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NÍVEIS DE INTERPRETAÇÃO

— UMA NARRATIVA CLÍNICA

Izelinda Garcia de Barros*

RESUMO

A partir de recortes da análise de uma paciente, apresento algumas idéias sobre


níveis de interpretação correlatos a diferentes estratos da mente que se caracterizam
por formas de comunicação e tipos de angústia específicos. Essas hipóteses,
encadeadas pela primeira vez neste texto, formaram-se progressivamente no exercício
de pensar sobre o trabalho analítico diário com crianças, adolescentes e adultos dentro
de amplo espectro de distorções, estancamentos e inibições de desenvolvimento
emocional.

Palavras-chave: Interpretação. Investigação clínica. Desenvolvimento de conceitos.

Neste texto procuro apresentar algumas


idéias sobre níveis de interpretação relacionados
com diferentes estratos da mente que se caracte-
rizam por formas de comunicação e tipos de
angústia específicos.
São de fato hipóteses que, encadeadas
pela primeira vez neste texto, vieram progressiva-
mente tomar corpo ao cogitar sobre meu trabalho
clínico diário com crianças, adolescentes e adul-
tos, dentro do amplo espectro de distorções,
estancamentos e inibições de desenvolvimento
emocional que pontuam uma análise.
O trabalho ora apresentado constitui mo-
desta homenagem ao talento, criatividade, cultura
e integridade científica do colega Fabio Herrmann,
que tão cedo nos deixou.
Os trechos que o baseiam foram extraídos
dos registros clínicos de uma análise que iniciei há
cinco anos.
*
Membro Efetivo e Analista Didata da Há longo tempo, o meu hábito de transcre-
SBPSP. Analista de crianças. ver sessões tem-se mostrado bastante útil sob

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vários aspectos. Assim, creio que esse dos jovens sobrinhos que estudam e tra-
exercício — nomear de modo razoável as balham por perto. Em virtude de sua afeição
vivências da dupla analítica e organizar as por eles, Anita de boa vontade adaptou a
palavras conforme as exigências do pen- rotina doméstica a essa presença.
samento lógico — tenha um efeito sane- Sucinta em sua apresentação, Ani-
ador para a mente do analista após as ta conta que procurou ajuda por estar na
atividades da sessão: desintoxica-o tanto iminência de ruptura de relacionamento
das projeções do paciente como dos resí- amoroso muito importante. Face à insta-
duos do seu próprio metabolismo mental bilidade da relação, a gravidez incipiente
decorrentes da atividade na terapia. era um fator complicador e ela não sabia
Refletir com freqüência sobre os se devia mantê-la. Nas entrevistas se-
eventos de cada dia propicia, ainda, o guintes, porém, ficou claro que Anita
emergir de articulações sutis entre os desejava o filho e buscava forças para
movimentos da sessão e enseja acompa- assumir essa gravidez, mesmo sem o
nhar minúcias da história daquele proces- apoio do companheiro. No entanto, pou-
so analítico em particular. cas semanas depois teve um aborto es-
A narrativa clínica e seus comentá- pontâneo.
rios foram distribuídos em cinco módulos: Naturalmente, ainda se sentia mui-
1) Apresentando Anita to deprimida, aflita e insone.
2) O início da análise Conversamos algumas vezes an-
3) Outro momento tes do contrato da análise e, face à inten-
4) O sonho sidade dos sintomas, concluímos ser ne-
5) Últimas considerações cessário avaliar a indicação de retaguar-
6) Anita se despede da psiquiátrica.
Apoiada nos dados biográficos
1) Apresentando Anita apresentados, concluí que ela se achava
em quadro de depressão reativa aos acon-
Mulher de cerca de quarenta e tecimentos em curso.
cinco anos, aparência agradável, educa- Iniciamos sua análise com quatro
da, gentil e, em geral, muito bem-humorada, sessões por semana, de segunda a quinta-
minha analisanda é profissional de suces- feira.
so que ama seu trabalho. Esportista, leito-
ra incansável, apreciadora das artes e da 2) O início da análise
boa comida, ela compartilha esses praze-
res com amigos e familiares. Quando me via, Anita sempre abria
Não tem filhos e mora só com seus um sorriso de alegre surpresa, que me
animais de estimação, embora sua casa lembrava o “sorriso de reconhecimento”
seja bem movimentada pelo entra-e-sai descrito pelos etologistas.

