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MÁRDdeANDRADE

aspectos da
literatura brasileira
5|a edição

Andrade, Mário de, 1893-1945

A568a Aspectos da literatura brasileira. 5 .e d .


São Paulo, Martins; 1974.
X, 266 p.

1. Literatura brasileira — História e crí­


tica I . Brasil.
II . Título.

NXL
C C F /C B L /S P —72—0338 C D D : 8 6 9 .9 0 9
C D U : 8 6 9 .0 ( 8 1 ) —95

Índices para catálogo sistemático ( C D D ) :


1. Literatura brasileira : Crítica e história 8 6 9 .9 0 9
2. Literatura brasileira : História e crítica 8 6 9 .9 0 9
LIVRARIA MARTINS EDITORA S.A.
SUM ÁRIO

A dvertencia ................................................................................ 3

Tristão de A taíde ..................................................................... 7

A poesia em 1930 ..................................................................... 26

Luiz Aranha ou a Poesia preparatoriana .......................... 47

M achado de Assis ..................................................................... 89

Castro A lves ......................................................................... 109

Memórias de um Sargento de Milicias .............................. 125

A volta do Condor .............................................................. 141

O Ateneu ............................................... 173

A E legia de A b ril ..................................................................... 185

A m or e Mêdo ........................................................................... 197

O Movimento Modernista ...................................................... 231

Segundo Momento Pernambucano ....................................... 259


A P O E S IA E M 1930

(1931)

O ano de 1930 fica certamente assinalado na poesia bra­


sileira pelo aparecimento de quatro liv r o s : Algum a Poesia,
de Carlos Drummond de A n drade; Libertinagem , de Manuel
B an deira; Pássaro Cego, de Augusto Frederico Schmidt e
Poemas, de Murilo Mendes. Todos são poetas feitos, e embora
dois del-es só apareçam agora com seus primeiros volumes, desde
m uito que podiam ser poetas de livro. Mas quiseram escapar
dos desastres quase sempre fatais da juventude. Se fizeram
e fazem versos não é mais porque sejam moços, mas porque
são poetas.
Essa me parece uma das lições literárias do ano. Quatro
livros de poetas na força do homem. Acabaram as inconve­
niências da aurora. A poesia brasileira muito que tem sofrido
destas inconveniências, principalmente a contemporânea, em
que a licença de não m etrificar botou muita gente imaginando
que ninguém carece de ter ritm o mais e basta ajuntar frases
fantasiosamente enfileiradas pra fazer verso-livre. Os moços
se aproveitaram dessa facilidade aparente, que de fato erá uma
dificuldade a mais, pois, desprovido o poema dos encantos
exteriores de metro e rima, ficava apenas. . . o talento. E
já espanta, um bocado dolorosamente, esse monturinho sapeca
de livros de moços, coisa inutil, rostos mais ou menos corados,
excessiva promessa, resum indo: bambochata que não resiste à
prim eira varredura do tempo.
Devia ser proibido por lei indivíduo menor de idade, quero
dizer, sem pelo menos 25 anos, publicar livro de versos. A
poesia é um grande mal humano. Ela só tem direito de existir
como fatalidade que é, mas esta fatalidade apenas se prova a
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si mesma depois de passadas as inconveniências da aurora. cendo fisicamente um com o outro. Assim a rítmica dêle aca­
Os moços teem muitos caminhos por onde tornar eficazes as bou se parecendo com o físico de Manuel Bandeira. Raro uma
suas falsas atividades: conversém com o povo e o relatem, doçura franca de movimento. Ritmo todo de ângulos, incisivo,
descrevam festas de região bem detalhadamente, ou se inun­ em versos espetados, entradas bruscas, sentimento em lascas,
dem de artigos de louvor aos poetas adorados. Poesia não. gestos quebrados, nenhuma ondulação. A famosa cadência
oratória da frase dasapareceu. Nesse entido, Manuel B an­
Escrevam se quiserem, mas não se envolumem. O resultado
deira é o poeta mais civilizado do B rasil: não só pelo aban­
dessa envolumação precipitada das inconveniências da aurora,
dono total do enfeite gostoso, como por ser o m a is .. . tip o­
refletindo bem, foi desastrosa no movimento contemporâneo
gráfico de quantos, bons, possuímos. Quero dizer: se a
da nossa poesia. Uma desritmação boba, uma falta pavorosa
gente contar na Poesia a maneira dela se realizar, desde o
de contribuição pessoal, e sobretudo a conversão contumaz a grito inicial à poesia cantada, à manuscrita que se decora, à
pó de traque, da temática que os mais idosos estavam traba­ recitada com acompanhamento, à declamada, à poesia, enfim
lhando com fadiga, hesitações e muitos erros. concebida exclusivamente pra leitura de olhos m u d os: Manuel
Falei na desritmação dos versos dos m o ç o s .. . O que logo Bandeira é dentre os poetas vivos nossos o que precinde mais
salta aos olhos, nestes poetas de 1930, é a questão do ritmo do som. A poesia dele, na infinita maioria atual, é poesia pra
leitura. Se observe a aspereza rítima dum dos poemas mais
livre. Verso livre' é justamente aquisição de ritmos pessoais.
suaves do livro, como os versos são “ intrataveis” , incapazes de
Está claro que se saimos da impersonalização das métricas
se encaixar uns nos outros pra criar a entrosagem dum qual­
tradicionais, não é pra substituir um encanto socializador por
quer em balanço:
um vácuo individual. O verso livre é uma vitória do indivi­
dualismo. . . Beneficiem os ao menos dessa vitória. E é nisso
Quando eu tinha seis anos
que sobressaem as contribuições de Manuel Bandeira e Augusto Ganhei um porquinho da Índia
F rederico Schmidt. Que dor de coração eu tinha
Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão.
Libertinagem é um livro de cristalização. Não da poesia ( )
de Manuel Bandeira, pois que este livro confirm a a grandeza O meu porquinho da Índia foi a minha primeira namorada
dum dos nossos maiores poetas, mas da psicologia dele. É o
livro mais indivíduo M anuel Bandeira de quantos o poeta já A inutilidade do som organizado em movimento é evidente.
publicou. A liás também nunca êle atingiu com tanta nitidez E citei o verso longo fin al pra mostrar toda a áspera rítm ica
os seus ideiais estéticos, como na confissão (P oética, pág. 23) do poeta. Aspereza tanto mais característica que, se estudar­
de a g o ra : mos esse verso pelas suas pausas cadenciais, a gente se acha
diante dos versos mais suaves da lín g u a : a redondilha e o
decassílabo:
Estou farto de lirismo comedido
Do lirismo bem com porta do.. .
( ) O meu porquinho da Índia (7 sílabas)
N ão quero mais saber do lirismo que não ê libertação. Foi a minha primeira namorada (10 sílabas)

