gosto de ser, um prazer de viver,
uma alegria de pensar, sim, se torna jovialidade de uma práxis (fenomenologia =
fenopraxia).
Fenomenologia só é como fáctica, como historial, ou seja, como destinação
concreta da existência, em sua dinâmica de liberdade, isto é, de responsabilidade através
do trabalho:
155
E. HUSSERL, Ideen I, 43-44.
156
Brentano, mestre de Husserl, havia almejado realizar o sonho de outros pensadores, como Descartes
e Leibniz, a saber, lançar os fundamentos e construir a filosofia como uma ciência universal – uma
empirismo fenomenológico como experimentalismo científico. De seguro, a
fenomenologia se compreende a si mesma como uma realização, a mais plena, da razão.
Mas não está dito que a racionalidade da razão se reduz à racionalidade científica,
matemática, ao esprit de géométrie, nem que seja esta a racionalidade originária. Pode ser
que a racionalidade procurada pela fenomenologia, num deixar e fazer desabrochar, seja
primordialmente a racionalidade própria do esprit de finesse. É possível, também, que a
razão não seja algo simplesmente dado ao homem, mas a conquista de um modo de ser
na busca da verdade, conquista que é sempre historial, que supõe um engajamento na
vida, uma busca apaixonada, arriscada, mas ao mesmo tempo intrépida, do conhecimento
do mistério do ser, ou seja, da recepção de sua doação na sua retração. Pode ser que o
rigor da ciência fenomenológica nada tenha a ver com a exatidão do conhecimento
científico-positivo, mas se atenha a um outro rigor, a uma outra lógica, que seja, muito
mais, uma ausculta do lógos, do recolhimento da infinita riqueza da vida no uno de seu
mistério.
Que o princípio apresentado por Husserl não possa ser entendido como uma
proposição teorética, como um axioma ou algo parecido, já se vê do fato de que ele é
apresentado como um princípio dos princípios, ou seja, como algo que pre-jaz a todos os
princípios, a toda teoria e ciência. Tal princípio, portanto, não é de natureza teorética. Mas
também não é de natureza prática, se entendermos por práxis apenas a ação dada no
horizonte da experiência do viver cotidiano ou, de modo ainda mais pobre, como um mero
fazer isto ou aquilo. Talvez, no ponto instaurador de um tal princípio, theoria e práxis
sejam o mesmo. É que a theoria, o empenho por um ver originário que vê de modo
originário e simples aquilo que de modo originário e simples se oferece, isto é, se doa na
Mathesis Universalis. A seu ver, esta ciência deveria ser rigorosamente empírica. Com outras palavras, ela
deveria voltar-se para a vida do ego, da res cogitans ou consciência, atendo-se às consistências factuais
(Tatbestände). Não se tratava, nesta empreitada, de partir de teorias já prontas e de, em seguida, deduzir
suas conseqüências, mas de ter uma abordagem que se atém à coisa mesma, que seja “objetiva”
(sachlich). Neste caso, a experiência seria a verdadeira mestra do fenomenólogo. Experiência, aqui, no
entanto, não deve ser entendida de modo redutivista, decidindo de antemão o seu âmbito como sendo o
apenas sensível e o passível de experimentação e cálculo. O fenomenólogo precisa deixar-ser a
experiência e colhê-la no seu perfil essencial. Ele não trabalha tanto com generalizações, mas com
intuições formais, ou seja, com apreensões claras e distintas de estruturas essenciais dos fenômenos. O
seu trabalho é descritivo, no sentido de se ater ao que as coisas mesmas mostram, de intuir suas formas,
estruturas, essências. Isto implica, antes de tudo, respeitar o modo de acesso às coisas mesmas e as
dimensões, em que elas se deixam encontrar. O pensar fenomenológico, isto é, filosófico, pode e deve
ser empírico, isto é, fiel à experiência. Só que esta fidelidade consiste num deixar-ser a experiência como
experiência. Deixar-ser, no entanto, é uma exigência muito mais radical para o pensar, do que a de ir até
a experiência com decisões teóricas e metódicas já tomadas. Neste sentido, todo o empirismo e
positivismo tradicionais mostram-se insuficientemente empíricos. Cfr. M. HEIDEGGER, PGZ, 23-28.
sua evidência, é a radicalização do engajamento no viver, uma radicalização e
plenificação da intenção originária da vida assumida com veracidade, a atitude originária
do vivenciar e do viver como tal, a absoluta simpatia da vida que é idêntica com o
vivenciar mesmo157. É que, na vivência, a vida não somente acontece como vida, mas ela
vibra em si mesma, ela se estremece, goza de si mesma, sofre consigo mesma, rejubila-
se e aflige-se em si mesma. Assim, a vida na sua plenitude e auto-suficiência, como
aparece na imagem arquetípica da serpente que morde a sua própria cauda (a Uroboros),
é ponto de partida e o ponto de chegada de todo o filosofar, de todo o empenho
fenomenológico.
A fenomenologia quer ser não somente uma “intuição hermenêutica” ou quiçá uma
“intuição hermética” da vida158. Ela quer ser vida, e vida fenomenológica. A atitude
157
Podemos, agora, recordar o ponto de partida de um fenomenológo francês contemporâneo, que
desenvolve uma reflexão acerca da vida justamente num encontro e confronto com Husserl e Heidegger:
Michel Henry. É-nos impossível, aqui, avaliar este encontro e confronto. Apenas acenamos para o modo
de ser pático (pathétique) da vida, por ele ressaltado: ‘... Só porque tem aquilo que revela em um abraço
que nada pode interromper, ela [a vida] é e pode ser vida. A vida se abraça, se experimenta, sem distância,
sem diferença. Só assim ela pode experimentar a si mesma, pode ser ela mesma aquilo que experimenta
– consequentemente, ser, ao mesmo tempo, aquilo que experimenta e aquilo que é experimentado. Na
auto-revelação da vida nasce a realidade, toda possível realidade. O conteúdo da vida, que esta
experimenta, seja a vida mesma, remete a uma condição mais fundamental, à essência mesma do ‘viver’;
ou seja, a um modo de revelação, cuja fenomenicidade específica é a carne de um páthos, uma matéria
afetiva pura, de que se acha radicalmente excluída toda cisão e toda a separação. Unicamente porque tal
é a matéria fenomenológica de que é feita esta revelação, pode-se dizer que nela, aquilo que se revela e
aquilo que é revelado são o mesmo. É esta substância fenomenológica pática que define e contém toda
‘realidade’ concebível”. M. HENRY, Io sono la verità – Per una filosofia del cristianesimo, Queriniana,
Brescia, 1997, p. 50-51.
158
Parece que o sentido genuíno da “hermenêutica” é a “hermética”, ou seja, a escuta e a
correspondência à linguagem do mistério e ao mistério da linguagem. A expressão “hermenêutico” (em
grego hermeneutiké) deriva do verbo grego hermeneuein, o qual foi traduzido pelos romanos por
interpretari, interpretar. Neste sentido é que a hermenéia foi entendida como a arte da interpretação e o
hermeneus como o intérprete. A partir daí se compreendeu a hermenêutica como um exercício de
esclarecer, no sentido de conduzir uma coisa estranha e obscura para o âmbito claro e familiar da razão
e do discurso. Nesta concepção de hermenêutica, permanece pressuposto que a razão e o discurso são a
coisa mais clara do mundo. Também está pressuposto que a racionalidade e a discursividade são o
decisivo e o originário. Ora, o decisivo e o originário não são a racionalidade e a discursividade, mas o
mistério e o inefável. Nós pensamos e falamos não para apreendermos e esgotarmos o mistério do ser
nas malhas de nossa lógica e de nossa linguagem. Nós pensamos e falamos por podermos nos calar diante
da fala do mistério e por poder responder, cor-responder ao mistério da fala. Assim, hermeneuien,
interpretar, não significa conduzir alguma coisa para a claridade do que se pode pensar a partir da
racionalidade matemática, bem como para os limites do que se pode dizer a partir da linguagem lógica;
significa, ao contrário, reconduzir alguma coisa ao seu lugar de origem no mistério da linguagem e na
linguagem do mistério. É por isso que a palavra hermeneus remete ao nome de Hermes, o mensageiro, o
anunciador dos deuses, ou seja, aquele que atua a embaixada do destino divino, que traz a mensagem do
envio do mistério. Hermeneuta é aquele que deixa ser a fala do mistério, a sua auto-exposição, a sua
abertura, que é ao mesmo tempo oclusão, como a rosácea das catedrais góticas medievais nos dá a
entender. Porque o mistério se abre à medida que se fecha, se dá à medida que se subtrai, torna-se
manifesto, ocultando-se, em suma, só ser revela como mistério, o sentido da hermenêutica será, pois,
fundamental da fenomenologia só se torna absoluta se nós nela vivemos. O viver na
atitude fenomenológica não conduz à construção de algum sistema conceptual. Conduz o
próprio viver a uma crescente potenciação e elevação de si mesmo. A atitude
fenomenológica fala de uma aptidão, que não se conquista de hoje para amanhã, como se
se tratasse de um hábito qualquer, de um uniforme que se pudesse tirar e pôr a qualquer
momento. Uma tal aptidão exige a aprendizagem de um rigor todo próprio: o rigor de se
ater ao que se mostra, enquanto e à medida que se mostra, ou melhor, em perseguir o
ocultamento do que, mostrando-se, retrai-se para dentro do seu mistério.
tornar-se, em última instância, hermética. Neste sentido é que H. Rombach, certamente numa original
apropriação da concepção de hermenêutica de M. Heidegger (tal como aparece, por exemplo, em
Unterwegs zu Sprache) entendeu a “hermética” como um Ansatz (ponto de partida, arranque) do seu
filosofar. Cfr. M. HEIDEGGER, Unterwegs zu Sprache (US), Günther Neske, Stuttgart, 1997, p. 121-122; H.
ROMBACH, Welt und Gegenwelt – Umdenken über die Wirklichkeit: die philosophische Hermetik, Herder,
Basel, 1983, p. 15-17; E. C. LEÃO, Aprendendo a pensar, vol. I, Vozes, Petrópolis, 2000, p. 248.
absolutas que a partir deste viver podem ser sacadas pelo
olhar; mas reconhece também sua estrutura originária,
tendencial-teleológica, na direção de uma descoberta destas
normas e sua efetuação prática e consciente. Ela se
reconhece então, enquanto função da universal auto-
reflexão da humanidade (transcendental), a serviço de uma
práxis universal da razão, ou seja, a serviço da tendência
que se torna livre pela descoberta, na direção da idéia
universal, radicada no infinito, de uma absoluta perfeição
ou, o que dá na mesma, na direção da idéia – radicada no
infinito – de uma humanidade que, de fato e inteiramente,
fosse e vivesse na verdade e na autenticidade”159.
159
E. HUSSERL, Phänomenologische Psychologie (Ph.Psych.), Husserliana, Band IX, Martinus Nijhoff, Den
Haag, 1962, p. 299.
Nós estamos acostumados a representar a Fenomenologia como um
movimento filosófico emergente no início do século XX:
“... O que ela possui de essencial não é ser uma ‘corrente’ filosófica
real. Mais elevada do que a realidade está a possibilidade. A compreensão da
fenomenologia depende unicamente de se apreendê-la como possibilidade” (Heidegger,
Ser e Tempo, p. 70).
✓ Ninguém nunca vem a ser fenomenólogo, a não ser num caminho de experiência
de busca, em que a fenomenologia se torna um querer todo próprio de indagar
e investigar.
✓ Aos poucos, esse querer se torna uma necessidade imperiosa, haurida do mais
profundo da própria liberdade. Uma necessidade livre, que molda o ser, o viver,
o pensar, o agir, de quem busca, indaga, investiga.
✓ “Carece dizer que eu não sou um filósofo. Não penso fazer algo que possa ser,
ao menos, comparado a isto. Algo assim não está, absolutamente, nas minhas
intenções. Eu simplesmente faço aquilo que devo e que considero necessário. E
o faço como posso: não acomodo o meu trabalho filosófico às tarefas culturais
de um ‘hoje universal’. E não tenho nem mesmo a tendência de Kierkegaard. Eu
trabalho de maneira concretamente fáctica, a partir do meu ‘eu sou’ – da minha
proveniência espiritual de fato, do meu milieu, dos meus contextos vitais,
daquilo que me é acessível como experiência viva, em que vivo. Esta facticidade,
enquanto existenciária, não é um mero ‘cego estar aí’; encontra-se na existência,
junto com ela, e isto quer dizer, eu vivo o que ‘eu devo’, do que não se fala. Junto
a esta facticidade do ser-assim, junto ao histórico, encrespa-se o existir, quer
dizer, eu vivo as obrigações íntimas da minha facticidade, e isto, de modo tão
radical quanto o compreendo” (Heidegger, carta a Karl Löwith, de 19 de agosto
de 1921).
✓ “Em primeiro lugar, quem quiser realmente tornar-se filósofo deverá ‘uma vez
na vida’ voltar-se para si mesmo e, dentro de si, procurar inverter todas as
ciências admitidas até aqui e tentar reconstruí-las. A filosofia – a sabedoria – é
de qualquer forma um assunto pessoal do filósofo. Ela deve constituir-se como
algo dele, ser a sua sabedoria, seu saber, que, embora se volte para o universal,
seja adquirida por ele e a qual ele possa ter condições de justificar desde a
origem e em cada uma de suas etapas, apoiando-se em intuições absolutas. A
partir do momento em que tomei a decisão de me voltar para esse objetivo,
decisão essa que só pode me levar à vida e ao desenvolvimento filosófico,
consequentemente, fiz meu voto de pobreza em matéria de conhecimento.
Desde então fica claro que será necessário perguntar como poderia encontrar
um método que me desse o caminho a seguir para chegar ao saber verdadeiro”
(Husserl, Meditações Cartesianas, p. 20).
Podemos dizer que são esses problemas éticos e religiosos, mas postos
num terreno onde deve ser colocada toda questão que possa ter um sentido possível
para nós. É assim que se realiza a idéia de uma filosofia universal de forma bem diferente
daquela representada por Descartes e pelo seu tempo, que foram seduzidos pela idéia
da ciência moderna. Ela não se realiza sob a forma de um sistema universal de teoria
dedutiva, como se tudo estivesse englobado na unidade de um cálculo. O sentido
essencial dessa ciência transformou-se radicalmente. Temos diante de nós um sistema
de disciplinas fenomenológicas, do qual a base fundamental não é o axioma ego cogito,
mas uma plena, inteira e universal tomada de consciência de si mesmo... O oráculo
délfico gnwte seauton adquiriu um novo sentido. A ciência positiva é uma ciência do ser,
a qual se perdeu no mundo. É preciso de início perder o mundo pela epoch para
reencontra-lo, em seguida, numa tomada de consciência universal de si mesmo. Noli
foras ire, disse Santo Agostinho, in te redi, in interiore homine habitat veritas”.
O verdadeiro aprender está, pela primeira vez, onde o tomar aquilo que
já se tem é um dar a si mesmo e é experimentado enquanto tal. Por isso, ensinar não
significa senão deixar os outros aprender, quer dizer, um conduzir mútuo até a
aprendizagem. Aprender é mais difícil do que ensinar; assim, somente quem pode
aprender verdadeiramente – e somente na medida em que tal consegue – pode
verdadeiramente ensinar. O verdadeiro professor diferencia-se do aluno somente
porque pode aprender melhor e quer aprender mais autenticamente. Em todo o ensinar
é o professor quem mais aprende” (Heidegger, O que é uma coisa?, p. 79-80).
“Para mim, um homem que não contempla parece mal estar vivendo; e
um filósofo que não cultiva e não pratica contemplação não é digno deste nome: ele
não é um filósofo mas um profissional da ciência e, entre os filisteus, o mais filisteu”
(Brentano, Carta a Stumpf).
“Tão logo nós temos a coisa diante dos olhos e, no coração, o ouvido
colado à palavra, vinga o pensar” (Heidegger, Da experiência do pensar).
✓ “Pôr perguntas; perguntas não são idéias casuais; perguntas também não são os
hoje usuais ‘problemas’, que ‘a gente’ apanha do ouvir dizer e do ter lido e
decora com o gesto aparente de profundidade de pensamento. Perguntas
crescem do confronto com as ‘coisas’. E coisas só estão aí, onde existem olhos”.
O livro Ser e Tempo faz neste ano noventa anos de publicação. O melhor modo
de celebrar um livro de filosofia é dispondo-se lê-lo como livro de filosofia, isto é, a lê-lo
no interesse do pensamento. Pensar é memorar. Isto é: trazer à re-cordação. A
cordialidade do pensar, no entanto, consiste em agradecer a dádiva da familiar e ao
mesmo tempo estranha doação do ser. A doação do ser é-nos familiar, uma vez que é
na imensidão aberta do ser que o homem é. O homem habita na clareira do ser. A partir
dela e nela é que ele se torna o homem humano, a travessia, que ele é. Estranha, porém,
é a doação do ser, uma vez que esta doação só vige como doação em se retraindo
sempre de novo. No dizer de Heráclito: - surgimento já tende
ao encobrimento160. Mas o encobrimento do ser, seu mistério, é também sua dádiva.
Sua recusa é um presente. Na reserva do seu encobrimento o mistério de ser preserva,
isto é, guarda e resguarda, seu tesouro. Seu encobrimento é proteção. Subtraindo-se ao
uso e ao abuso do homem, o mistério de ser em retração, atrai o homem para a
gratuidade do desnecessário.
160
Anaximandro, Parmênides, Heráclito. Os Pensadores Originários. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 90-91.
161
Apud Heidegger, Martin. “...Poeticamente o Homem Habita” (conferência de 1951). Em: Ensaios e
Conferências. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 180.
de errância por várias paragens, retornando para a sua terra natal, a Suábia, escreveu
um poema, chamado Retorno. Na última estrofe ele escreveu: “................................... e
quando repousamos da vida do dia, dizei, como é que agradeço: Invoco o Alto?”162.
Heidegger, num texto de 1969, comenta: “Agradecer só sabe quem fez a experiência de
sentir-se grato àquilo que o determina, que ele próprio não é. Sentir-se grato significa:
saber ou pelo menos suspeitar ou mesmo apenas perguntar: onde é que moramos? E é
esta pergunta pela morada do homem em nossa época que por uns rápidos momentos
queria perguntar e não responder”163.
162
Apud Heidegger,
163
Heidegger, Martin. A questão da morada do homem (1969). In: Revista Vozes 1977, n. 4, p. 53.
164
Idem, p. 54.
mais / que seja assim. É a medida dos homens. / Cheio de
méritos, mas poeticamente / o homem habita esta terra.
Mais puro, porém, / do que a sombra da noite com as
estrelas, / se assim posso dizer, é / o homem, esse que se
chama imagem do divino. / Existe sobre a terra uma medida?
Não há / nenhuma165.
O apelo do porvir que nos alcança hoje é o do habitar poético. Não é mais o
habitar cheio de méritos, é o habitar poético. Poético é o habitar que adensa a
manifestatividade do ser. A manifestatividade do ser se adensa na poesia originária que
é a Linguagem166. A manifestatividade do ser é sua verdade. O ser, porém, se manifesta
como o que se doa e se retrai, se desvela e se vela, isto é, como mistério. A aberta do
mistério de ser é o campo aberto em que o homem, enquanto viandante, está a
caminho. A esta amplidão aberta do ser “Ser e Tempo” chama de Da-sein. É como
viandante nela que o homem vem a ser o homem humano que ele é: a travessia. No
atravessar dessa travessia, que é a experiência, o homem é provocado a, pensando,
seguir o sentido de ser, atraído pelo seu retraimento.
165
Apud Heidegger, Martin. “...Poeticamente o Homem Habita” (conferência de 1951). Em: Ensaios e
Conferências. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 171.
166
Cf. Heidegger, Martin. Introdução à Metafísica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1987, p. 193.
167
Heidegger, Martin. A caminho da linguagem. Petrópolis / Bragança Paulista: Vozes / Edusf, 2003, p.
154.
seres se reúnem no ser. Heráclito dizia: “tudo vem de acordo com o Lógos”168;
auscultando o Lógos, “é sábio concordar que tudo é um”169. Esse Lógos é, para ele, como
o fogo, que, sobrevindo, distingue e reúne todas as coisas170. Advertiu que o homem
está sempre lidando com o Lógos171. Entretanto, “com o Logos, que é sempre, os
homens se comportam como quem não compreende tanto antes como depois de já ter
ouvido”172. É o que Ser e Tempo chama de esquecimento do ser. “Indolente, o homem
é surpreendido pelo Lógos em tudo”173. No texto intitulado “a essência da linguagem”
(1957-1958), Heidegger adverte-nos que linguagem é caminho e recorda-nos que a
palavra guia do pensamento poético de Lao-Tsé, Tao, significa caminho. E ele arrisca
dizer que “o tao poderia ser, no entanto, o caminho que tudo en-caminha”, isto é, “um
caminho que tudo en-caminha, rasgando para tudo a sua via”. E sentencia: “tudo é
caminho”174.
168
Cf. Fragmento 1.
169
Fragmento 50.
170
Fragmento 66.
171
Fragmento 72.
172
Fragmento 1.
173
Fragmento 87.
174
Heidegger, Martin. A caminho da linguagem. Petrópolis / Bragança Paulista: Vozes / Edusf, 2003, p.
155-156.
pensa o pensamento de Ser e Tempo. É uma obra provisória. Melhor: nem é obra. É
caminho. É o caminho. É preparação. Hoje, noventa anos depois, a vigência da tarefa a
que se propôs Ser e Tempo ainda nos diz respeito. Essa tarefa é: preparar a colocação
da questão do sentido do ser.
175
Fundamental, no que se segue, é a tese de doutorado de Heinrich Rombach, que começou com a
orientação de Heidegger: “Sobre a origem e a essência da questão”. Über Ursprung und Wesen der Frage.
Freiburg / München: Verlag Karl Alber, s.d.
a pergunta emerge do ser-com, isto é, da convivência humana, dos seus
relacionamentos, da sua conversação. O ser-com, no entanto, emerge sempre de uma
situação. A situação está situada no ser-no-mundo. Ela emerge de um mundo
compartilhado com os outros. O ser-com em uma situação é já uma alocução. No ser-
com dá-se o dirigir a palavra a alguém. A interrogação se dá na relação, isto é, no
relacionamento da convivência humana. Relacionar-se é, no ser-com, corresponder.
Corresponder é responder à solicitação do outro, relacionar-se de acordo com ela. Co-
responder é res-ponder. A relação existencial é sempre de alguma maneira
correspondência e resposta à interpelação do outro. Sua essência fundamental é ser
aproximado e deixar-se interessar, um corresponder, uma solicitação, um responder por
baseado no ser tornado claro em si da relação. Dependendo da situação em que se
relacionam o perguntador e o interrogado a pergunta toma um rumo, uma direção. Este
rumo, esta direção, é o sentido da pergunta. Por exemplo, uma situação é se estou no
trânsito e quero pedir uma informação sobre como chegar a tal ou tal lugar; outra
situação é se estou aprendendo matemática e solicito ao professor o esclarecimento de
um tema a respeito do qual ainda não alcancei um entendimento claro. O
comportamento interrogativo supõe que o homem se relaciona com as coisas, com os
entes, juntos dos quais ele é, no mundo, como ser descobridor. Descobrir, ser-
descobridor, é uma possibilidade fundamental de nosso ser-no-mundo, que é sempre e
cada vez em situação. A situação desvela o mundo. O ser-descobridor é uma
possibilidade deste desvelamento. Ele se refere aos entes juntos dos quais nós somos,
na ocupação. O ser-descobridor junto dos entes pressupõe o ser-aberto no sentido da
abertura de mundo, que nos constitui como seres humanos. Pressupõe o ser-em do ser-
no-mundo como um ser-aberto para a abertura do mundo, supõe a existência, no
sentido do estar-fora-de-si junto aos entes e a insistência na manifestatividade do ser.
Somos uma conversa. Esta se dá de início e na maior parte das vezes no falatório
do cotidiano, a que Ser e Tempo dedica o § 35. Somos uma conversa. Mas, seremos, em
breve, canto? O que é ser canto? O que é cantar? Escutemos outro poeta, Rilke. No
terceiro dos Sonetas a Orfeu, ele diz:
Enquanto ainda não somos um cantar, somos uma conversa. Há, certamente,
diversas possibilidades de sermos uma conversa, em várias dimensões da convivência
humana. A conversa, entretanto, é decisiva:
176
Hölderlin. Friedensfeier (Festa da Paz).
177
P. 25.
178
Leão, E. C. Filosofia Contemporânea. P. 174.
acontece, aqui, como um fenômeno de encontro com o outro, que não é um isso, mas
um tu. Acontece, portanto, um relacionamento tu a tu, no interior de um nós, de uma
esfera de convivência, de um mundo compartilhado. O encontro pode ser também não
simplesmente um vir ao encontro; pode ser também um vir de encontro, um encontrão;
pode ser um desencontro. O diálogo pode atravancar-se. O diálogo pode deslanchar.
Seja como for, cada um será remetido de volta a si mesmo; e terá de deixar-se aviar,
cada um a seu modo, para o fundo comum da abertura da manifestatividade do ser,
para o abismo desvelante das possibilidades de ser, que nós chamamos “vida”. A
pergunta dialógica tem como escopo clarear o próprio relacionamento, melhor,
franquear o seu deslanche. Mas todo o relacionamento humano se relaciona com o
fundo-abismo da “vida”, isto é, da manifestatividade do mistério de ser, com a amplidão
aberta do ser. É o que nos recorda um texto do Tao (caminho de pensamento) de Chuang
Tzu:
179
P. 89-90.
180
P. 40.
181
Cf. Agostinho. Confissões, livro X 17. Heidegger, M. Fenomenologia da Vida Religiosa, p. 172-173.
182
Cf. Heidegger, Martin. Phänomelogische Interpretationen zu Aristoteles. Einführung in die
phänomenologische Forschung. P. 18.
O questionar da questão é, pois, um relacionamento de ser com o ser daquilo
que se procura na realização de uma busca cognoscente. O buscar deve saber aquilo
que busca. O buscado deve ser, ao mesmo tempo, presente e ausente para aquele que
busca. Se aquele que busca já não estiver junto ao que busca, melhor, se aquele que
busca não tiver presente e em mira o buscado, se não tiver a orientação prévia que vem
dele, não pode buscá-lo nem encontrá-lo. Por outro lado, não precisaria buscar se o
buscado não estivesse ausente. Para que haja a busca é preciso que aquilo que se busca
se retraia, se subtraia, da presença. Sua vigência se dá, justamente, na ausência e como
ausência.
Um terceiro tipo de questão é aquela que se realiza como uma decisão sobre o
próprio ser que somos. Talvez as demais formas de questão estejam fundadas sobre
esta questão, em que se decide sobre o todo de nosso ser-no-mundo, e de nosso
relacionamento com o ser de tudo o que é, com o ser do ente no todo. Neste questionar
está em questão mais do que um tomar conhecimento informativo, mais do que a
produção de um conhecimento objetivo. Neste questionar está em questão o existir
humano como tal e no seu todo em seu relacionamento de ser com o sentido de ser que
concerne ao ser do ente no todo. Trata-se de um relacionamento decisivo. Nele se
decide sobre se somos e o que somos, se o ente é e como é. Decisivo, neste questionar,
é se o homem se deixa conduzir para dentro da premência do questionar.
Na decisão, o que está em jogo, não é esta ou aquela escolha, não é esta ou
aquela resolução, fazer isto ou aquilo, fazer ou não fazer determinada coisa; na decisão,
o que está em jogo não é um fazer ou agir, mas o nosso próprio ser, ou melhor, o nosso
próprio poder-ser. O que está em jogo na decisão – entendida em sentido fundamental
– não é ser isto ou aquilo, mas ser simplesmente e propriamente o que já somos. A
decisão não se refere a uma parte de nossa vida. A decisão concerne à nossa existência
em seu todo.
