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Universidade Federal de Mato Grosso

Programa de Pós-Graduação em Educação

TRABALHO DOCENTE NO BRASIL: UMA LINHA TÊNUE¹

Maria das Graças Pereira Feltrin²

Resumo:

Este estudo enseja problematizar o trabalho docente e seus desafios na atualidade, analisando as diversas
relações políticas dentro do espaço acadêmico, relacionando ao papel subversivo de professores que, como
formadores de opinião, ficam submetidos a diferentes interpretações do seu ofício, especialmente em um período
de pandemia, polarização política e isolamento social. Sendo assim, o estudo justifica-se pela necessidade de
compreender a dimensão e complexidade do trabalho docente no Brasil, com destaque para os desdobramentos a
partir da ação docente durante aula online. No trato sistemático do estudo, tomou-se como base, instruções de
Marconi e Lakatos (2003, p. 44). O tema partiu de discursões, estudos e leituras nas aulas do curso de pós-
graduação Stricto Senso, sobre currículo e formação docente. A fundamentação teórica perpassa por abordagens
sobre formação, identidade docente reflexiva, currículo formal e currículo em ação. Também utilizou de
reportagens da mídia referentes ao caso em questão. Por fim, esse estudo propicia reflexões sobre embates
existentes acerca dos limites da atuação do professor na formação de discentes críticos no contexto brasileiro,
especialmente em se tratando de questões intrínsecas à formação de opinião, em que há sempre uma delicada
margem entre o fazer pedagógico que é indissociável da identidade docente.

Palavras-chave: Trabalho docente. Identidade. Ensino remoto. Exposição docente. Debates políticos.

Atividade referente a disciplina Seminário Avançado II. Discente: Profª Dra. Ozerina
Víctor de Oliveira
² Mestranda no Programa de Pós-Gradução em Educação, Universidade Federal de Mato
Grosso (UFMT), Cuiabá, Mato Grosso, Brasil. E-mail: gracinhafeltrin@gmail.com
Quando ousamos tentar compreender a função do professor no processo de ensino e
aprendizagem, desde os primeiros eventos de correlação entre o que seria adequado ou não
para à formação de consciência ética do indivíduo, nos deparamos com uma complexa
ideologia marcada pelas forças hegemônicas na prescrição de um currículo que deve
constituir o conhecimento dos discentes de forma ampla, sem levar em consideração a
multiplicidade e singularidade cultural de cada contexto escolar. Nesse sentido, percebe-se um
esforço pautado no conservadorismo hegemônico na busca de promover a padronização do
ensino, solidificação do currículo e criação de um estilo docente ideal a ser seguido.
Partindo da análise das cobranças sociais acerca de uma identidade profissional
docente, o ideário de uma padronização fica ainda mais evidente. De forma concisa, o
educador ideal não deve se expressar politicamente, principalmente, em se tratando de
opiniões partidárias e muito menos discordar de alguma ordem estrutural do sistema de
educação.
Nesse prisma, este estudo enseja problematizar os desafios do trabalho docente na
atualidade, analisando as diversas relações políticas dentro do espaço acadêmico,
relacionando ao papel subversivo de professores que, como formadores de opinião, ficam
submetidos a diferentes interpretações do seu ofício, especialmente em um período de
pandemia, polarização política, isolamento social e exposição.
Sendo assim, o estudo justifica-se pela necessidade de compreender a dimensão e
complexidade do trabalho docente, com destaque para os desdobramentos a partir da ação de
uma docente durante aula online.

No trato sistemático do estudo, tomou-se como base, instruções de Marconi e Lakatos


(2003, p. 44). A priori, o tema partiu de estudos, leituras e discursões nas aulas do curso de
pós-graduação, sobre currículo e formação docente. Também se utilizou de reportagens da
mídia referentes ao caso polêmico decorrente da ação de uma docente.