E ntendam o-nos: libertação pessoal. Numa poesia emocionante pela simplicidade de expressão,
Essa cristalização de Manuel Bandeira se nota muito acolhendo mil símbolos fiéis, O Cacto, o último verso diz bem
ritmo atual de Manuel B a n d eira : E ra belo, áspero, intratavel.
particularmente pela rítm ica e escolha dos detalhes ocasiona-
dores do estado lírico. Manuel Bandeira lembra esses amantes A liás se dá mesmo uma luta permanente entre essa essên­
bem casados que, depois de tanta convivência, acabam se pare­ cia “ intratavel” do indivíduo Manuel Bandeira e o lírico que
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tem nele. Vem disso o dualismo curioso que a gente percebe sia, é duma unanimidade brasileira muito grande. Nos poetas
nas obras dele, passando de jogos com valor absolutamente românticos o tema do exílio e do desejo de voltar é freqüente.
pessoal, duma detalhação por vezes pueril (no sentido etimoló- Com o neo-romantismo dos nossos parnasianos, o tema das bar­
gico da palavra), d ifícil de com preender ou de sentir com in­ cas, das velas que partem e “ não voltam mais” foi substituindo
tensidade pra quem não privou com o homem, a concepções a ave que voltava ou queria voltar ao ninho antigo. N o . . .
profundas, duma beleza extremada e interesse geral. Interesse néo-néo-romantismo dos contemporâenos, o desprendimento v o ­
em que não entra mais o conhecimento pessoal do poeta, ou luptuosamente machucador, a libertação da vida presente, que
coincidência psicológica com êle. A s melhores obras do poeta, se resume na noção de partir, agarrou freqüentando com insis­
Andorinha, O A n jo da Guarda, A V irgem Maria, Evocação tência significativa a poesia nova. Isso se nota não tanto nas
do R ecife, Teresa, N oturno da Rua da Lapa, pra citar apenas poesias de viagem, comuníssimas em qualquer dos nossos versoli-
o Libertinagem , são as poesias em que por mais pessoais que vristas, como pela declinação clara do desejo de partir. Em
sejam assuntos e detalhes, mais o poeta se despersonaliza, mais A ugusto Frederico Schm idt êsse desejo de partir (ou antes: o
é tôda a gente e menos é caracteristicamente ritmado. A p ró­ de abandonar aquilo em que se está) é uma obsessão constante.
pria Evocação do R ecife que atinge o recesso da fam ília cha­ Ora, em Manuel Bandeira, o fenômeno se partieulariza mais
mada nominalmente (Totônio Rodrigues, dona Aninha Vie- pelo emprêgo da própria frase “ vou-me embora” . Se pelo me­
ga s), é bem a maneira por que tôda a gente ama o lugarinho nos em mais dois poetas contemporâneos, de que me lembro no
natal. Em duas poesias, que agora c i t o : Poem a de Finados momento, a frase fo i empregada com sistematização consciente
e You-m e embora pra Pasárgada, o poeta se generaliza tanto, e não como valor episódico, o “ vou-me em bora” é ainda uma obs-
que volta aos ritmos menos individualistas da m etrificação, sessão da quadra popular nacional. Me retrucarão que será mais
como já fizera nas cantigas dos Sinos e do Berimbau, no R itm o certo dizer da quadra portuguesa. Posso aceitar que, como
Dissoluto. (1 ) lugar-comum poético, a frase nos tenha vindo de Portugal.
M uito curioso de observar é o Vc<u-me embora pra Pasár­ Aparece, aliás, em todo o folclore de origem ibérica. Porém
gada, com que Manuel Bandeira deu afinal a obra-prima poéti­ o “ vou-me embora” freqüenta m uito mais a quadra brasileira
ca dum estado-de-espírito bastante comum nos poetas brasilei­ que a portuguesa, onde, como pretendo demonstrar num estudo
ros de hoje. Já o início dêsse título-refrão que percorre a poe- futuro, o tema da partida, às mais das vezes, é traduzido
por “ adeus” — o que parece indicar que a noção de partir é
(1 ) Ésse poder socializante do ritmo medido tem uma prova crítica bem m uito mais saudosista em Portugal, onde mais frequentemente
evidente dêle e de Manuel Bandeira, quando êste na EvocaçSo do R ecife, se converte num sentimento de despedida, ao passo que entre
ao constatar, caçoista, a nossa escravização ao português gramaticado em nós será mais egoística e desamorosa ( o que concorda com o
Lisboa, principia dançando de repente e organiza, no meio dos versos livres, já tão reconhecido individualism o nosso), convertida no senti­
um verdadeiro refrão coreográfico e coral:
mento de abandonar aquilo em que se está. Se servindo pois
dessa constância nacional, Manuel Bandeira fez ela coincidir
. . .Porque êle é que fala gostoso o português do Brasil com um estado-de-espírito bem dos nossos poetas contem po­
Ao passo que nós râneos, incontestàvelmente menos filosofantes que os das duas
O que fazemos
gerações espirituais anteriores (B ilac, Raimundo Corrêia,
É macaquear
A sintaxe lusíada
Am adeu Amaral, Rosalina Coelho Lisboa, Ronald de Carvalho,
A vida com uma porção de coisas que eu não entendia b e m ... (e tc.). Hermes Fon tes), porem mais em contacto com a vida quoti­
diana e mais desejosos de resolvê-la numa prática de felici­
Sôbr.e a fôrçá socializadora da métrica, ainda se notará a preferência dade. Incapazes de achar a solução, surgiu neles essa vontade
pelos ritmos ímpares de marcha, em Augusto Frederico Schmidt, que é um amarga de dar de ombros, de não se amolar, de partir pra uma
católico de feição francamente proselitista. farra de libertações morais e físicas de toda espécie. Vontade
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transitória, episódica, não tem dúvida, mas importante, p or­ do verso medido, sistematizada em tantos poemas, seja uma
que esse não me-amolismo meio gozado deu alguns momentos tendência pra socializar-se, como em A ugusto Frederico Sch-
significativos da poesia ou da evolução espiritual de certos midt, ou pra se generalizar mais, como em Manuel Bandeira.
poetas contemporâneos brasileiros. Em última análise, o tema Salvo, talvez, o caso da Cantiga do V iúvo, o emprêgo da me­
do “ vou-me embora pra Pasárgada” , é o mesmo que está can­ trificação provem, nele, de uma vontade íntima de se aniquilar,
tado nas Danças, de M ario de A ndrade, e em especial é o que
de se esconder, de reagir p or meio de movimentos ostensiva­
dita o diapassão básico dos Poemas de B ilú , de Augusto Meyer.
mente cancioneiros e aparentemente alegres e cômicos (sempre
Se percebe o eco dele em alguns poemas de Sergio M illiet e de
Carlos Drumniond de Andrade, pra enfim se transform ar de ainda o “ vou-me embora pra Pasárgada” . . . ) contra a sua
