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- d)
Itinerário do filme brasileiro
100 anos atrás...
Os primeiros filmes brasileiros, quer
tenham sido rodados por Vittorio di
Maio. lose Roberto Cunha Sales ou
Alfonso Segreto, parecem ter se
interessado por temas relativamente
banais: um lugar qualquer da
cidade, um evento natural
corriqueiro, alguma atividade
simples. Isto é o que sugerem títulos M
como Largo do Machado, Filmagem r ••
de um Mole no Fundo da Baia
de Guanabara e Bailado de
Crianças no Colégio, noAnclarai.
0 deslumbramento frente ao
cotidiano foi comum nos primórdios
do cinema, assim como o
enquadramento fixo (a câmara
ficava parada frente ao assunto
filmado) e a pequena duração dos
filmetes, cerca de um minuto de
projeção
Não se tem certeza definitiva sobre
m V.
quem teria feito o primeiro filme
brasileiro. Alguns autores, baseados
em dois anúncios de jornal e em
certas deduções lógicas, propõem
o exibidor ambulante italiano
Vittorio di Maio. No dia 6 de maio
de 1897. ele teria exibido no
Casino Fluminense, localizado em
Petrópolis. no Estado do Rio de
Janeiro, um conjunto de quatro títulos
nacionais: O Bailado, referido acima,
Chegada do Trem em Petrópolis, Ponto
Terminal da Unha de Bondsde Botafogo,
Vendo-se os Passageiros Subir e Descer e
Uma Artista Trabalhando no Trapézio do
Polyrheama Embora sustentasse até o
fim da vida ter sido o primeiro a filmar
no Brasil, Maio jamais reexibiu os filmes
da polémica sessão, nem explicou seu destino.
A existência de alguns fotogramas. atualmente depositados no
Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro, comtxevidência de uma
invenção que se propunha a captar e a registrar a realidade em
movimento, serviu debase à proposição do pernambucano José
Roberto Cunha Sales como nosso primeiro cineasta. O pedido
de patenie de invenção do advogado, médico prático, poeta.
dramaturgo e bicheiro, entre outros atributos, foi protocolado
em novembro de 1897. As provas apresentadas foram trechos da
Filmagem de um Mole. indicada acima. Dada a indole
reconhecidamente trambiqueira de Cunha Sates, que poderia
muito bem ter se utilizado de um filme estrangeiro (algo que
Maio também pode ter feito), e ao desconhecimento dequaiquer
exibição do filmete, permanecem dúvidas quanto à
autenticidade da fita.
A longa e comprovada carreira do cinegrafista cineasta italiano
Alfonso Segreto sempre sustentou a descoberta de sua primeira
filmagem como legítima. Por muito tempo, inclusive, se
considerou o dia 19 de junho de 1 898 como "data oficial de
nascimento" do cinema brasileiro. As imagens primordiais.
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conforme relatadas por uma
matéria jornalística do dia seguinte.
referiam se ao fato de. á bordo do
paquete Brêsil. voltando de Parts,
Alfonso ter filmado os navios de
guerra e as fortalezas dispostos ao
longo da Baía de Guanabara. O único
reparo feito pelos estudiosos dizia
-! respeito à ausência de exibição do
ftlmete. Mas não houve público para
o filme, que foi destruído em um
incêndio, em agosto do mesmo ano
De acordo com relato de um
sobrinho de Alfonso, revelado
recentemente, o filmete primordial
teria velado. Ou seja. na prática.
nunca chegou a existir de fato. O ato
de posicionar a câmara e girar a
manivela se realizou mas a imagem
jamais se formou. Alfonso
demonstraria mais perícia daí por
b diante. Dez dias mais tarde faria O
■
V* - 1
V/ Préstito do Marechal Floriano para o
Cemitério, e a 5 de julho. A Chegada
do Dr. Prudente de Morais e Sua
Comitiva ao Arsenal de Marinha
Prosseguiria alternando esses
registros mais afeitos ao universo da
política e do poder, com outros mais
singelos como "trechos de ruas.
R praças, etc.”, à semelhança de Largo
do Machado. A maior parte desses
filmetes seria exibida pela primeira
vez em público no dia 1 de dezembro
de 1898. no Salão de Novidade Paris
em Campos, localizado na cidade do
mesmo nome. no Estado do Rio de
janeiro. A partir desta data, com certeza.
os filmes brasileiros passaram a !
encontrar regularmenie o público
brasileiro
/ V- •
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Até 1903, à exceção de Alfonso, não se
tem notícia de nenhum out to
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cinegrafista atuando no Brasil. Embora sua produtividade tenha
chegado à casa das dezenas de títulos nos dois primeiros anos
de filmagens, por volta de 190! diminuiu drasticamente.
tornando os registros circunstanciais e bastante espaçados.
Isto certamente ocorreu devido á mudança de interesses de seu
irmão Paschoal. controlador efetivo de todos os negócios da
família e responsável direto pelas atividades cinematográficas
I
de Alfonso. Fora Paschoal quem fundara, em 1897, junianiente
com Cunha Sales, a primeira sala de exibição fixa do país. o
Salão de Novidades Paris no Rio. localizado na então Capital
Federal. Fora também o responsável pelo envio de Alfonso à
Paris para aprender o ofício de cinegrafista. devendo
muito provavelmente também definir os temas das filmagens.
especialmente as de caráter político, e a programação do que
passava no circuito da Empreza Paschoal Segreto.
Fsia figura singular, que nos dias atuais seria muno
naturalmeme vista como a de um poderoso produtor de cinema,
tinha, porém, um apreço muito maior pelo teatro.
encaminhando paulatinamente suas atividades para esta área
Po de* se perceber na sua biografia traços em comum com a i
trajetória dos que o sucederiam no campo cinematográfico:
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u ; cr r,OF.rt. A TTÿAS UT <ÿ

