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Território
& Imagem
Textos de fronteira

Jorge Gaspar

centro de estudos ibéricos


. índice
Ficha Técnica
Título: Território & Imagem – Textos de fronteira
Autor: Jorge Gaspar

Agradecimentos
Instituições: Câmara Municipal da Guarda; Câmara Municipal de Castelo Branco; Câmara Municipal
de Idanha-a-Nova (Centro Cultural Raiano); Centro de Artes Visuais – Encontros de Fotografia;
Centro de Estudos Geográficos / Instituto de Estudos Geográficos, IGOT - Universidade de Lisboa,
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra; Centro de Estudos Geográficos, Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa; Centro de Estudos Ibéricos; Comissão de Coordenação da Re-
gião Centro; Coleção Encontros de Fotografia; Governo Civil de Lisboa.
.  Apresentação – Jorge Gaspar 7
Autores de Imagens: Ahmed Abdulamir; Albano Da Silva Pereira; Álvaro Rosendo; Antonio Aragón Re-
nuncio; António Júlio Duarte; Bernard Plossu; Debbie Fleming Caffery; Dirce Suertegaray; Duarte
.  Jorge Gaspar ou A Arte do Território – Rui Jacinto 11
Belo; Enric Vives-Rubio; Fernanda Fragateiro; George Krause; Inês Gonçalves; Javier P. Fernández
Ferreros; João Paulo Feliciano; João Pedro Costa; José Afonso Furtado; José Manuel Rodrigues;
José Manuel Simões; Luísa Ferreira; Mohammad Rabikul Hasan; Monteiro Gil; Nuno Cera; Orlan- 1. 1993: “Campos do Mondego” in Vale do Mondego, 35
do Ribeiro; Paulo Nozolino; Pedro Calapez; Pedro Letria; Pierre Devin; Renée Gagnon; Rigo 23;
Rodrigo Bettencourt da Câmara; Rui Calçada Bastos; Rui Jacinto; Sérgio Pinto.
Encontros de Fotografia, Coimbra, pp. 5-8.

Apoio à edição: Diogo Lidónio 2. 1994: “O Olhar do Geógrafo” in Orlando Ribeiro, 38


Finisterra, Encontros de Fotografia, Coimbra,
Design: Filipe Wellington
pp. 9-18.
Impressão e acabmento:
1ª edição: Abril de 2022 3. 1994: “Itinerários de Fronteira” in Itinerários de Fronteira, 43
Depósito legal nº
Encontros de Fotografia, Coimbra, pp. 5-15.
ISBN: 978-989-8676-31-3
4. 1997a: “Códigos para uma Geografia” in Pereira, A.S., 50
Edição: Manto de Ceres, Idanha-a-Nova, Centro Cultural Raiano,
Centro de Estudos Ibéricos pp. 5-12.
Rua Soeiro Viegas n.º 8
6300-758 Guarda
cei@cei.pt 5. 1997b: “Setecentos Anos até a Nova Fronteira” 55
www.cei.pt in vv. aa., Linha de Fronteira, Coimbra, Comissão de
Coordenação da Região Centro, pp. 13-21.
O Centro de Estudos Ibéricos respeita os originais dos textos, não se responsabilizando pelos conteú-
dos, forma e opiniões neles expressas. A opção ou não pelas regras do novo acordo ortográfico é da 6. 1997c: “Orlando Ribeiro et les Pays a l’Est de Castelo 60
responsabilidade dos autores.
Branco” in vv. aa., Orlando Ribeiro e as terras da Idanha,
Idanha-a-Nova, Centro Cultural Raiano, pp. 29-36.

7. 1998: “Anti-metropolis ou as paisagens da desolação” 65


in Paisagens do Quotidiano, Encontros de Fotografia,
Coimbra, pp 47-51.
4   Índice território & imagem    5

8. 2000: “Três sinais, uma visão” in Um País de Longínquas 69 18. 2013: “Fotografia e Paisagem” in Transversalidades – 132
Fronteiras, C. M. Guarda, pp 33-34. Fotografia sem Fronteiras, CEI, Guarda, pp. 27-31.

9. 2001: “O retorno da paisagem à Geografia – 72 19. 2014: “Os transportadores de memórias”, texto 139
apontamentos místicos”, Finisterra, XXXVI, 72, inédito, apresentado num projeto fotográfico de Rodrigo
pp. 83-99. Bettencourt da Câmara.

10. 2002: “Sentir o Lugar, ou as Paisagens da Memória”, 92 20. 2016: “Breve roteiro de memórias e vivências. 141
in Jornal Arquitetos nº. 206, Lisboa, pp. 36-39. Contextos, morais, passado e futuro” in Iberografias
– revista de estudos ibéricos, n.º 12, ano XII, Centro de
11. 2003: “Coimbra e a procura da paisagem” in Coimbra, 96 Estudos Ibéricos, Guarda, pp. 203-217. Com separata.
Centro de Artes Visuais – Encontros de Fotografia,
Coimbra, pp. 22 60. 21. 2017: “As oliveiras – uma perspetiva geográfica e 159
sentimental” in Renée Gagnon, Now and Ever. Oliveiras,
12. 2003: “Tradição, Modernidade, Fronteiras” in Raia 108 Ed. Giefarte, Lisboa, pp. 48 53.
sem Fronteiras, C. M. Castelo Branco, 5 pp.
22. 2017: “A propósito das expedições de João Paulo 165
13. 2003: “O fascínio dos mapas” in Coimbra: o País e o 115 Feliciano a Xabregas City” in Feliciano, J. P. (autor)
Mundo – Olhar o mundo, ler o território: Uma viagem pelos Xabregas City, Ed. Sistema Solar, CRL (documenta),
mapas (colecção Nabais Conde), Instituto de Estudos Lisboa, pp. 19-24.
Geográficos/Centro de Estudos Geográficos, Faculdade de
Letras da Universidade de Coimbra, pp. 27-31. 23. 2017: “Cenas de uma vila alentejana: Amareleja – 177
a urbanidade da grande aldeia” in José Manuel
14. 2004: “A Propósito de Raia e de Fronteira” in 119 Rodrigues, Amareleja – As Paisagens Rurais, C. M. de
Fronteiras, espelhos do mundo, fotografia, C. M. Castelo Moura, pp. 29-37.
Branco, 4 pp.
24. 2018: “Geografias do Sofrimento e da Melancolia” 186
15. 2005: “Nota de Apresentação” in Jacinto, R. (autor) 122 in Jacinto, R. (Coord.) Transversalidades – Fotografia sem
Entre Margens e Fronteiras – para uma geografia das fronteiras: pessoas, olhares, outros lugares, Centro de Estudos
ausências e das identidades raianas, Colecção Iberografias, Ibéricos, Guarda, pp. 34-35
nº. 4, Campo das Letras Editores, Porto, 2 p.

16. 2008: “Guarda, cidade de fronteira, para sempre”, 124


in Um (eterno) olhar – Eduardo Lourenço, Virgílio Ferreira
e a Guarda, CEI, Guarda, pp 217-221.

17. 2009: “Prefácio”, ”, in Simões, José Manuel (2009). 130


Pessoas & Territórios: catálogo. [Lisboa]: Governo Civil
de Lisboa. 2 pp.
. apresentação

P
ara além dos acasos e das circunstâncias, esta coletânea de textos
deve muito ao interesse e à amizade do meu querido discípulo e co-
lega Rui Jacinto, a que me unem já quase 50 anos de convívio e de
trabalho em torno do desenvolvimento da Região Centro e com particular
incidência na Beira Interior, entre Tejo e Douro. Sobre essa experiência
qualquer um de nós poderia escrever umas memórias a pensar na apren-
dizagem das práticas de desenvolvimento e ordenamento do território e
das pessoas com quem partilhámos experiências, tanto a nível institucional
como nos milhares de contatos, nas cidades e nas aldeias, em inquéritos
profissionais ou conversas ao acaso das circunstâncias. De entre os vários
contributos que conseguimos da comunidade científica, portuguesa e es-
trangeira, seja-me permitido distinguir o Professor Peter Gould, que tam-
bém se entusiasmou com o potencial de aprendizagem que encerra a Beira
Interior, mormente a Cova da Beira.

Correndo o risco óbvio de esquecer pessoas com quem também aprende-


mos, não posso deixar de referir um dos presidentes da CCDR, também por
ser aquele com quem tive o mais longo convívio de trabalho, o Professor
Manuel Porto, um entusiasta do desenvolvimento territorial. De seguida
poderia evocar um grande número de autarcas, mormente de presidentes
de câmara, que deixaram obras notabilíssimas na Beira Interior, e que, sem
dúvida, têm contribuído para a utopia municipalista, que, depois de Félix
Henriques Nogueira e de Alexandre Herculano, encontrou por aqui dos
melhores representantes na sequência do progresso do “Poder Local” nasci-
do do 25 de Abril de 1974. Que pena, que prejuízo, não se ter aprofundado,
coerentemente, o modelo municipal.
8   Apresentação território & imagem    9

Entretanto, sem esquecer a comovente homenagem que teve lugar no Fun- Orlando também pertencia. Foi logo programada uma mostra, com cura-
dão em 4 de junho de 2013, com curadoria de Pedro Salvado, e em que doria de Maria Tereza Siza, que não só produziu uma belíssima exposição
fui amavelmente distinguido pelos presidentes das Câmaras da Guarda, da como um livro competente: Orlando Ribeiro, Finisterra, 1994, Encontros
Covilhã, do Fundão e de Castelo Branco, seja-me permitido eleger como de Fotografia.
representante o Presidente Joaquim Mourão, da Idanha e de Castelo Bran-
co, pelas suas qualidades para assumir e demonstrar a bondade da utopia Com Albano da Silva Pereira comecei a olhar a fotografia, já não tanto pelo
municipal. seu valor documental, mas como um dos vértices das artes visuais, eu que
desde os tempos de liceu, impulsionado pelo Professor Fernando Fernan-
Por outro lado, numa segunda fase da sua atividade profissional, Rui Jacin- des, aprendera a distinguir a pintura. Com o tempo a Fotografia conquistou
to, a partir do Centro de Estudos Ibéricos, na cidade da Guarda, tem vindo o meu espírito. Também com a ajuda e o entusiasmo da Ana e da Mariana,
a desenvolver um trabalho de grande projeção regional, nacional e inter- minhas mestras da vida. Por isso foi com uma enorme alegria e entusiasmo,
nacional, em que a prática fotográfica constitui a base, o ponto de partida mas também timidez, que aceitei o convite do João Paulo Feliciano e do
para leituras sobre o desenvolvimento dos territórios. É nesse contexto que José Manuel Rodrigues para escrever para os seus livros sobre Xabregas
me tem convidado para colaborar, sob diferentes formas. Alguns dos textos e sobre a Amareleja, dois polos da nossa cultura territorial, do Litoral ao
que agora se apresentam decorrem dessa colaboração com o Rui Jacinto e Interior, da cidade pós-industrial à aldeia pós-agrária.
o Centro de Estudos Ibéricos. É num âmbito alargado desta colaboração
que ocorre o desafio que me foi dirigido pelo Rui Jacinto para publicar uma No apartado competente faço os agradecimentos mais imediatamente re-
coletânea de textos associados à fotografia. Partiu dele a primeira lista de lacionados com esta publicação, mas não quis deixar de antecipar uma re-
textos, pouco diferente da que agora se apresenta. Dela constava uma in- ferência ao Diogo Lidónio pela excelente ajuda na edição dos textos e pela
tegração dos mapas, o que, além de ser muito pertinente, me ajuda agora a sugestão, logo aceite, de incluir um texto que escrevi na viragem do século
saudar três artistas que muito aprecio: Pedro Calapez, Rigo e Rui Calçada sobre a paisagem na geografia, que ajuda a aprofundar as questões relacio-
Bastos. nadas com imagem e território.

Basta olhar para o índice desta publicação, que encerra uma cronologia, A coletânea que segue rigorosamente a ordem cronológica da produção
para verificar como se iniciou esta “divagação” da minha escrita, sempre li- termina com um dos textos–comentário a um conjunto de fotografias que o
gada à Geografia e ao Território, mas nalguns momentos tendo a Fotografia Rui Jacinto me enviou: um conjunto de rostos, bem representativos do que
como maior referência: pois foi pelo impulso e convites do meu amigo Al- é e do que têm sido as geografias do Planeta: sofrimento e melancolia. Ain-
bano da Silva Pereira, com quem, ao longo de mais de três décadas, tenho da assim, evocaram-me lembranças esperançosas do tempo em que vivi,
feito profícuas trocas intelectuais, que se podem resumir assim: Fotografia através da obra de mestres como o Professor João Lopes Soares e da poesia
versus Geografia. E tudo começou à volta dos Encontros de Fotografia, musical de Zeca Afonso: Em cada rosto igualdade, a utopia que merece uma
fantástica iniciativa do Albano, para a qual chamou os melhores fotógrafos, vida.
portugueses e estrangeiros, mas também gentes de outras “artes”.
Jorge Gaspar
Foi desse convívio que um dia levei o Albano da Silva Pereira a visitar a 03/2022
“Fototeca” do Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa,
então no edifício da Faculdade de Letras, para lhe apresentar a obra fo-
tográfica de Orlando Ribeiro, já conhecida, inclusive, nos seus livros de
geografia, mas não no meio da Fotografia, onde, como se veio a verificar,
. Jorge Gaspar
ou A Arte do
Território 1

“Chegado a esta fase da minha vida é já muito difícil ver alguma coisa que
não pelo filtro da Geografia, do onde das coisas e das pessoas, que com as
coordenadas definem os lugares. (…) Sinto-me numa vertigem, procuro uma
âncora, no espaço e no tempo, seguro-me na tábua cronológica: já que as
geografias são insuficientes, vou procurar os lugares na cronologia, decifrar as
memórias apagadas nestes rostos que para já estão imobilizados no tempo.”
Jorge Gaspar (2018). Geografias do sofrimento e da melancolia.

1. Imagem & Território: Jorge Gaspar, a Geografia e a


fotografia

A atividade pedagógica, o desempenho profissional e a amplitude da obra


alcandoraram Jorge Gaspar ao lugar cimeiro da geografia portuguesa. Os
inúmeros títulos que publicou desde final dos anos 60, que se desmultipli-
cam por um universo temático multifacetado, incluem livros, artigos e en-
saios que se dispersam entre o pensamento geográfico, a história e o ensino
da geografia, a geografia económica, os estudos urbanos e a importância
das comunicação e telecomunicações para o desenvolvimento regional e
urbano. É ainda de assinalar a panóplia de trabalhos sobre o planeamento e

1  O CEI, ao promover esta edição que será lançada nos V Encontros Imagem & Território, dá publico
testemunho da colaboração de Jorge Gaspar nas suas atividades enquanto reconhece a importância
das suas reflexões como pressupostos teóricos em que assenta o evento. Associa-se ainda, com esta
iniciativa, à celebração do cinquentenário da publicação de A área de influência de Évora (1972), a
sua tese de doutoramento, obra que constitui um marco na história da Geografia portuguesa. Pes-
soalmente é uma honra ter sido convidado a escrever algumas palavras na abertura dum livro onde a
fotografia está sempre em pano de fundo.
12    Jorge Gaspar ou A Arte do Território território & imagem    13

o ordenamento do território, as regiões portuguesas e outras matérias perti- Alcanices (1997), que incorpora Setecentos Anos até a Nova Fronteira; (iii)
nentes para a compreensão da evolução económica, social e territorial, isto Raia sem Fronteiras (Castelo Branco, 2003), o evento cultural que esteve na
é, para acompanharmos a recomposição do mapa de Portugal na segunda origem da revista homónima que contém o ensaio Tradição, Modernidade,
metade do século XX. Fronteiras; (iv) Fronteiras, espelhos do mundo, exposição cujo catálogo con-
tém o inédito A Propósito de Raia e de Fronteira (Castelo Branco, 2004).
O vasto curriculum, sucintamente esboçado, suficiente para justificar, por
si só, a presente edição, apenas evidencia a qualificada colaboração, antiga Este labor foi correlativo do empenho de Jorge Gaspar no estudo da Beira
e sempre renovada, que Jorge Gaspar tem mantido com o CEI, patente Interior enquanto especialista de planeamento, ordenamento do território
em diferentes textos publicados em várias edições do Centro. Além das e desenvolvimento regional. Foi neste âmbito, nos longínquos anos 70 e nos
intervenções em seminários e conferências lembremos as seguintes contri- meandros dos caminhos da parte mais marginal da Beira que se cruzaram
buições: Três sinais, uma visão (in Um País de Longínquas Fronteiras, 2000), as nossas vidas pessoais e profissionais. A democracia estava a dar os pri-
Guarda, cidade de fronteira, para sempre (in Um (eterno) olhar – Eduardo meiros passos, vivíamos o rescaldo do IIIº Plano de Fomento e o Regadio da
Lourenço, Virgílio Ferreira e a Guarda, 2008), Fotografia e Paisagem (2013) Cova da Beira era apresentado como um projeto cuja concretização estaria
e Geografias do Sofrimento e da Melancolia (2018), colaborações integradas para breve. Em 1977 começamos a calcorrear as aldeias da Cova da Beira
no projeto Transversalidades. Fotografia sem Fronteiras. e a fazer inquéritos para identificar os proprietários mais sensíveis à adesão
a inovações na agricultura. Nesse período de boa memória, quando todos
Os escritos de Jorge Gaspar a pretexto da fotografia não se esgotam nos en- os sonhos pareciam possíveis e eram elevadas as expetativas do regadio es-
saios atrás referidos pois estão dispersos num número apreciável de edições, tancar o êxodo rural, existia a esperança dum futuro mais promissor e com
lançadas a propósito de exposições e outros eventos que, na maioria dos melhores condições de vida para quem vivia no campo. Estávamos longe
casos, tiveram lugar na Região Centro. Importa destacar as colaborações de imaginar que, ontem como hoje, quem trabalha a terra continua refém
que o associam aos Encontros de Fotografia, eventos anuais que se realiza- e dependente do agronegócio. Foram tempos de enorme aprendizagem, de
vam em Coimbra e marcantes, como fez notar Mariana Gaspar (2013), aquisição de conhecimentos que se revelaram determinantes para o dese-
dum certo período da fotografia em Portugal. Entre os ensaios aqui reuni- nho de políticas públicas e o lançamento de novos projetos que deram um
dos e editados em diferentes publicações destes Encontros estão Campos do contributo inestimável ao desenvolvimento da Beira Interior.
Mondego (Vale do Mondego, 1993), O Olhar do Geógrafo. Orlando Ribeiro
(Finisterra, 1994), Itinerários de Fronteira (Itinerários de Fronteira, 1994), A par desta intensa atividade profissional Jorge Gaspar nunca deixou de
Anti-metropolis ou as paisagens da desolação (Paisagens do Quotidiano, 1998) partilhar as suas reflexões nem de colaborar em eventos onde a fotografia
e Coimbra e a procura da paisagem (Coimbra, 2003). servia de pretexto para lançar novos olhares e abrir outros caminhos para
uma leitura mais assertiva destes territórios. A fotografia não se encarava
A sua colaboração foi preciosa para estimular iniciativas que por essa altura como um fim mas um meio ao serviço duma causa nobre: reverter a ima-
se começaram a realizar na Beira Interior onde se explorou a relação entre gem negativa e estereotipada que se havia abatido sobre os espaços mais
fotografia e território. Jorge Gaspar preparou vários textos para eventos deprimidos do Interior, invariavelmente apresentados a preto e branco,
como: (i) Orlando Ribeiro e as terras da Idanha, exposição que coincidiu com decadentes e parados no tempo. Esta imagem, que nunca deixou de estar
a inauguração do Centro Cultural Raiano (Idanha, 1997), cujo catálogo in- associada a tais espaços, além de estigmatizante, apenas acentua a já depau-
clui o ensaio Orlando Ribeiro et les Pays a l’Est de Castelo Branco, bem como perada autoestima dos seus habitantes. Reverter este ciclo vicioso também
Códigos para uma Geografia, texto do catálogo de Manto de Ceres, exposição passa por renovar a imagem que continua colada ao Interior, pela urgência
inaugurada na mesma data (1997); (ii) Linha de Fronteira, exposição reali- em projetar sinais dum cosmopolitismo mais consentâneo com as novas
zada no Museu da Guarda, destinada a celebrar o centenário do Tratado de dinâmicas e as geografias emergentes.
14    Jorge Gaspar ou A Arte do Território território & imagem    15