estado-de-espírito em constância psicológica, já independente inenarrável incapacidade pra viver. É o que êle mesmo resu­
da conciência, em toda a obra de M urilo Mendes. Fiz esta me aliás naquele dar de ombros com que termina a Toada
digressão pra mostrar quanto Manuel Bandeira perdeu de si do A m o r:
mesmo, pra dar a um tema useiro dos nossos poetas de agora
a sua cristalização mais perfeita. Será, talvez, a ironia da Mariquita, dá cá o pito,
sorte contra esse grande lírico tão intratavelmente individua­ No teu. pito está o infinito (pág. 2 4 ).
lista, isso dele ser tanto maior poeta quanto menos Manuel
B a n d e ir a ... A análise de Algum a Poesia dá bem a medida psicológica
Carlos Drum m ónd de Andrade, dum individualismo tam­ do poeta. Desejaria não conhecer intimamente Carlos Drum-
bém exacerbado, nos deu um livro que revela o indivíduo mond de Andrade pra melhor achar jpelo livro o tím ido que
excessivamente tímido. Já isso transparece pela rítmica dêle, êle é. P ra êle se acomodar, carecia que não tivesse nem a
inaferravel, disfarçadora. Daí uma riqueza de ritmos muito sensibilidade nem a inteligência que possue. Então dava um
grande, mas, psicologicamente, quase desnorteante, porém. É desses tímidos só tímidos, tão comuns na vida, vencidos sem
o mais rico em ritmos destes quatro poetas. A s suas subtilezas saber o que são, cu ja mediocridade absoluta acaba fazendo-os
atingem às vêzes a arte filigranada de Guilherme de Alm eida. felizes! Mas Carlos Drum m ónd de A ndrade, timidíssimo, é
Assim p or exemplo naquele caso curioso de F uga em que, alem ao mesmo tempo, inteligentíssimo e sensibilíssimo. Coisas
da prim eira quadra da pág. 94 parecer toda em versos de nove
que se contrariam com ferocidade. E dêsse combate tôda a
sílabas, embora contendo um de oito e outro de dez, a estrofe
poesia dele é feita. Poesia sem água corrente, sem desfiar e
seguinte, toda em octossílabos, termina com o decassílabo:
concatenar de idéias e estados de sensibilidade, apesar de toda
construída sob a gestão da inteligência.Poesia feita de explo­
E todo mundo anda — como eu — de luto. sões sucessivas. Dentro de cada poema as estrofes,às vezes os
versos, são explosões isoladas. A sensibilidade, o golpe de inte­
V erso habilíssimo, que apesar das suas dez sílabas e pos­
ligência, as quedas de timidez se enterseccionam aos pinchos.
sível acentuação de decassílabo romântico, é bem ainda um
octossílabo, pois que o parêntese reflexivo “ como eu” funciona Reparem o final do Poem a das Sete F a c e s :
também como um, p or assim dizer, parêntese rítmico —- pre­
servando a unidade métrica da quadra. M eu Deus, porque me abandonaste
Se sabias que eu não era Deus
Tem mesmo em Carlos Drum m ónd de Andrade um com ­
Se sabias que eu era fraco.
promisso claro entre o verso-livre e a metrificação. Os seus
versos curtos assumem, na infinita maioria, função de versos Mundo, mundo, vasto mundo,
medidos, contendo noções geralmente com pletas e acentuações Se eu me chamasse Raimundo
tradicionais. Mas não me parece que neste poeta a utilização Seria uma rima, não seria uma solução.
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Mundo, mundo, vasto mundo Bandeira também caiu, às vezes, nessa precariedade) são a úni­
Mais vasto é meu coração. ca restrição de valor permanente que se possa fazer a A lgum a
Poesia. Culpa integral da inteligência. De inteligência inca­
Eu não te devia dizer
Mas essa lua paz e fatigada ( “ vou-me embora pra P a s á r g a d a !... ” ). Não
Mas êsse conhaque e mais humour. Não é ainda a sátira. Não creio que esses poe­
P õ e a gente comovido como o diabo. mas possam adiantar qualquer coisa ao poeta. E por eles será
aplaudido nas rodas dos semi-literarizados das academias e
Toda a timidez do poeta ressumbra do primeiro terceto. cafés. O que positivamente é uma desgraça.
Vem depois a explosão da sensibilidade na quintilha seguinte
Assim incapaz e fra gil diante da vida (V . o admirável
com uma fadiga provocando assonâncias, associações de ima­
No meio do Cam inho), era natural que a poesia de Carlos
gens, e o verso sublime (mas intelectualmente tolo) “ seria uma
rima, não seria uma solução” . E o diabo da inteligência explode Drumm ond de A ndrade se alargasse em m aior detalhação in­
na quadra fin a l: o poeta pretende disfarçar o estado de sensi­ dividual. De f a t o : a caracterização psicológica de A lgum a P o e­
bilidade em que está, faz uma gracinha bancando a corajosa, sia não assume apenas verdades totais do indivíduo, como a
bem de tím ido mesmo, e observa com verdade (pura inteligên­ de Libertinagem senão que desce a particularizações interessan­
cia, p ois), as reações do ser ante o m undo exterior. Essa poe­ tíssimas. Dois sequestros tem no livro, pelo menos dois, que
sia de arranco, que não se deverá con fu n dir com a superposi­ me parecem muito cu riosos: o sexual e o que chamarei “ da v i­
ção de dados objetivos que de W hitm an nos veio, é sistemática da besta” . A o seqüestro da vida besta, Carlos Drum m ond de
em todo o livro. A ndrade conseguiu sublimar melhor. A o sexual n ã o ; não o
tranform ou liricam ente: preferiu rom per adestro contra a preo­
Seria preferível, talvez, que Carlos Drum m ond de A n ­
cupação e lutas interiores, mentindo e se escondendo. O suave
drade não fôsse tão inteligente. . . A reação intelectual con­
tra a timidez já está mais que observado: provoca amargor, cantor do R ei de Siãa, o anjo de Purificação, o humorista de
tantas ironias, o paciente de sua própria casa, do recesso fa ­
provoca humour, provoca o fazer graça sem franqueza, nem
miliar, da vida besta, virou grosseiro, um ostensivo debochado.
alegria, nem saúde. E m Carlos Drum m ond de A ndrade p ro­
vocou tudo isso. A amargura não fez mal e fo i um valor a mais. O livro está rico de notações sensuais, ora sutis como a da pele
Nem o humour, pois que poesias como F uga, Toada de A m or, picada p or mosquitos, ou do dente de ouro' da bailarina, ora
Quadrilha, Família, são da melhor poesia de humour. E a to­ maleducados como o das tetas. Mas onde o seqüestro explo­
do instante se topa com notações humorísticas excelentes, como de com abundância provante é no livro estar cheio de coxas e
o final do São João D ’E l R ei: especialmente de pernas (págs. 10, 36, 62, 141, 144, 136, 117,
113, 110).

