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que possa servir de quadro teórico legiti- lizados na apropriação e na violência. O que
mador de todas as formas de dominação e caracteriza este pensamento abissal é a im-
de exclusão. possibilidade de co-presença entre os dois
A revolução das tecnologias de informa- lados da linha referidos (p. 24). No domínio
ção e comunicação permite tornar visíveis do conhecimento, a ciência e o direito cons-
as contradições do capitalismo, as formas tituem as manifestações mais bem consegui-
cada vez mais subtis e simbólicas de domi- das deste pensamento abissal na medida em
nação e, com maior acuidade, permite tam- que definiram, do ponto de vista científico, a
bém a visualização da diversidade cultural e distinção entre verdadeiro e falso e, do pon-
epistemológica do mundo. Estas condições to de vista jurídico, a distinção entre legal
possibilitam a crítica de um regime episte- e ilegal, impondo, internacionalmente, esta
mológico dominante e, simultaneamente, distinção através do direito internacional.
a identificação e urgência de alternativas Estas distinções eliminam quaisquer realida-
epistemológicas, ainda que os obstáculos des que se situem do outro lado da linha
múltiplos à sua afirmação e concretização enquadrando-as num universo para além da
também se tornem visíveis. De facto, o ca- legalidade e ilegalidade e para além da ver-
pitalismo global é, mais do que um modo de dade e da falsidade. Deste ponto de vista,
produção, um regime cultural e civilizacional esta negação radical produz, para além da
que se impõe de um modo tentacular a to- negação de estatuto epistemológico aos sa-
das as instituições sociais, ao modo de vida beres diversos uma dualidade antropológica
dos cidadãos, aos comportamentos sociais, e ética: os seres humanos do Norte e a au-
produzindo uma consciência colectiva impe- sência de humanidade no Sul. A superação
ditiva da afirmação de outras práticas. Os do pensamento abissal exige, de acordo com
dominados, deserdados e oprimidos, sem o autor, o reconhecimento da persistência
que tenham verdadeira consciência, con- desse pensamento para que se possa pensar
figuram os seus comportamentos a partir e agir para além dele (p. 44) em direcção
das representações dos dominadores, o que a «um pensamento pós-abissal» (p. 32), que
constitui um dos grandes obstáculos à críti- pense a partir do outro lado da linha, a par-
ca e denúncia da dominação e à consequen- tir de uma epistemologia do sul e confron-
te libertação. tando o monoculturalismo do Norte com
Na primeira parte da obra, dividida em uma ecologia de saberes, uma espécie de
três capítulos e sob o título Da Colonialida- contra-epistemologia, que nega a existência
de à Descolonialidade, identifica-se o modo de uma epistemologia geral e se baseia no
como se afirmou historicamente a diferença reconhecimento de uma pluralidade de co-
epistemológica, estabelecendo-se a relação nhecimentos heterogéneos que se cruzam
entre a dominação económica, política e cul- entre si. Lutar por uma justiça social global
tural e a dominação epistemológica traduzi- implica, afinal, uma luta pela justiça cognitiva
da, por um lado, na hierarquização dos sabe- global transformando a impossibilidade de
res e, por outro, na negação da diversidade. co-presença em co-presença radical em que
A partir da metáfora do pensamento abis- «as práticas e agentes de ambos os lados
sal, Boaventura de Sousa Santos defende, da linha são contemporâneos em termos
no 1º capítulo, que o pensamento moderno igualitários.» (p. 45). Num tempo em que
consiste num sistema de distinções visíveis e se formulam perguntas fortes, não havendo
invisíveis que dividem a realidade social em para elas respostas fortes, a ecologia dos
dois universos ontologicamente diferentes. saberes constitui-se através de um questio-
O lado de cá da linha, correspondendo ao namento forte para respostas incompletas. É
Norte imperial, colonial e neo-colonial e o por isso que é um conhecimento prudente
lado de lá da linha, ao qual corresponde o permitindo a abertura de novos horizontes
Sul colonizado, silenciado e oprimido. Este epistemológicos e o exercício da auto-re-
lado não tem realidade ou, se a tem, é em flexividade.
função dos interesses do Norte operaciona- Aníbal Quijano, no capítulo 2, Colonialidade
a sua crítica, de Liazzat J. K. Bonate, constitui diferente dos tipos de desenvolvimento» (p.
