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Escritura e Nomadismo PAUL ZUMTHOR eX Paul Zumthor, nascido em Ge- nebra em 1915, educado em Paris, ensinou por muitos anos na Ho- landa. Emigrou para 0 Québec em 1971, onde encerrou sua carreira de professor no programa de Literatu- ra Comparada da Universidade de Montreal, vindo a falecer ali, em 1995. A Africa e o Brasil marcariam nele uma forte presenga: uma vocagao e uma descoberta. Desenvolveu, paralelamente as atividades de pesquisador e medievalista, uma obra dedicada a poesia e a ficgdo. A publicagdo do Essai de Poétique Médiévale, em 1972, torna-se um divisor de Aguas, e os seus notdveis textos que tratam das literaturas medievais, de historia, de poéticas da voz e da performance estabelecem pontos de aproximagéio en- tre o medievo, as midias e a arte contemporanea. Destruindo barreiras e dicotomias, 0 conjunto de sua obra aponta cada vez mais para o futuro e alicia novos leitores. Este livro, que apresenta confissdes biogréficas, comen- tdrios diversos e teorizagdes de grande valor, nos oferece também o perfil de um autor diante de seu tempo, expres sando-se nos ensaios e nos depoimentos, em plena forga de sua linguagem, de seu pensamento e de sua atitude rumo a Poesia e A Vida. JERUSA PIRES FERREIRA ——" ISBN 85-7480-192-5 il 9°788574°8019. UMa PoEsIA DO EsPAGO Foi durante meus trabalhos sobre a poesia oral que encontrei, por volta de 1980, a poesia sonora: descoberta bem tardia, 0 que la- mento; mas 0 choque (em virtude mesmo, talvez, da aparente pro- ximidade dos adjetivos) me abriu subitamente 0 horizonte de um continente cuja existéncia meu sentimento e minha razao postula- vam, sem que jamais eu tivesse oportunidade de tocar-lhe as mar- gens. Essa revelagao da poesia sonora explicava o que tinha sido até entao o objeto de minhas pesquisas; em grande medida, ela as jus- tificava: sua auséncia tinha cavado af, 2 minha revelia, um vazio ab- surdo; ela deixou inacabada uma historia. Em meio as outras poesias — orais ou néo — com as quais ela coexiste, é por oposicao a elas que a poesia sonora encontra sua le- gitimidade manifesta e sua fungo historica. De maneira inespe- rada, eu tinha sentido uma presenga, € tinha sentido que um ar- tista ali estava a nosso alcance, como escreveu Henri Chopin, em vias de “pér o mundo diante de si para fazé-lo vibrar”. Ora, 0 tilin- tar que desencadeava essa vibracao era o de uma voz humana, des- 151 ENSAIOS. ligada das limitagdes da linguagem e, da mesma forma, das con- vengoes do canto, em si mesma e para si mesma, e de tal modo que poucos musicos souberam utiliz4-la... com excegao (parece-me) de Luciano Berio, cuja obra, a partir dos anos sessenta, anuncia- va, exigia a poesia sonora que conhecemos hoje. Seu Laborintus de 1965, composto para o sétimo centendrio do nascimento de Dante, exaltava uma concep¢ao teatral do ato vocal, integrando o registro infra-semantico do respiro na polifonia das vozes; proclamava uma verdade bucal em expansao até os limites do audivel; a extro- versao de um corpo no espaco aberto, para além de seu aparelho fonatério, os dentes, o musculo lingual, 0 palato, a caixa toraxica, as préprias profundezas do ventre, num movimento miultiplo, unificado pelo som que engendra a comunidade dos ritmos orga- nicos. Henri Chopin me escreveu um dia que 0 desejo que anima sua pratica vinha-Ihe, de inicio, da contemplagao “dos gestos e da gesta” da arte romanica: da alta e quase esotérica escultura, até a corporeidade da voz viva, da pedra, ela prépria, até as nuances dos sons, uma rede de equivaléncias permite a circulagao de analogias, as trocas de valores, toda uma alquimia cuja Grande Obra se ope- ra no lugar central em que bate nosso sangue. te Diversas vias se abrem assim para o artista, em virtude mesmo de sua prépria organizagao corporal, autorizando, ao longo de cada uma delas, escapadas, descobertas, e as vezes encontros perturbado- res. Jogamos com sutilezas infinitas opondo a voz 0 siléncio de onde ela emerge, e depois onde ela submerge novamente;- ou, por outra, a garganta imitardé um som natural, um dos ruidos do mundo, do qual ela vai se apropriar e vai transmutar naquilo que ela 6; ou ain- da, explorando a multiplicidade real dos registros sonoros cap- tados por nosso ouvido, vai praticar, seja uma colagem (triunfo 152 UMA POESIA DO ESPAGO de uma liberdade pléstica que requer apreensdo puramente sen- sorial ¢ a-semntica), seja uma montagem, no sentido que Einsens- tein dava ao nome; combinacio semanticamente motivada e que exige “leitura”; — enfim, de maneira mais radical, vamos