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aspectos da
literatura brasileira
5|a edição
NXL
C C F /C B L /S P —72—0338 C D D : 8 6 9 .9 0 9
C D U : 8 6 9 .0 ( 8 1 ) —95
A dvertencia ................................................................................ 3
(1931)
si mesma depois de passadas as inconveniências da aurora. cendo fisicamente um com o outro. Assim a rítmica dêle aca
Os moços teem muitos caminhos por onde tornar eficazes as bou se parecendo com o físico de Manuel Bandeira. Raro uma
suas falsas atividades: conversém com o povo e o relatem, doçura franca de movimento. Ritmo todo de ângulos, incisivo,
descrevam festas de região bem detalhadamente, ou se inun em versos espetados, entradas bruscas, sentimento em lascas,
dem de artigos de louvor aos poetas adorados. Poesia não. gestos quebrados, nenhuma ondulação. A famosa cadência
oratória da frase dasapareceu. Nesse entido, Manuel B an
Escrevam se quiserem, mas não se envolumem. O resultado
deira é o poeta mais civilizado do B rasil: não só pelo aban
dessa envolumação precipitada das inconveniências da aurora,
dono total do enfeite gostoso, como por ser o m a is .. . tip o
refletindo bem, foi desastrosa no movimento contemporâneo
gráfico de quantos, bons, possuímos. Quero dizer: se a
da nossa poesia. Uma desritmação boba, uma falta pavorosa
gente contar na Poesia a maneira dela se realizar, desde o
de contribuição pessoal, e sobretudo a conversão contumaz a grito inicial à poesia cantada, à manuscrita que se decora, à
pó de traque, da temática que os mais idosos estavam traba recitada com acompanhamento, à declamada, à poesia, enfim
lhando com fadiga, hesitações e muitos erros. concebida exclusivamente pra leitura de olhos m u d os: Manuel
Falei na desritmação dos versos dos m o ç o s .. . O que logo Bandeira é dentre os poetas vivos nossos o que precinde mais
salta aos olhos, nestes poetas de 1930, é a questão do ritmo do som. A poesia dele, na infinita maioria atual, é poesia pra
leitura. Se observe a aspereza rítima dum dos poemas mais
livre. Verso livre' é justamente aquisição de ritmos pessoais.
suaves do livro, como os versos são “ intrataveis” , incapazes de
Está claro que se saimos da impersonalização das métricas
se encaixar uns nos outros pra criar a entrosagem dum qual
tradicionais, não é pra substituir um encanto socializador por
quer em balanço:
um vácuo individual. O verso livre é uma vitória do indivi
dualismo. . . Beneficiem os ao menos dessa vitória. E é nisso
Quando eu tinha seis anos
que sobressaem as contribuições de Manuel Bandeira e Augusto Ganhei um porquinho da Índia
F rederico Schmidt. Que dor de coração eu tinha
Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão.
Libertinagem é um livro de cristalização. Não da poesia ( )
de Manuel Bandeira, pois que este livro confirm a a grandeza O meu porquinho da Índia foi a minha primeira namorada
dum dos nossos maiores poetas, mas da psicologia dele. É o
livro mais indivíduo M anuel Bandeira de quantos o poeta já A inutilidade do som organizado em movimento é evidente.
publicou. A liás também nunca êle atingiu com tanta nitidez E citei o verso longo fin al pra mostrar toda a áspera rítm ica
os seus ideiais estéticos, como na confissão (P oética, pág. 23) do poeta. Aspereza tanto mais característica que, se estudar
de a g o ra : mos esse verso pelas suas pausas cadenciais, a gente se acha
diante dos versos mais suaves da lín g u a : a redondilha e o
decassílabo:
Estou farto de lirismo comedido
Do lirismo bem com porta do.. .
( ) O meu porquinho da Índia (7 sílabas)
N ão quero mais saber do lirismo que não ê libertação. Foi a minha primeira namorada (10 sílabas)
E ntendam o-nos: libertação pessoal. Numa poesia emocionante pela simplicidade de expressão,
Essa cristalização de Manuel Bandeira se nota muito acolhendo mil símbolos fiéis, O Cacto, o último verso diz bem
ritmo atual de Manuel B a n d eira : E ra belo, áspero, intratavel.
