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Boaventura de Sousa Santos e Maria Paula Meneses


(Orgs.) (2009). Epistemologias do Sul.
Coimbra: Almedina, 532 pp.

O mundo é um complexo mosaico multi- nação política e cultural submetendo à sua


cultural. Todavia, ao longo da modernidade, visão etnocêntrica o conhecimento do mun-
a produção do conhecimento científico foi do, o sentido da vida e das práticas sociais.
configurada por um único modelo epistemo- Afirmação, afinal, de uma única ontologia,
lógico, como se o mundo fosse monocultu- de uma epistemologia, de uma ética, de um
ral, que descontextualizou o conhecimento modelo antropológico, de um pensamento
e impediu a emergência de outras formas de único e sua imposição universal.
saber não redutíveis a esse paradigma. Assis- A partir de perspectivas e linhas de inves-
tiu-se, assim, a uma espécie de epistemicídio, tigação distintas, esta obra pretende res-
ou seja, à destruição de algumas formas de ponder, essencialmente, a duas questões: a
saber locais, à inferiorização de outros, des- primeira diz respeito às razões que condu-
perdiçando-se, em nome dos desígnios do ziram à eliminação dos contextos políticos
colonialismo, a riqueza de perspectivas pre- e culturais da produção do conhecimento e
sente na diversidade cultural e nas multifa- suas consequências; a segunda, partindo da
cetadas visões do mundo por elas protago- ideia de que o mundo é epistemologicamen-
nizadas. Trata-se, pois, de propor, a partir da te diverso, relaciona-se com a possibilidade
diversidade do mundo, um pluralismo epis- de afirmação de epistemologias alternativas,
temológico que reconheça a existência de de abertura a outros desafios epistémicos,
múltiplas visões que contribuam para o alar- substancializados na expressão conceptual
gamento dos horizontes da mundaneidade, e metafórica Epistemologias do Sul. Histori-
de experiências e práticas sociais e políticas camente, do conhecimento e da sua produ-
alternativas. Não se questiona a importância ção foram eliminadas as relações sociais, as
e o valor da intervenção científica ao longo respectivas práticas e os contextos sócio-
dos dois últimos séculos, sobretudo através culturais, eliminação que conduziu à afirma-
da produtividade tecnológica, mesmo tendo ção mistificante e ilusória de uma ideologia
em consideração os problemas criados para de neutralidade científica. Efectivamente, a
os quais a ciência moderna não tem solução. epistemologia dominante fundamenta-se em
No entanto, este monopólio da ciência não contextos culturais e políticos bem defini-
pode ocultar e impedir-nos de reconhecer dos: o mundo moderno cristão ocidental, o
que há outras formas de conhecimento e colonialismo e o capitalismo. Neste sentido,
outros modos de intervenção no real para a produção do conhecimento, o modo como
os quais a ciência em nada contribuiu. É o se faz, onde se faz e o que se faz não é ex-
caso, por exemplo, da «preservação da bio- terior aos contextos sociais e políticos que
diversidade, só possível por formas de co- o prefiguram e configuram. Afirmar, pois, a
nhecimento camponesas e indígenas e que, exclusividade de uma epistemologia com
paradoxalmente, se encontram ameaçadas pretensões universalizantes tem um duplo
pela intervenção crescente da ciência mo- sentido: por um lado, a redução de todo o
derna.» (p. 49) conhecimento a um único paradigma, com
A expressão Epistemologias do Sul é uma as consequências de ocultação, destruição e
metáfora do sofrimento, da exclusão e do menosprezo por outros saberes e, por ou-
silenciamento de povos e culturas que, ao tro, a descontextualização social, política e
longo da História, foram dominados pelo ca- institucional desse mesmo conhecimento,
pitalismo e colonialismo. Colonialismo, que conferindo-lhe uma dimensão abstracta mais
imprimiu uma dinâmica histórica de domi- passível de universalização e absolutização e

