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Portugal é um país paradoxal.

Tem como um dos seus ícones um poeta – que


encontramos a qualquer esquina da cidade de lisboa –, teve recentemente um ministro
também ele poeta, um candidato à presidência da República que escreve em verso, tem
Pedro Mexia, um dos intelectuais portugueses mais interessantes e profundo conhecer
deste ramo da literatura, tem uma quantidade de comentadores que, todas as semanas,
recomendam uma miríade de livros (entre eles poesia, mas não só), tem José Tolentino
Mendonça, poeta, comendador, cardeal e que recentemente presidiu, a convite do
presidente da República, às comemorações do 10 de Junho; há programas de televisão
em que a presença da poesia é bastante significativa, em conjunto com o número cada
vez maior de festivais para todos os gostos onde a poesia continua a ser encarada
segundo modelos clássicos, faltando apenas a coroa de louros que, outrora, encimava a
cabeça do poeta laureado, e uma infinidade de revistas que parecem nascer e morrer ao
ritmo de uma por semana.
Esta presença pública – e publicada –, que varia entre o pastiche da antiga função
nobre da poesia, as boas intenções de uma retórica progressista de base republicana (a
literatura como religião laica, moda francesa que há quem tente importar) e uma lógica
promocional cujo impacto deve andar próximo do nulo, é inversamente proporcional ao
real peso da poesia. É o pequeno segredo sujo de toda esta visibilidade pública da
poesia, que parece cada vez mais barricada em pequenas editoras com tiragens cada vez
menores (uma delas, a Douda Correria, chegou a dada altura a fazer tiragens de 50
exemplares, mostrando a mais completa falência da edição), num campo poético cada
vez mais atomizado. Há quem veja nesta atomização, para a qual contribui a completa
ausência da crítica (mas os poetas não querem crítica, querem publicidade), uma
oportunidade e a libertação dos antigos constrangimentos – opinião particularmente
inane de quem vê felicidade na mais extrema miséria, não percebendo o laço que une a
atomização à reificação, para usar um termo caído em desuso.
Quem se atenha, no entanto, a essa presença pública da poesia, ao funcionamento
que tem dentro de um certo circuito que vai da televisão aos jornais e a certas editoras,
ao regime discursivo, se assim se pode falar, que parece controlar tudo quanto é dito
sobre ela, facilmente percebe que há um conjunto de clichés poéticos que chega a
invadir a própria poesia – e longe parecem ir os tempos em que Barthes reclamava para
a “sociedade dos amigos do texto” esse falanstério onde os únicos que não entrariam
seriam os “maçadores de todas as espécies, que decretam a forclusão do texto e do seu
prazer”. É uma poesia que se torna, de facto, indistinguível com o discurso público que
a rodeia e que parece uma sua continuação.
Um exemplo sintomático desta desvitalização da poesia, que é inversamamente
proporcional à invasão do poético, é o mais recente livro de José Tolentino Mendonça,
Introdução à Pintura Rupestre, cujo subtítulo poderia ser “Experimentação sobre o
cliché”. Tem uma ou outra imagem interessante (“Considerai as vossas memórias pré-
históricas/ as primeiras declarações de amor pronunciadas/ com lábios de sangue”),
poemas em que a palavra poética se torna pensamento (“A criança que chora”, por
exemplo, ou “A alegria”) e, quando se liberta da pequena vertigem (auto?)-biográfica,
consegue, por vezes, alguns momentos de fulgor – apesar de estes, tantas vezes,
saberem sempre a algo já visto.
Mesmo se não tivermos em conta um problema bastante actual (o livro é uma
encenação de memórias que se passam em África, mas, aparentemente, não há quase
negros na África de Tolentino Mendonça, também ela cheia de clichés), o que
encontramos é o desfilar de uma infância pontuada pela “alegria/febril”, pela
“contemplação da azáfama anónima”, por uma “cena auroral”, por “espanto”, por urros
de entusiasmo onde a existência “era uma coisa selvagem e simples” (a paisagem
africana como lugar dessa existência “selvagem e simples” não é propriamente uma
novidade e tem qualquer coisa de problemático), por objectos que preservam “o enigma/
o interdito, a desfasagem” (também eles, como tudo, imbuídos de fascinação) e que são
“um assombramento na escritura do mundo”, pela beleza (matinal?) do mundo – e
mesmo o cão já não é bem um animal, mas transporta “a língua materna antes da lua/
iluminar a terra”, numa espécie de mundo anterior à queda, onde o homem era senhor
da criação sem, no entanto, a dominar.
Da mesma forma que a infância é este território idealizado, totalmente preenchido
de poesia, o ambiente familiar é, igualmente, poesia de parte a parte: o avô (inventado,
como não poderia deixar de ser, porque a imaginação é aqui uma faculdade poética),
“caçador de baleias e ocioso tocador de bandolim”, também ele imbuído de uma