Os dispersos de Jorge Gaspar elaborados sob este pretexto são ensaios cur- “Se o objetivo da Geografia é contribuir para o conhecimento do Planeta,
tos, com dimensões variáveis, que cobrem um arco temporal de mais de não nos pode surpreender que o aparecimento da fotografia no século XIX
vinte e cinco anos. Em muitos casos vieram a lume para celebrar a concre- tenha contribuído para novas perspetivas do trabalho dos geógrafos. Assim,
tização de projetos, materiais ou intangíveis, apoiados no âmbito de pro- ao mesmo tempo que as técnicas fotográficas progrediram e se consolidaram,
gramas de cooperação transfronteiriça, cujos efeitos ainda perduram. Os a Geografia progrediu e afirmou-se como domínio científico.”
projetos materiais, como pontes, equipamentos, acessibilidades, renovação Jorge Gaspar (2013). Fotografia e paisagem.
urbana, requalificação do património, etc., ou os imateriais, aparentemente
mais efémeros, foram decisivos para reverter a face e outro modo de olhar
2. Geo(foto)grafia: os caminhos (próximos e paralelos)
esta parcela do país. Entre os textos agora compilados importa referir os
 da Geografia e da fotografia
preparados para a inauguração do Centro Cultural Raiano (CCR, 1997),
o festival Raia Sem Fronteiras (RsF, 2004) ou os incluídos em publicações
comemorativas do Oitavo Centenário da cidade da Guarda (1999) e da As afinidades entre a Geografia e a fotografia, além das reminiscências ge-
inauguração da Biblioteca Municipal Eduardo Lourenço (2008). néticas e etimológicas, foram reforçadas pelas possibilidades que esta téc-
nica proporcionou e que explicam os caminhos próximos e quase paralelos
A edição destes dispersos, além das razões já evocadas, encontra ainda jus- que ambas trilharam desde o início do século XIX. A primeira fotografia
tificação por, maioritariamente, terem como foco a Região Centro (16 em reconhecida, normalmente atribuída a Joseph Nicéphore Niépce (1826),
24). Não é despiciendo o facto de o livro incluir imagens de muitos autores é praticamente contemporânea do aparecimento das Sociedades de Geo-
que são referência no panorama fotográfico nacional, de que são exemplo grafia e da difusão desta ciência no mundo: depois da primeira sociedade
José Manuel Rodrigues, Paulo Nozolino, Albano da Silva Pereira, Monteiro criada em Paris (1821), seguiu-se a de Berlim (1828) e a de Londres (Royal
Gil ou Duarte Belo. A leitura em bloco destes ensaios encerra ainda o inte- Geographical Society, 1830); a Sociedade de Geografia de Lisboa só será
resse acrescido de acompanhar sucessivos contributos de Jorge Gaspar para criada em 1875. O interesse e popularidade crescentes da Geografia, res-
(des)construir algumas ideias feitas e renovar conceitos como raia, frontei- ponsáveis pela sua rápida difusão, associados ao prestígio e credibilidade
ra, interior. O discurso então vigente, acrítico e desajustado duma leitura que granjeou justificam o seu acolhimento nas Universidades. Como se
assertiva da realidade regional, apresentava-se nefasto e pouco propício a sabe, etimologicamente, grafé e grafis significa escrita, contraste ou dese-
gerar as terapêuticas mais eficazes para o desenvolvimento do Interior. Sem nhar com luz, enquanto o radical fós remete para luz e geo para terra. A im-
esquecer que os Encontros Imagem & Território são subsidiários de muitas bricação de tais palavras no vocábulo geo(foto)grafia, em última instância,
ideias que percorrem estes ensaios. (con)fundem no propósito, comum à Geografia e à fotografia, de, através
da luz, descrever a terra.
A relação entre o geógrafo, a Geografia e a fotografia, nem sempre pacífica
apesar de antiga e frutuosa, assenta numa certa tensão que também percor- A génese temporal, a afinidade etimológica e as perspetivas de trabalho
re a obra de Jorge Gaspar, como se nota na mudança de atitude, em termos abertas pela fotografia para conhecimento do Planeta estão na origem
académicos, relativamente à fotografia. Tentaremos descodificar esta traje- da cumplicidade que se estabeleceu entre a Geografia e a fotografia. Não
tória a partir de três olhares convergentes: os caminhos da Geografia e da admira, pois, que “os primeiros laboratórios de Geografia do início do sé-
Fotografia; rutura e reconciliação ou os (re)Encontros do Geógrafo com a culo XX tenham atribuído um lugar central à fotografia, tanto nos seus
fotografia; território & arte: Ó Barbas, descreve a paisagem! equipamentos como nas coleções, a par com mapas e atlas, com os quais
aliás a imagem fotográfica foi construindo relações e associações originais
e fecundas. Correlativamente, os livros e os artigos das revistas de Geogra-
fia passaram a apresentar regularmente ilustrações fotográficas, ao mesmo
16    Jorge Gaspar ou A Arte do Território território & imagem    17

tempo que a fotografia contribuía para o reforço do paradigma paisagístico no: a das relações recíprocas entre o homem e a terra” (Vidal de la Blache
da Geografia”. É Jorge Gaspar quem nos informa estar a fotografia “tão in Brunhes, ob. cit.: 21).
fortemente associada ao progresso científico da Geografia que o congresso
da UGI que teve lugar em Washington DC, em 1904, aprovou a proposta A novel geografia portuguesa, umbilicalmente ligada à escola francesa aca-
do geomorfólogo alemão Albrecht Penck para que se promovesse um le- baria por receber a influência dos autores mais destacados do período inicial
vantamento fotográfico da superfície da Terra, o que viria a originar o Atlas desta escola, onde pontificavam, além do mestre Vidal de la Blache, nomes
Photographique des Formes du Relief Terrestre, da autoria de Jean Brunhes, como Emmanuel de Martonne, André Cailleux, Jean Brunhes ou Albert De-
Émile Chaix e Emmanuelle De Martonne, cujas primeiras lâminas foram mangeon. A par do uso da fotografia nos respetivos trabalhos, bibliografia
apresentadas por De Martonne no X Congresso Internacional de Geogra- que serviu de modelo à primeira geração de geógrafos portugueses, importa
fia, Roma, em 1913. Mais ambicioso seria o banqueiro Albert Khan que em realçar que alguns destes nomes inspiraram e dirigiram os Atlas Photographi-
1909 inicia o projecto de levantamento fotográfico e cinematográfico, Les que des Formes du Relief Terrestre e Les Archives de la Planète. Não podemos
Archives de la Planète, para cuja direcção científica convida, em 1912, o ainda negligenciar a influência da National Geographic Society, instituída
geógrafo Jean Brunhes, projecto que terminaria por efeito da grande crise em 1888, que sempre se apoiou na fotografia para difundir uma certa imagem
financeira de 1929. Entre 1909 e 1931 foram realizados e arquivados 72000 do mundo e um modo de estar e praticar esta ciência. A primeira geração
autocromos, 4000 fotografias a preto e branco, e cerca de 100 horas de fil- de geógrafos portugueses, em conformidade com o padrão dominante, não
me, abrangendo meia centena de países. Este acervo pode ser visitado em enjeitou nem ficou indiferente à fotografia como recurso adotado na investi-
Paris, no museu Albert Khan” (Gaspar, 2013). gação geográfica, como bem documenta a obra de Amorim Girão, Orlando
Ribeiro, Alfredo Fernandes Martins ou, mesmo, Jorge Gaspar.
Jean Brunhes, o primeiro a usar a expressão Geografia Humana, teve gran-
de responsabilidade no acolhimento e popularidade da fotografia entre a Amorim Girão, que recorreu à fotografia logo nas provas académicas, usou
comunidade geográfica. Recordemos que este autor dedicou à fotografia este tipo de imagem na Dissertação de Doutoramento em Geografia (A
“um tomo distinto, o III, no final da obra” da edição original da obra a que Bacia do Vouga. Estudo Geográfico, 1922), ao colocar 4 fotografias, sendo 2
deu o título de Geografia Humana (Pierre Deffontaines, in Brunhes, 1962 captadas pelo próprio e outras 2 da autoria de Anselmo Ferraz de Carvalho.
[3ª ed., 1956]: 17). Deffontaines chamaria à atenção que “foi ele quem im- Justifica o escasso número porque a “documentação sempre indispensável
pôs a denominação “Geografia Humana”, em lugar da Antropogeografia” em livros desta natureza – mapas, desenhos, fotografias-– muito se res-
(p. 9), antes mesmo da edição dos Princípios de Geografia Humana por Vidal sentiu também das dificuldades materiais ocasionadas pela actual carestia
de la Blache (1922). Nesta data já Brunhes, além da referida publicação, dos artigos de impressão” (Girão, 1922: XII). O trabalho de Dissertação
tinha outras edições como La Geographie Humaine de la France (1920) e, de concurso para Assistente da FLUC (Viseu. Estudo de uma aglomeração
em colaboração com Camille Vallaux, La Geographie de l’ Histoire (1921). urbana, 1925) não apresenta qualquer fotografia salvo uns desenhos à mão
Vidal de la Blache já havia reconhecido este facto quando apresentou, em feitos a partir de fotografias. A partir daqui, já com outro estatuto e outros
1901, o trabalho do seu discípulo: “Tenho a honra de apresentar à Acade- recursos, passou a incluir maior número de imagens nos seus trabalhos,
mia a Geografia Humana, de Jean Brunhes. O autor havia publicado há sejam mapas (Esboço duma Carta regional de Portugal, 1933; Atlas de Portu-
alguns anos, já sob o título de Etude de Géographie Humaine, um livro gal, 1941-1958) ou fotografias, como acontece com as Lições de Geografia
justamente apreciado sobre uma das questões que a colonização moderna Humana (1936; 1946) e a Geografia de Portugal (1941; 1949-1951). Estas
colocou, mais do que nunca, na ordem do dia: o emprego da água nas duas últimas obras, abundantemente ilustradas com fotografias, de múlti-
regiões áridas. (…) O nome de Geografia Humana, que sem dúvida será plas proveniências, contêm escassas fotografias do próprio Amorim Girão:
preferido ao de Antropogeografia, lançado por Frédéric Ratzel, exprime a primeira obra (2ª ed.) tem apenas uma foto da sua autoria e meia dúzia a
bem uma das questões que há longo tempo preocupavam o espírito huma- Geografia de Portugal (2ª ed., 1951).
18    Jorge Gaspar ou A Arte do Território território & imagem    19

Orlando Ribeiro foi o geógrafo deste período que estabeleceu uma relação pensar que este espólio alcançou relativa autonomia face à sua vasta obra
mais íntima e cúmplice com a fotografia apesar da sua dissertação de dou- científica. Esta faceta do autor mereceu-nos, num outro contexto, a seguin-
toramento não incluir nenhuma (A Arrábida. Esboço Geográfico, 1935). No te nota: “É irrecusável que este conjunto de fotografias corresponde [a] um
prefácio, justifica o facto porque as “dificuldades materiais não permitiram património inestimável”; “ao leigo das aventuras e andanças de Orlando
que este esboço vá acompanhado de mapas, desenhos e fotografias, hoje Ribeiro escapa a intenção destas imagens, onde o espaço é meticulosamen-
indispensáveis em trabalho desta índole”. Contudo, Contribuição para o es- te esquadrinhado, para virem mais tarde a constituir panorâmicas ou con-
tudo do pastoreio na Serra da Estrela, o artigo que publica volvidos poucos trastes, construídos com tesoura e cola, quase inventados na sua realidade.
anos, já inclui 24 fotografias, além de mapas, quadros e um desenho (Revis- Neste sentido é que podemos dizer que uma chapa de Orlando Ribeiro é
ta da Faculdade de Letras, da Universidade de Lisboa, 1940/41). A lendária sempre única, nomeadamente quando se faz a história da sua fotografia”
Leica que adquiriu durante a estadia em Paris passará a ser companheira in- (Jacinto e Siza, 1977).
separável em todas as viagens, responsável pela melhoria da qualidade das
imagens e pelo desenvolvimento da sua forma muito particular de olhar. O Alfredo Fernandes Martins, por seu lado, sempre manifestou uma preocu-
valor documental e a qualidade técnica e estética, conjugada com razões pação estética com as imagens que captou para os trabalhos académicos
pessoais (método, organização e arquivo dos negativos) justificam a proje- ou outros fins, a avaliar pelas poucas fotografias, dispersas e avulso, que
ção que irá alcançar o legado fotográfico de Orlando Ribeiro. Importa re- chegaram até nós. As principais obras que publicou estão povoadas dum
conhecer que esta projeção foi conseguida quando começou a ser divulgado número significativo de fotografias da sua autoria desde a tese de licencia-
autonomamente por empenho de Suzanne Daveau e, fundamentalmente, tura (O esforço do Homem na Bacia do Mondego, 1940) à de doutoramento
de Jorge Gaspar. Foi este seu discípulo o primeiro a reconhecer a qualida- (O Maciço Calcário Estremenho, 1949). Não podemos esquecer os Princípios
de intrínseca da obra fotográfica de Orlando Ribeiro, empenhando-se na de Geografia humana de Vidal de la Blache, editados em 1922, que traduziu
sua difusão ao sugerir a exposição que integrou os Encontros de Fotografia em 1946, obra capital para se compreenderem os alicerces fundacionais da
(Finisterra, Convento de Cruz de Celas, Coimbra, 1994). Seguiu-se a esta moderna Geografia. A edição portuguesa desta obra foi consideravelmente
exposição Orlando Ribeiro e as terras da Idanha (Centro Cultural Raiano, qualificada com ilustrações introduzidas por Fernandes Martins, sobretudo
Idanha-a-Nova, 1997), coordenada por Jorge Gaspar, Rui Jacinto e Teresa as dezenas de desenhos à pena feitos pelo próprio punho, que revelam a
Siza 2. Durante décadas, em inúmeras viagens que realizou aquém e além- sua alma de artísta. A inclusão dum anexo com uma seleção criteriosa de
-fronteiras, Orlando Ribeiro captou sistematicamente imagens como do- 61 fotografias, onde constam 6 da sua autoria, visa colmatar a falha que
cumento, registo com fins pedagógicos ou para ilustrar os seus trabalhos. Emmanuel de Martonne admitiu no prefácio da primeira edição, ao referir
A qualidade e identidade intrínseca do seu legado fotográfico leva-nos a que “tal como nos abstivemos de qualquer arranjo do texto, assim renun-
ciamos também a executar ou terminar, assaz numerosas, já que o autor não
fizera mais do que apontar a ideia ou começar a preparação. Por isso, sem
2  As fotografias de Orlando Ribeiro têm sido amplamente divulgadas através de exposições, catá- dúvida, a ilustração é mais pobre do que a teria querido Vidal de La Blache,
logos e livros de que se destacam: 1994: Finisterra. Exposição e respetivo Catálogo (Encontros de mas, ainda assim, pudemos reproduzir os quatro grandes planisférios que
Fotografia); 1997: Orlando Ribeiro e as terras da Idanha (Coord. Jorge Gaspar, Rui Jacinto; Teresa
ele próprio havia estudado até aos últimos pormenores”. Alfredo Fernandes
Siza; Centro Cultural Raiano, Idanha-a-Nova); 1999: Orlando Ribeiro seguido de uma viagem breve
à Serra da Estrela (Duarte Belo); 2003: Além-Mar. Viagens de Orlando Ribeiro (Exposição em Guima- Martins, apesar de apenas tradutor, explica porque “nesta edição portu-
rães organizada por Mário Neves; Universidade do Minho; IV Jornadas de Geografia e Planeamento); guesa, embora correndo o risco de discordância com o plano de ilustração
2003 e 2004: Viagens imaginárias com Orlando Ribeiro (2003); Orlando Ribeiro – a casa e o Mundo do autor, a documentação gráfica foi aumentada com alguns mapas, vários
(2004) (Exposições realizadas na Biblioteca Orlando Ribeiro, Telheiras); 2005: Orlando Ribeiro: Formas desenhos e fotografias. Não teriam sido esses os documentos escolhidos
construtivas elementares (Museu do Canteiro, Alcains; exposição coordenada por Solange Almeida);
2012: Portugal - Luz e Sombra, O País depois de Orlando Ribeiro (Livro de Duarte Belo com fotografias
por La Blache? Ainda assim afigura-se-me conveniente dá-los à estampa,
históricas de Orlando Ribeiro e fotografias atuais e legendas de Duarte Belo). pois sublinham passagens do texto, completando-as pela imagem, o permi-
20    Jorge Gaspar ou A Arte do Território território & imagem    21