A decisão é uma questão radical. Aqui vale o dito de Agostinho – quaestio mihi
factus sum: tornei-me uma questão para mim mesmo. Na questão da decisão o homem
não é somente o que questiona, mas é também o que é questionado. Com a questão
que é a decisão a existência humana aparece em sua questionabilidade radical. Nesta
questão não está em questão o que o homem sabe, mas o que o homem é. Ou dito de
modo melhor: o que está em questão na decisão não é o que o homem pode saber,
pode fazer, pode conquistar, mas o que ele pode ser. Na questão da decisão, o
questionado é o próprio homem, e isto, no seu ser, no seu poder-ser. Ao pôr em questão
o homem e sua existência, a decisão provoca o homem e o conclama a ser, a ser
propriamente o que ele é. A intencionalidade da decisão, portanto, tem em mira o ser
do homem – o seu ser mais próprio – o seu existir em sentido próprio, isto é, autêntico.
Aqui vale o dito do poeta Píndaro – “vem a ser o que tu és”. Nós poderíamos dizer: “vem
a ser o que tu propriamente podes ser”, a partir do fundo, ou melhor, a partir do abismo
de tua liberdade.
Se a decisão põe o homem em questão naquilo que ele propriamente pode ser,
então não é a decisão que está em poder do homem, mas é o homem que está em poder
da decisão. Ser homem é estar sujeito à necessidade da decisão, que é a necessidade da
liberdade. Mesmo se o homem responde à necessidade da decisão não decidindo, esta
resposta é ainda um estar sujeito à decisão. Escolher a não decisão só é possível porque
a decisão já se impôs ao homem como uma necessidade de sua liberdade. O homem
pode escolher viver sem entrar propriamente numa relação positiva com a necessidade
da decisão, mas já esta escolha, que assinala uma fuga, uma omissão ou uma ignorância
da decisão, é já uma atitude que responde ao apelo questionador e interpelador da
decisão, embora a resposta se dê num modo negativo ou privativo.
Não obstante isso, a necessidade da decisão não se impõe desde fora ao homem.
Ela não se impõe a partir desta ou daquela conjuntura objetiva dos fatos, também não
se impõe a partir desta ou daquela situação factual subjetiva. A necessidade da decisão
não tem nenhuma causa, não tem nenhum fundamento, que não venha dela mesma,
ou seja, que não venha do fundo ou abismo mesmo da liberdade que nos constitui como
seres humanos.
Por tudo o que já foi dito, pode-se logo intuir que há uma grande diferença entre
uma resolução e a decisão. A resolução visa uma ação. Na resolução, o homem pondera,
delibera, resolve-se por escolher esta ou aquela possibilidade fática de agir. Ser
resolvido, ser resoluto, por sua vez, significa ter a energia para comandar a si mesmo
aquilo que foi deliberado, ou seja, ter a força de ânimo para se impor a si mesmo a
prática daquilo que foi deliberado. A resolução tem, ademais, o caráter de uma opção.
Uma vez feita a opção por esta possibilidade fática de agir excluem-se outras
possibilidades que lhe são incompatíveis. Por isso, cada vez que o homem opta, na
resolução, por uma possibilidade fática de ação, ele está renunciando a outras
possibilidades que são incompatíveis com aquela pela qual ele optou. Na resolução, o
homem, de partida, já deve ter saltado por cima de outras possiblidades de ação, ao
optar por aquela que ele considerou a mais útil, conveniente ou favorável. E o homem
permanece resolvido, resoluto, enquanto não põe em questão aquilo pelo que ele
optou.
Na decisão não se trata de optar por isso ou aquilo. Na decisão trata-se de ser ou
não ser decidido na existência e como existente. O decisivo na decisão é se e como o
homem se põe na decisão. Ou melhor: o decisivo na decisão é se e como o homem se
deixa pôr em questão e suporta estar em questão na própria decisão. Aquilo pelo que o
homem decide não está dado de antemão, como possibilidade fática de ação. O decisivo
na decisão é se o homem vem a si na própria realização da decisão. Aquilo pelo que ele
decide só aparece neste e com este vir a si mesmo que se dá na própria realização da
decisão.
Por conseguinte, o que é decisão não pode ser entendido a partir do conceito de
escolha. Na escolha optamos entre coisas diversas, resolvemos por esta ou aquela
possibilidade, entre diversas possibilidades fáticas de ação, que já estão de algum modo
dadas, que são subjacentes na situação mesma em que o homem se encontra. As
escolhas povoam a nossa cotidianidade. A decisão, porém, transcende a cotidianidade,
apesar de ela se dar a partir da cotidianidade e de repercutir sobre a cotidianidade.
Na decisão, aquilo que deve ser decidido é o próprio ser do homem, é o seu
próprio existir e este existir no seu todo. O decisivo não é, portanto, decidir por isto ou
aquilo, mas decidir por ser si mesmo, por tornar-se propriamente um si mesmo. O
decisivo na decisão é como o homem se deixa pôr em questão na decisão mesma e se
ele se deixa pôr em questão.
Ser e Tempo é uma questão desse tipo. É uma questão-decisão. E é uma questão
em que está em questão a essência e a origem da questão ela mesma. É o pensar
assumindo a responsabilidade de ser. É o pensar respondendo à provocação do mistério
de ser. É o pensar correspondendo, doando-se, à doação misteriosa do mistério de ser.
É um perguntar essencial, no sentido de realizar a essência da pergunta e também no
sentido de pergunta pela essência do ser, isto é, pela sua vigência e pelo seu sentido.
Para se encontrar com o pensamento de Ser e Tempo deve-se recolher todas as
perguntas reconduzindo-as para o fundo-abismo da pergunta pela essência do ser, isto
é, pelo seu sentido e pela sua vigência. É preciso deixar que esta questão brote da
unidade de nosso ser. “Por isso, o importante é deixar a periferia e ir para o centro da
vida. Pois, somente no centro a pergunta é essencial. No centro, todo nosso ser se
transforma numa única pergunta. Todo nosso ser é pergunta”183.
183
Leão, Emmanuel Carneiro. Filosofia Grega: uma introdução. Teresópolis: Daimon, 2010, p. 28.
é apenas o interrogado desta questão. O que se visa com ela é outra coisa do que o ente
e sua entidade. O que se visa é o sentido do ser, a partir do qual a entidade do ente se
dá a cada vez dessa ou daquela maneira nas épocas da história. O que se visa é o sentido
do ser, a saber, a manifestatividade do ser enquanto ser, não do ente ou do ser do
ente184. Com outras palavras, o que se visa é a “verdade do ser”, o seu dar-se. Ser
homem é encontrar a morada na verdade do ser. É nela existir e insistir. É a partir dela
que o homem descobre o ente que ele não é. É a partir dela que o homem se abre no
seu ser como um si mesmo. E, somente a partir do ser-si-mesmo é que se pode dar eu e
nós. Para o homem o ser na vastidão aberta do ser, o Da-sein, antecede a consciência.
A consciência se enraíza no Da-sein e não o contrário.
184
Cf. Heidegger, Martin. Introdução à Metafísica. P. 111.
185
Cf. Heidegger, Martin. Seminário de Zollikon, 202.
resguarda. Pensar é resguardar este resguardo. A leitura de Ser e Tempo não é outra
coisa do que um contínuo convite a se recolher neste resguardo, morando no mistério
do ser. É nessa morada do mistério do ser que o homem encontra o seu lar – o seu ethos
– no dizer de Heráclito, o obscuro: “ethos anthropou Daimon”. Ethos é a estada do
homem, o lugar de sua morada. O dito de Heráclito pode ser assim lido: o homem mora,
enquanto homem humano, na cercania do mistério. Pensar é, pois, agradecer a dádiva
dessa morada. Voltemos, pois, mais uma vez, ao um dito poético de Hölderlin, que
celebra o retorno ao lar: “................................... e quando repousamos da vida do dia,
dizei, como é que agradeço: Invoco o Alto?”186. E a esse outro dizer, que adensa na
Linguagem nossa experiência de ser-homem na clareira do ser: “ Enquanto perdurar
junto ao coração / a amizade, pura, o homem pode medir-se / sem infelicidade com o
divino”. Não é esta amizade, a philia da philosophía?
PENSAR HOJE
186
Apud Heidegger,
187
Professor na Universidade Católica de Brasília.
188
HEIDEGGER, M. Ensaios e conferências. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001, p. 114.
O presente artigo é uma meditação sobre o pensar em nossos dias. Entende o
pensar não no sentido psicológico ou lógico, mas ontologicamente, isto é, como
referência fundamental do ser ao homem. O pensar é apresentado como memória e
espera do ser em sua parusia nas destinações do tempo. Em seguida, procura-se
evidenciar o momento presente como uma provocação para o pensamento. Trata-se da
provocação do kairós de uma crise radical. Neste kairós, a provocação se torna
convocação para a passagem, o que requer do homem que ama pensar a paciência e a
perseverança e uma fé que deve amparar aqueles que, no deserto da época
contemporânea, buscam cuidar do espírito, isto é, da referência fundamental do ser ao
homem.
O pensar é um ver. Um ver simples e imediato. Aquele ver que acontece como a
evidência do ser. Aquele ver que nos constitui como o espaço de abertura da iluminação
do ser, e, por conseguinte da configuração do mundo. Esse ver coincide com o simples
fato de existirmos. Pois existir é ser esse ver, é ser essa iluminação, essa claridade do
ser. Ser homem é suportar essa abertura. Esse ver somos nós mesmos. Entretanto, nem
sempre vemos que vemos. Nem sempre apreendemos essa apreensão do ser, que
somos nós mesmos. Nem sempre nos damos conta de que somos esse ver e que o
simples fato de existirmos já nos constitui como essa abertura da iluminação do ser. Se
essa apreensão da evidência do ser é o que nos faz ser o que somos, nem sempre
estamos acordados para essa mesma evidência, a evidência do “eu sou”, onde o “sou”
põe o próprio eu e todas as suas possibilidades.
189
BANDEIRA, Manuel. Estrela da Vida Inteira, p. 14. Apud Holanda Ferreira, Aurélio B. Dicionário Aurélio,
verbete “Pensar”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
no aparecer de cada coisa, da mais sublime à mais ordinária. Como nos conta uma
história chinesa, que evoca a onipresença do mistério de ser sob o nome do Tao
(caminho):
190
MERTON, Thomas. A via de Chuang Tzu. Petrópolis: Vozes, 2002 (10ª Ed.), p. 182-183.
2. o pensar como memória e espera da parusia do ser nas
destinações do tempo
Somente por ser um ser é que o pensar pode ser também um agir. Sem o penhor
do pensar como ser não haveria o empenho e desempenho do pensar como agir. O
pensar age pensando. Sua ação não produz nada. Não é um fazer isso ou aquilo. Sua
ação não consiste num fazer, mas num perfazer, num consumar. O que o pensamento
consuma? Consuma a relação do homem com o ser. Pois pensar é cuidar do ser. Pelo
pensar, o homem se torna o pastor do ser191. Mas, em que consiste a dinâmica do pensar
enquanto cuidado com o ser?
191
HEIDEGGER, M. Sobre o Humanismo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967, p. 50s.
as artes. O pensar, com efeito, não é memória meramente reprodutiva do real, é, ao
contrário, memória criativa do possível, ou seja, recordação que retorna sempre às
fontes de ser, às possibilidades guardadas e resguardadas na origem, e, desse modo, é
também uma memória projetiva, precursora e inventiva, uma memória, enfim, que
antevê e antecipa sempre de novo novas possibilidades de realização do real. Enquanto
memória cordial que recorda a dádiva do ser, pensar (em alemão, denken) é agradecer
(danken). Agradecer é receber cordialmente a doação cordial da dádiva. A cordialidade
do receber se consuma na jovialidade do empenho de fazer frutificar a dádiva doada,
como a terra agradece ao céu a dádiva da chuva verdejando-se, florescendo-se e
frutificando-se nas plantas e árvores.
Pensar é também, mas de modo não menos originário, espera do ser. Esperar
não é, aqui, tecer expectativas sobre os entes. Não é calcular de antemão as
possibilidades dos entes. Aqui, esperar o ser é, ao contrário, não se fechar em nenhuma
expectativa em relação aos entes. Esperar é, pois, abandonar e desprender-se de todo
o cálculo do auto-asseguramento e abrir-se na disponibilidade para o puro advir e
sobrevir do ser, em suas irrupções e iluminações repentinas em meio às tempestades e
bonanças do tempo. A espera do ser é espera do inesperado, como já dizia Heráclito (no
frag. 18). É que o pensar não espera nada, melhor, só espera mesmo o nada. Esperar o
nada não é desesperança e nem desespero. É esperança genuína, pois é aguardar o
inusitado e o imprevisível, o advir da gratuidade, que torna possível a impossibilidade.
Por saber esperar, o pensar é cuidado pela maturação do ser, que se dá somente no
tempo devido, azado, oportuno (no − kairós). Por que sabe esperar, o pensar é
lerdo, moroso, pachorrento, sobretudo para um mundo que vive da velocidade do
progresso científico e tecnológico. Entretanto, a lerdeza do pensar é indicativa de sua
magnanimidade e de sua paciência ante as demoras e as recusas do ser na aridez do
tempo. O pensar sabe que é pela paciência que o homem salva o vigor de sua vida.
Compreende que o crescer da liberdade humana é como todo o crescer. Implica a
paciência de lançar raízes na escuridão da terra para poder erguer-se na claridade do
céu. Pois:
“crescer significa abrir-se à amplidão dos céus,
mas também deitar raízes na escuridão da terra. Tudo o
que é maduro, só chega à maturidade, se o homem for,
ao mesmo tempo, ambas as coisas: disponível para o
apelo do mais alto céu e abrigado na proteção da terra,
que tudo sustenta” 192.
192
HEIDEGGER, Martin. O caminho do campo (1949). In: Revista Vozes, ano 71, maio de 1977, n. 4, p. 326.
193
HERÁCLITO. Os pensadores originários. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 72-73 (frag. 52).
194
ROMBACH, H. Leben des Geistes – ein Buch der Bilder zur Fundamentalgeschichte der Menschheit.
Freiburg/Basel/Wien: Herder, 1977, p. 7.
Essa moldura constitui a verdade do ser: a sua parousia, ou seja, o modo como o
ser se dá se retraindo, se presenteia se retirando, se destina se resguardando. Pensar é
sempre pensar a verdade do ser, quer dizer, é seguir o seu sentido, acolhendo os seus
envios, recolhendo os seus acenos, deixando-se atrair pela força de tração de seu
retraimento. Pensar é escutar a palavra do ser, dando-se nas falas e silêncios do tempo.
Pensar é cuidar da verdade do ser. O ser mesmo se confia ao cuidado do pensar, pois
carece do seu desvelo, isto é, da correspondência cuidadosa do homem.
195
HEIDEGGER, M. Sobre o Humanismo, p. 51. As maiúsculas seguem a opção do tradutor. Ao escrever
ser como Ser, ou seja, com a inicial maiúscula, o tradutor está buscando se referir ao ser não como mera
entidade do ente, isto é, ao ser não compreendido a partir do ente, mas ao ser apreendido a partir dele
mesmo.
total da complexidade, já não temos olhos para o simples. Por isso, o caminho do pensar
requer uma longa espera, a espera de um crescimento e amadurecimento que não seja
intempestivo. Num tempo onde só se experimenta a veloz transitoriedade de todas as
coisas, esta espera parece por demais longa.
196
HEIDEGGER, M. O caminho do campo (1949). In: Revista Vozes, ano 71, maio de 1977, n. 4, p. 327.
197
HEIDEGGER, M. Sobre o Humanismo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967, p. 54.
ele é o que suavemente reina (das Waltende) vigorando
a partir do ser e, presumivelmente, em favor do ser” 198.
Mas, o que significa, aqui, a palavra “espírito”? Ela diz a dinâmica histórica da
verdade do ser a partir da qual se dá o incessante e vivo diálogo do homem com o
mundo:
Hoje, falar em espírito tornou-se algo altamente questionável, não só por causa
dos materialismos, mas também por causa dos espiritualismos. É que, tanto uns como
os outros são pólos de um mesmo movimento da metafísica enquanto forma da
experiência do ser do ente, da verdade do ser e da existência do homem no ocidente há
cerca de dois mil e quinhentos anos. Vivemos hoje não simplesmente uma crise
espiritual, nem uma crise do espírito, mas a crise do espírito. Trata-se de uma crise
mortal. Tudo aquilo que fazia respirar e dava alento ao homem ocidental sofreu uma
imensa perder de valência histórica. O espírito foi se expirando na lenta morte que dura
já alguns séculos. Com essa morte lenta, vão perdendo vigor a ética, a política, o direito,
a educação e a religião. A única dimensão da vida humana que parece se impor com
todo o vigor é a economia. Assim, no campo da ação cotidiana o ser humano sofre uma
imensa pressão que o compele a reduzir todos os parâmetros de seu agir aos critérios
do interesse e da utilidade pragmática. Os valores que valem efetivamente acabam
198
Hölderlin, Friedrich. Apud: Heidegger, Martin. Die Armut. In: Heidegger Studien, Vol. 10, 1994, Berlin:
Duncker & Humblot, p. 7.
199
Rombach, Heinrich. Leben des Geistes – ein Buch der Bilder zur Fundamentalgeschichte der Menschheit.
Freiburg/Basel/Wien: Herder, 1977, p. 40.
sendo os econômicos e somente a partir deles é que se medem os valores éticos,
estéticos e religiosos. Já não há mais infra e superestrutura. Arte, Moral, Política, Direito,
Educação, Religião, tudo se fragmenta. O ente metafísico que tudo sustenta já não é o
Estado ou a Sociedade, mas o Mercado, na dinâmica de um novo capitalismo, o
capitalismo globalizado. A ciência moderna revelou sua essência no domínio planetário
da técnica e no triunfo da razão instrumental. Universidades e instituições de pesquisa
funcionam nesta lógica da razão instrumental a serviço do mercado global. A educação
universitária se nivela a qualificação profissional para o mercado. Renuncia-se à
universalidade do saber e à pretensão de formação do ser humano em sua
integralidade. Em meio ao domínio da política única, da economia única e do
“pensamento” único, haverá ainda possibilidade de criação? Haverá ainda um sopro que
faça os ossos ressequidos do desértico mundo atual se erguer e ganharem corpo e
sangue, vitalidade, sensibilidade e compreensão?
3. O “crer” do pensar
200
NIETZSCHE, F. Vontade de Potência, n. 15, 1887.
201
Nietzsches Werke, XII, 250, n. 67. Apud HEIDEGGER, M. Nietzsche I. Stuttgart: Neske, 1998, p. 346.
202
Nietzsches Werke, XII, n. 128. Apud HEIDEGGER. Nietzsche I. Stuttgart: Neske, 1998, p. 353.
amadurecendo, fundando o que permanece. O homem histórico é, pois, desafiado a ser
capaz de ater-se ao verdadeiro e somente atendo-se ao verdadeiro é que ele persevera
e permanece de pé na passagem do tempo.
Entretanto, o verdadeiro não é verdadeiro a não ser por força e graça da verdade.
A verdade não é o verdadeiro. A verdade é o que torna tal o verdadeiro. O verdadeiro
está para o ente como a verdade está para o ser. Se chamarmos de “fé” o ater-se ao
verdadeiro do ente, não deveríamos chamar ainda mais ao ater-se à verdade do ser?
Não poderíamos entender de modo novo o “crer” do pensar, no sentido acima descrito,
como o seu modo de se relacionar e de se comportar com o ser, isto é, o seu modo de
estar atento, recordar, esperar, seguir e custodiar a verdade do ser? Com outras
palavras, não poderíamos entender o “crer” do pensar como o estar de pé do homem
na relação com o ser, como o cuidar do ser na morada da linguagem, como o viver a vida
do espírito na correspondência ao apelo e ao silêncio do ser através das palavras do
tempo? E a reverência, a veneração, a piedade desse “crer” não consiste, justamente,
na disposição de, sempre de novo e de modo novo, perguntar, questionar, buscar,
indagar o sentido do ser?
O crer do pensar, nesse caso, não seria o contrário do saber. Seria, antes, o saber
essencial, entendido como o saborear em que ao homem é dado o gosto, a afeição, o
amor pela revelação do ser. Trata-se, pois, de um saber que cresce e matura a partir do
perguntar que indaga, sempre de novo, pelo sentido do ser. Se entendermos assim o
“crer” e o “saber”, então, merecem o nome de crentes, propriamente, aqueles que
perguntam, sondando o sentido do ser:
203
HEIDEGGER, M. Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis). Gesammtausgabe Band 65. Frankfurt am
Main: Vittorio Klostermann, 1994, p. 369.
Para o pensar, “crer” é encontrar demora (Aufenthalt) na verdade do ser; é
encontrar apoio e amparo (Halt) no ser mesmo. Pensar é sondar (ergründen) o ser como
fundo e fundamento (Grund) do ente. Afinal, a pergunta fundamental do pensamento
não é a pergunta pelo fundamento mesmo de todo o ente? Não é aquela pergunta que
Leibniz tão bem formulou ao indagar: “porquoi Il y a plutot quelque chose que rien?”
(por que há alguma coisa, em vez do nada?).
Por sua vez, o abismo do nada da gratuidade que rege e sustenta o nascer,
crescer e consumar de todo o viver foi cantado nos versos pensantes do médico, poeta
e místico Johannes Schäfler, sob o pseudônimo de Angelus Silesius (o Anjo da Silésia):
204
Mestre Eckhart, apud LEÃO, E. C. Aprendendo a pensar I: o pensamento na modernidade e na religião
(edição aumentada e revisada). Teresópolis: Daimon Editora, 2008, p. 261s.
“A rosa é sem por quê / floresce por florescer /
não olha pra seu buquê / nem pergunta se alguém a vê”
205
.
No abismo do nada da gratuidade, que deixa ser (sein lässt) o aparecer e o tornar-
se presente de todo o ente, o pensar repousa e se recolhe. A ele o pensar se abandona
e se entrega (sich verlässt). No vigorar de seu mistério (Geheimnis), o pensar encontra a
serenidade (Gelassenheit) da origem, onde todas as coisas encontram o seu estar-em-
casa e onde o homem encontra a sua demora mais própria (Aufenthat). Pois o pensar se
aquieta no saber jovial e sereno da liberdade criativa.
205
SILESIUS, A. Cherubinischer Wandersmann / Il Pellegrino Cherubico (I, 289). Torino: Paoline, 1992, n.
289, p. 156.
206
HEIDEGGER, M. Die Armut. In: Heidegger Studien, Vol. 10, 1994, Berlin: Duncker & Humblot, p. 9.
para mim a árvore do futuro. Agora vivo sentado em sua
sombra” 207.
207
Apud LEÃO, E. C. Heidegger e a ética. In: Revista Tempo Brasileiro, n. 157, Rio de Janeiro, 2004, p. 63.
208
Nietzsches Werke, XII, p. 250. Apud HEIDEGGER, M. Nietzsche I. Stuttgart: Neske, 1998, p. 346.
209
Nietzsches Werke, XII, p. 250. Apud HEIDEGGER, M. Nietzsche I. Stuttgart: Neske, 1998, p. 347.
ermo e na desolação do questionamento, mas também aquele que se encontrou com o
inusitado e inesperado irromper da “árvore do futuro” e que pôde aprender a se
descansar à sua sombra.
FENOMENOLOGIA E CRÍTICA DA CIÊNCIA
PROF. MARCOS AURÉLIO FERNANDES
(UNIVERSIDADE CATÓLICA DE BRASÍLIA)
Ponto de partida para a nossa reflexão, aqui e agora, é a pergunta sobre a possibilidade de
a fenomenologia, em meio à crise de fundamento da ciência e de sentido da racionalidade
científica moderna, oferecer contribuições para uma reflexão sobre um novo tipo de
racionalidade e uma nova compreensão do conhecimento científico. O que se propõe,
com esta reflexão, é dar algumas indicações sobre uma crítica da racionalidade científica
moderna, em movimento no pensar de Husserl, Heidegger e Rombach, assim como de
vislumbrar o que está em jogo na emergência de novos paradigmas nas ciências,
caracterizados hoje, por exemplo, como “pensamento complexo” e “pensamento
sistêmico”.
1. TRÊS FENOMENOLOGIAS
Dos pensadores que vamos tomar como referência nesta exposição, Husserl e Heidegger
dispensam a necessidade de apresentações. Já Rombach, falecido em 5 de fevereiro de
2004, precisa ser apresentado ao público brasileiro. A propósito, Hermógenes Harada,
que foi aluno de Rombach, escreveu um artigo na revista de filosofia e mística medieval,
intitulada “Scintilla”, um artigo de apresentação e de diálogo e confrontação com a
filosofia de Rombach (HARADA, 2004, p. 67-96). Deste texto, a título de apresentação,
tiramos uma apresentação feita por Margarete Röhrig e Georg Stenger, editores do escrito
comemorativo intitulado “Philosophie der Struktur – “Fahrzeug” der Zukunft? Für
Heinrich Rombach” (Filosofia da estrutura – “veículo” do futuro? Para Heinrich
Rombach):
Apesar de toda essa potência e prepotência, nos últimos séculos não faltaram movimentos
internos à própria ciência, que tenham tentado assumir os seus limites e a sua finitude
humana, radicalmente humana. Já o cientista e filósofo Pascal, no século XVII, que foi
tão decisivo para a ciência, havia visto a necessidade de tornar a razão razoável, isto é, de
saber discernir quando se deve usar a razão e quando se deve submetê-la (Cfr.
ROMBACH, 1977, p. 266). Talvez nós pudéssemos dizer: é essencial que se conheça os
limites da ciência, para que ela seja tomada como o que ela é: não como saber, mas como
poder, isto é, não como possibilidade de guardar a verdade do ser, mas como simples
possibilidade de manter o domínio do ente (Cfr. ROMBACH, 1977, p. 257).
De início, Galileo Galilei ainda pensava que as construções do conhecimento científico,
baseadas em hipóteses projetadas racional e matematicamente e em experiências
controladas metodicamente, eram como pontes que se lançavam entre o intelecto e a
natureza. À medida que as construções se tornavam cada vez mais rigorosas e exatas elas
se adequavam cada vez mais à realidade. Os fatos eram vistos à luz de um sistema
hipotético-dedutivo. E as hipóteses eram confirmadas ou refutadas pelos fatos da
experiência, de uma experiência que era experimento, isto é, experiência controlada
metódica e matematicamente. Contudo, Pascal observou que cada nova hipótese é
superada por outra hipótese. Na ciência, jamais acontece algo como uma adequação
última e perfeita à realidade. Sua aproximação é, no melhor dos casos, assintótica. Seu
caminho é infinito e a cada momento a ciência está igualmente distante da meta de um
conhecimento da realidade. A ciência não lida com a realidade, mas com as aparências.
Ela não conhece verdade, mas só correção. O espírito de geometria, que domina nas
ciências da natureza, não pode ser aplicado à ordem do espírito, isto é, ao reino da
liberdade, em que rege o espírito de fineza, muito menos à ordem da caridade. A ciência
é apenas uma forma de conhecimento e de saber, uma forma limitada à ordem do corpo
e da natureza. Questões existenciais de sentido, questões metafísicas e religiosas não
pertencem ao seu domínio. Além disso, a ciência permanece sempre um feixe hipotético,
assim como a natureza, vista em sua ótica. Enquanto uma hipótese não for contradita, ela
permanece apenas provável e, portanto, não escapa ao poder da dúvida. Para que uma
hipótese seja declarada verdadeira não basta que todas as aparências oferecidas pala
experiência a confirmem, enquanto que, para que uma hipótese seja declarada falsa, basta
apenas uma manifestação da experiência a contradiga. Assim, já no século XVII, Pascal
antecipava aquilo que hoje se chama “racionalismo crítico” (Cfr. ROMBACH, 1977, p.