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Em contraste com a recepção so- está exausta”, ela replicou, concordando:


lar, o clima da sessão era cinzento. Vivên- “Sem fôlego”. E seguiu-se um silêncio
cias dolorosas, que despertavam compai- permeado por agradável sentimento de
xão e simpatia, eram relatadas de modo tranqüilidade. Mas, nas vezes em que
neutro, sem entonação, desvitalizado, tentei continuar a investigação sobre o
como que a advertir sobre uma esperada que tínhamos acabado de viver, a respos-
cisão defensiva entre afeto e pensamento. ta foi enfática: “Chega deste assunto”. E
Certo dia, para minha grande sur- me calava.
presa, o discurso monocórdio evoluiu su- Apresentei acima alguns dados bi-
bitamente para o acesso paroxístico de ográficos de Anita como parte do meu
desespero. A moça chorava, debatia-se interesse em destacar, incrustadas em
no divã, dava violentos socos na própria estruturas neuróticas que permitem o ajus-
cabeça e bradava queixas contra si mes- te funcional do paciente às demandas da
ma e contra mim. sobrevivência, a existência de áreas vi-
Ato contínuo, Anita levanta-se do tais, pouco desenvolvidas, que a meu ver
divã e anuncia que ia embora, já que eu só encontram oportunidade de expressão
nada fazia por ela. e transformação no setting analítico.
Sobressaltada, diante do inespera- No seu ritmo, entretanto, Anita
do da explosão emocional, fiquei paralisa- contribuía para que pudéssemos nos apro-
da, em silêncio, mas lutando para me ximar do entendimento de suas crises,
recuperar e encontrar alguma idéia que através de relatos que fazia em outras
pudesse nos acudir. Percebi com clareza sessões. Tanto o aspecto sonambúlico
que eu procurava me libertar do susto e quanto os rompantes de desespero que eu
desconforto mas não tencionava me livrar presenciava impregnavam o seu cotidia-
de Anita; não queria que ela se fosse… no. Atividade profissional e relações amo-
Diante da urgência da situação e rosas pareciam-lhe acontecimentos nos
da falta de alternativas, simplesmente quais sua participação era escassa. “Vão
pedi-lhe que, por favor, não se fosse acontecendo”, ela dizia.
ainda. E, um pouco mais calma, ela voltou Vez ou outra, em certos fins de
ao divã. semana, descrevia experiências de gran-
Episódios semelhantes acontece- de desespero. Vejamos um fragmento de
ram outras vezes, sempre causando susto sessão desse período.
e desarranjo. Da repetição deles, porém, Anita está de pé na sala de espera,
emergiram alguns padrões que orienta- muito abatida, com a aparência descuida-
vam minhas respostas e abriam algum da, que não é a sua habitual. Quase não
espaço para o diálogo. levanta os olhos quando apareço e, como
Assim, em ocasião semelhante, a se arrastar, entra lentamente no consul-
quando comentei afirmativamente: “Você tório.

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Como sempre, ao abrir a porta da paciente, e encadeou-se, em minha men-