tem ver paisagens e factos evocados pelo autor” (p. 24). A qualidade do do autor num momento da sua carreira, e, a outro, de um objeto de estudo
trabalho fotográfico de Fernandes Martins já havia sido reconhecida por com contornos espaciais e temporais muito precisos” (Gaspar, 1980 [1965-
Amorim Girão quando destacou na recensão à tese de licenciatura “es- 1970]: 5). Aquelas imagens, observadas hoje, são o retrato pungente das con-
tarmos perante um excelente fotógrafo”. A apurada sensibilidade estética dições de (sobre)vivência das populações nos campos da Beira Litoral e que
deste humanista ditou a sua relação com a imagem, incluindo a pessoal, nos remetem para um tempo e um modo de vida atualmente irreconhecíveis.
patente, desde logo, no uso que faz do elemento feminino para marcar a
escala do elemento geográfico que fotografa. A mulher, a quem dedica o Jorge Gaspar irá mudar radicalmente o modo de estar na Geografia ao abra-
doutoramento (“camarada que tantas vezes marchou a meu lado”), surge çar novos pressupostos “teóricos, metodológicos” e conceptuais na prática
na tese em poses que fazem lembrar verdadeiros ensaios fotográficos. A desta ciência. Uma alteração tão profunda teve consequências igualmente
outro propósito já havíamos comentado que as fotos de Alfredo Fernan- radicais na relação que passa a estabelecer, no plano académico, com a
des Martins “estão carregadas duma áurea resultante do seu olhar poético, fotografia. A área de influência de Évora (1972), a sua tese de doutoramen-
autêntico, pessoal”, marcadas “por uma inequívoca geograficidade”. A sua to, obra emblemática e de rutura na Geografia portuguesa, espelha bem
sensibilidade “levou-o a povoar de pessoas uma obra fotográfica marcada esta mudança ao apresentar-se completamente despojada de fotografias,
por um humanismo comprometido com os territórios e as gentes mais de- enquanto as demais teses de doutoramento, suas contemporâneas, as
serdadas”. “A fotografia foi, aqui, o instrumento disponível para divulgar continuam a exibir. É uma mudança de paradigma, pleno de significado,
as injustiças, territoriais e sociais, dar a conhecer lugares remotos, fora de como assinalou Orlando Ribeiro ao comentar aquele trabalho: “Inaugura
rota, tão excluídos como as pessoas que neles habitavam. A fotografia foi, a presente série um estudo de orientação completamente nova entre nós;
pois, a maneira que tinha ao seu alcance para as resgatar do anonimato” procura-se, utilizando a observação, o inquérito e a análise estatística, e,
(Jacinto, 2016). tanto quanto possível, por critérios de quantidade, determinar a área de
influência de uma das mais importantes capitais de distrito e a hierarquia e
O uso da fotografia neste período pioneiro da investigação geográfica em organização das aglomerações que lhe estão subordinadas. Além do interes-
Portugal carece duma investigação mais especifica e aturada. Importa lem- se dos resultados próprios, este trabalho fixa uma metodologia em que estão
brar que os três professores orientaram inúmeras teses de licenciatura em interessados não apenas geógrafos, mas economistas e trabalhadores do pla-
Geografia, obrigatórias entre os anos 30 e 1974 para a obtenção deste grau, neamento regional. A presente coleção marca assim, desde o início, o pro-
onde estimularam os alunos a usarem a fotografia nestes trabalhos acadé- pósito de se abrir amplamente tanto ao classicismo como às «novidades»,
micos de introdução à investigação geográfica. O acervo fotográfico que da Ciência Geográfica, e de reservar larga parte às preocupações metodo-
geraram encerra um enorme potencial, como demonstram as 107 teses de lógicas e ao propósito de servir o conhecimento, preciso e objectivo, da
licenciatura em Geografia, apresentadas na Universidade de Coimbra, cujo realidade nacional” (Ribeiro, in Gaspar, 1972).
conteúdo imagético foi explorada para nos fornecer um retrato visual da
evolução do país naquele período (Campar Almeida et al., 2003). O facto de não incluir qualquer fotografia não é um detalhe mas a toma-
da de posição do autor, plena de significado científico, a afirmação duma
Na senda dos mestres, também Jorge Gaspar associou a fotografia à in- rutura, também neste domínio, perante a “velha” Geografia. O convívio
vestigação, designadamente em As feiras de gado na Beira Litoral, tese de com Torsten Hägerstrand, em Lund, que proporcionou a abertura a outros
licenciatura que apresentou em 1965 e que foi dada à estampa em 1970. horizontes e a uma Geografia mais teorética e crítica levou a questionar a
Este estudo, onde incluiu 40 fotografias, foi orientado por Orlando Ribeiro importância da imagem, do mapa à fotografia. “A imagem fotográfica (ima-
segundo os cânones vigentes e os preceitos duma Geografia “tradicional”. Na gem da realidade, maquinal, sem interferência do sujeito)” deixa de ser
introdução à reedição da obra adverte que “este trabalho tem uma coerência vista como “garantia de objetividade” e explica em grande parte o seu papel
interna que decorre, a um tempo, do posicionamento teórico e metodológico de documento e prova científica e a psicologia da recepção do real que
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determina o nosso olhar sobre uma fotografia, logo considerada pelo senso “Não menos difícil, complexa e trabalhosa, foi a tarefa constante de ajustar e
comum como duplo do real. A Fotografia reproduzia o mundo, inegavel- avaliar os conceitos teóricos, no geral e no pormenor, a uma realidade palpá-
mente, de forma mais precisa e minuciosa do que qualquer outra forma de vel, mas fluida, em que a observação do geógrafo, por mais apurada e crítica
representação. (…) A herança pictórica já desde o início contaminara a que seja, pode levar a visões subjectivas, a esquemas falsos, sempre que não
imagem fotográfica, utilizada desde a origem pelos produtores, habitual- queira limitar-se à descrição, ou à interpretação localizada e parcial. Uma
mente desenhistas, cenaristas ou pintores, traduzindo em fotografia a ence- das nossas maiores preocupações foi esse ajustamento entre duas concepções
nação, a gestualidade e a teatralização das artes pictóricas e absorvendo os de fazer geografia: - a teórica e a empírica, uma que assenta em conceitos
seus géneros, paisagem, retrato, alegoria, tipologias... mas acrescentando- básicos generalizantes, outra alicerçada na observação criteriosa dos factos.
-lhe em breve, nomeadamente através da reportagem e do fotojornalismo, o Duas atitudes isoladamente antagónicas, mas que conjugadas se completam:
acontecimento. De acordo com o momento e os seus paradigmas, a imagem complementaridade de método e de atitude, que constitui a chave do trabalho
fotográfica pretende-se documento possível ou o neodocumento subjetivo do investigador em qualquer disciplina e em toda a ciência”.
da fotografia direta, ou a representação simbólica da alegoria, do quadro Jorge Gaspar (1972). A área de influência de Évora.
vivo ou da propaganda” (Maria do Carmo Serén).
3. Da rutura à reconciliação: o Geógrafo e os (Re)Encon-
A enfase teórica e o primado dos modelos interpretativos da organização do
tros com a fotografia
espaço, dos círculos de J. H. von Thünen aos hexágonos de Walter Chris-
taller, também estão alinhados com a desvalorização do papel da fotografia Os debates travados no seio da Geografia no pós-guerra e que se intensi-
e da abertura de caminho à crise profunda do velho casamento que havia ficaram nos anos sessenta do século XX situaram-se entre “empirismos e
mantido com a Geografia. racionalismos: entre a paixão e a razão”. A este propósito lembra Rogério
Haesbaert que “enquanto idealismo e materialismo procuram responder ba-
Esta postura denuncia a cumplicidade de Jorge Gaspar com as correntes sicamente à questão sobre o que determina a própria realidade (o concreto,
que agitavam o meio académico no final dos anos sessenta, apostadas em a matéria, ou a idéia, a consciência), empirismo e racionalismo são formas
desbravas novos horizontes contestando os pressupostos dominantes em de buscar respostas para o que é fundamental no processo de conhecimento
que assentava tanto a Geografia como as demais ciências sociais. Desta dessa realidade (objetiva ou subjetiva): o sensitivo, o “vivido”, a experiên-
forma, era posta em causa a crença acrítica na fotografia enquanto espelho cia, a percepção ou o refletido, o teórico, o racional” (Haesbaert, 2002:
fiel da realidade, a pretensa objetividade que lhe era atribuída para ler e in- 25). Havia-se generalizado a “revolução quantitativa” sob a influência da
terpretar o mundo. Ou, como Gaspar refere subtilmente ao considerar “que “filosofia neopositivista”, ao mesmo tempo que “todas as ciências humanas
a observação do geógrafo, por mais apurada e crítica que seja, pode levar a conheciam grandes mudanças metodológicas”. Após “o estudo da região e a
visões subjectivas, a esquemas falsos (Gaspar, 1972). Ao contestarem o uso crítica do método regional” o que verdadeiramente vai acontecer é “a busca
excessivo da fotografia pela Geografia tradicional, tais correntes tornaram de regiões funcionais organizadas mediante vínculos de interdependência e
esta arte proscrita, salvo entre os olhares mais nostálgicos que nunca a des- complementaridade que aparecem como um caminho viável. Com frequên-
prezaram. A rutura profunda a que se chegou nunca mais restabeleceria a cia, esta organização traduziu-se ou é gerada por uma rede urbana organizada
antiga relação nos mesmo moldes. O reencontro e progressiva reabilitação e polarizada em torno duma capital regional. O estudo das redes urbanas, da
da fotografia, como veremos, foi tímida e mitigada, imposta pela imperio- hierarquia e das áreas de influência das cidades surgiu então como o melhor
sa necessidade dum diálogo mais assertivo e transdisciplinar que apela à caminho para a regionalização” (Capel e Urteaga, 1982: 25-26).
subjetividade e às artes para uma leitura mais holística e enriquecida dos
territórios. O espírito teórico e prático que inspirou A área de influência de Évora
(1972) também enquadra a nova posição da generalidade dos geógrafos
24    Jorge Gaspar ou A Arte do Território território & imagem    25

relativamente à fotografia. Apesar de Paulo Costa Gomes referir que o va- representada) ao contrário do texto que, pela acção súbita de uma única
lor negativo ou positivo que se atribui às imagens não se pode associar palavra, pode fazer passar uma frase da descrição à reflexão –, ela revela
diretamente a um período específico, é por esta altura que “houve uma imediatamente esses por menores que constituem o próprio material do
crescente desconfiança difundida, sobretudo, por alguns autores franceses saber etnológico” (49) (Barthes (2005 [1980]: 49 - 120).
muito influentes: Jean-Paul Sartre e sua concepção sobre o “olhar do ou-
tro”, a demonização do espetáculo por Guy Débord, a crítica antiocular de Tais críticas de índole filosófica, teórica ou, mesmo, política sobre o signi-
Althusser, a ideologia do visível de Commoli ou o pan-óptico de Foucault ficado da fotografia ou a possibilidade de representar a realidade também
são para já sintomas dessa desconfiança que se generalizaria. Mais do que tiveram eco na Geografia. É neste contexto e perante este turbilhão discur-
somente os franceses, a hermenêutica da suspeita, trazida pelas ideias de sivo, que Jorge Gaspar toma partido na contenda, como outros geógrafos,
grandes pensadores que marcaram o século XX, como Marx, Nietzsche e ao abdicar de usar a fotografia nos trabalhos que publica nas décadas se-
Freud, pode ter contribuído para essa postura dominante. De fato, é muito guintes. Tal posição acontece num período em que “o geógrafo adquire a
difícil encontrar uma origem e essa tensão entre o fascínio e a repulsa pelas impressão de se tornar por fim adulto no concerto científico” e de se desem-
imagens parece ser uma marca, um estigma sempre associado a elas” (Costa baraçar “dos seus complexos de literato ou de naturalista para se tornar um
Gomes, 2013: 139). Esta desconfiança é reforçada nos anos 1970 pela “for- técnico digno de fé, um especialista do espaço e da região, um interlocutor
te influência da leitura althusseriana da ideologia como uma representação da reordenação do território. Mas se estes trabalhos já nada deixam ignorar
imaginária que sujeita os indivíduos às reais condições de existência. Daí dos modelos urbanos, dos lugares centrais, das redes e hierarquias, da repar-
decorre a subsequente generalização do convencimento de que boa parte tição das matérias, das formas e dos homens, bem como das suas múltiplas
da produção de imagens, sobretudo o cinema, corresponde à difusão de um inter-relações, a reconstrução de um tal espaço em bases estritamente eco-
ponto de vista comprometido com a reprodução do capitalismo” (Costa nómicas ou demográficas não permite captar na realidade a totalidade das
Gomes, 2013: 139-140). relações que unem os homens aos lugares” (Frémont, 1980 [1976]: 15-16).

Estes debates teóricos decorreram neste mar de tormentas que foi ainda Levantam-se, então, algumas vozes integradas na corrente de geografia
mais agitado por outras vozes influentes e conceituados. Para Susan Sontag, de pendor mais humanista, que emerge como contraponto ao positivismo,
por exemplo, “a fotografia, sendo uma forma de comprovar a experiência é como Armand Fremont, um representante destacado desta linha de pen-
também um meio de a negar, ao limitá-la a uma procura do fotogénico, ao samento, que afirma que “a região, se existe, é um espaço vivido. Vista,
convertê-la numa imagem, numa recordação”. Ou, então, “As fotografias apreendida, sentida, anulada ou rejeitada, modelada pelos homens e pro-
são uma forma de imobilizar e aprisionar a realidade, considerada rebelde jectando neles imagens que os modelam. É um reflexo. Redescobrir a região é
e inacessível. Ou ainda de ampliar uma realidade que sentimos retraída, pois procurar captá-la onde ela existe, vista pelos homens” (Frémont, 1980
esvaziada, perecível, remota. Não se pode possuir a realidade mas pode [1976]: 17).
possuir-se (e ser-se possuído por) imagens” (Sontag (1986 [1973]: 19-144).
Roland Barthes, por seu lado, acentuaria ainda mais as suspeitas ao con- Antoine Bailly, outro alinhado com esta sensibilidade, não deixará de in-
siderar que “A fotografia não diz (forçosamente) aquilo que já não é, mas fluenciar em longas conversas o seu amigo Jorge Gaspar que acabará por
apenas e de certeza aquilo que foi. Esta subtileza é decisiva. Diante de uma (re)considerar não ser totalmente destituído que “o estudo da paisagem
foto, a consciência não segue necessariamente a via nostálgica da recorda- deveria ser reabilitado por outros meios que não os das análises formais.
ção (quantas fotografias estão fora do tempo individual), mas, para toda a Porque as suas formas constituem um universo de signos de criação colec-
fotografia existente no mundo, a via da certeza: a essência da Fotografia tiva, produto mas também obra, imagem criada, recriada e recebida. Ela é,
é ratificar aquilo que representa”. (…) “Como a Fotografia é contingên- nas suas múltiplas faces as de reflexos infiéis, o espelho do mundo” (Fré-
cia pura e não pode ser mais do que isso (é sempre alguma coisa que é mont, 1980 [1976]: 110). Não admira que, volvidos uns anos, venha a
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reconhecer que a fotografia permite “múltiplas interações com a paisagem: da aculturação e da alienação impõem aos homens uma certa imagem dos
registo, arquivo e instrumento de planeamento (guia para a intervenção), lugares onde vivem, do seu espaço, da sua região. E essa imagem, aceite,
ela prolonga ou recupera a contemplação, permitindo ou facilitando ima- recalcada ou recusada, constitui um elemento essencial das combinações
ginar/construir futuros. A fotografia, ao representar a paisagem enquanto regionais, o laço psicológico do homem com o espaço, sem o qual a região
modelo, constitui um campo aberto não só à leitura e interpretação, como seria apenas a adaptação de um grupo a um meio, ou um encontro de inte-
à intervenção, à imaginação, à manipulação, à (re)criação” (Gaspar, 2013. resses num espaço dado” (Frémont, 1980 [1976]: 109-110).
Fotografia e paisagem).
A reaproximação de Jorge Gaspar à fotografia conheceu uma outra faceta
Sem ceder nas convicções teóricas onde alicerçou a sua obra, Jorge Gas- que se intensifica quando começa a colaborar com os Encontros de Fo-
par ensaia uma lenta e discreta (re)aproximação à fotografia por duas vias tografia. A parceria frutuosa que estabelece com Albano da Silva Pereira
distintas e complementares: a fotografia como memória e documento de resultaria num salto qualitativo para os Encontros de Fotografia que ganha-
apoio à leitura do território; a fotografia enquanto arte e uma das mais riam outra amplitude e enraizamento no território (Mariana Gaspar (2013).
lídimas expressões onde pode assentar a relação entre arte e território. Usa Este caminho de reconciliação leva-o a explorar a memória fotográfica dos
a fotografia “à maneira antiga” em As Regiões Portuguesas (1993) no apoia à “clássicos, particularmente do mestre Orlando Ribeiro, patente em duas
leitura do território explicando no prefácio que com o recurso às fotos neste exposições e respetivos catálogos em que participaria: Finisterra (1994) e
tipo do trabalho “sugestionado pelas lições dos mestres, procurámos, na Orlando Ribeiro e as Terras da Idanha (1997). Escreveu a este propósito: “O
medida das nossas possibilidades, desenvolver a apresentação das regiões ofício do Geógrafo, como nos ensinou Orlando Ribeiro, na esteira de Henri
portuguesas, através de um estilo simples e corrido, enquadrado por um Baulig – em artigo que gostava muito de recomendar aos alunos – deveria
plano “clássico”, recorrendo à ilustração cartográfica e fotográfica”. situar-se no cruzamento das artes, das ciências e das técnicas. E a fotografia
era recomendada exatamente como uma técnica de apoio. No entanto,
Se a utilização da fotografia em A Região Centro (2002) segue a linha antiga na prática, Orlando Ribeiro tinha a mesma preocupação com as imagens
de abordagem regional, o recurso às imagens em Planeamento e Ordena- que produzia, que com as palavras que escrevia ou pronunciava: o rigor, a
mento do Território (2006) já assenta noutro tipo de preocupações. Importa clareza e a elegância. (…) Esta prática da Geografia releva de uma atitude
sublinhar que em nenhum dos trabalhos atrás referidos usou fotografias da estética, perante o Mundo, os Homens e o Tempo. Por isso, o rigor cientí-
sua autoria. Apenas publicará 25 imagens de que é autor, criteriosamen- fico é complementado com a poética e prolonga-se no exercício artístico”
te selecionadas, para ilustrar a auto(foto)biografia visual onde desenha o (Gaspar, 1994. O olhar do Geógrafo).
percurso duma vida, académica e de viajante, que intitulou Breve roteiro
de memórias e vivências. Contextos, morais, passado e futuro, publicada em A relação de Jorge Gaspar com a fotografia muda de registo quando começa
Iberografias. Lembremos novamente Fremont quando considera que, “em a pisar estes caminhos: evolui do apoio à memória e leitura do território
última instância, o espaço regional é também uma imagem. Entre os homens e para a arte, procurando estabelecer um compromisso fecundo entre território
o espaço em que vivem, uma das relações mais fundamentais é a da percep- e arte. Aqui chegados, pensando na relação de Jorge Gaspar com a fotografia,
ção, do comportamento psicológico em relação a um espaço vivido. Porque, atrevo-me a pensar, como Vidal de la Blache quando se referiu a Jean Bru-
se o comportamento difere profundamente de acordo com as idades, os nhes, estarmos perante “um excelente observador, dotado de um sentido es-
sexos, as situações sociais, os caracteres, como mostramos, se os espaços vi- tético que parece aguçar a sagacidade crítica: “Não vê quem quer”, disse ele,
vidos, centrados em cada pessoa, são tão numerosos, variados, multiformes em algum lugar. “Viu a Espanha, a Africa do Norte, a Palestina, o Cáucaso,
quanto o podem ser os homens, a composição dessas percepções, desses e assim soube reunir um tesouro de imagens características do qual nos faz
comportamentos, não é por isso regida pelo acaso absoluto: o espaço vivi- participar” (Vidal de la Blache (1901), in Brunhes, 1962: 21).
do é também parte integrante do condicionamento social. Os mecanismos
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“Agora, viajando na luz coada do Outono, no Outono de uma vida de percur- vívio com a arte e os artistas, alcançar uma novíssima geografia (O fascínio
sos mapeados a diferentes escalas, interesso-me mais e mais pela descoberta dos mapas, 2003). É uma atitude que abraça como projeto de vida e que
das descobertas dos artistas, que também se deixam fascinar pelos mapas e o vai levar a um modo muito próprio de estar na Geografia onde, a par-
pelas escalas. E, à medida que percorro museus, galerias e outros “sites”, vai- tir deste universo, prosseguirá a reinvenção duma Geografia mais holística
se abrindo uma nova geografia, feita de itinerários, julgo que até ao infinito, (Volvey, 2014 ; Blanc e Regnauld, 2015).
neste tempo e espaço de múltiplos nomadismos. Dos aprofundamentos topo-
gráficos às sínteses globais” Continuei a aprender muita Geografia com Jorge Gaspar quando espraiou o
seu olhar sobre o território a partir desta nova janela. Foi um privilégio ou-
Jorge Gaspar (2003). O fascínio dos mapas.
vi-lo dissertar, a partir desta perspetiva, sobre a intervenção no espaço (sub)
urbano de artistas que me eram ainda desconhecidos: foi ele a quem ouvi
4. Arte & Território: Ó Barbas, descreve a paisagem! falar pela primeira vez de Alexandre Farto, o Vhils. Também neste campo
foi um inovador como no passado nos revelava novos autores e apresentava
Voltemos a Frémont para recordar que “o crescimento, a urbanização, o a bibliografia mais atual.
condicionamento mundial fizeram explodir o velho conceito de «região»”
quando nos deparamos com “um mundo à procura de si próprio, [onde] a A fotografia teve neste processo um papel importante até pela capacidade
geografia escapa aos geógrafos”, conclui-se, com naturalidade, que “é preciso que encerra de transformar ou formar o olhar de cada um para o mundo
reaprender o espaço e reaprender a aprendê-lo” (Frémont, 1980 [1976]: 257). e para si próprio. Ou, como outros afirmam, “toda a fotografia é um au-
Muitos geógrafos, adotando esta linha de pensamento, “falam da Geografia torretrato: o fotógrafo revela a si mesmo quando constrói o seu universo
como uma forma de Arte ou pensam em como fazer da arte um campo da geofotográfico e isso fica evidente quando se compreendem as suas inten-
Geografia”, perspetiva que se transformou num objetivo explícito da Geo- cionalidades (Pidner, 2017: 306).
grafia Humanista e levou outros autores a colocar uma questão ainda mais
radical: “é possível fazer Geografia sem a presença da Arte?” (Holzer, 2010). O corolário deste percurso culmina na exposição Ó Barbas, descreve a
paisagem!3, recentemente apresentada em Coimbra (2021). Ninguém me-
Começou-se por irmanar a explicação com a compreensão, a partir de um lhor para nos informar sobre o olhar do colecionador sobre a arte a partir
desta parcela da sua coleção exposta que a curadora da exposição, Mariana
gênero literário eminentemente geográfico: as narrativas de viagem. La
Marin Gaspar. Começa por nos elucidar que a mostra, como sugere o título,
Blache, por exemplo, herdeiro e divulgador de Humboldt, como Élisée Re-
é sobre a paisagem. Tudo parece ter começado num longínquo outono de
clus ou De Martonne, embora pouco ou nada fale de arte, acaba por enun-
1960, quando na “primeira saída de campo dos jovens alunos do curso de
ciar “a ligação entre a explicação e a compreensão, ou seja, entre a ciência e
Geografia”, Orlando Ribeiro “terá dirigido ao aluno a seguinte convocação:
arte” (Da Interpretação Geográfica das Paisagens, 1908; Holzer, 2010: 377-
Ó Barbas, descreve a paisagem!”. Esclarece “que a presente exposição não
387). Muito tarde, Tuan (1961), ao tornar a geosofia em topofilia, conceito
procura traçar um retrato do colecionador, tão pouco ser representativa da
apropriado de Bachelard e “definido como o amor pela natureza”, sugere
coleção como um todo; também não pretende avançar com uma ideia fe-
“a via para que os geógrafos se afastem de suas obrigações, as de descrever chada daquilo que possa ser hoje entendido como paisagem, uma definição,
as paisagens até retratar toda a Terra, para se unir aos poetas e artistas que
retratam o seu esplendor, a partir de uma atitude de observação atenta do
mundo que nos rodeia” (Holzer, 2020: 415) TUAN, 1961, p. 32).
3  “Ó barbas, descreve a paisagem!” (Obras da Coleção Marin Gaspar), exposição resultante duma
parceria entre o CAV e a Câmara Municipal de Coimbra, com curadoria de Mariana Marin Gaspar, que
Jorge Gaspar, por sua vez, também ensaiará novos caminhos quando come-
esteve patente na Casa da Cultura de Coimbra entre 22 de Outubro e 28 de Novembro de 2021. As
ça a fazer trabalho de campo duma nova geração na expetativa de, no con- citações que se seguem, da autoria da curadora, são retiradas da folha de sala da exposição.
30    Jorge Gaspar ou A Arte do Território território & imagem    31