267).
No começo da ciência moderna, o ente no seu todo deixou de ser compreendido
ontologicamente como substância e passou a ser compreendido a partir de uma ontologia
funcional. A substância se dissolveu em redes de relações. A qualidade tomou o sentido
de aparência subjetiva e a quantidade se tornou o critério de racionalidade objetiva. Se
antes, na metafísica clássica, a terra era o reino da matéria e de sua instabilidade e
transitoriedade e o céu era o reino do espírito e de sua estabilidade e permanência, a partir
do começo da ciência moderna, a terra se tornou um astro celeste e os astros celestes se
tornaram outras tantas terras, mas a divisão metafísica passou a se operar na distinção
entre o sensível-empírico e o racional-matemático. Graças a essa decisão metafísica,
tornou-se possível matematizar toda a natureza e relativizar todo o real. Entretanto,
Descartes e Newton ainda continuaram a supor algo de absoluto na natureza: o espaço,
entendido como extensão. No século XX, porém, a teoria da relatividade, de Einstein,
levou a renunciar à hipótese de um espaço e de um tempo absolutos. Espaço e tempo não
são mais conceitos absolutos, mas categorias relacionais que só valem no contexto de um
sistema de referências. Assim, todas as outras determinações dos corpos são relativas, isto
é, relacionais. Uma proposição é científica somente se ela vale em referência a
determinados fatos e propriedades. O sistema de referências a partir donde esta
proposição enuncia algo sobre fatos e propriedades das coisas deve, pois, ser indicado.
Uma tese se torna hipótese se ela vale de modo apenas relativo no contexto de um sistema
de referências. Por sua vez, as descobertas científicas do século XX – contradição da luz
como onda e corpúsculo (Planck, Einstein, Bohr), o problema da desordem molecular
(Boltzman) e o princípio da incerteza na mecânica quântica (Heisenberg) – indicaram que
não há sistemas de referências que sejam fixos e estáveis. A natureza se mostra como uma
rede de relações. A totalidade das hipóteses de uma ciência não pode ser verificada, pode
apenas ser falsificada. O progresso da ciência não conduz a um saber definitivo, ele jamais
alcança a realidade mesma. Galilei entendia a ciência como uma ponte firme que se lança
entre o intelecto e a realidade. Popper a comparou com uma construção no pântano ou na
água. Nós poderíamos compará-la com uma plataforma de petróleo no oceano. A
fundação da ciência nunca alcança os fundamentos da natureza. Na ciência, não se trata
de alcançar um saber fundamental, trata-se apenas de construir um conhecimento que seja
firme e consistente em si mesmo e, ao mesmo tempo, resistente e produtivo. O homem é
a medida da ciência, não a realidade.
A autolimitação da ciência se dá também no modo como se entende a relação observador-
observado (Cfr. ROMBACH, 1977, p. 270-278). A princípio, se entendia que um fato da
realidade, constatado por um observador, era explicado no horizonte de uma teoria.
Supunha-se que havia uma realidade com fatos “em si”; que o observador permanecia
inalterado, que por meio do ser observado o fato não se modificava. Em seguida, novas
concepções alteraram esta interpretação. Para a apresentação e explicação de um fato, não
basta uma teoria, é preciso outras. Não basta uma hipótese e uma verificação. A
correspondência entre hipótese e fato pode ser ilusória. Por isso, é preciso lançar outras
hipóteses e fazer outras verificações. Contudo, como Pascal já ensinava, nem o conjunto
de todas as verificações concordantes são indubitáveis, mas somente a “falsificação”. Por
um lado, uma nova teoria pode corrigir a impressão que se tem da realidade e a explicação
do fato. Por outro, porém, variam-se as situações de observação, com a invenção de novos
sensores e detectores, capazes de apreender novos aspectos da realidade.
Mais recentemente, entende-se que nenhuma teoria é verdadeira por si mesma. Que todas
as teorias se corrigem mutuamente. “Realidade” é justamente a constante coação e
obrigação de retificações do conhecimento. Correspondentemente às diversas teorias
temos diversas situações experimentais de fundo, que condicionam a construção das
teorias. Criam-se teorias mais refinadas, com métodos mais refinados, com hipóteses de
apresentação e hipóteses de representação mais precisas. A “coisa” estudada é um ponto
de imaginário de intersecção de diversas teorias. Também o “observador” é um ponto
imaginário de intersecção de diversas situações de observação. A ciência se torna uma
crítica auto-elucidação do processo da pesquisa. A pesquisa, por sua vez, não somente
caminha para frente (progresso), no sentido do conhecimento da coisa, mas também
caminha para trás (regresso), no sentido do controle das condições de observação e das
condições de construções teóricas. A ciência progride quando é também capaz de
regredir, ou seja, de retornar sobre suas próprias condições de observação. É então que o
observador e construtor do conhecimento entra em questão. A ciência é um
empreendimento humano.
As ciências da natureza são ciências humanas. A ciência é produto da mente humana, que
é formada e constituída temporal e historicamente. Ela é produto de uma
intersubjetividade, de uma pluralidade de mentes humanas que interagem segundo
condições históricas e sociais. Ela é uma construção sócio-histórica. Daí a importância de
se conhecer modelos genéticos da construção do conhecimento, como também da
aprendizagem. Nesta situação e concepção, ciências da natureza e ciências humanas não
estão separadas, mas são dois polos de uma mesma dinâmica de construção do
conhecimento. No contexto das ciências humanas, por sua vez, se repete o mesmo
processo que se dá no contexto das ciências da natureza: aspectos elementares fundam
aspectos complexos, aspectos complexos corrigem aspectos elementares. Entre aspectos
elementares e complexos se dá um contínuo processo de elucidação. Nas ciências
humanas, em diferença das ciências da natureza, contudo, a vinculação entre observador
e observado é de um outro rigor. Nas ciências humanas, o rigor não é exatidão. Para usar
a linguagem de Pascal, aqui não se trata de “espírito de geometria”, mas de “espírito de
fineza”. Não obstante, as ciências humanas possuem seu próprio rigor, sua própria
precisão, apesar da grande inexatidão e oscilação de seu objeto temático: o ser humano,
psiquicamente, socialmente e historicamente constituído e constituinte. Também as
ciências humanas são um processo crítico de auto-elucidação, só que esta auto-elucidação
é concernente ao conhecimento do homem. A tarefa das ciências humanas é, assim, a
autocrítica do homem, da sociedade e da cultura.
O conhecimento científico, portanto, se constrói por meio de uma pluralidade de ciências,
que não somente interagem, mas também se interpenetram mutuamente. Os polos
natureza e homem são apenas centros de gravidade dos conhecimentos. Ciências
particulares se aglutinam com outras ciências particulares, formando grupos
determinados de ciências: ciências exatas da natureza, ciências descritivas da natureza,
ciências sociais, ciências históricas. Algumas se encontram no permeio entre ciências
naturais e ciências humanas, como é o caso, por exemplo, da psicologia. Contudo, a
localização das ciências no todo do conhecimento científico não é fixa e unívoca. Assim
como o sistema das ciências, que é, portanto, um sistema aberto de sistemas abertos, não
é fixo e estável. Há contínuos deslocamentos. O todo é, portanto, inquieto, flexível,
dinâmico. As ciências não se diferem e se referem somente a partir da referência aos
objetos, mas também segundo a diversidade de formas de tratamento dos objetos, pontos
de vista e horizontes de pesquisa, como ainda segundo os modos de acesso aos próprios
objetos e os modos de apresentação do conhecido e de comunicação do conhecimento.
Nesta pluralidade e complexidade, instabilidade e dinamicidade que é a construção do
conhecimento, não há lugar para interpretações redutivistas da realidade e nem para a
imposição de grupos de ciências como modelos para as demais. O conhecimento é
multidimensional.
A multidimensionalidade do conhecimento científico possibilita desfazer a rigidez e o
fechamento dos sistemas científicos. A ciência se torna, assim, a auto-apreensão de
diversas camadas ou estratos estruturais do conhecimento, a apreensão, portanto, de
diversas dimensões de relações com o real, um real que também é concebido como
complexo, como uma tessitura de relações multidimensionais e estruturais. Cada
dimensão do real estudada traz em si diversos horizontes de pesquisa. Um e mesmo
fenômeno pode ser interpretado de maneiras diversas, a partir de diversos pontos de
partida, de situações observadoras diversas, situado em diversos horizontes de
objetificação, horizontes que, por sua vez, pertencem a diversas dimensões do real. A
pluridimensionalidade do conhecimento do real, por conseguinte, induz a uma visão do
método aberta. Não se tratam de um mero perspectivismo e de um mero pluralismo, mas
se trata de, na pluralidade e multidimensionalidade, descobrir correspondências internas,
que possibilitem um diálogo interdisciplinar. Assim, a ciência deixa de ser a busca do
conhecimento claro e distinto do mundo, para ser a busca de transparência do próprio
conhecimento: auto-apreensão elucidativa do conhecimento.
Esse modelo genético de autocompreensão da ciência mostra uma passagem epocal no
âmbito do conhecimento: a passagem do sistema para a estrutura. Algo semelhante à
passagem que se deu no início da modernidade, quando se passou da substância para o
sistema. Na antiguidade, a ciência era o conhecimento da essência, dos princípios e causas
das substâncias. O conhecimento era entendido como concordância com o real. Na
modernidade, a realidade deixa de viger como substância, para vigorar como sistema. O
conhecimento deixa de ser apreensão do essencial, para vir a ser relacional e sistemático.
Em lugar da busca da essência entrou a investigação das leis; em lugar das causas, as
determinações fundamentadoras; em lugar da concordância com o real, a coerência
interna do sistema.
Entretanto, também a compreensão sistemática do real e do conhecimento mostra-se
questionável nos últimos tempos. Heinrich Rombach percebeu nas tendências mais
profundas de nosso tempo, em vários âmbitos, como, por exemplo na arte, mas também
na ciência, a tendência a desfazer a compreensão da realidade como sistema e a preparar
uma outra compreensão ontológica, mais viva, flexível, mais humana, que ele denominou
de ontologia da estrutura (Cfr. ROMBACH, 2003, p. 7-14).
O sistema é ainda uma compreensão da totalidade que não se libertou de todo de uma
concepção substancialista (que, defasada, se identifica, grosso modo, com uma concepção
fixista, estática e coisificada da realidade). O sistema é ainda entendido mecanicamente,
deterministicamente. Pode-se duvidar se esta concepção é superada, mesmo ali onde se
fala de “sistema aberto”, em lugar de “sistema fechado”. Neste sentido, a concepção de
sistema é ainda originária de uma visão da realidade a partir do mecânico, ou, na melhor
das hipóteses, do orgânico. Já a estrutura é uma concepção de totalidade cuja matriz é a
dimensão da liberdade. Sistema, bem entendido, é uma passagem para a concepção da
estrutura. Estrutura é uma totalidade “sui generis”. É dinâmica, viva, fluente, flexível,
autogeradora, autorreguladora, autocrítica e auto-corretora, amante da originalidade e da
criatividade, da liberdade e da reciprocidade. Na estrutura, o todo está todo em toda a
parte; cada parte é o todo, é uma perspectiva e uma concreção do todo. É uma “afinação”
e uma “constelação”. Uma estrutura está em contínuo processo de correção,
reconstituição e potencialização. É aberta para transformações, para rupturas e saltos.
Nela, nada é mais ou menos importante. Cada coisa é importante, a partir da concretude
de cada situação. Na estrutura, o todo não é o resultado da união das partes. Ao contrário,
o todo atua previamente como poder organizador, que põe e dispõe numa conjuntura
funcional, as partes. Cada parte colabora com as outras partes a partir e em vista do todo.
Cada parte é um momento funcional do todo. Os momentos se condicionam mutuamente,
mas também são condicionados pelo todo. O conhecimento, entendido estruturalmente,
já não pergunta por leis, mas por princípios; já não busca determinações, mas correlações
interativas ou interrelações recursivas; em lugar da coerência e produtividade do sistema,
busca a fecundidade do conhecimento. A produtividade é mecânica, a fecundidade é
criatividade vivente.
O que parece estar em jogo, nesta mudança epocal de uma concepção sistemática da
realidade e do conhecimento para uma concepção estrutural da realidade e do
conhecimento é, de novo, o surgimento de um novo mundo e de um novo homem.
Homem e mundo se pertencem. Desde a antiguidade o homem mesmo se compreendeu
como “minor mundus”, como microcosmo. O homem é a medida do mundo e o mundo é
a medida do homem. Hoje, mundo e homem solicitam serem pensados e conhecidos em
sua multidimensionalidade. O que é, entretanto, dimensão? A palavra “dimensão”, na sua
formação, guarda uma relação com o verbo mensurar, isto é, medir. Dimensão é aquilo a
partir do que se pode medir e avaliar uma extensão. Ela é um horizonte e princípio de
medida e de valoração. O ser humano existe, medindo-se com o Céu e a Terra, medindo-
se com o seu mundo, com as coisas, com os outros seres humanos, com as suas atitudes,
etc. É a partir deste medir-se que ele se responsabiliza por avaliar tudo o que se coloca
sob o seu cuidado. Na passagem do sistema para a estrutura, certamente, está em jogo um
outro modo de o homem medir-se com o mundo. O mundo e o homem do sistema, seja
ele fechado ou aberto, são ainda artificiais e mecânicos, por mais que seus mecanismos
sejam dinâmicos e interativos. Eles acabam sendo, assim, desumanos. O sistema é muito
produtivo e efetivo. Mas ameaça extinguir a criatividade, a fecundidade, a liberdade, a
flexibilidade, tudo que é vivente e humano.
O desafio do futuro que nos atinge hoje, a interpelação do futuro que nos solicita hoje o
pensamento quando se trata de pensar o sentido epocal da ciência pode, pois, se dizer com
uma pergunta: será possível o surgimento de uma ciência humana?
Nos últimos séculos, a metafísica do sistema operante na ciência produziu um mundo
imundo, isto é, desmundanizado, esvaziado de sentido, e também um homem desumano.
A marcha da ciência muitas vezes se demonstrou cega ou pelo menos unilateral. O homem
da era da ciência poderia ser comparado a Polifemo, o gigante de um olho só que Odisseu
teve que enfrentar. O homem da era da ciência demonstra um poder gigantesco. Mas tem
um olho só: o olho da ciência. Não seria o momento oportuno, o kairós, de o homem
despertar outros olhos para ver a realidade? Não seria o momento de o homem ver com
outros olhos aquilo que não se faz visível no horizonte do conhecimento científico? O
homem de hoje, com a ciência nova de nossos dias, despertou um olhar para a
complexidade do ente. Mas, ele ainda poderá despertar um olhar para o Simples? Para
além das transformações da ciência de hoje, o que o grande desafio é se o homem ainda
vai ser capaz de ver não o complexo, mas o simples, não o simples da
unidimensionalidade, mas o simples daquela simplicidade que recolhe na unidade o
homem e a natureza, o mundo e a terra, o mortal e o divino.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
HARADA, Hermógenes. Heinrich Rombach, memória e gratidão. In: Scintilla, n. 2,
Faculdade de Filosofia São Boaventura, Curitiba - Paraná, 2004, p. 77-96.
HEIDEGGER, Martin. Sobre o humanismo. Rio de Janeiro – RJ: Tempo Brasileiro, 1967.
_____________ Introdução à metafísica. Rio de Janeiro – RJ: Tempo Brasileiro, 1987.
_____________ Ser e Tempo: Parte I. Petrópolis – RJ: Vozes, 1988a.
_____________ Filosofia e cibernetica. Pisa – Italia: Edizioni ETS, 1988b.
_____________ Überlieferte Sprache und Technische Sprache. Saint-Gallen: Erker,
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_____________ Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis). Gesammtausgabe Band 65.
Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1994.
HUSSERL, Edmund. Phänomenologische Psychologie - Husserliana, Band IX. Den
Haag: Martinus Nijhoff, 1962.
_________ La filosofia come scienza rigorosa. Bari – Italia: Editori Latterza, 1998.
_________ Meditações Cartesianas. São Paulo – SP: Madras, 2001.
ROMBACH, Heinrich. Leben des Geistes – Ein Buch der Bilder zur
Fundamentalgeschichte der Menschheit. Freiburg, Basel, Wien: Herder, 1977.
_______________ Die Welt als lebendige Struktur – Probleme und Lösungen der
Strukturontologie. Freiburg: Rombach Druck und Verlaghaus, 2003.
A DELIMITAÇÃO, DA PARTE DE HUSSERL, DO CAMPO TEMÁTICO DA
FENOMENOLOGIA. A CAMINHO DA FENOMENOLOGIA TRANSCENDENTAL.
Nos anos sucessivos à publicação das Investigações Lógicas, Husserl levou
adiante o trabalho de delimitar o campo temático da fenomenologia. Partindo do
conceito de intencionalidade, procedeu-se a uma análise dos comportamentos não
somente teoréticos, como também práticos e estéticos. Também a idéia da
fenomenologia enquanto ciência e método é elaborada. No ano de 1907 ele dera um
curso de cinco preleções intitulado Die Idee der Phänomenologie (A idéia da
fenomenologia). Nesta ele diz: “Fenomenologia: esta designa uma ciência, um conjunto
de disciplinas científicas; mas designa ao mesmo tempo e antes de tudo um método e
uma atitude de pensamento: a atitude de pensamento especificamente filosófica e o
método especificamente filosófico”210. No pensamento de Husserl, portanto, a
fenomenologia não constituiria uma “corrente filosófica”, mas seria o nome para o
método e a atitude de pensamento da própria filosofia, entendida não como
mundividência (Weltanschauung) ou mera teoria do conhecimento (Erkenntnistheorie)
no sentido de uma descrição empírica do estado factual e do procedimento factual das
ciências, mas entendida ela mesma como uma ciência, a saber, uma ciência primordial,
uma Vorwissenchaft, que teria como terreno de investigação não somente a dimensão
teorética, como também aquela dimensão pre-teorética da vida em si mesma, onde nós
antes de tudo e na maior parte das vezes nos movemos.
210
E. Husserl, Die Idee der Phänomenologie, 23.
211
Cfr. M. Heidegger, 124-129.
Escola de Marburgo, sobretudo com Paul Natorp, em relação ao qual Husserl reconhecia
suas afinidades, sem que por isso esquecer as diferenças que reinava entre os dois.
Ainda neste mesmo período o estudo de Dilthey o ajudará a dirigir o olhar do âmbito
das ciências da natureza, com o qual era originariamente familiarizado, para o âmbito
das ciências do espírito.
Por este tempo, a fenomenologia, no pensar de Husserl, foi se aviando cada vez
no caminho de uma “filosofia transcendental”. “Transcendental”, no sentido de Kant e
de Husserl, diz respeito a aquilo que não deriva da experiência, mas que é condição de
212
M. Heidegger, PGZ, 127.
possibilidade da realização de qualquer experiência possível. O “transcendental” tem a
ver com o “matemático” e com a “mathesis universalis”. É no caminho do
“transcendental” que se avia a fenomenologia na experiência de pensar de Husserl.
Tentemos, pois, elucidar os conceitos de “experiência”, de “matemático”, de “mathesis
universalis”, e, em seguida, vejamos como se configura a fenomenologia enquanto
fenomenologia transcendental no caminho de pensamento de Husserl.
213
O falsificacionismo, que afirma ser a falsificação e não a verificação, o motor da pesquisa científica, não
é uma novidade da teoria da ciência contemporânea (Popper e Albert). Já fora desenvolvido com grande
acuidade por Pascal, a partir de Descartes e Galilei. Este último, por sua vez, recebeu esta orientação de
Giordano Bruno e, através dele, de Nicolau de Cusa, cujas obras principais, no tocante a este tema, são
De Docta Ignorantia e De conjecturis.
fundamentais do pensamento matemático e lógico. A investigação de Husserl não era
de “teoria do conhecimento” em sentido usual. Era, antes, uma elucidação, um trazer e
deixar vir à evidência o ser do matemático, respectivamente, o ser do lógico. Aqui, o
ente matemático, respectivamente, o ente lógico é interrogado, compreendido e
interpretado com base em seu modo de ser, isto é, de essencializar, de viger. A questão
do sentido de ser – quer do ser do ente matemático, quer do ser do ente lógico – é o
que moveu Husserl nas suas primeiras tentativas até as Investigações Lógicas. A questão
que não quer calar, porém, é como que Husserl, seguindo este caminho, se deparou com
a psicologia brentaniana, e, nela, com a intencionalidade, e, a partir dela, na
“fenomenologia transcendental”, que pretende transcender toda a psicologia.
Tudo o que é, o ente no todo, o que os gregos chamavam de “tà onta”, “tà
phainómena”, porém, se dá em diversos modos. Aristóteles dizia: “tò on légetai
pollachôs” – o que está sendo, o que é, se deixa vir à fala de diversos modos. abrindo
diversas “regiões de coisas”. Os gregos tinham vários nomes para nomear estas “regiões
de coisas”. Vejamos. Primeiramente, “tà physiká”: as coisas da “physis”, do surgir e
eclodir – são as coisas que surgem e eclodem por si mesmas, “naturalmente”. Em
segundo lugar, “tà poioumena”: as coisas da “poíesis”, da produção – são as coisas que
são produzidas, isto é, que são trazidas à presença, à medida que são feitas,
manufaturadas, fabricadas pelas mãos dos homens. Em terceiro lugar, vêm “Tà
chrémata”: as coisas da “chréia”, do uso – são as coisas enquanto estão sendo usadas,
enquanto estão “à mão” (cheír). Estas, por sua vez, podem tanto “tà physiká” quanto
“tà poioumena”, contanto que sejam tomadas na perspectiva do uso, isto é, da utilidade,
do emprego (chresis), do prestar para isso ou para aquilo, da necessidade (chreón). Em
quarto lugar, “tà prágmata”: as coisas da “práxis” – as coisas que se dão na ação. O
“prattein”, agir, se diferencia do “poiein”, fazer, pôr em obra. É que, na ação, o fazer é
um perfazer-se daquele que age, de um modo ou de outro, num sentido ou noutro. O
pôr em obra é, na verdade, um pôr em obra a si mesmo. Na ação, o homem é o poeta e
o poema de si mesmo, de sua liberdade. É na ação que o homem nasce, cresce e
amadurece, se consuma e morre, a cada dia, a cada nova situação, dando-se a si mesmo
uma fisionomia singular, e, ao mesmo tempo, se responsabilizando pelo Todo. Ação é a
vida do homem como cuidado. Neste sentido, os gregos tinham o dito, expresso por
Periandro, poeta e um dos sete sábios da antiguidade grega: “méleta to pan!” – cuida
do Todo (responsabiliza-te pelo Todo). Somente porque o viver do homem é cuidado
por si enquanto cuidado pelo todo (autorresponsabilização enquanto responsabilização
pelo Todo) é que o homem se constitui a si mesmo na ação. E, somente por ser um ente
que se consuma na ação, é que o homem precisa se ocupar com as coisas da natureza,
bem como com as coisas que ele mesmo faz, no sentido de fabricar, aprontar.
O pensar que somos não incide sobre, antes, coincide com o ser do que é. O ser
não está fora do pensar e nem o pensar está fora do ser. Pois o pensar, que nos constitui
como homens, consiste em percepcionar o ser de tudo o que é. Os gregos chamam de
noein a este percepcionar do ser. Este percepcionar é, antes de tudo, um admitir. É uma
recepção, uma aceitação e um acolhimento da realidade: um deixar vir de encontro
aquilo que se mostra, que aparece, tal como se mostra. Percepcionar é também um
tomar depoimento do que o que se mostra e aparece como sendo diz de si. Ora,
fenômeno é o que aparece, isto é, o que se manifesta, e, se manifestando, se divulga,
dá notícia de si. “Phainomenon”, fenômeno, vem de “phainesthai”: pôr-se a brilhar,
aparecer no próprio brilho214. Pensar é o a recepção que acolhe e recolhe o dar-se de
tudo aquilo que se põe a brilhar, que aparece no seu próprio brilho. Além disso, noein
(pensar = percepcionar) significa também um deter esta aparição do ser em si mesmo,
e, por conseguinte, um conter esta aparição na forma do conceito.
214
Heidegger, M. A caminho da linguagem, 104.
percepcionar-pensar. O percepcionar pertence ele mesmo ao acontecer do ser e à sua
manifestação ou revelação. O caráter manifestativo do ser já se dispõe a ser recebido,
acolhido, percepcionado no pensar. O ser do homem se determina a partir do
acontecimento da correspondência essencial entre o ser (a realidade que se manifesta)
e o pensar (o percepcionar do ser). O homem somente chega a ser homem à medida
que entra neste acontecimento, tornando-se pertencente a ele. Neste sentido, o pensar
não é uma propriedade do homem, mas é o que homem que é propriedade do pensar.
215
Efeito Compton é a diminuição de energia (aumento de comprimento de onda) de um fóton de raios X
ou de raio gama, quando ele interage com a matéria.
216
Carneiro Leão, Emmanuel. Aprendendo a Pensar II. Teresópolis: 2010, p. 210-211.
de antemão por sobre o domínio dos fatos, predeterminando e pretraçando o seu modo
de ser e de aparecer. A mensuração quantitativa de relações não define o matemático.
O projeto matemático é que determina como se dará esta mensuração quantitativa das
relações entre coisas e estados-de-coisa. A mensuração e o cálculo não são o
fundamento do projeto matemático, mas o contrário, o projeto matemático é que
determina como e em que sentido que se dará a mensuração e o cálculo no lidar com
as coisas, os estados-de-coisa e os fatos.
“Pois sendo evidente que és, não podes ser o que és senão
enquanto vives; teu ser vivo é igualmente evidente (...). Por
conseguinte, é também evidente o terceiro elemento, o fato de
compreenderes (intelligere)” (Livre Arbítrio II, 7).
Para Descartes, a verdade da coisa, do real, do ente no seu todo, deve estar
fundada na verdade da mente217. Com que direito, porém? Em razão de que? Em razão
de sua indubitabilidade. A Meditação II das “Meditationes de Prima Philosophia” de
217
“Adeo ut, omnibus satis superque pensitatis, denique statuendum sit hoc pronunciatum, Ego sum, ego
existo, quoties a me profertur, vel mente concipitur, necessário esse verum” – “Assim, portanto, depois de
ter ponderado tudo mais do que o bastante, pode ser estatuído que isto que é pronunciado: eu sou, eu
existo, é necessariamente verdadeiro, toda a vez que for proferido por mim ou que for concebido pela
mente” (Descartes, 1641/1998, p. 162 – tradução nossa, grifo do próprio texto editado).
Descartes nos introduz na justificação ontológica deste direito. Ainda que tudo fosse
aniquilado pela dúvida, o ego cogito, ego sum permaneceria de pé em si mesmo, ou
seja, o pensar, a mente, a egoidade como tal traz consigo o privilégio ontológico de
permanecer firme na evidência, na verdade, na certeza de si mesma, mesmo quando
tudo é tomado pelo vórtice da dúvida. O ego, isto é, a egoidade, é indubitável, estável
em sua verdade, certo de uma certeza firme: aquilo que é certo e inabalável (quod
certum est et inconcussum) 218. Assim, o ego, ou melhor, a egoidade, ou, melhor ainda,
a mente, é apresentada agora como a substantia, o subiectum, o fundamentum por
excelência. Não se trata, aqui, pois, do eu individual, fático, mas do eu enquanto tal, da
essência do eu, da egoidade, ou, como diz Descartes, do ego enquanto dado ao cogito,
ao pensamento219, ou seja, do ego enquanto res cogitans, enquanto mens (mente)220. A
indubitabilidade do ego pertence à essência da mente como tal (cfr. Rombach, 1981, p.
