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an // Livro segundo Do mundo como vontade ——— Primeira consideragio A objetivagao da vontade Nos habitat, non tartara, sed nec sidera coeli: Spiritus, in nobis qui viget, illa facit.* Em nés ele habita, nfo no mundo subterriineo, nem nas estrelas celestes: 0 espii- to, que em nés vive, a tudo isso anima” (Agrippa von Nettesheim, Epistulae, V, 14). WT) € FEDERAL BDO PARA CA CENTRAL 4 g < a a Bz a af 4 z x w zo §17 D < as A : . a ws 1113 // Consideramos no primeiro livro a representagio apenas enquanto tal, portanto to-somente segundo sua forma geral. No que concerned re- presentagio abstrata, 0 conceito, este também foi conhecido segundo seu contedido, na medida em que possui substdncia e significagio exclusiva- mente em sua referéncia & representagao intuitiva, sem a qual seria desti- —— “terminagBes mais precisa eas Figuras que exe para és cial importincia obtermos um esclarecimento sobre a significagio prépria UNIVEPSIDE dessas imagens, para que elas — como teria de ser se sua significagio fosse, a0 contrério, apenas sentida — no passem diante de nds por completo es- tranhas ¢ insignificantes, mas nos falem diretamente, sejam entendidas adquiram um interesse que absorva todo 0 nosso ser. Ao dirigirmos 0 nosso olhar para a matemética, para a ciéncia da natu- reza, paraa filosofia, cada uma delas nos deixa esperangosos por obtermos uma parte do desejado esclarecimento. — Contudo, em primeito lugar, en- contramos a filosofia como um monstro de inumersveis cabecas, cada uma falando sua prépria [ing QE ist 1115 Arthur Schopenbawer ferente da representagao, porém em todos os outros aspectos tio seme- Ihante a ela quanto um ovo o é de outro. Isso, todavia, em nada nos ajuda, ja que nio conseguimos diferenciar tal objeto da representagio. Ao con- trério, pensamos que os dois sio uma tinica e mesma coisa, que todo ob- jeto pressupée sempre e eternamente um sujeito e, por isso, permanece SEGEEEEMEIENS. TF ambém reconhecemgs que o ser-objeto pertence 3 for- ma mais geral da representagio, justamente a divisio em sujeito ¢ objeto. Além do mais, 0 principio de razo, ao qual se faz referéncia aqui, é ape- nas forma da representagio, isto é, a ligagio regular de uma represemia- cio com outra, em vez dea iigagao de toda a serie (tinita ou sem fim) das sepresentagdes com algo que nao mais seria representagio, portanto nao REMERON Mas sobre céticos e idealistas jé fala- mos antes quando da explicagio da controvérsia acerca da realidade do mundo exterior. Se procurarmos n QR © desejado conhecimento detalhado da representagio intuitiva que nos é conhecida de modo geral apenas segun- an tv, verificaremos que essa ciéncia discorre sobre representagdes apenas na medida em que preenchem o tempo e 0 espago, isto 6, na medida em que so quantidades. A macemética fornece da maneira mais precisa 0 GRO EO RIEU 0 encanco, estes si QED: isco é,a comparagio de uma representagio com outras, ¢ em verdade apenas do ponto de vista unilaceral da quantidade; de modo que por af no obtemos a informagio capital que procuramos. Se, por fim, olharmos para o vasto dominio (Qa MEEM. ce- partido em diversos campos, podemos, em primeiro lugar, destacar duas divisdes principais Qt eee denomino QED GREPREEED. que denomino GDP GED osiccern Gi: Gam. : matéria que muda segundo a lei de sua transi¢io de uma forma a outra, primeira é aquilo que inapropriadamente se denomina // histéria navural em todo 0 seu perimetro; em especial, botanica e zoologia nos ensinam a conhecer, em meio & mudanga incessante dos individuos, diversas figuras orginicas permanentes, determinadas de modo fixo, e que constituem grande parte do conteiido da representagio intuitive. Essas figuras sao 152 1116 UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARK PPG CIENCIAS Socials © vaca cme vortndes to represeagio classificadas, separadas, unidas, ordenadas pela hist6ria natural segundo sistemas naturais e artificiais, depois s4o subsumidas em conceitos, 0 que torna posstvel uma visio panotimica ¢ um conhecimento do todo. Em se- guida 6 também demonstrada uma analogia infinitamente nuangada no todo e nas partes a qual atravessa todas essas figuras (unité de plan), em vir- tude da qual se assemelham a diferentes variagdes sobre um tema nao es- pecificado. A passagem da matéria para essas figuras, ou seja, 0 nascimen- to dos individuos, nao é um assunto merecedor de consideragio, visto que todo individuo provém por geragéo de um outro semelhante a ele, geracio que, em toda parte misteriosa, até agora se furtou ao claro conhecimento: 6 pouco que dela se conhece encontra o seu lugar na fisiologia, que ja per- tence & ciéncia etioldgica da natureza. A esta também tende a mineralogia, que no seu tema principal, em especial [4 onde se rorna geologia, pertence 4 morfologia. Etiologia em sentido estrito sto todos os ramos da ciéncia da natureza que tém por tema principal, em toda parte, o conhecimento de causa e efeito: ensinam como, em conformidade com uma regra infali- vel, a UM estado da matéria se segue necessariamente outro bem definido; como uma mudanga determinada necessariamente produz e condiciona uma outra determinada, cuja prova se chama EXPLANAGAO. Aqui se inclu- em sobretudo a mecdnica, a fisica, a quimica, a fisiologia. _ pela morfologia. Esta tltima nos apresenta figuras inumerdveis, -_ mente variadas, aparentadas por uma inegavel semelhanga de familia, para nés representagSes, mas que por essa via permanecem eternamente estra- nihas, ¢ que, se consideradas apenas nesses moldes, colocam-se diante de nés como hierdglifos indecifréveis.—A etiologia, ac contrério, nos ensina que, segundo a lei de causa ¢ efeito, este determinado estado da matéria produz aquele // outro, com isso 0 explica, cumprindo assim a sua tare- fa; no obstante, no fundo somente demonstra a ordenagio regular segun- do a qual os estados aparecem no espago e no tempo, ao ensinar para todos os casos qual fendmeno tem de necessariamente aparecer neste tempo, neste lugar, portanto determina, segundo uma lei de contetido de- terminado aprendido da experiéncia, sua posigao no espago e no tempo, P' S Pag P' 153 DERAL DO PARA ESSIDAME FE UNIS 1117 Arthur Schopenhauer cuja necessidade e forma universal, todavia, nos sio conhecidas indepen- dentemente da experiéncia. Mas nao recebemos por af a mfnima informa- gfo sobre a esséncia intima de nenhum daqueles i res crada em cena iNMECEESRA BME RESEND nada mais. Toda representagio, nao importa seu tipo : ‘omo tal nao é absolutamente representago, mas foto genere diferente dela. E a partir da- quela que se tem todo objeto, fendmeno, visibilidade, OBJETIDADE. Ela 168 1132 O mundo como vontade ¢conio representagio €0 mais intimo, o nticleo de cada particular, bem como do todo. Aparece em cada forca da natureza que faz efeito cegamente, na agio ponderada do ser humano: se ambas diferem, isso concerne tio-somente ao grau da apa- rigdo, nfo a esséncia do que aparece. § 22 Essa COISA-EM-SI (queremos conservar a expresso kantiana como formula definitiva), que enquanto tal jamais € objeto, porque todo objeto é apenas seu fendmeno e nao ela mesma, se pudesse ser pensada objetiva- mente, teria de emprestar nome e conceito de um objeto //, de algo dado de certa forma objetivamente, por conseqiiéncia de um de seus fendme- nos. Este, contudo, em apoio a compreensio, nfo poderia ser outra coisa senfo o mais perfeito dentre seus fendmenos, isto €, o mais nitido, o mais desenvolvido, imediatamente iluminado pelo conhecimento: exatamente a