em particular os mais bem sucedidos, como Giacomo Rosário
Staffa, Giuseppe Labanca ou Francisco Serrador. Todos haviam
conseguido suas fortunas pessoais com a exploração de jogos de
azar como a tômbola, o bicho ou os bilhetes de loteria. Da mesma
forma, estes e muitos outros exibidores Brasil afora, sempre em
busca da fortuna crescente, logo iriam descobrir que a realização
de filmes brasileiros poderia ser um complemento altamente
rentável; pelo menos enquanto não surgissem opções mais
lucrativas.
Entre a ópera e a tragédia
O que parece ter deslanchado este segundo momento da
produção cinematográfica brasileira foi a regularização do
comércio internacional de filmes, por volta de 1905-6. Como
consequência natural, estabeleceu-se um circuito fixo de salas
de exibição nas principais cidades do país a partir de 1907.
Por um lado, a pequena duração das sessões (30 a 60 minutos) e
a curta permanência dos filmes em cartaz (2 ou 3 dias, no
máximo), aliadas à necessidade de compra dos u'tulos no exterior,
devem ter provocado inúmeras brechas de programação.
De outro, a possibilidade de ganhar mais investindo na produção
do que comprando lá fora, possivelmente estimulou os donos
de inúmeros cinemas a desenvolverem filmagens locais. Por fim,
o atrativo de retratar visualmente motivos familiares,
satisfazendo a curiosidade natural da freguesia, provavelmente
forneceu o impulso decisivo.
Até então as pioneiras câmaras de madeira à manivela só haviam
rodado na capital federal e na cidade de São Paulo,
principalmente pelas mãos de Alfonso Segreto, e no Paraná e no
Rio Grande do Sul, pelas mãos de Giuseppe Fellipi. A súbita
multiplicação de salas a partir de 1907 não só acentuou a
produção desses estados cornrrcspat ITCTU U r írmrrra pelas mais -
diferentes regiões do país, incluindo o Norte e o Nordeste.
A maior parte das figuras de destaque do período foi dona de
uma sala de exibição ou trabalhou para uma. Sem mencionar
cariocas e paulistanos, é o caso de Eduardo Hirtz, no Rio Grande
do Sul, de Aníbal Requiâo, no Paraná, de Diomedes Gramacho,
na Bahia, de Ramón de Banos, no Pará, e de um anónimo
cinegrafista, no Amazonas. Os assuntos filmados íam desde
curiosidades - Chegada do Primeiro Automóvel a Curitiba, de
Requiâo - à exploração de costumes regionais - tema de
Ranchinho do Sertão, de Hirtz, primeiro filme de ficção gaúcho.
Enquanto nesses centros mais afastados produzia-se quase que
exclusivamente filmes de caráter documenta), no Rio de Janeiro
e em São Paulo havia ligeiro predomínio dos filmes de ficção.
As duas maiores cidades do país também foram responsáveis
pelo aparecimento dos cinejornais (aBijou-jornal, feito por
Serrador), dos filmes de animação (Raul Pederneiras recriou em
película seus famosos calungas jornalísticos) e dos filmes
publicitários (incluindo aí a propaganda política, já que o futuro
Presidente da República Hermes da Fonseca combinou
previamente como “compadre" Paschoal Segreto a inserção
sistemática da sua figura nas reportagens filmadas).
A diversidade e a modernidade das metrópoles encantava o
público, que apreciava tanto a operação das irmãs xifópagas,
realizada pelo Dr. Chapot-Prèvost, quanto a versão em
pantomima do Guarani, de José de Alencar, realizada pelo ator
Benjamin de Oliveira, ambas filmadas por Antônio Leal.
O que seduziu para valer o público, no entanto, foram por assim
dizer dois "gêneros": o filme criminal e o filme cantante.
.As rápidas transformações de caráter urbano, social, tecnológico
e cultural porque passava o Rio de Janeiro e. em menor escala.
75
de massas, com a consequente reprodução simbólica de sua
violência. Antecipando o jornalismo moderno, calcado no fait-
divers (ou seja, o acontecimento cotidiano, social ou policial),
.
introduzido no país em 191 1 com o jornal A Noite, de Irineu
Marinho, o cinema brasileiro descobriria e realçaria o crime
como tema de grande impacto e sugestivo retomo de bilheteria.
Do simples acompanhamento documenta) de um crime público,
logo se passaria a sua encenação ficcional e mesmo à pura
invenção de estórias sobre o assunto.
A sensibilidade da Empreza Paschoal Segreto trouxe à tona em
1906 Rocca, Carletto e Pegatto na Casa de Detenção. À
curiosidade natural em tomo de um crime de grande comoção
popular somou-se inesperadamente um persistente interesse
do público pela fita, contrariando a expectativa média de uns
poucos dias de exibição para qualquer filme, brasileiro ou não.
O teste definitivo viria pela reencenação ficcional desse mesaw
fato, produzida pela Phoio-Cinematographia Brasileira.
propriedade de Labanca e Leal. Os Estrangulado res ío. .ançacc
dois anos mais tarde, com a duração bagantpjpmmi— decena
de 50 minutos, e um sucesso acachapante 6bG aprestr.-.açâes
somente nos dois primeiros meses de ex;ò:ção Segv. :2— -se
obviamente inúmeros outros filmes baseados em crimes.
famosos ou não, reais ou não: dois OCrime da 'ÿ l ss dois .4 V.sla
Sinistra (a de Júlio Ferrez terminava em uma apotecse
colorida"), O Crime dos Cravinhos. O Crime dos Banhados.
Noivado de Sangue, A Tragédia da Bua dos Andradas. Um Drama
naTijuca...
O filme cantante não era exatamente uma novidade por volta de
1 908. Desde os primórdios havia acompanhamento sonoro, via
fonógrafo. dosiUmetes. Em 1.9Qáÿporém. um.esnetáculo mais
personalizado se impôs. Os maiores cantores de ópera da época
não só deixavam-se filmar, como tinham gravada sua
performance musical de forma sincronizada. O efeito realista
desta sobreposição de som e imagem causou furor junto ao
público brasileiro, que passou a encher os maiores teatros do
país para apreciar as árias cinematográficas. A importação
regular desse gênero de fitas, sobreveio o similar nacional sob
duas formas. Inicialmente, devido à precariedade técnica do
fonógrafo, cuja emissão sonora era pequena e sujeita a inúmeros
ruídos e falhas, teve-se a brilhante idéia de deslocar cantores
de verdade para o fundo da tela de projeção e fazê-los
acompanhar ao vivo os filmes operísticos estrangeiros. Daí para
a produção local desse mesmo tipo de filme, não demorou muito.
Houve muitos produtores de cantantes, como o gênero em sua
versão nacional ficou conhecido, mas dois se destacaram:
Cristovão Guilherme Auler e Alberto Moreira, co-proprieiários
do Cine-Teatro Rio Branco. Responsáveis pelas duas iniciativas
citadas acima e por muitas outras mais neste campo, Auler e
Moreira resolveram não só um problema "técnico", como foram
de encontro à adoração do público pelos gêneros teatrais
musicados, em especial a opereta e a revista. O sucesso dos seus
cantantes apoiava-se na ousadia artística que imprimiam aos
filmes. Inicialmente, restringiram as produções ao repertório
clássico internacional, mas já af introduziram um elemento
distintivo e definitivo. Barcarola, o primeiro cantante da dupla,
filmado em 1908, apresentava os cantores muito mais "próximos"
da platéia do que era comum então. Tinham sido filmados em
plano médio (a imagem cortava suas pernas), uma dificuldade
técnica na época, em vez do tradicional plano geral (onde
apareciam por inteiro), facilitando assim a verificação do
sincronismo labial e a apreciação da "interpretação" do cantor.
Sua consagração viria com a chamadas escolas de cinema, quase
passagem à revista nacional. Como sempre uma fachada para conseguir
que coroando todo um contexto dinheiro e mão-de-obra. passando
cultural, a chamada belle époque pela exploração de "nús artísticos
carioca, contrataram o escritor e chegando a apelos de fundo
i nacionalista para se sustentar. Neste
losé do Patrocínio Filho para
conceber um film revista sem igual. caso, se num primeiro momento as
T-.
Paz e Amor assume a picardia da soluções se apresentaram de forma
cidade e troça com tipos populares,
figuras públicas, acontecimentos
recentes, apresentando um leque
- simples e direta, pela apropriação
de clássicos literários brasileiros e
pela exploração do contexto da
quase completo do que havia de mais Primeira Guerra Mundial, na
irreverente e supreendente no Rio década de 20 foi preciso administrar
de laneiro de então. Partiram uma complexidade crescente, fruto
inclusive para a suprema ousadia da contradição entre a admiração
de adicionar diálogos ao já pelo cinema estrangeiro (sua
tradicional canto, além de técnica, excelência narrativa.
utilizarem grande orquestra, coro. "modernidade"! e a necessidade
bailados e um elenco de primeira, intuitiva de mesclar traços da
com destaque para a atriz lsmênia realidade brasileira Além disso, o
Mateus. A resposta do público período conheceria experiências
foi espetacular, transformando bastante singulares, em campos tão
Paz e Amor no maior sucesso de distintos como o documentário, o
seu tempo. Somente erotismo e a vanguarda.
no Rio de Janeiro, o e em lugares tão
filme ficou em cartaz diversos quanto Pelotas
continuamente por e Recife, onde
quase dois anos. ocorreram alguns dos
\'o Cine -Teatro Rio chamados ciclos
-r
Branco ultrapassou a regionais.
mil exibições sucessivas
durante o ano de 1910. listas transformações
obrigando à formação estavam associadas ã
de diferentes elencos, algumas outras que
que se revezavam vinham se processando
por trás da tela, f * na natureza do filme
Após quase duas
proporcionando a
trilha sonora do filme.
W décadas de supremacia
do registro direto
Esse período, que se ír1 icenas do cotidiano.
estendeu até 1912. reportagens, cinejornais.
apresenta números documentários!, a
surpreendentes e uma coesão raras vezes vista na história do ficção se impunha como a forma mais apreciada pelo publico
cinema brasileiro. Contudo, em que pese os mais de 500 títulos Com ela veio o crescimento na duração dos filmes, que passaram
rodados, os inúmeros sucessos e a formação dos primeiros a ter entre 60 e 90 minutos em média, e toda uma codificação
quadros técnicos do país. não só o filme brasileiro não dominava visual e depois sonora, estabelecendo como que uma linguagem
o mercado, como carecia de um sustentáculo financeiro mais cinematográfica. Saía-se de uma narrativa mais estanque, com
direto e de um projeto consciente a favor da existência de uma a ação esgotando-se dentro dos planos para fórmulas mais
expressão cinematográfica permanente, a despeito de sofisticadas, onde o exercício da continuidade visual e dramática
dificuldades de produção e de circunstâncias históricas é tido como indício de modernidade. Por essa época, fixaram-se
adversas. Por isso. quando a comercialização de filmes muda da igualmente determinadas características do espetáculo
venda direta para o aluguel e depois para a percentagem de conhecido como "cinema mudo": o deslocamento levemente
bilheteria, fruto da mundializaçáo da distribuição acelerado da imagem, os diálogos e textos em intertítulos.
cinematográfica e da disputa pelos países desenvolvidos de música ao vivo acompanhando a ação e colorização das diversas
mercados regionais como o Brasil, desaparece a margem de sequências de acordo com uma codificação prévia
lucro que proporcionava o financiamento da produção. Sem A predominância da ficção teve efeitos diversos sobre o registro
dinheiro extra para investir nas filmagens locais e sem um
direto Se. por um lado. o circunscrev eu definitivamente como
compromisso maior além da rentabilidade de um negócio, os produto de mercado ao formato do cinejornal. meio que garantiu
exibidores produtores retiram-se do meio e a realização de
a sobrevivência de inúmeros profissionais décadas a fio por
filmes no Brasil diminui extraordinariamente. ouiro. de certa forma, o libertou de compromissos mais
imediatos, abrindo caminho para o desenvolv imento tie uma
Adaptações identidade e uma linguagem próprias. Não por acuso, o
documentário brasileiro, considerado agora como um gênero
(Tentes dos obstáculos quase intransponíveis que haviam se artístico, encontra em dois nomes da década de 10 suit origem
formado no rastro da queda de produção, os novos realizadores mifts consistente. Tanto l.tiizThomaz Reis quanto Silvino Santos
acabariam lançando mão de diferentes estratégias, indo das construíram uma obra sem igual no pais e mesmo no exterior
Reis era cinegrafista da famosa Comissão de Li:'.has Telegráficas
chefiada pelo Marechal Rondon. Santos trabalhou para .ar ;s
empresários da região amazónica e dedicou pare de s_* : r-= a
este universo. O uso da câmara como rigoroso instrurr. er:o
descritivo e analítico marcou o primeiro, autor de fi - e : : -
Rituais Bororo, de 1918. A exuberância fotegra ;s e ;
perspicácia etnográfica foram características co seg-- d;.
responsável por dezenas de títulos, entre eies Yo Pa.z dnr
Amazonas, de 1922.
As imagens produzidas por estes dois cineastas contrastavam
radicalmente com o trabalho corriqueiramente deser ve ■■.'do
no país. Nos Sertões do Avanhandava, por exemplo, ocra ce .924
composta pelo já veterano Alberto Botelho a partir do se„arc ,r
_.
de filmes, investia no exotismo da fauna e da flora bras.;e:ras.
exibindo ainda o "crónico" atraso do interior brasileiro. .Aliás c
universo rural foi o tema recorrente de quase todos os
documentários longos da época, assim como a ..são
estereotipada que lhe é característica. As grandes exceções
ficaram por conta de Terra Encantada, incursão de Silvino Santos
pela então capital do país, durante a Exposição Comemorativa
do Centenário da Independência, e de São Paulo, A Sinfonia da
Metrópole, exaltação à locomotiva da nação dirigida por
Adalberto Kemeny e Rodolfo
Lustig em 1929. De novo
havia a opção por duas
grandes concentrações
urbanas, e principalmente
uma tentativa de expor a
natureza e a complexidade
destas cidades, tomando-as
como exemplos civilizatórios.
O filme de Kemeny e Lustig
se distinguiu ainda por
utilizar recursos visuais que
lhe conferiam um certo ar
de vanguarda.
;
\ assim dizer patrióticos, ora
0 género mais assíduo I--’
no período, porém, foi
o melodrama. Talvez
fruto da ascensão das
cinematografias dinamarquesa, italiana e O Cavaleiro Negro
americana, que consagraram o folhetim
cinematográfico, talvez reflexo da origem Direção de Luiz de Barros
europeia - em especial italiana - e teatral da
maior pane dos recém envolvidos com a produção Arquivo Pedro Lima
cinematográfica, a virada dos cineastas nesta
direção se configurou durante a Primeira Guerra Mundial. A
maioria utilizou originais literários. Pelo menos uma dezena de
títulos dos mais populares do Romantismo brasileiro foram
levados à tela (só O Guarani, de losé de Alencar, sofreu três
adaptações no espaço de dez anos). Entre os principais
responsáveis pela voga estavam dois nomes que marcariam para
sempre esses primeiros tempos. O primeiro era o carioca Luiz
de Banos, cuja longeva carreira começou em 1914 e só foi
encerrar- se em 1977. 0 segundo era o italiano Vittorio Capellaro,
que estabeleceu-se em definitivo no país em 1915, iniciando
uma trajetória marcada pela fidelidade ao universo da
literatura brasileira.
Tendo estudado cenografia na Europa e frequentado os estúdios
Gaumont. em Paris, Luiz de Barros representou uma mudança
de métodos técnicos e artísticos no novo panorama de produção
do país. Sua produtora, a Guanabara Filmes, foi a mais ousada e
prolífica do momento, alcançando a marca de 1 0 produções em
9 anos de atividade. Desempenho tão marcante transformou-o
r.o prcr.ss cr.ai mais respeitado do pais. Embora lenha
exercitado em vários gêneros, enire eles a comédia, coni)
A Capital Federal, de 1922. e a aventura, com Hei de Veneer.', de
1923, estrelado por ninguém menos do que a aviadora Anésia
Pinheiro Machado, foi com o melodrama que alcançou seus
maiores sucessos. Fez incursões em José de Alencar, de quem
filmou A Viuvinha. Iracema e Ubirajara. Obteve pleno êxito com
Perdida, adaptação da peça homónima de Oscar Lopes, estrelada
pelo maior ator de teatro da época, Leopoldo Fróes.
Cápellaro tinha origem teatral e fora integrante de várias
companhias italianas que excursionaram pela Europa e América
Latina em anos recentes. Ao constatar o reduzido número de
filmes feitos no Brasil, decidiu ingressar na produção, amparado
em sua experiência com cinema na Itália. Ao contrário do que se
poderia supor, deu preferência a temas genuinamente
nacionais, escolhendo para tanto clássicos da literatura, por
considerá-los representativos da cultura de um povo. Realizou
a primeira versão de Inocência, deTaunay, em 1915, abordando
em seguida os romances Iracema (duas vezes), O Mulato, 0
Garimpeiro e O Guarani (duas vezes). Obteve com a refilmagem
deste último, em 1926, um dos maiores êxitos de bilheteria do
período mudo brasileiro, atingindo cifras da ordem de
quatrocentos contos de réis
(um sucesso de bilheteria
girava em torno de cem
contos de réis). Tentou
ampliar sua atividade
fundando um laboratório e
construindo um estúdio,
sem conseguir, no entanto,
uma continuidade maior
em seu trabalho.
/77
Em sua forma mais vísivel,
o nacionalismo sustentou
um conjunto de filmes por
abordando diretamente o
contexto da guerra e seus
reflexos no país, ora
resgatando episódios
históricos marcantes. 0 conflito em si aparecia
diretamente em Le Film du Diahle (o título original
era em francês), que tratava da ação da
1922 espionagem alemã em território brasileiro. O
diabo, evidentemente, defendia os interesses
germânicos e tinha que se confrontar com a
pureza virginal da heroína, interpretada pela enigmática
Miss Ray. O filme, de 1915, apresentava o primeiro nú feminino
conhecido do cinema brasileiro. Como. definitivamente, os
alemães não eram bem vistos por aqui, o caricaturista Seth
satirizou-os ainda no desenho animado O Kaiser. Embora a Itália
também estivesse envolvida na guerra, os cineastas italianos
radicados no Brasil preferiram exaltar os grandes feitos
históricos locais - em filmes como O Grito do Ipiranga e Os Heróis
Brasileiros na Guerra do Paraguai - e a campanha para o
alistamento militar obrigatório, liderada pelo poeta Olavo Bilac.
que inclusive prestou seu concurso para a realização de
Pátria Brasileira, dirigido por Guelfo Andalò em 1917.
Todo esse esforço esbarrava, entretanto, na resistência cada vez
maior do circuito comercial em exibir os filmes brasileiros. Para
manter a produção nas duas maiores cidades do país, os
cineastas começaram a utilizar inúmeros artifícios. O mais
conhecido deles era a cavação, ou seja. a busca de encomendas
filmadas junto ao poder público, ao empresariado ou a algum
r rico diletante. Houve também a febre das "escolas de cinema".
atacadas pela imprensa especializada em função da abertura
de inquéritos relativos a fraudes, estelionato e aliciamento de
jovens candidatas a estrelas. Mesmo assim, algumas dessa
escolas, como a Azzurri de Arturo Carrari, se firmaram por um
d:
certo tempo e deram retaguarda à realização de inúmeras
V produções. O passo mais ousado, porém, foi dado na direção do
erotismo mais explícito. Sob a capa protetora da Ciência e
alardeando altos objetivos morais e educativos, surgiram alguns
filmes que a pretexto de alertar a juventude contra o perigo das
drogas e da falta de exercícios, mostravam reflexos do “mau
comportamento" nos jovens corpos femininos.
O primeiro a explorar a senda foi Vício e Beleza, escrito pelo poeta
Menotti Del Picchia e realizado por Antônio Tibiriça em 1926.
Verdadeiro estouro de bilheteria, alcançando sucesso inclusive
na Argentina e no Uruguai, atraiu também a atenção da polícia,
que proibiu em seguida a primeira incursão de Luiz de Barros
no gênero. Depravação. Isto não impediu, porém, que outros
títulos se seguissem, como Morfina,Veneno Branco, Mocidade
Inconsciente e até mesmo uma incursão pela perversão da
antiguidade com Messalina, igualmente escrita por Del Picchia
e dirigida por Barros em 1930. Em que pese o evidente
oportunismo, este conjunto de filmes talvez tenha sido o
primeiro passo consciente nesta conjuntura em direção a um
cinema propriamente popular, objetivo que entraria
definitivamente na ordem do dia com o cinema sonoro! Durante
o mesmo período, porém, aconteceria paralelamente e longe dos
grandes centros um outro surto de atividade produtiva - na
verdade, vários deles -, que por características específicas
constitui um caso a parte na História do Cinema Brasileiro.
Os ciclos regionais
Embora a maioria dos ciclos tenha se estruturado no começo da
década de 20, de forma isolada e independente, muitos deles
acabariam se integrando a um processo encabeçado pelas
revistas de cinema do período, em especial Para Todos..., Selecta
e Cinearte. Estas publicações, secundadas por várias outros
semanários e jornais espalhados pelo país, desenvolveram um
arcabouço ideológico a favor da criação de uma indústria
cinematográfica no Brasil. A partir da análise dos filmes
realizados ou da simples reivindicação de melhores condições
técnicas, financeiras e artísticas, discutiam-se os rumos do setor,
estabelecendo pela primeira vez um consenso mats ou menos
generalizado quanto à necessidade de um cinema brasileiro,
isto é, um cinema de expressão nacional. As proposições foram
muitas e enormes as divergências quanto aos meios de
implantação e aos modelos a serem adotados. Mesmo assim,
descobriram-se muitos talentos, criou-se um receituário
estético mínimo e os filmes melhoraram sensivelmente no
decorrer da década.
Aconteceram cerca de dez ciclos regionais espalhados pelo país.
Câmaras à manivela pouco mais sofisticadas do que as do inicio
do século giraram em Pelotas, Porto Alegre e Curitiba, no Sul.
em Campinas, no interior paulista, em Barbacena, Ouro Fino,
Pouso Alegre, Guaranésia, Cataguases e Belo Horizonte, todas
cidades mineiras, e na capital pernambucana, Recife. Vista em
conjunto, esta produção revelava quasesempre uma predileção
dos cineastas pelo filme de aventuras americano, em especial o
western (o bangue-bangue ou faroeste). Títulos como Entre as
Montan has de Minas, Senhorita Agora Mesmo, Sofrer Para Gozar,
Em Defesa da Irmã e Tesouro Perdido refletiam tanto o encanto
pelo cinema das matinées como a aceitação da hegemonia do
cinema americano no mercado brasileiro, procurando carrear
j
um pouco deste sucesso para as tentativas locais. Um tanto
anacronicamente, o outro gênero mais apreciado pelos
cineastas dos ciclos foi o melodrama de tinturas trágicas,
reproduzido em dramalhões como Tormenta ou O Pecado da
Vaidade, com os protagonistas raramente chegando vivos à última
cena.
Embora o ingénuo encantamento - de um Humberto Mauro, por
exemplo - convivesse com atitudes mais pragmáticas - Eduardo
Abelim percorria o interior gaúcho promovendo a exibição de
seus filmes com espetáculos de malabarismo -, e mesmo alguma
picaretagem - o americano Eugenio Centenaro Kerrigan
apresentava-se como um afamado conde italiano especialista
em cinema, tendo conseguido realizar cinco filmes em três
cidades diferentes no espaço de seis anos -, a diversidade e a
riqueza dos ciclos não se esgota neste padrão mais corriqueiro.
Houve exceções e mesmo evoluções em algumas cidades.
O talento como diretor demonstrado por Francisco de Almeida
Fleming. A singularidade da experiência recifense. cujos filmes
têm em geral um tom menos carregado e mais feliz, além de
explorarem grandemente a cultura local. A surpreendente
tentativa industrializante de Campinas, que montou o mais bem
aparelhado estúdio da época. E a complexa e emblemática
epópeia cataguasense, onde o fazer cinematográfico se pôs a
serviço de um projeto estético e ideológico de grandes
consequências para a História do Cinema Brasileiro.
Uma das primeiras descobertas das revistas foi a figura de
Fleming. A despeito de suas habilidades como inventor, o
interesse da crítica recaiu sobre suas qualidades como diretor.
Para um jovem cinegrafista com pouco mais de uma dúzia de
curtas e um longa inacabado, a apresentação de Paulo e Virginia,
rodadtídwanrtÿano de 1923 em Pouso Alegre, teve sensível
acolhida, chegando a ser exibido com sucesso inclusive no Rio
de Janeiro. Fleming, que não gostara do resultado artístico
alcançado, deve ter se surpreendido com os elogios à
manipulação segura dos atores, à escolha de enquadramentos e
à maneira fluída com que contou uma estória passada na França.
em meados do século XV1I1. Com o filme seguinte, O Vale dos
Martírios, de 1924, torna-se na opinião da crítica o melhor
diretor de cinema em atividade no país. E não era para menos,
já que a estória girava em torno de um casal de irmãos (o rapaz
adotivo) que se apaixonava ao chegar à idade adulta. Tanto o
tema quanto a opção por um enredo em grande parte psicológico
requeriam um domínio de linguagem acima do normal para
escapar das armadilhas melodramáticas.
Este interesse por temas ou histórias polêmicas também se
reproduziu em Campinas, onde houve uma adaptação do
romance A Carne, de Júlio Ribeiro, considerado imoral à época.
No entanto, o ciclo se distinguiu menos por isso do que pelo
entusiasmo com que alguns de seus membros se lançaram a
tarefa de fazer cinema, procurando cercar-se de melhores
condições de trabalho. Isto aconteceu devido ao sucesso, não
mais reeditado, do primeiro filme campineiro, João da Mata,
dirigido por Amilar Alves em 1923. A partir daí houve como que
uma corrida na cidade, sonhando-se com inúmeros estúdios.
estrelas americanas e dezenas de filmes. Na prática, Felipe Ricci
e Thomaz de Tullio, o roteirista e o fotógrafo de Alves,
conseguiram montar a APA Filmes, onde utilizaram novos
métodos de filmagem. Usavam, por exemplo, duas câmaras para
rodar simultaneamente a mesma cena. Além disso, foram
responsáveis pela compra de moderno e diversificado conjunto
de refletores e pela constituição do primeiro palco para
fiknagem sob luz artificial do pais, utilizado em Mocidade Louca.
último filme do ciclo, rodado por Ricci em 1927.