448). A mente é uma presença cuja autodatidade é auto-evidente, por se dar numa
intuição imediata. Além disso, ela é uma atenção, um ser presente junto ao real, que
pode trazer em si o caráter de um “perceber claro e distinto” do que quer que ela
perceba ou intua221, e que tem a capacidade de conter em si, intencionalmente, ou seja,
218
“Quare jam denuo meditabor quidnam me olim esse crediderim, priusquam in has cogitationes
incidissem; ex quo deinde subducam quidquid allatis rationibus vel minimum potuit infirmari, ut ita
tandem praecise remaneat illud tantum quod certum est & inconcussum” – “Por isso eu agora vou meditar
de novo sobre o que eu antes acreditava ser, antes de cair nestas cogitações; disso eu, então, irei subtrair
o que quer que possa ser infirmado ainda que minimamente pelas razões aduzidas, a fim de que
permaneça precisamente somente aquilo que é certo e inabalável” (Descartes, 1641/1998, p. 162).
219
“Cogitare? Hic invenio, cogitatio est, haec sola a me divelli nequit: ego sum, ego existo, certum est.
Quandium autem? Nempe quandiu cogito” – “E o pensar? Eis que encontrei: o pensar é a única coisa que
não me pode ser tirada. Eu sou, eu existo; isto é certo. Mas, por quanto tempo? Certamente, enquanto
eu penso” (Descartes, 1641/1998, p. 166).
220
“Nihil nunc admitto nisi quod necessario sit verum; sum igitur praecise tantùm res cogitans, id est,
mens, sive animus, sive intellectus, sive ratio, voces mihi priùs significatione ignotae. Sum autem res vera,
& vere existens; sed qualis res? Dixi, cogitans” – “Nada agora admito a não ser o que de modo necessário
é verdadeiro; eu sou, portanto, precisamente, somente uma coisa pensante, isto é, mente ou ânimo ou
intelecto ou razão, vocábulos cuja significação me era antes ignota. Eu sou, pois, uma coisa verdadeira, e
verdadeiramente existente; mas, que tipo de coisa? Eu já o disse, uma coisa pensante” (Descartes,
1641/1998, p. 166 – tradução nossa). Mais à frente Descartes diz: “Sed quid igitur sum? Res cogitans. Quid
est hoc? Nempe dubitans, intelligens, affirmans, negans, volens, nolens, imaginans, quoque, & sentiens”
– “Mas, portanto, o que eu sou? Uma coisa pensante. O que é isto? Certamente, uma coisa que duvida,
que entende, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina também, e que sente”
(Descartes, 1641/1998, p. 168).
221
“Atque, quod notandum est, ejus perceptio non visio, non tactio, non imaginatio est, nec unquam fuit,
quamvis prius ita videretur, sed solius mentis inspectio, quae imperfecta esse potest & confusa, ut prius
erat, vel clara & distincta, ut nunc est, prout minus vel magis ad illa ex quibus constat attendo” – “Mas de
qualquer modo, há que se notar que a sua percepção [desta cera] não é nem um ver, nem um tocar, nem
um imaginar, nem foi jamais algo disso, embora antes parecesse assim, mas um inspecionar da mente
ideal ou espiritualmente, todas as coisas que ela representa. Esta auto-evidência e esta
capacidade de ser a instância da recepção da evidenciação da forma (ideia, essência) do
que quer que seja caracteriza a mente enquanto “razão pura”.
No ano de 1769 Kant, segundo seu próprio testemunho, teria feito a experiência
do pensamento como de uma iluminação, ou seja, como o surgir de “uma grande luz”.
No ano seguinte ele escreveu a sua dissertação para tornar-se professor ordinário da
universidade de sua cidade natal, Königsberg, a qual se intitulava “De mundis sensibilis
atque intelligibilis forma et principiis”222; um escrito que funciona como um divisor de
águas entre o período pre-crítico e o período crítico do seu pensamento. Neste escrito,
que queria ser uma propedêutica à metafísica entendida como conhecimento dos
princípios do intelecto puro, ele apresenta a distinção entre conhecimento sensível e
conhecimento inteligível. O conhecimento sensível nos faz representar as coisas uti
apparent e não sicuti sunt, ou seja, as coisas como estas se nos aparecem e se nos dão
afetando-nos (“fenômenos”). O conhecimento inteligível, por sua vez, nos faz
representar os conceitos puros do intelecto, os quais não podem ser colhidos pela
percepção sensível e se referem às coisas sicuti sunt, ou seja, como são em si mesmas
(“noumeno”). Até então Kant tinha feito diversas tentativas de conciliar ciência (trata-
se basicamente da física de Newton à qual ele dedicaria sempre uma grande admiração
e um grande empenho de elucidação) e metafísica ( da qual ele dizia ter o destino de ser
enamorado e que ele reconheceria sempre como uma insuperável exigência do espírito
humano). Uma vez acordado, graças às sacudidelas de Hume, do seu sono dogmático,
ele dedicaria o período de mais de um decênio a uma cerrada meditação até trazer à
somente, que pode ser imperfeito e confuso, como era antes, ou claro e distinto, como é agora, à medida
que eu preste atenção mais ou menos àquilo de que é constituída” (Descartes, 1641/1998, p. 174).
222
Cfr. I. Kant, Forma e principi del mondo sensibile e del mondo intelligibile.
luz, no ano de l781 a sua Crítica da Razão Pura, cujo destino seria o de operar uma
verdadeira “revolução copernicana” no âmbito da história do pensamento ocidental223.
O fundamento dos juízos sintéticos a priori é o sujeito que sente e que pensa, ou
melhor, não este ou aquele sujeito empírico, mas a subjetividade estrutural humana
com as suas leis que regulam seja a sensibilidade seja o intelecto. Às estruturas da
sensibilidade e do intelecto Kant atribui o adjetivo de transcendentais. O sujeito do
conhecimento é transcendental, isto é, não pode ser conhecido como um dado da
experiência, isto é, como um objeto. Ao contrário, o sujeito é a condição da possibilidade
para que se dê algo como “experiência” e para que os dados da experiência sejam
recolhidos e ordenados desta ou daquela maneira. Transcendental é o sujeito e tudo
aquilo que estruturalmente pertence a ele. Transcendental é a condição da possibilidade
da cognoscibilidade dos objetos (da sua intuibilidade e pensabilidade).
223
Cfr. I. Kant, Kritik der reinen Vernunft.
a priori”. (Ich nenne transzendental jede Erkenntnis die nicht so sehr
mit den Gegenstäden, sondern mit unserer Erkenntnisart der
Gegenstände überhaupt beschäftligt). Esta definição de
transcendental se transformou em método e orientou o modo do
conhecimento filosófico até Schelling. É o método chamado de
transcendental. Com ele Kant inaugura o pensamento crítico que na
idade moderna moldou o pensamento do chamado Idealismo Alemão.
A prática do pensamento crítico se estendeu através de Reinhold,
Fichte e Schelling principalmente até depois de Hegel tanto na Direita
quanto na Esquerda Hegeliana. As características desta revolução,
chamada por Kant de “revolução copernicana”, são as funções a priori
do sujeito que antecedem à experiência e estruturam todo
conhecimento válido, i. é, real ou, em termos kantianos, produzem
juízos extensivos (Erweitenrungseurteile) e não somente explicativos
(Erläuterungsurteile) do conhecimento objetivo. Até Kant o
conhecimento metafísico só conhecia ou o método indutivo e
empírico, um procedimento que sobe da intuição sensível, onde nos
são concedidos os dados (Gegenstände) para o conhecimenbto
intelectivo onde os dados são pensados e entendidos, ou o método
dedutivo que desce do pensamento para a experiência. Kant foi o
primeiro pensador da metafísica que se ocupou com as condições de
possibilidade do conhecimento objetivo. O desafio era: como o sujeito
deve ser estruturado e constituído para poder conhecer objetos com
os dados? É a organização do sujeito que assegura a produção de
conhecimentos válidos, seja referentes aos objetos seja referente ao
sujeito. A estruturação que aparelha a consciência para vir a ser sujeito
de conhecimento e constitui o objeto para ser objeto conhecido, é
horizontal, quer dizer dá-se num plano linear de funções e atividades
do real na plataforma de produção do ser humano. É o homem
reduzido a sujeito de representação e ação (Emanuel Carneiro Leão).
224
Este curso, ministrado no segundo trimestre de 1940, foi publicado primeiramente em 1961, no
segundo volume do livro de Heidegger intitulado “Nietzsche” e, posteriormente, foi publicado no volume
48 das suas obras completas. Seguiremos, aqui, o texto do livro “Nietzsche II”.
225
Os textos de Heidegger serão indicados por siglas. Cfr. as referências bibliográficas. Quando os textos
citados não forem de língua portuguesa a tradução será do autor deste artigo.
ou seja, daquele pensar que, por aproximadamente dois milênios e meio, experimenta
e compreende o ser a partir do referimento da subjetidade.
226
Este texto foi publicado no segundo volume do livro sobre Nietzsche. Faremos a citação deste texto
nesta edição de 1961.
como “ratio” (razão; em alemão: Vernunf). A alma enquanto mente ou razão, ainda por
cima determinada a partir da egoidade e da ipseidade, tornou-se a realidade verdadeira,
à medida que também a verdade foi entendida como certeza: o ente mais certo,
indubitável, é a mente, com sua autoconsciência, isto é, o “eu penso – eu sou”:
227
Mente ou ânimo/espírito (em latim) (tradução nossa).
228
Razão (em latim) (tradução nossa).
229
Razão (em alemão) (tradução nossa).
230
Espírito (em alemão) (tradução nossa).
231
Ente em ato (em latim) (tradução nossa).
232
Ato puro, realidade pura (em latim) (tradução nossa).
233
Mundo (em latim) (tradução nossa).
234
Ente criado, criatura (em latim) (tradução nossa).
235
Sujeito (em latim: o que está lançado por debaixo) (tradução nossa).
236
Sujeito (em grego: o que subjaz) (tradução nossa).
237
Substância primeira (em grego: aquilo que é vigente e presente em sentido primordial, o indivíduo, o
singular) (tradução nossa).
(repraesentatio) quanto o querer ou apetecer (appetitio), sendo que, por fim, o querer
se afirma como cada vez mais decisivo, à medida que a realidade se torna
funcionalidade. É a partir do horizonte da funcionalidade como operacionalidade,
eficiência e eficácia, que se impõe também a correspondência entre as funções da
subjetividade e as funções da objetividade.
FENOMENOLOGIA COMO PENSAMENTO MEDITATIVO
O pensar não é aqui tomado em sentido psicológico ou lógico, isto é, como um
representar e, por conseguinte, conceituar, definir, propor enunciados, estabelecer
teses, raciocinar, inferir, tirar conclusões, argumentar, construir teorias, para elaborar
uma ciência, etc. Entendemos o pensar, aqui, não como atividade que produz
conhecimento, ciência. Também não entendemos o pensar no sentido técnico, de
cálculo, combinação de informações. Pensar é, aqui, tomado no sentido filosófico, como
meditar. O que está em jogo, portanto, neste nosso exercício de aprendizagem
filosófica, é a meditação a respeito da linguagem.
238
Thomas Merton. A via de Chuang-Tzu. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 166-168.
Tomemos este aceno como indicação da dinâmica de uma meditação
fenomenológica, isto é, do “pensamento unificado”, que deixa vir à luz (phaínesthai) a
unidade singular da obra, como o fenômeno que acolhe e recolhe vazio e plenitude,
mente e mão, possibilidade (potência) e realização, forma e matéria, céu e terra...
239
Conferir o poema de Alberto Caeiro (Fernando Pessoa):
240
Aqui não separamos “aisthesis” e “nous”, sensibilidade/percepção e intelecto/razão. A metafísica
separou aisthesis e nous, o aisthetikós (sensibilis) e o noetikós (intelligibilis), o físico e o meta-físico. Mas,
não haveria uma unidade anterior a esta separação, a esta cisão, para a qual o homem meta-físico, que
somos todos nós, já não tem mais um sentido? E se fosse assim que a verdade da aisthesis no homem
fosse o nous? E se o nous fosse, fundamentalmente, aisthesis? Cfr. Ética a Nicômaco VI 12, 1143 b 5.
toque nos en-via, nos em-caminha. Em que direção? Na direção que a coisa mesma toma
a partir dela mesma. Pensar, meditar, quer dizer deixar-se encaminhar na direção que
os fenômenos desvelam, é seguir o ductus (a condução) do fenômeno, das coisas
mesmas241. O acontecer do sentido como sentido é, pois, em sua plenitude, um envio,
um em-via, uma passagem, uma travessia, uma via-gem. Sentido é tomar-rumo, é viajar
a partir de um encaminhamento, de um envio. O sentido é, pois, dádiva (como toque
prévio de uma abertura) e, ao mesmo tempo, tarefa: caminho por se fazer, isto é, por
se abrir e por se per-fazer, por se consumar, por se levar a término, à consumação (se
finitizar). Para o pensamento que medita, isto é, que não representa e calcula,
simplesmente, mas que questiona, isto é, busca, investiga, e segue o sentido do
fenômeno, a sua fenomenologia, esta viagem não conduz a outro lugar do que para ali
onde nós já sempre estivemos, desde que começamos a nascer, crescer e morrer a cada
dia:
241
É por isso que Aristóteles, no primeiro livro da Metafísica, falando dos primeiros que filosofaram em
torno da verdade (philosophantas peri tes alétheias), diz que eles foram constrangidos a investigar além
do que tinham pensado até então, à medida que a coisa mesma abriu-lhes caminho (autó tó pragma
hodopoiesen autois) (Metafísica A 3: 983 b 2; 984 a 18-19).
onde se abre, então, o espaço que atravessa e percorre tudo
que fazemos ou deixamos de fazer242.
O pensar que medita não é razão: não é nem percepção do que é pré-dado
(nous), nem representação da consciência, nem cálculo e planificação (ratio). É
encaminhamento na investigação do sentido de ser. É o que nos afina na
correspondência com o que é mais digno de ser pensado. Questionar é a piedade do
pensamento. No caminhar do pensamento vai se abrindo o que é digno de ser
questionado. A dignidade deste está em sua grandeza. É, de fato, o mais vasto, o mais
profundo e o mais originário. É o mistério de ser. O retraimento do ser, enquanto nada,
isto é, enquanto nada de ente (nem mesmo entidade do ente). A meditação nos conduz
para a referência de ser com o ser que nos constitui (Da-sein), na qual nós já sempre
estamos, embora displicentemente. O pensar que medita é o pensar do ser. Pertence
ao mistério de ser. Tem como tarefa custodiar a sua verdade (desocultamento –
ocultamento). Tem como encargo dizer o ser. Ou melhor, carece de escutar a palavra do
ser e de a ela corresponder. Assim, em seu encaminhamento, o pensar pode deixar de
ser questão e ser “o simples dizer de uma palavra”243. O pensar está, assim, a serviço da
linguagem (a palavra do ser). É escuta e correspondência a esta palavra do ser. Acontece
que, com isso, já dissemos demais. Antes, precisamos aprender a questionar o que há
de mais digno de ser questionado e, em referência a isso, questionar o sentido da
linguagem. O que é a linguagem? A linguagem é? E se a linguagem não for nenhum ente?
A linguagem vige então como não ente? Ela vige como o ser vige? Como linguagem e ser
se referem um ao outro? Como o homem se refere à linguagem e a linguagem se refere
ao homem a partir da referência de ser e homem? Todas estas perguntas se erguem no
início de nosso curso, como convite a um percurso, isto é, a perfazer um caminho na
experiência da linguagem. É o que nos toca pensar neste exercício deste semestre.
242
Heidegger, Martin. Ciência e pensamento do sentido. Em: Ensaios e Conferências. Petrópolis/Bragança
Paulista: Vozes/Edusf, 2002, p. 58.
243
Idem, p. 60.
FENOMENOLOGIA COMO EXPERIÊNCIA DA LINGUAGEM
Normalmente, na filosofia moderna, a experiência costuma ser tomada como
uma forma de conhecimento. A experiência precede o conhecimento racional, isto é, o
pensamento discursivo (logos, ratio). Trata-se de um conhecimento pré-predicativo. É a
apreensão imediata de algo que nos é dado. Ela atesta, na sua imediatez, a presença do
experimentado (“em carne e osso”, diria Husserl). Nela se dá uma presentação do
experimentado e não uma mera presentificação de algo não acessível na sua imediatez
de sua presença. Por este modo de doação, a experiência possui uma evidência
privilegiada. A evidência da experiência é o saltar a vista de uma coisa ou estado de
coisas. É o vir à manifestação, no qual a coisa em questão se dá originariamente por si
mesma (fenômeno).
244
Kant interpreta o a priori transcendentalmente. Isto quer dizer: o a priori diz respeito não ao ser como
tal, mas ao conhecer como tal. Mas, não há um a priori de caráter ontológico? Temos experiência de algo
assim? Para Kant, um conceito pode ser empírico, se se obtém a partir da experiência, ou pode ser puro,
se é anterior a toda a experiência possível. O a priori é o que possibilita a experimentabilidade por parte
experiência do tempo e do espaço? Talvez o conceito de experiência seja um conceito
não unívoco, seja analógico, isto é, se aplique a diversos âmbitos com significações
diferentes, mas não disparatadas...
Num quarto momento, por fim, o ir de encontro, que lança mão de recursos de
observação e que examina pondo à prova, repetidamente, as conexões e relações dos
estados de coisa, visa a apreensão de determinadas regularidades do se-então. Este pôr
à prova da empeiria (experiência), portanto, lida sempre com o recurso da hypólepsis
(conjectura). A regra, a lei, porém, só aparece na conjuntura de uma mensuração.
Experimento só é possível onde se lida com a precisão de uma mensuração, partindo-se
de um projeto matematizante da natureza. Justamente este projeto é a condição para
a necessidade e a possibilidade do experimento. O simples lidar com fatos da
observação e com a mensuração ainda não constitui o experimento no sentido
moderno, mas, precisamente, o projeto de matematização da natureza. Assim, a
empeiria dos gregos, o experiri, a experientia e o experimentum dos medievais (p. ex.,
Roger Bacon), ainda não constitui o próprio do experimentalismo moderno.
Ao falarmos de experiência, aqui, vamos nos mover no nível mais amplo e
fundamental (o primeiro). Falamos, aqui, do empírico no seu sentido mais vasto e
originário. Significa, aqui, um ser atingido, afetado, pelo real, pelas realizações, pela
realidade. É algo como o “full contact” (contato pleno) de uma luta corpo a corpo. A
experiência se dá, aqui, como uma simples apreensão: “significa, portanto, perceber,
captar algo, de imediato e corpo a corpo, de cabo a rabo, de tal forma que esse algo,
aquilo que se capta, torne-se trans- (per) – parente (aparecente). Trata-se, pois, da
percepção simples, imediata, da coisa ela mesma: evidência”246. Experiência, aqui,
portanto, quer dizer a evidência corpo a corpo da e na vida em sua simplicidade e
imediatez, o seu modo de captação, a simples apreensão (ver simples). Experiência não
é, aqui, portanto, em nenhum sentido, experimento, uma vez que o experimentado é
sempre mediato e mediatizado247. Falamos de experiência, aqui, portanto, de
experiência em sentido pré-científico, no sentido do “mundo da vida” (Husserl), da
“experiência fáctica” (Heidegger). Mas, o que é, como é, o que aqui chamamos de
“experiência fáctica da vida”? O que é experienciar, aqui? O que é o experienciado?
Podemos dizer que, aqui, não se trata de experienciar um objeto, seja ele objetivo
(objeto-objeto), seja ele subjetivo (objeto-sujeito). Husserl fala, nas Meditações
Cartesianas, de experiência transcendental248. Aqui, o experienciar e o experienciado
246
Harada, Hermógenes. Fragmentos de pensamento humano-franciscano. Org.: Ênio Paulo Giachini.
Curitiba: Ed. Bom Jesus, 2016, p. 127.
247
Na pesquisa da ciência moderna, a experiência é subsumida a partir e dentro do projeto intelectual (o
matemático) e, assim, se transforma em experimento e se põe à disposição da formação de hipóteses e
teorias, em vista do conhecimento e do saber. Uma conexão de percepções e representações é submetida
a categorias. A experiência científica é experiência da experiência. Uma certa reflexividade, portanto, é a
condição de possibilidade para a experiência se constituir num experimento. Na ciência, nós não somente
fazemos experiências, mas fazemos experiências com nossas experiências, ou seja, experimentos.
Experimentos são experiências realizadas e controladas com vistas à observação, vale dizer, à decisão
acerca de determinadas perguntas, formuladas com base no projeto de determinadas teorias. A
reflexividade da experiência leva, por sua vez, a produzir instrumentos de expansão do raio da observação
(microscópios, telescópios, radar, etc) e a desenvolver um sensorium muito mais abrangente do que
aquele da sensibilidade cotidiana. A reflexividade da experiência exige, ainda, que se aperfeiçoe, do ponto
de vista qualitativo e quantitativo, as condições dos experimentos e que se alargue, cada vez mais, a
envergadura de seu âmbito. Como se pode ver, a experiência, no âmbito da pesquisa científica, adquire
contornos e determinações essenciais, fundamentalmente diferentes daquelas determinações e
contornos da experiência cotidiana do mundo da vida. O experimento é uma espécie toda própria,
portanto, de experiência, que se distingue qualitativa e decisivamente da experiência cotidiana, pois,
enquanto a experiência cotidiana é imediata, a experiência do experimento só pode acontecer graças a
diversas mediações.
248
Cfr. a segunda meditação, que se intitula, em alemão, “Freilegung des transzendentalen
Erfahrungsfeldes nach seinen universalem Strukturen”. A tradução de Pedro Alves diz: “Abertura do
são o mesmo. Somos nós mesmos. Trata-se da nossa vida como vida transcendental,
isto é, anterior a toda a objetivação. Heidegger propôs que a fenomenologia fosse uma
ciência originária, a saber, a ciência originária da vida, leia-se, da experiência da vida
fáctica249. A vida não é acessível como objeto. Ela é acessível naquilo que Heidegger
chama de “intuição hermenêutica”250. Esta não tem nada de teorética, no sentido usual
(de teoria científica). É uma apreensão que se dá na vida, a partir da vida, voltada para
a vida, como ela se doa, em si e por si. Ela se dá não como processo objetivante, mas
tem o caráter de acontecimento, de evento. O que nela se desvela não é objeto. É
situação, é mundo. A intuição hermenêutica se dá com o próprio viver a vida em seu
caráter de abertura de mundo, mais precisamente, de mundo histórico. “Intuir”
significa, aqui, “ver”. Trata-se de um “ver simples”. Este ver simples é um acontecer. É
“a própria presença, a própria abertura, a clareira que é o próprio experienciar, o próprio
vivenciar, o manifesto, a ‘aparescência’, o phainómenon: o Da-sein ou o ser-no-
mundo”251.
Nós não fazemos experiência. Talvez seja mais exato dizer que nós sofremos
experiência. Pois aquilo de que nós fazemos experiência sobrevém a nós, nos atinge e
atropela. Toca-nos. Faz-nos dar de cara e topar com ele. Nisso, nossos olhos se abrem.
Acontece a descoberta. Nós nos encontramos, então, afeiçoados desse ou daquele
modo com isso que nos atingiu. Entretanto, talvez seja melhor ainda dizer que o
essencial não é que nós fazemos nem que nós sofremos a experiência, mas seja dizer
que a experiência mesma se faz. O fazer-se da experiência não é nem ativo nem passivo,
mas é, antes, medial. A experiência é o medium no qual nós vamos nos transformando,
quer em fazendo quer em sofrendo. Essa transformação, no entanto, é uma
transformação que acontece num caminho, na destinação de uma história, na travessia
do viver. No caminho da experiência, nós afinamos e desafinamos com aquilo de que a
253
“Então elevou-se uma árvore! Pura Elevação! / Orfeu está cantando! / Uma grande árvore no ouvido!
/ E tudo silenciou! / Mas mesmo no silêncio unânime, / Nasceu novo princípio, gesto e transformação!” .
Cfr. Sonetos a Orfeu/ Elegias de Duíno. Petrópolis: Vozes, 1989, p. 20-21.
254
Heidegger, Martin. A caminho da linguagem. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora
Universitária São Francisco, 2003, p. 120.
experiência é experiência. Mas tanto o afinar-se quanto o desafinar-se se dá como busca
de dispor-se para receber o vigor essencial daquilo de que a experiência é experiência.
No nosso caso, queremos fazer uma experiência com a linguagem. Isso quer dizer:
queremos nos afinar com a linguagem, fazendo a travessia do caminho para ela.
255
Heidegger, Martin.Op. Cit., p. 120.
Experiência só se dá como caminho. É um caminhar a vida. É um “caminhar
bastante”. Da disposição de caminhar bastante um caminho nos fala um diálogo de
“Alice no país das maravilhas”. Trata-se de um diálogo entre Alice e o Gato da Duquesa,
o Gato de Cheshire, também conhecido como Gato Que Ri ou Gato Que Faz Careta256.
Ele se caracteriza por seu sorriso pronunciado e sua capacidade de aparecer e
desaparecer. Alice entabula uma insólita conversa com o Gato que dá a pensar.
256
Carroll obteve seu nome na expressão idiomática da língua inglesa "sorrir como um Cheshire Cat". É
representado nas figuras de Jonh Tenniel e considerado representativo da raça British Shorthair, devido
à forma da boca, considerada como um sorriso.
longas e um número respeitável de dentes, por isso ela
sentiu que devia ser tratado com respeito.
Vida humana é caminho: via e viagem – do útero ao seio da terra. Nesta viagem
e como viagem acontece a experiência. “Fazer uma experiência significa literalmente:
eundo assequi; no andar, estando a caminho, alcançar uma coisa, andando, chegar num
caminho”258. Na experiência como caminho há riscos, e, com o enfrentamento dos
riscos, desventuras e venturas. Neste sentido, toda experiência é risco, é um ser posto
à prova, uma tentação. Em grego, a palavra para o que nós chamamos de “tentação” é
“peirasmós”. A raiz é “per-” – a mesma que se dá, na língua grega, em “péras” (limite),
e no latim, em “experientia” (experiência) e em “peritus” (perito, experto). Ela acena
para o empenho de instalar-se no limite de uma paisagem, de percorrer uma via, de
seguir um envio, com suas vicissitudes e peripécias, a tentativa de uma busca, em que
acontece um ser exposto a riscos, um ser posto à prova, um ser tentado. Toda esta
dinâmica pode ser chamada de “experiência”. E toda experiência é “tentação”, pois, nela
257
Carroll, Lewis. Alice no País das Maravilhas. Porto Alegre: L&M Pocket, 1998, p. 83-84.
258
Heidegger, M. A caminho da linguagem, p. 130.
se inscreve tanto a tentativa quanto o risco, o perigo (per-iculum!), que esta tentativa
traz consigo. Esta tentativa-tentação-experiência tanto pode deslanchar, alcançar o que
ela almeja e ser bem-aventurada, feliz, quanto pode empacar, frustrar-se e resultar
infeliz, mal-aventurada. O homem que é bem-aventurado na travessia da experiência –
travessia em que ele tem de se afinar sempre de novo com o que o enviou nessa via e
viagem – torna-se um perito. Um perito é alguém que sabe, não de “ouvir falar”, mas
desde a experiência. O seu saber – que é um entender no sentido de entender-se com
e sem familiarizado com, um “ser do ramo” – surge de um conhecer que se dá “corpo a
corpo”, numa luta, num embate, num combate com a realidade, seus desafios e suas
adversidades. Este embate “corpo a corpo” constitui a vida do espírito.