proceder andlise fonematica, 4 desconstrugao dos sistemas actisticos signi- ficantes e 4 recomposicao de seus elementos em novas harmonias, insuspeitadas. O leque das possibilidades abarca a quase totalidade das orientagdes concebiveis (e ja historicamente realizadas) das ar- tes e da ciéncia: da figuragao a geometria, da polifonia coral a qui- mica de sintese... Nada de surpreendente no fato de que a poesia sonora, safda de pesquisas fonéticas, tenha testemunhado muito cedo uma ten- déncia a englobar os cédigos expressivos de outras artes € meios de expressao tradicionalmente distintos, a mtisica, a danga, a propria imagem visual. Com efeito ela vinha de longe, se podemos dizer, do final de uma pré-histéria carregada de experiéncias hetero- géneas que, cada uma a sua maneira, contribufa com sua energia. E claro, na medida em que ela constitui a realizagdo desse passa- do, a poesia sonora do nosso fim de século XX, tendo atingido sua maturidade, ultrapassou seus dados iniciais; estes, entretanto, a impregnam ainda e continuam a orientar subliminarmente suas pesquisas... mesmo se, as vezes, razGes taticas levem um ou outro, artista a negar neste ponto a evidéncia. Melhor ainda: varios mo- vimentos, grupos, escolas aos quais devemos os ensaios e achados que balizam esse tempo de gestacao permaneceram produtivos até nossos dias: dai a grande diversidade do que retine, na terminolo- gia comum, o termo “poesia sonora”. Nicholas Zurbrugg, da Universidade de Brisbane, na Austrélia, bom conhecedor do assunto, cita a esse respeito todas as tentativas de transmutagao da linguagem as quais se dedicaram trés geracdes de escritores e de experimentadores, de Proust e Joyce a Beckett, passando por Dada. Visto de cima, assistimos a ascensio eA matu- 153 ENSAIOS ragio de uma vontade de restituir a linguagem sua virtude mimica: nao no sentido em que esta palavra designaria uma imitacao figu- rativa, mas sim enquanto se trata de imitar os ritmos vitais do ho- mem. Entretanto, a lista de Zurbrugg, qualquer que seja sua perti- néncia, do ponto de vista geral necesita ser precisada. E nos anos imediatamente precedentes e seguintes a Primeira Guerra Mundial que encontraremos os mais antigos precursores identificaveis, do lado dos futuristas russos e italianos ou, na Franga, em torno de Apollinaire e do poeta tipégrafo Albert Birot: uma tendéncia co- mum se depreende entao, nesses circulos, a de fazer predominar em poesia os elementos fonicos entregues & espontaneidade de sua na- tureza e, por isso mesmo, a tentar um modo de expresso situado aquém do sentido. Assim, em Marinetti; assim, no zaum russo, em busca de uma proto-linguagem trans-racional que assegurasse a imediatidade absoluta do dizer. Para os praticantes que freqiienta- vam 0 circulo de Moscou, o lingiiista Chlovski ensinava que é 0 proprio movimento dos érgaos da fonagao que propicia o prazer dito poético. Na mesma época, no centro do grupo Dada (que aca- bava de inaugurar no Cabaré Voltaire sua série de Lautgedichte, poe- mas “em rufdos”, e, a despeito de uma espécie de gnosticismo ao mesmo tempo clownesco e mistico (nos antipodas da vontade de cientificidade de nossos poetas sonoros), Hugo Ball se inscrevia nessa perspectiva. Seu livro-fragmento de 1916, Flucht aus der Zeit (“Fuga fora do tempo”) reivindicava uma “lingua natural” (Na- tursprache) que, seqiiéncia sonora sem palavras, exaltaria a voz emancipada da servidao da linguagem. Para Ball, como para Kurt Schwitters, s6 a boca aparecia como o meio apropriado para a poe- sia; por varias vezes, Flucht aus der Zeit fala do poema em termos que evocam uma performance cénica. Era dificil, entao, ir mais longe. Pelo menos, a amarra se rompeu. Por volta de 1950-1960, os pesquisadores vindos de horizontes diversos se encontravam na encruzilhada de duas tradigGes nascen- 154 UMA POESIA DO ESPAGO tes: uma, concebida como musical num sentido bastante estreito, e que Berio em particular ilustrava, centrava na exploragao infra-se- mantica da voz seu esforgo para suscitar sonoridades que ao mesmo tempo eram novas e assimilavam séculos de experiéncia;—a outra, mais lingiiistica, tentava voltar as fontes energéticas comuns da lin- guagem e da voz: a obra capital de Pierre e Ilse Garnier, na Franga,a de Arrigo Lora-Totino na Itélia, atestavam, ainda uma vez e mais claramente que nunca, que em sua esséncia a poesia é descoberta e dominio do sopro. Desde 0 inicio dos anos cinqiienta, na pratica e na reflexao da geragao que despontava, ganhava consisténcia e consciéncia de si aquilo que logo seria chamado poesia sonora. Enquanto