“alegria desembaraçada”, amado, como também não poderia deixar de ser, pela avó,
“correu a rósea luz dos arquipélagos/ tomado por curiosidade ardente”, acabando o
poema em tom idílico, com o avô a tocar bandolim e a avó a cantar “e vinham escutá-
los as lebres/ escondidos na mancha escura/ do mísero ginjal” (a opulência, como se
sabe, é franco motivo poético e o ginjal, assim, só poderia ser mísero). O pai também
aparece, é certo, já não em modo aventureiro, como o avó – é mais difícil inventar
figuras psicanalíticas –, mas em modo de camaradagem, andando de bicicleta e
revelando “um ao outro/ uma cena auroral/ que não era cópia/ que não sei o que era”,
acabando, como o outro poema, em tom maior, assombroso, idílio paradisíaco onde
ambos cantavam, “mesmo se a escutar melhor/ percebíamos serem as ervas/ que
cantavam/ à nossa passagem.”. Tudo canta, incluindo as ervas, neste mundo arrebatado
pela beleza.
A figura central, no entanto, é a avó, a quem é dedicado o longo texto em prosa
(“a quem deixas o teu oiro”) que encerra o livro. E, uma vez mais, o cliché não se faz
esperar. Essa avó, obviamente, só poderia ser analfabeta, para melhor garantir a
autenticidade do conhecimento oral em que se encontra imbuída – quanto mais
analfabeta, maior a capacidade de transportar esse conhecimento oral, auroral e matinal;
é o bom selvagem, que não sabe nada, mas conhece muito, uma tentativa não muito
conseguida de reactivar o contador de histórias de um conhecido filósofo alemão.
“Se antes me perguntassem, estaria pronto a jurar que a minha avó
analfabeta sabia uma quantidade colossal de romances orais, e que ela foi a
minha primeira e inesquecível informante. E mais: foi o meu bosque, a
minha viagem, o meu livro. E também um primordial amor”
Todo este cenário idílico e paradisíaco, cheio de espanto e assombro, mais não é
que uma particular ideologia da memória que, volta e meia, ataca e contamina a poesia,
como se esta, um pouco como Hércules que limpa os estábulos sem qualquer nojo,
viesse espargir com o seu perfume toda e qualquer matéria. É certo que o espectro da
guerra colonial aparece aqui e ali e que a destruição fulmina os últimos momentos do
livro (“Ela pode ter calado o seu mundo para fugir ao crime de destruição daquele,
equivalentemente eleito e núbil”), mas o espanto e o assombro são de tal ordem que
estes pequenos desvios à ordem natural das coisas não chega para nos retirar do idílio.
"Com que arrebatamento os amei
nesses meses de internamento
eles tão belos e estranhos
traziam até mim sem saber o contínuo
murmúrio da água a viajar algures
a extensão da casa ao longo do manguezal
a claridade não dissimulada
e eu de coração exultante
colecionando essas imagens
sem nenhum nexo”
É uma infância submetida a esta ideologia da memória onde todos os momentos
(incluindo esse, onde o sujeito poético se encontra hospitalizado) são arregimentados
para esse poético onde as ervas cantam, os homens regressam do mar alegres e
contentes – um pescador talvez diga o contrário, mas ele não tem tempo para
contemplações –, as avós cantam e contam histórias, os avós tocam, os animais são, no
máximo, parentes afastados e o mundo é espanto e assombro. A quantidade de vezes
que uma certa poesia repete à saciedade esta imagem da infância (uma infância bastante
infeliz, diga-se, com tanto espanto e beleza por todos os lados) mostra tanto a sua
incapacidade em interrogar um cliché que se encontra bastante presente no discurso
público, a sua incapacidade de inventar um outro modo de dizer a infância, como a sua
subjugação a um regime discursivo cujo exemplo maior é a peça jornalística – onde a
infância é, obviamente, lugar da inocência, do espanto e do assombro.
O mesmo se poderia dizer da referência à pintura rupestre. Tolentino Mendonça,
em epígrafe, parece tentar remeter essa referência a George Bataille e aos textos que
este tem sobre essa manhã de festa da arte – o que não significa, obviamente, submeter
o livro às teses deste pensador francês. É certo que a referência à pintura rupestre é uma
metáfora e que remete, também ela, para essa ideologia da memória onde os começos
são sempre idílicos. Mas talvez fosse interessante ter levado a metáfora – e Bataille – à
letra. Aí descobriria que o começo não é nada idílico, que estas pinturas e estes
desenhos, apesar da manhã de festa, são indistinguíveis do absolutismo do real de que
fala Hans Blumenberg, isto é, de um mundo que é preenchido por violência e que todas
essas imagens são uma forma de ordenar o caos. Ou, para terminar com Brecht: “não
reconhecemos mundo que não seja desordem. Seja o que for que as universidades
sussurrem acerca da harmonia grega, o mundo de Ésquilo estava cheio de lutas e de
horror, assim como o de Shakespeare e o de Homero, o de Dante e o de Cervantes, o de
Voltaire e o de Goethe.”. Tudo o resto é ideologia da memória e poesia no mau sentido
da palavra.

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