particularmente pela rítm ica e escolha dos detalhes ocasiona-
dores do estado lírico. Manuel Bandeira lembra esses amantes A liás se dá mesmo uma luta permanente entre essa essên
bem casados que, depois de tanta convivência, acabam se pare cia “ intratavel” do indivíduo Manuel Bandeira e o lírico que
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tem nele. Vem disso o dualismo curioso que a gente percebe sia, é duma unanimidade brasileira muito grande. Nos poetas
nas obras dele, passando de jogos com valor absolutamente românticos o tema do exílio e do desejo de voltar é freqüente.
pessoal, duma detalhação por vezes pueril (no sentido etimoló- Com o neo-romantismo dos nossos parnasianos, o tema das bar
gico da palavra), d ifícil de com preender ou de sentir com in cas, das velas que partem e “ não voltam mais” foi substituindo
tensidade pra quem não privou com o homem, a concepções a ave que voltava ou queria voltar ao ninho antigo. N o . . .
profundas, duma beleza extremada e interesse geral. Interesse néo-néo-romantismo dos contemporâenos, o desprendimento v o
em que não entra mais o conhecimento pessoal do poeta, ou luptuosamente machucador, a libertação da vida presente, que
coincidência psicológica com êle. A s melhores obras do poeta, se resume na noção de partir, agarrou freqüentando com insis
Andorinha, O A n jo da Guarda, A V irgem Maria, Evocação tência significativa a poesia nova. Isso se nota não tanto nas
do R ecife, Teresa, N oturno da Rua da Lapa, pra citar apenas poesias de viagem, comuníssimas em qualquer dos nossos versoli-
o Libertinagem , são as poesias em que por mais pessoais que vristas, como pela declinação clara do desejo de partir. Em
sejam assuntos e detalhes, mais o poeta se despersonaliza, mais A ugusto Frederico Schm idt êsse desejo de partir (ou antes: o
é tôda a gente e menos é caracteristicamente ritmado. A p ró de abandonar aquilo em que se está) é uma obsessão constante.
pria Evocação do R ecife que atinge o recesso da fam ília cha Ora, em Manuel Bandeira, o fenômeno se partieulariza mais
mada nominalmente (Totônio Rodrigues, dona Aninha Vie- pelo emprêgo da própria frase “ vou-me embora” . Se pelo me
ga s), é bem a maneira por que tôda a gente ama o lugarinho nos em mais dois poetas contemporâneos, de que me lembro no
natal. Em duas poesias, que agora c i t o : Poem a de Finados momento, a frase fo i empregada com sistematização consciente
e You-m e embora pra Pasárgada, o poeta se generaliza tanto, e não como valor episódico, o “ vou-me em bora” é ainda uma obs-
que volta aos ritmos menos individualistas da m etrificação, sessão da quadra popular nacional. Me retrucarão que será mais
como já fizera nas cantigas dos Sinos e do Berimbau, no R itm o certo dizer da quadra portuguesa. Posso aceitar que, como
Dissoluto. (1 ) lugar-comum poético, a frase nos tenha vindo de Portugal.
M uito curioso de observar é o Vc<u-me embora pra Pasár Aparece, aliás, em todo o folclore de origem ibérica. Porém
gada, com que Manuel Bandeira deu afinal a obra-prima poéti o “ vou-me embora” freqüenta m uito mais a quadra brasileira
ca dum estado-de-espírito bastante comum nos poetas brasilei que a portuguesa, onde, como pretendo demonstrar num estudo
ros de hoje. Já o início dêsse título-refrão que percorre a poe- futuro, o tema da partida, às mais das vezes, é traduzido
por “ adeus” — o que parece indicar que a noção de partir é
(1 ) Ésse poder socializante do ritmo medido tem uma prova crítica bem m uito mais saudosista em Portugal, onde mais frequentemente
evidente dêle e de Manuel Bandeira, quando êste na EvocaçSo do R ecife, se converte num sentimento de despedida, ao passo que entre
ao constatar, caçoista, a nossa escravização ao português gramaticado em nós será mais egoística e desamorosa ( o que concorda com o
Lisboa, principia dançando de repente e organiza, no meio dos versos livres, já tão reconhecido individualism o nosso), convertida no senti
um verdadeiro refrão coreográfico e coral:
mento de abandonar aquilo em que se está. Se servindo pois
dessa constância nacional, Manuel Bandeira fez ela coincidir
. . .Porque êle é que fala gostoso o português do Brasil com um estado-de-espírito bem dos nossos poetas contem po
Ao passo que nós râneos, incontestàvelmente menos filosofantes que os das duas
O que fazemos
gerações espirituais anteriores (B ilac, Raimundo Corrêia,
É macaquear
A sintaxe lusíada
Am adeu Amaral, Rosalina Coelho Lisboa, Ronald de Carvalho,
A vida com uma porção de coisas que eu não entendia b e m ... (e tc.). Hermes Fon tes), porem mais em contacto com a vida quoti
diana e mais desejosos de resolvê-la numa prática de felici
Sôbr.e a fôrçá socializadora da métrica, ainda se notará a preferência dade. Incapazes de achar a solução, surgiu neles essa vontade
pelos ritmos ímpares de marcha, em Augusto Frederico Schmidt, que é um amarga de dar de ombros, de não se amolar, de partir pra uma
católico de feição francamente proselitista. farra de libertações morais e físicas de toda espécie. Vontade
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transitória, episódica, não tem dúvida, mas importante, p or do verso medido, sistematizada em tantos poemas, seja uma
que esse não me-amolismo meio gozado deu alguns momentos tendência pra socializar-se, como em A ugusto Frederico Sch-
significativos da poesia ou da evolução espiritual de certos midt, ou pra se generalizar mais, como em Manuel Bandeira.