comegava a se formar, na Bélgica, a obra de Paul de Vree; na Franga, a de Frangois Dufréne, safdo do letrismo; de Bernard Heidsieck, ainda ligado as significagdes explicitas, surgiam de Henri Chopin e do americano Brion Gysin as primeiras tentativas de teorizagao. Sera preciso, é claro, esperar uns vinte anos ainda para que se intensifi- quem e frutifiquem as trocas entre poetas e miisicos: mas, desde entao, este encontro era inevitavel. As tendéncias permanecem tao diversas quanto os tempera- mentos € as experiéncias pessoais. Alguns, como John Giorno, res- peitam os dados de base da linguagem e limitam-se a fazer vibrar neles a matéria; outros recusam esta recorréncia e quebram as re- gras sonoras que ela impée; alguns mantém nessas tentativas uma presenga subjetiva, introduzindo, ainda que seja na desarticulacdo extrema, uma mensagem; outros se divertem, jogam com a ironia; varios s6 deixam falar o rufdo de seus corpos. Todos tem em comum pelo menos 0 fato de explorar 0 espaco misterioso que se estende entre a voz e as palavras. Nao se trata, nesse caso, de manifestar uma vontade de expressao priméria, de arriscar 0 retorno a uma simpli- cidade mitica, mas de ultrapassar séculos de literatura, de transcen- der suas convengées, digerindo as suas conquistas, e de ultrapassar 155 ENSALOS verticalmente suas fronteiras. Daf, através do enfraquecimento de- sejado ou da rejeicao do semantismo, uma espécie de afirmag4o humanista de universalismo. O simples recurso a0s poderes senso- riais, fundamento de nossa humanidade no corpo que nos une, a rejeicao das linguas que nos separam, das gramiticas que dividem nossas culturas: 0 que tentam esses poetas ¢ abolir a dispersao de Babel. pray Ainda quase desconhecida pelo grande publico, pouco consi- derada até agora pela midia, a poesia sonora nao est menos pre- sente hoje no mundo inteiro. Pouco importa que sua designagao ainda flutue: o francés poésie sonore (PS.: como Post-Scriptum ali- teratura!), mais preciso que 0 alemao Lautdichtung ou © inglés sound poetry, tende a levar a melhor na linguagem comum, repe- lindo a expressao ambigua poesia espacial, cara aos Garnier, — € cujo desuso podemos lamentar, pois € exatamente um espaco que 0 som poe em jogo... Haveria jf matéria para 0 estabelecimento de um Who's Who da PS, Seriam assinalados, entre outros, nos UA Jackson McLow, Anne Tardos, Charles ‘Amirkhanian, Larry Wendt e Stephen Rup- penthal, editores de uma antologia da P.S., 0 segundo dentre eles, autor da primeira tese de Doutorado escrita sobre este assunto! No Canada, as edigdes Underwhich Audiographic, de Toronto, consti- tuem um pdlo de atracéo, mas nao 0 tinico; outros grupos de ‘Toron- to, Owen Sounde sobretudo The Four Horsemen, com Rafael Barreto- Riviera, Paul Dutton, Steve McCaffery, Barrie Philip Nicholl e que desempenhou no Canad4 um papel instigador... fortemente abran- dado, é verdade, apés a morte prematura de Nicholl, em 1988. No Québec destaca-se 0 grupo Inter,em torno de Richar Martel. Na Aus- trdlia, Jas Duke, Chris Mann, 0 grupo de Medio Space, 0 de Audio 156 UMA POESIA DO ESPAGO Art, na Nova Zelandia, Wystan Curnow; na Suécia, nos Paises Bai- xos, na Alemanha, com os Hrspiele (“jogos auditivos”), dirigido por Klaus Schéning; na Austria, na Sufga, ¢ até mais a Leste, na Tche- coslovaquia, na Pol6nia, na Hungria... A lista nominativa seria }on- ga. Mas um dos capitulos mais abundantes seria com certeza o da Jtdlia, com Giovanni Fontana ¢ sua poesia “pré-textual’, Enzo Minarelli cuja voz nao cessa de virar e revirar a palavra, de estendé- la, de quebré-la, de fazer delaa multiparola; varios grupos de jovens ou de idosos, no Norte, na Toscana, em Napoles, com Matteo d@Am- prosio. Lora-Totino num quadro que elaborou em 1984 nao citava menos que uns vinte nomes. APS. na Peninsula se reveste as vezes de um estilo mais compésito, um barroquismo sensivel ao acom- panhamento instrumental da voz, como 0 “metallophone” de Mi- narelli. Na Franga, a diversidade, senao a dispersio, parece maior, — como (sem dtivida) € maior a resisténcia das formas literdrias tradi- cionais. Henri Chopin se exprimiu longamente a este respeito em varias publicagées. Finalmente, 0 “teatro do imediato’, com as vo- zes manipuladas, de Nicole Sauvagnac, as leituras criadas de Julien Blaine, as litanias desgramaticalizadas de Michéle Métail susten- tam as experiéncias de jovens, yarios dos quais praticam ao mesmo tempo a poesia ea composicao musical: 0 suigo Pierre Mariétan, os franceses Christian Clozier, Francoise Barritre, Marc Battier, autor dos Verbes comme cueillir, e