E todo me envolve
A in da não encontrei referência, entre as civilizações anti­
Uma sensação fina e grossa (pág. 42) ; gas e primárias, a êsse desvio do olhar masculino, universal
na Civilização Cristã, com que os homens julgam das quali­
ou quase todas as estrofes de Fantasia, principalm ente as n o­ dades boas d u m a ... peça, olhando-lhe as pernas. A explica­
tações sobre o Diabo que me lembraram Schelley. Mas onde ção do uso das saias me parece insuficiente. Deve haver nesse
a inteligência preju d icou o poeta e o deform ou enormemente, costume um acondicionam ento do ser sexual com as proibições
fo i em fazer ele aderir aos poemas curtos feitos prà gente dar dos Mandamentos, uma espécie de b lu ff: o cristão blefa a lei,
risada, o poema-cocteil, o “ poem a-piada” , na expressão feliz com uma inocência deliciosa. Carlos Drum m ond de A ndrade
de Sergio Milliet. O poema-piada é um dos maiores defeitos também fo i vítima desse desvio do olhar cristão, mas, porém,
a que levaram a poesia brasileira contemporânea. Antes de com uma deformação subconciente curiosa. Não creio que êle
mais nada, isso é fa c ílim o : há centenas de criadores de anedo­ seja na vida êsse grosseiro, que tantas pernas evocadas indi­
tas p or aí tudo. A ch o mesmo que os poemas-piadas (M anuel cam. O que êle quis fo i violentar a delicadeza inata, maltratar
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ASPECTOS DA LITERATURA BRASILEIRA 37