sala de espera, eu estou muito atenta para te, à descrição da angústia de aniquila-
a primeira impressão do encontro. É um mento, corolário de vivências ligadas a
hábito antigo, derivado do trabalho com falhas básicas de introjeção de uma pele
crianças e que aplico a todos os meus psíquica, continente para as partes do self.
analisandos. Valorizo bastante a resposta Considerando esta hipótese, o com-
não-verbal dos pacientes ao impacto da portamento auto-agressivo se esclarece
presença do analista em carne e osso. como recurso defensivo de buscar, atra-
Com freqüência esta observação se acom- vés de estimulações sensoriais, um limite,
panha de flash onírico que fica como uma segunda pele, por assim dizer, capaz
pano de fundo, aguardando sentido. No de trazer algum alívio a experiências ter-
caso, o que vagueia pela minha mente é a roríficas de esvaziamento.
imagem de uma lesma, que, segundo di- Falo, então, que era um terror en-
zem, desfaz-se no sal. contrar-se sozinha em uma emergência
Anita deita- se no divã e diz: “Acho sem ter acesso a nenhum socorro (enten-
que vou desistir”. do que, nestas circunstâncias, pôr em
Complemento então: “Acho que palavras a simples descrição deste estado
vou desistir, não agüento mais, estou corresponde ao nível de interpretação
exausta”. adequado para esta vivência primitiva).
Ela concorda: “Estou exausta”. Anita acalma-se um pouco. Há um
E continua contando que ficou em silêncio e parece-me que ela estava “pro-
casa no fim de semana e foram crescen- cessando” meu comentário.
do na sua cabeça pensamentos sombrios Em tom de voz um pouco mais
sobre o futuro. Coisas que a sufocavam baixo, reclama que as sessões a desesta-
de medo e dor. Pensou em ligar o telefone bilizam. Mas, depois de outra pausa, emen-
para alguém. Mas quem? Falar o quê? da “não são de agora os pensamentos, só
Buscou refúgio na cama, onde, enrolada que não penso” (nesse ponto fica implíci-
nas cobertas, invectivava contra si mes- to que, com a análise, esse mecanismo de
ma em alta voz, a chorar e pedir a morte. cisão está menos eficiente).
À medida que prossegue o relato, o Aqui, uma ponderação se faz ne-
desespero evocado materializa-se sob a cessária ao leitor.
forma de gritos, socos e ataques verbais As condições específicas nas quais
contra si mesma. Exatamente como acon- se dá o encontro analítico favorecem ao
tecera em sessões anteriores. paciente mais fluidez quanto ao curso
À imagem da lesma de jardim (um livre de idéias e vivências corresponden-
molusco desprovido de concha protetora) tes a vários estratos da mente.
evocada no encontro com a paciente, Dentre os atributos inerentes ao
articulou-se então o discurso pungente da trabalho analítico, a disciplina para man-

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ter ativo o binômio atenção flutuante/ angústia de aniquilamento, como já men-


abstinência cria, no analista, um estado cionei acima, indica deficiências primári-
de mente particular, capaz de ampliar a as no processo da introjeção do objeto
capacidade para receber e atribuir signi- continente e demanda um tipo particular
ficado às comunicações do paciente. de interpretação baseada, prevalente-
Nessa função, ele alivia e modifica a mente, em elementos não-verbais que
ansiedade prevalente e oferece um mo- emanam da rêverie do analista.
delo diferente para tratar as emoções: em Acredito que as interferências ver-
lugar de expulsá-las, sonhá-las e bais e não-verbais descritas até aqui per-
transformá-las através do pensamento. tencem a este nível particular de interpre-
As duas pessoas que ocupam os tação, distinto daquele que corresponde
lugares potenciais de paciente e de analis- ao modelo clássico de revelar ao paciente
ta, quando acertam o contrato analítico, o material inconsciente, atualizado na sua
progressivamente constituirão uma dupla relação com o analista.
exclusiva, igual a nenhuma outra, e na Entendo também que, no caso de
qual cada participante é determinado pelo situações agônicas intensas, quando o
outro. próprio analista é sugado pelo turbilhão
O analista interfere de várias ma- emocional do paciente, são testadas, no
neiras no curso dos acontecimentos da seu limite, as condições de sinceridade do
sessão. Acredito que a interpretação vei- analista consigo mesmo e com o seu
cula continência e sentido, atributos dota- trabalho naquele momento.
dos de especificidade própria mas insepa-
ráveis como faces da mesma moeda. 3) Outro momento
A experiência clínica mostra que
diferentes níveis das vivências ativadas Neste item apresento, quase na
no encontro analítico demandam tipos íntegra, o registro de uma sessão que
particulares de interpretação. mostra vários níveis comunicativos da
No caso de Anita, as dificuldades paciente e o trabalho de construir inter-
inerentes à nossa escassa familiaridade pretações que preenchessem suas fun-
somaram-se à irrupção de angústias de ções de continência e simbolização ade-
aniquilamento — as quais não seriam quadas a cada um destes níveis.
esperadas em seu quadro clínico — que, A análise de Anita caminha e al-
impossíveis de serem processadas psiqui- guns personagens começam a se confi-
camente, vieram encontrar alívio na atu- gurar. Aquele que mais vezes aparece
ação motora. em suas crises de desespero é um perso-
Diferentemente das angústias per- nagem de grande valência afetiva no seu
secutórias e depressivas, que se referem mundo interno, é a mãe-que-não-a-ama-
a objetos parciais ou totais já existentes, a e-só-critica. Outro personagem, mais

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apagado, o pai-hipocondríaco-que-só-ca- violência voltar-se contra ela. E, com