Experiência é, pois, caminho. Viagem originária (Er-fahrung). Isso nos alerta para
reconsiderarmos o que significa fazer experiência com alguma coisa:
Nós buscamos, neste curso, nos dispor para uma experiência pensante da
linguagem. Há um texto de Heidegger que se intitula “Da experiência do pensar”. Numa
das suas anotações, somos advertidos para a dinâmica de risco, de perigo, da
experiência de pensar e da necessidade de paciência para suportar esta dinâmica: “Weg
und Waage / Steg und Sage / finden sich in einen Gang. // Geh und trage / Fehl und
Frage / deinen Pfad entlang. ”260. Uma outra anotação assinala que há uma diferença
que, para a experiência do pensar é fundamental: “Wenig sind erfahren genug im
Unterschied zwischen einem gelehrten Gegenstand und einer gedachten Sache”261 .
259
Heidegger, M. A caminho da linguagem, p. 137.
260
“Caminho e Balança / Senda e Saga / acham-se num passo // anda e suporta / Falta e Pergunta / ao
longo da tua senda.”
261
“Poucos são experimentados o bastante na diferença entre um objeto de erudição e uma coisa
pensada”.
Esta diferença precisamos levar em consideração no nosso propósito de pensar
a linguagem. Heidegger de novo nos adverte:
262
A caminho da linguagem, p. 122.
Entretanto, o que está em jogo na experiência pensante da linguagem? Vejamos:
13 de novembro de 2017
263
Zur Sache des Denkens. Tübingen: Max Niemeyer, 1988, p. 90. Cf. também Sein und Zeit, p. 38.
processo gerador de todas as estruturações de sentido. Em Husserl, a gênese
das estruturações de sentido se dá a partir do “ego transcendental puro”.
4) Pela redução transcendental todo o positivo se torna problemático
(ingenuidade transcendental). A redução transcendental põe em obra uma
neutralização de toda a thesis (posição de validade transcendente) do mundo
(físico e psíquico; real e ideal), realizando uma des-materialização, uma des-
substalização de tudo o que é objetivo. Nisso, reconduz toda a insistente
autonomia do objeto à sua gênese constitutiva, à fonte originante, isto é, à
vida intencional do eu transcendental, à evidência da auto-presença da
consciência, à sua mediação, isto é, a representação, na qual a imanência da
autoclarificação da presentação é a medida de todo o mundo, físico ou
psíquico, real ou ideal. A redução transcendental inibe toda apercepção
transcendente e sua validação. Ela “põe entre parênteses”, isto é, a
neutraliza e a toma como aquilo que ela é: um intencionar subjetivo que
opera um pôr validante (epoché)264. Também a alma (o anímico ou psíquico)
é submetida à redução transcendental. Isto é: o psíquico como algo que é ele
mesmo transcendente é neutralizado também. Essa epoché, mais do que
uma suspensão (da posição da apercepção transcendente e de sua validade),
é uma contenção da força do movimento transiente que se dá no acontecer
da vivência intencional, enquanto correlação de consciência-de-algo e o algo
de que a consciência é consciência. Esta contenção pode ser encarada como
a concentração para um salto. A redução transcendental é uma espécie de
salto, ou seja, de mudança de impostação da inteira forma de vida: da
positividade (vida positiva) para a transcendentalidade (vida transcendental).
5) A partir da redução transcendental, todo o fenômeno aparece como um
conteúdo cujo sentido é gerado a partir da vida transcendental intencional
da consciência. Aqui a investigação fenomenológica se torna constitutiva e
genética. Ela se centra na experiência intuitiva da verdade que se dá como
gênese de um determinado conteúdo constituído (nóema) a partir do
relacionamento do fenômeno como a vida transcendental da consciência e a
264
vivência que a cada vez se dá (nóesis). Todo conhecimento objetivo é o co-
nascimento disso que é conhecido com o cognoscente em sua vida
transcendental intencional. Os objetos (Objekte) se mostram na consciência
e para a consciência em suas mais diversas objetualidades (ex.: objetos-
coisas; objetos-anímicos; objetos-lógicos; objetos-valores; objetos-estéticos,
etc). O mundo dos objetos aparece como uma contextura, isto é, como uma
tecitura e uma tessitura de diferentes e variegadas modalidades de
objetualidades. Essas objetualidades constituem, por assim dizer, horizontes
dentro e a partir dos quais cada objeto vem ao encontro da consciência
transcendental como objeto deste ou daquele tipo objetual. Cada um desses
horizontes é constituído através de uma objetivação correspondente ao tipo
de intencionalidade que o gera em sua estruturação de sentido e o valida
deste ou daquele modo. O mundo é o horizonte de todos os horizontes dessa
experiência de aparecimento de objetos e objetualidades.
6) O passo ou a passagem (salto?) da fenomenologia em Husserl para a
fenomenologia em Heidegger se dá como uma mudança do lugar originário
do lógos do fenômeno: da consciência enquanto vida transcendental
intencional para a vida enquanto existência (ser-no-mundo, cuidado)265. A
fenomenologia se torna, aqui, ciência originária pré-teorética da vida. O
mundo se manifesta e se dá ao eu como horizonte de todos os horizontes de
aparecimento das coisas. As coisas que emergem como sendo no mundo e
como pertencendo ao nosso mundo circundante não aparecem como meros
objetos, mas sim como significâncias. A coisa intramundana não é uma mera
coisa, um objeto, que, por acréscimo, é apreendida como significativa para
isso ou para aquilo, recebendo um valor, mas o primário na aparição da coisa
intramundana é o seu caráter significável (das Bedeutsame). “Vivendo em
um mundo circundante, por toda a parte e sempre algo está se significando
para mim, tudo é mundano (welthaft), ‘mundifica’ (es weltet), o que não
coincide com o ‘valoriza-se’ (es wertet)” 266..
265
Cf. o confronto Husserl-Heidegger na elaboração da segunda versão do artigo para a Enciclopédia
Britânica (1928): HUA IX (phänomenologische Psychologie), 1962, p. 271-277.
266
Cf. Heidegger, Martin. Zur Bestimmung der Philosophie (GA 56/57) § 14, p. 73.
7) A vivência não é processo (psíquico), mas evento do viver267. O eu não é uma
coisa (psíquica), mas uma abertura de mundo. “Só no ressoar-com de cada
eu próprio é que se vivencia um algo mundano-circunstante, é que acontece
mundo, e onde e quando acontece mundo para mim, eu estou de alguma
maneira bem ali, juntinho”268. A vivência se dá como um evento originário da
vida. Ela não é um processo psíquico; não é objeto. Ela é um evento que, à
medida que acontece e se manifesta, faz aparecer o eu como um si-mesmo
próprio que tem seu acontecer e sua manifestação juntamente na vivência e
com a vivência – este eu que vibra junto com a vivência, oscila junto com ela,
cada vez numa determinada afinação e num determinado modo. O ser da
vivência não é nem físico nem psíquico). A vivência é evento da vida269. Ela
se ergue desde e se funda no fundo-abismo da vida. O caráter de evento
(Ereignischarakter) da vivência está, assim, a cada vez e sempre de novo, em
correspondência com o caráter de significância daquilo que lhe aparece
como o vivenciado. Vida quer dizer, aqui, porém, existência. Aqui a palavra
“existência” é restrita ao modo de ser da vida humana (Bíos). Diz o
“ontologicum” (o recolhimento do ser) do humano. Quer dizer ponto-de-
salto, irrupção, abertura de mundo, clareira do desvelamento do sentido de
ser, o franquear da responsabilidade livre e criativa pelo sentido
(manifestatividade) do ser.
8) O passo e a passagem da fenomenologia de Husserl para a fenomenologia de
Heidegger se dá como uma mudança de lugar (Ortsverlegung) do lógos do
fenômeno270. Nessa mudança, o foco de toda a evidência da relação
significativa do fenômeno com o homem se transfere da consciência para a
“aberta” ou a “clareira” (Lichtung) do ser, isto é, para a amplidão aberta (die
offene Weite) do ser, em que o ser humano, fundamentalmente, recebe a
267
Cf. Heidegger, Martin. Zur Bestimmung der Philosophie (GA 56/57) § 15.
268
Zur Bestimmung der Philosophie, Gesammtausgabe – Band 56/57. Frankfurt am Main: Vittorio
Klostermann, , 1987, p. 73.
269
Zur Bestimmung der Philosophie, Gesammtausgabe – Band 56/57. Frankfurt am Main: Vittorio
Klostermann, , 1987, p. 75.
270
Heidegger, Martin. Seminare (GA Band 15). Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1986, p. 385.
Trata-se, aqui, de um pronunciamento de Heidegger, no Seminário de Zähringen, acontecido 6 e 7 de
setembro de 1973.
possibilidade de, cada vez no envio de uma travessia, se deixar encaminhar
neste ou naquele rumo, e, assim, de maneiras diversas, chegar às coisas que
lhe concernem271. A consciência se funda nesse ser-na-amplidão-aberta-do-
ser que Heidegger chama de Da-sein. Essa amplidão aberta do ser na qual o
homem encontra a sua morada é também chamada de Clareira do ser. A
consciência está enraizada na clareira do ser e não vice-versa. Existência quer
dizer, neste sentido, in-sistência na abertura do desvelamento do ser272.
9) Na fenomenologia da consciência, a vigência e a presença do ente se dão ao
modo da objetualidade (Gegenständlicheit) do objeto. O que vem ao
encontro do homem no espaço aberto do ser-no-mundo é, neste horizonte,
apreendido e compreendido como objeto (Gegenstand). A relação
significativa do ente com o homem se determina, aqui, a partir do horizonte
de compreensão do ser como objetualidade. Objeto é o fenômeno do ente
(do vigente-presente) enquanto se dá para, na e pela consciência. É para a
consciência que todo objeto se doa em sua objetualidade. É no medium da
consciência intencional que todo objeto se deixa apreender e compreender
como objeto em sua objetualidade típica, específica, ou no horizonte da
objetualidade em geral. O objeto, no entanto, é constituído enquanto tal
mediante a representação (Vorstellung). É em virtude da representação que
a presença do objeto pode se dar. É a representação que põe o objeto como
objeto diante da consciência, como algo que lhe está contraposto
(gegenüber) 273. É em virtude do cogito que o objeto aparece na forma de um
cogitatum: o percebido para um perceber, o recordado para um recordar, o
imaginado para um imaginar, o amado para o amar, o odiado para o odiar,
etc. Assim, na fenomenologia da consciência, o ente só pode ser o nóema de
uma nóesis. O ente só se torna presente como ob-jeto, isto é, como o “Stand”
(o posto, o status) do “gegen” (contra, verso, adverso), como “Gegenstand”
(o contraposto, o adverso).
271
Idem, p. 380.
272
Cf. Heidegger, Martin. O retorno ao fundamento da metafísica. In: Conferências e escritos filosóficos
(Pensadores). São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 82.
273
Cf. Heidegger, Martin. Seminare (GA Band 15). Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1986, p. 386.
10) Na fenomenologia da aberta do ser, porém, a visada intencional torna-se um
“schlichtes Sehen” (simples ver). O que se deixa apreender neste simples ver
não é objeto (que implica a mediação de uma representação), mas é o ente
mesmo em carne e osso (leibhaftig). A doação viva, “em carne e osso”, “em
pessoa”, do ente ele mesmo é o grau maior de intensidade e pregnância da
claridade intuitiva em que o ente irrompe e emerge na clareira do ser. É o
“terminus ad quem” de toda a plenificação de um intencionar vazio. É nela
que se dá a experiência de uma evidência originária. Podemos chamar a
simples apreensão de percepção (em sentido amplo). Na fenomenologia da
consciência, por exemplo, um sapato é um exemplo de aparecimento de um
objeto sensível. Na fenomenologia da clareira do ser, porém, um sapato é
uma coisa (Ding). Nesta fenomenologia, o ser-no-mundo (In-der-Welt-sein) é
o modo primário de encontro (Begegnung) com o ente. O ser-no-mundo
aparece como faktum primordial, não derivado, prévio a toda a apreensão
da consciência274. No horizonte de compreensão do ser-no-mundo o sapato
é apreendido como sapato, na percepção natural, isto é, na percepção
congênere ao ser-no-mundo, em que o relacionamento perceptivo se dirige
à coisa percebida, se orienta para ela, no uso, neste caso, no calçar. Aqui a
coisa, em sua significância mundana, presenta-se e apresenta-se, vindo ao
encontro, no uso, no manuseio, na lida, e, assim, é compreendida como o
ente que ela é não no horizonte do ser simplesmente dado (Vorhandenheit),
mas sim no horizonte da manualidade (Zuhandenheit). Essa compreensão de
ser operativa que se dá na realização mesma da ocupação (Besorgen)
pertence ao ser-no-mundo, à facticidade deste faktum primordial, que, por
sua vez, pertence à “cura” (Sorge), em que se funda a constituição ontológica
do homem, do humano, da humanidade.
11) A intencionalidade se abre, assim, como ser-no-mundo, que, por sua vez, se
abre como clareira do ser. Objeto enquanto “Objekt”, objeto enquanto
“Gegenstand” e coisa (Ding) enquanto coisa-de-uso que se dá no horizonte
da manualidade (Zuhandenheit) são como que gradações de concreção, de
274
Cf. Heidegger, Martin. Seminare (GA Band 15). Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1986, p. 372.
pregnância e de intensidade da clarificação da presença/vigência do ente na
clareira do ser. O objeto enquanto Objekt resulta de uma objetivação
teorética. É desmundanizado e desvitalizado. É algo como um nó em que se
dá a junção ou o entrelaçamento de diferentes fios de uma rede funcional. O
objeto enquanto Gegenstand é algo mundano, se constitui num lance de
abertura do mundo da vida. Na época da funcionalidade técnica, porém,
tanto o objeto enquanto Objekt quanto o objeto enquanto Gegenstand
tendem a se transformar em dispositivo275. Entretanto, o Gegenstand pode
se transformar em coisa (Ding). Neste caso, o Gegenstand se dá como
reunião da abertura de uma paisagem (Gegend). A intencionalidade agora
275
Na época da técnica a presença do ente já não é a presença como vigência no desvelado, não é nem
mesmo mais a presença do ente no sentido da presença-objetual, que se dá na e para o representar
(vorstellen), mas sim a presença do que está posto em função de uma disponibilidade, do que está a
postos para um desencobrimento desafiador (herausfordernden Entbergen), que explora, isto é, extrai
do encobrimento o que quer que seja, predispondo-o para ser processado, estocado, encomendado,
enfim, empregado. É o real como encomenda; a realidade como encomendabilidade, conforme o famoso
texto intitulado “Die Frage nach der Technik” (A questão da técnica), de 1953 (cfr. VA, p. 18-23). Neste
texto, Heidegger já advertia o fim do objeto (Gegenstand). O real já não é mais caracterizado em sua
presença como o que está contraposto ao ego como objeto de representação (Gegestand ou Objekt), mas
sim como o que está assegurado e sob controle, a postos para ser empregado, enfim, o que se dá numa
disponibilidade para uma efetividade (Bestand). Em uma conferência dada por Heidegger em 30 de
outubro de 1965, por ocasião de celebrações em honra de Ludwig Binswanger, que fora publicada em
1984 sob o título “Zur Frage nach der Bestimmung der Sache des Denkens” (Para a questão da
determinação da coisa do pensar), Heidegger adverte que, em sua consumação, a filosofia se dissolve em
ciências autônomas, da natureza e da história, e que a cibernética exerce em relação a estas um papel
unificador, não no sentido de uma ciência fundamental, mas sim no sentido de uma unidade
rigorosamente técnica. E acrescenta: “a cibernética é predisposta (eingestellt) para preparar e fabricar
(bereit- und herzustellen) a perspectiva sobre os processos comumente controláveis” (FC p. 32). No texto
de 1965, Heidegger retoma esta transformação ontológica. Ele diz: “entrementes, porém, a presença
daquilo que é presente perdeu também o seu sentido de objetividade. Aquilo que é presente diz respeito
ao homem de hoje como algo que se pode sempre empregar” (FC, p. 35). Ora, o que é empregável é
empregável para quem? Para os homens individuais, que enquanto sujeitos se contrapõem aos objetos?
A resposta é: não. É empregável para o ser-um-com-o-outro e o ser-um-para-o-outro da sociedade. Seria,
então a sociedade, o nós, o novo sujeito? Também não. Na verdade, o homem, quer como indivíduo, quer
como sociedade, quer, ainda como humanidade da civilização planetária da técnica, está ele mesmo posto
no pertencimento à disponibilidade. Não só no sentido de que ele mesmo e tudo o que é humano é posto
como recurso a ser explorado e empregado em vista da eficiência, mas também no sentido de que o
homem é chamado a participar deste modo de desencobrimento, empreendendo a empreitada da técnica
(cfr. VA, p. 22). Em um texto de 1969 (quando Heidegger tinha completado 80 anos), ele diz: “o homem
de hoje pensa que se faz a si mesmo e às coisas às sua volta. Não lhe chega nem lhe é acessível que a
encomendabilidade do acervo constante de encomendas em estoque não seja senão um destino velado
do que os gregos pensaram como a vigência do vigente” (MH, p. 54). O fim da objetividade é também o
fim da subjetividade? O que é da subjetidade no fim da subjetividade? Outra forma de subjetidade
substitui a subjetividade? Ou, com o fim da metafísica, chega ao fim também toda forma de subjetidade?
Em que tudo isso desemboca? No nada? Ou o declínio (Untergang) em que finda o dia ocidental de dois
milênios e meio é o acontecer de uma derrocada (Niedergang) ou é o apelo para uma passagem
(Übergang) que requer uma outra vigência do homem, aberta para uma outra parusia do ser?
aparece não mais como consciência de, mas sim como o orientar-se em um
mundo, para dentro das cercanias de uma paisagem, uma in-sistência para
dentro de uma região fenomenal mundana, enfim, intencionalidade é, aqui,
ser-no-mundo, sendo que este ser-em é habitar, cuidar. O Gegenstand, por
exemplo, um buriti, vem ao encontro como concentração pregnante do
horizonte de toda uma paisagem. O Gegenstand pode ser, neste sentido,
tanto uma coisa no sentido de ente natural () quanto no sentido de
ente produzido pela inventividade humana (). O Gegenstand passando
a ser coisa (Ding) já anuncia, pois, o horizonte do uso e da práxis276. Aqui a
coisa (res) é o real (realis) enquanto concerne ao homem em seu mundo,
tomado, agora, no sentido da contextura do cuidado (ocupação, solicitude).
O sentido de ser passa do que é dado ante à mão (Vorhandenheit) para o que
é dado à mão (Zuhandenheit). Em todo o caso, aqui, o Gegenstand aponta
para a existência humana enquanto ser-no-mundo, quer dizer, enquanto
cuidado (Sorge).
12) Na verdade, todo algo (etwas), seja ele objeto no sentido de Objekt, seja ele
objeto no sentido de Gegenstand, ou mais propriamente uma coisa (Ding),
se dá numa significância e, enquanto tal, pode fazer aparecer, em maior ou
menor grau de intensidade, o seu caráter mundano, tomando-se mundo,
aqui, no sentido de mundo da vida, ser-no-mundo. No entanto, nas
variedades do “algo” enquanto objeto Objekt, objeto Gegenstand e coisa
(Ding) há justamente uma gradação crescente no indicar e no deixar aparecer
mundo e vida (existência). A percepção natural de uma coisa, por exemplo,
um sapato, entrevê no sapato uma concentração de mundo, a saber, do
276
Os gregos tinham vários nomes para nomear estas “regiões de coisas”. Vejamos. Primeiramente, “tà
physiká”: as coisas da “physis”, do surgir e eclodir – são as coisas que surgem e eclodem por si mesmas,
“naturalmente”. Em segundo lugar, “tà poioumena”: as coisas da “poíesis”, da produção – são as coisas
que são produzidas, isto é, que são trazidas à presença, à medida que são feitas, manufaturadas,
fabricadas pelas mãos dos homens. Em terceiro lugar, vêm “Tà chrémata”: as coisas da “chréia”, do uso –
são as coisas enquanto estão sendo usadas, enquanto estão “à mão” (cheír). Estas, por sua vez, podem
ser tanto “tà physiká” quanto “tà poioumena”, contanto que sejam tomadas na perspectiva do uso, isto
é, da utilidade, do emprego (chresis), do prestar para isso ou para aquilo, da necessidade (chreón). Em
quarto lugar, “tà prágmata”: as coisas da “práxis” – as coisas que se dão na ação. O “prattein”, agir, se
diferencia do “poiein”, fazer, pôr em obra. É que, na ação, o fazer é um perfazer-se daquele que age, de
um modo ou de outro, num sentido ou noutro. O pôr em obra é, na verdade, um pôr em obra a si mesmo.
Na ação, o homem é o poeta e o poema de si mesmo, de sua liberdade.
mundo circundante, do mundo compartilhado da convivência, do mundo
próprio do seu usuário.
13) Na verdade, a palavra “coisa” oscila em sua significação. Pode significar, em
sentido amplo, qualquer coisa (res, aliquid), no sentido do ente, isto é, do
que não é nada. “Coisa” pode significar, em segundo lugar, o que está a cada
vez em causa, em questão, no cuidado humano: aquilo que nos concerne e
nos interessa e nos interpela deste ou daquele modo. Por fim, “coisa” pode
significar também aquilo que está ao alcance da mão e à mão, quer como
coisa da natureza, quer como coisa da inventividade humana277.
14) Na tradição ocidental, a coisalidade da coisa foi interpretada a partir da
categoria de substância. No nosso realismo ingênuo, esta interpretação,
defasada, faz aparecer a coisa como suporte de propriedades. Assim,
supomos a substância como o núcleo de uma coisa, imutável, resistente, que
é suporte para suas características casuais, os acidentes278. Prescindindo
mesmo da ingenuidade transcendental desse realismo, pode-se indagar se
esta interpretação da coisalidade da coisa seja tão natural e evidente quanto
pretende, se não seja antes um ataque a ela279. É uma interpretação ampla e
distanciada das coisas, que não as deixa aparecer na sua concretude,
espontaneidade e proximidade.
15) Uma outra intepretação da coisa a propõe como um “aisthetón”, isto é, como
o que é perceptível nos sentidos da sensibilidade, através das sensações.
Nesta interpretação, a coisa nada mais é do que a unidade de uma
multiplicidade do dado nos sentidos280. No entanto, por mais evidente que
parece ser esta interpretação, também parece não deixar ser a coisalidade
da coisa tal como a experimentamos no cotidiano. Na percepção natural
(cotidiana) das coisas jamais percebemos primeiramente uma afluência de
sensações, mas percebemos a cada vez esta ou aquela coisa em sua
significância mundana (por exemplo, não ouvimos ruídos, mas ouvimos o
277
Cf. Heidegger, Martin. Die Frage nach dem Ding, p. 3-5 (O que é uma coisa? P. 16-18).
278
Heidegger, M. A origem da obra de arte. Lisboa: 1977, p. 16.
279
Idem, p. 17.
280
Idem, p. 18.
cantar do pássaro, o roncar do motor de um carro, etc.). “Muito mais próximo
do que todas as sensações estão, para nós, as coisas”281.
16) Enquanto a primeira interpretação mantém a coisa muito distanciada de nós,
a segunda a faz vir excessivamente sobre nós. Em ambas as interpretações,
a coisa desaparece. “A coisa deve deixar-se no seu estar-em-si. Deve
apreender-se no caráter de consistência que lhe é própria”282.
17) Uma terceira interpretação da coisalidade da coisa na tradição ocidental
toma a coisa como matéria enformada (hýle + morphé). Nesta intepretação,
a coisa nos interpela através de seu aspecto (eidos). Mas também esta
interpretação contém um ataque à coisa em sua coisalidade. Ela é tirada do
âmbito da fabricação – neste sentido, ela corresponde à coisa enquanto
instrumento ou apetrecho – e estendida a toda e qualquer coisa, também à
coisa da natureza. É uma interpretação técnica da natureza.
18) Estes três modos tradicionais de interpretar a coisalidade da coisa acabam,
pois, barrando o acesso ao que pretendem deixar e fazer acessar. Não deixam
a coisa repousar no seu ser-coisa283.
19) Na última interpretação, o instrumento e seu ser, a sua instrumentalidade,
que reside, fundamentalmente, na serventia, serve como fio condutor para
se pensar a coisalidade da coisa.
20) A coisalidade da coisa se deixa ver, na imediatez do uso, como uma reunião
ou concentração de um horizonte do ser-no-mundo. O ser-em, porém, do
ser-no-mundo é, fundamentalmente, habitar e cuidar. É em habitando e
cuidando que o homem rege e sustenta a abertura de mundo na qual ele
insiste. Um exemplo de como uma coisa de uso reúne e concentra a abertura
de mundo na leitura que Heidegger faz de uma pintura de Van Gogh que
apresenta um par de sapatos de camponesa.
Da abertura escura do interior gasto do artefato
para calçar, fita-nos a canseira dos passos da labuta. No
peso rude e elementar dos sapatos está retida a
tenacidade do lento caminhar pelos sulcos que se
estendem até longe, sempre iguais, pelo campo, sobre o
281
Idem, p. 19.
282
Ibidem.
283
Idem, p. 23.
qual sopra um vento agreste. Sobre o couro, jaz a
umidade e a fertilidade do chão. Sob as solas, arrasta-se
a solidão do caminho do campo, pela noite que cai. No
artefato para calçar, pulsa o apelo calado da terra, a sua
silenciosa oferta do grão maduro e a sua inexplicável
recusa na desolada improdutividade do campo invernal.
Por este artefato passa o calado temor pela segurança do
pão, a silenciosa alegria de vencer uma vez mais a miséria,
o estremecimento na chegada do nascimento e o frêmito
ante a ameaça da morte. À terra pertence este artefato e
no mundo da camponesa ele está abrigado. É a partir
desta abrigada pertença que surge e se firma o próprio
artefato, para o seu repousar-em-si-mesmo.
21) A coisa anuncia o mundo nela mesma. Ela, em seu caráter de confiabilidade,
repousa na familiaridade do mundo. Não só isso. Ela deixa ser o embate de
mundo e terra. O embate ou combate é constituído pela reunião de
opostos285. Mundo, aqui, não é a simples reunião das coisas que ocorrem,
nem é a totalidade das coisas reais ou possíveis, contáveis ou incontáveis,
conhecidas ou desconhecidas. Também não é uma mera moldura espaço-
temporal para as coisas. Nós dizíamos, anteriormente, que a vida está
sempre acontecendo, que o mundo está sempre se tornando evento. O
284
A origem da obra de arte. Tradução diferente das versões editadas.
285
Cf. Heráclito: o Hen Panta (Um: Tudo) como Pólemos (combate, confrontação) e como Lógos (colheita,
reunião).
mundo está sempre mundificando. E este mundificar do mundo não é nunca
apreensível a modo de objeto. Contudo, em tudo que nós apreendemos, em
cada percepção, de modo concomitante com a apreensão, dá-se o instaurar-
se do mundo. Com efeito, a coisa que a apreensão da percepção apreende é,
cada vez, apreendida como coisa do mundo. O mundo não é objeto da
apreensão, mas é o horizonte no qual e à mercê do qual eu posso captar a
coisa enquanto tal. Ademais, o mundo é sempre mundo da vida: é historial.