VONTADE humana. Todavia, é preciso observar que aqui obviamente em- pregamos somente uma denominatio a potiori,? mediante a qual o conceito de vontade adquire uma maior envergadura que a possufda até entio. Ora, 0 conhecimento do idéntico em fendmenos diferentes, e do diferente em fe- némenos semelhantes, é justamente, como Plato amitide observa, a con- digo da filosofia. No entanto, até agora ninguém reconheceu a identida- de da esséncia de cada forga que se empenha e faz efeito na natureza coma vontade, e, por conseguinte, os miilriplos fendémenos variados, que sio so- mente espécies diversas do mesmo género, no foram considerados como tal, mas como heterogéneos; com isso, palavra alguma poderia ser adequa- da para designar o conceito desse género. Eu, por conseguinte, nomeio o género de acordo com sua espécie mais distinta e perfeita, cujo conheci- mento imediato esta mais préximo de nés, conduzindo-nos ao conheci- 8 Doravante grafaremos 0 cermo Vontade com “V" maitisculo, jé que aqui neste § 21 Schopenhauer definitivamente a transmice analogicamente, como coisa-em-si, a toda a natureza. Faremos isso para diferencis-la da vontade individual com “v" mi- miisculo, que j& € uma objetidade da Vontade. (N. T) 9 Denominagio conforme 0 mais distinto, perfeito. (N. T.) 169 < 2 Q a a z x a. 3 a u wi UNIVER SiDs a z % S ie G - 1133 Arthur Schopenhauer mento mediato de todas as outras. Em conseqiiéncia, estaria sempre numa renovada incompreensio quem no fosse capaz de levar a bom termo a aqui exigida ampliagio do conceito de VONTADE, entendendo por esta palavra tio-somente a espécie designada até agora pelo termo, acompa- hada de conhecimento segundo motivos, e motivos abstratos, logo, exte- riorizando-se a si mesma sob a condugio da faculdade racional que, como foi dito, é apenas o fendmeno mais nitido da Vontade. Doravante, temos de separar de maneira pura em nosso pensamento a esséncia mais intima, imediatamente conhecida desse fendmeno, ¢ em seguida transmiti-la a to- dos os fendmenos mais débeis, menos nitidos da mesma esséncia, pelo que consumaremos a pretendida ampliagio do conceito de vontade. — Também me compreenderé mal quem pensar que é indiferente se indico a esséncia em si de cada fenémeno por vontade ou qualquer outra palavra. Este seria 0 caso se a coisa-em-si fosse algo cuja existéncia pudéssemos simplesmente DEDUZIR e, assim, conhecé-la apenas mediatamente, in abs- tracte. // Entio se poderia denominé-la como bem se quisesse. O nome se- ria um mero sinal de uma grandeza desconhecida. Contudo, o termo VONTADE que, como uma palavra magica, deve desvelar-nos a esséncia mais intima de cada coisa na natureza, de modo algum indica uma grande- za desconhecida, algo alcangado por silogismos, mas sim algo conhecido por inteiro, imediatamente, ¢ to conhecido que, aquilo que é vontade, sa- bemos e compreendemos melhor do que qualquer outra coisa, sejao que for. — Até os dias atuais subsumiu-se 0 conceito de VONTADE sob 0 con- ceito de FORGA. Eu, porém, fago precisamente o contrério, ¢ intento pen- sar cada forga na natureza como vontade. Nao se va imaginar que isso é uma mera discussio de palavras, algo trivial. Antes, trata-se de assunto da mais alta significagio e importancia. Pois ao conceito de FORGA subjaz, como a todos os outros, em tiltima instancia, o conhecimento intuitive do mundo, isto é, o fendmeno, a representagio, justamente no que se esgo- ta qualquer conceito. O conceito de forsa é abstraido do dominio em que tegem causa e efeito, portanto da representagio intuitiva, e significa o ser-causa da causa: ponto este além do qual nada é etiologicamente mais explicavel e no qual se encontra o pressuposto necessétio de toda explana- Gio eviolégica. O conceito de VONTADE, ao contrétio, é 0 tinico dentre : 