tudo o que tinha de mais susceptível na sensibilidade dele, dar


passadas, ao passo que na contemporânea, desenhou a coisa
largas às tendências sexuais, inebriar-se nelas, clangorar per­
fácil, liquidada pronto, como desejava pra si. Um documento
nas e mais pernas, pra se vencer interiormente. Ser grosseiro, precioso de psicologia.
ser realista, já que não achava (p or causa da própria tim idez),
A ugusto Frederico Schmidt, nos dando em 1930 o Pássaro
saida delicada ou humorística pro caso. B isso culmina, pág.
Cego, levou dois anos pra publicar o mesmo número de obras
110 ( “ pernas” 3 v ezes!), na grosseria bem comovente com que
que Manuel Bandeira em 13. Isso determina o poeta. É terra
o que estava bancando o violento sensual, não conseguiu ven­
de p au -da lh o: numeroso, abastoso e voluptuariam ente disper-
cer as delicadezas íntimas, e em vez de falar que a mulher não
diçado. E assim a rítm ica dele. O poeta, que vem de judeus
passa dum sexo (que é o que êle queria gritar m alvadamente),
e soube tirar dessa origem temas e caracterizações de poesia,
exclam a: “ Todas são p ern as!” .
é mais propriamente um asiático. A gin d o dentro das quen-
O seqüestro da vida besta é mais artisticamente valioso. turas mais sensuais, tudo nêle reveste as delícias dessa m agni­
Ele representa a luta entre o poeta, que é um ser de ação ficência orientalizante. Na frase d ek , coisas, às vêzes, pos­
pouca, m uito empregado público, com família, caipirism o e sivelmente irritantes, que nem o abuso das repetições, as com ­
paz, enfim o “ bocejo de felicidade” , com o ele mesmo o des­ plicações pernósticas de sintaxe, a religiosidade sem discreção,
creveu, e as exigências da vida social contemporânea que já o feitio não apenas oratório, mas declamatório, o senso exíguo
vai atingindo o B rasil das capitais, o ser socializado, de ação de eontemporaneidade, tudo, enfim, que parece feito pra des­
muita, eficaz prà sociedade, mais público que íntimo, com valorizar, antes o valoriza. Assume um dom de necessidade
maior raio de ação que o cumprimento do dever na fam ília que infunde respeito. Na verdade os 32 cacoetes que fazem
e no empreguinho. O poeta adquiriu um a conciência penosa o material da poesia dêle, m uito embora ostensivos e dispostos
da sua inutilidade pessoal e da inutilidade social e humana sem a mínima delicadeza de coração (2 ), a juntam um grau
da “ vida besta” . Mas a tragédia era menos individualista.. tamanho de caráter à obra do poeta, que deixam de ser cacoetes
O poeta poude não atribuir a ela a im portância pessoal que pra se tornarem caracteres dela.
dava p ro caso sexual, e conseguiu p oetificar melhor, fazer disso Sob o ponto-de-vista técnico, A ugusto Frederico Schmidt
mais lirismo e mais poesia. Criou poemas de pura sensibili­ soube com habilidade rara e desde o prim eiro livro, escolher
dade, saudosa (In fâ n cia ), complacente (S w eet H om e), irônica na lição histórica da poesia brasileira o quanto havia de cons-
( Gidadezinha Q u alquer), ou humourísticos ( Família, e Sesta) tâncias capazes de lhe darem fisionom ia própria e tradicional.
A in d a o Chopin e a eterna Cantiga do V iúvo se enquadram Isso vale bem a gente observar porque incide no orientalismo
bem no ciclo. Outro poema, este curiosíssimo, também do do poeta. Outros também foram buscar através do B rasil
ciclo, é o Sinal de A p ito, duma pureza impressionante, em que constâncias que os tradicionalizassem. Mas o que os outros
a “ vida besta” aparece convertida em valor social mas vingati­ iam buscar na lição do povo popular, A ugusto Frederico
vamente reduzida, enfim a um simples maquinismo material Schm idt ia buscar na poesia burguesa, o que o demonstra bem
de gestos e sinais. E finalmente, como clim ax do seqüestro,
vem a Balada do A m or através das Idades. A gora o caso é
(2) Prova da tendência proselitista de Augusto Frederico Schmidt.
admiràvelmente expressivo. O poeta se vinga da vida besta, Os poetas proselitistas têem para lhes desculpar êsse excesso de indiscreção,
botando m iríficos suicídios e martírios estrondosos em casos de a franqueza dadivosa que os anima, a lealdade com que jogam tôda a rique­
amor de diferentes épocas passadas. Menos na contem porâ­ za numa cartada só. Todos êles, no geral, demonstram, com clareza imediata,
os “ processos” que fazem a técnica e a ideologia dêles. Se observe, por
nea, em que faz o amor dar em casamento, em burguesi,ee, em
exemplo, Marinetti, Verhaeren, Bilac, Maiakowsky, Sandburg, poetas sociais,
. . . vida b esta : é êle. O poeta não faz mais do que se retratar proselitistas incontestáveis, cujas “ maneiras” são fàcilmente pefceptíveis, em
“ através das idades” . A s dificuldades com que teve que lutar oposição a um Rimbaud, a um Lautreamont, a um Manuel Bandeira, a
(não sou indiscreto, pois que como as dele, pequenas, todos mesmo uma Francisca Júlia, não-meamolistas de marca maior, inaferráveis,
impossíveis de repetir. Entre Castro Alves e Alvares de Azevedo, mesma
teem ), êle exagerou liricamente e transportou pra épocas já
coisa.
38 M A E I O DE A N D E A D E ASPECTOS DA LITERATURA BRASILEIRA 39