poetas contemporâneos brasileiros. Em última análise, o tema Salvo, talvez, o caso da Cantiga do V iúvo, o emprêgo da me
do “ vou-me embora pra Pasárgada” , é o mesmo que está can trificação provem, nele, de uma vontade íntima de se aniquilar,
tado nas Danças, de M ario de A ndrade, e em especial é o que
de se esconder, de reagir p or meio de movimentos ostensiva
dita o diapassão básico dos Poemas de B ilú , de Augusto Meyer.
mente cancioneiros e aparentemente alegres e cômicos (sempre
Se percebe o eco dele em alguns poemas de Sergio M illiet e de
Carlos Drumniond de Andrade, pra enfim se transform ar de ainda o “ vou-me embora pra Pasárgada” . . . ) contra a sua
estado-de-espírito em constância psicológica, já independente inenarrável incapacidade pra viver. É o que êle mesmo resu
da conciência, em toda a obra de M urilo Mendes. Fiz esta me aliás naquele dar de ombros com que termina a Toada
digressão pra mostrar quanto Manuel Bandeira perdeu de si do A m o r:
mesmo, pra dar a um tema useiro dos nossos poetas de agora
a sua cristalização mais perfeita. Será, talvez, a ironia da Mariquita, dá cá o pito,
sorte contra esse grande lírico tão intratavelmente individua No teu. pito está o infinito (pág. 2 4 ).
lista, isso dele ser tanto maior poeta quanto menos Manuel
B a n d e ir a ... A análise de Algum a Poesia dá bem a medida psicológica
Carlos Drum m ónd de Andrade, dum individualismo tam do poeta. Desejaria não conhecer intimamente Carlos Drum-
bém exacerbado, nos deu um livro que revela o indivíduo mond de Andrade pra melhor achar jpelo livro o tím ido que
excessivamente tímido. Já isso transparece pela rítmica dêle, êle é. P ra êle se acomodar, carecia que não tivesse nem a
inaferravel, disfarçadora. Daí uma riqueza de ritmos muito sensibilidade nem a inteligência que possue. Então dava um
grande, mas, psicologicamente, quase desnorteante, porém. É desses tímidos só tímidos, tão comuns na vida, vencidos sem
o mais rico em ritmos destes quatro poetas. A s suas subtilezas saber o que são, cu ja mediocridade absoluta acaba fazendo-os
atingem às vêzes a arte filigranada de Guilherme de Alm eida. felizes! Mas Carlos Drum m ónd de A ndrade, timidíssimo, é
Assim p or exemplo naquele caso curioso de F uga em que, alem ao mesmo tempo, inteligentíssimo e sensibilíssimo. Coisas
da prim eira quadra da pág. 94 parecer toda em versos de nove
que se contrariam com ferocidade. E dêsse combate tôda a
sílabas, embora contendo um de oito e outro de dez, a estrofe
poesia dele é feita. Poesia sem água corrente, sem desfiar e
seguinte, toda em octossílabos, termina com o decassílabo:
concatenar de idéias e estados de sensibilidade, apesar de toda
construída sob a gestão da inteligência.Poesia feita de explo
E todo mundo anda — como eu — de luto. sões sucessivas. Dentro de cada poema as estrofes,às vezes os
versos, são explosões isoladas. A sensibilidade, o golpe de inte
V erso habilíssimo, que apesar das suas dez sílabas e pos
ligência, as quedas de timidez se enterseccionam aos pinchos.