Sobre o Ciclo de Recife pode ser dito
que contemporaneamente foi o mais
duradouro, produtivo e bem
1925 / 1932
sucedido em termos de exibição.
Durante uma década sucessivos
grupos de jovens conseguiram
Entusiasmo
realizar dez longas metragens e
vários curtas documentários e de
ficção, sempre exibidos no mesmo
cinema, cujo dono apoiava as
iniciativas locais. Os filmes não
escaparam do universo dos tesouros
perdidos, tiroteios e tragédias
familiares, mas adicionaram vários
elementos da cultura nordestina às
tramas. Não se trata ainda da
reprodução direta e respeitosa
dos costumes locais, conseguida
pelo paraibano Valfrido Silva em
Sob Um Céu Nordestino, rodado entre
1924 e 1928, e muito menos do
impressionante registro do bando
de Lampião, feito por Benjamin
Abràao já na década de 30. Mesmo
assim, aqui e ali despontam
jangadeiros- emAitaréda
Praia -, cangaceiros - em
Filho sem Mãe beatas -
em História de uma Alma
e até o cotidiano urbano do
Recife, retratado em
A Filha do Advogado. O
ritmo mais lento, a
de seus filmes, se somariam os\ I
ensinamentos técnicos e artísticos
gonzagueanos traduzidos em seu "
gosto pela manipulação da
linguagem em suas mais variadas
formas - montagem, fotografia,
iluminação, etc. À influência
e Apogeu modernizadora de Cinearte, que se
refletia não só sobre as condições de
realização dos filmes, mas
sobretudo na construção dos
enredos, mesclou uma visão de
mundo mais pessoal, tcmatizando
questões de ordem moral que lhe
diziam respeito e colocando suas
personagens contra um pano de
fundo sempre mais próximo da
natureza. Este aspecto, inclusive, se
tornaria determinante em seu
cinema, como se as paixões (a
São Paulo, A Sinfonia da Metrópole verdade) fossem reveladas e
Direção de Rodolpho Lustig e exarcebadas pelo meio físico. Não
Adalberto Kemeny por acaso, cunharia uma definição
1929
famosa: a de que “cinema é
cachoeira".
Arquivo Pedro Lima
.Apogeu do mudo
A sinuosa trajetória
desenvolvida pelo meio
r* cinematográfico na década
de 20 pouco a pouco
foi proporcionando

mm
simplicidade eloquente e
os tipos humanos como que
repõem as estórias
engendradas no caldo de
cultura da região. mm
De todos os ciclos, porém,
o mais afamado é sem
dúvida o de Cataguases. E
|Pgj
isto muito em função da
atuação destacada de dois
de seus membros, a atriz Eva Nil e o diretor Humberto Mauro.
Ambos chegaram a trabalhar juntos em Na Primavera da Vida. a
primeira tentativa mais séria dos jovens entusiastas da cidade,
realizada em 1926. Uma feliz coincidência os aproximou no
mesmo ano dos críticos Adhemar Gonzaga e Pedro Lima, que
descobriram em Eva uma fotogenia sem igual e em Mauro um
talento latente que valia a pena incentivar. Através das páginas
de Cinearte e de um intenso trabalho de bastidores, os dois
jornalistas transformaram a experiência cataguasense no teste
definitivo quanto às possibilidades artísticas e comerciais do
cinema brasileiro. Apesar da cisão entre os dois astros, Eva
manteve seu recém alcançado posto de musa do período mudo
brasileiro, desfrutando de uma popularidade sem igual na
época, e Mauro foi paulatinamente afirmando uma
personalidade cinematográfica que dentro em breve o colocaria
entre os mais importantes diretores da História do Cinema
Brasileiro.
O período cataguasense funcionou para Mauro não só como
etapa de aprendizado e definição de suas escolhas estéticas, mas
também como síntese de um variado leque de influências.
A admiração dos seriados e filmes de aventuras americanos.
expressa nitidamente nas recorrentes cenas de brigas
*Y -'-.í
circunstlncias e
condições para o
BS mm
aparecimento de obras
mais maduras. Se as
questões que agitaram a
República Velha, como o
debate regionalismo x
cosmopolitismo, ou a
discussão sobre as razões
do atraso económico e
K social da Nação, não
entusiasmaram diretamente os cineastas, isto não significa que
os filmes passaram ao largo de qualquer evolução. A consciência
da realização cinematográfica como arte foi se afirmando de
produção para produção, estabelecendo ao final do período um
patamar de altíssimo nível. Esse processo teve como pedra de
toque o problema do roteiro. Na descrição prévia do que se
deveria filmar estariam envolvidas questões de ordem
dramatúrgica, rítmica e conceituai. Além disso, armar o filme
previamente, indicando os efeitos técnicos e estéticos desejados,
representaria tanto uma modernização da linguagem como um
instrumento de planejamento da produção, evitando-se o
improviso estéril e a sucessão de falhas na concatenação das
estórias.
Esta era a intenção de José Medina quando prôpos em 1919 ao
fotógrafo Gilberto Rossi a realização de uma película dentro do
princípio da continuidade. Recém chegado dos Estados Unidos,
Medina queria demonstrar a possibilidade de narrar um
argumento obedecendo a uma rígida codificação de
posicionamentos da câmara, entradas e saídas de cena dos atores
e disposição dos elementos cenográficos. Isto sustentaria
artisticamente a coesão do que se contava através dos diversos
r pianos do Filme, influenciando favoravelmente a percepção do
espectador. A experiência foi empreendida em Exemplo
Regenerador, fábula moralista feliz na sua economia de meios e
na exposição dos diversos pontos de vista envolvidos. Medina
conseguiu transmitir as suposições e os desencontros das
personagens criando uma geografia visual bastante eficiente,
que ia situando o espectador quanto aos possfveis
, desdobramentos da situação-chave. Com isso convenceu não só
o público como a seu colega de realização, estabelecendo com
Rossi uma parceria das mais importantes.
Juntos fizeram uma meia dúzia de filmes, dos quais se destacam
Do Rio a São Paulo Para Casar, Gigi e Fragmentos da Vida,de 1922,
1 925 e 1 929. respectivamen te. O primeiro, que mereceu crítica
entre elogiosa e restritiva do escritor Mário de Andrade, se
inscrevia nas intenções de Medina de adaptar fórmulas
americanas, no caso, a comédia burlesca tal como praticada por
Mack Sennett, Buster Keaton e outros. Já em Gigi, que
considerava seu melhor trabalho, procurava tornar os artifícios
utilizados menos evidentes, deixando aparentemente sobressair
a estória. Buscava, na verdade, realçar os momentos de
intensidade dramática através de uma hábil manipulação dos
enquadramentos, cortes e continuidade. Nestes dois filmes,
Medina conta com um roteirista bastante talentoso chamado
Canuto Mendes de Almeida, que desenvolverá em seguida um
projeto mais pessoal, Fogo de Palha, de 1926. Embora Cinearte
viesse a premiar Thesouro Perdido, de Mauro, como o melhor
filme brasileiro do momento, admitiu mais tarde que a obra de
Canuto superava folgadamente o concorrente.
Outra produção paulistana forneceu importante contribuição
para a questão do roteiro. Trata-se do pequeno filme Quando Elas
Querem, escrito e financiada pelo industrial Adalherto de
Almada Fagundes como uma demonstração da teoria da
visualização e que exerceu enorme influência sobre as
concepções de Adhemar Gonzaga. Queria-se provar ser possível
estabelecer previamente um determinado ritmo para a obra,
de acordo com o gênero escolhido. Existiria uma sucessão de
passos pré-determinados, na verdade ações a serem
desempenhadas pelas personagens, os quais bastaria seguir para
bem encaminhar as diversas fases de uma estória - apresentação
do problema, conflito, clímax e solução do problema. Gonzaga
discutiu muito esses pontos com Mauro e este se preocupava
sobremaneira com a criação e resolução dos conflitos,
secundários e principal. Por exemplo, em Braza Dormida,
considerava a sequência da luta final, que se desenrola por sobre
tonéis de melado fervente, um clímax à altura das peripécias da
película.
O próprio Gonzaga teve que pensar na questão quando resolveu
realizar seu primeiro filme, Barro Humano, concluído em 1929.
Mas diferentemente de Mauro, que tinha uma especial
sensibilidade para o tempo e a continuidade dos planos, jogando
com as espectativas do espectador, o diretor de Cinearte
acreditava apenas numa continuidade dramática estrita, isto é,
da ação e não das imagens. Para ele havia outros princípios ou
conceitos que agiam dentro do plano, influenciado a percepção
mais geral do público. Os chamados símbolos, elementos
recorrentes dentro da narrativa que prefiguravam o desenrolar
da estória e o destino das personagens, assumiam a tarefa de ditar
o ritmo da obra. Essas diferentes concepções, às quais se juntaria
a revolucionária visão estética de Mário Peixoto, atingiram um
ápice num conjunto de quatro filmes, todos marcados não só por
uma refletida elaboração, mas também por um sofisticado
realismo. São eles: os já mencionados Barro Humano e Fragmentos
da Vida. Limite, de Peixoto, realizado em 1930, e Ganga Bruta, de
Mauro, iniciado em 1931 e concluído dois anos maistarde.
Barro Humano girava em torno das desventuras de duas amigas,
moradoras de uma modesta vila carioca. Ambas vivem com suas
mães, que têm visões diferentes quanto a liberdade de criação.
Uma recebe apoio para trabalhar fora, vestir-se de modo mais
moderno, usar maquiagem e namorar. Acaba perdendo a
virgindade sem casar, mas o jovem playboy, arrependido, se
apaixona e consuma o casamento. A outra só consegue ir à festas
e divertir-se, escondendo suas intenções da mãe, que reprime o
novo comportamento da juventude. Não aguentando o
cerceamento, a moça acaba saindo de casa, terminando por
prostituir-se. O aparente moralismo sustentava, na verdade, um
elogio à ação civilizatória, encarnada na grande estrela do filme,
a capital da República. Utilizando alguns dos pontos mais
conhecidos da cidade, a obra procurava associar a juventude
das personagens, com sua maior liberdade e frescor de
pensamento, ao dinamismo e à modernidade da metrópole. O
encaixe do drama contra este pano de fundo indicaria a
necessidade de se acompranhar a velocidade das transformações
sociais. Barro Humano foi um grande sucesso de público e
crítica, representando para Gonzaga o passo definitivo rumo à
industrialização.
O otimismo gonzagueano contrastava com o painel traçado por
Medina para a moderna vida paulistana. Fragmentos da Vida
desglamurizava a grande cidade e revelava a falsidade de sua
promessa de melhoria das condições de vida. Embora também
fosse um drama moralista, tratava com ironia certas situações
de conflito entre a ordem estabelecida e os excluídos. A estória,
adaptada de um conto americano, acompanhava um
desocupado que deseja ser preso para poder desfrutar de cama
e comida durante o inverno. Como que confirmando o vaticínio
paterno para que fosse honesto, o vagabundo não consegue seu
intento, caminhando o desfecho para uma redenção trágica.
Novamente a grande estrela é a cidade. Os arranha-céus do
princípio do filme transmitem a impressão de que a pujança do
progresso tudo pode. Mas os locais por onde perambulam as
personagens se mostram bem mais simples, indicando
visualmente uma geografia física e social distinta e insuperável.
A manipulação metafórica deste elemento aparentemente
secundário nas tramas, mostra o quanto estes dois cineastas
haviam evoluido em termos de consciência das possibilidades
artísticas do meio.
Barro Humano e Fragmentos da Vida, entretanto, eram dois filmes
lineares. Este não era o caso de Limite. Seu diretor pretendia
não só incorporar as mais recentes e radicais formas da
linguagem cinematográfica como testar algumas soluções
próprias. O enredo de Limite é complexo e sua realização tomou-
se um espetáculo à pane. Foram criados inúmeros engenhos para
movimentar a câmara e tomadas liberdades extremas com a
concatenação dos planos, o enquadramento das imagens e a
montagem geral. A obra parte de uma imagem-símbolo para
acompanhar o destino de três náufragos, "presos" num bote em
alto-mar. Alternando presente e passado, o filme vai narrando
as estórias pessoais das três personagens. Devido à absoluta
precisão e maestria com que Peixoto e seus colaboradores
desenvolveram as filmagens e posteriormente a organização do
material, Limite atingiu um grau bastante alto de originalidade.
Chega quase a ser um filme metafísico, abstrato, puramente
conceituai, embora, na verdade, esteja lidando com o tema das
limitações humanas, em especial a decadência e a morte.
Limite não foi compreendido em seu tempo. Mas exerceu certa
influência tanto na época de sua feitura, quanto posteriormente.
em especial sobre parte da geração do Cinema Novo, que o
assistiu no final dos anos 50. Mais imediatamente impressionou
Humberto Mauro, que havia se transferido para o Rio de Janeiro
r

e começara a trabalhar no recém

fundado estúdio de Adhemar
Gonzaga, a Cinédia. Após dirigir o
primeiro filme da companhia.
Lábios sem Beijos, de 1930, foi o
diretor de fotografia do segundo,
Mulher, que já incorporava algumas
características limiteanas como
ângulos e enquadramentos pouco
usuais, e começou a desenvolver
aquela que seria sua maior obra,
Ganga Bruta. Baseada em argumento
de Octávio Gabus Mendes, não era
tão radical como Limite, mas exibiu
uma sofisticação visual e narrativa
pouco comum para um melodrama.
O filme promovia a síntese das
idéias gonzagueanas a favor de um
cinema técnica e esteticamente
a::c;ado e que funcionasse
1933 / 1954 principalmente em São Paulo, logo
a forma de gravação e reprodução
mudaria para o som ótico
(registrado na própria película
Ilusão e cinematográfica) e as barreiras
alfandegárias, financeiras e
Picardia tecnológicas se afigurariam quase
intransponíveis. Com uma brutal
queda de produção ocorrendo no
início da década de 30. produtores,
diretores e técnicos resolveram se
associar em entidades de classe e
passaram a reivindicar uma
legislação protecionista em favor
do cinema brasileiro. A partir
de 1932 e até 1990 diversas
reservas de mercado foram sendo
estabelecidas, conseguindo
minorar a retração em certos
momentos ou mesmo reverter e
ampliar o volume de produção em

-- _
:: mercia mente, com a bagagem
Adhemar Gonzaga. outros. Paralelamente, a necessária
r: :a ce Mauro, em pleno
I lumber!» Mauro e atualização técnica implicou numa
:: : ca; sc.uções narrativas e
Uii/dc Harms completa reestruturação do fazer
i e-:o it -ov: cades, como os
:: ice :cs rs cana::::cos que 1948 cinematográfico, tomando o estúdio
:: ci one ao tratamento de Acervo José de Almeida Mauro instância privilegiada da realização.
rseterm r acas cenas -
especialmenie para os
filmes de ficção, alçados
Ganga Bruta conjugava ■