pachá, bem mandarim. Aliás, é um católico de ação e neces­ m etrificado. Está claro que isso era necessário pra um poeta
sariamente havia de demonstrar exasperação monárquica. Mas de alma messiânica (sem intenção pejorativa nenhum a), cató­
eu, que a um tempo lhe censurei certos cacoetes, já não os lico p or natureza e fé. Se a muitos parecerá que o poeta
censuro mais. Fazem parte essencial dessa torrente majestosa, fo i buscar nos ritmos ímpares do Romantismo (Tristão de
e apesar de majestosa sempre suave, da poesia dele. Largas A ta íd e ), na escolha de dicções românticas, de sintaxes ar reve­
monotonias, coxas odalisquíssimas, danças rituais pesadas, zadas, de palavras velhas, um romantismo novo, a mim me
doces com muito açúcar, sêdas que são paredes de grossas. . . parece que todas essas normas usadas p or êle, proveem de
E sempre Deus. Um Deus desamavel, mas bem jesuítico, tendências mais lógicas. Na realidade, êle não fo i buscar nada
bonito, volumoso e duma violência sincera. P or tudo isso em ninguém , não, nem se fez sob o signo de Casimiro de A breu
A ugusto F rederico Schm idt é dentre os nossos poetas contem­ (3 ) , antes: as suas tendências o levaram a utilizações velhuscas
porâneos, o que melhor sabe cadenciar. Se observe este final (muitas são até parnasianas: o entroncamento, a evocação da
da admirável P r o fe c ia : Sublim e Porta, página 169), por aquela parte fatal e unani-
mizadora das religiões, em que eles se agarram ao passado com
S e não obedeceres à escolha do Senhor, será melhor
o inamovível da Lei e do Rito. Não me emparelho com isto aos
Que os animais ferozes dividam teu. corpo em pedaços. que consideram paralisadoras as religiões. Mas é inegável que
Que o mar te atire de encontro aos rudes rochedos Deus não requer nem progresso nem evolução. O inamovível
E desabem sôbre tua cabeça tôdas as desditas. da Lei e do Rito não é mais que a projeção mimética de Deus
Fortifica bem o teu espírito atormentado,
Tira da tua fraqueza o teu grande heroismo.
dentro da vida terrestre, um contraste danado. Essas renova­
Abandona tôda a poesia do mundo que é inútil ções, esses fantasmas antigos, que adornam a poesia de A ugus­
Pois a beleza distrai os homens e os diminue. to Frederico Schmidt, teem uma verdadeira função litúrgica
D eixa o teu corpo fechado para todas as volúpias. dentro dela.
Que a noite abandone teu corpo cansado,
Porque teu papel é maior que tu mesmo — e o precisas cum prir! A in d a aspecto essencial do poeta é o emprêgo das m ono­
(pág. 34) tonias da obcessão ( Abram as Portas, Menina M orta), repetindo
idéias, palavras, frases com uma pachorra asiática. Poemas
Cadenciado assim, sutil na tendência p ro verso longamente há em que as estrofes tiram valor emotivo de serem variantes
voluptuoso em que a própria exhaustão do respiro dificulta a mínimas de uma idéia única. Augusto Frederico Schm idt
lepidez da idéia (sempre lenta no poeta) ; tão sutil a ponto de valoriza esse processo do Tema com variações, às vêzes, muito
ser lento até em muitos versos curtos, pela disposição sin tática: bem. Inda m ais: a condescendência na repetição de certos
assuntos com o o rom ântico, da morte, o religioso, da profecia,
Avistou a cidade distante, o modernista, da brasilidade ( Canto do Brasileiro, Novo Canto
Iluminada, ardia, como em ch a m a s... (pág. 15 ), do B rasileiro) — coisas que noutro podiam demonstrar insa-

pela intercalação de quebras na célula rítm ica:


(3 ) N ão têm dúvida que o Romantismo se tornou uma revolta conciente
em Augusto Frederico Schmidt, dêsde o momento em que, fatigado da te­
Um dia passa, outro dia mática em voga do Modernismo (foi êle, creio, quem primeiro ecoou no
E os dias todos passando vück Brasil a noção do Antim odem o, de Maritain , e foi êle pela sua asiática
A minha mocidade há-de passar em breve falta de agilidade, quem criou com o Canto do Brasileiro, uma reprodu­
Só terei cinzas no coração (pág. 123), ç ã o . . . séria do “ Vou-me embora prà Pasárgada” ) , êle quis, e quis bem,
abrir caminho novo. Ser moderníssimo, p ois. . . Mas êsse romantismo, con­
ciente, e aliás episódico, deu ao poeta o que, me parece, menos o lustrará
e ainda pelo uso do entroncamento, e das palavras arcaicas nos tempos: além do vocabulário sediço que êle não conseguiu renovar
que interceptam a correnteza da naturalidade, temos que re­ nem impôr, certas poesias de tôda ou muita imitação ( A Deus, L ira ), pas-
conhecer : Augusto Frederico Schmidt vai tendendo pro versp tichos visíveis, cujo valor me escaDa inteiramente.
ASPECTOS DA LITERATURA BRASILEIRA 41
40 M A R I O DE A N D R A D E