O fato ocorreu em Cuiabá – MT, com repercussão em rede nacional, em que uma
professora foi gravada por uma mãe de aluno durante aula online para o 3º ano do ensino
fundamental de uma escola com identidade pautada em princípios religiosos, ao fazer críticas
ao atual governo. O áudio foi divulgado e viralizou nas redes sociais. Como punição, a
educadora foi suspensa de suas atividades, por três dias, pela gestão escolar.
O conteúdo do áudio revela que as críticas ocorreram no contexto de uma aula de
ciências em que a professora enfatiza o descaso que vem ocorrendo com as questões
ambientais no país, sobretudo, a destruição ambiental e invasões de terras indígenas por
garimpeiros. Também aborda sobre o aumento da inflação e a volta do voto impresso tão
defendida pela presidência.
Um dos excessos observado na fala da professora, foi mencionar de forma
generalizada, que todos os apoiadores ou seguidores do presidente são corruptos como ele.
Entende-se que a professora mesmo sendo tomada pelo sentimento de indignação e revolta
diante no cenário político e econômico, não levou em consideração a faixa etária dos
estudantes (7 a 9 anos), nem ao menos se atentou as possíveis consequências desse tipo de
posicionamento, numa aula também direcionada aos domicílios dos discentes, em que muitos
pais acabam por assistir as aulas juntamente com os filhos.
Na continuidade do áudio, percebe-se o compromisso da educadora com a formação
de cidadãos críticos, como requisito inerente a profissão docente, ao despertar nos estudantes
a necessidade de se "começar a pensar" sobre o futuro do país.
A mesma gestão do colégio julga o posicionamento político da professora como
excessos cometidos no âmbito do serviço público, logo a assessoria da instituição ressaltou
que ela infringiu um artigo do Código de Ética assinado pelos funcionários.
Em contrapartida, o presidente do SINTEP-MT (Sindicato dos Trabalhadores no
Ensino Público de Mato Grosso) se pronunciou, em nota aos meios de comunicação, contrário
às sanções estabelecidas pela coordenação do colégio, defendendo a ideia de que o professor
deve exercer o livre pensamento. Além de problematizar a ironia dogmática da escola,
"Repudio veementemente o atentado à liberdade ... praticado pelo Colégio ... que em tese, a gestão
tenha o conhecimento da bíblia e da história cristã”. Fica evidente, nos comentários da notícia
publicada num jornal local, que as opiniões da população se dividem e geram revolta.
O caso repercutiu ainda mais, no dia seguinte, quando o helicóptero do Centro
Integrado de Operações Aéreas – CIOPAer ficou parado sobre a unidade, enquanto na porta
da aeronave, um militar segurava a bandeira do Brasil, o que foi interpretado como um ato de
represália do Estado contra opiniões opostas à atitude tomada pela escola. Após o ato ter sido
repudiado pela opinião pública e noticiado na mídia, um juiz da 11ª Vara Especializada de
Justiça Militar solicitou que o Ministério Público Estadual (MPE) investigue o caso.
À professora não foi dado direito a voz. Houve apenas um comunicado da gestão
escolar aos responsáveis pelos estudantes ressaltando que a docente estava "envergonhada e
arrependida".
A identidade da escola em que ocorreu o fato, pauta-se no comprometimento com uma
aprendizagem centrada nos valores evangélicos de educação para a vida, porém tendo
objetivos como os exemplos que segue:
- Despertar a formação da consciência crítica para que se comprometam a construir uma
sociedade mais humana, justa e fraterna;
- Proporcionar condições para que adquiram uma cultura sólida que os prepare a participar
conscientemente da vida social, econômica e política do País.
Diante desses princípios ideológicos institucionais e da postura da escola perante o
fato ocorrido, percebe-se uma certa contradição quanto ao entendimento de como se constrói
cidadãos críticos e conscientes de seu papel político/transformador, aptos a atuar numa
sociedade capitalista e desigual.
Todavia, compreende-se que a identidade da referida docente é construída com ancoragem em
fundamentos pedagógicos propiciadores de práticas conscientizadoras que visam o bem-estar social,
perpassando por algumas questões como sustentabilidade, respeito ao próximo, à diferença e às
características identitárias de cada sujeito.
Outrossim, compreende-se que tal ação pedagógica traz saberes docente propiciadores de
reforço à ideia de convivência escolar norteada por princípios básicos de vida em sociedade, como
fortalecimento dos laços comunitários, das relações enquanto coletividade, bem como, do ponto de vista
da civilidade e da garantia das espécies.
Esse fato retrata a subversão de ideário identitário docente culturalmente construído, em que a
figura do professor, em específico desse caso, da professora, que deixa de ser aquela que repassa
somente os conteúdos do currículo prescrito, em obediência e concordância com o que lhe é proposto.
Ou seja, essa professora externa sua identidade por meio da criticidade, de seu posicionamento que
rejeita a omissão, o calar-se diante problemas que afetam a sociedade como um todo.
Esse fato também vem corroborar com o acontece no currículo em ação ou currículo
vivido, experenciado na prática por cada docente com sua identidade que lhe é peculiar, nem
sempre de acordo com as políticas de identidade estabelecidas pelo discurso educacional
oficial e, portanto, é negociada entre múltiplas representações, (GARCIA; HYPOLITO;
VIEIRA, 2005, p. 47).
Existe uma diferença significativa entre o currículo formal e o currículo em ação.
Macedo (2006), pautando-se Young e Whitty, (1977) e em (Goodson, (1995) numa compreensão do
currículo como prática ou o currículo ativo, parte do pressuposto de “como o conhecimento é
produzido e não da estrutura do conhecimento em si” - o saber e a cultura passam a ser vistos como
algo construído pela ação de professores e alunos como sujeitos da escola.” Desse modo - a cultura
escolar não seria algo a ser ensinado, mas a produção simbólica e material que se dá no seio da escola.
(MACEDO, 2006, p. 102).
Paradoxalmente, ainda que o Estado busque, por diversas razões, a organização
homogênea do fazer pedagógico, não é possível configurar uma posição estática ao ensino,
uma vez que todas as condições que permeiam a educação estão diretamente ligadas às
relações culturais dos contextos escolares.
No entanto, é preciso compreender que a forma como a “articulação entre currículo formal e
currículo em ação vem sendo feita tem implicações políticas que precisam ser consideradas.” Essa
distinção contribui para uma concepção hierarquizada de poder — seja de cima-para-baixo seja de
baixo-para-cima — (MACEDO, 2006, p.99). Em outras palavras, o currículo também é construído
pelos docentes com suas identidades singulares carregadas de saberes constituídos ao longo da vida e
através de sua formação, sendo assim, expressam modos peculiares de interpretar o mundo, problemas
sociais, políticos e econômicos.
Nesse viés, ser professor no Brasil é permanecer numa “linha tênue”, numa tensão que
nos leva a compreender que os padrões hegemônicos não fornecem respostas para todas os
enigmas que o cotidiano apresenta, pois a realidade sempre apresentará novas e complexas
dificuldades, onde “outra perspectiva (científico-técnica e cultural-humana) pretendem ser um
ponto de referência de uma prática educativa "correta", "verdadeira" e "absoluta", [...] como
fixa e acabada e não um processo contínuo de construção que se mantém numa relação
estreita com o contexto econômico, social, político, textual e pessoal dos que nela estão
envolvidos, (CAMPOS; PESSOA, 1997, p. 39).
Para melhor compreensão da construção dos saberes docentes a partir de uma prática
reflexiva, vale ressaltar que, com ancoragem na “teoria da indagação de J. Dewey como base
teórica de Donald Schön”, a profissão docente [..] “integra na ação reflexiva três atitudes:
abertura de mente, responsabilidade e dedicação” (CAMPOS; PESSOA, 1997, p. 41).
Essas atitudes são fundamentais na atuação de um professor reflexivo, aberto e
disposto a observar e atuar ativamente sobre vários pontos de vista, sobretudo, preocupado e
alerta para as possibilidades de erro. Sendo assim, o senso questionador da finalidade das
ações e consciência das eventuais consequências negativas, atendo-se com as questões: o que?
Para quem? onde? (Campos; Pessoa, 1997), são requisitos de um professor reflexivo.
Ademais, este estudo trouxe ponderações sobre embates existentes acerca da
responsabilidade e limites da atuação do professor na formação de discentes críticos no
contexto brasileiro, especialmente em se tratando de questões intrínsecas à formação de
opinião, em que há sempre uma delicada margem entre o fazer pedagógico que é indissociável
da identidade docente.
Quando o professor tem uma prática reflexiva, suas experiências e de outros
profissionais da área, são objetos de análise como algo inerente ao trabalho docente, desse
modo, ele aprende com experiências de colegas de profissão, a exemplo, o caso anteriormente
citado que envolveu a atuação docente com grande repercussão.
Entretanto, essa reflexão a partir de experiências polêmicas envolvendo colegas de
profissão, carece de empatia e solidariedade na compreensão de que, devido à complexidade
da profissão, qualquer profissional está sujeito ao erro. No entanto, não se pode concordar
com a coerção, arbitrariedade e humilhação como penalidades de uma ação que poderia ser
resolver a partir do diálogo. Ou seja, esse tipo de desdobramento não é propiciador apenas de
reflexão, mas também, de revolta e indignação.