O mundo é prenhe de sentido. Nele vibram as experiências humanas:
nascimento e morte, alegria e dor, desgraça e benção, vitória e derrota,
miséria e abundância. O mundo está acontecendo ali onde estas
experiências, ou seja, as experiências da vida, estão se dando e isto de modo
historial. Onde estão em jogo as decisões essenciais da nossa história, onde
estas são tomadas ou deixadas, assumidas ou questionadas, ali o mundo está
se dando. O mundo é a abertura que se abre dos vastos caminhos das
decisões simples e essenciais no destino historial de um povo. O mundo só
surge com o ser historial do homem. Entretanto, o homem, assim como todos
os seres vivos e tudo o que surge e vem à luz a partir do chão, onde estão
radicados e fundados, é filho da terra. A terra fala do mistério da origem. Faz
surgir e vir à luz gratuitamente pedras e plantas, animais e homens e, como
se tomada de pudor e humildade, se retrai em si mesma. Numa tal ocultação,
porém, a terra recolhe a raiz de todas as coisas e lhes dá guarida e proteção.
22) Mundo e terra são essencialmente diferentes um do outro e, todavia,
inseparáveis. Fundamentalmente, está sempre vigorando um combate entre
mundo e terra. Com efeito, o mundo aspira, no seu repousar sobre a terra, a
sobrepujá-la. O mundo quer a abertura, o desvelamento, a claridade. A terra,
porém, como aquela que gera e dá guarida, quer conter em si o mundo, quer
retê-lo, e ama o esconder-se, a ocultação, o velamento, a obscuridade do
mistério. Mas é por graça deste combate que o mundo permanece mundo e
a terra permanece terra. Neste combate eles não se destroem, mas cada um
faz surgir o outro na sua identidade e diferença. De fato, um precisa sempre
do outro. A terra não pode renunciar ao aberto do mundo, caso ela queira
permanecer o que é: a matriz, a geratriz e a protetora de tudo o que vem à
luz no aberto do mundo. Por sua vez, o mundo não pode nunca libertar-se da
terra, carece de sempre de novo lançar raízes na obscuridade originária de
onde provém e para onde retornam todos os nossos empenhos e
desempenhos historiais. Em cada coisa está se dando o combate de mundo
e terra. Quanto mais forte for este combate, tanto maior a intimidade dos
combatentes; e tanto melhor para coisa: pois a coisa vige a partir da vibração
do acontecimento do mundo e a partir da geração e da proteção da terra.
23) O homem sustenta a abertura da clareira do ser na qual ele insiste no modo
de um habitar e cuidar. Habitar é o modo como os mortais são e estão sobre
a terra sob o céu, vivendo em comunidade, em face dos deuses286. Mortais
são os homens, porque morrem. Morrer, aqui, porém, é ser capaz da morte
como morte. Por ter que morrer um dia, o homem tem que morrer todo o
dia, isto é, tem que sustentar a mortalidade que marca a sua vida, a cada
momento. Os mortais habitam à medida que salvam a terra, acolhem o céu
como céu, aguardam os deuses como deuses, procuram se tornar capazes da
morte como morte. Habitar é resguardar a abertura deste quarteto.
Habitando, o homem aprende a morar e a demorar na proximidade das
coisas287.
24) A coisa vige como a reunião integradora do quarteto. Tomemos o
exemplo de uma jarra.Como se mostra a coisalidade da coisa, no caso da
coisa-jarra?
25) Ali está a jarra, recém saída das mãos do oleiro. Ela subsiste em si e por si
mesma só porque, na pro-dução, ela foi con-duzida a ser e estar em si
mesma. O oleiro moldou a jarra com a argila que fora tirada da terra e
preparada para a moldagem. A jarra é feita de argila. A argila ganhou uma
consistência e uma forma e, graças a isto, a jarra pode pousar, seja sobre o
chão, seja sobre a mesa ou em um banco. A jarra é uma coisa, como
receptáculo. A jarra fora produzida por ser e para ser este receptáculo que
ela é destinada a ser. A pro-dução intro-duz a jarra no seu modo próprio de
ser. Mas, uma vez produzida a obra, a produção deixa a coisa ser o que ela é,
286
Heidegger, Martin. Construir, habitar, pensar. In: Ensaios e Conferências, p. 128-129. (Texto de 1951).
287
Idem, p. 129-131.
deixa-a subsistir em si e por si mesma. A coisa como obra produzida, porém,
só vigora plenamente em seu ser quando posta em uso. Um receptáculo é
determinado como tal a partir do seu uso: o receber. É por isso que o oleiro,
ao moldar a argila, deu à sua obra a sua forma devida, forma esta
caracterizada pelo vazio. Com efeito, o vazio da jarra está em função da sua
serventia: do receber. O vazio da jarra recebe, acolhendo e retendo em si
mesmo o que nele se vaza. O receber da jarra é, por conseguinte, também
um doar. A jarra cumpre sua serventia em receber, mas este cumprir uma
serventia, recebendo, é já o modo como a jarra se doa em seu ser. O doar-se
da jarra recolhe em si o receber da vaza no seu duplo significado. A doação
da jarra acolhe e recolhe a doação da vaza. A doação da vaza pode ser uma
bebida. Então ela dá água, dá vinho para beber:
288
M. HEIDEGGER, VA, p. 164-166.
Quando dizemos céu, já pensamos também, caso
pensemos, nos outros três, a partir da simplicidade dos
quatro.
Uma resposta a esta pergunta, que se apresenta logo de cara, poderia ser
extraviante para nós. Trata-se de dizer que, no seu imediato vir ao nosso encontro
no horizonte do mundo da experiência da vida, as coisas são aquilo que nós temos
diante de nossa vista, que podemos ouvir, tocar, etc. A coisa seria o perceptível
através dos sentidos, o sensível da nossa sensibilidade. Até aí nada de errado.
Porém, uma tentação seria dizer que a coisa nada mais é do que uma unidade de
uma multiplicidade de dados sensoriais ou sensações. Esta unidade pode ser uma
soma, uma síntese, ou ainda outras espécies de totalidade. Contudo, se formos nos
confrontar com a nossa experiência efetiva das coisas reais, com a nossa vivência
cotidiana da percepção e com aquilo que nela é vivenciado, não encontraremos
algo como a unidade da multiplicidade de sensações. Jamais, no dar-se imediato
das coisas, nós percebemos, primordial e propriamente, uma afluência de
sensações. Nós não ouvimos, por exemplo, sons ou ruídos, ouvimos a chuva que
cai sobre o telhado fazendo um barulhinho bom, ouvimos o vento furioso a
envergar as árvores lá fora, ouvimos um samba, que toca na casa do vizinho ao
lado, numa tarde de domingo, ouvimos o ônibus que passa às cinco e meia da
manhã começando mais um dia de trabalho, numa plena e penosa segunda-feira.
Seria preciso uma atitude teorética e abstrata para ouvir meras sensações acústicas.
Isto significa que, muito mais próximo do que todas as sensações estão, para nós,
as próprias coisas. Mas esta proximidade é enigmática. Se queremos entendê-la,
será preciso deixar que a coisa seja o que ela é, que ela repouse no seu ser-em-si e
se mostre como aquilo que ela é289.
289
Cfr. M. HEIDEGGER, Holzwege (HW), Vittorio Klostermann, Frankfurt am Main, 1994, p. 10-11.
agora, são as coisas que usamos, produzimos... Queremos, pois, determinar a
coisalidade destas coisas. Queremos determinar o ser deste ente que, certamente,
não é um ente simplesmente dado, mas um ente que está à mão, no uso, na
produção, no cultivo, no trato, etc. Aqui, devemos nos abster de tomar o caminho
da compreensão do ser destas coisas como entes simplesmente dados, como
substâncias, como suportes de propriedades, ou seja, como entes dotados do caráter
de substancialidade, materialidade, extensão, duração, pois tais categorias já
supõem uma desmundanização destas coisas, uma modificação radical no modo
de compreendê-las no seu ser coisa, compreensão que é sempre derivada, menos
originária.
Os gregos chamavam as coisas que se nos dão, que vêm ao nosso encontro
na lida cotidiana, /prágmata, ou seja, aquilo com que se lida na
práxis, no empenho do viver, ou seja, na ocupação. Elas não são meras
coisas. São coisas de uso, são instrumentos, tomando-se esta palavra num sentido
bastante amplo. Aqui, por instrumento designamos todo e qualquer ente que vem
ao encontro na ocupação290. No nosso cotidiano, estamos continuamente fazendo
recurso a instrumentos, ou seja, àquilo que podemos usar desta ou daquela forma,
àquilo que produzimos deste ou daquele modo. Encontramos, em nosso mundo
circunstante, instrumentos dos mais diversos tipos: coisas que servem para
produzir outras coisas; coisas que servem para suprir nossas necessidades básicas:
alimentar-se, vestir-se, morar; coisas que servem para escrever, para se locomover,
para se divertir, para se informar. Tudo aquilo que, de certo modo, serve para isto
ou para aquilo cai debaixo do nosso conceito de instrumento, não só as
ferramentas.
290
Cfr. M. HEIDEGGER, SZ, 66-72.
291
Todo o comportar-se com o, à medida que é intencional, visa o ente, de algum modo. Visando-o,
compreende-o e interpreta-o como isto ou aquilo. Todo comportamento, em seu caráter intencional, é,
pois, um ter-em-mira-alguma-coisa, uma visão ou vidência, que deixa vir à luz a coisa na sua significância.
O lidar com o instrumento, deste modo, não é cego, mas possui sua própria visão. A vidência da lida com
um instrumento não significa tê-lo diante de mim como uma ocorrência, visualizá-
lo como tal, descrever suas configurações ou suas propriedades. Perceber um
instrumento significa “senti-lo” no seu próprio uso. Assim, se vou a uma
concessionária e observo um carro que está ali na vitrine eu ainda não o percebi
propriamente, mas só de modo impróprio. Mas se faço um “test-drive” já começo
a percebê-lo no próprio uso. Portanto, o modo próprio de perceber uma coisa de
uso é usando-a.
as coisas do nosso mundo circunstante, nós chamamos de circunvisão. Esta difere, radicalmente, da
vidência da observação da coisa como mera coisa, ou seja, como ser simplesmente dado, a qual nós
chamamos de visualização. Já a vidência daquilo que constitui o dar-se da vida mesma no seu aparecer
originário, nós chamamos de transparência. Cfr. M. HEIDEGGER, SZ, 69.
totalidade instrumental um instrumento sempre remete a outro, algo sempre possui
uma referência para com algo. É a partir da pertinência a outros instrumentos que
eu apreendo um instrumento. Instrumentos para escrever: caderno, caneta, lápis,
borracha, computador, mesa, luminária, quarto. Como? Quarto? Isto pode causar
estranheza, mas o quarto aqui não é o “vazio entre quatro paredes” preenchido por
muitas coisas de uso. O quarto, enquanto meu ambiente de trabalho, enquanto o
ambiente onde eu estudo e escrevo é o primeiro que me vem ao encontro dentro
de meu mundo circunstante, no meu empenho, na minha ocupação com o escrever.
É a partir dele que as coisas estão arranjadas deste ou daquele modo, para servir a
isto ou aquilo. Antes de perceber instrumentos singulares eu percebo tais arranjos
dentro do meu ambiente de trabalho, onde me movo em minhas ocupações.
O lidar com as coisas não as apreende como coisas que apenas ocorrem num
espaço vazio e homogêneo por elas preenchido. Percebe as coisas, os arranjos de
coisas e os espaços de modo diferenciado, pleno, concreto a partir do interesse do
próprio empenho. Quanto menos eu olho um instrumento de fora, tanto mais eu o
percebo. Quanto mais íntima é a minha relação com um martelo, por exemplo,
mais ele se descobre para mim no seu uso. “Ter intimidade com uma coisa”
significa ter habilidade no saber usá-la. É no manuseio que a coisa se descobre
propriamente para mim. O instrumento se descobre na sua “manualidade”, ou seja,
como o que se dá propriamente “estando à mão”. O ser-em-si do instrumento só se
revela quando eu o percebo operativamente, no uso e na vida. O ver de fora o
instrumento, ou seja, fora da ocupação com ele, o visualizá-lo teoricamente não
descobre propriamente o instrumento na sua instrumentalidade, ou seja, a partir do
seu caráter de ser “à mão”. Contudo, o lidar com a coisa não é cego: tem a sua
própria visão, uma visão que é circunvisão. A circunvisão dá, ao lidar com o todo
instrumental, a necessária segurança, a habilidade no manuseio, a praticidade no
uso. É que a atitude prática não é “ateórica”, no sentido de ser desprovida de visão.
A práxis possui sua própria teoria: o agir possui sua própria visão; e isto não em
virtude da aplicação de um saber teorético, mas graças à teoria que faz parte da
própria práxis, teoria que é operativa, que não precisa ser tematizada reflexiva ou
teoreticamente para ser atuada. A práxis não é desprovida de teoria, da mesma
forma que a teoria não é desprovida de práxis, de ação, de empenho, de ocupação.
Ademais, toda obra, que vem à luz num produção, possui um “para que”. O
sapato é produzido para ser calçado, a roupa para ser vestida, a casa para ser
habitada, o relógio para se ler o tempo, e assim por diante. Tudo o que entra na
configuração da obra está a serviço do seu “para que”. Peso ou leveza, dureza ou
maciez, forma e cor, tudo se define em vista do melhor uso. Aquilo que, numa
visualização da coisa como um ente simplesmente dado, se define como
propriedade, numa visão operativa da produção da coisa se mostra como
peculiaridades exigidas pelo próprio uso.
Toda obra tem, outrossim, o seu “de que”. A produção de uma obra já é
sempre o emprego de algo em algo. Toda obra nos remete aos “materiais” de que
é feita: o sapato é de couro; a casa é de tijolo; o livro é de papel; o armário é de
metal. Tudo isto nos remete à natureza: aos animais e plantas, à terra com seu solo,
com seus metais, com suas florestas, com seus rios e mares, ao fogo e ao ar. A
natureza se descobre, no cotidiano, a partir do mundo da vida, ou seja, a partir das
ocupações através das quais nós produzimos aquilo que é necessário para o nosso
uso. A mata se descobre como reserva florestal, a montanha como pedreira, o rio
como represa, o vento como o que move os moinhos e as velas. A natureza se
mostra, portanto, em certa medida como o que também está à mão. Contudo, ela
nunca é só isto. Na sua grandeza, na sua imprevisibilidade, na sua imponência ou
violência, ela encanta, fascina, ao mesmo tempo que apavora e faz tremer.
Toda obra é, ademais, algo para ser usado por alguém. Em situações
meramente artesanais, a obra possui uma referência ao portador ou ao usuário,
muitas vezes personalizada. Na produção em série esta referência não desaparece,
mas ela é indeterminada. Com a obra se revela não somente a natureza, mas
também o mundo da convivência humana, o mundo partilhado, doméstico ou
público. Uma roupa: é produzida para homem ou mulher, para criança ou adulto.
Uma casa numa vila popular e uma mansão no setor “nobre” de uma cidade já nos
dizem algo a respeito de quem ali vai habitar.
292
Cfr. M. HEIDEGGER, HW, 11-14.
293
Cfr. M. HEIDEGGER, SZ, 72-76.
Na ocupação, o ente que está imediatamente à mão pode ser encontrado como
algo que não é passível de ser empregado ou como algo que não se acha em
condições de cumprir seu emprego específico. Aquela ferramenta está danificada,
aquele material é imprestável. Estou usando um instrumento e, de repente, ele se
estraga. A surpresa faz-me ver o ente que está à mão como um “troço” queaí está.
Ao usá-lo sempre talvez ele nem dava na vista. Agora ele se mostra como o que
não pode ser mais usado. Uma ponte, por exemplo: eu a usava todos os dias para
ir à escola e, neste uso, ela nem se fazia notar; de repente ela cai e ali está ela na
sua impossibilidade de uso. Talvez somente agora eu me dê conta de sua
(in)consistência, de sua espessura, de sua configuração, etc. A partir desta
experiência o instrumento se mostra como uma ocorrência.
A coisa de uso é algo que se dá dentro do mundo. Dizer isto não é o mesmo
que dizer que a coisa de uso ocupa um lugar no espaço homogêneo de um mundo
que é compreendido como pura extensão. O instrumento se dá dentro do mundo.
O mundo é o contexto “em que” nós já sempre vivemos. O instrumento só pode
ser encontrado e usado como tal porque, com tal encontro e uso, já se abriu um
mundo para nós. É o mundo que permite que se instaure uma totalidade
instrumental, uma totalidade referencial, uma espacialização toda própria das
coisas de uso no modo como elas são, sempre de novo, arranjadas, arrumadas.
Antes de falar do mundo, porém, examinemos ainda o que quer dizer esta
“totalidade referencial” aberta no contexto do mundo294. Toda coisa de uso abre
uma totalidade de referências: ela remete a um conjunto utensiliário, remete a
possibilidades de uso, remete aos usuários, remete a materiais usados na sua
produção. Ao apreender uma coisa de uso como tal, implícita e operativamente eu
já apreendo também esta totalidade referencial. Com outras palavras, eu já
apreendo implicitamente o mundo no qual esta coisa de uso surge. Assim, ao ver
uma cama, uma rede de dormir, um tatami, cada uma destas coisas me falam de
mundos distintos, onde o dormir se dá em modalidades culturais diferenciadas.
Uma lança feita com um pau e uma pedra lascada me fala de um mundo diferente
do de uma metralhadora. As coisas concentram, enquanto nós de relações
294
Cfr. M. HEIDEGGER, SZ, 83.
referenciais, o mundo em si mesmas, ao mesmo tempo em que o insinuam. Toda
coisa remete a, se refere a, e isto de modo operativo e implícito.
295
Há de se entender o ser-sinal do sinal a partir do ser-essencialmente-referencial da coisa de uso e não
o contrário, ou seja, não é o caráter referencial dos instrumentos que se funda sobre o sinal e o processo
de assinalar que é próprio deste utensílio, ao contrário, o poder assinalar e sinalizar do sinal só se dá
porque o ser sempre constituído a partir de uma totalidade referencial faz parte da essência do
instrumento como instrumento.
296
Cfr. M. HEIDEGGER, SZ, 83-88.
É a partir da iluminação do mundo que a coisa pode vir ao meu encontro, que ela
pode ser liberada para uma circunvisão, que ela pode remeter para lá e para cá no
desabrochar de sua estrutura referencial.
O ser da coisa de uso tem a estrutura da referência. Isto significa: o seu ser-
em-si consiste justamente no estar referida a. Percebê-la significa descobri-la,
captando a dinâmica de suas remissões. O instrumento satisfaz uma função,
cumpre um uso. Eu me dou por satisfeito com aquela coisa quando, no seu operar,
ela já percorreu suas possibilidades e realizou suas funções. Da mesma forma, eu
me dou por satisfeito com uma obra quando ela repousa na plenitude de uma
condição, onde os recursos de que se dispôs para trazê-la à tona encontram sua real
efetivação, onde suas virtualidades aparecem plenamente concretizadas. A coisa
atingiu a sua conjuntura mais própria. O “para que” de sua serventia, o “em que”
de sua possibilidade de emprego se satisfazem.
3.2.1 A vida como o para quê sem para quê da conjuntura – descoberta da
coisa intramundana e o a priori da abertura do mundo
A nossa reflexão não pode, pois, se contentar com somente delinear a coisa
de uso no seu ser referencial e conjuntural. Nós perguntamos, agora, pelo “para
quê” do “para quê” da coisa de uso. Será ele também algo de coisal, algo de
utilitário? O martelo satisfaz o uso de pregar. O pregar satisfaz a necessidade de
construir uma habitação. O construir uma habitação satisfaz a necessidade de
proteger-se contra as intempéries. A proteção contra as intempéries satisfaz a
necessidade de abrigo e moradia. O habitar satisfaz uma necessidade do viver. E o
viver...?!
“Die Ros ist ohn Warum: sie blühet, weil sie blühet,
Sie acht nicht ihrer selbst, fragt nicht, ob man sie siehet”.
297
A. SILESIUS, Il pellegrino cherubico, versão bilingüe alemão-italiano aos cuidados de Giovanna Fozzer e
Marco Vannini, Paoline, Torino, 1992, n. 289, livro I, p. 156.
O acontecer da vida, o seu desabrochar, o seu florescer, é um evento gratuito.
Dissemos: gratuito. Com isto não estamos dizendo: fortuito. Pois deste modo
estaríamos dizendo que é o acaso a presidir o acontecer da vida, qual uma força
sinistra e estranha a ela mesma. Não estamos fazendo este tipo de declaração.
Estamos apenas acenando para um modo do dar-se do sentido da vida na sua
totalidade a partir dela mesma: o acontecer da vida, o tornar-se “próprio” dela
mesma, o vir-a-si da vida na sua plenitude, no qual ela abraça consigo todas as
coisas, com outras palavras, o evento a-propriador da vida é um dom, um presente,
um mistério de gratuidade e graciosidade.
Eis, então, que mais uma vez nós nos encontramos em face da vida. Sempre
começamos com a coisa e acabamos sendo conduzidos à vida. À medida que
somos pressionados pelos fenômenos, parece ser natural que isto aconteça. Cada
coisa que encontramos nos fala da vida. Uma coisa é sempre mais do que uma
coisa: ela é um ponto onde se concentra e se expande o mundo, a saber, o mundo
da própria vida.
298
Cfr. M. HEIDEGGER, GP, 102-110.
perigoso. Posso ir atrás e ver que “não era nada”, era só um gato que passeava pelo
telhado. A coisa se determinou. Mas já na sua indeterminação ela me falava de
algo que eu não sabia bem o que era. A significância é a condição para que eu saiba
da coisa, para que eu tome conhecimento dela, num grau de clareza e determinação
maior ou menor.
Do mesmo modo, uma coisa que não me tem a menor importância, só pode
me parecer “insignificante” a partir da significância. Uma coisa, que me é
desprezível ou indiferente, só pode se me manifestar assim, porque já foi
descoberta como esta tal coisa. Trata-se de uma coisa que não me interessa, que
não me faz sentido, ou que, ao meu ver, não presta para nada. Contudo, tais modos
privativos de valorar uma coisa já supõe que a coisa tenha vindo ao meu encontro,
dentro do horizonte de minhas ocupações e preocupações vitais e já tenha sido
descoberta como isto ou aquilo.
299
Cfr. M. HEIDEGGER, Ontologie (Hermeneutik der Faktizität) (OHF), Gesamtausgabe – Band 63, Vittorio
Klostermann, Frankfurt am Main, 1995, p. 93-104.
Como se dá o anúncio do caráter mundano do que vem ao encontro dentro
do mundo? Se dá à medida que a coisa se mostra como coisa que serve para, que
pode ser empregada em, que é útil nisto ou naquilo; ou então como coisa que não
serve para, que é imprestável ou inútil. O estar aí da coisa de uso ou instrumento é
um estar aí para isto ou para aquilo. O seu “ser para isto” é um estar à mão para a
ocupação. Ocupar-se com alguma coisa é um demorar-se junto à coisa tendo o que
fazer com ela. No estar à mão para a ocupação o “ser para” da coisa se anuncia:
para comer, vestir, morar, divertir, instruir, etc. A coisa se mostra a partir de uma
totalidade de referências já sempre compreendida a partir de uma multiplicidade
de tendências da vida. O “ser para isto” e o “ser para” da coisa não são atributos
que se colam à coisa nua e crua. São o modo como a coisa articula o seu mostrar-
se a partir dela mesma. O estar-aí da coisa e o seu mostrar-se em si mesma e como
si mesma se articula como o “ser para isto”, onde este “ser para isto” remete
primordialmente a um “ser para” que se radica sempre no bojo da vida e de suas
necessidades. A coisa anuncia o mundo circunstante não como mero espaço que a
circunda de modo indiferente, mas como mundo de afazeres, como mundo da
ocupação. A espacialidade deste mundo circunstante é toda própria. Assim, ao
apreender o livro que me está diante, em meu quarto, eu já o apreendi como livro
que faz parte de uma biblioteca particular, que por sua vez, faz parte de um
conjunto de coisas que uso para estudar, as quais estão (mal) arrumadas em meu
quarto, enquanto meu ambiente de estudo e trabalho. Neste sentido, o que primeiro
se dá é o quarto enquanto instrumento de estudo, enquanto parte integrante de meu
mundo circunstante. Mas com este mundo circunstante já se anuncia também o
meu mundo próprio pessoal. Os livros que leio, os autores de que gosto, as áreas
de leitura de que gosto; os quadros e fotografias que estão coladas na parede, os
símbolos religiosos que o decoram, as recordações de lugares onde já estive ou
vivi – tudo isto fala do meu mundo próprio pessoal. Não existe uma fronteira
unívoca entre a dimensão “mundo circunstante” e “mundo próprio pessoal”. Estes
mundos se interpenetram dinamicamente no meu viver. E a coisa se mostra sempre
numa vibração significativa a partir do movimento incessante de eclosão e
interpenetração das várias dimensões do mundo da vida.
Entretanto, a coisa não anuncia somente o mundo circunstante e o mundo
próprio pessoal. Ela anuncia também o mundo enquanto mundo da convivência. A
coisa sempre fala de um ser-uns-com-os-outros. Aquela mesa de bar fala do amigo
que já se foi. Uma simples mesa! E quanto uma mesa pode guardar em si das
alegrias e das tristezas da história de um encontro, do mundo de uma convivência,
da partilha de uma vida?! Não que a coisa seja em si e depois adquira uma valência
sentimental a partir das emoções que experimento ao percebê-la. É a percepção
das coisas que já está sempre disposta numa tonância emocional. Mesmo o
“cinzento” da indiferença, neutralidade, normalidade cotidianas em que apreendo
as coisas no dia a dia, já é uma tal tonalidade. Nesta nuança cinzenta do viver as
coisas me falam de outras pessoas na neutralidade em que estas pessoas convivem
comigo: os outros são simplesmente aqueles com quem partilho o mesmo meio de
transporte, a mesma rua; eles são os produtores, os comerciantes, os consumidores
com quem partilho a vida cotidiana no âmbito público. As coisas produzidas em
série falam do mundo público de um “nós” que é indeterminado. Mas a camisa
feita sob medida pela mãe ao filho pode sempre reter em si a memória de um
cuidado, de uma ternura e de um carinho que, por anos, pareciam naturais e
passavam desapercebidos. As coisas, com efeito, sempre falam de um ser-com-os-
outros, sempre falam de um mundo do “nós”, ainda que aquele ser-com-os-outros
seja vivido na indiferença e que este mundo do “nós” seja experimentado como o
mundo de todo o mundo, como o mundo do “a gente”, o mundo impessoal de uma
convivência social massificada.
As coisas nos tocam. Nos afetam em nosso mundo da vida. Cada vivência é
um vibrar no acontecimento da vida. O viver é um estremecimento. Isto é verdade
mesmo ali onde nós “não vibramos”, entendendo agora o “vibrar” como índice de
uma intensidade subjetiva da vivência. Não convém entender o “vibrar” assim, de
modo subjetivo. O simples estar vivendo já é um vibrar no acontecimento da vida.
Talvez a exaltação e o entusiasmo, assim como a depressão e o desespero, sejam
modos do vibrar que ainda estão na dissonância com os ritmos da temporalidade
do viver. Tanto é que o oscilar de uma possibilidade para outra indicam um
descompasso, uma errância subjetiva. A vida tem os seus ritmos, tem os seus
tempos. Mesmo quando estamos vivendo na normalidade do cotidiano estamos
sendo conduzidos na dança do viver, estamos seguindo os ritmos do tempo da vida.