.
em definitivo pelo
o iaborioso esforço público à categoria de
recente de criação «| produto nobre.
cinematográfica,
explorando com rara IKS A produção ficcional foi
felicidade artifícios 5*34 relativamente pequena
típicos do cinema mudo uge ao longo dos anos 30 e 40
como a expressividade Kp e ficou circunscrita
dos rostos, a gesticulação A basicamente ao Rio de
exagerada, as metáforas IBS Janeiro, predominando
■
tsuais. as passagens de ■ largamente os cine-
■empo em fusão e a Hn jornais e os chamados
■■berdade da câmara. jg** complementos, em geral
T. pressionaram
particuiarmente o uso da
Icurtas de caráter
12*8 documental. Houve
câmara ienta. o recurso r~-tj Gjflk ainda 0 surgimento da
ao flash-back e a 2|l| vertenteeducativa.com
explícita conotação a criação do Instituto
sexual de determinadas o.
Nacional do Cinema
imagens (algo que nem Educativo, em 1936.
05 "filmes científicos" parecem ter ousado). Mesmo assim, Contando com 0 talento de Humberto Mauro, que redirecionaria
Ganga Bruta foi um retumbante fracasso. A razão para tanto sua obra para um nacionalismo mais arraigado, desenvolveram-
residia no anacronismo de sua apresentação ao público. De um se desde filmes didáticos até ilustrações de clássicos literários,
lado, a realidade do cinema sonoro alterara o estilo dos filmes, como UmApólogo, baseado cm Machado de Assis, e de passagens
tornando-os compartimentados e servis ao diálogo. De outro. históricas, como a epopéia das entradas e bandeiras, retratada
esta mesma tecnologia se impusera ao público como uma em Bandeirantes. A presença do Estado, cada vez mais insinuante
novidade irreversível, funcionando como atrativo de bilheteria. e controlador, estendeu-se à criação de um cinejornal próprio.
Percebendo o descompasso, decidiu-se à certa altura da 0 Cine Jornal Brasileiro, e ao financiamento de uma super¬
produção incorporar uma trilha sonora de acompanhamento produção histórica, O Descobrimento do Brasil, realizado por
por discos, com diálogos, ruídos e música. O híbrido resultado Mauro em 1 937. A reconquista do público, perdido para o talkie
- uma obra esteticamente muda com som aliado às americano, se daria, porém, através do paulatino
dificuldades da projeção com discos, acabou por sepultar a aproveitamento da sonoridade local, em especial a musical.
carreira comercial do filme e junto toda uma era.
Sem considerar processos mais antigos, precários e pouco
duradouros, como a cinemetrofonia, inventada pelo fotógrafo e
Os grandes estúdios cariocas - Brasil Vita Filine e Cinédia produtor Paulo Benedetti no início da década de 10. e o América
Cine-Fonema, de Fleming, e descontando o faio de que
O som mudou tudo. Embora num primeiro momento tivesse efetivamente 0 espetáculo cinematográfico nunca foi
acontecido um boom de filmes sincronizados com discos. exatamente "mudo", a realização de filmes sonoros no Brasil
r
iniciou-sc em 1927 pelo sistema de gravaçaoem discos. A sua
frente estava Benedetti. que optou por registrar pequenas
canções populares, começando por Bem-te-vi, vista e ouvida
na figura de Faraguassú. Foram cerca de 30 filmetes. muitos dos
quais dedicados a artistas em começo de carreira, como aquele
que mostrava o Bando dos Tangarás, integrado por Noel Rosa,
Almirante e Braguinha, entre outros, filmado em 1929. A
utilização num longa metragem ficcional se deu neste mesmo
(SJ
ano em São Paulo, por iniciativa de Luiz de Barros, que introduziu
não só músicas mas também diálogos em Acabaram-se os
Otários. Era a primeira produção da Sincrocinex, empresa que
em associação com a fábrica de discos Parlophon sustentou a
efémera voga dos sincronizados.
A maioria desse primeiros filmes sonoros fez sucesso, mas
nenhum como Coisas Nossas, de 1 931. Sua fórmula era simples:
alternar números musicais com sketches cómicos. A idéia de
unir o rádio ao teatro de revista fora de um americano, Wallace
Downey, trazido ao Brasil para supervisionar a fábrica nacional
da discos Columbia, e contou com o entusiasmo e o
financiamento do seu jovem proprietário, Alberto Byington
Júnior. Apesar da imobilidade da câmara, que tornava o filme
quase teatral, o público se encantou com a possibilidade de ver
seus astros radiofónicos preferidos. Estava aberta uma senda
de enormes consequências para o cinema brasileiro. Com a
passagem ao cinema sonoro de registro ótico, em pouco tempo
se privilegiaria o universo musical ligado ao carnaval e mais
adiante se promoveria uma melhor integração da música com o
enredo, resultando em comédias musicais, que ao final da
década de 40 configurariam especificamente um novo gênero.
a chanchada. Foi através deste percurso que se procedeu a uma
lenta e segura reconquista do espectador brasileiro.
Embora Byington tivesse fundado um estúdio, a São Paulo
Sonofilmes depois recriada no Rio de laneiro como Sonofilmes
• embora veiculada quase sempre através de artistas brancos, era
.seu envolvimento com a Revolução Constitucionalista impediu
a exploração do veio recém descoberto. Nesse meio tempo, o
sucesso do filme sonoro americano no mercado brasileiro, que
superara a barreira da língua através das legendas, inviabilizou
de vez o improvisado similar nacional. Era preciso comprar
caros equipamentos e dispôr de um estúdio de verdade, onde a
realidade fosse recriada assegurando-se um bom isolamento
acústico. Downey não se deu por vencido. Criou nova empresa,
a Waldow Filmes, sediada na capital federal, com boa
aparelhagem de som e contrato com os melhores cantores da
época. Necessitava apenas de um bom palco de filmagem. A
associação com a Cinédia, que vivia um dilema, tornou-se
natural e decisiva. O estúdio conseguira introduzir o registro
ótico no pa/s em Como se Faz um Jornal Moderno, curta de 1932,
mas as obras de construção do vasto complexo previsto estavam
semi- paralizadas e a proposta de produção de obras com maior
valor artístico estava em xeque.
Temia-se uma excessiva popularização dos filmes. Voz do
Carnaval, primeiro longa metragem no novo processo, iniciado
por Mauro e terminado por Gonzaga em 1933, já explorava a
ligação do som com o universo momesco mas de forma não
comprometida. O estonteante sucesso do primeiro produto da
parceria fez o dono da Cinédia mudar de idéia. Alô, Alô, Brasil,
dirigido por Downey em 1935, manteve a rigidez da câmara e
constituia-se basicamente de números musicais, introduzidos
por um mestre de cerimónias, que também se encarregava das
piadas. Não havia destaques individuais, mas a vivacidade de
Carmen Miranda transformou-a de imediato na primeira estrela
dos novos tempos. Protagonizou em seguida Estudantes e era o
chamariz de público de Aló, Alô. Carnaval, onde dividia espaço
com o que havia de mais seleto na música popular brasileira de
então (Francisco Alves, Dircinha Batista, Almirante, Lamartine
Babo, Mário Reis e muitos outros). O filme, dirigido por Gonzaga
em 1936, fez mais sucesso ainda que os anteriores, firmando em
definitivo a fórmula. Neste momento, os parceiros se separaram
e Downey retomou com Byington a trajetória interrompida.
Nesta mesma época e explorando o mesmo filão, firmou-se em
definitivo uma outra empresa, a Brasil Vita Filme, da atriz e
produtora Carmen Santos. Tendo estrelado seu primeiro filme.
Urutáu, de 1919, com apenas quinze anos, Carmen lutou
ardentemente para ensejar uma carreira cinematográfica. Após
a destruição de seus primeiros trabalhos como produtora, co-
financiou e protagonizou o último título do Ciclo de Cataguases,
Sangue Mineiro, dirigido por Humberto Mauro em 1929. Depois
da interrupção de Onde a Terra Acaba, que desenvolvia com
Mário Peixoto, estabeleceu a meta da construção de um grande
estúdio para ingressar no cinema sonoro. Com a contratação de
Mauro como diretor, partiu para a realização antes mesmo da
compra do terreno. O trabalho começou com alguns curtas
documentais e logo ensejou um enredo musical. Diferentemente
dos Alô, Alôs, Favela dos Meus Amores tinha uma estória
relativamente complexa e foi filmado parcialmente em locações
autênticas, no caso, o Morro da Providência. O filme retratava a
trajetória de uma professorinha idealista, vivida por Carmen,
que se envolvia com a cultura da favela e lutava pela melhoria
das condições de vida das pessoas do local.
O estrondoso sucesso desta produção de 1935, calcado na
presença de cantores como Sílvio Caídas, obscureceu para o
grande público algumas originalidades da iniciativa. Antes de
tudo, a inédita tomada da favela como tema privilegiado. Ainda
que bastante estilizado e idealizado, o local era visto
ctwetaTnemeeomotrceleiro-'de criação da recente música
popular urbana carioca. Por outro lado, esta cultura musical,
associada diretamente às parcelas negras do morro. Favela dos
Meus Amores apresentava, porexemplo, as verdadeiras e então
perseguidas escolas de samba. Nada se comparava, porém, à
pungente e realista sequência do enterro do compositor,
verdadeira elegia ao artista popular e que contou com a
participação de centenas de habitantes do lugar. Mauro sabia
das dificuldades técnicas de uma tal empreitada, prenunciando
pelo uso sistemático da locação e o tom respeitoso de muitas
cenas o neo-realismo italiano. Além disso, tinha consciência da
própria rejeição interna em relação ao universo retratado.
ironicamente, o morro era 'ÿdescoberto'' por duas personagens
recém chegadas de Paris...
Carmen procurou reeditaro sucesso em outro musical, Cidade
Mulher, que não alcançou o mesmo resultado. Dedicando-se em
seguida à construção do estúdio, passou a alimentar o projeto
de um grande épico histórico retratando o episódio da
Inconfidência Mineira. O filme homónimo levaria quase uma
década para ficar pronto, sendo lançado somente em 1948.
Acumulando as funções de atriz, produtora e diretora. Carmen
fez uma reconstituição histórica cuidadosa, mas com uma
encenação pesada e acadêmica, comprometendo as
possibilidades expressivas do tema. Era a terceira mulher a
assinar um filme brasileiro; as anteriores foram Cléo de
Verberena, com O Mistério do Dominó Preto, em 1930, eGilda
Abreu, com O Ébrio, em 1 946. Saiu-se melhor apenas como atriz
em um novo filme encomendado a Mauro, pouco antes do início
das filmagens de Inconfidência. Argila talvez tenha sido o melhor
exemplar da nova orientação maureana, afinada com a busca
oficial de raízes culturais autóctones e preocupada com a
■pVrvers o'' promovida pelas altas camadas burguesas junto a
essas manifestações até então intocadas.
r
A oposição entre cultura popular e cultura erudita era o pano
de fundo da maioria dos filmes do período. Pode-se dizer mesmo
que foi um dos elementos de estruturação dos enredo,?. Em
Futebol em Família, dirigido por Rui Costa em 1938, o pai,
professor universitário, considera o esporte um acinte à
evolução da civilização, não desconfiando que o próprio filho
está para decidir um campeonato. Mesquitinha vai mais longe
em£sra Tudo Aí, que realizou em 1939, proibindo a mulher e as
filhas de se envolverem com o carnaval, considerado festa
imoral e retrógrada. Nos filmes em que aparece este tipo
de situação, as
u: LU;:S:,í i não se repetia
ro hn m I
m
*ÿ
à descoberta das
virtudes das
manifestações
populares. Este
I m
processo ganharia
no seu auge uma
adaptação I Caminho do Céu.
metalingiiística.
Carnaval Atlântida, I títulos a abordar o
dirigido por José I novo
Carlos Burle em
1952, contava a BBMH
estória de um
professor de grego
antigo convidado
para assessorar a
realização de um
filme sobre Helena
deTróia. O que ele CÃ'.’»®?1
presencia, no entanto, é a paulatina Ácabaram-se os Otários
chanchadização do tema histórico em função da Direção de Luiz de Barros
pobreza demeiosda produção, passando não
1929
só a concordar como colaborar com este ponto de
rrsta O cinema popular terminava assim, na visão Arquivo Pedro Lima
zs seus realizadores, por se igualar aos outros campos
-oalnfr. te menosprezados pelas elites.
Aprinãraobmairaur ligeiramente de preconceitos sociais
fan WnTTpfaiihiirif Seria. de 1936. A importância deste filme, um
ucs mais populares da década, não recai, porém, tanto sobre o
seu argumento e sim sobre a sua apresentação. Efetivameme,
:ratava-se do primeiro filme de estúdio propriamente dito feito
~c Brasil. Bonequinha representava a retomada pela Cinédia
dos projetos esteticamente mais arrojados e apostava na
capacidade do estúdio de prover os meios necessários para a
criação de uma realidade qualquer. De uma tacada só, a
realização de OduvaldoVianna introduzia no país a grua. o back-
projections os refletores fresnéis, entre outras inovações. Quase
que inteiramente filmado em cenários artificiais, Bonequinha
superava antigas deficiências de fotografia e aestaticidade
inicial da câmara, evoluindo com grande desenvoltura de um
ambiente para o outro. Tais procedimentos seriam ampliados
no interrompido Alegria, iniciado em 1937 e que contaria com
cenografia em gesso, maquetes, efeitos especiais e revelação
contínua em máquina automática. Contudo, o novo filme de
Oduvaldo estourou o orçamento e comprometeu o futuro da
companhia.
A partir daí Gonzaga passou a alternar filmes ligados ao universo
da música, quase todos dirigidos por Luiz de Barros. com
diversas tentativas de abordar gêneros específicos. Entre os
primeiros destacaram-se dois títulos dos anos 40, Berlim na
Batucada e Caídos do Céu. Naquele, uma sátira à passagem do
cineasta americano Orson Welles pelo Brasil, um malandrol
carioca e um sambista de morro, vividos respectivamente por
Procópio Ferreira e Francisco Alves, promovem uma espécie de
tour pelo mundo da favela, com direito a diversos números
musicais e a um raríssimo registro do autêntico samba de
terreiro. Neste, uma comédia de costumes, um casal de anjos,
mortos no século XIX, intrepretados por Derq' Gonçalves eWalter
D’Avila, volta à Terra para dirimir uma dúvida sobre um recém
falecido, vivenciando com espanto e admiração as
transformações da vida moderna. O sucesso obtido nas
comédias musicais
nas incursões
pelo filme de
aventura -Aruanâ.
Sedução do Garimpo
-, pelo melodrama
erótico - Anjo do
Lodo -, ou pelo
filme patriótico •
um dos poucos
conflito
mundial e sua
repercussão no
Brasil.
A Cinédia ainda
tentou desenvolver
alguns projetos
■r-;’ wsfêMm mais ambiciosos.
Romance Proibido
era uma refilmagem disfarçada de Barro Humano,
porém sem o mesmo frescor e alcance, mudando-
se o eixo da estória para uma defesa da ação
educativa junto às populações interioranas.
Pureza, uma adaptação do romance homónimo de
José Lins do Rego e primeiro filme brasileiro do cineasta
português Chianca de Garcia, tinha boas sequências dramáticas.
mas pecava por um roteiro confuso e um elenco desigual. Tais
entraves foram superados em seu segundo filme, 24 horas de
Sonho, única incursão pelo cinema da dupla Dulcina de Moraes
e Odilon Azevedo. A rara habilidade narrativa de Chianca
realçou a graciosa interpretação de Dulcina, cuja personagem,
após tentar cometer suícidio, decide viver suas últimas vinte e
quatro horas de vida como hóspede de um Copacabana Palace
recriado em estúdio. Gilda Abreu também demonstrou sensível
evolução como diretora em Pinguinho de Gente. Filme mais caro
da primeira metada de século (custou cerca de CRS 1.500.000,00,
em valores da época), tinha acurada reconstituição cenográfica
e um domínio seguro dos enquadramentos e da montagem.
O projeto mais bem sucedido desta terceira fase da Cinédia era
uma produção relativamente simples, extraída de uma peça teatral
de sucesso. O Ébrio, o espetáculo teatral que consagrou o cantor
Vicente Celestino, recebeu uma adaptação didática e ao mesmo
tempo modelar quanto aos comportamentos familiares diante da
inveja, da cobiça e da desilusão amorosa. Esta clareza talvez
explique a impressionante carreira comercial da obra, maior
bilheteria da época e ainda hoje uma das maiores de todos os
tempos. Não se pode negligenciar a presença e o carisma de Vicente.
que encarnou o protagonista também na tela, nem esquecer o
talento melodrático de sua mulher, Gilda Abreu, que o dirigiu em
1 94 6. autora de romances e novelas radiofónicas do mesmo gênero.
mas algo mais se impôs ao filme, já que as tentativas de reeditar a
mesma parceria e universo não deram certo. O Ébrio permanece,
w _
■[/
f
|
portanto, como urn momer.to J-. CC desenquadrado do lipo de
cinema que se fazia na época .cnge de qualquer iniciativa
semelhante. Os envolvidos incluindo a Cinédia e Adhemar
Gonzaga, nunca mais conseguiriam repetir a fórmula.
Os grandes estúdios cariocas - Atlàntida e Sonofilmes
No Rio de laneiro, só uma produtora superaria o volume de
produção da Cinédia, embora sem o requinte, diversidade e
sofisticação alcançados nos estúdios de São Cristovão. O
surgimento da Atlàntida era fruto de um longo e acalentado
dlV
sonho do técnico de som e diretor Moacyr Fenelon. Responsável
pela gravação da maioria dos primeiros longas metragens
sonoros brasileiros, de Acabaram-se os Otários e Coisas Nossas à
Aló, Alô, Carnaval, o integrante do Partido Comunista Brasileiro
procurava, na verdade, um outro tipo de cinema, onde o cidadão
comum visse refletida suas angústias e inquietações,
especiaimente as de caráter económico e social, A afirmação de
uma realidade cultural mais complexa e polarizada teria,
entretanto, que se confundir com o arcabouço das comédias
musicais em gestação ao longo dos anos 30. Provavelmente para
seu desagrado, a realidade cotidiana da capital federal foi
examinada à luz de enredos simplórios, com entrechos
rornárnicos, e logo superada pelo universo mais dinâmico da
sátira de costumes. Mesmo assim, houve uma mudança
substancial de enfoque com relação a temas e personagens,
privilegiando-se o dia-a-dia das classes populares.
Fenelon tinha em mente melhorar a experiência da Sonofilmes,
onde trabalhou com técnico de som e debutou como realizador.
Com seu faro incrível, Downey tinha antecepado no curto
período de existência da produtora, que funcionou de 1936 a
94 1 os elementos que seriam reaproveitados pela Atlàntida.
Desde a promoção a estrelas de um Oscarito ou uma Carmen
Miranda, até a incorporação definitiva dos temas e do olhar
satírico típicos do teatro de revista, tudo foi se definindo sob a
sua supervisão. A consequência, um produto de fácil aceitação
e ligeiramente crítico quanto à realidade circundante, agradava
em princípio a Fenelon. O protótipo desse novo cinema foi a
película João Ninguém, dirigida por Mesquitinha em 1936. O
filme retratava as desventuras de um compositor popular, que
via uma música sua, escrita para a namorada, ir parar nas mãos
de outra pessoa, tornarulo-se um grande sucesso, enquanto ele
amargava a prisão injustamente. Com pontos de contato com
Moleque lião e Rio, Zona Norte que tinham espírito e estórias
semelhantes. João Ninguém expunha melancólica e
romanticamente o universo suburbano, ressaltando no herói as
qualidades da perseverança e da crença em um amanhã melhor.
Downey, que já procurara alternar um filme para o período de
carnaval com outro menos comprometido musicalmente para o
meio do ano, fixou de vez este esquema na Sonofilmes. Os filmes
ditos mais "sérios" em gera) eram adaptações de peças leves, dramas
e comédias sem grandes vôos. Os filmes de carnaval eram
encomendados a profissionais ligados ao teatro de revista e à música.
Assim nascia, por exemplo, Banana da Terra, sátira políúco-musical
à fragilidade económica nacional. Pressionado por uma super¬
produção de bananas, seu único produto de exportação (tal comóo
café brasileiro à época), o reino de Bananolândia decide enviar um
embaixad or ao B rasil, coin a missão de divulgar a ffu ta e convencer
o govemo a comprá-la. O emissário, personificado por um pandego
Oscarito, opta pelos cassinos e emissoras de rádio, o que leva tudo a
terminar em samba. Banana da Terra era como que uma grande
colcha de retalhos, alternando inúmeros musicais com um fiapo de
costura narrativa. A pobreza de meios era tanta - impondo-se por
exemplo novamente a imobilidade da câmara - , que o diretor Ruy
Cosia recusou-sea assiná-lo.
Mesmo assim, o filme tornou-se o maior sucesso de bilheteria
da década de 30. consagrando de vez a comédia
musicarnavalesca e catapultando Carmen Miranda para sua
carreira americana. A cantora definira sua imagem de "baiana".
com balangandãs, tamanco e turbante no número O que é que a
baiana tem?. Diante de resultados tão animadores e dos métodos
lelaiivarnenie simples e baratos de produção implantados por
Downey, quando a Sonofilmes pegou fogo, Fenelon decidiu que
era a hora de repetir o esquema, com algumas modificações de
ordem artística, especialmente quanto ao acabamento das
produções, e empresarial. Curiosamente, tentou-se
democratizar a capitalização da companhia, via emissão de
ações populares que tornavam seus compradores co-
proprietários e financiadores de determinada película. Embora
utilizado nos primeiros filmes, era algo fadado a não dar certo,
seja pela precariedade da venda, seja pelos altos custos da
realização cinematográfica. Aliás, a implantação da Atlàntida |
foi difícil e demorada, só se efetivando graças a ajuda de um
amigo de Fenelon, o músico, radialista e futuro diretor de cinema
losé Carlos Burle.
Com Burle e seu irmão, que atraíra o dono do iornal do Brasil.
principal sustentáculo financeiro inicial, cuidando da
organização da empresa, os rumos acalentados por Fenelon
começaram a ser modificados. O fundador sabia da importância
da comédia carnavalesca, mas tinha dificuldades em praticá-
la e mesmo aceitá-la. Decidiram, após dois anos realizando
pequenos filmes, ingressar no longa metragem com um meio
termo. Moleque Tião, de 1943, era uma adaptação da vida de
Grande Otelo. Aprofundava determinadas conquistas d ejoão
Ninguém, trocando, por exemplo, o subúrbio de estúdio pela
filmagem em bairros reais, mas não deixava de lado o atrativo
musical, à cargo de Custódio Mesquita e Lourdinha Bittencourt.
protagonistas e estrelas da produção. O fato de ter como sub-
tema a condição do artista negro não deve ser substimado,
embora o sucesso alcançado se devesse provavelmente aos
números musicais. A estréia auspiciosa não se refletiu na
continuidade da empresa. Desentendimentos quanto aos rumos
artísticos e fraco desempenho de bilheteria a levariam.
inclusive, a ser repassada a Luís Severiano Ribeiro Júnior.
herdeiro da maior cadeia exibidora do país.
Fenelon insistiu com o estudo da pequena burguesia e das
classes populares. Quase todos os filmes de meio de ano da
primeira fase da Atiântida, que durou até 1947, giraram em torno
desse universo. Romance de um Mordedor trazia pela primeira
vez a figura do malandro como protagonista. O Gol da Vitória
revisits va mais adultamente Futebol em Família. E Sob a Luz do
Meu Bairro se detinha nos pequenos dramas de uma vila
operária suburbana. Para os filmes de carnaval procurou-se
reeditar a antiga fórmula. Ruy Costa ingressou na Atlàntida com
a missão de popularizar a produção, começando com o enredo
de £ Proibido Sonhar e assumindo em seguida a direção de
Tristezas Não Pagam Dívidas, de 1944. Sua intenção, porém, era
ser autenticamente fiel ao universo da revista, resultando em
liberdades que provavelmente desagradaram Fenelon e o
fizeram abandonar a empresa. Para substituí-lo, Burle, que
nutria enorme simpatia pelo projeto do amigo, mostrou-se ]
pragmático. Foi assim que um novo diretor de filmes de carnaval
surgiu e acabou mudando tudo.
Watson Macedo sempre quis ser cineasta. Admirador confesso
do cinema americano, em especial dos filmes de terror e dos
melodramas noir, não tinha intenção de tornar-se um
especialista em comédias musicais. Contudo, a partir de um
duro e prático aprendizado, foi operando modificações capitais
na estrutura do género tal como praticado no país. Fm primeiro
lugar, deu-lhe uma agilidade narraliva inédita, pela progressiva
assimilação da moderna técnica da continuidade e pela
sobreposição da estrutura dramática de outros gêneros, em
particular o policial, ao limitado núcleo que sustentava a
sucessão de números musicais. Além disso, de um lado,
promoveu o "casamento" dos atores cómicos Oscarito e Grande
Otelo, criando o par perfeito para as estrepolias
cinematográficas, e de outro, definiu protagonistas claramente
identificados com as figuras do herói, da mocinha e do vilão,
encontrando os rostos perfeitos em Anselmo Duarte, Eliana, sua
sobrinha, e José Lewgoy. Por fim, estabeleceu um tom de alegre
descornpromisso para a percepçào geral do espetáculo, um tom
de chanchada.
Com o crescente sucesso de seus primeiros trabalhos na
Atlántida, Macedo foi granjeando maiores liberdades artísticas
e consolidou sua fórmula no clássico Carnaval no Togo, de 1950.
Ironicamente, aceitara criar e dirigir este filme em troca da
possibilidade de realizar sua primeira película séria, A Sombra
da Outra. O suspense psicológico envolvendo dupla
cerscr.alidade permaneceria como a obra preferida, mas o
'et :i e da carreira seria dedicada ao novo tipo de comédia
~ -5. cal M 3cedo tinha algumas marcas de estilo, que acabariam
cansuru-.r.do uma estrutura recorrente em seus filmes. Do
arúficio ca troca de alguma coisa (identidades, objetos, etc.),
:jacão geradora da maioria das tramas, à utilização de
ce:e rrr.tnacos ::pos ce cenografia (ambientes com colunas e
? t tacas S-*.: cosas, : udo servia à elaboração de um universo
c: nscientememe artificial, fantasioso, como se a realidade
tivesse função meramente instrumental e não se devesse levar
a vida muito a sério. De sua longa carreira destacam-se ainda
Aviso aos Navegantes, Carnaval em Mane, Sinfonia Carioca,
Alegria de Viver e A Grande Vedete.
A chanchada enquanto gênero iria se consolidar e extinguir
pelas mãos de um discípulo confesso de Macedo. O talentoso
Carlos Manga dirigiria nos anos 50 alguns clássicos definitivos,
rareados pela exarcebação do elemento paródico e pelo
ira-.dor-.c do carnaval e depois da própria música como
f ementes indispensáveis à receita. Acrescentaria ainda uma
it -ai.iação do pano de fundo das estórias, incorporando
i ?~t c; :e-.s ca r.ascer.te cultura pop. Tendo passado por
c 'tries serres dentro da Atlántida, Manga começaria sua
rsrre.ta de cineasta realizando os números musicais de
Carnaval Atlántida. Em seguida, dirigiu seu primeiro longa
metragem, A Dupla do Barulho, que imortalizou a célebre
r agem de Oscarito e Grande Otelo, ambos de fraque, bengala
e canola. No ano seguinte, 1954, jogava sua grande cartada, com
duas paródias explícitas de filmes americanos recentes. O
bíblico Sansão e Dalila (Samson and Delilah), rodado por Cecil
B. DeMiUeem 1949, transformou-se em Nem Sansão, Nem Dalila,
e o u/estern Matar ou Morrer (High Noon), realizado por Fred
Zinemann em 1952, virou Matar ou Correr.
A intenção não era exaiamente contrapor-se ao colonialismo
cultural americano, exercido principalmente através do
cinema, mas dialogar com ele, mostrando, por um lado, o quanto
dependíamos de linguagens estabelecidas fora do país, e de
outro, o quanto estávamos distantes do padrão que procurávamos
imitar. O mote da chanchada era justamente este: se não
podemos ser como eles, podemos ao menos rir deles e da nossa
própria incapacidade. No entanto, a obra de Manga
apresentava- se de forma bem mais complexa, seja pela maestria
da assimilação dos códigos narrativos americanos, seja pela
inserção de questões tipicamente brasileiras em meio às tramas
dessa natureza. O melhor exemplo disso está em Nem Sansão,
Nem Dalila, onde o objeto parodiado é não só o filme americano
mas a situação política brasileira recente. Discutia-se os ruim
do populismo getuliano, com uma magistral incorporação do
trejeitos do presidente feita por Oscarito, e a ameaça do
recrusdecimento ditatorial, antevendo desdobramentos que
iriam se processar em seguida.
A Atlántida conseguiu produzir mais de 50 longas metragens e
centenas de curtas e cinejornais em seus primeiros vinte anos
de existência. Ainda que quase sempre com precárias condições
de realização, nenhum outro estúdio brasileiro desenvolveu este
volume de produção, nem conseguiu, graças a uma distribuição
e exibição compulsórias na cadeia Severiano Ribeiro de 1 947
em diante, ter retorno de bilheteria para a maior parte dos
títulos. Algumas fontes de época chegavam mesmo a afirmar que
filmes como Nem Sansão, Nem Dalila atingiam fácil a marca de
quinze milhões de espectadores, o que os transformariam no
maior fenômeno de comunicação do cinema brasileiro. No
rastro desse sucesso, surgiram inúmeras outras companhias
menores como a Cinelândia Filmes, a Flama Filmes e a Herbert
Richers Produções Cinematográficas, todas apostando no filão
da chanchada. Com isso, inúmeros outros astros se firmara m,
como Ankito e ZéTrindade, dando corpo a um enorme conjunto
de personagens populares, com destaque absoluto para o
malandro e o bamabé. o funcionário público de vidinha pacata
que ansiava por algum acontecimento excepcional.
Este exame de uma certa galeria de tipos urbanos se completava
curiosamente com alguns dramas onde se discutia a condição
marginalizada. A figura do fora-da-lei. em específico, aparecia
mais diretamente em três filmes "sérios" da Atlántida: Também
Somos Irmãos. Maior Que o ódio e Amei um Bicheiro, dirigidos os
dois primeiros por José Carlos Burle, em 1949 e 1951,
respectivamente, e o terceiro por Jorge lleli e Paulo Vanderley,
em 1953. A obra mais antiga de Burle trazia inúmeras marcas
inaugurais. Também Somos Irmãos fora o primeiro filme
brasileiro a tocar diretamente na questão do preconceito racial
contra os negros, a fazer a ligação entre pobreza, favela e
criminalidade e a entregar os principais papéis a atores negros,
no caso Aguinaldo Camargo e Grande Otelo. Dos três, apenas
Amei um Bicheiro teve algum impacto, devido a sua agilidade
narrativa e à grande interpretação de Otelo para a personagem
Passarinho, em seu primeiro papel realmente dramático. Aqui,
porém, o crime é visto com uma endemia da cidade grande, sem
os sutis matizes, como a falta de oportunidades sociais,
trabalhados no filme de Burle.
Os grandes estúdios paulistas - Maristela, Multiíilmes e Vera
Cruz
Quase não se produziu entre 1933e 1949 em São Paulo. Entre os
poucos longas metragens realizados, talvez só mereça menção
Eterna Esperança, dirigido por Leo Marten em 1940. O filme
abordava o problema da seca no Nordeste e fora o único projeto
concluído da Companhia Americana de Filmes, ousado
empreendimento que visava a implantação de um estúdio de
grande porte no país. Passada quase uma década, a mesma
proposta voltava a ser cogitada, só que desta vez o alcance e a
repercussão foram bem maiores. As razões para tanto estavam
na percepção da baixa qualidade técnica e artística do cinema
brasileiro em geral e da chanchada em particular, se
comparados com a produção corrente européia e americana.
Sentia-se a necessidade do desenvolvimento dessa linguagem
entre nós, tendo em vista seu enorme poder de difusão e seus
possíveis dividendos comerciais. Queria-se transformar uma
atividade precária e artesanal numa linha de produção contínua
e industrial.
w iMu