çoa, completa a dupla parental. emoção crescente, agride-se com impre-
Personagens queridos também cações, socos na cabeça, e chora deses-
vêm colorindo a trama das sessões: os perada.
sobrinhos, seus animais, a veterinária que A imagem do homem batendo no
cuida deles. São personagens próximos e pequeno cão se repete sem cessar no
replicam-se nos vários círculos de seu meu espírito. Enquanto Anita faz seu
relacionamento. relato, eu começo a sentir dor de cabeça
As vivências terrificantes passam acompanhada por desconforto gástrico
a conviver com ansiedades persecutórias próximo de náusea e, ao mesmo tempo,
referidas a objetos específicos e vez ou em sobressalto, sinto receio da violência
outra Anita chega até a descrever curtas da moça, temor de não ser capaz de lhe
vivências de bem-estar. No entanto, de- dar alívio, medo de ser violentamente
mandas naturais da vida podem levá-la de rejeitada.
volta a estados de terror que davam a Anita me interpela um tanto irôni-
tônica no início do trabalho. ca: “E você, não vai dizer qual é o meu
Certo dia ela chega atrasada, in- problema?”.
dignada e um tanto arquejante. Ao vê-la, Entendo que é a deixa para que me
ocorre-me a expressão “pondo a alma aproxime.
pela boca”. Deita-se e fica quieta, no que Depois de algum silêncio, em que
me parecia um silêncio ressentido. Para procuro me organizar, digo-lhe que tudo
iniciar a conversa comento: “Você che- aquilo soa como um pesadelo em que a
gou aqui quase sem fôlego”... Interrom- única cena se repete infinitamente.
pe-me, porém, impaciente: “Você pensa Anita ainda irônica, porém mais
que você é um cilindro de oxigênio? — branda, replica: “Só isso?”.
sempre com esta história de fôlego!”. Faz Silencia por um momento e volta a
pausa, recompõe-se e diz: “Desculpe a seu tom habitual de voz: “Aliás..., nas
má-criação”. E silencia. minhas crises tem umas coisas que se
Depois conta exaltada: “Um ho- repetem sem parar na minha cabeça”.
mem na rua estava surrando o cachorri- No contexto do diálogo o uso do advérbio
nho. Ai, que ódio! É de tirar qualquer um aliás sugere certa concordância comigo, o
do fôlego”. Logo percebe seu ato falho e que me anima a continuar na investigação.
corrige: “É de... é de tirar qualquer um do Pergunto-lhe se essas coisas se
sério...”. parecem com o caso do homem e do
Ri, a tensão diminui, e ela me relata cachorrinho. Ela fica um pouco surpresa,
o episódio do cachorrinho. Critica-se por pensa um pouco e concorda que há seme-
não ter interferido. Teve ímpetos de fazê- lhanças. Suas associações evocam per-
lo, mas acovardou-se, com medo de a sonagens já nossos conhecidos, em parti-

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cular a mãe-que-não-a-ama-e-só-critica binado, que reagia à sua debilidade de


e o pai-hipocondríaco-que-só-caçoa, os modo tão cruel?
quais se atormentam recíproca e continu- Dados os movimentos de aproxi-
amente, exceto quando se juntam para mação que identifico no decorrer desse
atacar Anita. encontro, decido pela formulação que foi,
A configuração edípica primitiva, então, apresentada aproximadamente
em que elementos sádicos destrutivos como se segue: “Já sabemos, de outras
podem predominar sobre os aspectos ocasiões, como você fica assustada e se
genitais, criativos, orientou-me o raciocí- retrai quando experimenta alguma
nio que passei a lhe apresentar como se desatenção de minha parte. Sua ansieda-
segue. de no início da sessão bem poderia estar
“Penso que este casal monstruoso ligada à suposição de que encontraria
foi despertado pelas emoções vividas agora meu lado vingativo, o qual, associ-
quando você viu a cena do cachorrinho ado a seu próprio lado maldoso iria levar-
sendo espancado. Parece-me que você me a moê-la de pancada”.
não tem dificuldade em se perceber iden- Espero um pouco, Anita continua a
tificada com o cachorrinho agredido, mas me ouvir atenta. Interessada.
há evidência de que você incorpora o Completo então: “Mas o clima mais
casal monstruoso quando se critica de leve aqui, entre nós, me faz pensar que é
modo tão virulento.” Anita fica indignada possível acreditar que exista outro tipo de
com tal hipótese. casal, que unindo suas competências cui-
Defende-se trocando minha pro- da bem dos filhos...”.
posição e comenta, ainda aborrecida, que
jamais bateria assim em um cachorrinho. 4) O sonho
Depois de tanto tempo a caminhar
junto, confio na expectativa de esta res- Lembro aos leitores que a alter-
posta ser outra insolência, entendida como nância entre estados de apatia e de súbito
um recurso para não dar o braço a torcer. aparecimento de intensas manifestações
Mas, pelo clima bem distenso da cena, corporais é uma das características do
entendo que Anita vai explorar as várias processo analítico de Anita. Progredimos
possibilidades de articulação que esta bastante na compreensão dos estados de
oportunidade lhe oferece. violenta ruptura, entendidos genericamente
Dando continuidade à interpre- como a falência de sua capacidade de
tação proponho que o objeto odioso conter e metabolizar emoções que lhe
também estaria projetado em mim... acompanhavam as transações com obje-
Lembro-me de seu atraso e sua afoba- tos internos e externos.
ção no começo da sessão. Seria resul- Já os estados de apatia foram me-
tante de projetar em mim o objeto com- nos pesquisados. Muitas vezes sua des-