tantos outros... Jmutil insistir: af esté menos o esbo¢o de um catdlogo que a su- gestdo de uma prova. Em nosso fim de século, a P.S. responde a uma necessidade cuja origem, é claro, reside na longa pratica, hoje pres- tes a se esgotar, do que chamamos, durante duzentos ou trezentos anos (tao pouco em nossa histéria!), “literatura”, como se a aventu- ra desta, a qual a humanidade deve varios de seus mais eminentes valores, atualmente em declinio, deixasse subsistir, fagulha entre ruinas, esta tiltima presenga, que nos cabe recolher e ampliar. Que ontimero de poetas sonoros ainda seja muito limitado néo tem im» ENSAIOS portancia. O que importa éa convergéncia de seus testemunhos ea resposta que Ihes dé uma elite de apreciadores: tao diversificada quanto o grupo de artistas pelo qual ela se sente atraida, Contra- prova do cardter irreversivel desse movimento, a despeito de ainda estar tateando, como podemos observar, est a série de festivais or- ganizados nos tltimos anos: daquele que, em 1976, Heidsieck apre- sentou na galeria Le Moine, em Paris, até o que, no ano seguinte, Wendt presidiu na California, ou aquele outro, amplamente inter- nacional, que se deveu & iniciativa do austriaco Gerhardt Riihm, em fevereiro de 1983 em Vicane, na Italia; festivais ainda em Toronto, em Nova Iorque; no Québec, festivais da galeria Le Lieu; ou, numa perspectiva um pouco diferente, um espetdculo de ambigao totali- zante como o Merz Opera, montado em Montréal pelo Teatro Ubu, em 1987, reprisado em 1988 apds uma tournée na Europa; monta- gem-colagem realizada por Denis Marleau e Friedhelm Lach de tex- tos de Kurt Schwitters centrados em seu grande poema fénico, a Ursonate. Performances individuais ou em grupo, como as de McLow e Anne Tardos em janeiro de 1983 no Centro Pompidou; ou, mais recentemente, j4 em trés reprises, as Semanas de Genebra. Performances de Henri Chopin em Varsévia, em 1987, no Québec em 1989; emissdes de radio em Colénia com Schéning, na Califérnia com Amir Khanian, em Seattle com Joseph Keppler; na Suécia... Ex- posicdes, enfim, como as que montaram, em setembro de 1979 na Biblioteca Municipal de Fiuggi, A. Spatola e G. Fontana e, no outo- no de 1983, E. Minarelli em Bondeno. Quanto as publicagées, em livro, disco, cassete, a mesma expan- sao, a mesma convergéncia. A lista é farta, além de ser amplamente internacional. John Giorno, que publica em Nova Iorque sua cole- Gao de discos de P.S., vé seus préprios poemas editados em Paris por Christian Bourgois: Spaces By Artists, editados em Toronto, confir- mam sua vocaao bilingiie. Edigées individuais, mas sobretudo (fato significativo) séries, antologias, revistas, coletivas por nature- 158 UMA POESIA DO ESPAGO za, multiplicaram-se, na Europa e na América, mesmo na Austra- lia, a partir do fim dos anos cingiienta. A revista-disco Ou, criada e dirigida de 1965 a 1974 por Chopin (e que, em 1988, foi objeto de uma exposicao retrospectiva), abria entao o caminho. Hoje, conta- mos pelo mundo bem umas doze revistas consagradas a P.S. No Quebec, a notavel revista Inter, com um grafismo particularmente cuidado, publicada por Le Lieu, consagra-lhe grande parte de seu espaco; acompanha-a uma edi¢do em cassete. Simultaneamente se esboca uma historia critica e uma teoria. Neste ponto ainda Chopin aparece como um precursor: sua bela sintese Poésie sonore interna- tionale colocava, em 1979, os fundamentos e esbogava as grandes linhas de um monumento ao qual numerosos artigos, desde entdo, vém trazer sua pedra, se nao uma ala inteira, como a obra de R. Kostelanetz, Aural Literature Criticism, publicada em 1981, a0 mes- mo tempo em Nova lorque e em Edmonton. Durante esses mesmos anos, a radio Estocolmo emitia em dez reprises festivais de “poesia eletrénica”: os primeiros da histéria. A PS. tinha ai seu lugar garantido. Um lago estreito e como que gené- tico a liga aos novos meios, que Ihe revelaram, bem além de toda experiéncia fisiolégica direta, a amplitude insuspeita e as forgas la- tentes de nossas vozes. O esttidio de musica eletrénica constitui como que o meio “natural” (natural no segundo grau) da PS. Ainda que os préprios poetas nao estejam, talvez, todos convencidos, é por ai que ha chances de se operar a grande abertura de que.a poesia hoje sente necessidade para nao sufocar. Mais ainda: nossos meios permitem a realizagdo de um dese jo que a voz traz em si desde sempre: desejo de se fixar sem dei- xar de ser ela mesma, de subsistir escapando a desnatura¢ao que Ihe inflinge a escrita. De vencer assim o tempo fugidio, e de du- rar no espago que preencheu. As