170 1134 O mundo como vontade como representagio. todos os conceitos possiveis que NAO tem sua origem no fenémeno, NAO a tem na mera representagio intuitiva, mas antes provém da interioridade, da consciéncia imediata do proprio individuo, na qual este se conhece de maneira direta, conforme sua esséncia, destitufdo de todas as formas, mesmo as de sujeito ¢ objeto, visto que aqui quem conhece coincide com © que é conhecido. Se, portanto, remetemos 0 conceito de FORGA ao de VONTADE, em tealidade remetemos algo desconhecido a algo infinita- mente mais bem conhecido, aquilo que unicamente nos é conhecido de maneira imediata e completa e que amplia de maneira enorme 0 nosso co- nhecimento. Se, ao contrario, como ocorreu até hoje, subsumimos 0 con- ceito de VONTADE sob o de FORGA, renunciamos ao tinico conhecimento imediaco que temos da esséncia intima do mundo: fazemos tal conheci- mento se dissipar num conceito abstrafdo do fenémeno, com 0 qual nun- ca poderemos ir além deste dlcimo. § 23 // A VONTADE como coisa-em-si € completamente diferente de seu fendmeno, por inteiro livre das formas dele, as quais ela penetra 3 medida que aparece. Elas, portanto, concernem tao-somente 4 sua OBJETIDADE, € sfo alheias 4 Vontade em si. Até a forma mais universal de toda represen- tagio, ser objeto para um sujeito, nao lhe concerne, muito menos as for- mas subordinadas aquela ¢ que tém sua expressio comum no princfpio de razio, a0 qual reconhecidamente pertencem tempo e espago, portanto também a pluralidade, que existe e é possivel somente no tempo eno espa co. Nesse sentido, servindo-me da antiga escoléstica, denomino tempo e espaco pela expressio principium individuationis, que peco para o leitor guar- dar para sempre. Tempo ¢ espago sito os Ginicos pelos quais aquilo que € uno e igual conforme a esséncia e 0 conceito aparece como pluralidade de coisas que coexistem e se sucedem. Logo, tempo ¢ espago so o principium individuationis, objeto de tantas sutilidades e conflitos entre os escolasti- cos, compilados por Suarez (Disp. 5, sect. 3). — De tudo 0 que foi dito se segue que a Vontade como coisa-em-si encontra-se fora do dominio do 171 R4L DO PARA FEDE E UNIVERSIDA 1135 Arthur Schopenbaner princfpio de razio e de todas as suas figuras, e, por conseguinte, é absolu- tamente sem-fundamento, embora cada um de seus fendmenos esteja por inteiro submetido ao princfpio de tazio. Ela é, pois, livre de toda PLU- RALIDADE, apesar de seus fendmenos no espago e no tempo serem inume- raveis. Ela € una, todavia no no sentido de que um objeto € uno, cuja uni- dade € conhecida apenas em oposigio A pluralidade possivel, muito menos € una como um conceito, cuja unidade nasce apenas pela abstragio da plu- ralidade; a0 contratio, a Vontade é una como aquilo que se encontra fora do tempo e do espaco, exterior ao principio individuationis, isto é, da possibi- lidade da pluralidade. $6 quando isso se nos tornar evidente, pela conside- ragio que vem logo a seguir sobre os fendmenos e as manifestag6es varia- das da Vontade, € que compreenderemos de modo pleno o sentido da doutrina kantiana de que tempo, espago e causalidade no cabem 4 coi- sa-em-si, € sdo, antes, meras formas do conhecimento. A natureza sem-fundamento da Vontade!