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que possa servir de quadro teórico legiti- lizados na apropriação e na violência. O que
mador de todas as formas de dominação e caracteriza este pensamento abissal é a im-
de exclusão. possibilidade de co-presença entre os dois
A revolução das tecnologias de informa- lados da linha referidos (p. 24). No domínio
ção e comunicação permite tornar visíveis do conhecimento, a ciência e o direito cons-
as contradições do capitalismo, as formas tituem as manifestações mais bem consegui-
cada vez mais subtis e simbólicas de domi- das deste pensamento abissal na medida em
nação e, com maior acuidade, permite tam- que definiram, do ponto de vista científico, a
bém a visualização da diversidade cultural e distinção entre verdadeiro e falso e, do pon-
epistemológica do mundo. Estas condições to de vista jurídico, a distinção entre legal
possibilitam a crítica de um regime episte- e ilegal, impondo, internacionalmente, esta
mológico dominante e, simultaneamente, distinção através do direito internacional.
a identificação e urgência de alternativas Estas distinções eliminam quaisquer realida-
epistemológicas, ainda que os obstáculos des que se situem do outro lado da linha
múltiplos à sua afirmação e concretização enquadrando-as num universo para além da
também se tornem visíveis. De facto, o ca- legalidade e ilegalidade e para além da ver-
pitalismo global é, mais do que um modo de dade e da falsidade. Deste ponto de vista,
produção, um regime cultural e civilizacional esta negação radical produz, para além da
que se impõe de um modo tentacular a to- negação de estatuto epistemológico aos sa-
das as instituições sociais, ao modo de vida beres diversos uma dualidade antropológica
dos cidadãos, aos comportamentos sociais, e ética: os seres humanos do Norte e a au-
produzindo uma consciência colectiva impe- sência de humanidade no Sul. A superação
ditiva da afirmação de outras práticas. Os do pensamento abissal exige, de acordo com
dominados, deserdados e oprimidos, sem o autor, o reconhecimento da persistência
que tenham verdadeira consciência, con- desse pensamento para que se possa pensar
figuram os seus comportamentos a partir e agir para além dele (p. 44) em direcção
das representações dos dominadores, o que a «um pensamento pós-abissal» (p. 32), que
constitui um dos grandes obstáculos à críti- pense a partir do outro lado da linha, a par-
ca e denúncia da dominação e à consequen- tir de uma epistemologia do sul e confron-
te libertação. tando o monoculturalismo do Norte com
Na primeira parte da obra, dividida em uma ecologia de saberes, uma espécie de
três capítulos e sob o título Da Colonialida- contra-epistemologia, que nega a existência
de à Descolonialidade, identifica-se o modo de uma epistemologia geral e se baseia no
como se afirmou historicamente a diferença reconhecimento de uma pluralidade de co-
epistemológica, estabelecendo-se a relação nhecimentos heterogéneos que se cruzam
entre a dominação económica, política e cul- entre si. Lutar por uma justiça social global
tural e a dominação epistemológica traduzi- implica, afinal, uma luta pela justiça cognitiva
da, por um lado, na hierarquização dos sabe- global transformando a impossibilidade de
res e, por outro, na negação da diversidade. co-presença em co-presença radical em que
A partir da metáfora do pensamento abis- «as práticas e agentes de ambos os lados
sal, Boaventura de Sousa Santos defende, da linha são contemporâneos em termos
no 1º capítulo, que o pensamento moderno igualitários.» (p. 45). Num tempo em que
consiste num sistema de distinções visíveis e se formulam perguntas fortes, não havendo
invisíveis que dividem a realidade social em para elas respostas fortes, a ecologia dos
dois universos ontologicamente diferentes. saberes constitui-se através de um questio-
O lado de cá da linha, correspondendo ao namento forte para respostas incompletas. É
Norte imperial, colonial e neo-colonial e o por isso que é um conhecimento prudente
lado de lá da linha, ao qual corresponde o permitindo a abertura de novos horizontes
Sul colonizado, silenciado e oprimido. Este epistemológicos e o exercício da auto-re-
lado não tem realidade ou, se a tem, é em flexividade.
função dos interesses do Norte operaciona- Aníbal Quijano, no capítulo 2, Colonialidade