Referências:

CAMPOS, S. de; PESSOA, V. I. F. Discutindo a formação de professoras e de professores


com Donald Schon. In: Cartografias do trabalho docente. Campinas, UNICAMP, 1997.

GARCIA, M. M. A.; HYPOLITO, A. M; VIEIRA, J. V. As identidades docentes como


fabricação da docência. Educação e Pesquisa, São Paulo, V. 31, n.1, p. 45-56, jan./abr. 2005.

Colégio Notre Dame de Lourdes. Identidade. https://portalcndl.com.br/identidade. Acesso em:


21 out. 2021.

MARCONI, M. A. de.; LAKATOS, E. M. Metodologia do trabalho


científico: procedimentos básicos, pesquisa bibliográfica, projeto e relatório, publicações
e trabalhos científicos. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2012.

MACEDO, Elizabeth. Currículo: Política, Cultura e Poder. Currículo sem Fronteiras, v.6,
n.2, pp.98-113, Jul/Dez 2006.

Professora é suspensa por três dias por criticar Bolsonaro e os apoiadores dele em sala de aula
em Cuiabá. G1 Mato Grosso. Disponível em:
https://g1.globo.com/mt/mato-grosso/noticia/2021/09/01/professora-e-suspensa-por-tres-dias-
por-criticar-bolsonaro-e-os-apoiadores-dele-em-sala-de-aula-em-cuiaba.ghtml. Acesso em: 19
out. 2021.

Sintep acusa 'covardia' em suspensão de professora que criticou Bolsonaro. Gazeta Digital.
Disponível em: https://www.gazetadigital.com.br/editorias/cidades/sintep-acusa-covardia-em-
suspenso-de-professora-que-criticou-bolsonaro/665842. 19 out. 2021.

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