Você está na página 1de 4

As eleições e o Jogo da Imitação

“A virtude e a inteligência pertencem aos seres humanos como indivíduos livremente


interligados com outros indivíduos em pequenos grupos. O pecado e a imbecilidade
também. Mas a ausência subumana de espírito a que o demagogo dirige o seu apelo, a
imbecilidade moral em que se apoia quando induz as suas vítimas à ação, são
características não dos homens e das mulheres como indivíduos, mas dos homens e das
mulheres em multidão. A ausência de espírito e a estupidez moral não são atributos
especificamente humanos; são sinais de envenenamento gregário. (...)Numa época de
superpopulação crescente, de crescente superorganização e de meios de comunicação
cada vez mais eficientes com as massas, como podemos manter intacta a integridade e
reafirmar o valor do ser humano individual? Eis uma questão que ainda pode ser
levantada e que seja talvez possível resolver de maneira eficaz. Daqui a uma geração
poderá ser demasiado tarde para se encontrar uma resposta, e talvez seja até impossível,
no asfixiante ambiente coletivo dessas épocas futuras, suscitar o problema.” (Aldous
Huxley, Regresso ao Admirável Mundo Novo)

Nesta eleição as mais perversas e avançadas técnicas cibernéticas reinaram em


forma e conteúdo com bots de um lado e sofisticadas redes de transmissão de
informações deturpadas para provocar reações emocionais sobre questões irrelevantes
ou colaterais ao que deveria estar no centro do debate. Fundamental a existência de uma
preocupação com descobrir como chegamos a este ponto, passo essencial para se tentar
reverter este estadomas até apra isto é preciso compreender porque este cenário é um
problema e uma ameaça tão séria não a X ou Y mas à humanidade.

Sempre soube que escrevo para poucos, muito poucos. A imensa maioria dos
agentes políticos ao criticarem os mecanismos de manipulação das massas o fazem
porque os adversários os tem de melhor qualidade ou eficiência e desejariam – em
alguns casos de forma muito mal disfarçada – que eles tivessem nas mãos aquela
máquina de ganhar eleições. Assim o leitor de boa-fé não terá dificuldade de entender
que se um lado da disputa é mencionado mais do que os outros isto se deve à utilização
concreta e com resultados efetivos.

Uma das contradições fundamentais da democracia, a qual se agrava com o


passar do tempo e o avanço tecnológico, é que os problemas tornam-se mais complexos
– até porque o avanço do conhecimento agrega mais e mais variáveis a serem
consideradas no processo de tomada de decisão pelos formuladores de políticas – mas
aqueles que tem o poder de decidir estão cada vez menos capazes de analisar as
informações e decidir racionalmente – em grande parte porque ainda não se conseguiu
encontrar meios realmente eficazes de universalisar a educação de um lado e de outro
porque os eleitores cada vez mais são levados a se comportar como massa do que como
cidadãos.

No início do Século XIX Alexis de Tocqueville escreveu que a democracia norte


americana produzia cidadãos que eram “Mais do que reis e menos do que homens”.
Tocqueville não se referia especificamente ao problema que discuto aqui, mas há uma
conexão direta entre os raciocínios. O diplomata francês referia-se, em especial, à
imensa concentração de poder do Estado, em uma dimensão que soberano algum jamais
havia tido ao emsmo tempo que o poder individual do cidadão de intervir em uma
decisão caia a frações infinitesimais.

Não é esta avaliação de Tocqueville o nosso problema central hoje, mas a frase
dele também descreve o nosso dilema de um centro altamente racional – ainda que de
uma Razão Instrumental que tem pouca consideração com questões éticas – frente a
uma população crescentemente privada de sua racionalidade que a faz humana e cidadã
e progressivamente transformada em uma massa guiada pelos seus mais baixos instintos
de ódio, medo, ganância.

A aplicação do “Jogo da Imitação” de Turing – destinado a verificar se uma


máquina poderia passar por um ser humano quando avaliada por um juiz competente –
nas redes sociais ao longo da eleição muito provavelmente chegaria a um resultado
paradoxal dos bots serem aprovados e muitos dentre esta massa de humanos
ensandecidos serem reprovados. Um bot teria de ser muito pobremente programado para
limitar-se a nos nausear com a repetição de argumentos frágeis e fatos claramente
duvidosos.