sível acentuação de decassílabo romântico, é bem ainda um
octossílabo, pois que o parêntese reflexivo “ como eu” funciona Reparem o final do Poem a das Sete F a c e s :
também como um, p or assim dizer, parêntese rítmico —- pre
servando a unidade métrica da quadra. M eu Deus, porque me abandonaste
Se sabias que eu não era Deus
Tem mesmo em Carlos Drum m ónd de Andrade um com
Se sabias que eu era fraco.
promisso claro entre o verso-livre e a metrificação. Os seus
versos curtos assumem, na infinita maioria, função de versos Mundo, mundo, vasto mundo,
medidos, contendo noções geralmente com pletas e acentuações Se eu me chamasse Raimundo
tradicionais. Mas não me parece que neste poeta a utilização Seria uma rima, não seria uma solução.
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Mundo, mundo, vasto mundo Bandeira também caiu, às vezes, nessa precariedade) são a úni
Mais vasto é meu coração. ca restrição de valor permanente que se possa fazer a A lgum a
Poesia. Culpa integral da inteligência. De inteligência inca
Eu não te devia dizer
Mas essa lua paz e fatigada ( “ vou-me embora pra P a s á r g a d a !... ” ). Não
Mas êsse conhaque e mais humour. Não é ainda a sátira. Não creio que esses poe
P õ e a gente comovido como o diabo. mas possam adiantar qualquer coisa ao poeta. E por eles será
aplaudido nas rodas dos semi-literarizados das academias e
Toda a timidez do poeta ressumbra do primeiro terceto. cafés. O que positivamente é uma desgraça.
Vem depois a explosão da sensibilidade na quintilha seguinte
Assim incapaz e fra gil diante da vida (V . o admirável
com uma fadiga provocando assonâncias, associações de ima
No meio do Cam inho), era natural que a poesia de Carlos
gens, e o verso sublime (mas intelectualmente tolo) “ seria uma
rima, não seria uma solução” . E o diabo da inteligência explode Drumm ond de A ndrade se alargasse em m aior detalhação in
na quadra fin a l: o poeta pretende disfarçar o estado de sensi dividual. De f a t o : a caracterização psicológica de A lgum a P o e
bilidade em que está, faz uma gracinha bancando a corajosa, sia não assume apenas verdades totais do indivíduo, como a
bem de tím ido mesmo, e observa com verdade (pura inteligên de Libertinagem senão que desce a particularizações interessan
cia, p ois), as reações do ser ante o m undo exterior. Essa poe tíssimas. Dois sequestros tem no livro, pelo menos dois, que
sia de arranco, que não se deverá con fu n dir com a superposi me parecem muito cu riosos: o sexual e o que chamarei “ da v i
ção de dados objetivos que de W hitm an nos veio, é sistemática da besta” . A o seqüestro da vida besta, Carlos Drum m ond de
em todo o livro. A ndrade conseguiu sublimar melhor. A o sexual n ã o ; não o
tranform ou liricam ente: preferiu rom per adestro contra a preo
Seria preferível, talvez, que Carlos Drum m ond de A n
cupação e lutas interiores, mentindo e se escondendo. O suave
drade não fôsse tão inteligente. . . A reação intelectual con
tra a timidez já está mais que observado: provoca amargor, cantor do R ei de Siãa, o anjo de Purificação, o humorista de
tantas ironias, o paciente de sua própria casa, do recesso fa
provoca humour, provoca o fazer graça sem franqueza, nem
miliar, da vida besta, virou grosseiro, um ostensivo debochado.
alegria, nem saúde. E m Carlos Drum m ond de A ndrade p ro
vocou tudo isso. A amargura não fez mal e fo i um valor a mais. O livro está rico de notações sensuais, ora sutis como a da pele
Nem o humour, pois que poesias como F uga, Toada de A m or, picada p or mosquitos, ou do dente de ouro' da bailarina, ora
Quadrilha, Família, são da melhor poesia de humour. E a to maleducados como o das tetas. Mas onde o seqüestro explo
do instante se topa com notações humorísticas excelentes, como de com abundância provante é no livro estar cheio de coxas e
o final do São João D ’E l R ei: especialmente de pernas (págs. 10, 36, 62, 141, 144, 136, 117,
113, 110).