primeiras méquinas, do tipo fo- négrafo, remontam ao fim do século XIX, e os poetas em torno de 1900 sonhavam com elas. Mas foi somente com esse tipo de gra- 159 ENSAIOS vador, cingiienta anos trole, em perfeita flexibilidade, mais tarde, que 0 poeta pode garantir 0 con- das condigdes espacio-temporais de seu dizer. Chopin contou a revelacao fortuita que foi para ele, em 1955, na casa de um fita magnética, mercador da ilha de Ré, um gravador de velocidade 9,5, que servia a esse comerciante para cobrar suas contas... Logo © poeta apreendeu a inesgotavel rique- za de uma técnica e se comprometeu lugao vocal eletrénica. Neste mesmo eum plano semelhantes sacudiram wm grupo de musicos da RTF em torno de Pierre culagao publica, discos e, com a criagao de uma revo- momento, uma descoberta Schaeffer. Gravador e, com 0 objetivo de cir- um pouco depois, cassetes. Foi assim que Ou se meteu na empreitada, ¢ logo foi imitado, Quinze anos mais tarde, varios, como Chopin, na trabalhando em estidio eletro-actistico e apren- EUA, estavam diam a manipula emprego do gravador de pistas Franga, Amit Khanian, nos ro som como matéria; a espacializé-lo através do miultiplas, que permite variar a re- lagdo entre seus elementos: assim, de apontar nele, até a evidén- cia, o carater totalmente corporal. _» Os meios eletronicos comportam, com efeito, trés aspectos que concorrem para gera { ditivo e s6 tem yo”; ela subsiste numa espécie \ maledvel através de técnicas apro) riedade nova de acordo e! ir uma sensorialidade particular, ‘uma va- nntre o homem e€ 0 espago NO qual se des- dobra sua existéncia: a marca pela qual eles inscrevem a Voz nao é decodificavel visualmente; ela constitui um simples relé do au- por si mesma uma existéncia negativa, “em conca- de neutralidade, indefinidamente priadas. O primeiro desses tragos \ distingue globalmente as midias dos outros modos de representa- cdo; o segundo as op' guagem em sua temporalidade. matéria se deixa afetar. aquilo que mal 160 is importa fazer ouvir. je especificamente aescrita; e o Ultimo, alin- Toda a relacdo entre o homem ¢ a Aeletronica torna manifesta a inadequagao da linguagem para Ela expande as virtualidades UMA POESIA DO ESPAGO das transmissdes orais tradicionais, da “poesia oral” em particular, tal como descrevi, em meu livro de 1983, seu funcionamento e seus valores; na medida em que ela transpée o ultimo passo que a libera dos signos (da signi-ficago) da linguagem, a PS. torna irreversivel o que, desde sempre, existe no estado de aspiracao selvagem —e fre- qiientemente reprimida — nos costumes poéticos da humanidade. Por essa via, ela modifica radicalmente a natureza da oralidade, yocalidade daqui para frente libertada. Ela permite agir diretamen- te no campo actistico, por modulacio, variagao das yelocidades, re- verberasao, produgao de ecos, uso de sintetizadores multiplos. £ assim que a maquina, escreve Chopin, nos ensina 0 que é a VOZ... Chopin é um mestre nisso; sua obra, exemplar. Devemos aele ter conseguido captar o que ela chama as “microparticulas vocais, identificadas de inicio fazendo aderir o microfone aos labios e aos “mtisculos da boca. Habitualmente fundidas no ruido das aS, essas particulas, recuperadas, entregues aatengao auditiva, restabe- leciam a verdade da voz, num nivel mais profundo de realida percussio da lingua sobre o palato, sopro do ar entre 0s dentes; flui- dez escorregadia da saliva, aspiragao e respiro, toda essa riqueza comprometendo, cada vez mais, a corporeidade inteira. Asvariagoes | sonoras de Chopin sobre a palavra peur (medo) constituem, na mi - nha percepgao, um dos mais fortes poemas do nosso tempo. Ass écriada uma plastica sonora, que autoriza todo tipo de colagens sin- fonicas. Numa breve apresentagao da obra de Chopin, que escreyt em 1986 para uma exposigao, empreguei (desejando desfazer ode um fonema seqiiestrado pela Lingitistica “e evitar 0 tonema de Minarelli, que se referia expressamente as linguas tonais) 0 neolo- gismo vocema para designar as unidades microfénicas de variagéo das quais ¢ formada a matéria, primeira e ultima, de uma arte in- contestavelmente nova. ie © vocema é mais da ordem do grito que do verbo. No come¢o era o grito: as parteiras sempre souberam disso, mas é bom Jembrar tol ENSAIOS aos poetas. O vocema éum possivel vocal. A lista de vocemas seria infinita, estamos definitivamente fora da fonologia classica dos lin- giiistas; para além das delimitacdes proprias das linguas naturais. O meio eletronico atinge seu objetivo, tornado de repente valido por si mesmo, sem necessidade de nenhuma outra