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crição desses estados evocava em mim superpõe à minha própria imagem de ser
horror, ligado à fantasia de ter consciên- enterrada viva. O sonho traz o desenvol-
cia de estar enterrada viva, sem outro vimento desta idéia.
recurso senão desejar o alívio da morte, Seu conjunto pode ser interpretado
mas confesso que nunca cheguei a uma assim: os traços vigorosos em desenvolvi-
formulação desta vivência que tivesse mento na personalidade de Anita, que são
potencial transformador, e assim guardei representados pelo sobrinho, tiraram da
para mim tal referência. sombra e da apatia aspectos que há mui-
Um sonho recente de Anita mostra tíssimo tempo vivem precariamente. A
as transformações que sofreram essas situação dos animais — imóveis, escondi-
vivências mortíferas de total imobilidade. dos no escuro, recobertos por uma cara-
Ele expressa, também, receio e confiança paça que irá matá-los — sintetiza em
no trabalho analítico. Das anotações clíni- imagem o conhecimento inconsciente dos
cas pode ser resumido: danos em decorrência dessa forma de
“Eram três os iguanas desapareci- defesa.
dos. Meu sobrinho de quinze anos me O sonho informa também que, por
disse, apontando para um canto escuro: suas características, o remédio deve ser
‘Olha, tia, eles estão lá’”. aplicado sob a prescrição de um agente
“Era horrível! Estavam cobertos habilitado.
por uma segunda pele, uma carapaça que Penso que este último item con-
os tolhia. Ela começava nos membros e ia densa três informações: o reconhecimen-
imobilizando tudo.” to da eficiência da análise, a advertência
“Alguém — um farmacêutico — en- de que é preciso usá-la com cuidado e que
sinava a receita para dissolver a carapaça.” ela pode danificar tecidos vivos. Para
“Era um processo que tinha de completar, este último item exemplifica
aplicar um líquido. Um ácido. Esse produ- as necessárias competências do objeto (a
to podia queimar a pele boa que estava analista) que ministra o remédio com
por baixo da carapaça, por isso o trabalho perícia: firme e confiante no conhecimento
precisava ser feito com muito cuidado. e delicado no cuidado com sua aplicação.
Mas deu tudo certo.” Na seqüência do trabalho, partes
Ela comenta que os iguanas, seres deste sonho operam como ponto de par-
muito antigos, já existiam na pré-história. tida para novos entendimentos; nestas
O sobrinho, no sonho, é sagaz e eficiente ocasiões se estabelece nítida parceria,
nas suas tarefas e o farmacêutico, ela diz que interpreto como um casal unido nos
com certo humor, podia ser um analista. cuidados com a prole.
Entendo que a carapaça que avan- Mas, nos momentos em que a qua-
ça em direção ao centro do animal se lidade ou ritmo das interpretações não é