E todo me envolve
A in da não encontrei referência, entre as civilizações anti
Uma sensação fina e grossa (pág. 42) ; gas e primárias, a êsse desvio do olhar masculino, universal
na Civilização Cristã, com que os homens julgam das quali
ou quase todas as estrofes de Fantasia, principalm ente as n o dades boas d u m a ... peça, olhando-lhe as pernas. A explica
tações sobre o Diabo que me lembraram Schelley. Mas onde ção do uso das saias me parece insuficiente. Deve haver nesse
a inteligência preju d icou o poeta e o deform ou enormemente, costume um acondicionam ento do ser sexual com as proibições
fo i em fazer ele aderir aos poemas curtos feitos prà gente dar dos Mandamentos, uma espécie de b lu ff: o cristão blefa a lei,
risada, o poema-cocteil, o “ poem a-piada” , na expressão feliz com uma inocência deliciosa. Carlos Drum m ond de A ndrade
de Sergio Milliet. O poema-piada é um dos maiores defeitos também fo i vítima desse desvio do olhar cristão, mas, porém,
a que levaram a poesia brasileira contemporânea. Antes de com uma deformação subconciente curiosa. Não creio que êle
mais nada, isso é fa c ílim o : há centenas de criadores de anedo seja na vida êsse grosseiro, que tantas pernas evocadas indi
tas p or aí tudo. A ch o mesmo que os poemas-piadas (M anuel cam. O que êle quis fo i violentar a delicadeza inata, maltratar
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pachá, bem mandarim. Aliás, é um católico de ação e neces m etrificado. Está claro que isso era necessário pra um poeta
sariamente havia de demonstrar exasperação monárquica. Mas de alma messiânica (sem intenção pejorativa nenhum a), cató
eu, que a um tempo lhe censurei certos cacoetes, já não os lico p or natureza e fé. Se a muitos parecerá que o poeta
censuro mais. Fazem parte essencial dessa torrente majestosa, fo i buscar nos ritmos ímpares do Romantismo (Tristão de
e apesar de majestosa sempre suave, da poesia dele. Largas A ta íd e ), na escolha de dicções românticas, de sintaxes ar reve
monotonias, coxas odalisquíssimas, danças rituais pesadas, zadas, de palavras velhas, um romantismo novo, a mim me
doces com muito açúcar, sêdas que são paredes de grossas. . . parece que todas essas normas usadas p or êle, proveem de
E sempre Deus. Um Deus desamavel, mas bem jesuítico, tendências mais lógicas. Na realidade, êle não fo i buscar nada
bonito, volumoso e duma violência sincera. P or tudo isso em ninguém , não, nem se fez sob o signo de Casimiro de A breu
A ugusto F rederico Schm idt é dentre os nossos poetas contem (3 ) , antes: as suas tendências o levaram a utilizações velhuscas
porâneos, o que melhor sabe cadenciar. Se observe este final (muitas são até parnasianas: o entroncamento, a evocação da
da admirável P r o fe c ia : Sublim e Porta, página 169), por aquela parte fatal e unani-
mizadora das religiões, em que eles se agarram ao passado com
S e não obedeceres à escolha do Senhor, será melhor
o inamovível da Lei e do Rito. Não me emparelho com isto aos
Que os animais ferozes dividam teu. corpo em pedaços. que consideram paralisadoras as religiões. Mas é inegável que
Que o mar te atire de encontro aos rudes rochedos Deus não requer nem progresso nem evolução. O inamovível
E desabem sôbre tua cabeça tôdas as desditas. da Lei e do Rito não é mais que a projeção mimética de Deus
Fortifica bem o teu espírito atormentado,
Tira da tua fraqueza o teu grande heroismo.
dentro da vida terrestre, um contraste danado. Essas renova
Abandona tôda a poesia do mundo que é inútil ções, esses fantasmas antigos, que adornam a poesia de A ugus
Pois a beleza distrai os homens e os diminue. to Frederico Schmidt, teem uma verdadeira função litúrgica
D eixa o teu corpo fechado para todas as volúpias. dentro dela.