o capítulo 7 desta obra. A autora faz uma 269) ocorridos noutros países. Considerar
análise crítica através do recurso a algumas que progresso significa a perfectibilidade
referências teóricas que conflituam entre infinita de toda a humanidade «em competi-
si, acerca da suposta estagnação e falta de ção com a natureza é inconsistente com as
criatividade no pensamento jurídico-legal noções de humildade e equilíbrio defendidas
muçulmano através da discussão de uma das pelo discurso ético muçulmano» (p. 271).
teorias da jurisprudência islâmica clássica, Por outro lado, não é correcto afirmar a di-
conhecida como o ‘encerramento dos por- cotomia entre tradição e progresso, defende
tões do ijtihad’ ou teoria da abdicação do o autor: «os intelectuais e os activistas têm
uso da razão humana para fins de extrapo- a responsabilidade de reformular o conheci-
lação da lei a partir das fontes islâmicas (p. mento da tradição e, portanto, a tradição à
243) e a implementação do taqlid que terá luz das suas experiências contemporâneas»
reflectido a intervenção crescente do Esta- (p. 263).
do nos assuntos jurídicos. Geopolíticas e a sua subversão constitui a
As múltiplas interpretações na consti- terceira parte da obra. O saber moderno,
tuição de conceitos centrais da moderni- historicamente hegemonizado, foi constru-
dade são debatidas e problematizadas por ído em determinados lugares e contextos.
Ebrahim Moosa, no contexto da África do Esta realidade teve, ao longo do tempo,
Sul e do apartheid. O artigo, Transições no consequências e significados para quem o
‘progresso’ da civilização: teorização sobre a produziu e nas suas práticas. Por outro lado,
História, a prática e a tradição incide sobre a significou a subalternização de outros sabe-
realidade do Islão tão desconhecida do oci- res que hoje, identificando a pluralidade de
dente. O conceito de progresso, ideia-chave lugares e os respectivos contextos, podem
da modernidade, é aqui questionado. Para afirmar-se como epistemologias alternativas.
que seja possível superar a antiga dicotomia Meditações anti-cartesianas sobre a origem do
(também muito moderna) entre progresso e anti-discurso filosófico da modernidade, de En-
tradição exige uma análise cuidada do con- rique Dussel, é um interessante e polémico
ceito de progresso interiorizar e questionar artigo, apoiado num amplo quadro teórico,
as práticas e interpretações do Islão. O con- que propõe o deslocamento geopolítico do
ceito de progresso é ambivalente. Tendo em lugar e do tempo que a filosofia ocidental
consideração o significado que lhe foi atri- estabelece como origem e marca da moder-
buído na modernidade, e o seu sentido tele- nidade – Norte da Europa e Século XVII. Re-
ológico, ele contém em si próprio uma visão futar a tese, historicamente aceite, de que
unidimensional e finita. O fim da história, tão Descartes foi o primeiro filósofo moderno,
propagandeado na década de 90 do século através de argumentos bem sustentados em
XX, teria sido o culminar de uma evolução. obras de filósofos jesuítas do Sul da Euro-
Este conceito, na sua etiologia histórica, não pa e da América do Sul que influenciaram
previu, afinal, qualquer alternativa ao mun- o pensamento cartesiano (António Rubio,
do capitalista e neo-liberal. Por outro lado, Francisco Suárez, Pedro de Fonseca, Francis-
a este conceito pode atribuir-se-lhe uma co Sanches), e nos quais se podem encontrar
outra semântica: «o progresso como algo os grandes temas em torno dos quais gira o
de fortuito, ao invés de inevitável, contém pensamento de Descartes, significa transfe-
a promessa de que a mudança pode ocorrer rir para o Século XVI e para o Sul da Europa,
sob diversas e múltiplas formas, e não sob a Norte de África e América Latina a origem
forma de narrativa totalitária de progresso, da modernidade. «Antes de Descartes tinha
induzida pelo cientismo e pelo capitalismo acontecido todo o século XVI, que a história
liberal.» (p.266) Quer afirmar o autor que da filosofia moderna centro-europeia e nor-
o conceito de progresso deve ser contextu- te-americana pretendeu desconhecer até ao
alizado e que, por isso, «um programa pro- presente» (p. 295). «A irrupção nas univer-
gressista na África do Sul seria radicalmente sidades de uma Ordem religiosa completa-
mente moderna – não simplesmente por es- a possibilidade de uma política anticapita-
tar influenciada pela modernidade mas, sim, lista que supere a política identitária e um
por ser uma das suas causas intrínsecas – os cosmopolitismo crítico que ultrapasse o
jesuítas, impulsiona os primeiros passos de colonialismo e nacionalismo. A possibilidade
uma filosofia moderna na Europa» (p. 299). de afirmação de outros conhecimentos em
Segundo o autor, Descartes e Espinosa (ju- conformidade com o que de melhor tem a
deu hispânico ou sefardita) enquadram-se modernidade possibilitará ultrapassar todas
na segunda modernidade. Interessante, tam- as dicotomias em que o modernismo colo-
bém, a referência a Bartolomé de las Casas nial se fundamentou para afirmar a sua do-
e ao seu pensamento (1484-1566) como o minação. As perspectivas epistémicas prove-
primeiro crítico frontal da modernidade e nientes dos pensamentos de fronteira e das
como defensor intransigente de outras for- margens, dos lados subalternos da diferença
mas de pensar e de ver o mundo, diferentes colonial poderão contribuir para um debate
do pensamento filosófico hegemónico. O profícuo tendo em vista a definição de ou-
autor, propõe-nos, ainda, uma leitura atenta tras cartografias das relações de poder no
do pensamento de Felipe Guamán de Ayala sistema-mundo.