® também foi // efetivamente reconhecida ali onde ela se manifesta da maneira mais nitida como vont: de do ser humano, tendo sido neste caso denominada livre, independente. Porém, para além da natureza sem-fundamento da Vontade, esqueceu-se da necessidade a qual o seu fendmeno esté submetido ¢ explicaram-se os atos humanos como livres, coisa que eles ndo sao, j4 que cada agio isolada se segue com estrita necessidade a partir do efeito provocado pelo motivo sobre o caréter. Toda necessidade, como jé dito, € relagio de conseqiiéncia a fundamento, e nada mais. O principio de razio é a forma universal de todo fenémeno. O ser humano em seu agit, como qualquer outro fendme- no, tem de estar submetido a ele. Entretanto, por ser a Vontade conhecida imediatamente, e em si, na autoconsciéncia, também se encontra nessa mesma consciéncia a consciéncia da liberdade. Contudo, esquece-se que 0 individuo, a pessoa, nio € vontade como coisa-em-si, mas como FENO- MENO da Vontade, e enquanto tal jé é determinado e aparece na forma do 10 No original, Grundlosigheit des Willens. Grund-losigheit substantiva grund-los. Se este ter- mo se verte por sem-fundamento, a versio daquele seria, ao pé da letra, sem-fun- damentabilidade. Devido 4 sonoridade ruim do termo, optamos por “natureza sem-fundamento”. (N. T.) 172 1136 O mundo como vontade e como representagio fenémeno, o princ{pio de raza0. Daf advém o fato notével de que cada um se considera a priori a si mesmo como inteiramente livre, até mesmo em suas agdes isoladas, e pensa que poderia a todo instante comegar um outro decurso de vida, 0 que equivaleria a tornar-se outrem. No entanto, s6 a posteriori, por meio da experiéncia, percebe, para sua surpresa, que nao é li- vre, mas esté submetido a necessidade. Percebe que, apesar de todos os propésitos e reflexdes, nfo muda sua conduta, e desde o inicio até o fim de sua vida tem de conduzir 0 mesmo carter por ele proprio execrado e, por assim dizer, desempenhar até o fim o papel que Ihe coube. Nao posso aqui prosseguir no desenvolvimento dessa consideragio, pois ela, enquan- to ética, pertence a um outro lugar do presente escrito. Gostaria no mo- mento apenas de indicar que 0 FENOMENO da Vontade em si e sem-fun- damento est ele mesmo enquanto tal submetido & lei de necessidade, isto & 20 princfpio de razZo. Insisto em tal ponto para que a necessidade com que os fenémenos da natureza se seguem uns aos outros nao seja obstacu- lo para reconhecer neles as manifestagdes da Vontade. Até agora se considerou como fenémeno da Vontade apenas aquelas mudangas que no tém outro fundamento sendo © motivo, ou seja, uma representagio; daf ter-se acribuido na natureza somente ao homem uma vontade ¢, quando muito, aes animais: // pois o conhecer, o representar, como mostrei em outro lugar, é com certeza o auténtico ¢ exclusivo caré- ter da animalidade. Todavia, que a Vontade também atue ld onde conheci- mento algum a conduz, podemos vé-lo sobretudo no instinto e no impul- so industrioso dos animais.* Aqui nao se leva em conta que estes tenham representagdes € conhecimento, pois o fim para o qual atuam, como se fosse um motivo conhecido, permanece-lhes inteiramente desconhecido. Eis por que sua aco acontece aqui sem motivo, sem ser conduzida pela representagio, mostrando-nos da maneita mais nitida como a Vontade também é ativa sem nenhum conhecimento. O passaro de um ano nfo tem representagio alguma dos ovos para o qual constréi um ninho; nem a jo- vem aranha tem da presa para a qual tece uma teia; nem a formiga-leio da * Desse assunto tratamos em especial no cap.27 do segundo tomo. 193 1137 Arthur Schopenhauer formiga para a qual cava um buraco pela primeira vez. A larva do escarave- tho abre na madeira 0 buraco onde sofreré sua metamorfose e de tal modo que © buraco serd duas vezes maior no caso de ele se tornar um besouro macho, em vez de fémea, pois no primeiro caso deve haver lugar suficiente para as suas antenas, da qual ainda nfo possui representacio alguma. Nas ages desses animais, bem como em outras, a Vontade é sem diivida ativa; porém se trata de uma atividade cega, que até é acompanhada de conheci- mento, sem no entanto ser conduzida por ele. Se obtivermos de uma vez por todas a intelecgio do fato de que a representagio enquanto motivo nao é de modo algum condigao