Paris:
Vrin, 1997, p. 10-84.
1. Apolônio Díscolo (séc. II d.C., floruit c. 130 d.C.): δύσκολος – referência ao seu método
“difícil de ensinar/aprender o grego”. Referências biográficas a Apolônio (GG 2.3.11).
Autorreferências na obra de Apolônio: S. 1.1; Conj. 213.1. Referências ao
ensino/aprendizagem e à sala de aula: S. 1.37, 46, 49, 52, 93, 111; 2.32; 3.26, 57, 152,
180. Blank (1993): obra se destinava a alunos mais avançados. Trifão (séc. I a.C.):
gramático mais citado na obra de Apolônio, mas cronologia impede ter sido o “mestre”
de Apolônio. A obra de Apolônio testemunha alto grau de maturidade da disciplina
gramatical no período alexandrino (séc. II d.C.), compreendendo uma dimensão
filológica e filosófica.
3. Fontes filológicas: Aristarco (séc. II a.C.), auge da gramática filológica (sua obra
consiste basicamente em comentários, ὑπομνήματα); Apolônio é o auge da gramática
«técnica». Difícil de reconstituir a linha de desenvolvimento do pensamento gramatical
entre Aristarco e Apolônio. Uma lista de nomes pode ser encontrada em Egger (1854).
Filólogos mais citados por Apolônio: Zenódoto (15 vezes) e Aristarco (25 vezes), autores
dos séculos III-II a.C. A análise de Homero em Apolônio remonta às análises de Aristarco,
que é, todavia, retomada criticamente. Trifão (séc. I a.C.): 40 referências em Apolônio,
o primeiro grande τεχνικός citado por Apolônio, cuja obra, entretanto, nos chegou
senão indireta (Velsen, 1853, 138 fragmentos de Trifão). Outros gramáticos “técnicos”
citados por Apolônio: Habrão (21 frag. Bernd, 1915) e Heráclide de Mileto. A gramática
após Aristarco foi caracterizada por esses dois componentes (filológico e técnico),
embora cada um tenha sido desenvolvido de forma mais ou menos especializada por
gramáticos diferentes, embora não se tratassem de atividades separadas, mas solidárias
entre si. Apolônio é, sobretudo, um τεχνικός: seu objetivo principal é a elaboração de
um discurso teórico rigoroso e de um corpo de regras coerente que permite uma
descrição racional dos fatos linguísticos observados (nos textos). Porém, a “teoria
linguística” não é um fim em si mesma (S. 1.1), mas a explicação de textos (90% das
citações é Homero).
9. Acidentes: caso, número, gênero, tempo, modalidade, diátese. Caso (πτῶσις): Arist.
Herm., Anal. Pr., Top., Poet.: forma básica do nome (“nominativo”) vs. formas oblíquas.
Distinção entre palavras casuais e não casuais (πτωτικόν|ἄπτωτον) tem papel central na
sintaxe de Apolônio, pois permite a partição do discurso em constituintes diferenciados
funcionalmente na sintaxe (S. 3.13-18), e a distribuição das formas em relação ao verbo
(“sintaxe dos verbos”) (S. 3.147-190). Apolônio reconhece ainda a existência de uma
sintaxe estoica (3.187). Gênero (γένος) e número (ἀριθμός): noções reconhecidas na
morfologia dos determinantes desde Arist. (Poet. 1457a20; 1458a8ss) e os estoicos (DL
7.58), põem em evidência a arbitrariedade do signo linguístico (não correspondência ao
nível da linguagem e dos referentes externos). Tempo (χρόνος): acidente verbal por
excelência (distinção entre nomes e verbos) – Arist. Herm. 16b6; Poet. 1457a14.
Terminologia dos tempos verbais elaborada pelos estoicos. Modalidades do enunciado
(assertivo, jussivo, precativo, interrogativo), já presente no sofista Protágoras (cf. Arist.
Poet. 1456b15), nos estoicos (DL 7.66). Proposição assertiva (Arist. λόγος ἀποφαντικός;
estoicos: ἀξίωμα). A reflexão morfológica e semântica sobre a modalidade verbal se
enraíza nessa primeiras concepções filosóficas. Diátese (= disposição, «voz»). Arist. Cat.