(1615), exemplo de um pensamento crítico Nilma Gomes, no artigo Intelectuais negros
da situação colonial, de um indígena que so- e produção do conhecimento: algumas reflexões
freu os efeitos da dominação. Propõe, final- sobre a realidade brasileira, discute o papel
mente, que se inicie, também, um processo da nova geração de investigadores na produ-
de descolonização filosófica (p. 331). ção do conhecimento científico, sobretudo,
Nelson Maldonado-Torres, em A topologia no domínio das Ciências Sociais. Os novos
do ser e a geopolítica do conhecimento. Moder- olhares dos intelectuais negros na produção
nidade, império e colonialidade, mostra, através do conhecimento trazem uma análise e uma
de um percurso crítico pelo pensamento de leitura críticas de alguém que vivencia o ra-
alguns filósofos ocidentais contemporâneos cismo no seu percurso de vida e académico.
(Heidegger, Lévinas…) a ausência de refle- Finalmente, a quarta parte de Epistemolo-
xão crítica relativamente ao eurocentrismo gias do Sul, intitulada A reinvenção dos lugares,
epistemológico. O eurocentrismo e etno- é uma proposta de regresso aos lugares na
centrismo surgem perfeitamente legitima- busca dos sentidos e da riqueza neles exis-
dos através de conceitos coloniais e racistas. tentes. A modernidade, na sua versão co-
Neste artigo de cariz ontológico e ético, o lonialista, capitalista e neo-liberal esvaziou
autor procura demonstrar que «a ontologia a riqueza de sentidos do mundo, tanto do
heideggeriana e a ética de Lévinas (…) se, Norte global como do Sul global. Os furtos
por um lado, forneceram meios engenhosos do colonialismo, afirma Boaventura, não se
de ultrapassar os limites da ideia ocidental realizaram, apenas, extra-muros, mas tam-
de Homem, por outro, as suas filosofias per- bém intra-muros. Há, pois, que devolver
maneceram cúmplices de formações espa- alguns dos objectos furtados para criar um
ciais de cariz imperial». Ambas as filosofias novo padrão de interculturalidade. Regres-
se encontram «marcadas pelo esquecimen- sar a esses lugares com um outro olhar, mais
to da colonialidade» (p. 339). Recorrendo ao crítico e mais cirúrgico, permitirá a reinven-
pensamento de Fanon que abre um caminho ção do que foi marginalizado, silenciado e
de reflexão encarando a diferença colonial esquecido. Boaventura de Sousa Santos, em
como ponto de partida, propondo uma ou- Um Ocidente não-ocidentalista: a filosofia à
tra geopolítica, o autor configura a sua aná- venda, a douta ignorância e a aposta de Pas-
lise através dos conceitos de modernidade/ cal, propõe-nos, através de uma revisitação,
colonialidade, colonialidade do poder e do pensar um novo tipo de relações intercultu-
conhecimento e colonialidade do Ser. rais e inter-epistemológicas que contribuam
Ramón Grosfoguel, em Para descolonizar para a descolonização do saber.
os estudos de economia política e os estudos Encontros culturais e Oriente: um estudo das
pós-coloniais: transmodernidade, pensamento políticas de conhecimento, de Shiv Visvana-
de fronteira e colonialidade global, questiona than, relembra o dever de memória relati-
Manuel Tavares
manuel.tavares@ulusofona.pt