Cavalcant t. bras
kp
iiilinfnte pela presença em s.io
l‘a alo do at.miado cineasta Alberto
que
desenvolvera carreira na rrança e
n.i Inglaterra Os empresários que
1955 / 1961
Atitude e
Kmbora não estejam entre as obras
mais significativas de sua
filmografta. os três títulos rodados
por Cavalcanti no Brasil apresentam
sólida construção narrativa e a
abordagem pioneira e pouco usual

I
esias am a freme do projeto 1 ranco
/ampari e Francisco Matarazzo
Sobrinho, o convidaram para
Poesia de temas como a tragédia nordestina
e o papel da mulher nas relações
amorosas contemporâneas. Simào c
organizar uma grande companhia o mais bem realizado dos três
de cinema. Pretendia-se construir o satirizando com grande poder de
maior palco de filmagem da imaginação a indole e as
América Latina, comprar o idiossincrasias do paulistano, lá O
equipamento mais moderno e Canto do Mar, rodado em
formaras melhores equipes do pais. Pernambuco durante o ano de 1953.
Para tanto. Cavalcanti voltou para a expunha com grande crueza o
huropa. onde reuniu o que problema da fome e suas
considerava sei a base técnica e consequências sociais, sem. no
humana necessária paraensinarao entanto, discutir em profundidade
pais como fazer cinema. Lm que pese suas causas. Se o filme antecipa o
o desprezo pela experiência local cinema tios anos 60 pelo tema. este
anterior, efeiivumente o parque aspecto o diferencia das obras do
instalado e a mão -de -obra futuro Cinema Novo. O cineasta
contratada eram de primeira linha parece criar ainda dentro de um
e tiveram enorme influência sobre quadro clássico, recorrendo a
práticas e método* de trabalho.
Filmagem de Rio 40 Graus
expedientes tie t unho metafi'ii o
principalmente nas área de som. 1955 conto o destino irreversível this
montagem e laboratório. Além disso. Acervo Lécio Augusto Ramos personagens, o que enfraquece o
o complexo de São ■M| resultado linal. Com

—
Bernardo do Campo. m* WÊí* 'ÿ/:<
quer pelo gigantismo. .vídsí:. sai melhor e introduz
quer pela 'ÿX um enredo bastante
: ■

• -s • t j original e inusitado: a
• vge da improvisação í- VAI t vida de uma dona
re f n a n i eSurgia M de t.is.i ítígaittii
> i
L A
assim, na virada para
\ Cavalcanti inverte e
a década de 50. a .ÿf ti ironiza o tradicional
C o m p a n h i a machismo brasileiro.
Cinematográfica Vera /
\ / 1

( !ruz A Vera Cruz não seria

Cavalcanti, porém.
unha em mente
associar os futuros
filme* ao que
considerava ser a
fonte perfeita: a
própria história e
cultura do pais
Estava também em seus planos fortalecer a realização de
documentários e formar num segundo momento equipes
inteiramente nacionais. Suas ideias acabariam se chocando
com o voluntarismo da direção geral da companhia, que
susteniava uma indefinida. diretriz internacionalizanre. Os
gastos excessivos e incontrolados também mereciam críticas
tie sua pane, sem que se mostrasse capaz de evitá-los e impor
uma administração rat ional da produção. Com isso, o conflito
logo se estabeleceu e Cavalcanti deixou a companhia coth
apenas um filme pronto e dois encaminhados. Decidiu voltar
então á realização, sendo com idado pela Maristela, um dos
novos estúdios que se ergueram no rastro da Vera Cruz. para
dirigir a comédia Sitnào. o Caolho, de 1952 Lm seguida, fundou
uma empresa chamada Kinofilmes, onde produziu e dirigiu
mais dots títulos I) ( amo do Mar e Mulher de verdade.
Frubiemas legais c alguma desilusão com seu retorno á pátria
<> le\ eram de novo para a Huropa. em 1955.
tão ousada tta escolha
dos enredos para seus
filmes. Praticando
acima de tudo um
cinema tie gêneros
de esmerado apuro
r formal e acabamento
*ÿ-
f plástico irretocavel, n
companhia abordou
situações ião disiintas quanto a vida tio compositor Zeqtttnha
de Abreu, em Tico Tico no httbri. o episódio histórico da
libertação dos escravos, em Sinha Moça. e a decadência di¬
urna fazenda de café, em Terra é Sempre Terra Houve mesmo
a adaptação de uma lenda folclórica. Caiçara e a incrível
estória envolvendo uma pianista de concerto na huropa. mais
precisamente em uma Suécia sob neve reconstituída nos
estúdios de São Bernardo do Campo. Apassionata. Hs ta
indefinição acabaria se ajustando a alguns parâmetros mais
comerciais, principalmente sob a capa de filmes policiais.
comédias e melodramas. A grande exceção ficou por conta
de U Cangaceiro, dirigido por l ima Barreto em 1953. O maior
sucesso de bilheteria da empresa e único de seus títulos a
ganhar distribuição mundial, na esteira de um prémio ganho
no Festival de Cannes, era um filme de aventuras que não
dispensava nem o regionalismo nem a musica
v
 \ produção da Vera Cruz foi bastante interpretações e o loniÿH
imensa para a sua curia existência:
dezoito longas metragens em quatro
1962 / 1968 cumplicidade para com odesespÿH
das personagens promoviam trl
anos Sem grandes destaques exame acurado da alma burguesa
artísticos, mesmo assim teve méritos
tanto pela grande atualização Coragem e contemporânea