outra, mais uma... E ao mesmo tempo tem destas matérias, chamemos- passo do tempo, servindo de registo, apoiando a memória, tanto quanto
-lhes assim, uma pequena expressão em jeito de convite dirigido ao especta- a imaginação. As obras reunidas numa coleção refletem um tempo mas
dor. Até porque, colecionador, coleção e paisagem, comunicam entre si, quer também um temperamento, uma curiosidade, interesses que se cruzam,
pela própria natureza, ou essência, se o preferirmos, de cada um/a, quer pelas outros que se descobrem, estados de ânimo, opções refletidas ou simples
circunstâncias específicas, pessoais e profissionais que aqui as une”. impulsos; refletem ainda as relações várias que se vão estabelecendo com
artistas, com galeristas, com colegas, e sobretudo, concordâncias e discor-
Depois de nos fornecer o seu ponto de vista sobre a paisagem4 fala-nos do dâncias no seio familiar porque, diria, “gostos também se discutem”. (…)
colecionador e da coleção: “Toda a coleção é o resultado de uma reu- “Este colecionador é essencialmente um curioso, e a sua coleção, produto
nião” (...) “fruto da seleção e da combinação – a coleção como discur- dessa mesma curiosidade, da vontade de ir, de conhecer, de compreender;
so, portanto –, distingue-se da acumulação indiscriminada”. A curadora, traçar ligações, unir pontos, associar livremente, na maior parte das vezes
quem melhor e mais profundamente conhece o colecionador, refere que “o no recato do seu acervo ou da sua casa, outras, mais raras, partilhando este
conjunto de objetos que constitui uma coleção, conta e encena, de algum seu mundo com outros curiosos, na convicção que esta seja também uma
modo, ou de múltiplas formas, um diálogo fecundo com a vida do colecio- forma de cuidar do seu jardim e abrir caminho: “Um tal atlas tem de servir
nador, também ela plural e dinâmica, também ela, uma história em aberto. para muita coisa; guia orientador e arca salvadora, onde se vai procurar um
Por vezes refúgio e melancolia, outras, casa aberta e celebração, a coleção azimute, uma explicação, um missing link. Daqui poderão partir novos ca-
quase sempre contraria o transitório e o efémero da vida, marcando o com- minhos, daqui poderão nascer novos itinerários” (Mariana Marin Gaspar).

Esta incursão pelos territórios da arte é feita ao sabor dalguma “deformação


4  “Pensar a(s) história(s) da representação da paisagem na arte é indissociável de um entendimento profissional” que depreendemos por três ordens de razões: o facto de Jorge
dos discursos que foram sendo construídos em torno do próprio conceito de paisagem, de um ideal Gaspar ser geógrafo e valorizar, como seu mestre Orlando Ribeiro, o traba-
às suas múltiplas desconstruções; do mesmo modo, questionar a paisagem ou as paisagens, a partir
lho de campo e a observação da paisagem; o significado da paisagem para
do contínuo exercício de experimentação e problematização das possibilidades da sua representação
artística, constitui-se como um processo fértil na construção de um campo discursivo em permanente
a geografia e a importância que a arte lhe atribuiu; o empenho do cole-
expansão, onde destacaria a consequência da contaminação e interação entre distintas disciplinas e cionador em criar uma coleção onde a paisagem e o território acabam por
áreas do saber. Na linha de W. J. T. Mitchell, partilhamos aqui um entendimento da paisagem como ser, porventura inconscientemente, um dos eixos estruturantes do discurso
verbo, mais do que substantivo, como processo, mais do que objeto ou texto, como médium mais dum acervo que continua em construção. O repositório de imagens patente
do que género; a paisagem-verbo, simultaneamente presença e representação, significante e signifi-
na exposição revela uma abordagem eclética que se desenvolve segundo
cado, surge assim como um agente dinâmico de transformação social, cultural, global, um modo de
interpelar e ser interpelado. A representação da paisagem não se restringe à apropriação direta do
um discurso consistente que nunca perde coerência formal.
mundo que nos envolve, de uma árvore ou de uma fábrica, de uma montanha ou de um monumento,
de um rio ou de uma estrada, nela reúnem-se inúmeros elementos constitutivos, criativos e sensíveis, Há uma geograficidade latente nas 26 peças que foram expostas: (i) nas 6
que recriam e reinventam formas, motivos, gestos, impressões, sustentando a defesa da paisagem fotografias da autoria de Orlando Ribeiro, Albano da Silva Pereira, Diogo
enquanto meio privilegiado de significação, enquanto potência; pontos, linhas, e planos, luzes e som-
Evangelista, Ana Vieira, Graça Pereira Coutinho e Vasco Araújo; (ii) nos
bras, traços e manchas, silêncio e ruído, tonalidades, atmosferas, densidades, temperaturas, textu-
ras... são inesgotáveis as possibilidades de aproximação à paisagem. Não forçando uma definição her-
4 mapas, peças de Marco Pires, Rui Calçada Bastos (Love Map), Carla
menêutica, tão pouco fechando os eventuais limites do seu campo de ação e reação, sugerimos assim, Rebelo (Mapas de crescimento; desenho bordado sobre tecido) e Gabriela
a partir de um conjunto diverso de propostas artísticas, um campo aberto à curiosidade, descoberta Vaz (O mapa não é o território), com materiais e técnicas que vão do grafite
e discussão de algumas das múltiplas configurações e dimensões que a paisagem desenha, justifica, ao fio de lã e colagem sobre papel; (iii) nas outras peças, tais como a 15ª
articula e possibilita: paisagens rurais e urbanas, paisagens que vemos em plantas, outras que lemos
página de um diário imaginado (Luísa Cunha), desenho - projecto para
em mapas, paisagens que traçam as linhas de um rosto, outras que indiciam rastros, paisagens que
recordam viagens longínquas, outras que imaginamos na intimidade do nosso quarto, paisagens que
intervenção na paisagem (Alberto Carneiro, 1972) ou the walk of the eye
contam histórias, avivam memórias ou textos quase esquecidos, imagens que construímos, encena- (Rosa Almeida). As fotografias patentes na exposição, cujo número não é
mos, sonhamos. E “sim, a imaginação faz a paisagem”, como defendia Baudelaire” (MMG). muito elevado, foram criteriosamente selecionadas para serem representa-
32    Jorge Gaspar ou A Arte do Território território & imagem    33

tivas dum espetro largo de estilos. A exposição é aberta por duas fotografias Referências
que se distanciam tanto no discurso visual como no tempo e no espaço:
Orlando Ribeiro, anos 40, casas de xisto da Serra da Estrela, um tugúrio
donde despontam partes do corpo de duas crianças que olham o geógrafo; Barthes, Roland (2005 [1980]). A câmara clara. Lisboa, Edições 70.
uma prova cromogénea (still de vídeo) de Vasco Araújo e outra foto de Blanc, Nathalie Blanc; Regnauld, Hervé (2015). La géographie peut-elle être um
Hipólito, registos distintos do anterior, quer na mensagem quer na técnica. art plastique comme un autre? L’Information géographique » 015/4 Vol. 79 |
pages 97 à 109. DOI 10.3917/lig.794.0097
Costa Gomes, Paulo Cesar da (2013), O lugar do olhar. Elementos para uma geo-
A curadora, embora nos oriente o olhar, não interfere nem condiciona a grafia da visibilidade. Rio de Janeiro; Bertrand.
nossa viagem na companhia dos artistas e do colecionador, não nos coloca Serén, Maria do Carmo. A imagem fotográfica como agente ou armadilha de
filtros no modo como devemos observar a paisagem e ler o mundo a partir aprendizagem/ interpretação.
do exposto. O modo como concebeu a organização do espaço, a sequência Sontag, Susan (1986 [1973]). Ensaios sobre fotografia. Publicações D. Quixote.
Steinke, V. A. Imagem e Geografia: o protagonismo da “fotogeografia”. In: Steinke,
e a disposição das peças apenas sugere onde será mais apropriado demorar o
V. A.; Reis Junior, D. F.; Costa, E. B. (Orgs). Geografia e fotografia: apontamen-
olhar para melhor lermos o discurso imagético, real e imaginário, sugerido por tos teóricos e metodológicos. Brasília: Laboratório de Geoiconografia e Multi-
tais imagens. Deixou intactas as intenções de Jorge Gaspar quando deambula mídia –LAGIM, UnB, 201
numa galeria ou num museu na tentativa de obter outros significados geográ- Suzuki, Júlio César Suzuki, Angelita Pereira de Lima, Eguimar Felício Chaveiro [or-
ficos que tantas vezes se escondem numa tela. A coleção, ao remeter para o ganizadores] (2016) Geografia, Literatura e Arte: epistemologia, crítica e inter-
território, acaba por refletir as preocupações, conscientes ou inconscientes, locuções. Porto Alegre: Imprensa Livre, 2016 (DOI:10.11606/9788576974499).
Volvey, Anne Volvey. Entre l’art et la géographie, une question (d’)esthétique. Bel-
do colecionador e a leitura do artista, por vezes codificada, sobre os lugares. geo [En ligne], 3 | 2014, mis en ligne le 19 décembre 2014, consulté le 18 avril
2019. URL: http://journals.openedition.org/belgeo/ 13258; DOI : 10.4000/bel-
A geografia subtil e implícita que acompanha o colecionador e a coleção geo.13258
apenas reforça a ideia que há “uma nova geografia que há que inventar, Werther Holzer (2020). Arte e geografia: desafios ontológicos e epistemológicos.
rompendo ainda divisórias entre disciplinas, com geógrafos abertos à lite- In Alessandro Dozena (Org.; 2020). Geografia e arte. Natal: Caule de Papiro.
Pp.: 397-431.
ratura e à arte e homens de letras a par da geografia. As especializações ac-
tuais progridem muito pouco neste sentido”. “Sobretudo quando se impõe
como objectivo a elaboração de documentos de síntese que fazem apelo a Belo, Duarte (2012). Portugal - Luz e Sombra, O País depois de Orlando Ribeiro.
Circulo de Leitores.
uma certa imaginação, ao mesmo tempo que ao espírito de análise. Mas é preciso Campar Almeida, A., et al. (2003). Fragmentos de um retrato inacabado. A Geo-
ir mais longe, incitar à crítica do que existe, recusar a ordem do «standard», grafia de Coimbra e as metamorfoses de um país. IEG-CEG; FLUC.
suscitar a elaboração de projectos que dêem aos lugares habitados, aos espaços Gaspar, Jorge (1994). O Olhar do Geógrafo. in Orlando Ribeiro, Finisterra, Encon-
de reunião, às regiões a viver, as cores e as formas, as necessidades e os sonhos de tros de Fotografia, Coimbra, pp. 9 18.
imaginações jovens. Descobrir o espaço, pensar o espaço, sonhar o espaço, Gaspar, Jorge; Jacinto, Rui; Siza, Teresa (1977). Orlando Ribeiro e as Terras da
criar o espaço... Uma pedagogia nova para um espaço vivido deve tomar em Idanha. Centro Cultural Raiano, Idanha-a-Nova.
Gaspar, Mariana Marin Barbosa (2013). Retomar percursos que o tempo inter-
conta estas quatro exigências. rompeu. Uma leitura dos Encontros de Fotografia de Coimbra. Dissertação de
Mestrado em Ciências da Comunicação. Área de especialização: Comunicação
Mas, neste concerto, onde é que se encontram a geografia e a região, senão na e Artes. FCSH – Universidade Nova de Lisboa.
utopia? A geografia aberta às ciências do número assim como às ciências natu- Jacinto, Rui (2016). Alfredo Fernandes Martins, poeta do olhar; Geografia e arte:
rais, às ciências humanas como à arte?” (Frémont, 1980 [1976]: 262 - 263). em demanda duma poética geográfica. Iberografias, Revista de Estudos Ibéri-
cos, Nº 12, 2016. Guarda, CEI: 129-164.
Jacinto, Rui; Siza, Teresa (1977). Esboço de um projeto inacabado. Foto(geo)gra-
Rui Jacinto fia: captar a alma dos lugares e o sentir das gentes. In Orlando Ribeiro e as
03/2022 Terras da Idanha. Centro Cultural Raiano, Idanha-a-Nova.
1. campos do
Brunhes, Jean (1956; 1962, 3ª ed.]. Geografia Humana. Rio de Janeiro. Ed. Fundo
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Capel, Horacio y Urteaga J. Luis (1982). Las Nuevas geografias. Barcelona, Salvat.

mondego*
Frémont, Armand (1980 [1976]). A região, espaço vivido. Coimbra, Livraria
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Haesbaert, Rogério (2002). Territórios Alternativos. São Paulo, Contexto.
Vidal de la Blache (1946). Princípios de Geografia humana (Tradução, prefácio,
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Humanidade, secção III, 1, Lisboa.

Fernandes Martins, Alfredo (1940). O esforço do Homem na Bacia do Mondego.


Tese de licenciatura, Coimbra.

C
Fernandes Martins, Alfredo (1949). O Maciço Calcário Estremenho. Contribuição
para um estudo de Geografia Física. Tese de doutoramento, Coimbra. ampos do Mondego, um dom do rio, que os antigos apreciaram
Gaspar, Jorge (1972) – A área de influência de Évora. Sistema de funções e lugares e onde, desde cedo, os homens procuraram introduzir ordem na
centrais. Lisboa, Centro de Estudos Geográficos (Memórias Nº 1). ocupação e valorização.
Gaspar, Jorge (1985, 2ª edição [1970, 1ª ed.]). As feiras de gado na Beira Litoral.
Lisboa: Livros Horizonte (Dissertação de licenciatura apresentada em 1965; 1ª Às incertezas das cheias e aos caprichos de um rio que pulsa ao retardador
ed. CEG).
Gaspar, Jorge (1993). As Regiões Portuguesas. Lisboa, Direcção Geral do Desen- as estações do ano, responderam as civilizações com o engenho e a técnica
volvimento Regional (Fotografias de José Manuel Simões e José Manuel Fer- cada vez mais apurados: diques, encanamentos, desvios de percursos,
nandes). arborização consolidadora.
Gaspar, Jorge (2002). A Região Centro. Coimbra, Comissão de Coordenação da
Região Centro. Assim, foi possível o aproveitamento económico, tradicionalmente inova-
Gaspar, Jorge (2006). Planeamento e Ordenamento do Território (Coord. com J.
M. Simões). C. A. Medeiros (Dir.), Geografia de Portugal, Vol. 4. Lisboa, Cír-
dor, da policultura moçárabe ao milho, que ainda no século XVI os portu-
culo de Leitores. gueses trouxeram das Américas, dos cavalos árabes e lusitanos que deram
Girão, Aristides de Amorim (1922). A Bacia do Vouga. Estudo Geográfico (Disser- fama ao Campo, às pachorrentas vacas leiteiras que nas últimas décadas
tação de Doutoramento em Geografia). Coimbra, Imprensa da Universidade. permitiram alguma estabilidade aos camponeses.
Girão, Aristides de Amorim (1925). Viseu. Estudo de uma aglomeração urbana
(Dissertação de concurso para Assistente da FLUC). A aplicação dos Romanos, que fizeram o encontro entre a navegação que
Girão, Aristides de Amorim (1933, 2ª edição). Esboço duma Carta Regional de
Portugal. Coimbra, Imprensa da Universidade. subia da foz e a via fundamental, que ligava por terra o Tejo ao Douro e
Girão, Aristides de Amorim (1936; 1946). Lições de Geografia Humana.Coimbra, em Aeminium cruzava o Mondego, somada ao afeto eficaz e convincente
Coimbra editora, Lda. de árabes e moçárabes, reforçaram a meridionalidade do território. O que
Girão, Aristides de Amorim (1941, 2ª edição 1951), Geografia de Portugal. Porto: neste caso significou trazer a civilização mais para Norte.
Portucalense Editora.
Girão, Aristides de Amorim (1941, 2ª edição 1958), Atlas de Portugal. Coimbra:
Paisagem compósita e promíscua, onde é possível discernir dominâncias
Gráfica de Coimbra (texto) e Lito-Coimbra (mapas). Publicação comemorati-
va do duplo centenário. e complementaridades: entre o Campo e o Monte, entre o urbanismo e o
Ribeiro, Orlando (1986 [1935]). A Arrábida. Esboço Geográfico (Edição da Câ- ruralismo.
mara Municipal de Sesimbra. Homenagem da Prof. Orlando Ribeiro, pelos 50
anos (1935-1985) da obra Arrábida, esboço geográfico). Câmara Municipal de
Sesimbra / Liga para a Proteção da Natureza.
*in Vale do Mondego, Encontros de Fotografia, Coimbra, 1993, pp. 5-8.
36    campos do mondego território & imagem    37

O Monte dá segurança e refúgio, compensando as incertezas de cheias e A leitura dos “cortes”, de Norte para Sul, de Sul para Norte, de montante a
de pragas, mas é o Campo que oferece trabalho e proporciona riqueza. É jusante, revela-nos uma manta de retalhos incompleta, com buracos e vazias.
o Campo que atrai os poderosos e os sustenta, permitindo o aparecimento Multidimensional. Indiciando vários tempos e vários espaços, interrompidos.
de paços e outras residências senhoriais, nos terraços fluviais e nas colinas, Doutores, cientistas, engenheiros, políticos e outros influentes, procuram,
numa e noutra margem. recorrentemente, introduzir a ordem e a geometria, enquanto instrumentos
de valorização das produtividades e de redenção das paisagens. Mas faltou
Ao longo das bordaduras do Campo e a partir de Coimbra, difunde-se a ur- sempre alguma coisa. Resultaram novas ruínas, novos retalhos, que se jus-
banidade, de que ainda persistem ruínas, em Pereira, Tentúgal, Montemor, tapõem no território e são esquecidos, ou tolerados como memórias (más
Maiorca, Figueira da Foz e outros lugares esquecidos. memórias) – canais, caminhos-de-ferro, diques, florestas, o Rio Velho.