Mas a Razão e a racionalidade implícita enquanto elemento que nos torna


humanos jamais foi exatamente um consenso entre os pensadores, exceto talvez como
potencial. Não é um paradoxo que no último século se aprimorem os métodos de domar
a razão e colocá-la para trabalhar independente da dependência humana – e a Teoria dos
Jogos que norteia boa parte das decisões centrais em áreas essenciais da Ciência
Aplicada como a militar e a econômica é só um exemplo disto – ao mesmo tempo em
que a negação da Razão floresce de forma muito significativa nas ciências puras, para
muito além das humanidades onde o multiculturalismo destroi a racionalidade e com ela
a perspectiva tanto de consenso como de verdade.

Então considero necessário que neste processo de pensar como recuperamos


nossa humanidade em risco eminente de extinção partamos de outro ponto mais
consensual de nossa identidade enquanto humanos: a empatia.

É exatamente a empatia que é medida pela mais famosa e popular variante do


variante, ainda que ficcional, do Jogo da Imitação de Turing: o Teste Voight-Kampff.
Para quem não se lembra é o teste utilizado para distinguir humanos de replicantes em
Blade Runner. O fato dele medir a empatia é implícito no filme, muito mais evidente no
conto “Androides sonham com carneiros elétricos” no qual foi baseado. Significativo
que no conto a empatia tenha se tornado popular depois de guerras e catástrofes
ambientais que vandalizaram o planeta.

Empatia foi produto escasso nesta eleição, em especial nas redes sociais. Se ela é
uma trava profunda do nosso instinto de sobrevivência, o qual depende
fundamentalmente da nossa capacidade de socializar e trabalhar em conjunto - como
acreditam filósofos, cientistas e religiosos – então a profundidade e escuridão das
forças despertadas pelas máquinas de ganhar eleições foram subestimadas até pelos
analistas mais catastróficos. É evidente que até o apelo à empatia pode ser manipulado
também por técnicas avançadas, mas mesmo esta manipulação não tem o mesmo efeito
nefasto sorbe a nossa humanidade quanto o abrir os porões negros da nossa consciência.

Para continuar na analogia da Ficção Científica, se temos Leis da Humanidade


em paralelo com as Leis da Robótica de Asimov, elas foram foram hackeadas. Em
diversas histórias de Asimov as Leis da Robótica - mesmo que profundamente inseridas
no cerne dos circuitos positrônicos, assim como imaginanamos que a Empatia esteja em
nossos espíritos – são manipuladas por uma definição estrita de humanidade.

É ao produzir este erro de identificação que os antagonistas das histórias


conseguem transformar os robôs em armas contornando a primeira lei de Asimov –
“Um robô não pode ferir um ser humano ou, por inação, permitir que um ser humano
sofra algum mal” – assim como é desumanizando o outro que desligamos nossa empatia
e nos tornamos armas dóceis nas mãos de tiranos. A armadilha não é nova – tanto que
em geral os nomes que os povos designam a si mesmos desde a mais remota
antiguidade em geral tem um sentido como o de “os humanos” enquanto os nomes que
dão aos outros povos, em especial aqueles que lhes são vizinhos, tem um elemento
depreciativo ou pejorativo que em algum grau tenta impedir a identidade.

O Imperativo Categórico expresso não só para objetivar a Ética mas também


como elemento central da imensa maioria dos sistemas de crença – resumindo aqui
muito grosseiramente “não fazer aos outros o que não deseja que façam a você” – é sem
dúvida o Jogo de Imitação mais simples possível para detectar nossa humanidade. A
despeito do concieto ser severamente atacado por correntes de pensamento modernos e
pós-modernos – ou que historicamente tenha sido profundamente manipulado por
lideres religiosos e políticos inescrupulosos – é ainda a tábua da salvação à qual
podemos apelar para tentar juntar as partes e refazer o todo. Mas, logo logo, será tarde.

Você também pode gostar