2-3, «agir», «sofrer», «postura, posição em que», sugerem as distinções entre voz ativa,
passiva e média (media tantum uerba). Em Aristóteles não há exame das consequências
linguísticas dessas noções. Estoicos (DL 7.64-65), predicados transitivos-ativos (ὀρθός),
transitivos-passivos (ὕπτια), intransitivos (“neutros”, ὀυδέτερα), reflexivos
(“antipassivos” - ἀντιπεποθόντα). Os gramáticos retomam tais distinções para
correlacioná-las com a morfologia (S. 3.147-157).
12. Correção linguística. Diversas formas de lidar com a correção na tradição filosófica.
Platão (Eut. 277e, Crat. 384b), Pródico (cf. Arist. Ref. Soph. 173b17; Poet. 1456b15 –
corrigir o gênero de certas palavras gregas, censura a Homero por ter se dirigido às
musas no imperativo e não no optativo). Século V a.C. Heródoto (termos βαρβαρίζειν
σολοικίζειν vs. ἑλληνίζειν). Definição de hellenismós em Diocles (DL 7.59) e enunciação
das virtudes e vícios da linguagem.
15. Livro 3. Primeira parte sobre as causas da incongruência (uma teoria do solecismo
1-53); segunda parte sobre os verbos (54-190). A perspectiva teórica da incongruência
(do solecismo) é a contribuição teórica mais importante (permite ultrapassar a simples
intuição e acumulação de exemplos para elaborar uma teoria racional dos desvios
gramaticais, mostrando os limites dessa incorreção) e, a contrario, estabelecendo
também os fundamentos da correção sintática. O estudo dos verbos é dividida em duas
partes (o modo - ἔγκλισις: infinitivo, indicativo, optativo, imperativo e subjuntivo – 55-
146) e a diátese (διάθεσις): caso direto (147-157) e oblíquos (158-190). O verbo é
tomado, em coerência com o projeto da sintaxe apoloniana, como o centro organizador
das relações com seus entornos. Apolônio trata somente de dois acidentes (modo e voz),
dando pouca atenção à noção de tempo verbal.
16. Livro 4 (incompleto): trata das preposições (tanto as que são propriamente ditas
preposições, quanto as enclíticas que foram compostos). Trata da combinatória das
preposições com as demais partes do discurso. Conjectura-se que a parte perdida do
livro 4 tratasse, na sequência, dos advérbios e das conjunções (embora Apolônio tenha
um tratado específico sobre as Conjunções, remissões internas a esse tratado no
passado indica que se trata de obra anterior e remissões aos advérbios e às conjunções
no futuro indicam que teriam sido também tratadas na obra). O tratado “Dos advérbios”
(201-210 Schneider) é consensualmente considerado parte do Perì Syntáxeos, motivo
pelo qual vem, habitualmente, anexado ao livro 4.
22. A «ordem natural». A noção de adição explica boa parte das construções sintáticas,
como o exemplo da sintaxe das preposições, entre outros exemplos (2.94 n. 202; 3.39
n. 86). Vocabulário técnico da adição (associar, adicionar: prevérbio προσ-,
προσδιδόναι, προστιθέναι, πρόθεσις, προσγίνεσθαι). Pressupõe-se a ideia de uma
ordem linear “natural” ou lógica (τάξις) que preside a diversas construções dos verbos,
preposições, advérbios etc. (alguns exemplos: 1.93; 2.70; 1.135-136), e das construções
interoracionais - a prótase condicional deve vir antes da apódose (2.77); a causa antes
da consequência (Conj. 239.12). Trata-se de uma ordem “teórica”, da sequência normal
(τὸ ἑξῆς) que pode sempre ser alterada pelos fenômenos de transposição (μέθαθεσις),
como o hipérbato (ὑπερβατόν; ὑπερβιβάζεσθαι; ὑπερβιβασμός – 1.11, 113; 2.70, 77,
99; 3.87; 4. 14; A. 125.19. A ordem natural parece obedecer a um tipo de princípio de
“naturalidade semiótica”. A ordem linear é um “artefato metalinguístico”: definir a
posição teórica, canônica, regular, de uma palavra em relação a outra é, para Apolônio,
uma forma de indicar as relações que possuem entre si. A ordem teórica “natural” não
é necessariamente a mais usual, é possível mesmo que, na prática, a língua se manifeste
de forma mais figurada que na sua forma canônica (2. n. 140). O discurso teórico de
Apolônio busca, portanto, identificar uma regularidade que, entretanto, pode se
manifestar apenas subjacente.