De todas as influências getadas

técnica, quanto pela cristalização de
um modelo de produção, facilitando
inclusive a sua posterior rejeição.
Além disso, se lançaram ou se
consolidaram na companhia
inúmeros artistas, com destaque
para Mazzaropi. que em seguida
exploraria a personagem do caipira
em um sem número de filmes de
grande apelo popular. Marisa Prado,
que soube encarnar com perfeição
o estereotipo da mocinha fragile
assexuada lançado por Eliana.
jitançando assim carreira
- '.e-rracional. e Anselmo Duarte.
«icramentou o posto de grande
i; ca época. condição que
Verdade direta ou indiretamente pela Vera
Cruz. a mais curiosa e duradoura
talvez tenha sido a de suscitar um
quase género brasileiro, o filme de
cangaço. 0 sucesso mundial de
O Cangaceiro levou inúmeros
produtores a tentar repetir a
fórmula, principalmente a partir de
A Morte Comanda o Cangaço
Apareceram sátiras bem humoradas
ao filão como. por exemplo.
Os Três Cangaceiros, e reavaliações
históricas, políticas e artísticas cio
tema do cangaço em obras bem mais
densas e arrojadas como Deus e o
Nelson Pereira dos Santos, Diabo na Terra rio Sol. O filme de

I
--
íí. itanaasua passagem a diretor

-
i

-
•
c -ianos O estrelismo
ava a escolha dos
'íS r d=~ atr-zes com a foiogenia
Ruy Guerra, Joaquim Pedro de
Andrade, Walter Lima Ir..
Zelito Viana, Luis Carlos Barreto.
Glauber Rocha, Leon Hirszman
Lima Barreio romam izava a saga
de Lampião, estruturando as
personagens envolvidas de forma
maniquetsta - um cangaceiro bom.
•c -corer'- ndc ac taierto dramático. 1962 outro mau - . e explorando a cultura
abru espaço para a expressividade
deCactlda Becker em Fioradas
Arquivo Funarte _nordestina de maneira folclórica e
pouco fiel. Mesmo assim, a
na Serra. onde tem uma competência narrativa do
atuação plena de matizes e diretor, a brilhante fotografia
com períeno domínio do tempo ■ do inglês Chick Fowle e os
cinematográfico. H acordes de Mulher Rendeira
* í / ■ garantiram uma empatia sem
\ origem teatral da maioria dos -> '
igual junto ao público e uma
diretores da Vera Cruz extensa filmografia ligada ao
"í c_i'nc = da - talvez tenha tema. ainda em curso nos dias
-esaxj u»floertciaòo. junto com ■ atuais
' Vvsos ro-.tadjí oeio Teatro
de onde -A Os outros estúdios mom ados
-rÿíos remade
foe
V em São Paulo não tinham

:? i
'urgi
■
— rc íC D \r~o~ ari e
Hemar Bergman - o
nemo dos
mcs bras.leiros de natureza
primeiros
a mesma envergadura daVera
Cruz. embora representassem
sensível avanço sobre
as experiências cariocas.
rredom;nantemente Maristela e Multifilmes
"ÿÿrológica O \om imimista de
*x-
também produziram muito em
certas passagens, diálogos ou pouco tempo, conseguindo
interpretações antecipava os razoável nível de acabamento
trabalhos de Walter Hugo e quase nenhum sucesso de
Khours e de Rubem Biãfora. <v bilheteria. Se a primeira
Estes cineastas também nasceu sob o impacto causado
aproveitaram a mfra-estrutura pelo neo-realismo sobre Mário
deixada pela Vera Cruz. Audrá Junior, seu proprietário
transformada depois da de fato. perseguindo aqui e a!i
liquidação em Brasil Filmes. alguma qualidade aittstica. a
Seus filmes reproduzem uma segunda era uma investida
espécie de psicodrama: em puramente comercial de um
ambiente fechado, grupo de rico industrial. Anthony
personagens expõe suas dúvidas e cogitações diante do próximo Assumpção, que vislumbrou na produção cinematográfica a
eda existência Após alguns títulos, que considerava como mero possibilidade de testar seu tino para os negócios bem sucedidos.
aprendizado . Khoury chega anos mais tardea uma perfeita Construiram-se duas trajetórias acidentadas, oscilantes em seus
equação desses conilitos interiores. Voite Vazia, realizado em padrões técnicos, temáticos e estéticos. Como na Vera Cruz. os
i9ô4. levava para deniro de um apanamenio paulistano os filmes perseguiam basicamente um cinema de gêneros, com
questionamentos de um quarteto formado por dois amigos e duas narrativa clássica e acabamento perfect. ionista. Curiosamente.
garotas de programa O ritmo lento da narrativa, as belas entretanto, foram mais permeáveis a assuntos populares, como
L
f
' futebol, carnaval e crónicas de costumes. Seu saldo final, assi m
como o da década, responsável por mais de trezentos longas
metragens, indica uma crescente diversificação em meio á
falência do modelo industrial.
A Maristela produziu diretamente poucos filmes, trabalhando
a maior parte do tempo em regime de co-produção, sem contar
o intervalo em que vendeu seus estúdios para a Kinofilmes. Esta
fórmula permitiu uma certa longevidade e principalmente o
envolvimento com projetos dos chamados cineastas
independentes, atitude única na época. Seu maior sucesso como
produtora foi O Comprador de Fazendas, comédia estrelada por
Procópio Ferreira e dirigida por .Alberto Pieralise em 1953. Deve-
se ressaltar também a primeira adaptação de um original de
Nelson Rodrigues. Meu Destino é Pecar, e a primeira incursão
nacional pelo drama penitenciário. Mãos Sangrentas, filme de
grande tensão e violência, dirigido com rigor e estilo pelo
argentino Carlos Hugo Christensen, que se radicaria no Brasil.
Com os independentes, a Maristela participaria do episódio
brasileiro da produção alemã Die Windrose, chamado Ana e
dirigido por Alex Viany, de Rio Zona Norte, de Nelson Pereira dos
Santos, e de 0 Grande Momento, de Roberto Santos. Estes títulos
já representavam uma guinada frente à produção corrente da
época, apresentando-se mais comprometidos com a realidade
social brasileira e procurando desenvolver um ponto de vista
crítico sobre ela.
Apesar de ter realizado nove longas metragens em apenas três
anos, indicando a criação de uma "linha de montagem"
razoavelmente eficiente, a Multifilmes não escapou do destino
inglório dos grandes estúdios paulistas. Nenhuma de suqs
produções foi bem de bilheteria, a despeito de uma utilização
ue er.'.as mats cotidianos. da presença de iosé Carlos Burie e
de uma co-produção com a Atlãntida, estrelada por Elian a,
A Outra Face do Flomem. Cerrou suas portas sob pesadas dívidas,
contraídas junto aos bancos. Seu maior feito foi ter realizado
Destino em Apuros, de Ernesto Remani, primeiro filme de longa
metragem colorido da História do Cinema Brasileiro.
Tecnologia de difícil assimilação, registrando-se apenas as
experiências de Benedetti nos anos 20 e 30, aparentemente
calcadas no uso de filtros, a sequência do sonho de
loào Ninguém, e o uso dos negativos Dufaycolor e Kodachrome
em curtas do final dos anos 30 e início dos anos 40, a cor só se
generalizaria no Brasil no final dos anos 60, quando os
laboratórios nacionais importaram os equipamentos
adequados.
Um novo cinema
Os primeiros vinte e cinco anos de cinema sonoro no Brasil
praticamente restringiram a produção ficcional ao eixo Rio-
São Paulo. As demais regiões do país, em especial o Nordeste,
só voltariam à cena cinematográfica no final dos anos 50
impulsionadas por uma paulatina modificação dos parâmetros
artísticos de realização. Toda uma nova dramaturgia seria
laboriosamente construída, a partir da constatação da
existência de um tom falso, artificial, comprometido,
impregnando a maioria das antigas produções, mesmo as mais
bem intencionadas. A representação do cotidiano se dava
através de um desempenho pesadamente teatral, de diálogos
anti-coloquiais e até de uma certa empostação lusitana, sem
falar no enquadramento dos enredos em velhas estruturas
romanescas. Salvo ern momentos circunstanciais das
chanchadas, não havia grande correspondência entre as
personagens apresentadas e o homem real a que. em princípio,
faziam referência. A busca por esse ser autêntico, seja para
expor suas contradições, seja para enaitecê lo em sua
coragem, seja ainda para criticar-lhe as limitações.
impulsionado-o para uma tomada de consciência e para um
enfrentamento dos problemas, constituiria a força motriz dos
novos tempos e de um novo cinema.
As origens remotas desse movimento, que viria a ganhar a
denominação de Cinema Novo, se confundem com as atividades
dos chamados cineastas independentes da década de 50. Foi em
filmes como Rio, 40 Graus, de Nelson Pereira dos Santos, e
O Grande Momento, de Roberto Santos, que se começou a
investigar diferentemente a realidade brasileira e a desenvolver
métodos alternativos e baratos de produção. O frescor, a
espontaneidade e a cumplicidade demonstrados frente aos
assuntos abordados destoavam das fórmulas até então
praticadas, As quatro estórias de um domingo de verão carioca,
entremeadas na realização de Nelson, revelavam a violência das
relações sociais, com destaque e ênfase para o ponto de vista da
favela, A angústia e a tristeza que acompanham o dia do
casamento de dois jovens paulistanos, acossados por pequenos
obstáculos que ameaçam o evento, evidencia a visão lírica e ao
mesmo tempo cruel de Roberto, que radiografa um microcosmo
ressaltando a falta de expectativas e os compromissos velados
dos envolvidos.
Na passagem para a década seguinte, com o advento de um novo
surto de produção nordestina (ou filmada na região).
delinearam-se mais nitidamente alguns elementos formadores
do movimento. Em particular a crítica social e política mais
explícita, expressa principalmente em filmes do chamado ciclo
baiano. Ainda concebidos de forma tradicional. Redenção. A
Grande Feira, Bahia de Todos os Santos, O Pagador de Promessas e
Barravento apresentavam temas e posicionamentos cada vez
mais engajados. Em um ou outro sentido, cada um deies
procurava questionar as instituições arraigadas, quer no campo
comportamental, quer no campo da cidadania. Efetivava-se
assim uma luta contra a alienação do povo e estimulava se a
sua tomada de consciência enquanto ser político. O
enquadramento destas propostas, inclusive, se tornaria o divisor
de águas entre os que prosseguiriam em uma linha dita mais
conservadora, buscando apelar à boa consciência do público,
através de uma manipulação emocional da narrativa -
O Pagador de Promessas, de Anselmo Duarte - ,e aqueles que se
lançariam à uma crítica da postura passiva do espectador.
implodindo alguns dos cânones do "bom" filme - o Barravento,
de Glauber Rocha.
Esta visão mais revolucionária ganhou força e impulso
definitivos quando a realidade se impôs de uma forma quase
bruta aos filmes. Não foi por acaso que o movimento se instituiu
a partir do impacto de dois documentários de curta metragem,
embora esse processo adentrasse a ficção com igual poder,
Arraial do Cabo, rodado por Mário Carneiro e Paulo Cezar
Saraceni em 1959, e Aruanda, rodado por Linduarte Noronha em
1960, traziam a exploração e o atraso encarnados nos corpos,
casas e paisagens. A fotografia de textura agressiva e desigual e
a montagem irregular, quase aleatória, como que representavam
a verdadeira natureza das comunidades retratadas,
desfiguradas em sua secular pobreza. Este uso do documentário
como instrumento de investigação e de denúncia prosseguiria,
indicando ainda soluções estilísticas no que respeita a uma
maior proximidade do objeto enfocado, a uma aceitação de
texturas fotográficas mais agressivas e a uma descoberta e
aceitação da expressividade do homem comum brasileiro
Esta passagem se evidencia com clareza por voiia de 1962,
quando foram lançados Cinco Vezes Favela, Os Cafajestes e
Porto das Caixas. Se Cinco Vezes Favela, com episódios dirigidos
 I
por Carlos Diegues, Leon Hirszman. Marcos Farias, Miguel
Borges e Joaquim Pedro deAndrade, fixava em definitivo o morro
como cenário privilegiado de discussão das desigualdades
sociais, Os Cafajestes, de Ruy Guerra, soltava de vez a câmaYa e
procurava criar um ritmo descontínuo, assumidamente lento,
provocando como que um distanciamento para a fruição do
espetáculo. Mesmo a famosa cena do nu frontal de Norma
Bengell mais torturava do que satisfazia eventuais desejos
recônditos. 0 incómodo realçava a crueldade e o vazio do
comportamento burguês. Representativo dos novos tempos e da
revolução comportamental em curso, Porto das Caixas, de
Saraceni, exibia nessa linha uma insubordinação exemplar,
vivenciada pela protagonista. Investia-se contra a opressão
masculina, do casamento, da pobreza, da mentalidade
conservadora, do mundo rural, enfim, de todos os fatores
considerados de atraso à uma efetiva libertação individual e
social. Sendo um cinema feito em grande parte por jovens, o
Cinema Novo encaminhou-se rapidamente para a contestação
dos valores estabelecidos.
G exame do atraso configurou a maturidade do movimento,
í-.carr.aca em quatro títulos ligados ao universo rural. Este
aspect porem, não era o único elemento em comum. A crítica
i z.c-.a;ãc das c asse populares, a presença do processo de
ert zação e a rrupção da violência como marca
âceramame do prccessocivilizatório brasileiro também
si'" as ob ras. Além disso, estes filmes distinguiram-se
so orevjúm pd & eriraorcinária maestria artística na criação e
md-j<rão de seus enrrechos ficcionais A maioridade chegou
com Os Fuzis, Vidas Secas, Deus e o Diabo na Terra do Sol e
A Hora e a Vez de Augusto Macraga. O primeiro e o último.
dirigidos respectivamente por Nelson Pereira dos Santos e por
Roberto Santos, priorizavam o questionamento individual da
opressão e encaminham suas estórias para uma trágica
redençào, talvez evidenciando um nível oculto e ainda
insuperado de condução do processo histórico nacional. Os
outros dois. realizados respectivamente por Ruy Guerra e
Glauber Rocha, eram mais diretos em explicitar o problema
agrário como a raiz da conflagração interna que acompanhou o
Má ia iflngo do século Ao harmonizar violência temática e
itolénoa estética, dão conta de todo um universo cultural que
: ma e deforma o hornem do campo.
As consequências naturais deste quadro básico - fome,
ar.alrabetismo. misticismo, migração, violência urbana -
começaram a ser examinadas em obras ficcionais como
A Grande Cidade, de Carlos Diegues, e especialmente em
documentários como Maioria Absoluta. Viramundo e
Opinião Pública. Realizando um cinema de enfrentamento da
realidade, documentaristas eventuais ou criadores
compromissados com a linguagem não-ficcional como Leon
Hirszman, Geraldo Sarno e Vladimir Carvalho tentam captar as
contradições presentes nos próprios discursos, de oprimidos e
opressores. O recurso a técnicas do cinema direto europeu,
introduzidas a partir de Garrincha Alegria do Povo, de Joaquim
Pedro de Andrade, permite uma sintonia estilística com o
restante do movimento. Contudo, com a mudança do quadro
político, a partir do golpe de estado de 1964, e principalmente
com o endurecimento do regime militar a partir da decretação
do Ato Institucional n° 5, o exame dessas questões vai
desaparecendo. Tentativas esporádicas pds-1968, como
O País de São Saruè, de Carvalho, amargaram longuíssimas
proibições pela censura.
O próprio golpe já significara um deslocamento sensível do
núcleo temático ficcional. Ao universo rural se sobrepôs não só
a paisagem urbana. A personagem do intelectual, quase sempre
r
expressa através da figura do jornalista, ganhou a linha de frente
incorporando a perplexidade diante dos novos fatos políticos e
o conflito ético entre calar-se e lutar contra a nova opressão.
Filmes como O Desafio,de Paulo Cezar Saraceni, Terra em Transe,
de Glauber Rocha, e Vida Provisória, de Maurício Gomes Leite,
dramatizavam o choque, investigavam os porquês e se
interrogavam sobre o futuro sombrio que se avizinhava.
Mostravam-se particularmente agressivos em sua composição
audiovisual, com deslocamentos constantes da câmara,
fotografia "barroca”, trilha sonora incisiva e redundante e
interpretações não realistas. A descontinuidade narrativa
atordoante de Terra em Transe e o sufocamento existencial das
personagens deVida Provisória apontavam para o surgimento
de limites. Uma geração inteira de artistas e intelectuais se
questionava através dos alter-egos criados pelos cineastas e não
encontrava mais soluções.
Os próprios membros do Cinema Novo também se perguntavam
sobre a eficácia política de seu projeto cinematográfico. Havia
um descompasso entre a missão de descolonizar o público e o
acesso a este mesmo público. Com a pequena bilheteria da
maioria das produções do movimento, o discurso reformista caía
no vazio. Desde o início houve projetos de caráter mais pessoal.
mais propensos a cair no gòsto popular, como A Falecida, de Leon
Hirszman, ou O Padre ea Moça, de Joaquim Pedro deAndrade,
mas sempre estiveram associados ao espírito de contestação do
grupo. Uma virada buscando maior comunicação com as
platéias foi ensaiada a partir de Garota de Ipanema, de Hirszman.
Mais uma vez o recurso à música e à comédia, calcadas aqui no
cotidiano da classe média carioca, vinham em socorro da
necessidade de ocupação do mercado. Garota não era
exatamente a resposta certa e os desdobramentos políticos logo
cerceariam outras tentativas cinemanovistas nesse sentido,
como a vertente comport amental representada por títulos como
Fome de Amor e Todas as Mulheres do Mundo, nos quais
despontava a musa Leila Diniz.
Contudo, houve tempo para uma experiência singular, que
mesmo mutilada pela censura, alcançou quase três milhões de
espectadores. Macunaima. de Joaquim Pedro deAndrade. O lidar
com a cultura brasileira sem preconceitos era a chave do seu
sucesso. Ao incorporar elementos populares, incluindo aí
elementos da até então mal vista chanchada, a cor e um leve
clima de iconoclastia pop. com referências diretas à ditadura
militar, o filme conseguiu forjar um painel sincero e atraente
do ethos melancólico e proto-anarquista nacional. Alguns
poucos títulos perconeram a mesma senda, como Quando o
Carnaval Chegar, de Carlos Diegues, inspirado em Alô, Alô.
Carnaval, maso panorama de produção estava se transformando
rapidamente, com a presença cada mais insinuante do Estado.
A resposta dos cinemanovistas ao clima de violência e
cerceamento foi um cinema altamente alegórico, as vezes de
difícil decodificação, recorrendo-se muitas vezes a episódios
remotos, como a experiência colonial do alemão Hans Staden,
retratada no bem-sucedido Como Era Gostoso Meu Francês, ou a
transfigurações um tanto esquemáticas, caso do conto O
Alienista, de Machado de Assis, também recriado por Nelson
Pereira dos Santos em Azyllo Muito Louco.
O conceito de antropofagia que sustentava a maior parte destas
experiências tinha uma utilização bastante personalizada.
Quase sempre significava inverter ou desmontar os discursos
oficiais, incluindo aí a história e a própria linguagem do cinema
comercial dominante, isto é, o americano. As vezes a apropriação
era tão sutil que o produto final passava por obra comum e até
mesmo oficialesca. Pelo menos uma proposta nesse sentido foi
bem sucedida, representando um marco histórico e artístico.
 <bt
loveiil Guarda e para a nascente
n raia -se de 0' Inconfidentes de
1969 / 1989
T
loaqmm Pedro de Andrade, que
fazendo eco à diretriz do gm
militar de apoio a projeto >
de fundo histórico, reconstitui o
episódio da Inconfidência Mineira
-- -