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do poder e classificação social, desenvolve o nantes (superiores europeus, raça branca) e


conceito de colonialidade. Dialogando com dominadas (inferiores não europeus, raças
a tradição marxista, procura uma interpreta- de cor). A partir desta classificação facil-
ção epistemológica da dominação do Norte mente se afirmou o poder do Norte sobre
global sobre o Sul, aqui considerado como o Sul e se legitimou o controlo territorial e
América latina. A colonialidade é consti- dos respectivos recursos produtivos e natu-
tutiva do poder capitalista operando quer rais. A partir do conceito de colonialidade,
nos domínios da vida social quer nos âmbi- o autor mostra a sua relação indissociável
tos da subjectividade e intersubjectividade com a classificação social, a articulação en-
através de instrumentos de coerção tendo tre política e questões geoculturais, a dis-
em vista a reprodução e perpetuação das tribuição mundial do trabalho, as relações
relações sociais de dominação. Partindo de culturais e intersubjectivas, a dominação e
uma perspectiva e análise históricas, des- a exploração. A libertação, defende o autor,
constrói a tese de que os indivíduos estão passa por um comprometimento com a luta
historicamente submetidos a padrões de pela destruição de todas as formas de co-
conduta invariáveis no tempo e no espaço lonialidade, incluindo aquela que é exercida
e sujeitos a um destino previamente traça- sobre o corpo como «nível decisivo das re-
do, tese que, afinal, justificaria e legitimaria lações de poder.» (p. 113)
todas as formas de exploração e dominação, No capítulo 3, Conhecimento de África, co-
fundadas, em última instância, numa ordem nhecimento de africanos: duas perspectivas so-
metafísica, predeterminada por uma entida- bre os estudos africanos, Paulin J. Hountondji
de transcendente e providencial. Contra- defende, a partir de uma perspectiva filosó-
argumenta, também, em relação às teses de fica, que os denominados estudos africanos
carácter biológico que defendem um estado estão marcados por «uma espécie de peca-
e estatuto social em função de determina- do original» (p.125) por estarem impregna-
ções genéticas. Ninguém está geneticamen- dos de eurocentrismo e, consequentemente,
te destinado a ser trabalhador manual ou por uma visão etnocêntrica. Os europeus
intelectual; do mesmo modo, ninguém está partiram do princípio de que os africanos
geneticamente destinado a ser dominador não tinham consciência de si e, por isso, só
ou dominado. As categorias sociais são pro- os ocidentais, poderiam, a partir do exte-
dutos histórico-sociais e, simultaneamente, rior, «traçar um quadro da sua sabedoria.»
mecanismos do poder tendo em vista a sua (p. 121) Só o diálogo intercultural entre os
reprodução e perpetuação. Exemplos disso investigadores poderá contribuir para a su-
são as categorias de género a partir do sexo peração das relações de dominação presen-
e de raça a partir do fenótipo para elabora- tes nos estudos africanos. Por outro lado, há
ção das relações de dominação e, a partir que dar relevância aos estudos etno-filosó-
delas, da construção de outras identidades ficos feitos por africanos que revelam uma
não masculinas nem eurocêntricas (pp.106- enorme riqueza de conhecimentos endóge-
107) e, por isso, excluídas do paradigma úni- nos e possibilitar à África uma apropriação
co de racionalidade que é, na sua essência lúcida e crítica do seu conhecimento.
originária, branco, masculino e ocidental. As Modernidades das Tradições constitui a
«A racialização das relações de poder entre segunda parte da obra. Aqui se discute a an-
as novas identidades sociais e geoculturais tiga dicotomia entre tradição e modernida-
foi o sustento e a referência legitimadora de. Com origem na modernidade ocidental,
fundamental do carácter eurocentrado do esta dicotomia, com repercussões episté-
padrão de poder, material e intersubjectivo. micas, desqualificou os saberes tradicionais,
Ou seja, da sua colonialidade.» (p. 107) A prisioneiros do passado, sem história e des-
população mundial foi classificada de acordo tinados a um estatuto residual. No entan-
com categorias forjadas socialmente pelo to, estes saberes, foram-se revelando como
poder dominante: identidades raciais domi- contraponto à modernidade, nas múltiplas