Que a noite abandone teu corpo cansado,
Porque teu papel é maior que tu mesmo — e o precisas cum prir! A in d a aspecto essencial do poeta é o emprêgo das m ono
(pág. 34) tonias da obcessão ( Abram as Portas, Menina M orta), repetindo
idéias, palavras, frases com uma pachorra asiática. Poemas
Cadenciado assim, sutil na tendência p ro verso longamente há em que as estrofes tiram valor emotivo de serem variantes
voluptuoso em que a própria exhaustão do respiro dificulta a mínimas de uma idéia única. Augusto Frederico Schm idt
lepidez da idéia (sempre lenta no poeta) ; tão sutil a ponto de valoriza esse processo do Tema com variações, às vêzes, muito
ser lento até em muitos versos curtos, pela disposição sin tática: bem. Inda m ais: a condescendência na repetição de certos
assuntos com o o rom ântico, da morte, o religioso, da profecia,
Avistou a cidade distante, o modernista, da brasilidade ( Canto do Brasileiro, Novo Canto
Iluminada, ardia, como em ch a m a s... (pág. 15 ), do B rasileiro) — coisas que noutro podiam demonstrar insa-
Nós chamaremos isso magoadamente Poesia, pra enganar o B, como está se vendo, mais um que foi-se embora pra
Burro humano, respeitabilíssimo e desinfeliz. B que ninguém Pasárgada. . . E este definitivamente, em toda a sua maneira
perceba a nossa mágoa. Ninguém perceba dentro de ninguém mais natural de poetar.
os estragos que faça o sacrifício. Seria d ifícil neste resumo, já tão enorme, dar uma idéia
E agora ressalto o valor dos Poemas, de Murilo Mendes. pormenorizada da contribuição que M urilo Mendes traz para
a nossa poesia, vou parar. O que me entusiasma sobretudo
Historicamente é o mais importante dos livros do ano. Murilo
nele, alem dessa essencialização poética a que escapa só o satí
Mendes não é um surréaliste no sentido de escola, porem me
rico da primeira parte do livro (Jogador de D iabolô), é a
parece d ifícil da gente imaginar um aproveitamento mais se
integração da vulgaridade da vida na maior exasperação so
dutor e convincente da lição sobrerrealista. Negação da inte nhadora ou alucinada.
ligência superintendente, negação da inteligência seccionada
em faculdades diversas, anulação de perspectivas psíquicas,
Das cinco regiões onde navios angulosos
intercâmbio de todos os planos, que não exem plifico porque são Sangram nos portos da loucura
todo o livro. O abstrato e o concreto se misturam constante Vieram meninas morenas,
mente, form ando imagens ob jetivas: Pancadões, com seios empinados gritando Mamãe eu quero um
noivo! (pág. 45)
Arcanjos violentos surgem do fundo dos minutos (pág. 51) Os anjos maus. . .
São fortes e grandes, não é sopa não,
Têem dentes de pérolas, lábios de coral
Os cemitérios do ar esquentam Os aviadores partem prà combatê-los e morrem.
Com o fogo saido do sonho da vizinha (pág. 45.) A s viúvas dos aviadores não recebem montepio (pág. 34 ).
O manequim vermelho do espaço
Os homens largam a ação na paisagem elementar (pág. 81) ( )
Estou aqui, nú, paralelo à tua vontade (pág. 52), De tanto as costureiras do ateliê de dona Marotas
Se esfregarem nêle de-tarde
Já quer sair das camadas primitivas
etc. numa complexidade de valores, de belezas, de defeitos, de Daqui a mil anos será uma grande dançarina
irregularidades, tanto mais curiosos e eficazes que aparecem Dançará sôbre o meu túmulo diante do cartaz dos astros
Quando eu mesmo dançar minha vida realizada
dotados duma igualdade insolúvel: as belezas valem tanto como
No terraço dos astros (pág. 6 2 ).
os defeitos, as irregularidades tanto como os valores, numa
inflexível desapropriação da Arte em favor da integralidade
É inconcebível a leveza, a elasticidade, a naturalidade com
do ser humano. que o poeta passa do plano do corriqueiro pro da alucinação
e os confunde. Essa naturalidade, essa coragem ignorante de
M urilo Mendes diz que é si, no Brasil, só seria mesmo admissível no gavroche carioca.
E de fato, M urilo Mendes, embora mineiro de nascença, é dono
A luta entre um homem acabado de todas as carioquices. E aqui lembro a contribuição nacio
E um outro homem que está andando no ar (pág. 48) nal admirável dele. Impenetrável, visceral, inconfundível, há
brasileirismo tão constante no livro dele, como em nenhum
pra completar a verdade noutro poema, avisando que outro poeta do Brasil. Realmente este é o único livro brasi
leiro da poesia contemporânea que sinto impossível a um
. ..n ã o é culpado nem inocente. estrangeiro inventar. Todos os outros, com maior ou menor
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ASPECTOS DA LITERATURA BRASILEIRA 45