necess4ria e essencial para a atividade da Vontade, facilmente reconheceremos a atuaco da Vontade em casos me- nos evidentes. Assim, por exemplo, a casa do caracol nio seré atribufda a uma Vontade que Ihe é alheia e guiada pelo conhecimento, do mesmo modo que nao atribuiremos a existéncia da casa por nés mesmos construi- daa uma Vontade estranha; porém, as duas casas sero tidas como obras da Vontade que se objetiva nos dois fendmenos, contudo em nés atuando conforme motivos, no caracol, porém, atuando cegamente como impulso formativo direcionado para fora. Em nés, a mesma Vontade também atua cegamente e de diversas maneiras; por exemplo, em todas as fungdes do corpo nao guiadas por conhecimento, em todos os seus processos vitais ¢ vegetativos: // digestio, circulagio sangiifnea, sectegio, crescimento, re- produgio, Nao sé as ages do corpo, mas ele mesmo, como mostrado an- teriormente, é no todo fenémeno da Vontade; noutros termos, Vontade objetivada, concreta. Portanto, tudo 0 que nele ocorre tem de ocorrer me- diante Vontade, embora aqui a Vontade nifo seja conduzida por conheci- mento, nfo seja determinada por motivos, mas atue cegamente segundo causas, nesse caso chamadas EXCITAGOES. Denomino CAUSA, no sentido estrito do termo, o estado da matéria que, ao produzir outro com necessidade, sofre ele mesmo mudanga igual 3 que provoca, o que se expressa na lei: “ago e reago sio iguais”. Ademais, em se tratando de causa propriamente dita, 0 efeito cresce na proporgio exata dela, ¢ assim também o contra-efeito, de modo que, uma vez conhe- cido 0 tipo de efeito é possivel medir e calcular o seu grat a partir do grau de intensidade da causa, e vice-versa. Tais causas em sentido estrito fazem 174 1139 Arthur Schopenbauer tipo completamente diferente entre 0 movimento por excitagio e 0 agit conforme motivo conhecido. Poderfamos ser tentados a procurar na res- piragio outro elo intermedidtio desse tipo. De fato, disputou-se muito sobre se ela pertence aos movimentos voluntérios ou involuntérios, nou- tros termos, se ela se segue a partir de motivos ou de excitagdes. Talvez seja algo intermediério, MARSHALL HALL (On the diseases of the nervous system, § 293 sq.) a explica como uma fungio mista, pois est4 em parte sob a influéncia dos nervos cerebrais (voluntérios), em parte dos nervos espi- nhais (involuntérios). No entanto, em tiltima instncia temos de compu- té-la entre as exteriorizagdes da Vontade que se dio por motivos: visto que outros motivos, ou seja, meras representagdes, podem determinar a Vontade, travando ou acelerando a cespiragio, com o que esta, como toda outra ago voluncéria, adquire a aparéncia de poder ser travada, provocan- do assim livremente a asfixia. De fato, isso pode ocorrer // no instante em que um motivo determina tio fortemente a Vontade que a impositiva ne- cessidade de ar é sobrepujada. Segundo alguns, foi dessa forma que Dié- genes pds fim & prépria vida (Digg. Laert. V1, 76). Negros também devem ter feito o mesmo (F. B. Osiander, Uber den Selbstmord, 1813, p.170-80). Tetfamos af um exemplo convincente da influéncia de motivos abstratos, ou seja, da forga superior do querer racional propriamente dito sobre o mero querer animal. Em favor do condicionamento parcial da respitacio pela atividade cerebral hi o fato de que o Acido cianfdrico provoca morte ao paralisar 0 cérebro, travando assim indiretamente a respitagio. Se esta for mantida artificialmente até que finde a narcose cerebral, a morte é evi- tada, De passagem seja aqui dito que a respiragio fornece também o exem- plo mais elogiiente de como os motivos fazem efeito com uma necessi- dade tio intensa quanto a excitagio e as causas em sentido estrito, s6 podendo ser neutralizados em sua eficdcia por motivos opostos, ou seja, a