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resistências à hegemonia da modernidade. bientes rurais como urbanos fazendo par-


Revelaram-se, assim, como modernidades te do discurso e da modernidade presente,
alternativas relegando para a tradição o sa- havendo uma linha de continuidade entre o
ber moderno. Trata-se, também, no domínio passado e o presente. A partir da problema-
epistemológico, da luta entre emancipação e tização das múltiplas interpretações de um
regulação. Neste sentido, torna-se possível caso de tráfico humano, a autora sugere uma
o resgate epistemológico da modernidade reavaliação do período colonial para se en-
ocidental. O conceito de ubuntu, categoria tender o modo como o poder colonial con-
epistémica e ontológica do pensamento dos viveu e pactuou com determinadas práticas
grupos africanos que falam línguas Bantu, de feitiçaria e as relações existentes entre
que significa ser em geral, relações interpes- o tribalismo, diversas formas de religião e o
soais e procura de uma harmonia cósmica, é exercício de poderes locais. No centro da
o fundamento para a análise do processo de polémica e dos conflitos parece ter estado
globalização, abordado no capítulo 4. Mogo- uma questão central: o direito à terra cedi-
be Ramose interpela, de um ponto de vista da a um casal estrangeiro para aí implantar
filosófico, a globalização neo-liberal a partir um aviário. As acusações de feitiçaria e de
de um dos seus principais pressupostos e tráfico de órgãos, equivalentes à acusação
efeitos: a dissolução metafórica das frontei- de canibalismo, teriam tido por objectivo
ras. Considera que antes da globalização ne- a expulsão dos acusados da comunidade por
oliberal já o colonialismo tinha destruído as uma questão de manutenção dos seus terre-
fronteiras fora da Europa através do ques- nos. «Este movimento de base popular, com
tionável ‘direito de conquista’, extinguindo, várias conotações e cambiantes políticos,
de facto, a soberania das populações indíge- utilizou as acusações de feitiçaria como uma
nas (p. 153). O seu raciocínio vai no senti- forma de violência contra os seus inimigos
do de considerar absolutamente paradoxal políticos.» (p. 197). Terá sido, portanto, um
e inconcebível a existência de diferenças desafio de uma comunidade à possibilidade
profundas entre seres humanos num quadro de afirmação de um outro poder, manifes-
de dissolução de fronteiras. Defende que o tando e expondo as verdadeiras relações de
processo de globalização hegemónica, atra- poder. O conhecimento profundo da cultu-
vés da sua lógica de mercado e dos valores ra tradicional de Moçambique, entrelaçado
que promove, tem produzido efeitos pro- com as interacções entre as questões de na-
fundamente negativos nos povos africanos. tureza política, religiosa e económica, cons-
O ubuntu, ao valorizar a pessoa, as relações tituem um desafio à ortodoxia interpreta-
harmoniosas entre elas e com o cosmos, na tiva do ocidente e permitem, seguramente,
procura de uma harmonia entre o homem e outras leituras dos problemas africanos.
o universo, representa uma alternativa epis- No capítulo 6, O resgate da epistemologia,
temológica que pode contribuir para dar um João Arriscado Nunes analisa, com base em
outro sentido à vida humana e repensar a conceitos de Boaventura de Sousa Santos
questão dos direitos humanos a partir de (pensamentos abissal e pós abissal), já aqui
uma perspectiva holística. referidos, o debate que se trava na episte-
Maria Paula Meneses discute, no capítulo mologia contemporânea. O autor discute,
5, intitulado Corpos de violência, linguagens num primeiro momento, os rumos da crítica
de resistência: as complexas teias de conhe- da epistemologia enquanto projecto indisso-
cimentos no Moçambique contemporâneo, os ciável do projecto da ciência moderna. Esta
conflitos entre conhecimentos diferentes crítica reconfigura a reflexão epistemológica
e as suas consequências práticas. Defende a partir de um debate centrado nas ciências
que a dimensão mágica da política em África e nas respectivas práticas. Seguidamente, o
faz parte da natureza da autoridade pública, autor, revisitando o pragmatismo, propõe al-
da liderança e das identidades populares. A gumas pontes entre essa crítica e a proposta
feitiçaria, o pensamento mágico persistem de uma epistemologia do Sul global.
como conceitos e realidades, tanto em am- O debate sobre o ‘encerramento do Ijtihad’ e