No meio das grandes correntes que estão movendo o século,


tisfação pela realização anterior — em A ugusto Frederico
a poesia brasileira se conserva como espectadora. Só mesmo
Schm idt são -bem valores equatoriais, são mesmo condescendên­
o nacionalismo que nos toca essencialmente pra conseguirmos
cia, complacência, conform ism o com as suas próprias desco­
viver em paz com a nossa terra, conseguiu tirar um bocado
bertas. O favor que concede à tristura, sem um grito mais
certas poetas da sua janelinha de ouro e prata. F oi o único
lancinante, sem um sarcasmo, sem uma irregularidade psico­
instante em que alguns desceram prà rua. Um mérito excep­
lógica mais rubra (estamos nos antípodas de Manuel B andei­
cional de Augusto Frederico Schmidt fo i esse de tomar posição
r a ), prova no poeta um áureo e sonoroso conformismo. A s
na rua. É um ca tólico; e cantando os seus ondulantes versos,
suas próprias insatisfações e remorsos religiosos, coados atra­
criou um convite à procissão, que a gente poderá aceitar. Do
vés dessa maneira geral de ser, tomam irrefragavelm ente um
lado oposto, o poeta político inda não apareceu.
ar de A rte Pura, que os imobiliza bem. No fim de um lamento
que podia vincar, a gente está mais é gozando. E é pois Porque, vamos e venhamos, a Poesia não pode permanecer
curioso de constatar que embora a poesia dele clame quedas de neste compromisso de facilidades sentimentaisinhas e didáticas
consciência, temores do In finito, fantasmas reachados, insatis­ em que quase exclusivamente se confina entre nós. É preciso
fação do presente: na verdade é uma poesia de arte, com muito acabar de vez com essa bobagem de distinguir Poesia e Prosa
conform ism o e sem a mínima inquietação. por meio do aspecto tipográfico — bobagem permanecida mes­
mo entre os versolivristas. O que as distingue é mesmo o
E se a todo instante na obra deste artista, se topa com
fu n d o : A Prosa transporta tudo pra um plano único, intelec­
im perfeições e desleixos de fatura numerosos, isso não invalida
tual, p or isso mesmo que desenvolvendo noções, é exclusiva­
em absoluto o caráter de arte dela. Essas im perfeições fazem
mente conciente. A Poesia, pelo contrário, transfunde as no­
parte mesmo da qualidade estética de Augusto Frederico
ções mais concientes pra um plano vago, mais geral, mais
Schmidt, que é de um barroco decidido. Como nos templos
complexamente humano. Nesse ponto é a principal contri­
carregados de enfeites, de Java, da índia, do B arroco, do
buição do Surréalisme, que conseguiu como jamais, especificar
próprio Gótico, é da natureza da obra dele a avaliação do
a essência da Poesia. Ou que a Poesia se traia inteiramente e
conjunto. Pouco im porta num portal gótico, num alto-relevo
vire cantadora pragm ática dos interesses sociais, ou vire, no
javanês, numa capela-mor barroca, a imperfeição, o mal aca­
máximo orgulho, inexoravelmente senhoril e livre da inteligên­
bado duma estátua ou duma voluta. Não é da natureza desses
cia. O meio-termo está se tornando cada vez mais inaceitável.
estilos aquela perfeição itinerante, completa p or si a cada
Noventa por cento da pseudo-poesia humana é falsificação. É
pormenor. O fu lg or generoso do con jun to (desprezada mes­
preciso atingir o lirismo absoluto, em que todas as leis técnicas
mo a unidade de concepção desse con jun to) é que vale exclusi­
e intelectuais só apareçam pelas próprias razões da libertação,
vamente e ignora essas imperfeições. Tanto fulgor e tanta ge­ e nunca como normas preestabelecidas. Ou então trair desa­
nerosidade que, no geral, as obras dessa estética ficam sempre vergonhadamente : pregar. Ou ser Juiz duma vez, ou ser
inacabadas, mesmo porque o acrescentamento, nelas, é sempre
“ louco” duma vez. V ersejar cantando a Terra, a Mãi Preta,
possível. Na literatura há também figuras que p or mais
descrever o Carnaval, gemer de amor batido ou vitorioso, em
mortas já, mais do passado, dão sempre a impressão de inaca­ Poesia, tudo isso é dum carrancismo didático medonho. Não
badas. Goethe, p or exemplo, pra subir dum pulo às supremas é Poesia, é festinha escolar. E é Prosa da ruim, porque d e fi­
grandezas. A o passo que em naturezas sem nenhuma genero­
ciente, incompleta como análise, deformada como essência. E
sidade, um Anatole France, um Machado de Assis, um Piran- a Poesia cada vez tem de ser mais lírica, no polo oposto à
dello, cada obra é total por si mesma, e mesmo quando ainda associação de idéias. Mas são admissíveis ainda e sempre a
vivos, esses autores não implicam espera, são acabados (é bem metrificação, a rima João Pessoa, o soneto, o verso-de-ouro e a
o caso de Pirandello) : outros há que, p or generosos, jamais, estupidez, desque bem raciocinados e falsificadores, porem can­
nem com a morte, dão a impressão de ter findado a obra, tando reivindicações, martírios, grandezas do homem social.
Dostoiewski, P rou st. . .
42 M A R I O DE A N D R A D E ASPECTOS DA LITERATURA BRASILEIRA 43

Nós chamaremos isso magoadamente Poesia, pra enganar o B, como está se vendo, mais um que foi-se embora pra
Burro humano, respeitabilíssimo e desinfeliz. B que ninguém Pasárgada. . . E este definitivamente, em toda a sua maneira
perceba a nossa mágoa. Ninguém perceba dentro de ninguém mais natural de poetar.
os estragos que faça o sacrifício. Seria d ifícil neste resumo, já tão enorme, dar uma idéia
E agora ressalto o valor dos Poemas, de Murilo Mendes. pormenorizada da contribuição que M urilo Mendes traz para
a nossa poesia, vou parar. O que me entusiasma sobretudo
Historicamente é o mais importante dos livros do ano. Murilo
nele, alem dessa essencialização poética a que escapa só o satí­
Mendes não é um surréaliste no sentido de escola, porem me
rico da primeira parte do livro (Jogador de D iabolô), é a
parece d ifícil da gente imaginar um aproveitamento mais se­
integração da vulgaridade da vida na maior exasperação so­
dutor e convincente da lição sobrerrealista. Negação da inte­ nhadora ou alucinada.
ligência superintendente, negação da inteligência seccionada
em faculdades diversas, anulação de perspectivas psíquicas,
Das cinco regiões onde navios angulosos
intercâmbio de todos os planos, que não exem plifico porque são Sangram nos portos da loucura
todo o livro. O abstrato e o concreto se misturam constante­ Vieram meninas morenas,
mente, form ando imagens ob jetivas: Pancadões, com seios empinados gritando Mamãe eu quero um
noivo! (pág. 45)

Arcanjos violentos surgem do fundo dos minutos (pág. 51) Os anjos maus. . .
São fortes e grandes, não é sopa não,
Têem dentes de pérolas, lábios de coral
Os cemitérios do ar esquentam Os aviadores partem prà combatê-los e morrem.
Com o fogo saido do sonho da vizinha (pág. 45.) A s viúvas dos aviadores não recebem montepio (pág. 34 ).
O manequim vermelho do espaço
Os homens largam a ação na paisagem elementar (pág. 81) ( )