justificagao além de seu proprio funcionamento e do prazer que proporciona. Quantoa esse prazer, ele modula fisicamente sem fim a escuta, a ponto de que de uma a outra de varias audigdes da mesma obra, no mesmo disco, sempre alguma coisa muda, que é nossa ¢ nos alicia. ete “Nosso mundo bucal esta em expansio’, escreve ainda Henri Chopin. De uma dupla maneira: pela extensio de seu registro ¢, em conseqiiéncia, por seu dominio crescente do espago. APS. 0 reconduz as dimensdes do concreto, ela o aborda eo explora pelo que ele é, um universo de‘“verbo-motricidade”. Para além das har- monias (que, em virtude de intengdes mais ou menos claras, pro- yém de uma estética idealista); para além das melodias de uma mitisica representativa (outro jdealismo!), a P.S. permanece como hereditariamente marcada pelos dois desejos, aparentemente con- tradit6rios, mas de fato complementares, que a engendraram: nos poetas, desejo de retorno a0 oral; nos misicos, de retorno ao falar. Aqui e ali, triunfava a tendéncia a apagar as fronteiras entre as ar- tes, a libertar o artista do aprisionamento em técnica-especializa- da (e, se ele trabalha em plena matéria verbal, de libertd-lo do li- yro!). O movimento que conduziu as primeiras tentativas dos anos quarenta e cinquenta, depois aos éxitos ulteriores, ocupou seu de- vido lugar (e nao os menores) na evolugao geral que recoloca em questao, hoje, tanto a hegemonia da escrita quanto nossa fé no Es- tado e nossa confianga nas “{eis” econdmicas. William Burroughs parecia um profeta quando, ja faz muitos anos, recusava 0S limi- 162 tes habitualmente tragados entre poesia e miisica, ao HesTG po que os que interpomos entre palavra e sentido. ‘Tudo dee dessa posigao inicial. E notavel que o primeiro editor em discon de Burroughs tenha sido Chopin que, no mais, retinha mais a voz que os textos. Chopin garantira, aliés, a publicagao do livro de Burroughs, La révolution életronique. ‘Assim € que, desde a origem, instaurou-se uma questdo da lingua, sendo da prépria linguagem. As tensdes que constatamos, na pratica da P.S., entre a.agao pottica e 0 (relativo) fechamento do yocabulirio, da sintaxe, dos ritmos frésticos, tocam as estruturas do dizer humano de modo bem mais radical do que todas as revo- lugoes literdrias, desde Mallarmé ov o surrealismo, tocaram 0 uso comum de nossas linguas. Elas revelam, no bojo de uma ecologia actistica libidinal, uma desintegracao das figuras conhecidas que nao deixa de ter relagao com nossa rejeigao de antigas crengas con- cernentes ao sexo ou aos fundamentos da autoridade. Entretanto, nao se trata, absolutamente, repito, de retorno as fontes; a arqueo- logia € estéril num lugar como esse. Trata-se de deslocamento, de ruptura de ponto de vista, em plena consciéncia e com a mais ex- trema preciséo. F claro, varios poetas sonoros, por razoes diversas, se abstém de questionar a legitimidade da linguagem comum, e de recusar seu valor poético. Assim Giorno ou Kostelanetz nos BUA, Lora-Totino na Itdlia, Heidsieck na Franca. Posigao tatica, mais que estratégica. Permanecemos na lingua para melhor domind-la; melhor corroé- Ja; melhor, enfim, desfazé-la. Beth Anderson, em golpes de anagra- mas, palindromos, permutagoes, desnuda seu discurso até sé dei- xar nele, de reconhecivel, 0 fonema. Constato na técnica de tais poetas uma super-abundancia da aliteragéo, que €0 jogo mais ele- mentar a que se presta a linguagem, em todos os idiomas. Muitos sistemas de versificagao, na histéria, comegaram por af. Nao pode ser por acaso: atingimos aqui um limiar, anterior as diversificagoes 163 ENSAIOS de grupos, de escolas, de obras individuais, o limiar de uma putifi- cago cujo rito se acompanha de uma sinfonia de sentido, meio- sentido, multi-sentidos, nao-sentido, onde vao se concretizar os sons vindouros. Para nenhum desses poetas a lingua éa expresso do universo, nem é mensagem dos deuses. Ela que dé lugar, entdo, a pura energia sonora que, alias, a anima, mas que, em nossos costumes, ela se- questrou! Energia mal definida, ainda hoje mal explorada, entre- tanto audivel, tangivel, penetrante. O corpo linguistico do “texto” (se aceitamos esta palavra...) brilha: na dimensao micro-espacial, na macro-espacial, de acordo com os autores ¢ 0S procedimentos de operacionalizacao; e cada um dos elementos dissociados assume fungées de todos os outros, naquilo que, na melhor das hipoteses, nao passa de uma metéfora da linguagem. Ao final deste esforgo, 0 yocema se torna ao mesmo tempo som, palavra, frase, discurso, inesgotavelmente; € tudo isso ocorre em sua propria continuidade ritmica. E