Erotismo e
pornochanchada. Mesmo um
cinema propriamente trash. que
encontra exemplares esparsos nas
décadas anteriores, ganha inusitado
folego. explorando com mais
confrontando-o em seus princípios
com a situação reinante á época Mercado assiduidade o western e n terror
Neste campo, inclusive, propicia o
A de realização do filme As
comemorações do sesquicentenãrio
surgimento de um singular e
extraordinário cineasta, lose Mojica
de proclamação da independência Marins, criador da personagem Ze
uo país forneceram cenas do Caixão, lançada nos clássicos
que se incorporaram ao filme Esta Noite Encarnarei no Teu Cadrii er
tomo contundente critica ao e A Meia-Noite Lenirei Sua Alma. O
desvirtuamento dos ideais de cinema da época comporia ainda
uma nação livre e democrática. realizadores comerciais de certo
Ironicamenteos donos do poder não peso como Carlos Hugo Christensen
só financiaram a produção, como a e inúmeras promessas como
liberaram com recomendação para Fernando Coni Campos. Olney São
exibição em escolas e centros Paulo e Mário Fiorani. que tendo ou
comunitários. não evoluído em suas carreiras.
representaram alternativas
Praticou-se ainda nos anos 60 um temáticas e estilísticas distintas do
outro tipo de antropofagia. padrão que se instaurou. Em tudo e
entendida agora como incorporação por tudo estabeleceu-se um marco
e não como destruição ou crítica de histórico ainda insuperável.
elementos culturais externos. EuTeAmo
Mesmo dentro do Cinema Novo Direção de Arnaldo labor
houve filmes, corno Brasil Ano 2000. Marginais, oficiais e bacanais
1980
de Walter lima Itinior. que
Arquivo Funarte A pujança demonstrada na década
flertaram abertamente de 60 permaneceria
turn 0 :Vdí'ê'níõ cis intocada até pelo menos
dc massas em meados dos anos
'ua roupagem pop. 80. quando o modelo
difundida pelo país v i engendrado pelos
prmcipalmente através r I
cine m a n o v i s t a s e
d e uma nascente
!
, i consolidado pelos
indústria cultural i militares começou
i televisão, fotonovela.
a se r cor roido
quadrinhos, rock'n'roll'. pela h ipe ri n fiação
1st a variação do económica e pelas
tropicalísmo. porém. criticas ao apoio estatal
encontraria terreiro Contudo, em que
muís lèrnl junto à pese o crescimento
geração que faria a quantitativo da
critica da proposta produção, a significativa
cine mano vista, os ocupação do mercado,
chamados marginais. ScT-s.-é,
,
as gigantescas
Por outro lado. a influência do Cinema Novo sobre o conjunto bilheterias alcançadas e os inúmeros prémios internacionais
do cinema brasileiro praticado no período não foi conquistados, o período evidencia não uma continuidade
negligenciável e se mesclaria à assimilação continua de gêneros estilística ou de qualquer outra natureza, mas uma
e maneirismos estilísticos estrangeiros. Isto transparece mais fragmentação e uma compartintentção em propostas pouco
diretamente no cinema policial da época Ao lado de um vigor
confluentes entre si. Se há um elemento comum à maioria, este
narrativo incotnum. desloca-se o ponto de vista das narrativas elemento ceriamenie é o erotismo em suas mais variadas
para o lado suspostamente mau, o do bandido. A partir do manifestações, da nudez pura e simples ao sexo explicito Isto
seminal Assalto ao Trem Paeador, de Roberto Farias, desenvolve-
não significa ausência de temáticas atinentes ao momento
se uma linhagem que vai de Mineirinho Vivo ou Morto, de Aurélio Continuam as críticas mais ou menos veladas á ditadura, assim
leixeira. a l úcio Etário. Passageiro da Agonia e desemboca no..
como a discussão sobre o colonialismo cultural, a exaltação das
clássico Pixote. a Lei do Mats Eraco. ambos de Flecror Babenco.
minorias segregadas, em particular negros e índios, e a crónica
\ produção do período • quase quatrocentos longas metragens - comportanienta). Porém, a maioria desses tópicos são abordados
foi tão ampla e diversificada que comportou desde chanchadas principalmente por cineastas egressos do Cinema Novo.
eptgónicas Mulheres. Cheguei'. Os Apavorados) à uma nova
A falta de uma unidade maior para um período razoavelmente
comédia <ie costumes Toda Donzela Tem um Pui Que F. uma Fera,
extenso nn tempo em geral indica uma fase de transição ou uma
b Amorosas Elementos de um género dispersavam -se em novos
reordenação de conteúdos ainda não detectada Com a
conteúdos e tornui- t aso da jovialidade e do leve erotismo
superação do compromisso reformista original nos as
i .'i.itx h.idesi os transpostos pura o ciclo de filmes dedicados a
orientações se impuseram. Realizando uma crítica política

íb
'
profunda dos postulados estéticos e conceituais do movimento,
alguns de seus membros manifestaram-se à favor de um cinema
autenticamente popular. Buscavam uma representação da
cultura popular em seus próprios termos. reconhecendo«que
seus conteúdos e formas possuíam uma dinâmica própria, que
em si seria uma resposta imediata às contradições da sociedade.
Inventariá-las e perpetuá-las surgiria como uma maneira válida
de dar voz e imagem aos eternos excluídos. Filmes como Amuleto
de Ogum, de Nelson Pereira dos Santos, e Samba da Criação do
Mundo, de Vera Figueiredo, integrariam essa proposta de uma
pesquisa das raízes culturais do povo brasileiro. Associada a esta
postura estaria a idéia de uma simplificação das narrativas
visando uma maior penetração do filme brasileiro junto ao
público, o que efetivamente aconteceu.
O apoio em uma base cultural já existente, por outro lado,
ganharia também uma formulação oficial, proposta pelos
governos militares como política de Financiamento da produção
cinematográfica. Adaptações de fatos históricos relevantes para
a nacionalidade e de obra literárias consagradas pela crítica
difundiriam os valores da cultura brasileira e participariam do
processo de desenvolvimento do país. No primeiro grupo
colocaram - se filmes como Independência ou Morte, Batalha dos
Guararapes e O Caçador de Esmeraldas. Com a exceção do já citado
Os Ir.conFidemes, nenhuma obra destacou-se por uma visão
inovadora dos fatos retratados ou fugiu à uma narrativa
cantar lona] No segundo grupo, ao contrário, aproveitou-se as
?ar:!:dades e a liberade de escolha do título literário para
\ÿ-.cular através de vigorosas transposições um retrato da crise
deconsciência vivida naquele momento obscurantista. Textos
como São Bernardo, de Graciliano Ramos, levado às telas por
Leon Hirszman, Os Condenados, de Oswald de Andrade, filmado
por Zelito Viana, eAmar Verbo Intransitivo, de Mário de Andrade,
transposto como título de Lição de Amor por Eduardo Escotel,
propiciaram um exame das origens remotas da elites brasileiras
e sua mentalidade autoritária.
Estes filmes também procuravam inquietar o espectador pela
•nampulação mais ou menos acentuada do andamento da
—
"srra-tiva. O uso reiterado de tempos "mortos” ditou o ritmo da
i.cr.a das obras adaptadas e preservou os compromissos
i~.’s::cos e ideológicos da maioria dos cineastas. Curiosamente
ambên agradou ao governo militar, que logo disponibilizaria
:s recursos necessários ao alavancamento da produtora e
u-stribuídora do Estado Brasileiro, a Embrafilme. Permanecia.
porém, o questionamento do acesso ao grande público, ou, em
outras palavras, também parcialmente encampadas pelo
governo, a conquista do mercado interno pelo filme nacional. A
defesa desta vertente se fez pautada no exame dos elementos
que agradariam ao público da época, sobressaindo de imediato
o uso do erotismo, notabilizado pelo crescente sucesso das
chamadas pornochanchadas, comédias de costumes em torno
do comportamento sexual das classe médias. Evidentemente.
para os realizadores oriundos do Cinema Novo, a apropriação
deveria ganhar matizes um pouco mais substanciais, o que foi
feito de forma clarividente por Arnaldo Jabor.
Ao recriar com rara competência o universo do teatrólogo Nelson
Rodrigues, este cineasta não só fixou uma elegante e bem
sucedida saída para o dilema, como foi mais além ao rearrumar
os termos do velho problema. Como não se tratava mais de mudar
o Brasil, era preciso conhecê-lo despido de suas máscaras. Ao
revelar a mesquinhez e a hipocrisia dos valores estabelecidos,
punha-se a nu a impossibilidade de qualquer compromisso
social mais profundo. Ao diluir o pano de fundo histórico dos
enredos apresentados, fazendo-os desa parecer quase que por
completo pela atualização efetuada, labor troca a sociedade pelo
indivíduo, a política pela moral. O compromisso passa a se«
interior e imediato, como se verifica em Toda Nudez Serri'
Castigada e OCasamento. Porém, a aguda percepçâo do problema
leva-o à uma exarcebação dessa proposta, reduzindo o espaço
da representação e o número de personagens envolvidos ao
mínimo possível, até chegar ao microcosmo da casa e à presença
de um único casal que se dilaceraria mutuamente em busca de
uma metafórica identidade comum no emblemático Eu Sei Que
Vou Te Amar.
Uma terra arrasada cultural e literalmente; uma destruição
paulatina de um projeto social à medida que novas gerações
entram em cena e ignoram ou reiventam as regras do jogo; e um
desencanto radical com relação ao sucesso de um projeto
político de cunho nacionalista para o país: estas seriam as
marcas dos filmes que persistem no engajamento,
problematizando os dilemas da sociedade brasileira. Por
exemplo, Iracema, uma Transa Amazônica. de Jorge Bodanski e
Orlando Senna, em que a aculturação e o desvirtuamento de
valores seculares se faz par e passo à destruição física da floresta
amazônica, entregue à cobiça do capital interno e externo.
Por exemplo, Bye Bye Brasil, de Carlos Diegues, em que a
caravana Rolidei percorre um interior em rápida mutação,
trocando valores e objetos de longa tradição pela sedução
ilusória da modernidade, agora ratificada pela referência
constante a um padrão externo, como Hollywood... Por exemplo,
Eles Nâo Usam Black-Tie, de Leon Hirszman, em que a
mobilização para a sustentação de uma greve confronta a
geração mais antiga, coletivamente solidária, e a mais nova,
individualista e pragmática. Mesmo a condenação deste pólo
não invalida a premonitória percepçâo da sua existência.
E por exemplo, A Idade da Terra, de Glauber Rocha, em que
personagens-chichês reiteram à exaustão o inútil esforço de se
comunicar com o outro, base para a transformação de países
pobres e periféricos como o Brasil.
A crise, portanto, já transcendeu os limites estritos da ação
política do cineasta, do cidadão, da sociedade concebida como
um corpo uno em busca da realização de objetivos comuns. Já
transcendeu até mesmo a necessária derrocada do regime
militar. Os extraordinários Memórias do Cárcere, de Nelson
Pereira dos Santos, e Cabra Marcado para Morrer, de Eduardo
Cou tinho, surgiram antes mesmo do retomo oficial dos generais
à caserna, ainda que o regime já estivesse moribundo. Exorcizam
fantasmas, reafirmam crenças em valores específicos e
sobretudo promovem o necessário rito de passagem a um outro
tempo, embora não a uma nova sociedade, como deixa claro o
último. O cinema brasileiro voltaria algumas vezes aos anos de
chumbo, quase sempre por mãos jovens e com indisfarçavel
sabor de reavaliação histórica, oportunidade para contato com
um tempo remoto ou pelo menos não vivido direta e plenamente.
Talvez isto indique efetivamente que não era um período de
transição e sim de redefinição radical dos termos do problema,
porque a questão chamada Brasil mudara radicalmente de face.
Dito desta forma, parece que todo um ciclo se encerrara, mas na
verdade o período aqui examinado se iniciaria pela assunção
dessas impossibilidades e pela negação de todo o legado anterior,
fosse ele qual fosse. O chamado cinema marginal, também
conhecido por denominações como underground ou udigrudi,
se insurgiu contra o comprometimento quase messiânico do
Cinema Novo, propondo em seu lugar simplesmente a lúdica
carnavalização de quaisquer conteúdos culturais.
transformados em meras referências internas da trama
cinematográfica. O filme se fecha sobre si mesmo. A aparente
alienação da maioria dos títulos do "movimento" esconde em
realidade uma intensa garimpagem de ícones culturais
Ii\ remente associados, os quais por
sua vez apontam para a aguda 1990 / 1999 Cataguases. palro da realização
de O Anunciador ou of tornem
das Tormentas. de Paulo Bastos
percepçào das linguagens da
c ultura de massas e sua presença Martin"!, l-star distante dos grandes
nova no pais. O cinema marginal não
antecipa, v ive as transformações da
Crise e centros produtores deixara de ser
fundamental. Por fim agtegavn M
sociedade brasileira no momento
mesmo de sua ocorrência. Com isso
capacita -se para uma leitura
Retomada sexo. histeria de interpretação.
escatologias várias e inúmeros
outros fatores de agressão.
despreendida de quaisquer compondo uma barreira quase
elementos que lhe chegassem ao intrasponivel para os não iniciados.
conhecimento. O espasmo esgota-se em pouco
tempo, por volta de 197-}.
Foi um momento fugaz da criação
cinematográfica brasileira norteada Algumas caractertsticas da postura
inicialmente pelo desejo de fugir marginal se metamorfosearam em
aos cânones e pelas limitações São Paulo. A partir do precursor
advindas do contexto do AI - 5. Foi A Margem, de Ozualdo Candeias.
lambem uma atitude frente ao ato de esse cinema mais libertário foi
liltnar. descompromissando-se o paulatinamente se encaminhando
cineasta da obrigação de produzir para a discussão da sexualidade e
uma mensagem coerente e definida. suas repressões. Filmes como
O filme valia por si mesmo, por sua O Pornógrafo. de loào Callegaro.
capacidade de suscitar prazer, Gamai. Delírio do Se.ro. de loào
alegria, desejo e outros sentimentos. Batista de Andrade, Audácia íPiiria
Dai a liberdade de organização dos dos Desejos/, de Carlos Heichenbach
materiais filmados ou recolhidos e Antonio Lima. e Fantasticon. os
para montagem, redundando Deuses do Sexo. de I. Marreco e
em narrativas extrema men te Walter Salles dirigindo Teresa Trainman, entre outros
fragmentárias ou mesmo em atui-
nár fát ívâs. êo md // filer 2* Mundo.
de josé .'.gnppiiLO
______ Central do Brasil
1998
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• *-4
— -fe
aproveitavam-se do esquema de
financiamento cia chamada Boca
do
mescla v a m
Lixo e