Estou aqui, nú, paralelo à tua vontade (pág. 52), De tanto as costureiras do ateliê de dona Marotas
Se esfregarem nêle de-tarde
Já quer sair das camadas primitivas
etc. numa complexidade de valores, de belezas, de defeitos, de Daqui a mil anos será uma grande dançarina
irregularidades, tanto mais curiosos e eficazes que aparecem Dançará sôbre o meu túmulo diante do cartaz dos astros
Quando eu mesmo dançar minha vida realizada
dotados duma igualdade insolúvel: as belezas valem tanto como
No terraço dos astros (pág. 6 2 ).
os defeitos, as irregularidades tanto como os valores, numa
inflexível desapropriação da Arte em favor da integralidade
É inconcebível a leveza, a elasticidade, a naturalidade com
do ser humano. que o poeta passa do plano do corriqueiro pro da alucinação
e os confunde. Essa naturalidade, essa coragem ignorante de
M urilo Mendes diz que é si, no Brasil, só seria mesmo admissível no gavroche carioca.
E de fato, M urilo Mendes, embora mineiro de nascença, é dono
A luta entre um homem acabado de todas as carioquices. E aqui lembro a contribuição nacio­
E um outro homem que está andando no ar (pág. 48) nal admirável dele. Impenetrável, visceral, inconfundível, há
brasileirismo tão constante no livro dele, como em nenhum
pra completar a verdade noutro poema, avisando que outro poeta do Brasil. Realmente este é o único livro brasi­
leiro da poesia contemporânea que sinto impossível a um
. ..n ã o é culpado nem inocente. estrangeiro inventar. Todos os outros, com maior ou menor
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ASPECTOS DA LITERATURA BRASILEIRA 45

erudição, maior ou menor experiência pessoal, qualquer homem


Mas o castigo de tôda essa riqueza que lhes dá 0
do mundo teria feito. O que nos outros é fru to duma vontade,
difamarem a A rte e estraçalharem com ela, é que matam a p ró­
em M urilo Mendes, é apenas um fenômeno p or assim dizer
pria finalidade objetiva dela, a obra-de-arte. Em M urilo
de reação nervosa.
Mendes, como em Cícero Dias, desaparece fortemente a possi­
Como caroiquismo, como elasticidade na confusão do rea] bilidade da obra-prima, da obra completa em si e inesquecível
com o sonho, como nacionalidade independente, como tanta como objeto. Não são apenas todos os planos que se con fu n ­
com plexidade lírica de realização, só é comparável a M urilo dem nas obras deles, mas estas próprias obras, que se tor­
Mendes, e no desenho, o pernambucano Cícero Dias. Me pa­ nam enormemente parecidas umas com as outras, ou pelo menos
rece que formam ambos o que tem de mais rico e de mais novo indiferençaveis na memória da gente. Se o Tanto gentile, se
0 A lm a minha, se A s Pombas se distinguirão sempre entre
na arte brasileira de agora: uma parelha esplêndida que d ifa­
milhares de sonetos, e são logo incon fu n d íveis; se em Gonçalves
ma os cânones e conceitos da Arte, que mata a A rte no que
Dias 0 Y-Juca-Pirama é uma obra-prima e tal outro poema é
ela tem de mais pernicioso e inerente: o indivíduo mentindo,
medíocre, não possue 0 “ golpe de gênio” ; nesta nova ordem
a diferenciação das obras, a singularização dos valores, e o
de criação, utilizada p or M urilo Mendes e Cícero Dias, essa
famoso, verdadeiro e estupidíssimo “ golpe de gênio” . Esse possibilidade de distinção desaparece estranhamente. Um ou
bobo golpe de gênio que afinal das contas não há quem não outro verso, tal ou qual momento do quadro saltam p or mais
tenha, quando não 11a arte, pelo menos na vida. A vida quo­ belos, mais comoventes, mais profundos, porem as obras se
tidiana está cheia de golpes de gênio. Diante das obras desses enlaçam umas nas outras, vazam umas pràs outras, pairam
dois, não mais artistas, mas líricos admiráveis, tudo isso desa­ numa indiferença iluminada em que não é preciso mais dis­
parece. São homens que não mentem mais, libertos da conciência tinguir a grande invenção da invenção menos forte. Os outros
e de qualquer jerarquia psíquica, capazes de todas as fés e três poetas, mais submissos qual ao plano sensitivo, qual ao da
credos ao mesmo tempo. Só uma coisa eles não traem : a im- reflexão, e todos sob 0 domínio da organização intelectual, são
pulsão macunaimática do indivíduo (estou me referindo à arte mais desiguais. E xcetuando os poemas satíricos de M urilo
deles) : seres nem culpados nem inocentes, nem alegres nem Mendes, criados francamente sob a gestão do conciente, e onde
as obras se distinguem também (com o 0 já celebrado Quinze
tristes mais, dotados daquela soberba indiferença que Platiío
de N ovem bro), 0 mais se confunde numa grande massa dadi-
ligava à sabedoria. E 0 resultado importantíssimo desse ape­
vosa. E se 0 trato quotidiano do liv ro permite aos poucos a
nas aparente individualismo, que na realidade é antes um
gente ir afeiçoando mais tal poema e distinguindo este outro,
excesso do indivíduo no que êle tem de mais complexo, de mais a gente não possue mais razão pra separar a obra-prima e a
precário e desierarquizado: é que em vez de pormenorização justificar. Será um mal novo ? . . . N ão me parece que. Nem
pessoal, a obra deles é profundamente humana e genérica. Do tive intenção propriamente de distinguir milhorias ou deca-
mesmo jeito com que em Cícero Dias as formas assumem valo­ dências impossíveis. Estive apenas procurando do meu jeito,
res de universal, em sínteses tão asbtratas que nele um cachor­ a ordem de criação em que a poesia destes quatro grandes
ro se confunde com um burro, é 0 Quadrúpede, a pomba se poetas se situa.
confundindo com 0 urubú, é a A v e ; do mesmo jeito com que
nem particularização individualista, os seus assuntos são p ri­
mários e genéricos, a sexualidade (se confundindo com o am or),
o assunto da morte, 0 do prazer, 0 do Alem : também em M urilo
Mendes os assuntos são genéricos e esses mesmos, os ritmos se
tornam impessoais, versos longos mas respeitosos do respiro,
sem entroncamentos, desprovidos de luxo e imponência.

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