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As palavras cristalinas nem sempre são transparentes, mas entram no entendimento de todos.

Emanam energia de mil cores.


As palavras-punhal ferem de mansinho ou esfaqueiam-nos barbaramente. Produzem cortes
que logo se curam ou que nunca mais voltarão a cicatrizar.
As palavras incendiárias invadem-nos abruptamente, deixando-nos sem defesa. Por vezes,
criam desejos e fantasias que se poderão sublimar ou talvez não.
As palavras orvalho aparecem pela manhã, leves e refrescantes, líquidas e macias. Alimentam-
nos as flores da alma.
As palavras secretas habitam em nós em locais inacessíveis, repletas de teias de aranhas. Às
vezes, moram em baús e ficam como palavras-memória.
As palavras inseguras saem tremidas porque sem certezas. Por vezes, mais verdadeiras que as
seguras, mas ninguém as ouve.
As palavras-barcos fazem-nos navegar em livros-oceanos. As palavras-beijos acarinham-nos e
confortam-nos.
Quando são luz, preenchem-nos de conhecimento e quando são noite, são pensamentos
estrelados, salpicados na escuridão.
Verdes paraísos de palavras são oasis em desertos afectivos e há as palavras crueis que
desfazem mesmo as conchas mais puras.

O poema é constituído por quatro estrofes, duas quintilhas e duas


quadras. A maioria dos versos são soltos/brancos havendo apenas uma rima
que é cruzada, pobre e consoante. Divide-se o poema em duas partes: a
primeira que se ocupa das três primeiras estrofes e a segunda que se ocupa
da última; uma divisão lógica pois na primeira parte o “eu” poético limita-se
a descrever as palavras e na segunda e última o “eu” interroga os leitores
acerca das palavras também. Quanto à forma icónica o poema revela-se
irregular.

São usadas algumas figuras de estilo como a comparação - “São


como um cristal, as palavras.” ; metáfora – “Secretas vêm, cheias de
memória. Inseguras navegam (…).”, “Tecidas são de luz”, “ (…) são noite.”;
antítese – “Tecidas são de luz e são noite.”; enumeração – “(…) cruéis,
desfeitas (…).”, “Desamparadas, inocente, leves (…)”; interrogações
retóricas – Quem as escuta? Quem as recolhe (…) nas suas conchas
puras?”.

As Palavras

Literatura Portuguesa
Este texto de Eugénio debruça-se, como já foi referido, sobre o valor polissémico das palavras.

No primeiro verso o sujeito poético visa enfatizar a comparação,recorrendo ao hipérbato, –


“São como um cristal, as palavras.” – colocando-a no início do verso. As palavras são
comparadas com um cristal pois estas,tal como os cristais, possuem várias “faces”, quer isto
dizer, podem adquirir vários significados (polissemia). Na primeira estrofe ainda, as palavras
sãoidentificadas como: um punhal o que remete o leitor para a agressividade,morte e
consequentemente dor e sofrimento; um incêndio, o que apontapara a destruição; e
finalmente como orvalho “apenas” que se refere àcalma, à suavidade, à brandura.

A segunda estrofe inicia-se com uma alusão às palavras como essenciais e intemporais pois
atravessam os tempos e trazem consigo ashistórias e os segredos dos homens; funcionam
como elemento essencial nacomunicação entre os seres falantes desde a antiguidade. O resto
da estroferevela a insegurança que os barcos, que agitam as águas, causam assim como as
palavras, que agitam as pessoas causam insegurança; os beijostambém fazem estremecer.

Na estrofe seguinte as palavras são caracterizadas comodesamparadas, inocentes e leves;


todas características com sinais de fragilidade, ingenuidade pois por si próprias o representam
qualquer perigo.No entanto podem ser usadas de várias formas (até ofensivamente ou
maliciosamente, etc.). Na metáfora antitética subsequente o sujeito poéticopretende “avisar”
da conotação das palavras. Tecido é algo que revesteportanto as palavras são cobertas com luz
(alude à claridade, transparência)mas no entanto são a noite (refere-se à escuridão,
obscuridade). Nos dois versos seguintes reconhece-se que mesmo que as palavras não sejam
intensas, “descoloridas”, ainda assim podem lembrar-nos locais aprazíveis, “coloridos” por
assim dizer.

O eu poético acaba o poema com duas interrogações retóricas onde o papel do leitor é
salientado. Na realidade o autor não pretende que se identifiquem os leitores mas pretende
dizer que cada leitor pode interpretaras palavras de diferentes modos e atribuir-lhes um
sentido de acordo com a sua experiência de vida, de foro pessoal; são os leitores que vão
receber as palavras nas suas conchas puras.

Neste poema, Eugénio de Andrade aborda o tema da reflexão sobre o valor polissémico das
palavras.

No primeiro verso, São como cristal, assenta a ênfase da primeira comparação, criando
expectativa. As palavras são definidas como um punhal (remete para agressividade, morte e,
sofrimento); como um incêndio (alude á destruição e purificação; e são como orvalho (refere a
suavidade, esperança e acalmia). As palavras contêm contradições – positividade versus
negatividade – Tecidas são de luz/ e são a noite. As palavras têm uma história secular:
atravessam os temos, recebem novos significados, evoluem, carregam os segredos da história
dos homens e acompanham os seres falantes como instrumento indispensável de
comunicação; trazem consigo um saber muito antigo (Secretas vêm, cheias de memória).

Os versos Inseguras navegam/barcos ou beijos/as águas estremecem, revelam insegurança


quer das palavras, que agitam as pessoas; quer dos barcos, que agitam as águas. No amor,
representado pelos beijos, ninguém fica indiferente às palavras nem aos beijos.

O poeta destaca qualidades para as palavras. As palavras são caracterizadas de desamparadas,


porque estão ao alcance de todos; inocentes, por si próprias não representam qualquer
perigo, mas podem ser usadas e abusadas; leves, quando não têm carga conotativa no texto.
Apenas adquirem sentido quando colocadas num texto, onde se cruzam vários sentidos
(Tecidas são de luz). Quando estão fora do texto, são a noite.

O papel do leitor é realçado na última quadra, porque são os leitores que vão abrir as conchas
puras, palavras inseridas em cofres cheios de sentidos. Cada “receptor” recolhe da palavra o
significado que quiser, de acordo com a experiência de vida. As interrogações retóricas “Quem
as escuta? Quem/as recolhe, assim, /cruéis, desfeitas, /nas suas conchas puras?” apelam à
releitura das palavras.

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