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adequado, rompe-se a parceria e apare- 6) Anita se despede


cem as respostas de desespero e retra-
ção. Essas, ainda que mitigadas em sua Não posso encerrar, porém, este
expressão, persistem por muitas sessões, artigo sem mencionar em que ponto se
até que seja reconstruído o bom farma- encontra o trabalho com Anita. Ela la-
cêutico-analista, o suficiente para dar menta profundamente não ter se casado,
continuidade ao tratamento da carapaça não ter tido filhos, não ter, como diz, “uma
e à proteção dos aspectos vivos que família própria”. Vive essa condição
anseiam pelo desenvolvimento. como uma falha grave de personalidade
que a envergonha e que devia ser oculta-
5) Últimas considerações da a qualquer custo, em qualquer circuns-
tância. Isso impediu, até recentemente,
Para concluir, creio que o conceito que tal assunto fosse objeto de exame na
atual de interpretação que orienta meu própria análise.
pensamento pode ser formulado do se- Esta nódoa — via final comum
guinte modo: a interpretação é o resultado para onde convergem todos seus medos e
de um esforço conjunto, assimétrico, que inseguranças — é apresentada assim:
envolve aspectos conscientes e inconsci- quem não foi capaz de casar-se e ter
entes do analista e predominantemente filhos certamente não será capaz de ne-
inconscientes do analisado para formular, nhum outro empreendimento de sucesso.
em linguagem verbal, diferentes níveis de No momento em que encerro este
experiências emocionais que se atuali- texto, os significativos progressos obtidos
zam no encontro analítico. na recuperação e desenvolvimento da
A atividade interpretativa do ana- sua capacidade simbólica têm-nos permi-
lista se dá por dupla ação: continência tido desembaraçar os vários fios, de dife-
na interpretação e simbolização. A con- rentes tonalidades afetivas, que compõem
tinência na interpretação consiste em este novelo ou nó emocional, certamente
recolher os dados heterogêneos de co- um obstáculo para que ela possa usufruir
municação verbal e não-verbal do paci- melhor suas qualidades e conquistas.
ente em busca de equivalentes fantas-
máticos que propiciam as transforma- Dado o estilo narrativo do texto,
ções simbólicas. escrito inicialmente para ser lido em públi-
Esta segunda parte, a simboliza- co, optei por não fazer referência exaus-
ção, será apresentada como ações inter- tiva a obras e autores que sustentam as
pretativas ou interpretações verbais, de- hipóteses aqui desenvolvidas. Como se
pendendo do nível de funcionamento pode facilmente depreender, o pensa-
mental ativado no paciente. mento kleiniano, desde Melanie Klein aos

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contemporâneos, é a linha mestra do meu


trabalho. Acrescento ainda a influência
latino-americana do casal Baranger, e
uma recente “descoberta” da obra de
Matte-Blanco. Anne Alvarez, Antonino
Ferro e colaboradores, Ogden e os cole-
gas brasileiros especialmente da SBPSP,
estão no meu portfolio de referências,
sempre aberto para novas inclusões.
Assim como me considero kleinia-
na paulista, modelada pelo ambiente em
que me desenvolvi, acredito que a Teoria
dos Campos tem sua origem na imersão
de um pensador/escritor do porte de Fa-
bio Herrmann nesse cadinho de múltiplas
tendências que é a SBPSP.

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Níveis de interpretação — Uma narrativa clínica

SUMMARY

Levels of interpretation

Through fragments of clinical material of a patient, the author presents some


ideas about levels of interpretation correlated with to different configurations of the mind
which are characterized by specific anxieties and ways of communication. These
hypotheses elaborated for the first time in this paper were gradually put together through
the author’s exercise of thinking over her daily clinical practice with children, adolescents
and adults within a large spectrum of distortions, stifling states and inhibitions in
emotional development.

Key words: Interpretation. Clinical investigation. Concepts development.

RESUMEN

Niveles de interpretación

A partir de recortes del análisis de una paciente, presento algunas ideas sobre
niveles de interpretación relacionados a distintos estratos de la mente que se
caracterizan por formas de comunicación y tipos de ansiedades específicas. Estas
hipótesis están concatenadas por la primera vez en este texto; fueron formándose
progresivamente en el ejercicio de pensar el trabajo analítico cotidiano con niños,
adolescentes y adultos, dentro de un espectro amplio de distorsiones, estagnaciones
e inhibiciones del desarrollo emocional.

Palabras-clave: Interpretación. Investigación clínica. Desarrollo de conceptos.

Izelinda Garcia de Barros


R. Monte Alegre, 1623 — Perdizes
05014-002 São Paulo, SP
E-mail: izebarros@uol.com.br

Recebido em: 16/11/2007


Aceito em: 27/11/2007

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