assim que podemos, com Fontana, assegurar que a poe- sia, nao somente est4 com a voz, na voz, mas por detrds da voz, no lugar corporal interior de onde sdo conduzidos o canto, os suspiros, os sopros, tudo o que, aquém e além do dizer, consciéncia primor- dial da existéncia, é sinal do inexprimivel. Fontana fala nesse sentido de poesia dilatata; Chopin, a propo- sito de seus Saintes phonies, evoca a dilatagao sonora. Ainda que es- ses autores ndo compreendam a palavra num sentido idéntico, 0 que eles tém em comum — a comunidade de tudo 0 que eles repre- sentam —se revela na referéncia espacial do radical dilat-, denotan- do o alargamento, a amplificagao até os limites, mal concebiveis, de um espa¢o que nos precedeu, nos envolve, nos faz ser e sobrevivera anés. Por isso mesmo, a P.S. chama, como sua realidade primeira e tiltima, o corpo — que ocultava, apesar de freqientes arrependimen- tos, a poesia literdria. O corpo hoje assume nos costumes € nas artes, em séculos de opressdo, uma revanche selvagem, e pouco importa 164 UMA POESIA DO ESPAGO que ela leve algumas vezes até no grotesco! O corpo se redescobre como 0 tinico lugar onde se apera o encontro da linguagem e do mundo; ele recusa, assim, 0 cetlelame, diseminado em varios de nésa partir do entre-guernas, nay cape ladles referenciais de nossas linguas, quer dizer que ele xe Insure contin 0 (niperialine Tine gilistico renascente a todo moment lelroa de Hau Sobre certos aspectos do corpo, emiior dade, falar em termos socioldgicos, Mai 0 0 sofre e morre, o que um signo nunca {07 num plano diferente da textualidade, rely aordem do que respira, trabalha e morte, Rdocor provém e emana: corpuse spiritus, como escreve lego ambiguo, saido do grito primal destinado a timo suspiro, identificado a um gesto do corpo, a0 gento ples e mais radical, o de viver. No Chopin dos anos sessenta (Ji), 0) poemas se intitulavam “O Corpo”, “O Barulho do Sangue” ou ate mesmo “Meus Bronquios”! Nao saberiamos dizer melhor. O corpo: nao é somente esse agregado de membros gesticulando sob nossos olhos; mais profundamente, éa intensidade do gesto interior, subi- tamente manifestada na plenitude da voz. E nossa maneira de estar no mundo, nosso modo de existir no tempo eno espago. A percep- ao dessas identidades constitui 0 trago comum a todos os poetas sonoros, qualquer que seja seu horizonte, a concep¢ao que tenham e, por outro lado, sua pratica e suas exigéncias. “Colocar a voz” é para eles, tecnicamente, 0 equivalente (e o mais essencial) da ado- cao de um estilo (ou de sua rejei¢ao) para o literdrio. Trata-se, com efeito, de “fazer falar” a voz em si mesma, enquanto forga fisica, dotada de qualidades incompardveis: exercicio para 0 qual os musi- cos raramente se mostraram aptos em nossa tradi¢ao, onde o vocal foi, quase sempre, de fato, subordinado as exigéncias de um libreto. Daia vontade, contra as ignorancias ou os falsos pudores das poesias de inspiragao literdria, de recorrer, através da voz e dos érgados 165 ENSAIOS fonadores, a todos os rufdos do corpo entre os quais ela reverbera em sua génese: do sopro esofagico ao assovio bronquial, até mesmo aos solugos estomacais. O corpo inteiro se torna, entao, significante — para além das significacoes interpretaveis. Ele volta a ser como 0 foi, sem duivida, em mitologias muito antigas, das quais algumas fa- bulas classicas nos conservaram resquicios concernentes 4 boca, & garganta, ao eco. Avoz~—a Poesia Sonora —, assim, nao somente preenche 0 espa- ¢0, mas o habita, o veste, obriga-o a se dizer, em sua linguagem pr6- pria de espaco. Por ai, em seu préprio ser, naquilo que a define en- quanto modo de existéncia, a P.S. é teatro. Ela aspira a se introduzir em todas as mfdias experimentais (a polipoesia de Minarelli), a se apropriar de seus efeitos, arte virtualmente total, cuja vocagao é que- brar os canones, impedir a reconstituicao de técnicas fechadas num universo do qual sabemos que se fundou sobre as puras vibragdes de uma energia. Nisso, nada de negativo na P.S.; muito pelo contrario: ela tende a anexar tudo da experiéncia corporal, mental, estética, mas num nivel bastante profundo para que ainda seja percebido nela o sopro de um nascimento. Nada de nostalgias antigas, da lem- branga de um Eden e do Anjo com a espada de fogo: simplesmente um ato, aqui e agora, engajando aquele que o apresenta. O trabalho vocal libera as forgas internas de uma fonia, virada, revirada, que- prada, revitalizada numa espécie de suntuoso striptease sonoro. APS. se expande em performance. A “tentagao do espago” (como dissemos) que ela traz em si é