Assim procederam os antigos, os infiéis e depois os Crúzios, o Rei e outros Por último, o automóvel: Coimbra-Figueira, um espaço-canal, que propicia
senhores, laicos e religiosos. Das bases implantadas, articulando Campo e novas e futuras ruínas numa paisagem cinética, de 60 a 160 à hora; o be-
Cidade, procura-se valorizar as aluviões e penetrar no Monte, através de tão, em força, que transforma um rio, pequeno mas respeitável, num canal
arroteias, que deixaram sementes na toponímia e em clareiras, no meio das grande e estranho; e, sobretudo, a infraestrutura maior, a autoestrada que
Brenha(s): Casal de Nossa Senhora do Bom Despacho, Póvoa de Santa permite cruzar o Baixo Mondego sem nos apercebermos que deixámos para
Cristina, Cavadas… trás um território que já teve uma personalidade, traduzida numa paisagem
que fez parte da nossa cultura – ficam-nos apenas as sensações ilusórias de
Responde-se, assim, à pressão demográfica. Mas a reação é insuficiente e de um pequeno segmento do País que, a mais de 120 à hora, imaginamos rico,
terra prometida, para gentes do Sul, do Norte, do Interior e de Além-Mar, porque uniforme e dominado por talhões geométricos de matizes que vão
torna-se terra de emigrantes – para o Ribatejo, para o Brasil, para Lisboa e dos verdes aos dourados.
novos destinos nos tempos mais recentes.
E, no entanto, o Campo vive a maior instabilidade, na incerteza do futuro
Os que conseguem regressar, e tiveram algum sucesso, compram terras aos para arrozais e milheirais.
que partem, constroem casas e sonhos, refazem e alimentam a paisagem.
Pelas estradas penetrou o automóvel, que não trouxe de novo a urbanida-
As casas novas envelhecem e muitas vezes os filhos também têm de partir. de, mas a suburbanização. A nova promiscuidade da paisagem estradal já
Pouco a pouco, as construções degradam-se e vão-se desfazendo, no esfare- não releva da valorização do Campo, mas tão-só das ruínas inurbanas do
lar dos adobes ou do calcário macio, ligado com argamassa pobre. império do automóvel: garagens, estações de serviço, cemitérios de sucatas,
armazéns, parques de máquinas, estacionamentos, casas multifuncionais e
Cruzar o Baixo Mondego, das aldeias cada vez mais suburbanas da margem casas que fogem da cidade para poderem dar teto e liberdade ao automóvel.
sul, até aos confins do Monte, para atingir quase insensivelmente as aldeias
sem futuro e com pouco passado, da Bairrada, ou os anónimos lugarejos das Acabou o percurso automobilístico, que bordejava o Campo saboreando as
Gândaras, é também ler uma história feita de desequilíbrios que se sobre- brisas, perfurando as névoas matinais com música suave em fundo, exerci-
põem e que marcam a paisagem em ruínas. tando a geometria imaginativa do espírito quando ao lado corriam chou-
pais plantados com rigor, para, pouco a pouco, curva a curva, sentir subir
O esforço de gerações camponesas, reforçado pelas energias acumuladas o cheiro a maresia e a aventura, ou, se fosse outro o sentido e o horário,
nas emigrações e investidas na recuperação, não foi suficiente para cons- enternecer-se com o sono-sonho que a cidade-amável prometia.
truir uma paisagem coerente, sólida e tradutora de uma cultura.
Restam imagens, memórias, retalhos e futuros.
território & imagem    39

2. O OLHAR DO teve a participação de muitos sábios que se reclamavam da Geografia, mas,


além do mais, serviu para revalidar, actualizar e justificar a necessidade da
velha “arte” da Geografia.

GEÓGRAFO* O século XIX foi ainda o século da nova partilha do Mundo, pelas potên-
cias mais poderosas ou que de algum modo tinham participado no processo
de abertura de novas rotas, como era o caso de Portugal. Quer na redesco-
berta, quer nas negociações que levaram à nova partilha, tiveram um papel
preponderante as Sociedades de Geografia, que foram aparecendo a partir
do primeiro quartel do século XIX.

S
e o objetivo primeiro da Geografia é o conhecimento da Terra, não É neste contexto que a Fotografia e a Geografia vão ter a primeira aventura
estranhará que o aparecimento da fotografia no século XIX tenha re- conjunta, num projecto grandioso, quase utópico. Foi em 1910 que o ban-
presentado uma nova perspetiva para o trabalho dos Geógrafos. queiro Albert Kahn, fascinado com as imagens que de todo Mundo che-
gavam, dia a dia, decide constituir os Archives de la Planète, numa recolha
Ao mesmo tempo que se procedia à consolidação e ao aperfeiçoamento das fotográfica (a preto e branco e em autócromo, a 2 e 3 dimensões, estáticas
técnicas fotográficas, até à sua industrialização no último quarto do século e em movimento) desse mundo que se previa viesse a sofrer profundas e
XIX, verificava-se o progresso e a afirmação da moderna Geografia, como rápidas transformações. Para a direcção científica do projecto convidou um
disciplina científica. Assim, na viragem do século, os primeiros laboratórios geógrafo, Jean Brunhes, que aceitou o cargo, em que permaneceu de 1912
universitários de Geografia, conjuntamente com as suas coleções de mapas, até à sua morte em 1930. O projeto sobreviveu-lhe apenas um ano. Em
apresentavam coleções de fotografias, e as publicações científicas, revistas 1931, na sequência da grave crise mundial, Kahn era obrigado a parar o seu
ou dissertações, eram necessariamente ilustradas com fotografias dos factos sonho de constituir os Arquivos do Planeta.
e paisagens estudadas.
Poucos anos depois (1937) Orlando Ribeiro chega a Paris, onde contacta
A fotografia está de tal forma associada ao progresso científico da Geo- com a pujança da Geografia francesa, tendo como mestres e colegas, con-
grafia, que o Congresso Internacional de 1904, realizado em Washington, temporâneos e discípulos de Jean Brunhes, Vidal de La Blache e de outros
promove, sob proposta do alemão Albrecht Penck, a constituição de uma fundadores da moderna Geografia francesa.
colecção de fotografias da superfície da Terra, o que viria a originar o Atlas
photographique des formes du relief terrestre1. É um novo método, um novo estilo, uma maneira de estar na ciência, mas
não só. O ofício do Geógrafo, como nos ensinou Orlando Ribeiro, na esteira
O século XIX foi também o século da redescoberta do planeta, através de de Henri Baulig – em artigo que gostava muito de recomendar aos alunos
um grande número de expedições, que recorrendo às novas tecnologias e – deveria situar-se no cruzamento das artes, das ciências e das técnicas. E
aos novos conhecimentos científicos verificados em todos os domínios do a fotografia era recomendada exatamente como uma técnica de apoio. No
saber, redesenharam os mapas do mundo e de cada país. Este movimento entanto, na prática, Orlando Ribeiro tinha a mesma preocupação com as
imagens que produzia do que com as palavras que escrevia ou pronunciava:
o rigor, a clareza e a elegância.
1  Cf. Marie Claire Robic “La Géographie dans le mouvement scientifique” in Jean Brunhes – autour du
monde: regards d’un géographe/regards de la Géographie, Paris, Musée Albert Khan, 1993. Decerto fascinado com a experiência francesa, que alarga a outros países,
*in Orlando Ribeiro, Finisterra, Encontros de Fotografia, Coimbra,1994, pp. 9-18. agora munido com novos conhecimentos e sólida base metodológica, Or-
40   O Olhar do Geógrafo território & imagem    41

lando Ribeiro regressa a Portugal, no limiar da guerra, cheio de sonhos e de Infelizmente, para todos, as suas sugestões não foram aproveitadas e o rela-
vontades. E lança-se na sua realização. tório permanece ainda inédito.*

Aprofundar o conhecimento do Pais é ao mesmo tempo testar as novas Esta exposição de fotografias de Orlando Ribeiro, além de evidenciar uma
ferramentas metodológicas. São as descobertas e as confirmações. Portugal, faceta menos conhecida do Geógrafo, sugere ainda quanto ele deixou por
o Mediterrâneo e o Atlântico não aparece tão cedo (1945) por acaso. escrever, já que ao ver estas imagens os que tiveram o privilégio de o ouvir
em aulas ou noutras conversas, recordar-se-ão de muitos temas caros ao
Mas o grande sonho é criar um centro de investigação, algo à semelhança Mestre, mas que não chegaram a ter o tratamento em publicação, como
dos “Laboratórios de Geografia” que conhecera em França: infraestrutura, todos desejaríamos.
apetrechamento, uma equipa e um projecto. Também o conseguiu rapi-
damente, apesar das dificuldades dos tempos, com ambição e com muito Transmitir o seu olhar fazia parte da pedagogia de Orlando Ribeiro. Curio-
entusiasmo: em 1943 o Centro de Estudos Geográficos inicia as suas activi- samente, conseguia-o principalmente pela palavra, cujo dom de evocação
dades, e não parou mais, até hoje. “abafava” as fotografias e os diapositivos que eventualmente utilizava como
documentos de apoio ao discurso.
A fotografia irá ter um lugar privilegiado, ao mesmo nível da cartogra-
Era assim que, perante os estudantes, passavam as paisagens com os seus
fia, na disposição das novas instalações inauguradas no final dos anos
dramas de todas as eras, até ao dos homens de hoje. Compreendendo agora
50. Fazia parte integrante da iniciação à investigação e não se concebia
como o olhar estava no princípio e no fim do exercício científico-pedagógi-
uma dissertação de licenciatura sem o apoio da documentação fotográ-
co – da leitura à análise, da interpretação à transmissão. Os modos de vida
fica, acompanhando o texto ou em anexo. No pós-guerra e sobretudo
dos Balantas ou dos Transmontanos apareciam-nos tão atraentes e miste-
depois da realização em Lisboa do Congresso Internacional de Geografia
riosos como numa sucessão de imagens, mas progressivamente as ilumina-
de 1949, Orlando Ribeiro adquire grande projecção internacional, que
ções, os zooms, os flashbacks, tornavam tudo mais inteligível: percebíamos
na sequência originaria múltiplos convites. Por outro lado, no País dá
a lógica da organização do território, as convergências e os paralelismos
novo prestígio à Geografia, que tem ao longo dos anos 50 e 60 excelentes
da civilização, que se traduziam em artefactos, seres vivos que o Homem
oportunidades de investigação nos territórios ultramarinos – sempre sob
domesticara, técnicas de cultivo, plantas de casas, geometrias de campos,
a orientação de Orlando Ribeiro.
caminhos e alinhamentos de árvores.
Rodeado de uma equipa pequena, mas eficaz e coesa, sentiu-se que ele re- Orlando Ribeiro cedo se talhou um estilo de diálogo com os lugares e as
novou o sonho, agora mais preciso, de um grande centro de documentação paisagens, em que a Geografia aparece como a solução para uma abordagem
e de pesquisa sobre o Planeta e, em particular, sobre o Mundo em que os vivida e globalizante. No particular, descobre-se o naturalista, o humanista,
portugueses se movimentaram e deixaram marcas nas paisagens, nas socie- o poeta e o explorador que, quando regressa, se apressa a fazer o primeiro
dades e nas culturas. relato, com entusiasmo, na empatia com as terras e as gentes que descobrira.

Os “fatídicos” anos 60 viram o projecto fracassar e Orlando Ribeiro teve Esta prática da Geografia releva de uma atitude estética, perante o Mundo,
consciência do facto, para o que de resto alertou os políticos, ao mais alto os Homens e o Tempo. Por isso, o rigor científico é complementado com a
nível. Embora as questões políticas não o preocupassem prioritariamente, poética e prolonga-se no exercício artístico.
a observação e reflexão sobre o social e o humano acabavam por o levar à
tomada de posições muito claras, como se pode ver através de vários dos *Seria publicado em 1999 pela Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portu-
seus livros e artigos. A sua voz também alcança as altas esferas, como no gueses, com prefácio de Fernando Rosas e Introdução de Suzanne Daveau: Orlando Ribeiro, Goa em
caso do relatório sobre a situação em Goa que envia a Salazar nos anos 50. 1956 - Relatório do Governo, C.N.C.D.P., 1999.
42   O Olhar do Geógrafo

Mesmo quando nos apresenta a génese das formas e dos depósitos de uma
qualquer depressão de Portugal Central, Orlando Ribeiro preocupa-se não
só com o estilo literário, mas também com a qualidade supra-documental
3. ITINERÁRIOS
das fotografias que acompanham o texto, os esquemas e os mapas.
DE FRONTEIRA*
Entre as muitas leituras possíveis da obra de Orlando Ribeiro, ressalta a re-
corrência temática dos contactos de civilização, sendo esta entendida como
a verdadeira “chave da explicação em Geografia Humana”, perspectiva so-
bre a qual reflectiu reiteradamente.

A
Ao sublinhar a sapiência que atingiram as civilizações ditas tradicionais,
Orlando Ribeiro pugnava para que as respectivas populações permaneces- INDA HOJE A BEIRA É O INTERIOR, PARA LÁ DA DEPRES-
sem fiéis a esse património e ao mesmo tempo conseguissem os benefícios SÃO PERIFÉRICA, ALÉM DAS PRIMEIRAS SERRAS DO MA-
dos avanços materiais e sociais dos países mais avançados, o que se tornou CIÇO ANTIGO. EM COIMBRA, QUE ASPIRA À CAPITALI-
uma equação difícil de resolver. DADE, NASCE E TERMINA A ESTRADA DA BEIRA! A CAPITAL
FORA DO SEU TERRITÓRIO? NÃO É UM PROBLEMA!
Neste conjunto de fotografias também se lê, implícita ou explícita, uma ASSIM, A BEIRA CRESCEU DO INTERIOR PARA O LITORAL, AS
vontade de salvar o mundo rural multifacetado, que levou séculos ou milé- MIGRAÇÕES DOS HOMENS FORAM ACOMPANHADAS DA MI-
nios a edificar, e, ao mesmo tempo, promover o bem-estar e a justiça social. GRAÇÃO DO TOPÓNIMO. DE LESTE PARA OESTE, ATÉ ALCAN-
ÇAR A FRONTEIRA DO MAR, MUITO TARDE, AINDA NO SÉCU-
O conteúdo temporal e espacial das fotografias expostas remete, em di- LO PASSADO.
ferentes latitudes, para o período inicial da grande viragem do Planeta,
consequente à Segunda Grande Guerra, e que trouxe profundas altera- O Centro corresponde, de algum modo, à antiga província da Beira ou
ções políticas, sociais, tecnológicas, culturais: a revolução dos transportes, das Beiras, que tem a sua primeira delimitação como Comarca no século
a descolonização, a reindustrialização dos países mais desenvolvidos e a XIII, confinando-se a um território interior, entre Douro e Tejo, que ia da
industrialização de novos países, os movimentos migratórios maciços sem fronteira até sensivelmente ao meridiano de Viseu. Desde então a Beira
precedentes na história, a aceleração da urbanização da Humanidade. “cresceu” na direcção do Litoral.
Mas em 1527 ainda não tinha atingido o que genericamente designamos
Todas estas questões aparecem na vasta obra científica de Orlando Ribeiro, por Beira Litoral e que Barros Gomes, numa acepção próxima, chamou
mas poderemos salientar três preocupações maiores, embora não hierar- o Centro Litoral. Então, a Estremadura ainda fazia jus à sua etimologia e
quizadas: a Natureza, os Homens e as Paisagens. Sob o manto legítimo do estendia-se do Tejo até à extrema do Douro. Em 1599, no mapa de Duarte
trabalho científico ele deixou-nos uma mensagem de alerta e de incentivo, Nunes de Leão, a província da Beira já chega até à costa, mas a Estremadura
para que o património base do nosso planeta seja colocado no centro dos ainda ia até aos Campos do Mondego e a Leste passava para lá do rio Zêzere.
estudos e das reflexões. É a actualização de uma mensagem que na nossa
civilização já tem dois mil anos. A BEIRA É UM ESPAÇO DE FRONTEIRAS, MAL DESENHADAS,
MAS PRESENTES NAS REPRESENTAÇÕES QUE DELA SE TÊM FEI-
Como seria desejável que uma equipa, munida destas fotografias, pudesse TO: DE FORA PARA DENTRO, DE DENTRO PARA FORA.
voltar a estes lugares para actualizar as leituras, fotográficas e geográficas.
*in Itinerários de Fronteira, Encontros de Fotografia, Coimbra, 1994, pp. 5-15.
44   Itinerários de Fronteira território & imagem    45

FRONTEIRAS ENTRE O NORTE E O SUL, ENTRE OS CENTROS ou Chacim. São os apelidos de família, os nomes, os comportamentos: em
E AS PERIFERIAS, ENTRE PORTUGAL E LEÃO-CASTELA-ESPA- Souro Pires, concelho de Pinhel, um dia confronto-me com uma figura
NHA... MAS TAMBÉM FRONTEIRAS DO SEU ÍNTIMO – OS PLAI- bíblica que saía, encorcovada, de um minúsculo pardieiro, num impulso,
NOS E AS MONTANHAS, AS SERRAS E AS CORDILHEIRAS. pergunto-lhe o nome – Ibraíma! Descobri Vila Cova à Coelheira, no con-
celho de Vila Nova de Paiva, há menos de 20 anos – uma enorme aldeia, de
Se a identificação em relação ao exterior tem oscilado, também não tem sido que conhecia os comerciantes que frequentam mercados e feiras de todo o
fácil um consenso quanto à fixação de uma modelação de segmentos autó- Pais, onde vivem os “cristãos-novos” – o primeiro casamento entre cristãos
nomos (sub-regiões...) no interior das Beiras. Daí o aparecimento ao longo velhos e novos só aconteceu depois do 25 de Abril (de 1974).*
dos tempos, mas sobretudo no último século e meio, de um sem número de
adjectivações da Beira, algumas até algo extravagantes: Beira Litoral, Beira FRONTEIRA INDEFINIDA ENTRE O MAR E A TERRA, QUE AVAN-
Alta, Beira Baixa, Beira Serra, Beira Transmontana, Beira Mar, Beira Maríti- ÇA E RECUA, INSEGURANÇA POTENCIADA PELAS NAVEGA-
ma, Beira Oriental, Beira Meridional, Beira Central, Beira Minhota... ÇÕES DE POVOS À DERIVA, NA BUSCA. POR ISSO, ATÉ TARDE,
A Cordilheira Central, espinha dorsal da Península Ibérica e também o O LITORAL FOI A FRONTEIRA DA VIDA: PARA AÍ SE ESCORRA-
principal sistema montanhoso de Portugal, separa, de certo modo, um Por- ÇAVAM OS LEPROSOS.
tugal do Norte de um Portugal do Sul: no clima, na cobertura vegetal ori-
ginal e na degradação, na ocupação humana. Mas também constitui uma A costa é, em geral, inóspita, com raros recessos que possam ser abrigos da
unidade com efeitos de ligação e homogeneização: projecta as influências navegação ou da pesca, arenosa em quase toda a extensão. Apenas duas
atlânticas mais para o interior, não se opondo ao avanço das massas de ar aberturas: a Ria de Aveiro (onde desagua o Vouga) e o estuário do Mon-
oceânico que se vão resolvendo em precipitação, de chuva ou de neve, até dego, onde no século XVI se criará um porto novo, a Figueira da Foz, que
à fronteira; une na criação de ambientes semelhantes, de isolamento, em recebe a navegação fluvial que se fazia até ao Interior, através das famosas
toda a sua extensão; une ao proporcionar, numa e noutra vertente, voca- barcas serranas, que chegavam a Raiva e tinham papel relevante no abas-
ções semelhantes ou afins – pastoreio, indústrias têxteis, minas, barragens, tecimento a Coimbra.
albufeiras; mas uniu fundamentalmente, ao contribuir para que se consti- Porque a costa é pouco atraente, infestada por piratas (dos vikings aos mou-
tuísse a sul e a norte a maior mancha florestal portuguesa, beneficiando da ros, da Idade Média ao século XVIII, a que se juntaram franceses, ingleses
referida humidade atlântica e, numa primeira fase, das possibilidades de e outros povos do Norte), o Litoral arenoso só se povoa muito tardiamente,
transporte fluvial da madeira (no Zêzere-Tejo e no Mondego).* tanto a partir das aldeias próximas, como a partir de pescadores que des-
ceram da Ria de Aveiro, costa abaixo, em qualquer dos casos na segunda
FRONTEIRA DE HOMENS E DE RELIGIÕES, EM RECÔNDITAS AL- metade do século XVIII, quando começa a acentuar-se a pressão demográ-
DEIAS DO COMPROMISSO. ENTRE CRISTÃOS VELHOS E CRIS- fica, resultado dos progressos sanitários mas, sobretudo, da diminuição das
TÃOS-NOVOS, OU TÃO SÓ ENTRE CRISTÃOS E JUDEUS, ATÉ fomes, que a “revolução do milho grosso” permitiu debelar.
HOJE! NO PASSADO, FRONTEIRA DE ENCONTROS DE CULTU- Deste povoamento tardio das areias, restam ainda a memória da arqui-
RAS, DE EXPERIÊNCIAS PELA SOBREVIVÊNCIA. tectura popular de madeira (os palheiros) e topónimos correlativos, assim
como territórios com fisionomia e características culturais próprias, em que
Como nos pode comover o contacto inesperado com os afloramentos vivos se destacam as Gafanhas (a sul de Aveiro, dunas e charcos para onde eram
de um criptojudaísmo adormecido, esquecido ou latente, que se estende empurrados os gafos) e as Gândaras (charnecas entre as dunas do Litoral
por terras fronteiriças de Trás-os-Montes ao Alentejo, afastando-se da raia e a Bairrada, entre a serra da Boa Viagem a sul e as Gafanhas a norte). *
em certas situações de montanha ou outras formas de recato. Não são só as
bem conhecidas comunidades de Belmonte, Campo de Víboras ou Garção, FRONTEIRA DE VIDA FORAM TAMBÉM AS MINAS QUE POR MI-
nem as memórias de comerciantes e artesãos em Castelo de Vide, Fundão LÉNIOS LEVARAM OS HOMENS PELAS SERRAS DENTRO OU A
46   Itinerários de Fronteira território & imagem    47