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a sua crítica, de Liazzat J. K. Bonate, constitui diferente dos tipos de desenvolvimento» (p.
o capítulo 7 desta obra. A autora faz uma 269) ocorridos noutros países. Considerar
análise crítica através do recurso a algumas que progresso significa a perfectibilidade
referências teóricas que conflituam entre infinita de toda a humanidade «em competi-
si, acerca da suposta estagnação e falta de ção com a natureza é inconsistente com as
criatividade no pensamento jurídico-legal noções de humildade e equilíbrio defendidas
muçulmano através da discussão de uma das pelo discurso ético muçulmano» (p. 271).
teorias da jurisprudência islâmica clássica, Por outro lado, não é correcto afirmar a di-
conhecida como o ‘encerramento dos por- cotomia entre tradição e progresso, defende
tões do ijtihad’ ou teoria da abdicação do o autor: «os intelectuais e os activistas têm
uso da razão humana para fins de extrapo- a responsabilidade de reformular o conheci-
lação da lei a partir das fontes islâmicas (p. mento da tradição e, portanto, a tradição à
243) e a implementação do taqlid que terá luz das suas experiências contemporâneas»
reflectido a intervenção crescente do Esta- (p. 263).
do nos assuntos jurídicos. Geopolíticas e a sua subversão constitui a
As múltiplas interpretações na consti- terceira parte da obra. O saber moderno,
tuição de conceitos centrais da moderni- historicamente hegemonizado, foi constru-
dade são debatidas e problematizadas por ído em determinados lugares e contextos.
Ebrahim Moosa, no contexto da África do Esta realidade teve, ao longo do tempo,
Sul e do apartheid. O artigo, Transições no consequências e significados para quem o
‘progresso’ da civilização: teorização sobre a produziu e nas suas práticas. Por outro lado,
História, a prática e a tradição incide sobre a significou a subalternização de outros sabe-
realidade do Islão tão desconhecida do oci- res que hoje, identificando a pluralidade de
dente. O conceito de progresso, ideia-chave lugares e os respectivos contextos, podem
da modernidade, é aqui questionado. Para afirmar-se como epistemologias alternativas.
que seja possível superar a antiga dicotomia Meditações anti-cartesianas sobre a origem do
(também muito moderna) entre progresso e anti-discurso filosófico da modernidade, de En-
tradição exige uma análise cuidada do con- rique Dussel, é um interessante e polémico
ceito de progresso interiorizar e questionar artigo, apoiado num amplo quadro teórico,
as práticas e interpretações do Islão. O con- que propõe o deslocamento geopolítico do
ceito de progresso é ambivalente. Tendo em lugar e do tempo que a filosofia ocidental
consideração o significado que lhe foi atri- estabelece como origem e marca da moder-
buído na modernidade, e o seu sentido tele- nidade – Norte da Europa e Século XVII. Re-
ológico, ele contém em si próprio uma visão futar a tese, historicamente aceite, de que
unidimensional e finita. O fim da história, tão Descartes foi o primeiro filósofo moderno,
propagandeado na década de 90 do século através de argumentos bem sustentados em
XX, teria sido o culminar de uma evolução. obras de filósofos jesuítas do Sul da Euro-
Este conceito, na sua etiologia histórica, não pa e da América do Sul que influenciaram
previu, afinal, qualquer alternativa ao mun- o pensamento cartesiano (António Rubio,
do capitalista e neo-liberal. Por outro lado, Francisco Suárez, Pedro de Fonseca, Francis-
a este conceito pode atribuir-se-lhe uma co Sanches), e nos quais se podem encontrar
outra semântica: «o progresso como algo os grandes temas em torno dos quais gira o
de fortuito, ao invés de inevitável, contém pensamento de Descartes, significa transfe-
a promessa de que a mudança pode ocorrer rir para o Século XVI e para o Sul da Europa,
sob diversas e múltiplas formas, e não sob a Norte de África e América Latina a origem
forma de narrativa totalitária de progresso, da modernidade. «Antes de Descartes tinha
induzida pelo cientismo e pelo capitalismo acontecido todo o século XVI, que a história
liberal.» (p.266) Quer afirmar o autor que da filosofia moderna centro-europeia e nor-
o conceito de progresso deve ser contextu- te-americana pretendeu desconhecer até ao
alizado e que, por isso, «um programa pro- presente» (p. 295). «A irrupção nas univer-
gressista na África do Sul seria radicalmente sidades de uma Ordem religiosa completa-