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GsHHÉHSgj ’W.. I experimentalismos
<ÿ L "ÿ •' * e preocupações
I político-
I existenciais com
um ainda discreto
.í. i '" . i / ■

I 'V
.... . i : ,.. I c erotismo
I necessário a
I comercialização. A
I associação
e sim na emocio¬ I frutificou na
nal idade. Isto I esteira das
ex pI ica a I frustações sexuais
t t u d e I do grande público
p rovoca11 va . | e de uma reserva
resumida na idéta ■ de mercado
tio deboche, do ■ sempre crescente.
achincalhe, da I dando origem a um
a va c a I h a ç à o . I ciclo de produção
p r o m ovendo-s e 4*
M autónomo e de
umdesmantelamentocompleto das expectativas com relação a grande fôlego, desdobrando-se no início dos anos 80 na voga do
linearidade, rigotde exposição, lógica de conteúdo e outros sexo explícito. O utilitarismo da maioria dos títulos não impediu
parâmetros formais rígidos a apropriação criativa do esquema por um Mojica Marins ou
um Walter Hugo Khouri. sem falarem Reichenbach.quecontruiu
Os marginais, que na verdade nunca formaram um grupo coeso. uma das mais radicais e brilhantes carreiras do período com
desdenhavam inclusive a perspectiva de inserção das obfàs no filmes como Lillian M Relatório Confidenciai. Império do Desejo
■

mercado convencional. Com isso reforçaram a criação como um
.tio em si. independente de pressões externas. Aproveitava-se
qualquer condição para o realização de um filme, pois o que
importava era o exercício cinematográfico. Compreende-se
assim a mitológica produtividade da produtora Belair.
comandada por Sganzerla e lúlio Bressane. e responsável pela
rcaii/.açào de sete longas metragens em pouco mais de seis meses
de existência l)a mesma forma explica-se o surgimento cie
nlmt-s marginais em diferentes pontos do pais. como em
e Amor Palavra Prostituta.
Diferentemente de São Paulo, onde o erotismo casou-se á
perfeição com o drama, incluindo ate uma adaptação do clássico
Anjo Azul. de losefVon Sternberg, transformado em Anjo Loiro
por Alfredo Sterheim e com Vera Fischer no lugar dc Marlene
Dietrich, no Rio de Janeiroa voga estreitou laços com a tradição
cómica da chanchada, ciando origem a pornochanchada
F.sboçada em títulos como ( h Paqueras < ) Doce Importe do .v.i o e
A Infidelidade ao Alcance de Todos, assumiria a condição de gênero
a partir do estrondoso sucesso de A ViúvaVirgem e Ainda Agarro
EstaVizinha, ambos de Pedro Carlos Rovai. Assumindo parte do
descompromisso e do deboche instaurados pelo cinema
marginal, os pomochanchadeiros acabam investindo de forma
conservadora na discussão do choque de gerações e do
comportamento sexual reprimido do brasileiro, tema, por
exemplo, de Lua de Mel & Amendoim, de Rovai e Fernando de
Barros. Chegaram mesmo a brincar com as referências
cinematográficas, incursionando de forma metalingufstica pela
realização de uma pronochanchada em Luz. Cama, Ação!, de
Cláudio McDowell, e eroticizando parodicamente a cândida
estória de Branca de Neve e os sete anões, em Histórias que Nossas
BabásNão Contavam, de Osvaldo Oliveira.
Foi este cinema erótico, praticado principalmente nestas duas
cidades, que proporcionou o impressionante aumento de
produção no período. Mais da metade dos cerca de mil títulos
delonga metragem realizados entre 1970.e 1985 estavam ligados
ao género em suas várias vertentes. Tamanho sucesso não seria
ignorado por aqueles que almejavam a conquista do mercado. A
apropriação de certos elementos tornou-se inevitável, dando
origem ao chamado pomô-chic. Explorando a nudez e a temática
sexual de forma mais orgânica e contextuai izada, filmes como
Dona Flor e Seus Dois Maridos, de Bruno Barreto, A Dama do
Lotação, de Neville D'Almeida e Eu Te Amo, de Arnaldo Jabor,
levaram multidões aos cinemas. Na mesma época, consolidou-
se também um outro tipo de cinema comercial, igualmente bem
sucedido e voltado inteiramente para a infância e a juventude.
De um lado havia a voga sertaneja, que redundou em títulos
como Menino da Porteira, de Jeremias Moreira Filho, e de outro
ospropriamenteinfantis. FlávioMigliaccio criou a personagem
do Tio Maneco, explorada em três produções, e o grupo
televisivo Os Trapalhões engrenou nas telas, apresentando pelo
menos um título por ano até o início da década de 90.
Este quadro se completaria com as produções da Embrafilme.
Embora fosse uma empresa estatal, havia poucas restrições
quanto ao tipo ou gênero a ser financiado. Além dos recursos.
esu uberdade foi fundamental para a composição de um amplo
nd de produção Sobretudo significou a continuação da
carreira para a maioria dos cineastas egressos dos anos 60. Assim.
.rr conjunto de filmes de alta qualidade acabou sendo
desenvolvido, com alguma abertura para certa poesia, como em
Cabaré Mineiro, de Carlos Alberto Prates Correia. Títulos como
inocência. Sargento Cetúlio, Chuvas de Verão, A Lira do Delírio,
Mar de Rosas e Nunca Fomos Tão Felizes, entre outros,
representaram ainda um sincero esforço em dialogar com a falta
de perspectivas para o país. sem escapar totalmente da
influência temática da crise de consciência. Duas das mais
significativas produções da época, ao contrário, mergulharam
inteiramente nos termos do problema, resultando em
experiências altamente singulares. O desesperançado A Queda,
de Ruy Guerra e Nelson Xavier, enfrentou a questão com um tour
de force visual raras vezes visto. E o utópico Ladrões de Cinema,
de Fernando Coni Campos, apresentou com rara felicidade o
desejo de ioda uma geração: que o povo tomasse o cinema em
suas próprias mãos e tivesse o direito de expor sua visão acerca
do pais, da cidadania e de sua história.
Novos rumos
Como a utopia não se realizou, uma outra crise se instaurou. Era
de natureza económica principalmente, mas também de valores
e de perspectivas. A esperada ascensão do individualismo se
consumou e uma nova geração de cineastas rejeitou
completamente o legado anterior, de resto já desfigurado no
tempo. Restaram a aceitação do devir inexorável da história eV
busca solitária pela afirmação do eu. As narrativas ora se
apresentavam de forma niilista, como o estilizado Cidade Oculta,
de Chico Botelho, ora de forma pragmática, corrmo cómico
Marvada Carne, de André Klotzel. Purgar o sofrimento numa
longa via-crucis parecia ser a estrutura mais adequada ao
momento, experimentada singularmente em Anjos da Noite, de
Wilson Barros. Os filmes tornaram-se mais simples, diretos,
“fáceis", procurando não mais lutar contra o padrão dominante,
como O Homem da Capa Preta, de Sérgio Rezende, e A Hora da
Estrela, de Suzana Amaral. Rarearam as tentativas mais
rebuscadas, caso de Ópera do Malandro, de Ruy Guerra, e de
A Dama do Cine Shanghai, de Guilherme de Almeida Prado, que
enveredaram pelo labirinto das referências histórico-culturais.
A exceção ficaria por conta de Júlio Bressane, que seguiria
experimentando e alcançando resultados significativos, como
em Os Sermões.
Por vezes certas safras de curtas metragens forma julgadas mais
interessantes do que a produção de grande formato.
Incontestavelmente, o curta se afirmou nos anos 80 e adicionou
leveza, humor e rapidez na apresentação dos problemas. Foi
também responsável por certa desideologizaçâo dos temas mais
"sérios”, incluindo aí a ditadura militar, embora não descuidasse
da constatação de que pouca coisa havia mudado no triste
panorama social brasileiro, o que gerou o célebre Ilha das Flores,
de Jorge Furtado. A mesma leveza perpassava alternativas ao já
padronizado cinema infantil como O Cavalinho Azul, de
Eduardo Escorei, e A Dança dos Bonecos, de Helvécio Ratton.
Umas poucas tentativas de desanuviar o clima prosseguiram
com os desenhos de Maurício de Sousa e o "terrir" de Ivan
Cardoso, uma original reciclagem da chanchada com o filme B
americano em clima trash. Os dois primeiros exemplares do
gênero, O Segredo da Múmia e As Sete Vampiros, mobilizaram
milhões de espectadores, mas o terceiro, O Escorpião Escarlate.
vivenciou o momento da paralização quase completa das
atividades cinematográficas no país, no final da década.
O fim doeido já vinha sendo preparado. A pornochanchada não
conseguiu emplacar os anos 80 e seu similar paulistano, mesmo
transformado em filme de sexo explícito, também não emplacou
o meio .da década. A Boca do Lixo entrou em definitiva
decadência. O número de títulos financiados pela Embrafilme
igualmente dedinou conforme o período avançava. Da mesma
forma, produtos lidos como de bilheteria certa, como as
produções estreladas pela apresentadora Xuxa, decepcionaram
sintomaticamente. Não se esperava, entretanto, a política de
terra arrasada instaurada na década seguinte, com a extinção
da estatal e de quase todos os mecanismos e leis que sustentavam
o cinema brasileiro. Neste quadro sombrio, até mesmo os filmes
dos Trapalhões perderam sustentação e desapareceram do
mercado. Não espanta, portanto, a emblemática estória criada
por Mauro Farias e Melanie Dimantas em Não Quero Falar Sobre
Isso Agora, um dos poucos filmes efetivamente realizados
durantes os anos Collor. O enredo acompanhava as peripécias
de um candidato a cineasta que não consegue financiamento
para filmar e por circunstâncias do destino irá se envolver com
o tráfico de drogas e sair do país.
Esta seria, inclusive, umacaracteristica recorrente na produção
mais recente: a idéia de que somos estranhos, quase estrangeiros,
em nosso próprio país. Acessoriamente, apresenta-se também a
constatação de que não podemos mais ignorar a complexa teia
que nos leva a lidar com culturas externas. Isto estaria na própria
raiz da nacionalidade brasileira, conforme retratado em Carlota
Joaquina, Princeza do Brazil, de Carla Camurati. cuja estória é
narrada por um escocês, como um velho conto relativo a terras
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remotas c misteriosas. A mesma sensação pcce ser encontrada
em diversos outros filmes. cc— 2 z-~ = í var s cões. É o caso de
Brincando nos Campos do Senhor zx Hector Babenco, que analisa
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a irreversível aculturação dos ~c:cs e etaforicamente do
próprio Brasil, demonstrar:: ; re< ac...dade do processo,
especialmente quando a imcsanva parte áo exterior. E também,
por exemplo, de 0 Que:-.. :, ce rábio Barreto, onde a
comunidade de descer, der.-es italianos retratada não se
considera brasileira Mas sare-se que tanto italianos quanto
diversas outras etnias contribuíram para a formação do povo
brasileiro. Mais uma vez estana cada a ínvitabilidade do lidar
do documentário, realçando o fato de que tudo é uma questão
de ponto de vista e de linguagem. O recurso à diferentes fontes
de criação também prossegue em Bocage - O Triunfo do Amor. de
Djalma Limongi Batista, em que ópera, pintura, poesia e outras
artes se fundem para a promoção do espetáculo, e O Cineasta da
Selua, de Aurélio Michilles, em que os próprios trabalhos
cinematográficos da personagem biografada interferem na
construção ficcional como um índice de realidade insuperável.

Contudo, para além dos aspectos ressaltados acima, este é um

período ainda em desenvolvimento, esperando-se uma maior
definição dos seus conteúdos e intenções para um futuro mais
com o outro e sua bagagem, cult uraJ.
distante. Tanto o volume - cerca de vinte longas metragens estão
Nenhum outro filme porém apresentou com tanta clareza essa sendo produzidos anualmente -, quanto a diversidade de
sensação de deslocamento, de perda momentânea de propostas impõem prudência nas avaliações. Seria possível
referências e de busca de um sentido para a existência, como enumerar ainda muitos outros títulos significativos: Alma
Terra Estrangeira, de Daníela Thomas e Walter Salles J r. O enredo Corsário, Pequeno Dicionário Amoroso, Miramar, Kenoma, Os
parte justamente do choque social e cultural provocado pelo Matadores, entre muitos outros. O que pode ser dito com muita
período Collor. para literalmente levara personagem central segurança, é que o cinema brasileiro ultrapassou seu centenário
para fora do país como forma de redcscobri-lo pela ausência. A de existência como uma atividade cultural de grande vitalidade
viagem empreendida permanece em aberto, mas propicia um e de larga contribuição para as artes e a história do país. Se não
dos motes para Central do Brasil, dirigido apenas por Salles, está plenamente consolidada como indústria, e isto dificilmente
transferindo-se a peregrinação de volta para o solo pátrio. 0 ocorrerá enquanto persistirem os padrões comerciais vigentes
imenso sucesso do filme como que corroboraria esta tese de uma no mundo atual, adquiriu sabedoria suficiente para
necessidade intrínseca de novos parâmetros para compreender reestruiurar-se a cada contratempo maior. Por isso cineastas
e vtvenciar o país. Daí também a característica de que a maioria maduros e comprometidos com seus sonhos puderam
das produções da década de 90 serem em alguma medida de prosseguir carreira, brindando-nos com exemplos dessa sábia
caráter histórico. Seja lidando com o passado remoto, como em persistência como Conterrâneos Velhos de Guerra, A Terceira
O Judeu, de JomTob Azulay, ou o recente, como em Lamarca, de Margem do Rio, Tudo É Brasil...
Sérgio Rezende, busca-se um reordenamento das peças do
quebra-cabeças.
A suspensão dos mecanismos de apoio à produção durou em
e.'dade pouco tempo, três anos, mas seu impacto pode ser tão
forte porque estava associado ao encerramento de um ciclo,
desfazendo-se toda uma visão de mundo com relação ao país e
seu futuro. As poucas produções realizadas no período, no
entanto, contribuíram não só com a manutenção da chama, como
evidenciaram a necessidade de uma descentralização efetiva
da criação cinematográfica, historicamente restrita ao eixo Rio-
São Paulo. Este aspecto se acentuou com o advento da Lei do
Audiovisual e a instauração de novos pólos regionais de
produção, destacando-se Vitória, Brasília, Fortaleza e Porto
Alegre. Mesmo uma cidade como Recife, que estava alijada há
anos do circuito de criação cinematográfica, apresenta um dos
melhores filmes da década, O Baile Perfumado, de Lírio Ferreira
e Paulo Caídas. Com isso um painel rico e surpreendente se
apresenta aos olhos de um espectador em certo sentido virgem
para um país que permanecia basicamente o mesmo mas podia
se apresentar sob inúmeras novas roupagens. Isto explica o
sucesso da retomada, tanto em termos artísticos quanto de
resposta do público, com vários títulos ultrapassando a barreira
do milhão de espectadores.

A reconquista do público trouxe a segurança necessária para

võos mais arriscados em termos estéticos. Retomou-se o exame
da violência urbana nos notáveis Um Céu de Estrelas, de Tata
Amaral, e Como Nascem os Anjos, de Murilo Salles.
Curiosamente, mesmo nesses trabalhos a presença do elemento
estrangeiro - a perspectiva de uma viagem para os Estados
Unidos e o sequestro de americanos - de alguma maneira
interfere e condiciona as ações das personagens, repisando em
tempos de globalização o inevitável e transformador contato
entre culturas. Explorou-se também a paisagem nordestina de
forma experimental nos instigantes O Sertão das Memórias, de
)osé Araújo, e Crede-mi, de Bia Lessa e Dany Roland, dando
continuidade ao esfacelamento entre as fronteiras da ficção e