MONTANHA ONDE FLORESCERAM OS SANATÓRIOS DA TU- Se excluirmos as extensas manchas de floresta de pinheiro bravo, são mul-
BERCULOSE. O MAR RECUOU E DEIXOU AS TERRAS NOVAS, tifacetadas e bem identificáveis as paisagens do mosaico beirão: dos pra-
QUE VOLVERAM FRENTES PIONEIRAS, NAS GENTES, NOS PRO- dos da Ria às encostas vinhateiras dos barros da Bairrada, das clareiras de
DUTOS, NAS EMPRESAS NECESSÁRIAS – QUE LEVAM A NOVOS agricultura intensiva no meio dos pinhais das Gândaras, mais perceptíveis
LIMITES: DA PESCA DO BACALHAU AS EMIGRAÇÕES; FRON- através de uma bruma coada entre lagoas e arvoredos, ao já referido “Mi-
TEIRA DA VIDA QUE É ESPERANÇA. nho pobre” que é Lafões, com os seus bovinos no pachorrento pascigo,
entre latadas de vinho que não é bem verde, mas ainda não é maduro, até
A Costa da Região Centro é arenosa na sua quase totalidade e manifestou à paisagem vinícola do Dão, que recupera de maus tempos os pergaminhos
alguma instabilidade, que o homem tem procurado dominar com várias de néctar apreciadíssimo. É a “Beira Central”, da vinha, do azeite e do pão,
obras, onde avultam as já referidas plantações de pinhais nas areias litorais, a que mais tarde se juntou a batata e onde ainda permanece a castanha: a
iniciadas ainda na Idade Media. pentalogia da abastança, que sempre se casou com a memória dessa Beira
matter, que levou Amorim Girão a uma das suas maiores hipérboles bairris-
Desse dinamismo da linha de costa ficaram alguns interessantes acidentes tas: “a região central beiroa... verdadeiro coração do organismo português”
aquáticos, de que se destaca a chamada ria de Aveiro, pequeno “Mar” in- (Girão, 1933,85).*
terior, com uma saída para o oceano (hoje consolidada), em torno do qual
e a partir do qual o homem construiu um território com características BEIRA QUE É PARTILHADA E QUE PELA PARTILHA SE AFIRMA
únicas no país, fez uma cidade (que lhe dá o nome) e, a partir dai, saiu para NUM ESPAÇO NACIONAL E TRANS-NACIONAL, SEM A TENTA-
o Mundo, na aventura das pescarias do bacalhau na Gronelândia e na Terra ÇÃO (VONTADE OU VOCAÇÃO) DE DEFINIR A SUA FRONTEI-
Nova, no comércio com o Mar do Norte, primeiro com o Brasil, nas Índias RA, DE DENTRO PARA FORA.
e África, depois, enfim, na grande diáspora da emigração, através das quais COIMBRA É O LUGAR GEOMÉTRICO DESSES ESPAÇOS E POR
se foram constituindo comunidades de Murtoseiros, Ílhavos e (O)varinos, ISSO DAÍ TAMBÉM HÁ UMA ESTRADA QUE LEVA À BEIRA E
em Lisboa e pelo Tejo acima, nos Estados Unidos, na Venezuela, em África GENTE QUE CHEGA DAS BEIRAS.
e, naturalmente, no Brasil.*
Coimbra capital nacional das artes liberais, da ciência e da filosofia, nunca
FRENTES PIONEIRAS FORAM TAMBÉM AS ENCOSTAS SERRA- chega a ser a capital das Beiras, mas tão somente uma das cidades beiroas.
NAS E OS FUNDOS DOS VALES ARROTEADOS PARA O PÃO DAS O poder que Coimbra vai produzindo é exportado para as cortes (em Lis-
NOVAS GENTES, QUE NÃO PODIAM OU AINDA NÃO SABIAM boa, cm Évora, no Rio de Janeiro, em Vila Viçosa) e para secretarias do
EMIGRAR. Terreiro do Paço, dispersa-se pelas governações e justiças, das comarcas
FRONTEIRA DO LADO DA TERRA, POLÍTICA E POLICIADA, e dos julgados, mas nunca chegará para fazer da Lusa Atenas uma cidade
FORÇADA. FRONTEIRA DE CONTRADIÇÕES, MÃE DE ARCAÍS- europeia, nem sequer a capital do Centro.*
MOS MAS, POR VEZES, CAMINHO DA INOVAÇÃO. ÚLTIMO
MURO DOS QUE FOGEM, MAS PARA OUTROS O INESPERADO AS BEIRAS DOS VIAJANTES, DOS ALMOCREVES, DOS GUERREI-
REFÚGIO, POR GERAÇÕES. FRONTEIRA AINDA DO MISTÉRIO, ROS, SAQUEADORES E EXÉRCITOS. OS ITINERÁRIOS DE FRON-
DO DIÁLOGO E DO CONFLITO. FRONTEIRA GLOBAL E AMPLIFI- TEIRA SÃO DOLOROSOS, HÁ SEDE, HÁ FOMES E PARAGENS
CADA DE UM PAÍS QUE POR AÍ ENCONTRA OS ELEMENTOS PÁ- ONDE SE ESPERA.
TRIOS DA SUA PÁTRIA. FRONTEIRA ALCANÇADA POR ADOP- OS CENÁRIOS SÃO DEMASIADO ÓBVIOS E O OLHAR RESLAVA
ÇÃO E NA COMUNHÃO SAGRADA DOS ELEMENTOS DA TERRA PARA AS CINZAS E PARA AS PEDRAS. O GRANITO, O XISTO, O
E DO TEMPO. CALCÁRIO.
48   Itinerários de Fronteira território & imagem    49

Nestas paisagens de grande sensibilidade, todos os factores são significa- Este último aspecto deve ligar-se à melhoria das condições de vida, à pre-
tivamente influentes a ponto de alterarem as características – desde a pas- servação e valorização do património natural e cultural, de que a Região é
sagem do granito ou de outras rochas cristalofilinas para o xisto, que signi- rica, mas que não tem tido o melhor tratamento, estando sujeito a pressões
fica a possibilidade de verdes pastagens cederem o lugar à secura onde se destruidoras.
instala o matagal ou o eucalipto, à abertura de uma estrada, que mantém Particular ênfase terá que ser posto no bom ordenamento do território, da
viva uma aldeia, embora de velhos, mas que os filhos vindos de Lisboa ani- costa ameaçada até às cidades do Interior que crescem de forma anárquica
mam regularmente nas suas visitas, ou simplesmente uma capela com a sua e disforme, banalizando-se ou perdendo as características urbanas tradicio-
romaria que, embora esporadicamente, humaniza a paisagem.* nais, próprias da Cidade.
Verificou-se, assim, um esforço, embora limitado, dos centros urbanos e de
ITINERÁRIOS DE FALSA QUIETUDE, POR VEZES NO LIMITE DA outras aglomerações assimiláveis, como o são todas as sedes de concelho
CONVULSÃO CATASTRÓFICA. A ORDEM QUE ANUNCIA O e alguns núcleos industriais que já atingiram o limiar demográfico da ur-
CAOS. SÃO PAISAGENS EM TRANSFORMAÇÕES ACELERADAS banidade, atraindo correlativamente um certo número de equipamentos
E SOBREPOSTAS, A QUE OS RESISTENTES E RETORNADOS DAS públicos e serviços.*
DIÁSPORAS DÃO APARÊNCIA DE ESTABILIDADE.
CIDADES QUE CRESCEM MAS QUE NÃO FICAM MAIORES. JO-
Para poente, a norte e a sul da Cordilheira Central, onde em tempos eram GAM MAS NÃO COMPETEM. OLHAM-SE, MAS NÃO SE ABRA-
charnecas, calcorreadas por rebanhos de cabras e povoados por colmeias ÇAM: COMO CIDADES DE UM E OUTRO LADO DAS FRONTEIRAS.
– suficientes para alimentar uma próspera indústria de velas (Cardigos)–
A rede urbana da Região Centro continua a reflectir uma grande comparti-
dominam hoje os pinhais e nalguns trechos o eucalipto, de tal forma que o
mentação das polarizações mais significativas, faltando a afirmação de uma
topónimo pinhal vai ganhando autonomia e cada vez mais se constrói uma
“capital” regional, papel que Coimbra tem supostamente protagonizado, mas
identidade em torno do território do Pinhal, cujos municípios se associam
que, apesar de já ter ultrapassado o limiar dos 100 mil habitantes, não con-
para definir estratégias e procurar caminhos capazes de os libertar da deser-
segue suficiente energia, perante a afirmação de aglomerações como Aveiro
tificação humana que alastra. É uma paisagem monótona e particularmente
(48.158 habitantes), Viseu (44.164), Leiria (42.872), Covilhã (30.856), Cas-
triste quando a terra queimada ganhou o lugar ao cinzento esverdeado dos
telo Branco (27.267) e Guarda (20.633). Abaixo deste nível temos ainda
pinhais, mas também com recortes de alegria quando se avista ou atravessa
uma rede mais apertada de centros nem sempre dependentes hierarquica-
uma das várias barragens construídas, nas bacias hidrográficas do Zêzere ou
mente daqueles, mas que, para a maior parte das suas procuras, se articulam
do Mondego.*
com as principais cidades do País, sobretudo com Lisboa.
Importa aproveitar as virtualidades de um tal sistema urbano, baseado em es-
OS SOCALCOS FORAM MORRENDO SOB A MARCHA DA FLO-
pecializações funcionais e, a partir daí, em complementaridades e articulações
RESTA, QUE OS INCÊNDIOS JÁ AMEAÇAM E DESTROEM, PARA
a nível regional, tanto quanto possível com base em níveis de qualificação já
REAPARECER O MATAGAL. O MUNDO RURAL, A CIVILIZAÇÃO,
existentes e na especificidade da base económica local ou sub-regional.*
RECUA, E AVANÇAM NOVAS FRONTEIRAS.
ONDE É POSSÍVEL, A POLICULTURA DÁ LUGAR À PLURIACTI- E A CAPITAL EXIBE AS RELÍQUIAS ARQUITECTÓNICAS DOS
VIDADE, NA INDÚSTRIA, NO TURISMO, NO COMÉRCIO E NA TEMPOS DO REINO DO ESPÍRITO E DO SABER, ESFORÇANDO-
AGRICULTURA. MAS O TEMPO É ESCASSO E OS PROVENTOS -SE POR OUTRAS GRANDEZAS. QUANDO OS NORTES DO PÓLO
LIMITADOS: POUCO A POUCO É A TERRA QUE É ESQUECIDA. APONTAM PARA OUTROS ITINERÁRIOS, QUE TAMBÉM PODE-
O MUNDO RURAL, QUANDO PODE, PASSA A URBANO, MAS RÃO LEVAR À BEIRA E ÀS BEIRAS.
NÃO SE FUNDAM CIDADES. URBANIDADE SEM CIDADANIA,
OU CIDADÃOS SEM ACESSO À POLIS. * Excertos de J. Gaspar As Regiões Portuguesas, Lisboa, D.G.D.R. 1993.
território & imagem    51

4. CÓDIGOS PARA mas e guias de interpretação. Orientações para uma leitura. O drama-ex-
cursão desenrola-se em terras de Idanha, antiquíssima, na cultura e nas
gentes, na geologia e na história. O afastamento do Mundo, dos sítios da

UMA GEOGRAFIA* fortuna e da riqueza, levou ao abandono de muitos e ao envelhecimento


dos que ficaram.
Mas é uma gente teimosa que não deixa de afirmar a vontade de recuperar
o passado no futuro. Por isso não esquecem as técnicas e saberes ancestrais,
ao mesmo tempo que procuram rejuvenescer através de inovações que co-
nheceram noutras paragens.

A
Entre a estratégia da persistência e a estratégia do desenvolvimento há um
Paisagem é um conceito e um valor moderno. Qual a explicação enxerto possível a partir da terra, do território e da cultura. Recolhem-se
para o seu renascimento – enquanto valor e conceito – nos tempos as sementes que produzirão os frutos valiosos. Mantêm-se e adequam-se
pós-modernos? alfaias e técnicas, através de gestos seguros que traduzem e transmitem a
Da pintura à geografia, da antropologia à fotografia, no cinema, nas litera- vontade de continuar. Há esperança enquanto estiverem vivos os gestos,
turas, na música, intersecções de saberes e sentires, são múltiplos os exem- sagrados e profanos, dos homens e dos animais. As mãos e os rostos são
plos de busca e de afirmação de paisagens. Vejam-se apenas os títulos, os mapas de percursos que se lêem ou se adivinham.
índices, as referências vocabulares.
A estratégia que se desenha a partir das fotografias obriga a um olhar in-
Será que a crise do homem pós-moderno remete também para a perda de tegrador, a partir dos sinais referenciados, com ajuda de descodificadores:
identidade paisagística? Daí, por carência, à própria mitificação da paisa- desde a unidade das paisagens. naturais e sociais, à continuidade de gera-
gem ou apenas de alguns dos sinais e marcas, é um passo curto, sem mudar ções que ainda é percetível.
de azimute.
A vida e a alegria anunciam-se e renascem nas plantas, nos animais, nos
A fotografia enquanto estratégia gestos de crianças e adultos. Assim também nas atitudes, sugeridas e afir-
madas, daqueles que se ocupam da polis.
Expedição, leitura e diagnóstico, de terras em transe, mas também uma
estratégia de recuperação de futuros. Pode ser este um dos entendimentos Dos inselberge à paisagem arquipélago
das fotografias que Albano Silva Pereira e Inês Gonçalves produziram na
encenação e na interpretação destas paisagens raianas que, apesar de apa- Da Cova da Beira até Monsanto emergem vultos rochosos, descarnados,
gada a linha da fronteira política, não deixam de estar marcadas por limi- como elementos geométricos, rígidos, numa superfície aplanada – são os
tes de espaço e de tempo. São imagens que agora e ali terão sempre duas montes ilhas, inselberge na linguagem dos geógrafos/geomorfólogos da pri-
leituras: a dos que recebem e a dos que oferecem. O olhar dos fotógrafos meira metade deste século, que procuravam, a partir da construção de uma
vai encontrar-se de frente com o olhar da terra e dos homens que também língua franca, argumentos para a unidade da prática de uma disciplina ain-
procuram no dia a dia congeminar uma estratégia para o amanhã. da mal definida.
Para o espectador ou para o turista compenetrado são necessários progra-
Orlando Ribeiro investiu anos do seu labor e do seu amor à terra nesta bus-
ca, pelos espaços da Raia, entre Tejo e Côa, cabeceiras da bacia duriense.
*in Pereira, A.S., Manto de Ceres, Idanha-a-Nova, 1997, Centro Cultural Raiano, pp. 5-12. Buscas com bússola, martelo, saco às costas, cadernos cheios de notas e
52   Códigos para uma Geografia território & imagem    53

mais apontamentos, mapas constantemente refeitos. E muita imaginação, A erosão modela e afeiçoa as formas mais brutais resultantes dos movimen-
de que se faz a ciência e a arte. tos, bruscos ou lentos, da crusta terrestre. Assim também com os homens,
em consequência de súbitas alterações na esfera planetária que represen-
Entretanto permaneceram os inselberge, mas o “mar” pulverizou-se em tam subidas ou descidas nas suas oportunidades de vida. Por isso, também
múltiplas situações, por vezes crípticas, de insularidade humana e cultural. os lugares habitados ora acumulam ora sofrem erosões e os homens em-
Hoje a ciência tem dificuldade, por carência teórica e metodológica, em preendem movimentos.
apreender esta nova realidade, em delimitar a nova paisagem. Só uma ati-
tude poética introduz um sentido, uma justificação, navegando com tacto De tudo ficam marcas, vestígios; vazios ou depósitos, que podem ser con-
apurado entre estes ilhéus, apenas palpitantes, olhando o tempo que passa. cordantes ou discordantes com as correlações de forças em cada momento:
do tempo histórico ao tempo geológico. As imagens, a terra e os homens, o
Os oásis possíveis de uma cultura que foi pó e as rochas, tudo se verte em memórias.

Não é mais o campo de cereal ondulante a perder de vista, nem os restolhos Memórias da frontierland
pastoreados por rebanhos densos como enxames, procurando o néctar re-
manescente nos torrões ressequidos, que as primeiras águas transformavam Entre a grande Cordilheira e o grande Rio, nos interiores, ao longo dos
em macio pascigo. tempos, desenharam-se espaços de fronteira. Não linhas divisórias, naturais
ou artificiais, mas domínios de posse incerta, onde se instalaram as insegu-
As mãos rugosas e calejadas, que erguem os tubérculos no meio do deserto, ranças.
são sinais de um sonho na paisagem desfeita. Em torno de vilas e aldeias
experimentam-se em minúsculos oásis as memórias do Mediterrâneo – ci- As lonjuras favoreceram as resistências e os arcaísmos: das economias, dos
vilização e paisagem. Gasto e desfeito o Manto de Cêres2, enquanto se falares, das religiões. Erges, nome de rio/fronteira linear, também é nome
buscam os desígnios dos novos deuses, por esses oásis de sobrevivência, de lugar e de cultura de cá, no lado de lá: Eljas. Viajar na toponímia da
guardam-se os códigos genéticos de um renascimento desejado. frontierland: Campo, Monsanto, Hurdes, Hiervas, Orca, Medelim, Zarza (la
São oásis possíveis, não os oásis dos Testamentos e muito menos os dos Maior), Coria, Egitania, Alcantara, Salvaterra (do Extremo).
poetas da urbanidade islâmica, outro ramo do Mediterrâneo que por aqui
andou em ondas terminais de maré alta. Campos – que llamam Tierra de Campos lo que son campos de tierra –, cam-
pinas, charnecas, serras, cristas e cerros, penhas e penhascos, desfiladeiros
Erosões e migrações e angústias; ao longe as cordilheiras, para além os rios. São percursos do
heroico para o arqueológico. Este é o genérico, faltam-nos os atores. Multi-
O tempo e o Tempo atacam os homens e as rochas, movimentam-nos atra- dões que passaram deixando estes sinais e esta cultura, de que nos aperce-
vés dos espaços, modelam culturas e paisagens. Quantas toneladas de ouro bemos apenas em vestígios persistentes, do lado da arqueologia. O heroico
já transportou o Tejo nas suas águas, ora calmas ora revoltosas, até à Lisboa passou, mas pode adivinhar-se em referências na ficha técnica: lusitanos,
prometida?! Ouro arrancado aos filões mais escondidos, em rochas profun- romanos, judeus, godos, mouros, cristãos e cristãos-novos.
das. A erosão. Ficaram os depósitos argilosos, os calhaus, os relevos resi-
duais, as terras aplanadas. As formas. As rugosidades da paisagem

2  “Foi a beleza que criou o mito porque era quente o sol, clara e luminosa a atmosfera, perfumado
Com a história a definhar crescem o espaço e o tempo, produzem-se paisa-
o campo, doce e sumarenta a polpa dos frutos, imaginou-se fértil a terra ingrata do Mediterrâneo.” gens deslocadas, às vezes também desfocadas. Só o exercício meticuloso da
(Maria José Trindade in “Manto de Cêres Flauta de Pan”). reconstrução permite colocar marcos, encontrar referências.
54   Códigos para uma Geografia

A solidão do retorno à natureza avança sobre as paisagens que foram hu-


manizadas por acumulação de sonhos e frustrações. Os retardatários do
êxodo perscrutam os horizontes do céu e da terra. Há ainda memórias que
5. SETECENTOS
justificam o espanto que cresce com o cair do pano, cada dia em que se
sobrevive, porque nasce o Sol e ainda se mantém o rasto luminoso dos ANOS ATÉ
caminhos dos homens.
Mas à medida que avançamos na pesquisa, mais difícil é imaginar o dia em
que se podem apagar as rugosidades da paisagem. Já não apenas as aspere-
À NOVA
zas da paisagem-território, mas também as barreiras da paisagem-tempo.
FRONTEIRA*

A
paisagem existe porque o homem a constrói – em cada olhar, em
cada sentir. A paisagem só atinge a realidade quando é vivida – nos
olhos, no cheiro, nos sons, na planta dos pés…

As estações do ano são como as estações do caminho de ferro, momentos


em que cada uma renova o olhar, produz uma nova paisagem. O comboio
arranca, acelera, entra em grande velocidade e a paisagem modifica-se, dei-
xa de ser estática, apreendida através do deambular do olhar, para ser aspi-
rada, sugada, não apenas pelos olhos, mas pela mente, pelo próprio corpo.
O «TGV é um aspirador de paisagens», nas palavras de Yoshio Nakamura
(cf adiante, texto 9).