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mente moderna – não simplesmente por es- a possibilidade de uma política anticapita-
tar influenciada pela modernidade mas, sim, lista que supere a política identitária e um
por ser uma das suas causas intrínsecas – os cosmopolitismo crítico que ultrapasse o
jesuítas, impulsiona os primeiros passos de colonialismo e nacionalismo. A possibilidade
uma filosofia moderna na Europa» (p. 299). de afirmação de outros conhecimentos em
Segundo o autor, Descartes e Espinosa (ju- conformidade com o que de melhor tem a
deu hispânico ou sefardita) enquadram-se modernidade possibilitará ultrapassar todas
na segunda modernidade. Interessante, tam- as dicotomias em que o modernismo colo-
bém, a referência a Bartolomé de las Casas nial se fundamentou para afirmar a sua do-
e ao seu pensamento (1484-1566) como o minação. As perspectivas epistémicas prove-
primeiro crítico frontal da modernidade e nientes dos pensamentos de fronteira e das
como defensor intransigente de outras for- margens, dos lados subalternos da diferença
mas de pensar e de ver o mundo, diferentes colonial poderão contribuir para um debate
do pensamento filosófico hegemónico. O profícuo tendo em vista a definição de ou-
autor, propõe-nos, ainda, uma leitura atenta tras cartografias das relações de poder no
do pensamento de Felipe Guamán de Ayala sistema-mundo.
(1615), exemplo de um pensamento crítico Nilma Gomes, no artigo Intelectuais negros
da situação colonial, de um indígena que so- e produção do conhecimento: algumas reflexões
freu os efeitos da dominação. Propõe, final- sobre a realidade brasileira, discute o papel
mente, que se inicie, também, um processo da nova geração de investigadores na produ-
de descolonização filosófica (p. 331). ção do conhecimento científico, sobretudo,
Nelson Maldonado-Torres, em A topologia no domínio das Ciências Sociais. Os novos
do ser e a geopolítica do conhecimento. Moder- olhares dos intelectuais negros na produção
nidade, império e colonialidade, mostra, através do conhecimento trazem uma análise e uma
de um percurso crítico pelo pensamento de leitura críticas de alguém que vivencia o ra-
alguns filósofos ocidentais contemporâneos cismo no seu percurso de vida e académico.
(Heidegger, Lévinas…) a ausência de refle- Finalmente, a quarta parte de Epistemolo-
xão crítica relativamente ao eurocentrismo gias do Sul, intitulada A reinvenção dos lugares,
epistemológico. O eurocentrismo e etno- é uma proposta de regresso aos lugares na
centrismo surgem perfeitamente legitima- busca dos sentidos e da riqueza neles exis-
dos através de conceitos coloniais e racistas. tentes. A modernidade, na sua versão co-
Neste artigo de cariz ontológico e ético, o lonialista, capitalista e neo-liberal esvaziou
autor procura demonstrar que «a ontologia a riqueza de sentidos do mundo, tanto do
heideggeriana e a ética de Lévinas (…) se, Norte global como do Sul global. Os furtos
por um lado, forneceram meios engenhosos do colonialismo, afirma Boaventura, não se
de ultrapassar os limites da ideia ocidental realizaram, apenas, extra-muros, mas tam-
de Homem, por outro, as suas filosofias per- bém intra-muros. Há, pois, que devolver
maneceram cúmplices de formações espa- alguns dos objectos furtados para criar um
ciais de cariz imperial». Ambas as filosofias novo padrão de interculturalidade. Regres-
se encontram «marcadas pelo esquecimen- sar a esses lugares com um outro olhar, mais
to da colonialidade» (p. 339). Recorrendo ao crítico e mais cirúrgico, permitirá a reinven-
pensamento de Fanon que abre um caminho ção do que foi marginalizado, silenciado e
de reflexão encarando a diferença colonial esquecido. Boaventura de Sousa Santos, em
como ponto de partida, propondo uma ou- Um Ocidente não-ocidentalista: a filosofia à
tra geopolítica, o autor configura a sua aná- venda, a douta ignorância e a aposta de Pas-
lise através dos conceitos de modernidade/ cal, propõe-nos, através de uma revisitação,
colonialidade, colonialidade do poder e do pensar um novo tipo de relações intercultu-
conhecimento e colonialidade do Ser. rais e inter-epistemológicas que contribuam
Ramón Grosfoguel, em Para descolonizar para a descolonização do saber.
os estudos de economia política e os estudos Encontros culturais e Oriente: um estudo das
pós-coloniais: transmodernidade, pensamento políticas de conhecimento, de Shiv Visvana-
de fronteira e colonialidade global, questiona than, relembra o dever de memória relati-