pressio neutralizada por meio da contra-pressio. Pois, em se tratando de respiracio, a ilusio de estar apto a abster-se desta é incomparavelmente mais fraca do que no caso de outros movimentos que se seguem a partir de motivos, porque ld o motivo é impositivo, bastante préximo, sua satisfa- gio € muito fécil em virtude dos miisculos infatigéveis que a realizam; ademais, via de regra, nada se Ihe ope, ¢ todo o processo é apoiado pelo 176 1140 O mundo como vontade ¢ como representagio habito inveterado do individuo. E, no entanto, todos os motivos de fato fazem efeito com a mesma necessidade. © conhecimento de que a necessi- dade é comum aos movimentos por motivo ¢ por excitagio facilitard a in- telecgio de que também aquilo que no corpo animal se dé por excitagio e em conformidade completa com leis é, segundo sua essncia interior, Vontade; que, nfo em si, mas em todos os seus fendmenos est submetida ao princfpio de razio, A necessidade.* Por conseguinte, nfo nos deteremos no conhecimento de que os animais em seu agir, existéncia inteira, corpo- tizagio e // organizag3o sio fendmenos da Vontade. Também transmiti- temos as plantas o tinico conhecimento imediato que nos é dado sobre a esséncia em si das coisas. Todos os movimentos das plantas se dio por ex- citagées, jf que a auséncia do conhecer e do movimento condicionado por motivos que se segue a ele constitui a tinica diferenga essencial entre ani- mal e planta. Portanto, 0 que aparece para a representagio como planta, vegetacio simples, forga cega que cresce, ser’ considerado por nés, segun- do a sua esséncia em si, como Vontade, ¢ reconhecido como aquilo que justamente constitui a base do nosso préprio fenémeno que se exprime em nosso agir ¢ em toda a existéncia do nosso corpo. Resta-nos ainda dar o tiltimo passo e estender 0 nosso modo de consi- deragio a todas as forgas que fazem efeito na nacureza segundo leis uni- versais, imutdveis, em conformidade com as quais se seguem os movi- mentos de todos os corpos que, destituidos de érgios, nio possuem suscetibilidade alguma a excitagio, nem conhecimento para 0 motivo, Portanto, a chave para a compreensio da esséncia em si das coisas, que sd poderia ser dada pelo conhecimento imediato da nossa prépria esséncia, também tem de ser aplicada aos fendmenos do mundo inorganico, que sio os mais distantes de nés. — Assim, ao considera-los com olhar investigati- Vo, 20 vermos o fmpeto poderoso ¢ irresistivel com que a massa d'Agua se precipita nas profundidades, a persisténcia com a qual o {ma sempre se volta ao pélo norte, o anelo com que o ferro é atrafdo pelo ima, a veemén- * Este conhecimento é por completo estabelecido em meu esctito premiado sobre a liberdade da Vontade, no qual (p.30-44 dos Problemas fundamentais da éricd) também se encontra a explicitagio da relagio entre CAUSA, EXCITACAO e MOTIVO. 177 BO PARA CENTRAL FSIDACDE FEDERA! WNIVE OTELA 1141 Arthur Schopenbaner cia com que os pélos da eletricidade se esforgam por reunir-se e que, pre- cisamente como os desejos humanos, é intensificada por obstéculos; a0 vermos a formagio rapida e repentina do cristal numa regularidade de configuragao que manifestamente indica um decisivo e preciso esforgo de expansio em diversas direcdes, subitamente paralisado; ao notarmos a es- colha com que os corpos se procuram ou se evitam, se unem ou se sepa- ram, quando colocados livres no estado flufdo e subtraidos ao vinculo da gravidade; por fim, ao sentirmos de maneira completa e imediata como o esforgo de uma carga para continuar a sua propria tendéncia a superficie da terra atrapalha o movimento do nosso corpo, // incessantemente pres- sionando-o e comprimindo-o; — entio nfo custard grande fadiga 4 imagi- nagio reconhecermos de novo nossa prépria esséncia até mesmo em to