vontade de danga; outro trago comum com 0 Dadé do Cabaret Voltaire, que encantava uma arte concebida como articulagao gestual, e talvez mimesis de ritos ancestrais. De maneiras que, aqui, ainda diversificam temperamentos e habitos, 0s poetas sonoros “se dio em espetaculo” numa cena que constitui um territério intermedidrio entre poesia, musica, danga, pintura, unidas por um ritual em que elas se fundem em feixe expressivo sob 0 primado do corpo-sonoro. Entretanto, “performar”, da parte 166 UMA POESIA DO ESPAGO. de um autor, é tornar-se seu proprio intérprete, retroceder um pon= to na orgulhosa hierarquia estabelecida ha alguns séculos por nos- sos literatos. Em extremo, a propria nogao de autor se esfuma: a énfase se desloca para a performance, em sua unicidade, sua nio- reiterabilidade, sua individualidade actistico-visual, que faz do ou- vinte-espectador um co-produtor da obra exposta ao seu olhar. +e A sensorialidade sedutora da P.S., sua tendéncia a espacializagao maxima, dao conta de um fato notavel: a coexisténcia, na pratica e no pensamento de varios poetas, de pesquisas visuais, indiscerni- velmente misturadas as pesquisas sonoras. E em virtude de uma necessidade existencial, bem aquém das intengses racionais, que esses artistas (como Chopin executando simultaneamente audio- poemas e dactilopoemas) foram levados a esta empresa, que s6 € dupla na aparéncia: levada correlativamente pelo olho e pelo ouvi- do ao mesmo tempo, nossas antenas, tinica fonte, diversificada mas comum, de nossa experiéncia do mundo e de nés mesmos. Fontana evoca, num paradoxo revelador, a “sonoridade visual”: a do olho auxiliar do ouvido e vice-versa. De uma parte, o som me solicita; de outra, uma forma visivel. Mas, pelo ouvido e pelo olho, nao é 0 mesmo lugar de mim, em meu centro, que é atingido? Dat irradia de volta um apelo, informuldvel e wnico, bem aquém das corres- pondéncias tradicionalmente reveladas entre sons e imagens, nesse ponto de intensidade indiferente onde se ata a unidade do corpo. De fato, publicagées individuais ou coletivas, exposicoes, revistas se recusam a tragar uma linha de demarcagao entre dois “géneros” que elas abrigam necessariamente (isto é, em virtude de uma necessi- dade intrinseca) frente a frente. No coléquio de poesia visual que se realizou em 1989, em Sao Paulo, no Brasil, falamos dessa arte em diversos discursos, dos quais bastou modificar alguns termos para 167 ENSAIOS aplicd-los literalmente 4 Poesia Sonora. Quem nos falaré um dia abertamente, e com a ajuda das mesmas palavras, da sonoridade dos grafismos e da cor dos sons? Desde sempre as tradigdes ocidentais consideraram a poesia como a arte da linguagem. A Poesia Sonora nao menos que (por meio da grafia) a poesia visual se esforgam em conjunto para ultra- passar esse estatuto, rejeitar sua coeréncia, esquecer suas regras li- mitadoras; por isso mesmo, elas se descobrem energia vital, emana- cdo da propria matéria da qual nds somos feitos. O poema coisa, configuragao de tragos fisicos. Entao, acontece que um verbo pode nascer dessa coisa. Tal é a realidade da qual Poesia Sonora e poesia visual constituem a prova. Entretanto, todas as duas nos “falam”. Elas o fazem numa linguagem outra, composta de elementos des- naturados, reduzidos a sua limpidez de corpos simples —a articula- gdo sonora cravando 0 silencio, a letra do alfabeto emergindo do branco da pagina: vocemas, grafemas, refugos das vertigens da transcendéncia, pura imanéncia do universo com 0 qual nos de- frontamos. ORALIDADES DO QUEBEC Québec: terra da voz. E, no entanto, pouco se fez para celebrar este poder. Inversamente, no bojo da francofonia, a Franga ha trés séculos tem como terra eleita a Escrita ¢ disso cobra os mais altos direitos — ou, indevidamente, autoridade e privilégios. Embora des- sas oposig6es nada possa ser nitidamente recortado, 0 Québec per- manece, parece-me, bastante mais enraizado nas tradigdes criado- ras da voz. viva do que a antiga metrépole. Tudo ja foi dito sobre este continente da América. Certamente, por toda parte do mundo, acontece a mesma coisa num passado mais ou menos antigo. Mas aqui, esta proposicao é verdadeira, tam- bém, numa outra — e mais complexa — maneira. Os europeus que tocavam estas plagas, no curso dos anos 1500 ow ainda 1600, eram para ai propelidos (expulsos?) por sua socie- dade de origem, em razao de sua propria modernidade: quero dizer deste conjunto de energias, entao novas, as quais damos o nome de “Renascenga” Ora, esta, em seu principio eem muitos de seus efei~ 169

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