É na cotidianidade que experimentamos o mundo da vida como nosso mundo
familiar. Enquanto me ocupo com esta ou aquela coisa; enquanto uso este ou
aquele instrumento; no meio de minha ocupação eu sou tomado pelo mundo. O
mundo é aquilo que não dá na vista, por ser o mais próximo e o mais familiar. Só
a partir da familiaridade da estrutura significante do mundo é que o que me vem
ao encontro dentro do mundo pode se me mostrar como estranho, como
perturbador, ameaçador, sinistro, enigmático, misterioso. Somente porque eu
sempre estou, na familiaridade constante com o mundo, contando com as coisas
desta ou daquela maneira, a partir deste ou daquele cálculo, fazendo tais ou tais
planos, - somente por isto – é que eu posso tomar algo por incerto, por preocupante,
ameaçador ou até mesmo por sinistro. O lidar com as coisas, o ir para lá e para cá
perseguindo suas referências e suas conjunturas, o ocupar-se-com é o índice de um
caráter essencial, estrutural, que parece perpassar todo o viver humano: o cuidado.
Só posso me ocupar e me preocupar com as coisas porque o viver humano já é um
ter que cuidar de, um ter que se responsabilizar por, um ter que ser, assumindo
tudo que vem, tudo o que se apresenta no seu caráter de significância. Mesmo a
negligência e a despreocupação só podem se dar como tais porque o viver é sempre
uma tarefa, que eu preciso assumir e pelo que eu tenho, cada vez, de me
responsabilizar.
As coisas com que nós lidamos, no nosso cotidiano, falam sempre de algo
que é maior do que elas mesmas, enquanto meras coisas de uso. Elas falam do
mundo em que surgem e em que são usadas, ou melhor, elas recolhem em si
mesmas as falas do mundo em que elas aparecem e se mantêm. Sondemos, agora,
como se dá esta fala, este anúncio do mundo, na linguagem das coisas mesmas.
3.3.1. A coisa, em seu caráter de confiabilidade, repousa na familiaridade do
mundo
Neste sentido é que, ao ver um amigo que me saúda na rua, eu não vejo
primeiro um corpo no espaço, um corpo que exerce o movimento de balançar a
mão para lá e para cá e depois interpreto que aquele balançar de mão significa que
aquele corpo é o de um amigo e que ele me saúda. Tal modo de explicitar o
fenômeno seria uma aberração. Eu vejo o amigo que me saúda. Eu compreendo
imediatamente o seu gesto como um aceno amigável, uma saudação. O que eu vejo
de imediato não é um mero corpo no espaço. É que o “corporar” do corpo do meu
amigo, no instante em que ele aparece no gesto da saudação, fala de um mundo de
sentido, do mundo da amizade, o qual é sempre um mundo historial, uma totalidade
significativa que surge a partir da história de um encontro.
Do mesmo modo, no ritmo do viver cotidiano eu não ouço meros ruídos:
ouço a panela de pressão na cozinha, ouço o mensageiro do vento em meu quarto,
ouço o ruído do ônibus que passa na rua, o latido do cão do vizinho, a algazarra
das crianças lá fora. Tudo isto que ouço fala de um mundo: o mundo onde eu vivo,
onde me empenho nas pelejas da vida; o mundo que partilho com os outros; o
mundo onde eu vibro como ser vivente e mortal que sou.
E quando o sapato sai da sapataria e passa a ser usado? Ali está ele: bem
ajustado ao pé do seu destinatário. Mas um tal ajuste não se deu de imediato. Foi
preciso que o seu usuário aturasse o tempo do lassear do sapato. De início, sapato
novo, o menino que o recebeu como presente de seu pai, com os olhos brilhantes,
até se recusava usá-lo durante o caminho que levava da roça à Matriz no vilarejo.
Depois o sapato foi ficando velho, começou a gastar a sola. Ganhou um novo
solado. E o menino foi crescendo. O sapato não cabia mais no pé. Ali estava o
sapato: agora um sapatinho de menino, encostado lá no quartinho da bagunça. Não
servia mais. Entretanto, recolhia em si a memória de tempos difíceis, de pobreza,
indigência; mas eram tempos bons, tempos em que a família era unida, em que a
figura do pai e da mãe pairava sobre todas as coisas, qual uma bênção e uma graça.
Eis uma descrição trivial. Sua linguagem é pobre. Não tem o poder de trazer
à tona a coisa em toda a pregnância de seu mundo. Na pobreza do que é trivial se
esconde uma riqueza. Talvez só a arte pode trazer à fala uma tal riqueza. Por isso
deixamos a nossa descrição trivial do sapato e nos voltamos para uma obra de arte.
Trata-se de uma pintura de Van Gogh: os sapatos da camponesa. A pintura retrata
um par de sapatos de camponês e nada mais. E todavia...
“Da abertura escura do interior gasto do artefato para calçar, fita-nos a canseira dos
passos da labuta. No peso rude e elementar dos sapatos está retida a tenacidade do
lento caminhar pelos sulcos que se estendem até longe, sempre iguais, pelo campo,
sobre o qual sopra um vento agreste. Sobre o couro, jaz a umidade e a fertilidade
do chão. Sob as solas, arrasta-se a solidão do caminho do campo, pela noite que cai.
No artefato para calçar, pulsa o apelo calado da terra, a sua silenciosa oferta do grão
maduro e a sua inexplicável recusa na desolada improdutividade do campo invernal.
Por este artefato passa o calado temor pela segurança do pão, a silenciosa alegria
de vencer uma vez mais a miséria, o estremecimento na chegada do nascimento e o
frêmito ante a ameaça da morte. À terra pertence este artefato e no mundo da
camponesa ele está abrigado. É a partir desta abrigada pertença que surge e se firma
o próprio artefato, para o seu repousar-em-si-mesmo.
Tudo isto, porém, possivelmente, vemo-lo no artefato para calçar que está no
quadro. A camponesa, ao contrário, simplesmente calça os sapatos. Como se este
simples calçar fosse assim tão simples. Sempre que a camponesa, já noite alta, sob
um duro, mas saudável, cansaço, tira os sapatos e, na madrugada ainda escura, volta
a lançar mão deles, ou sempre que, em dia de festa, passa ao largo deles, tudo isto
ela sabe sem considerar e observar. O ser artefato do artefato consiste,
precisamente, na sua serventia. Mas esta mesma repousa na plenitude do ser
essencial do artefato. Denominamo-la de confiabilidade. Graças a ela a camponesa,
através do artefato, é confiada ao apelo silencioso da terra; graças à confiabilidade
do artefato ela é ciente de seu mundo. Mundo e terra estão ali para ela, e para aqueles
que a seu modo estão com ela, somente assim: no artefato. Nós dizemos “somente”
e, com isto, erramos. Com efeito, a confiabilidade do artefato apenas dá ao simples
mundo a sua proteção e assegura à terra a liberdade de sua contínua afluência”300.
Com esta análise, porém, descobrimos que na coisa se dá algo mais do que o
mundo. Juntamente com o mundo se dá a terra. Podemos intuir isto se nos
concentramos em captar o sentido do aparecimento de uma obra de arte, por
exemplo, a manifestação de um templo grego:
300
M. HEIDEGGER, HW, 19-20.
301
“Confiabilidade” foi a tradução que encontramos para a palavra alemã “Verlässilichkeit”. Literalmente,
a palavra diz: o próprio daquilo a que se pode abandonar, em que se pode confiar, fiar (sich verlassen).
Incluído nesta palavra está o étimo “lassen”, que significa deixar, abandonar. Em todo o uso está implícito
um deixar ser, um abandonar-se, um ser tomado pelo mundo, um repousar na quietude da profundidade
abissal, imensa, inesgotável, da plenitude da vida. Somente a partir desta familiaridade do mundo e do
abrigo da terra é que algo como a angústia do nada pode ser sentida em sua estranheza e que o abismo
do ser pode ser experimentado como abismo. Quando isto acontece, rompe-se a tranqüilidade do viver
cotidiano e irrompe o dar-se de um sentido do ser incompreensível, inefável, quiçá, fascinante e pavoroso
ao mesmo tempo. Então o mundo aparece na sua estranheza e insignificância e todas as coisas se
mostram na sua não confiabilidade. A vida emerge na sua transitoriedade. Tudo vibra no sopro do nada.
Será possível um abandono sereno a este mistério do nada? Como se caracteriza este abandono? Fé? A
nossa reflexão, aqui, esbarra, sem poder ir mais longe.
“Um edifício, um templo grego, não imita nada. Está ali, simplesmente erguido
nos vales entre os rochedos. O edifício encerra a forma do deus e nesta ocultação
deixa-a assomar através do pórtico para o recinto sagrado. Graças ao templo, o deus
vigora no templo. Este vigorar do deus é, em si, o estender-se e o delimitar-se do
recinto como sagrado. O templo e seu recinto, porém, não se perdem no
indeterminado. É a obra templo que, por princípio e ao mesmo tempo, ajusta e
recolhe em torno de si a unidade daquelas vias e referências, nas quais nascimento
e morte, desgraça e bênção, vitória e derrota, resistência e ruína, assumem para o
ser humano a figura de seu destino. A amplidão vigorosa destas referências que se
abrem é o mundo deste povo historial. Somente a partir dele e nele é que o povo
retorna para si mesmo para levar a cabo a sua destinação.
Ali de pé repousa o edifício sobre o chão rochoso. Este repousar da obra vai
buscar no rochedo o mistério do suportar maciço e, contudo, não forçado a nada.
Ali de pé, o edifício resiste à tempestade que se abate sobre ele e assim mostra, por
princípio, a tempestade mesma em sua violência. O brilho e o esplendor das pedras
conjugadas, aparecendo mesmo apenas por graça do sol, no entanto, fazem
aparecer, por princípio, a luz do dia, a amplidão do céu, as trevas da noite. O seguro
erguer-se faz visível o espaço invisível do ar. A imperturbabilidade da obra
contrasta com as vagas da maré e, a partir de sua quietude, deixa aparecer a sua
fúria. A árvore e a erva, a águia e o touro, a serpente e o grilo, por princípio, se
salientam em sua figura e assim se manifestam como aquilo que são. A este vir à
luz e levantar-se, ele próprio e na totalidade, chamavam os gregos, antigamente, de
physis. Ela ilumina, ao mesmo tempo, aquilo sobre que e em que o homem
funda o seu habitar. A isto nós chamamos terra. Daquilo que esta palavra, aqui, diz,
há que se manter distante seja a representação de uma massa de matéria depositada,
seja a mera representação de um planeta. A terra é aquilo onde o surgir alberga tudo
aquilo que surge e, precisamente, enquanto tal. Naquilo que surge vigora a terra,
como o que dá guarida”302.
302
M. HEIDEGGER, HW, 27-28.
Eis que, de repente, a coisa, especialmente a coisa como obra de arte, faz
aparecer que, por toda a parte, está em jogo a conjunção e a oposição de mundo e
terra. Mundo, aqui, não é a simples reunião das coisas que ocorrem, nem é a
totalidade das coisas reais ou possíveis, contáveis ou incontáveis, conhecidas ou
desconhecidas. Também não é uma mera moldura espaço-temporal para as coisas.
Nós dizíamos, anteriormente, que a vida está sempre acontecendo, que o mundo
está sempre se tornando evento. O mundo está sempre mundificando. E este
mundificar do mundo não é nunca apreensível a modo de objeto. Contudo, em tudo
que nós apreendemos, em cada percepção, de modo concomitante com a
apreensão, dá-se o instaurar-se do mundo. Com efeito, a coisa que a apreensão da
percepção apreende é, cada vez, apreendida como coisa do mundo. O mundo não
é objeto da apreensão, mas é o horizonte no qual e à mercê do qual eu posso captar
a coisa enquanto tal. Ademais, o mundo é sempre mundo da vida: é historial. O
mundo é prenhe de sentido. Nele vibram as experiências humanas: nascimento e
morte, alegria e dor, desgraça e benção, vitória e derrota, miséria e abundância. O
mundo está acontecendo ali onde estas experiências, ou seja, as experiências da
vida, estão se dando e isto de modo historial. Onde estão em jogo as decisões
essenciais da nossa história, onde estas são tomadas ou deixadas, assumidas ou
questionadas, ali o mundo está se dando. O mundo é a abertura que se abre dos
vastos caminhos das decisões simples e essenciais no destino historial de um povo.
O mundo só surge com o ser historial do homem.
Entretanto, o homem, assim como todos os seres vivos e tudo o que surge e
vem à luz a partir do chão, onde estão radicados e fundados, é filho da terra. A
terra fala do mistério da origem. Faz surgir e vir à luz gratuitamente pedras e
plantas, animais e homens e, como se tomada de pudor e humildade, se retrai em
si mesma. Numa tal ocultação, porém, a terra recolhe a raiz de todas as coisas e
lhes dá guarida e proteção.
Em cada coisa está se dando o combate de mundo e terra. Quanto mais forte
for este combate, tanto maior a intimidade dos combatentes; e tanto melhor para
coisa: pois a coisa vige a partir da vibração do acontecimento do mundo e a partir
da geração e da proteção da terra. Será, porém, que o ser-coisa da coisa pode ser
contemplado numa articulação ainda mais rica?
Ali está a jarra, recém saída das mãos do oleiro. Ela subsiste em si e por si
mesma só porque, na pro-dução, ela foi con-duzida a ser e estar em si mesma. O
oleiro moldou a jarra com a argila que fora tirada da terra e preparada para a
moldagem. A jarra é feita de argila. A argila ganhou uma consistência e uma forma
303
Cfr. M. HEIDEGGER, HW, 29-36.
304
Cfr. M. HEIDEGGER, Vorträge und Aufsätze (VA), Günther Neske, Stuttgart, 1997, p. 158-166.
e, graças a isto, a jarra pode pousar, seja sobre o chão, seja sobre a mesa ou em um
banco. A jarra é uma coisa, como receptáculo. A jarra fora produzida por ser e para
ser este receptáculo que ela é destinada a ser. A pro-dução intro-duz a jarra no seu
modo próprio de ser. Mas, uma vez produzida a obra, a produção deixa a coisa ser
o que ela é, deixa-a subsistir em si e por si mesma. A coisa como obra produzida,
porém, só vigora plenamente em seu ser quando posta em uso. Um receptáculo é
determinado como tal a partir do seu uso: o receber. É por isso que o oleiro, ao
moldar a argila, deu à sua obra a sua forma devida, forma esta caracterizada pelo
vazio. Com efeito, o vazio da jarra está em função da sua serventia: do receber. O
vazio da jarra recebe, acolhendo e retendo em si mesmo o que nele se vaza. O
receber da jarra é, por conseguinte, também um doar. A jarra cumpre sua serventia
em receber, mas este cumprir uma serventia, recebendo, é já o modo como a jarra
se doa em seu ser. O doar-se da jarra recolhe em si o receber da vaza no seu duplo
significado. A doação da jarra acolhe e recolhe a doação da vaza. A doação da vaza
pode ser uma bebida. Então ela dá água, dá vinho para beber:
“Na água doada, perdura a fonte. Na fonte perdura todo o conjunto das pedras e
todo o adormecimento obscuro da terra, que recebe chuva e orvalho do céu. Na água
da fonte, perduram as núpcias de céu e terra. As núpcias perduram no vinho que a
fruta da vinha concede e no qual a força alimentadora da terra e o sol do céu se
confiam um ao outro. Na doação da água, na doação do vinho perduram, cada vez,
céu e terra. A doação da vaza é, porém, o ser-jarra da jarra. Na vigência da jarra,
perduram céu e terra.
A doação da vaza é bebida para os mortais. É ela que lhes refresca a sede. É
ela que lhes refrigera o lazer. É ela que lhes alegra os encontros, a convivência.
Mas, às vezes, o dom da jarra se doa na e para uma consagração. Desta vez, a vaza
da sagração não mata a sede, acalenta a celebração da festa, no aconchego do alto.
Aqui a doação da vaza nem se doa numa tenda nem se faz bebida dos mortais. Agora
a vaza se torna poção dedicada aos imortais. A doação da vaza encontra, na poção,
o dom, em sentido próprio. É no dom da poção consagrada que, ao vazar, a jarra
vive, como doação dispensatriz de dons... Consumado na plenitude de sua vigência,
pensado no apelo de sua provocação e dito na fidelidade de sua eloquência, vazar
significa: oferecer, sacrificar e, assim, doar...
“Coisificando, a coisa deixa perdurar a união dos quatro, terra e céu, mortais e
imortais, na simplicidade da sua quadratura, que a partir de si se unifica.
305
M. HEIDEGGER, VA, p. 164-166.
O céu é o caminho do sol, o curso da lua, o brilho das constelações, as estações
do ano, luz e claridade do dia, a escuridão e densidade da noite, o favor e as
intempéries do clima, a procissão de nuvens e a profundeza azul do éter.
Quando dizemos céu, já pensamos também, caso pensemos, nos outros três,
a partir da simplicidade dos quatro.
Eis até onde nos conduziu a nossa reflexão. Talvez, desta vez, o salto tenha
sido maior do que o esperado. Da simples análise do intentum da intentio que é a
percepção, perseguindo o ser da coisa que é o “alguma coisa” do perceber, nós
passamos da mera coisa, enquanto coisa desmundanizada, para a coisa de uso,
enquanto ente intramundano; deste nós passamos ao mundo; o mundo nos
apareceu no combate com a terra; e, contemplando mais de perto este combate, eis
que do interior de sua intimidade se nos mostrou a quadratura de céu e terra,
mortais e imortais. Por sua vez, lançando o olhar para a simplicidade una deste
306
M. HEIDEGGER, VA, 170-171.
quatro, acabamos sendo remetidos ao âmbito do inefável. Fomos colocados em
face de mistérios que mal podem ser nomeados com palavras como “Deus”,
“morte”, “ser”, “nada”. Aqui, deixemos que estas palavras apenas acenem para o
imperscrutável. Elas não são conceitos, são nomes. Elas não definem, apenas
acenam. Tentar pensar o que elas provocam pensar seria uma outra tarefa, bem
mais primordial. Aqui é necessário que a nossa reflexão guarde a sua modéstia.
“Diz-se que Heráclito assim teria respondido aos estranhos vindos para lhe colocar
algumas perguntas. Ao chegarem, viram-no aquecendo-se junto ao forno. Ali
permaneceram em pé (impressionados sobretudo porque) ele encorajou os
hesitantes a entrar, pronunciando as seguintes palavras: “mesmo aqui, os deuses
também estão presentes”307.
307
ARISTÓTELES, De part. Anima, A 5.645a 17, in Der Anfang des abendländischen Denkens (Heraklit), SS
1943, M. Heidegger, Gesamtausgabe, Band 55, p. 6.
CONSCIÊNCIA, VIVÊNCIA E VIDA: UM PERCURSO FENOMENOLÓGICO 308
Resumo: o artigo propõe um percurso de reflexão fenomenológica, que tem como foco
o fenômeno da consciência. Analisando a estrutura intencional das vivências, a qual
constitui o traça essencial da consciência, a reflexão remonta até à região fenomenal
originária chamada comumente de “vida”. Através de uma análise intencional de uma
vivência simples, básica e privilegiada, a percepção, chega-se a perceber o caráter de
mundanidade da vida. O mundo é sempre mundo da vida e a vida é sempre vida em um
mundo. A vivência acontece à medida que acontece vida, que acontece mundo. O dar-
se do eu não pode ser compreendido a não ser em seu enraizamento no acontecer da
vida e, concretamente, em seu ser-no-mundo.
A via fenomenológica é aquela que nos envia e avia rumo a este próximo e simples.
Trata-se daquela luz primordial, em cuja vigência o mundo se torna mundo e nós nos
tornamos nós mesmos.
Para nós, que vivemos numa era em que a realidade do real é definida em termos da
funcionalidade da relação sujeito-objeto, ou seja, é definida em termos de subjetividade
e objetividade, a via fenomenológica se impõe como uma passagem: da consciência para
a vida, através da vivência. É a passagem desse caminho que tentaremos percorrer nas
páginas que se seguem.
308
Marcos Aurélio Fernandes, Universidade Católica de Brasília.
Tentamos, em seguida, nos deixar, pela força do pensamento, reconduzir ao mais
originário. O primeiro passo – ainda muito distante da meta, mas sempre um primeiro
passo – consiste em voltar-nos das coisas para nós mesmos com nossas vivências. O
mundo, o mundo das coisas e o mundo das pessoas, o mundo do real e do ideal, enfim,
o todo do ente só se nos faz acessível, só se nos dá, a partir de nossas vivências. O que,
de início, chamamos de mundo é o mundo da vida, ou seja, o mundo no qual nós
vivemos. Trata-se do mundo das nossas percepções, imaginações, dos nossos
sentimentos e desejos, dos nossos pensamentos, dos nossos atos valorativos e volitivos,
do nosso engajamento prático e dos nossos interesses teoréticos. Se nos detemos numa
atitude reflexiva a esse mundo acabamos nos dando conta do constante, incessante,
imenso fluir destas vivências, de suas efluências, afluências, influências, confluências,
refluxos, enfim, da fluência da vida como de um manancial inesgotável, nunca igual a si
mesmo. Graças ao olhar da reflexão, podemos contemplar o ir e vir destas vivências,
suas co-agitações, ou seja, as cogitações em que se movimenta a nossa vida interior, a
vida da nossa consciência.
Como ponto de partida deste nosso passo na investigação, precisamos ter em mente o
tríplice significado de “consciência”, a saber, consciência como apercepção das próprias
vivências, como o eu fenomenal, que, nesta e para esta apercepção se constitui e
consciência como totalidade estrutural intencional dos atos.
309
Husserl, em vez de falar de percepção externa e interna, prefere falar de percepção imanente e
transcendente. Elucidemos, primeiramente, o que ele chama de percepção imanente. Vivendo no cogito,
ou seja, vivenciando minhas próprias vivências, normalmente eu não tenho a cogitatio mesma como
objeto intencional, mas ela pode vir a tornar-se tal. É que ao cogito pertence, por princípio, a possibilidade
de uma mirada reflexiva, naturalmente, porém, na forma de uma nova cogitatio, que se dirige, no modo
de uma captação simples, à vivência mesma. Com outras palavras, nós podemos, sempre de novo, voltar
o nosso olhar para as nossas próprias vivências: percepções, fantasias, recordações, desejos, sentimentos,
etc., e captá-las como objetos desta nossa reflexão. Ora, Husserl chama de atos imanentemente dirigidos
ou vivências intencionais imanentemente referidas aqueles ou aquelas, a cuja essência é inerente o fato
de que os seus objetos intencionais pertencem, como elas próprias, ao mesmo fluxo vivencial. Portanto,
estes são atos referidos a atos (cogitatio que mira a uma cogitatio). Por sua vez, transcendentalmente
dirigidas são aquelas vivências onde isto não se dá: atos dirigidos a coisas do mundo circunstante, a
vivências de outra consciência, a essências, etc. Pode-se dizer que, no caso da percepção imanente, o
perceber e o percebido perfazem essencialmente uma unidade imediata, uma única cogitatio concreta. Só
abstratamente é que se pode separar o perceber e o percebido, tão estreita é esta unidade. Aqui o objeto
é de tal modo incluído no ato que ele não possui nenhuma independência em relação ao ato como tal.
sou consciente destas vivências. A região global das vivências é aquela que está na
possibilidade de se tornar consciente para mim na percepção imanente. Consciência, no
sentido de percepção interna, ou seja, percepção do imanente, ou ainda, apercepção,
está imediatamente relacionada com o primeiro conceito de consciência, isto é,
enquanto região fenomenal das vivências (HEIDEGGER, 1994a, p. 55). Tal região abrange
todos os conteúdos conscienciais e, de um modo mais determinante, todas as vivências
intencionais, ou seja, determinada classe de vivências que possuem a característica de
se dirigir a alguma coisa. Cada vivência intencional é caracterizada por ser consciência-
de-alguma-coisa. A consciência abrange vivências intencionais atuais e potenciais.
Muitas das vivências intencionais permanecem como o fundo vivencial da consciência.
Aquelas vivências intencionais, que são trazidas atualmente à luz da consciência, ou seja,
que são atuadas de modo reflexo num ego-cogito explícito são denominadas de atos310.
Deste modo vem à luz, numa primeira indicação formal, a concatenação do tríplice
conceito de consciência:
Por outro lado, no caso das percepções de coisas, por exemplo, a coisa percebida é suposta como estando
fora de unidade com o perceber mesmo, é percebida justamente como algo de transcendente à
consciência mesma (HUSSERL, 1993, 67-69).
310
Nas “Investigações Lógicas” o nome de ato ainda se confunde com o de vivências intencionais. A
distinção agora apresentada foi operada por Husserl após a publicação daquela sua obra fundamental
(HEIDEGGER, 1994, 55).
familiar, do ponto de vista ôntico, mas que é extremamente difícil de esclarecer do
ponto de vista ontológico. Somos colocados ante o desafio de trilharmos um caminho,
o nosso, por meio desta região já tanto explorada, mas que mantém, ainda o seu
mistério.
311
Com Descartes acontece uma transformação radical da compreensão da totalidade do ente e do
homem em meio a esta totalidade. Anteriormente, na idade média e no mundo grego, fazia-se de modo
inteiramente natural a experiência da vida interior, ou seja, se experienciava a vida anímica ou
intrapsíquica sem que a mesma se tornasse tema de uma reflexão objetivante. Os gregos não conheciam
o que os modernos chamam de “consciência”. Com efeito, a syneídesis/ dos gregos e dos
cristãos possui um sentido eminentemente moral e não psicológico. É verdade que Aristóteles, ao analisar
a percepção, constata que nós percebemos o ver do próprio perceber. Nós temos uma
aísthesis/ do ver (De Anima 2, 425 b 12 sqq). Esta indicação de Aristóteles pode estar
apontando para uma direção diferente, porém, daquela da concepção moderna da consciência; diferente
e talvez até mais originária do que a do concepção da consciência como autoconsciência: do cogito como
cogito me cogitare. Pode-se afirmar que no mundo grego e na idade média ainda não se dá uma cisão
entre sujeito e objeto, consciência e coisa, imanência e transcendência. Somente com o advento da
ciência moderna, com o predomínio da atitude teorética, observadora, reflexiva, é que emerge a
consciência como uma esfera interna contraposta ao mundo como esfera externa e, com isso, uma
percepção interior contraposta a uma exterior. A alma ( − anima), a qual no mundo grego e
medieval tinha uma extensão, vastidão e uma profundidade muito maior, reduz-se agora à estreiteza e
superficialidade da consciência, do ego. O saber a respeito do anímico se transforma, de ciência do
espiritual e da razão, no sentido mais originário e vasto destas palavras, em ciência da consciência, uma
ciência que ganha o seu objeto na assim chamada experiência interior através da percepção imanente.