Mais ricas, multidimensionais, são as paisagens do tempo, ou melhor, dos


tempos e dos espaços, de que só podemos aperceber-nos através de profun-
da contemplação. São as paisagens do espírito.

A PAISAGEM – DA DESCOBERTA À NECESSIDADE

A pintura, mais concretamente a do Renascimento, inventou a paisagem e,


a partir daí, o Homem não mais pôde prescindir desse valor de identificação
que passou a fazer parte da herança cultural de cada comunidade.

*in vv. aa., Linha de Fronteira, Coimbra, 1997, Comissão de Coordenação da Região Centro, pp. 13-21.
56   Setecentos Anos até a Nova Fronteira território & imagem    57

Através de uma acumulação, muitas vezes desordenada, de gestos e de Desfilam na vida das películas os actores, projectados em cenários que eles
ações, modelam-se as paisagens que são sempre multidimensionais. Apesar próprios ajudaram a construir. Os jovens passam os ritos de iniciação num
da sua aparente neutralidade – o real – cada paisagem permite múltiplas cerimonial de milénios, mas que, sem memória, cada ano é recriado e em
visões, múltiplos sentimentos. A sua assunção enquanto valor só pode ser que todos acabam por participar, festejando desta maneira a vida enquanto
feita através da conjugação de uma comunidade de olhares e de sensações. património comunitário. A fechar o auto ouve-se o coro, dominado pelas
E assim poderemos ter diversas explorações a partir de diferentes identifica- vozes femininas que ecoam até por cima das linhas rigorosas do horizonte.
ções: a paisagem transformou-se nos nossos dias num recurso, na matéria-
-prima básica de uma importante indústria, tanto dos países pós-industriais, Na fotografia cruzam-se os itinerários, misturam-se as gentes, sugere-se a sa-
como de muitos dos menos desenvolvidos – o turismo. gração das paisagens e a profanação das divindades. Encostam-se os tempos
distantes, representados pelas pedras ou pelas pessoas. Aprofundam-se as di-
Amplificando de forma extraordinária o papel que em tempos coubera à mensões do tempo e do espaço, resumindo em eixos factoriais o real e o ima-
pintura, foram as imagens fotográficas que contribuíram para a globalização ginário, o que permite a selectividade das leituras: a cada um a sua realidade.
das paisagens enquanto recurso. O turista e o leitor de fotografia procuram
tanto as imagens do seu passado, da sua cultura, do seu imaginário, como DAS PAISAGENS HUMANIZADAS ÀS DIVINDADES NA PAISAGEM
as paisagens virtuais do espírito, sem tempo e sem espaço.
O ser humano constrói a paisagem à sua própria imagem, dando-se-lhe
para poder exigir a eternidade, a certeza de estar presente no Juízo Final.
Por isso, acabam por convergir, mais uma vez, as pinturas que nos deram as
Ali, junto daquele negrilho, próximo da linha de água, marcada pelo ali-
«verdadeiras» imagens de Jerusalém, a Cidade de Deus, com as fotografias
nhamento ondulante dos freixos, na angústia de um caminho entre muros,
que nos desvendam outras faces dos «Jardins do Paraíso»!
que entronca noutro, que leva à estrada por onde todos acabarão por pas-
sar. O Cristo incluído.
A LEITURA DA PAISAGEM – DAS IMAGENS ÀS PALAVRAS
E a linha de fronteira, que os mais poderosos traçaram, pode interromper
Viajar através de uma paisagem é sempre o resultado de uma escolha, de caminhos, dificultando os fluxos; mas se não separou o divino, mantendo a
um itinerário que nos é traçado ou que simplesmente vamos desenhando, a comunhão nos valores religiosos, acabará por aproximar os humanos, ape-
partir de trilhos já marcados, com maior ou menor veemência. sar de estes poderem seguir itinerários paralelos, através de territórios da
raia ou daí para o resto do mundo.
Ao longo desse percurso, vamos assim percebendo o que nos foi proposto
num mapa, real ou imaginário. Ora, um mapa é uma abstracção operativa Assim tem sido ao longo de muitos séculos, de um e de outro lado da fron-
da paisagem, que permite recuperar algumas referências para a sua leitura. teira, que só separa Portugal de Espanha, mas que de resto reforça, pela
duplicação, os momentos de festa e os momentos de sofrimento, muitas
Ao mapa chegamos a partir de imagens, que podem ser fotografias, quer vezes associados ou até potenciando-se mutuamente. O eterno sacrifício de
enquanto modelos visíveis da realidade, quer enquanto descodificações do Cristo é consagrado com silêncios e sofrimentos, e festejado através de ime-
olhar. moriais cerimónias em que se sacrificam outras divindades que precederam
no tempo e naquelas terras o Deus Todo-Poderoso.
Através destas fotografias podemos, a um tempo, recuperar as pistas de
vários itinerários possíveis em territórios raianos – que unem tempos e es- AINDA OS «ITINERÁRIOS DE FRONTEIRA»
paços, conferindo-lhes coerência – e estabelecer as marcas que permitem
o exercício de reconstrução dos acontecimentos singulares que balizam e As fronteiras, desde a mítica faixa imaginária que de ocidente a nascente
pontuam as paisagens de fronteira. percorre a Ásia, de Trebisonda a Vladivostock, até à toponímia da frontier-
58   Setecentos Anos até a Nova Fronteira território & imagem    59

land que o cinema amplificou – Abilene, Carson City, Rio Pecos, passando Depois de mais um êxodo, que a conjuntura dos anos 60 determinou, vi-
pelas terras a norte do Muro de Adriano ou pela Raia, a faixa de encontros veram-se alguns anos em que parecia possível iniciar um novo ciclo de
e desencontros entre os portugueses e os outros hispânicos, são espaços de revitalização: com o retorno dos emigrados na França e a vinda de muitos
contradições e geradores de mitos. portugueses das Áfricas. A infraestruturação acelerada de vilas e de aldeias
e o investimento privado na agricultura, na pecuária, na indústria possível
As fronteiras são, a um tempo, espaços de inovação e de comunicação e e no comércio, chegaram para que se instalasse a esperança, por vezes até
espaços de acumulação de arcaísmos e persistência nas divisões. a euforia.

São por isso também espaços de organização de poderes localizados, res- Depois, a perspectiva de integração na Comunidade Económica Europeia
paldados pelos poderes mais amplos, longínquos. Daqui decorre, em boa com os inerentes apoios ao desenvolvimento económico e social, prolonga-
medida, o paralelismo entre a inovação e a construção de arcaísmos. ram o tempo dos optimismos, reforçados com a antevisão do fim das fron-
teiras – a liberdade de comunicação total iria decerto criar novas oportu-
A fronteira é por presunção um espaço de transição no tempo, mas porque nidades.
essa proposta é negada de um do outro lado, transforma-se num espaço de
afirmação superlativa de identidades. Assim, as fronteiras enquanto espa- A última dúzia de anos, apesar da melhoria das infraestruturas e da valo-
ços de confrontação e de diálogo, são simultaneamente espaços de consoli- rização das comunidades locais, representou um tempo de esperança, mas
dação de diferenças que, multiplicando-se, geram a sua própria identifica- também de frustrações. O fim da fronteira, jovem de sete séculos, não con-
ção e autonomia. tribuiu para travar o esvaziamento humano, de um e de outro lado; em
certo sentido, pode dizer-se que se acentuou o fosso: para que servem as
A raia hispano-portuguesa, do Minho ao Guadiana, afirmou-se como um novas acessibilidades, se escasseiam os utentes?
espaço autónomo, construído a partir de uma multitude de sólidas comu-
nidades, de «microestados», num face a face diário, ao longo de séculos, Com o fim da fronteira assiste-se ao abandono da Raia, que se traduz na
mas também com redes de ligações a todo o mundo – ligações no espaço de desorganização das paisagens.
Guínzio de Lima ou de Vilarinho das Furnas para Lisboa ou para a América
do Norte, do Sabugal ou de Heljas, para além Pirenéus ou para a América Será que as fronteiras não têm também aspectos positivos e dinamizadores
do Sul; mas também ligações no tempo com as comunidades criptojudaicas de vontades? Se recuarmos aos finais do século XIII, o que vimos aconte-
que, de um e de outro lado da raia, mantiveram ao longo de cinco séculos cer na sequência do Tratado de Alcanises? A edificação de vilas novas, a
uma ligação (fechada) às Tábuas de Moisés, por vezes sem essa consciência; ocupação agrária do território, o enraizamento de gentes numa terra nova,
ou ligações ainda mais remotas, como o são as das práticas religiosas pré- prometida. O tempo consolidou as identidades e acentuou as diferenças.
-cristãs, que nos transportam aos primeiros mitos e rituais do Homem.
Passados setecentos anos, talvez seja necessário refundar uma fronteira que
Nas terras fronteiriças, de um e de outro lado, desenvolveram-se estratégias permita a continuidade daquele processo, agora que não existem barreiras
de afirmação e de sobrevivência, de ameaça e de diálogo. Ao mesmo tempo à circulação de pessoas, ideias e bens, mas faltam razões para a fixação
que se sublinharam as diferenças reforçando as expressões culturais de cada de habitantes. O olhar sobre a paisagem que ficou pode ajudar à visão da
comunidade, inventaram-se canais de troca que faziam reverter em vanta- NOVA FRONTEIRA.
gem o que era uma barreira.
Os povos, de cada lado da fronteira, viveram as tensões do mundo e de
cada país, espreitando novas oportunidades ou resistindo para sobreviver.
E sobreviveram.
território & imagem    61

6. ORLANDO cigarras, rio das inquietações, é também o eixo simbólico, que “norteia” os
trabalhos do Portugal Central.
Aqui encontramos outros teatros, outras bancadas, outros enigmas, onde o

RIBEIRO ET LES geógrafo acompanhou colegas e discípulos e com eles partilhou a aventura
das descobertas científicas. O prazer da satisfação do espírito acalmado com
as evidências de novos factos, sustentando as fontes da imaginação.
PAYS À L’EST Era assim percorrer os trilhos do Portugal Central, recapitulando pistas,

DE CASTELO levantando novas dúvidas, partilhando resultados e saberes, com o Mestre


e os seus seguidores.

BRANCO* Neste Mundo, um dos territórios que se individualizava era o das terras a
nascente de Castelo Branco (Les Pays à L’Est de Castelo Branco). Corres-
ponde ‘grosso modo’ ao atual concelho de Idanha-a-Nova, onde a intera-
ção homem-meio gerou uma identidade bem marcada, feita de diversidades
do espaço e dos tempos, do Geológico ao Humano.

F
Reler a “quarta jornada” do Portugal Central é como reviver o “oficio do
oi pela riqueza das formas de relevo, simultaneamente com um carác-
geógrafo” há quase meio século, através de 16 páginas densas e palpitantes.
ter exemplar e uma multiplicidade de enigmas, que Orlando Ribei-
É também confirmar o pendor “cientifico” de um humanista, que tratava a
ro elegeu os territórios do Maciço Antigo de entre Tejo e Mondego
geologia e a geomorfologia com os maiores rigores estilísticos da linguagem,
como espaço laboratorial. A variedade do mundo rural, a intensidade dos
do mesmo modo que procurava a explicação das paisagens humanizadas
contactos de civilização e a espessura histórica, contribuíram para a inte-
a partir de factos irrefutáveis, da documentação histórica e do inquérito
gração da componente humana.
geográfico-antropológico.
A delimitação geográfica e os temas de investigação e de pedagogia apare-
cem em boa medida descritos de forma concisa, em sete dias de viagem que Mas, através da sua obra, como para os que tiveram o privilégio de praticar
durou a excursão ao “Portugal Central”, integrada no Congresso Interna- com Orlando Ribeiro a geografia no terreno, o grande atrativo do Portugal
cional de Geografia, que teve lugar em Lisboa em 1949. Central e em particular das “terras para nascente de Castelo Branco”, era
a beleza – física e conceptual – das formas de relevo e da sua explicação.
Este vasto território é cortado a meio, quase geometricamente, pelo Zêzere,
na sua longa secção paralela ao Tejo, no fim da qual faz um cotovelo de Se os inselberg são tema recorrente, animando longa polémica que se estende
quase 90˚ para se encaminhar para sul e projetar-se no rio maior. Mais um a outros continentes, a falha do Ponsul é objeto da mais aperfeiçoada elabo-
enigma: 0 Enigma do Zêzere, que Orlando Ribeiro perseguiu ao longo de ração, que a transforma em situação exemplar no ensino da geomorfologia.
uma vida de trabalho científico, numa relação contínua entre o homem e o Tal foi o resultado de cuidadoso namoro: “Mas só as investigações a que
mistério. Obra aberta, O Enigma do Zêzere foi o livro que o Mestre escreveu procedi no Outono de 1942 me forneceram elementos para tracejar a evo-
e rescreveu, sempre que voltava ao teatro das operações. O Zêzere, rio das lução da falha com suficiente segurança.

*in vv. aa., Orlando Ribeiro e as terras da Idanha, Idanha-a-Nova, 1997, Centro Cultural Raiano, “Percorri a pé o acidente em toda a extensão desde Vila Velha de Rodão
pp. 29-36. a Monfortinho, levantei muitos cortes transversais, formulei hipóteses de
62   Orlando Ribeiro et les Pays a l’Est de Castelo Branco território & imagem    63

trabalho que, se algumas vezes tive de abandonar, outras me foi possível Os contactos de civilização, como os contactos entre acidentes geológico-
confirmar com o prosseguimento das minhas próprias pesquisas.” (Orlando -geomorfológicos, constituem domínio privilegiado para a investigação em
Ribeiro, 1943: 1990, p. 221) geografia. Assim o ensina Orlando Ribeiro e assim o praticou através de
vários continentes, conferindo-lhe uma clara dimensão metodológica.
É no texto citado que Orlando Ribeiro, ao de leve, tece algumas críticas a
geólogos e a morfologistas, os primeiros sobrelevando o que está por baixo, Evitando o método comparativo, Orlando Ribeiro utiliza recorrentemente
os segundos valorizando apenas o que está à superfície. É, pois, necessário as referências consolidadas do seu laboratório de entre Tejo e Zêzere, o que
conjugar métodos e saberes, o que de resto faz parte do tradicional ofício lhe permite lançar as primeiras hipóteses de trabalho e testá-las, em Ango-
de geógrafo. Essa conjugação necessita de imaginação e ela será tanto mais la, em Moçambique, ou noutras paragens, por onde admirou os enigmas da
eficaz quanto mais aliciante for a apresentação dos resultados. Essa arte geomorfologia.
aproxima-se por vezes da arte das imagens em movimento, permitindo pro-
jetar com credibilidade as formas através do tempo. “Nos granitos junto de A fotografia é, para Orlando Ribeiro, antes de mais, um documento e um
Idanha-a-Nova a escarpa é perfeitamente vertical. Não é impossível que o modelo interpretativo dos elementos da paisagem que vai observando, ser-
Ponsul, nas divagações meândricas atestadas por terraços, viesse minar o vindo-lhe depois não só como um “suporte” à exposição – escrita ou oral
pó da escarpa e seja responsável por essa verticalidade. Em todo o caso, o – mas também como um instrumento intermediário na interpretação da
granito é mais apto que o xisto a conservar as formas...” (Orlando Ribeiro, génese das paisagens.
1943: 1990, p. 229)
A preocupação de Orlando Ribeiro na produção da fotografia fazia parte
Este foi o recanto eleito por Orlando Ribeiro para, tanto em longas estadias da sua maneira de trabalhar no campo, onde punha o mesmo empenho e
como em rápidos circuitos, expor a geografia. Assim aconteceu no referido buscava a melhor ilustração possível, quando recorria à feitura de esbo-
Congresso Internacional, dedicando-lhe o 4.º dia, cheio de temas fulcrais, ços e croquis, para onde transportava logo as primeiras pistas e hipóteses
de observações renovadas e reflexões reveladoras. interpretativas. Em contrapartida, Orlando Ribeiro era mais contido no
inquérito, que praticava naturalmente, privilegiando o escutar atento, con-
E a continuidade do discurso, iluminando um ou outro sinal revelador: seguindo assim “soltar” os entrevistados.
“Antes de chegar a Idanha, sobre una colina há um bonito bosque de so-
breiros. Estas árvores, quase sempre dispersas pelos campos, raramente for- O cuidado e o rigor que Orlando Ribeiro introduzia na produção dos seus
mam grupos densos e contínuos.” (Orlando Ribeiro, 1949, 92) instrumentos auxiliares, da geografia à história, ou da fotografia à expressão
gráfica, permitem por vezes “autonomizar” o resultado dessas incursões.
Seguem se os temas fortes de Geografia Física e da Geografia Humana, bem Daí a obra multifacetada deste geógrafo poder encontrar-se em bibliografias
apoiados nas componentes da Geologia, da História e da Antropologia. fundamentais de outros domínios.

Sem explicitar preocupações de ordenamento do território ou orientações Sobre a faceta do “fotógrafo”, os Encontros de Fotografia de Coimbra de
estratégicas de desenvolvimento, elas aparecem oportunamente a propósi- 1995 fizeram a demonstração, através de una exposição, Finisterra, que para
to da explicação da paisagem e do seu processo histórico. muitos constituiu uma revelação.

Para Orlando Ribeiro, a Beira Baixa, ou mais precisamente o território a Trata se, agora e aqui, de a propósito de um conjunto de iniciativas de
sul da Cordilheira Central, constituía um espaço de transição, tanto no índole cultural levadas a cabo pela Camara Municipal de Idanha-a-Nova,
contexto das paisagens naturais como no das paisagens humanizadas. Esse evidenciar, através de uma série de imagens, a importância que tiveram es-
facto conferia-lhe vantagens para a pesquisa geográfica. tas terras no percurso científico de Orlando Ribeiro. Podendo daí inferir-se
64   Orlando Ribeiro et les Pays a l’Est de Castelo Branco

o interesse desta parcela do território beirão para a investigação e ensino


tanto das Ciências da Terra como das Ciências Sociais. 7. ANTI-METROPOLIS
Laboratório aberto, que o Mestre quis que assim permanecesse para que
as sucessivas gerações de geógrafos e outros investigadores dos problemas OU AS PAISAGENS
da Terra e do Homem continuassem a fazer as suas observações, a criar
novas hipóteses, contribuindo para o progresso da Ciência. Talvez agora
a actividade científica possa de algum modo retribuir, contribuindo para o
DA DESOLAÇÃO*
progresso local.

Deste laboratório aberto deixou-nos Orlando Ribeiro muitas fotografias de



trabalho, das formas de relevo à ocupação humana, dos diferentes aspetos
da economia agrária até às múltiplas facetas da vida de relação. Muito deste
material tem tradução na sua vasta bibliografia, tanto na que incide espe-
cificamente sobre os territórios do Portugal Central como noutras obras,

A
gerais ou monográficas. Mas, de certo modo, falta-nos o retrato de família, Europa ainda pode ser um sonho, uma viagem pela urbanidade
a monografia que a Beira Baixa merecia e que o Mestre “ofereceu” a outros continua, iluminada pela força das míticas metrópoles que sublima-
“laboratórios”, em que sobrelevamos a Ilha do Fogo. ram a nossa cultura e a dos outros, tanto no confronto como na
síntese.
Conhecendo a maneira de trabalhar de Orlando Ribeiro e a sua prática Mas o sonho, hoje como nos passados, tem sempre um reverso de realida-
pedagógica, cremos que foi deliberada essa lacuna, que correspondeu a dei- de, que geralmente esquecemos, fechando os olhos ou apenas passando ao
xar-nos um laboratório aberto, onde ao lado dos enigmas que permanecem, lado. Selecionámos e da seleção resultaram novas paisagens. A velocidade,
os principiantes podem encontrar as situações modelares. o avião, as autoestradas, os guias, permitem-nos maior precisão seletiva. E
as cidades correspondem: fecham-se ou abrem-se, consoante as chaves de
que dispomos.
Uns olham sempre os interiores, macios e climatizados, a cidade enquanto
fortaleza, o lar que não só se reconstrói na urbanidade, como se superlati-
viza no tempo distendido do lazer (the leisure class). Outros descobrem a
exaltação dos exteriores, das fachadas e dos movimentos estimulantes, a
cidade do touriste, mas também do viajante maravilhado. Mas há ainda os
Bibliografia que procuram os sinais da mudança, as margens, as saídas e as entradas, as
O Ribeiro (1943) – “A Evolução da Falha do Ponsul”, Comunicações dos portas e as traseiras.
Serviços Geológicos de Portugal, Lisboa, 109-123. E há também os olhares equivocados, por desconhecimento ou desatualiza-
(1949) – Le Portugal Central, Lisboa, 2.ª ed. C.E.G./I.N.I.C, Lisboa, 1982. ção. Ou tão só troca de guia.
(1990) – Opúsculos Geográficos, III Vol., Aspectos da Natureza, Fundação Estas paisagens são os sinais de um mundo urbano em desagregação, mas
Calouste Gulbenkian, Lisboa. onde são mais evidentes as heranças e as tensões, dos tempos dos usos

*in Paisagens do Quotidiano, Encontros de Fotografia, Coimbra, 1998, pp 47-51.