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vamente a alguns dos custos do encontro


entre Oriente e Ocidente: «o genocídio, a
erradicação física de grandes massas popula-
cionais, incluindo a virtual extinção das suas
crenças, da sua música e dos seus modos
de vida. Este aspecto necrófilo dos encon-
tros Leste-Oeste é capturado pelo para-
doxo que comummente chamamos museu»
(p. 488), uma espécie de «racionalização da
pirataria.» Contestando a tendência para a
produção de identidades singulares e mono-
culturais, a sua reflexão sobre um conjunto
de pensadores orientais é um apelo à to-
lerância e aceitação de experiências plurais
enriquecedoras, bases inquestionáveis para
uma verdadeira interculturalidade.
Como será possível que algum dia os afri-
canos possam falar as mil e setecentas lín-
guas e dialectos, expressão de uma riquíssi-
ma diversidade e identidade cultural? Esta é
a questão deixada por Dismas Masolo, em
Filosofia e conhecimento indígena: uma pers-
pectiva africana, depois de uma discussão
em torno da etno-filosofia africana. Ques-
tionando a neutralidade das teorias, elabora
uma reflexão sobre o modo como elas são o
resultado de dinâmicas contextuais e, sobre-
tudo, pelas circunstâncias sociais em que são
produzidas. Opondo-se à categorização du-
alizante entre tradição e moderno, o autor
valoriza o conhecimento indígena e o modo
como ele se expressa nas línguas nativas.
Epistemologias do Sul é, a todos os títulos,
uma obra impressionante. Pelo seu volume,
pela diversidade de perspectivas, pelo deba-
te entre posições rivais, pela riqueza con-
ceptual e pela amplitude de horizontes que
abre ao leitor. Para quem foi formatado pelo
pensamento ocidental, pelo colonialismo do
saber e por uma unilateralidade epistemoló-
gica, é um dever intelectual fazer o percurso
pelas alternativas epistemológicas sugeridas
nesta obra. «A energia deve centrar-se na
valorização da diversidade dos saberes para
que a intencionalidade e a inteligibilidade
das práticas sociais seja a mais ampla e de-
mocrática» (p. 18).

Manuel Tavares
manuel.tavares@ulusofona.pt

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