grande distancia. Precisamente aquela esséncia que em nés segue seus fins a luz do conhecimento, aqui, nos mais ténues de seus fendmenos, esfor- ga-se de maneira cega, silenciosa, unilateral e invarivel. Mas, em toda par- te, ela € uma tinica e mesma. Tanto quanto os primeiros raios da aurora e os intensos raios do meio-dia tm o mesmo nome de luz do sol, assim também cada um dos aqui mencionados casos tem de levar 0 nome de VONTADE, que designa o ser em si de cada coisa no mundo, sendo 0 tini- co nticleo dos fenémenos. A separagio, a aparéncia de uma diferenga total entre os fendmenos da natureza inorginica ea vontade, que percebemos como 0 intimo de nosso préprio ser, origina-se antes de tudo do contraste entre a legalidade ple- namente determinada de um tipo de fendmeno e a aparente arbitrariedade desregrada de outro. Pois no homem a individualidade irrompe poderosa- mente, cada um possui seu préprio carter, por conseguinte o mesmo mo- tivo nfo possui poder igual sobre todos, e milhares de circunstancias me- nores que tém espago na ampla esfera de conhecimento do individuo e modificam sua reagio permanecem, no entanto, desconhecidas para ou- tros. Dafa agdo nao poder ser predeterminada exclusivamente a partir do motivo, pois falta o outro fator, a nogio exata do cardter individual e do conhecimento que © acompanha. Os fendmenos das forgas naturais, a0 contrario, exibem o outro extremo: fazem efeito conforme leis universais, sem excegao, sem desvio, destitufdos de individualidade, segundo circuns- 178 1142 O mundo como vontade ¢ como representacio tancias visivelmente manifestas, submetidos As mais exatas predetermina- ces, € a mesma forga natural exterioriza-se exatamente do mesmo modo em milhdes de fendmenos. Ora, para esclarecer esse ponto e demonstrar a identidade de uma Vontade UNA e indivisa em todos os seus tio dife- rentes fendmenos, canto nos mais ténues quanto nos mais nitidos, temos de antes considerar a relagio existente entre a Vontade como coisa-em-si 0 seu fendmeno, noutros termos, entre o mundo como Vontade e o mun- do como representagio, com o que se nos abrit4 o melhor caminho para // uma profunda investigagio do tema abordado em todo este segundo livro.* § 24 Aprendemos do grande Kant que tempo, espaco e causalidade encon- tram-se em nossa consciéncia segundo sua completa legalidade possibi- lidade de todas as suas formas, inteiramente independentes dos objetos que neles aparecem e que constituem o seu contetido, ou, noutros termos, eles podem ser encontrados quer se parta do sujeito, quer se parta do ob- jeto; daf com igual direito poder-se denominé-los modos de intuigéo do sujeito ou qualidades do objeto ENQUANTO OBJETO (em Kant fendme- no), ou seja, REPRESENTACAO, Aquelas formas podem ser consideradas o limite intransponivel entre objeto e sujeito. Eis por que todo objeto tem de aparecer nelas; 0 sujeito, porém, independentemente do objeto que aparece, também as possui e as domina em toda a sua extensio. — Ora, se os objetos que aparecem nessas formas nio devem ser fantasmas vazios, mas possuir uma significagio, entdo tém de indicar e ser expressio de algo que nfo é mais, como eles mesmos, objeto, representagio, isto é, mera- mente relativo e para um sujeito, mas algo que existe sem dependéncia de uma condigio essencial e de suas formas a ele contrapostas, ou seja, algo que nao é mais REPRESENTAGAO e sim uma COISA-EM-SI. Nesse hori- zonte, € permitido a0 menos perguntar: aquelas representagées, aqueles * Cfo cap. 23 do segundo tomo; bem como no meu escrito Sobre a vontade na natureza os capitulos “Fisiologia das plantas” e “Astronomia fisica”, da maior significagio para o niicleo de minha metafisica. 479. UNIVEREIDAL — FEDERAL DO PARA

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