23. “Relações sintáticas”. Estudo de Donnet (1967) e Egger (1854) acusavam Apolônio
de ser um gramático que estava preso à “sintaxe da palavra”, i.e. não percebia a
diferença entre classes de palavras (uma categoria morfológica) e funções sintáticas
(sujeito, complemento, atributo etc.). Bécares Botas (1987) critica a perspectiva
anacrônica desses estudos (de recriminar a perspectiva apoloniana por não fazer o que
se esperava na sintaxe moderna) mas, ao mesmo tempo, cai na mesma armadilha, mas
pelo extremo oposto – sugere a noção de “função sintática” em Apolônio, traduzindo
diferentes termos pela palavra função, tais como θέσις (“posição, lugar”), ἔννοια
(noção) e δύναμις (“valor, força”). Peca pelo oposto, ao represntar Apolônio como um
“funcionalista” avant la lettre. Não há em Apolônio um termo preciso para a noção de
relação (teria Apolônio essa intuição linguística? Impossível de saber pelos seus textos).
O que se encontra em sua gramática é a noção de uma palavra se posiciona antes ou
após este ou aquele termo, e que “vai com”, “combina com”, “se aplica a”, sendo que
essas possibilidades dependem das caraterísticas formais e semânticas das classes de
palavras, que possuem, cada uma propriedades sintáticas específicas (Ver estudo de Van
Ophuijsen, 1993). Portanto, descrever uma construção significa, para Apolônio, mostrar
como os significantes categoriais se combinam entre si para formar conjuntos coerentes
e consistentes do ponto de vista de seu significado (a formação correta: καθίστασθαι;
συνίστασθαι; συσταστός vs. formação incorreta: ἀσύσταστος; ἀκατάσταστος). A boa
construção repousa sobre a congruência em dois níveis: na adequação da combinatória
de determinadas classes de palavras entre si e na adequação de seus acidentes.
24. Vocabulário das relações sintáticas. Verbos compostos (um termo proposicional, que
indica diferentes tipos de relações + um radical verbal que indica uma noção). Termos
preposicionais: παρα- (ao lado de), συν- (com, junto a), ἐπι- (sobre), προσ- (em direção
a ou mais que), ἐν- (dentro de), ἀνα- (em referência a, retornando) δια- ou μετα- (além
de) etc. Radicais verbais (indicam processos/noções): “ser/estar” (-εῖναι; -γίνεσθαι)
“existir” (-ὑπάρχειν), “colocar(-se)” (-τίθεσθαι; -τιθέναι; -κεῖσθαι; -ίστασθαι), “ir” (-
ιέναι; -ελθεῖν; -χορεῖν; -τρέχειν); “levar-se” (-φέρεσθαι); ligar-se, associar-se (-
αρτᾶσθαι; -άπτεσθαι; -δεῖν; -πλέκεσθαι). O uso de um extensivo vocabulário para fazer
menção a diferentes relações indica que Apolônio não se preocupou em distinguir
diferentes tipos (nem mesmo em propor uma terminologia mais específica).
27. Sintaxe dos enunciados complexos. Apolônio deve à tradição estoica tanto a atenção
sistemática que ele apresenta na análise de tais enunciados, tanto em questões de
ordem/congruência, quanto verdade, quanto também se limita às construções de
interesse da lógica, deixando escapar outras formas de construção complexa. Em suma,
o projeto da obra de Apolônio é uma “sintaxe das partes da oração”. O objetivo é
descrever a combinatória das formas lexicais a serviço de uma reunião de termos
significativos que mantém coerência semântica.
Questões filológicas e de tradução
29. O estilo do texto de Apolônio. Maas (1912, p. 14): der Krause Stil (“o estilo rude”),
diferente do que se esperaria de um texto técnico e, sobretudo, gramatical. Questiona-
se se não se trata de um estilo oral transposto para a escrita, apresentando as seguintes
características: 1. redundâncias que tornam o estilo confuso; 2. elipses exageradas que
tornam o texto opaco; 3. uso polissêmico ou pouco claro de termos técnicos; 4. confusão
entre nome e referência; 5. recurso a termos imprecisos, vagos, ambíguos; 6. redações
duplas, lapsos. Ao traduzir, atenção impõe-se para que, em busca de uma legibilidade
contemporânea, não se interprete demais o texto grego , “corrigindo” o autor.