312
Para a filosofia moderna em geral, o cogito é o modo de acesso privilegiado no conhecimento do
anímico. Contudo, o que significa isto – o Cogito? O cogito compreende “tudo aquilo que é em mim e do
qual eu sou imediatamente consciente” (Descartes, Meditações, Resposta II, definição I). Em duvidando,
pensando, negando, afirmando, querendo, sentindo, imaginando, enfim, em toda e qualquer cogitatio eu
sou sempre dado a mim mesmo numa evidência imediata. É na experiência do cogito que se me dá de
modo imediato a evidência da cogitatio e do cogitatum, bem como a evidência de mim mesmo, do meu
ego, uma vez que todo cogito é cogito me cogitare. Neste sentido, o sum do ego é determinado a partir
da cogitatio: ego sum res cogitans. Por sua vez, a consciência, enquanto consciência do mundo e
consciência de si (autoconsciência), na medida em que é tomada como res é interpretada no sentido da
substantia. Mas o ego não é uma substância qualquer. Em relação ao ser de todo e qualquer ente que ele
mesmo não é, o ego é por excelência o subjectum, pois é o substractum de todas as cogitationes. A
centralidade e o caráter fundamental do sujeito enquanto consciência continuam a ser afirmados no
empirismo inglês, como aparece, por exemplo, na tese de Berkeley: esse est percipi. Em Kant a
subjetividade é analisada de modo mais profundo a partir da problemática transcendental. Depois dele,
o idealismo alemão, aproveitando as deixas de Kant e tentando resolver as suas aporias, caminhou para
uma metafísica do eu. Assim, para Hegel a consciência é o ponto de partida da reflexão filosófica. Quando
a consciência se desenvolve de forma a conquistar a sua verdade plena (conceito), então ela se torna
espírito. Antes, porém, ela deverá ter se tornado autoconsciência e razão. A autoconsciência é a
superação da consciência. É que a consciência supõe uma relação de sujeito-objeto onde o objeto está
fora dela mesma, como outro dela, como o independente. A autoconsciência é justamente a supressão
desta alteridade e exterioridade: a verdade da consciência é a autoconsciência, e esta é o fundamento
tornou o tema fundamental da consideração fenomenológica313. A partir dela, como de
um positum, desenvolveu-se a ciência positiva, de caráter experimental, que passou-se
a denominar de psicologia314. De início, o que mudou foi a impostação fundamental da
investigação. Numa época em que reinava a anti-metafísica, ou seja, a hostilidade a tudo
quanto, por assim dizer, cheirava a especulação e a conceituação; numa época em que
a palavra de ordem era ir aos fatos da experiência, as ciências experimentais celebraram
o seu triunfo e a psicologia tentou emergir, como tal, a partir de um fundo, malgrado
seu, metafísico de materialismo, cientificismo, positivismo, mecanicismo e biologismo.
Através de um demorado processo, em que colaboraram diversos pesquisadores, a
psicologia, assim ao menos parece, atingiu o grau de ciência experimental no projeto
científico de Wundt315. Dizemos “ao menos parece”, uma vez que a discussão sobre a
cientificidade e o caráter de rigor do método desta ciência é uma questão que deve
permanecer em aberto e que não podemos discuti-la aqui. Em todo o caso, foi Willhelm
daquela; de tal modo que na existência a consciência de um outro objeto é autoconsciência; eu sei o
objeto como meu, por isso, neste objeto eu sei a mim mesmo.
313
A fenomenologia em Husserl caminha na direção de uma fenomenologia da consciência ou da
subjetividade transcendental. Nós caminharemos, seguindo os passos da investigação fenomenológica de
Heidegger, para além de uma fenomenologia da consciência e da subjetividade transcendental. Deter-
nos-emos nela somente à medida que esta constituir, para a nossa reflexão, uma espécie de antecâmara
que nos conduz a um âmbito mais originário da fenomenologia. Não deixaremos de aproveitar as suas
deixas e, quando for necessário, não deixaremos de apresentar as devidas críticas que justificam a tomada
de outro rumo da reflexão fenomenológica.
314
No século XIX as ciências naturais começam a conquistar a “cidade fortificada” da consciência, até
então em poder da filosofia. Elas penetram, com seu método próprio, numa região, que, até então, era
explorada somente de modo filosófico. Já o empirismo inglês abandona um estudo metafísico da alma (de
sua substancialidade, espiritualidade e imortalidade) e assume uma abordagem empírica da mesma.
Lança-se como mote da investigação: “não ciência da alma como uma substância, mas ciência das
manifestações anímicas, daquilo que se dá na experiência interior”.
315
É na Alemanha que a psicologia dá passos decisivos na direção de se tornar uma ciência experimental.
O movimento nesta direção se dá lentamente com o trabalho de alguns pesquisadores, antecessores de
Wundt. Assim, Herbart, aluno de Fichte, contra a afirmação de Kant, de que uma psicologia enquanto
ciência empírica seria impossível, pois ficaria sempre no nível da descrição e não alcançaria nunca o rigor
matemático que caracteriza as ciências naturais, ousou apresentar um programa de ciência da alma
humana onde a matemática, ou seja, a mensuração e o cálculo, tivesse uma importância decisiva. Tirando
o objeto temático da psicologia do domínio do qualitativo e transferindo-o para o domínio do
quantitativo, ele trabalhou na elaboração de uma teoria da mensuração dos fenômenos psíquicos. Assim,
ele reconduziu todo acontecimento psíquico a um movimento de simples representações no espaço vazio
da consciência, sob influências impulsivas e repulsivas. Johannes Müller, para quem a psicologia deveria
estar em íntima conexão com a fisiologia (nemo psychologus nisi physiologus), lança a teoria específica
dos nervos: a qualidade das sensações que recebemos não depende do tipo de estímulo (mecânico,
elétrico, luminoso) que é exercitado sobre os órgãos dos sentidos, mas sim do tipo de órgão sensorial que
é excitado (nervos óticos: sensações visuais; nervos auditivos: sensações auditivas, etc). Heimholtz, aluno
de Müller, fundou a fisiologia ótica e acústica, sempre em conexão com supostos problemas da teoria do
conhecimento: inferiu que as nossas sensações não são imagens dos objetos do mundo externo, mas são
apenas sinais, índices daquilo que ocorre fora de nós. E. H. Weber descobriu a lei que leva o seu nome, ou
seja, a lei sobre o nexo entre a grandeza do estímulo e a “grandeza da sensação”: a intensidade da
sensação é proporcional ao estímulo. A partir desta descoberta Fechner desenvolveu a “psicofísica”, ou
seja, a teoria da mensuração dos fenômenos psíquicos e sua funcional dependência das grandezas dos
estímulos: descobriu que os estímulos crescem em progressão geométrica, enquanto as sensações em
progressão aritmética. Isto quer dizer que a relação entre estímulos e sensações pode ser representada
por uma curva logarítmica (HEIDEGGER, 1993, 213).
Wundt quem fundou o primeiro instituto para psicologia experimental em Leipzig. Ali
ele e seus alunos (europeus e americanos) dedicaram-se experimentalmente a quatro
campos de pesquisa: a psicofisiologia dos sentidos, o tempo de reação aos estímulos, a
psicofísica e a associação mental. Ocupou-se também com as atividades psíquicas
superiores (processos intelectivos e volitivos). Intuiu que estas não poderiam ser
explicadas a partir de sensações e por isso introduziu a “síntese criativa”: o resultado de
uma combinação de elementos psíquicos não é a mera soma destes, mas alguma coisa
de nova e original em relação àqueles. Com Wundt se afirma a tendência fundamental
da moderna psicologia “experimental” que consiste na explicação dos acontecimentos
psíquicos através de uma conexão unitária que tem o caráter de lei e através da
regulação mediante condições fundamentais últimas, que têm suas raízes em conexões
últimas de elementos psíquicos (HEIDEGGER, 1993, 213).
316
Aqui não podemos entrar numa apresentação aprofundada da relação entre fenomenologia e
psicologia. Damos apenas algumas indicações a respeito do assunto. Antes de tudo convém lembrar que
a fenomenologia de Husserl surge a partir de um confronto contra o psicologismo, ou seja, contra a
pretensão de se fundar a lógica sobre a psicologia. A refutação do psicologismo na lógica, Husserl efetua
no primeiro volume das “Investigações Lógicas” (1900), que se intitula “Prolegômenos para a lógica pura”.
No famoso artigo da revista Logos (1910/11), intitulado “Filosofia como ciência de rigor”, Husserl combate
o naturalismo e o historicismo. Ali Husserl afirma a necessidade de uma ciência da consciência, ou melhor,
de uma fenomenologia da consciência, a qual deveria contrastar com a ciência natural da consciência, ou
“psicologia exata”, que incorre no erro capital de uma naturalização da consciência. Nasce, então, a
compreensão de uma tarefa singular: fundar uma psicologia originária, uma psicologia que não fosse mais
ingênua, fenomenologicamente falando. O método experimental fica apenas no nível das conexões de
fatos e pressupõe aquilo que nenhum experimento é capaz de realizar: a análise da consciência mesma.
Somente uma fenomenologia sistemática da consciência seria capaz de dar às investigações positivas e
empíricas da psicologia uma base segura, conceitos fundamentais claros e direções metodológicas
apropriadas à investigação da vida psíquica.
317
No volume I das “Idéias para uma fenomenologia pura e uma filosofia fenomenológica” (publicado em
1913 no Anuário para filosofia e investigação fenomenológica), Husserl compreende a fenomenologia
como a essência da própria filosofia enquanto ciência rigorosa e originária em seu método, ou seja, como
ciência fundamental da filosofia, com outras palavras, como filosofia primeira. “Fenomenologia pura”
quer dizer: “fenomenologia transcendental”. Transcendental, porém, é a subjetividade que conhece, age,
põe valores. A fenomenologia conserva as vivências da consciência (esta é o resíduo fenomenológico que
permanece, uma vez que é operada a epoché de todo conhecimento posicional) como seu âmbito
temático, agora, todavia, na sondagem sistemática projetada e assegurada da estrutura dos atos das
vivências, juntamente com a sondagem dos objetos, no tocante à sua objetualidade, que são vivenciados
portanto, abstendo-nos de enveredar pelos âmbitos das ciências positivas, voltando-nos
para o mundo da vida, melhor, para o mundo da experiência pré-científica.
nos atos. À consciência transcendental, tornada acessível através do método das reduções
fenomenológicas (redução eidética e redução transcendental), corresponde o eu transcendental, o eu
mais íntimo no eu, qual pólo subjetivo dos atos egóicos, o eu constituinte do próprio eu constituído (eu
empírico – personalidade), o eu que está à base da constituição do próprio mundo, o pólo subjetivo ao
qual se refere o mundo constituído enquanto pólo objetivo, o núcleo a partir de cuja atividade primordial
surge a constituição da totalidade do que pode se tornar acessível no cogito. Uma tal ciência de essências
(eidética), uma tal fenomenologia da consciência ou da subjetividade transcendental, é o pressuposto
para a fundação de toda e qualquer ciência de fatos (empírica), que deve pressupor sempre uma
compreensão da constituição de seu âmbito objetivo temático. Trata-se de uma ontologia fundamental e
universal, à qual deve se subordinar toda ontologia regional. À medida que as ciências positivas (como a
psicologia, por exemplo) se fundassem fenomenologicamente nas suas ontologias regionais e estas na
ontologia fundamental e universal, que coincide, ao ver de Husserl, com a fenomenologia transcendental,
então se realizaria uma reforma geral do saber e o início daquilo que gerações anteriores sonharam e
chamaram de “mathesis universalis” (Descartes, Leibniz). As bases para uma psicologia fenomenológica
estão apresentadas no volume IX da Husserliana. Aí se encontram os textos de preleções dadas por
Husserl em 1925, com o título de “Psicologia Fenomenológica”, além das conferências de Amsterdam
(1926) sobre o mesmo tema e do artigo, destinado à Enciclopédia Britânica (1928), que marca o
rompimento entre Husserl e Heidegger.
do saber científico já pressupõe a dimensão, mais originária, da vida pré-científica. Tal
dimensão nós chamamos, de modo ainda indeterminado, de mundo da vida.
318
Usamos, aqui, a palavra “problema”, numa acepção diferenciada daquela própria do uso comum. “Pro-
blema” vem do grego pro-bállein: “pro-” indica, aqui, a abertura da possibilidade de manifestação; “-
bállein”, o lançar e o jogar, o acertar e o atingir. “Pro-blema” é, pois, tomado na acepção de um
movimento que, no próprio lance de jogo, atinge a si mesmo, abrindo-se como a possibilidade de uma
manifestação. Decidimos, pois, assumir a vivência como um problema, ou seja, como aquela instância
onde pode abrir-se, para nós, a manifestação da vida no seu sentido mais originário.
319
Desta maneira, Brentano chegou à descoberta da intencionalidade justamente tentando definir o
psíquico em oposição ao físico, fenômeno psíquico em contraste com fenômeno físico, o objeto da
psicologia em contraste com a natureza em geral, enquanto objeto das ciências naturais.
Com efeito, o psíquico, no sentido da psicologia, é um ser, contudo, não um ser em
repouso, mas um ser em constante alteração, uma conexão de processos que decorrem
no tempo, um ser caracterizado justamente pela temporalidade, que não preenche
espaço, uma esfera de ocorrências que pode ser desmontada reconduzindo-as a
processos elementares que se referem a fatos fundamentais (sensações,
representações, etc). A construção de processos superiores é regulada por legalidades
que regem o processo psíquico como tal e que, portanto, explicam o psíquico nele
mesmo. A atomização e a construção dos processos psíquicos pressupõem a unidade do
psíquico como uma concatenação objetiva, ou seja, de processos ou elementos que se
dão a modo de coisas, ocorrências, fatos, só que de natureza psíquica e não física. Tais
processos podem ser “descritos” empiricamente e “explicados” com base nas leis que
os regem, leis psíquicas, diferentes das leis físicas, mas, no fundo similares, pois também
no âmbito psíquico se depara com algo como “energia psíquica”, “causalidade psíquica”,
etc (HEIDEGGER, 1987a, 61).
Toda vivência é vivência de alguma coisa e este vivenciar tem o modo de ser de um
dirigir-se-a-alguma-coisa, ser-consciência-de-alguma-coisa, mirar-a-alguma-coisa. Dito
de modo ainda mais formal: todo vivenciar é vivenciar-alguma-coisa, sendo, ao mesmo
tempo vivência-da-vivência, consciência-da-consciência: autoconsciência enquanto
consciência de alguma coisa. Em percebendo, em imaginando, em sentindo, em
recordando, em querendo, em pensando, eu vivencio alguma coisa, ao mesmo tempo
em que vivencio, cada vez, a vivência mesma.
Caso nós dirijamos um olhar simples para o que de modo simples e imediato se dá cada
vez na vivência, não apreenderemos de modo algum um processo, uma ocorrência, algo
de objetivo, de factual. O considerar a vivência como algo que ocorre em mim, como um
processo na minha psique, como uma ocorrência psíquica em geral, já é uma
interpretação que não apreende o que se dá, de fato, em meu viver, cada vez que tenho,
isto é, realizo ou sofro, esta ou aquela vivência. A coisificação e objetivação da vivência
já é um cair fora da dimensão originária em que vivência se dá como vivência: da
dimensão originária da vida.
Todo vivenciar alguma coisa é também e antes de tudo um viver, que se abre para
alguma coisa, um desabrochar da vida. Que cada vivência, enquanto auto-efetivação e
auto-afeição da vida, precise, cada vez, de um eu individual para se concretizar, já não é
um dado particular, ou seja, já não é um dado, que diz respeito apenas ao meu eu
individual, mas é um dado universal, pois toca a todos os eus. Assim, o que chamamos
de “eu” não é a fonte da vivência, mas apenas uma sua passagem; é certamente uma
condição, necessária, mas não suficiente. Que a vida, através do desabrochar e da
fluência de suas infindas vivências, constitua, cada vez, um eu, que, como subjetividade
empírica, individual, com esta ou aquela fisionomia e identidade particular –, este
acontecimento não depende, em última instância, de cada eu individual, não é algo que
lhe está ao arbítrio, mas o seu ser “eu” já o pressupõe. Com outras palavras:
320
Só que seria errôneo interpretar o “aqui” no sentido da espacialidade do espaço físico
e o “agora” no sentido da temporalidade do tempo físico. O “aqui” se refere a uma espacialidade
eu vivo nela, ela pertence à minha vida, não obstante seja, segundo o seu sentido,
desvinculada de mim, sim, de certo modo, absolutamente distante de mim (HEIDEGGER,
1987a, 69).
Eu posso fazer a experiência das minhas vivências, e de mim mesmo se dando sempre
junto com minhas vivências, mas toda tentativa de objetivar a vivência e o meu eu, de
apreendê-los como uma coisa, um processo, um fato, um objeto, resulta vão, pois
falsifica o sentido mais próprio de ser destes fenômenos. O vivenciar não é nenhuma
coisa, não é também uma ocorrência, algo que começa e termina como um pro-cesso.
O “comportar-se com” não é uma coisa à qual se ajunta uma outra coisa, o “algo” com
que se comporta. Na verdade, o vivenciar e o vivenciado, como tais, não são nunca
acoplados como objetos que meramente ocorrem, que brutalmente existem. Esta não
coisalidade da vivência, do eu, da intencionalidade é já uma boa indicação para nossa
reflexão, embora seja ainda uma indicação apenas negativa, que precisa de ulterior
clarificação.
Tentemos tornar presente, de modo mais claro, aquilo que estamos dizendo. Façamos
esta presentificação com base numa vivência concreta: a vivência da percepção.
Quando, neste momento, falamos de “percepção” estamos pensando num caso bem
concreto de percepção: a percepção de uma coisa, que se dá aqui, diante de mim, no
meu ambiente de trabalho, no meu mundo circunstante. Tentemos ver de modo simples
o que acontece com e na percepção de alguma coisa, no caso, na percepção desta mesa
onde escrevo, desta escrivaninha. Para poder ver de modo simples, porém, é preciso
afastar toda interpretação, que já parte de determinados pressupostos inquestionados:
tal como o pressuposto de que a percepção é algo que se dá numa relação de sujeito-
objeto, de que é um resultado da combinação de sensações, é o produto de estímulos
nervosos, etc. Tentemos ver de modo imediato o que se dá de modo imediato.
originária, assim como o “agora” pertence a uma temporalidade originária, que não podem ser
compreendidos a partir da espacialidade e da temporalidade das coisas. Por outro lado, também
seria problemático interpretar o “aqui” e o “agora” no sentido de uma espacialidade e
temporalidade psíquica, se continuamos compreendendo o psíquico a partir do físico. Há que se
interpretar a espacialidade e a temporalidade da nossa presença no seu modo de ser mais
próprio e só aí poder dizer o que significa uma provável espacialidade ou temporalidade
“psíquica”. O caminho contrário é inviável.
Entrando no meu quarto, eu vejo a minha escrivaninha. O que vejo, quando vejo a minha
escrivaninha? Vejo uma coisa de madeira, de cor amarelada, alta e larga tantos
centímetros? Não, eu vejo a minha escrivaninha: este móvel útil como apoio para
escrever; móvel que se dá junto com outros móveis deste quarto, tais como cadeiras e
estante de livros; móvel que traz em si um computador, uma luminária, lápis, caneta,
papel, disquetes, livros. Se um visitante entrar em meu quarto, verá esta mesa da
mesma forma e saberá: ali está a mesa onde meu amigo trabalha, onde ele escreve sua
tese, onde estuda e prepara suas aulas. É verdade que, tanto eu quanto meu amigo
vemos esta mesa como uma coisa feita de madeira, de cor amarelada, que possui esta
extensão, este cumprimento, esta largura. Mas não é assim que, primeiro vejo esta coisa
como mera coisa de madeira, para então colar sobre ela um significado: o de
escrivaninha. Vejo desde já uma escrivaninha, este móvel que tem esta utilidade
específica: servir de apoio para ler e escrever. Vejo-a como este móvel que aparece junto
de outros móveis. Vejo de que ele é feito, se está bem conservado ou não, se precisa de
uma nova pintura ou não. Mas isto nada tem a ver com ver a escrivaninha como um
mero objeto que ocorre aí no espaço, com esta ou aquela extensão, esta ou aquela
configuração. Ao ver esta escrivaninha eu não a vejo como mera coisa extensa, mas
como coisa-de-uso. Eu não a vejo como uma coisa, que primeiro aparece na sua brutal
existência, no existir enquanto ocorrer nu e cru, mas eu a vejo como coisa com este
significado: o de ser escrivaninha. O significado não é algo que se cola à coisa de modo
posterior à percepção da coisa na sua crueza. A coisa, percebida como coisa de uso, já
aparece com um significado: escrivaninha. Contudo, vamos supor que alguém nunca
tenha visto uma escrivaninha na sua vida, não saiba ler nem escrever. Ao entrar no meu
quarto ele verá a escrivaninha como mera coisa de madeira, os livros como papéis
tingidos com manchas pretas, o computador como uma caixa de metal qualquer?
Certamente que não! Ele verá “trens”, “troços” que, para ele, não servem para nada.
Mas um “troço” não é uma mera coisa. Um “troço” é uma coisa de uso que adquire a
significação de importunidade, ou cuja referência de uso, a referência do seu “para-que-
serve” permanece indeterminada. Pode ser que este alguém, sendo meu amigo, me
respeita e respeita o meu trabalho. Neste caso, ao entrar no meu quarto ele irá ver o
meu ambiente de trabalho com todas as suas “tralhas” e, mesmo não sabendo o que
fazer com elas, irá considerá-las como coisas que fazem parte do mundo deste amigo,
deste amigo que, diferente dele, passou anos estudando na escola e até hoje gosta de
estudar, que sempre está preocupado em escrever...
Vivendo, cada vez, num mundo circunstante, sempre e por toda a parte, tudo é dotado
do caráter de mundo, tudo é significativo para o mundo da vida. Por toda a parte e
sempre o mundo acontece como mundo (HEIDEGGER, 1987a, 70-73).
321
Faz parte da essência intencional (intentionales Wesen) de todo o ato (Akt) o seu sentido apreensional
(Auffassungssinn), juntamente com a sua modalidade própria de ser consciência-de (Bewusstseinsweise).
Com efeito, cada modalidade de ser-consciência-de é uma modalidade de ter-em-mira-alguma-coisa,
sendo que, este “alguma coisa” jamais se dá como algo neutro, mas sim como um algo determinado, que
apresenta este ou aquele significado para a consciência. Neste sentido, a intencionalidade é constituinte
da significância de tudo aquilo que pode ser vivenciado na experiência da vida. Todo ato é, enquanto
intencional, um dar significado àquilo, que, nele e para ele, se manifesta (bedeutungsverleihender Akt).
Por conseguinte, todo o ato, enquanto intencional, possui a sua essência significacional
(bedeutungsmässigen Wesen). Todo “alguma coisa” vivenciado terá, pois, o sentido de significância
(Bedeutsamkeit). O mundo será, portanto, a totalidade da significância, em que eu, cada vez, vivo.
322
O “neutro”, o in-diferente da desmundanização, contudo, ainda é um modo de significância.
de encontro, algo me toca, me provoca, me fascina. Disto é testemunha a poesia, a arte,
a experiência religiosa, o pensar filosófico, que se compreende como tal.
323
Aqui o adjetivo “mundana”, referida à vida, não tem a conotação usual que esta palavra recebe a partir
de um juízo moral ou a partir de uma concepção religiosa ou sacral qualquer. É tomada no seu sentido
literal: trata-se daquilo que guarda uma relação íntima com o mundo. Por sua vez, não deve também ser
entendida no sentido daquilo que ocorre dentro do mundo. Aqui a palavra vida não significa algo que
ocorre dentro do mundo, uma propriedade de entes que nós chamamos de viventes (plantas, animais) e
que ocorrem dentro do mundo. Ao contrário, aqui a palavra vida está acenando para o acontecer do
mundo nele mesmo, no seu próprio.
324
Por enquanto é inevitável que palavras primordiais como “mundo” e “vida” permaneçam
indeterminados. Vamos dando apenas alguns acenos para, na medida em que a reflexão avançar, revelar
a profundidade daquilo que, aqui, apenas se anuncia. Assim, o aceno para a historicidade e temporalidade
originária da vida deve aparecer, aqui, como apenas um aceno. Muito ainda nos falta para chegarmos a
esclarecer o que este aceno está insinuando.
325
Estamos traduzindo, aqui, o verbo alemão “es ereignet” por acontece. Tudo porém depende de se
entender o verbo “acontece” não na indiferença do “ocorre”. A palavra evento quer se referir aqui ao
acontecer como inauguração de uma nova possibilidade da vida mesma. É assim que um poeta canta: “...
E da minha infinita tristeza aconteceu você” (Jobim). O verbo “er-eignen” parece sugerir que “Ereignis” é
o que faz com que algo seja propriamente o que é, o que pro-voca algo a ser o seu próprio (“eigen”) ser.
Esta palavra, que terá um peso decisivo no pensamento de Heidegger a partir dos anos trinta, aqui
aparece de modo ainda não determinado em sua profundidade, amplidão e originariedade. Mas o modo
como ela aparece aqui pode ser o pressentimento do que jaz mais profundamente e que já de algum
modo se anuncia neste nível da reflexão fenomenológica.
III. A VIVÊNCIA DA PERCEPÇÃO COMO CASO EXEMPLAR PARA A
ANÁLISE DA INTENCIONALIDADE
Se compreendo que cada vivência, por mais cotidiana e modesta que seja, a percepção
natural de uma coisa, por exemplo, é um evento onde cada vez acontece a vida,
acontece o mundo, onde eu mesmo “aconteço” como ser-no-mundo-da-vida, então
abre-se, para mim, um novo caminho para a compreensão daquilo, a que a descoberta
da intencionalidade quer conduzir.
O desafio primeiro deste caminho é deixar vir à fala a vida na sua pregnância. Trazer à
fala não significa necessariamente representar e objetivar. Vivendo, somos provocados
a deixar vir à fala, na imediaticidade do seu dar-se, a vida mesma, o mundo que ela faz
surgir, a cada vez. As palavras devem ser ressonância, vibração da vida mesma. Elas
devem provir da vida e, no curso de seu discurso, jamais deixar para traz sua
proveniência. Elas hão de expressar as motivações e as tendências da vida. A linguagem
ela mesma há de poder acontecer com a vida. O pensar e o falar devem se tornar não
objetivantes, ou seja, devem poder vivenciar o viver da vida mesma e, no vivenciar, já
compreender e expor, na linguagem, o que aí se abre e se revela. Somente em uma tal
intuição hermenêutica podemos seguir o fio condutor da intencionalidade como
descoberta fundamental da investigação fenomenológica (HEIDEGGER, 1987a, 117).
Por agora, estamos acenando para esta região de fenômenos: a vida. Nós tentamos, de
início, realizar a fenomenologia como a ciência originária desta região originária e
fundamental, que aqui chamamos com o nome, ainda um pouco indeterminado, de
vida. Por sua vez, aqui a palavra ciência não deve, certamente, ter nada a ver com
objetivação ou com construção teorética, já que esta região não se deixa objetivar e
toda tentativa de sistematização, de construção teorética, soa arbitrária e acaba
fechando o acesso aos fenômenos, em vez de abrí-los. Trata-se, portanto, não de uma
ciência positiva, ôntica, mas de uma ciência fundamental, ontológica.
A fim de fazer uma incursão nesta região originária da vida nós queremos seguir o fio
condutor daquilo, que foi anunciado inicialmente como estrutura das vivências da vida,
que se dá, de modo imediato, na nossa experiência: a intencionalidade. Nós tentamos
uma compreensão mais aprofundada do seu sentido mais próprio e da sua constituição.
Dizíamos que cada vivência, cada ato ou comportamento, é caracterizado pela intentio,
ou seja, pelo dirigir-se a alguma coisa. Dizíamos também que este dirigir-se-a tem o
modo de ser de um mirar a alguma coisa e de um ser consciência de alguma coisa.
Assim, o representar é representar de alguma coisa, a recordação é recordação de
alguma coisa, esperar, amar, odiar são sempre esperar, amar, odiar alguma coisa. Já
dissemos que isto pode soar como uma imensa banalidade. Pode também ser tomado
como uma mera tautologia. Contudo, já no primeiro passo da nossa investigação,
começamos a descobrir que aí se esconde uma estrutura peculiar, a priori, de toda
vivência, a estrutura do referimento intencional. É preciso abordar essa estrutura,
guardando sempre o cuidado de não entender a intencionalidade como relação
indeterminada de algo psíquico com algo físico. E alertados para a indicação de que o
que chamamos de vivência nada tem a ver com a ocorrência de algo psíquico dentro de
uma “cápsula” chamada consciência, tentemos agora seguir de modo mais concreto e
explícito o fio condutor da intencionalidade.