66   Anti-metropolis ou as paisagens da desolação território & imagem    67

e dos espaços, do que as novas aventuras traduzidas em formas e ritmos dos, dar acesso à urbanidade interrompida. Por isso são também viagens em
inovadores. busca da “reinvenção da continuidade”.
A cidade pós-fordista não é necessariamente a cidade pós-moderna, embo- A Cidade de Deus, a cidade envolta pela cerca circular, com suas portas
ra não só coexistam, como se articulem. Por isso a recorrência da descon- bem sinalizadas e outros sinais arquitectónicos, enquanto hinos ao espírito
tinuidade e a denúncia da cidade dividida, mas também as notas dispersas e ao divino, continua a ser referência, a meta que provoca os desesperos
do elogio da diferença. das buscas.
São visões que implicam percursos e que indiciam as chegadas. O traço Falta-lhes a água, o vinho e o pão, mas de resto está lá a poesia, o princípio.
mais comum é talvez a quase ausência do cidadão e do espaço público, “Há quem olhe para uma factura e não sinta isto. Com certeza que tu, Ce-
que estão na essência da cidade. E, no entanto, há uma “política” nova em sário Verde, o sentias. Eu é até às lágrimas que o sinto humanissimamente”
composição, processo sempre doloroso e marginalizador. Por isso é ainda (Fernando Pessoa, Ode Marítima).
mais urgente voltar à cidade, ao cívico e à densidade.
Reciclar a cidade é a palavra de ordem no novo urbanismo cívico, em opo-
sição ao abandono e fuga para os novos espaços, urbanos ou inurbanos. A POST SCRIPTUM
alternativa não pode ser a polpa urbana que se vai edificando no periurbano,
para lá da suburbia. As novas paisagens urbanas são difíceis de sistematizar, de classificar, tal é a
O que temos perante os nossos olhares são paisagens em trânsito, para a sua variedade e atipicidade. Também não existem referências físicas ou sim-
reciclagem ou para o abandono; é esse grito que ecoa em muitas imagens, bólicas suficientemente consensuais e afirmativas que permitam construir
o pavor da cidade que foi, a consciência da memória perdida. Materiais um mapa bem apoiado em pontos cotados. Além dos centros de consu-
abandonados, sem sentido ou função, num território reciclável enquanto mo, existem sobretudo eixos rodoviários e um espaço topológico dominado
espaço da cidade. apenas localmente. Os novos espaços urbanos são como uma selva, onde
Poderíamos contrapor aqui a cidade já reciclada, as novas urbanidades e as a orientação é muito difícil. Em Portugal, nalgumas áreas, as fábricas e um
novas formas de urbanismo que emergem por todo o Mundo, através de um equipamento que prolifera, as discotecas, são frequentemente, as balizas
processo que, no essencial, é tão antigo quanto a própria cidade. Aqui ape- mais bem referenciadas.
nas um ou outro sinal, crítico, de um certo tipo de reciclagem e que remete A emergência das discotecas, como nova dimensão social, é um fenómeno
para o eterno conflito da arena citadina, enquanto estação ou terminus de curioso, que tem a ver com a nova urbanidade e a sua agorafobia – o medo
percursos sem saída – da East India às Docklands. dos lugares amplos, típicos dos espaços públicos da cidade. Por outro lado,
São territórios promíscuos, nas estruturas, nos usos, nos tempos, nos próprios as discotecas funcionam no tempo noturno, quando a topografia é menos
olhares que suscitam. Que buscam aqui estes fotógrafos nostálgicos – a ci- relevante, permitindo a intersecção entre pertencentes a territórios dife-
dade dos Homens? a cidade de Deus? Ou pressentem a antecâmara do rentes e de delimitação imprecisa.
Apocalipse? A imagem que nos tem acorrido para designar estes novos espaços, tão
Objectos, destroços, símbolos, por vezes tão só o que está, isto é, o que a iguais e sempre diferentes uns dos outros, por isso também com traços de
câmara fixa. Do que resultam leituras ambíguas: o campo que persiste ou familiaridade que remetem para a família das cidades, é a de polpa (pulp)
os cultivos marginais enquanto fragmentos de uma cultura? O clamor do – a polpa urbana. Esses tufos de polpa urbana articulam-se entre si, com-
último potlach ou o ritual mimado dos urbanitas em trânsito – os turistas plementam-se, conflituam, estruturam-se em espaços atípicos que não se
do apocalipse? aproximam da cidade, antes persistem em contínua deriva, apesar dos es-
São viagens pelo desconsolo de uma “Europa, nossa mãe rasgada…”, como forços de racionalização que cientistas e técnicos promovem a fim de pode-
a visionava Nemésio há um quarto de século, que na procura de caminhos rem operar um espaço enquadrável em categorias bem sedimentadas.
integradores vai abrindo novas fracturas. Viagens-avisos à barbárie que é Essa deriva é não só urbanística, económica e social, mas também políti-
envolvente e penetrante, mas a que nós queremos, hoje como nos passa- ca, na medida em que os eixos da definição do poder e da cidadania vão,
68   Anti-metropolis ou as paisagens da desolação

progressivamente, migrando dos velhos centros urbanos das cidades, para


essa nova realidade onde vivem os novos senhores locais, que gerem a polis,
da Câmara Municipal ao Clube de Futebol.
8. TRÊS SINAIS E
UMA VISÃO*

O
automóvel é o sonho realizado e a possibilidade dos regressos. A
primeira visita à terra, a excitação em cada curva da estrada, a
partir dos primeiros limites conhecidos numa tabuleta, um mergu-
lho já velho na infância do ausente, a torre da igreja da freguesia vizinha…
quantos sinais de identificação, a confirmarem o retorno. Pouco a pouco, o
cansaço fica para trás e realiza a felicidade de encontrar os seus e de mostrar
a evidência de que valeu a pena partir para poder voltar.
O automóvel desliza pelas estradas do território familiar, num quase silên-
cio, que permite saborear os arvoredos, os restolhos, as ruínas, os cheiros
que nos acompanham na emigração e que de quando em quando entram
pelas janelas. Que bom ter um automóvel para fazer viagens na nossa terra,
para a sentir mais nossa, em cada hectómetro que se conquista ao conta-
-quilómetros.
O automóvel, a estrada, o emigrante, num triângulo de êxtase e de so-
nhos em realização, que muitas vezes se resolvem em tragédia, em morte,
em sangue, transmitidos para as páginas dos jornais, enfrentando a incom-
preensão dos leitores longínquos.
O sagrado visitado, da pia batismal às campas do cemitério que voltam a
florir, na procissão que é marcha e marca de encontros, dos que foram com
os que ficaram, do aqui com o além.
Ir na procissão, entrar na igreja, dar um contributo para a “Comissão Fabri-
queira”, são também formas de afirmar a dignidade conquistada. Por isso a
emigração tantas vezes aproxima os Homens de Deus, sobretudo quando
este se mostra bom e misericordioso.
Senhora da Lapa, Santa Eufémia, e tantas outras mães virgens, que nos
recebem na sua eterna bonomia e protecção. As mães que ficam, ou vão e

*in Um País de Longínquas Fronteiras, C. M. Guarda, 2000, pp 33-34.


70   Três sinais, uma visão território & imagem    71

voltam, são o outro lado da viagem: o firme, onde se pode sempre voltar, viaja pelo Portugal triste dos cinzentos pinhais, queimados e desiguais, dos
por isso a Pátria é sempre ingrata, mas a Mátria nunca. armazéns e edifícios de vários andares que hoje envolvem as nossas vilas e
A festa, a que uns chamarão “Profano”, o reverso da questão; é muito mais cidades, percebe bem o que queremos dizer.
e, acima de tudo, a sagração das mães, da mãe. Que pena não ter havido visão e sensibilidade para ajudar as emigrantes na
Mães de todas as idades, de todas as origens e histórias várias. As que vêm construção dos seus sonhos, tornando-os mais duradouros, no limiar q.b.
de visita e as que fiaram. Quantas experiências, partilhadas e por partilhar, da realidade.
mas numa linha comum: os filhos que se vão, sempre, um a um… Este váise De tudo ficará apenas a terra e o céu, refeitos no sem-fim dos ritmos do
y aquel váise e todos, todos se van… como chorava nossa mãe Rosalia. tempo: as noites sucedendo-se aos dias, o renascer das estevas em cada Pri-
Mães tantas vezes incompreendidas, na sua ingénua alegria da vaidade me- mavera, os blocos graníticos que lentamente se vão desfazendo em quartzo,
recida, la maison, la voiture, mas sobretudo nos filhos, limpos, vestidos e feldspato e mica, que pelos rios vão até ao mar.
alimentados. Et voilà, encore une fois! Ficam para depois os outros, os que emigraram pelos mares.
Nossa Senhora da Póvoa, Senhora da Lapa... continuai a proteger as mães
dos nossos emigrantes para que eles renovem continuadamente as alegrias
dos retornos e Portugal continue a ser, pese embora o olhar crítico de An-
tónio Nobre (Lusitânia no Bairro Latino), um país de festas e romarias:
“Georges! anda ver meu país de romarias / E procissões!”.
A casa: uma vida para um sonho. Maisons de Rêve como tão bem o inter-
pretaram num livrinho cheio de ternura, com alguns piscar de olhos, que
também não ofendem ninguém (Maisons de rêve: Portugal, enquête sur les
migrants bâtisseurs – CREAPHIS).
Mas que haverá de mais humano, de mais humanissimamente humano, do
que sonhar com uma casa, o lugar protegido onde podemos instalar o nosso
lar. E, ao mesmo tempo, a bandeira ao vento, cantando a nossa fortuna,
quiçá o limiar da felicidade.
Casas que transportam memórias, que contam histórias que vão dos tem-
pos da carência (que querem esconder) aos dias da abastança (que querem
exaltar).
Casas que transportam consigo os espaços do emigrante. Casas que não po-
dem ser entendidas numa leitura superficial e apressada. Quão injustos têm
sido, muitos dos que ficaram – julgando-se juízes do bom gosto – ao avaliar
apressadamente essas marcas das novas paisagens da emigração e piores
têm sido os que, detendo o poder, cortam o sonho, rasoirando a imagina-
ção, sem procurar beneficiar de experiências, de descobertas, de excitações.
Casas que muitas vezes são mais padrões erguidos nas serras longínquas,
como que a assinalar as aventuras dos que aí viveram em comunidades, até
que as pulsões, internas e externas, os levaram ao êxodo.
Casas de emigrantes, que por tantas razões – melhores ou piores – têm
direito à distinção. Casas que, ao contrário do que muitos pensam, têm um
valor cultural e constituem um enriquecimento de muitas paisagens. Quem
território & imagem    73

9. O RETORNO tem dificuldade, por carência teórica e metodológica, em apreender esta nova
realidade, em delimitar a nova paisagem. Só uma atitude poética introduz um
sentido, uma justificação, navegando com tacto apurado entre estes ilhéus, ape-

DA PAISAGEM nas palpitantes, olhando o tempo que passa.” (GASPAR, 1997A).

A paisagem que constituiu o conceito chave do paradigma dominante na


À GEOGRAFIA – Geografia de entre as duas grandes guerras, voltou a estar na agenda dos
geógrafos. O regresso à paisagem fazse em várias frentes e a partir de es-

Apontamentos colas antecedentes distintas. Desde logo, pela renovação que os geógrafos
franceses têm vindo a fazer, de G. Bertrand a A. Berque (Cf. Bertrand,
1984; Berque, 1990; Pinchemel e Pinchemel, 1992; Claval, 1995), mas

místicos* também por via da renovação da orientação culturalista da Geografia Hu-


mana anglosaxónica, integrável ou não na corrente Humanista (Cf. Ley
and Samuels, 1978; Cosgrove, 1984; 1985; Cosgrove and Daniels, 1987;
YiFuTuan, 1993; Crang, 1998; Mitchell, 2000).

Mas o regresso à paisagem não é só apanágio da Geografia, manifesta-se


em vários outros domínios onde é necessário apreender a luz, as formas, os
ambientes, para compreender os lugares e o sentido do espaço e do tempo;
daí as novas paisagens da pintura, da literatura, da arquitetura e a continui-
Abertura dade renovada da fotografia.

“Dos inselberge à paisagem arquipélago” Sendo a paisagem um conceito moderno, qual a explicação para o seu re-

“D
nascimento nos tempos pós-modernos? Será que as interrogações do ho-
a Cova da Beira a Monsanto emergem vultos rochosos, descarna- mem pós-moderno remetem também para a perda de identidade paisagísti-
dos, como elementos geométricos, rígidos, numa superfície aplana- ca e daí, por carência, se tenha chegado mesmo à mitificação da paisagem?
da – são os montes-lhas, inselberge na linguagem dos geógrafos/
geomorfólogos da primeira metade deste século, que procuravam, a partir da As múltiplas pesquisas sobre a paisagem têm feito ressaltar a importância
construção de uma língua franca, argumentos para a unidade da prática de uma de novas dimensões, que vão para lá da simples apreensão visual ou da re-
disciplina ainda mal definida. sultante das relações entre o Homem e o Meio. Por um lado, têm valorizado
Orlando Ribeiro investiu anos do seu labor e do seu amor à terra nesta busca, pe- a importância de outros sentidos na apreensão das paisagens (o olfacto,
los espaços da Raia, entre Tejo e Côa, cabeceiras da bacia duriense. Buscas com o ouvido, o tacto) e, por outro lado, como o notaram Phillipe e Gene-
bússola, martelo, saco às costas, cadernos cheios de notas e mais apontamentos, viève Pinchemel, têm sido reveladas nas “novas paisagens” outras dimen-
mapas constantemente refeitos. E muita imaginação, de que se faz a ciência e a sões valorativas, para além da “paisagem como quadro de vida”: paisagem-
arte. -património, paisagem-valor de identidade, paisagem-recurso (Pinchemel e
Entretanto permaneceram os inselberge, mas o “mar” pulverizouse em múltiplas Pinchemel, 1992, p. 377).
situações, por vezes crípticas, de insularidade humana e cultural. Hoje a ciência
Paul Claval, na sua proposta de grelha de leitura das paisagens, também
*in Finisterra, XXXVI, 72, 2001, pp. 83-99. aborda a questão do “utilitarismo” na concepção das paisagens, como no
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caso do Middle West norteamericano (Claval, 1995, p. 264). Curiosamen- ao “paisagismo”, nas artes, nas ciências, nas humanidades, com efeitos nas
te, o tema já foi abordado, literariamente, há quase um século, por Miguel representações dos lugares e dos territórios, com efeitos no uso do tempo e
Unamuno: nas economias.

“Y es, sin embargo, ese trabajo el que nos ha de enseñar a querer la tierra. El O comboio impulsiona as visões das paisagens no século XIX, com reflexos
amor desinteresado al campo, el sentimiento de la Naturaleza tiene su origen fundamentais nas orientações geográficas, de Humboldt e Ratzel aos fun-
en la utilidad que aquél nos presta. Y aqui permítame, amigo, que le reproduz- dadores da moderna geografia francesa.
ca lo que en uno de los trabajos que figuran en mi libro Paisajes escribi a este
respecto. Dice así: «La beleza es ahorro de utilidad...».” (Unamuno, 1907; O automóvel vai permitir, a um tempo, o alargamento do campo de pes-
1960, p. 182). quisa e o seu aprofundamento. Disso nos deu nota Miguel Unamuno, já
em 1907, nas suas notas finais sobre as viagens Por Tierras de Portugal y de
Para introduzir esta complexa evolução é fundamental o contributo ilumi- España: “Otra de las cosas que contribuyen hoy aqui a desarrollar la afición
nante de Denis Cosgrove “Prospect, Perspective and the Evolution of the al campo y al goce de las bellezas de la Naturaleza es el automóvil. El de-
Landscape Idea” (Cosgrove, 1985). Associando o renovar dos estudos da porte automovilista ha llebado a muchos a comocer campiñas y rincones
paisagem em Geografia à emergência da perspectiva humanista no cora- que antes ignoraban, ha hecho que muchos empiecen a descubrir España.”
ção desta disciplina, Cosgrove encontra em William Bunge, surpreenden- (Unamuno, 1907; 1960, pp.187188).
temente, a mais clara afirmação da centralidade da vista em Geografia:
“Geography is one predective science whose inner logic is literally visible...” A popularização do automóvel que entretanto se verificou, a níveis nunca
(Bunge, 1966). imaginados, não só banalizou o passeio, como a viagem, permitindo um
infinito de visões sobre as paisagens, que variam segundo o observador, mas
Orientações mais “críticas” têm vindo a desenvolver-se, sobretudo nos Es- também, e de que forma, segundo a velocidade.
tados Unidos, com raízes na “Geografia Radical”. Estas abordagens têm
tratado questões de classe, género, raça, etnicidade e sexualidade. “Social Até que o TGV veio trazer novas imagens, como nos apresentou Yoshio
contestation, rather than the invisible working of culture, was put at the Nakamura “«Le TGV est un aspirateur du paysage» aton dit quelque part
forefront of landscape analysis” (Mitchell, 2000, p. 62). en une bien intéressante métaphore. En effet, le paysage, disséminé en
corps poudreux comme de la poussière, est aspiré vers l’arrière, comme
Parece que a paisagem é uma invenção do Renascimento ou, mais apro- dans un aspirateur. A la pointe de la civilisation contemporaine, cette mé-
priadamente, da pintura renascentista (Cf. Perigord, 1996; Béguin, 1995). taphore célèbre annonce la mort du paysage traditionel.” E mais adiante
Desde então não deixou de estar presente na preocupação de artistas, via- “L’aspirateur du paysage fait pressentir que le train à grande vitesse est en
jantes, cientistas e até dos políticos, embora com altos e baixos, ou seja, pe- outre un média générateur d’images.” (Nakamura, Frieling et Hunt, 1993,
ríodos de maior procura, alternando com períodos em que era mais votada pp.16-17).
ao esquecimento.
G. Dematteis, ao analisar o conceito de paisagem que se desenvolveu na
Creio que o interesse pela paisagem foi sempre estimulado pela viagem, Geografia dos séculos XIX e XX, encontrou duas tendências fundamentais:
pela abertura ao mundo, aos mundos. E isso aconteceu, decerto, muito an-
tes do conceito e da palavra terem sido elaborados no Renascimento. Não “a. a paisagem como símbolo, isto é, como conjunto de sinais a inter-
terão sido então as viagens e as descobertas – marítimas e terrestres – que pretar;
catalizaram o processo de invenção da paisagem? De qualquer forma, as b. a paisagem como modelo, isto é, como construção racional explicati-
próximas revoluções nos modos de transporte trouxeram um outro impulso va da realidade externa.”
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Enquanto no primeiro caso estamos perante o ponto de partida para um No possibilismo, a paisagem aparece associada ou mesmo decorrente do gé-
processo de aprendizagem, “um percurso cognitivo”, no segundo “o reco- nero de vida (genre de vie) e a grande divisão encontra-se entre as paisagens
nhecimento de uma paisagem... é um ponto de chegada” ou, ainda segundo de sedentários e as paisagens de nómadas; chegou-se também aos conceitos
Dematteis “... uma construção racional e objectiva cujos significados analí- (embora menos operativos) de paisagens urbanas e paisagens rurais, embora,
ticos já foram explicitados.” (Dematteis, 1995, p. 45). claro, o ponto de convergência é o que articula paisagem com região.

O esquema seguinte, traduzido da citada obra de G. Dematteis, sistematiza A actualização do conceito de género de vida pode, entretanto, ajudar-nos
várias abordagens geográficas, que, de algum modo, utilizamos em diferen- a compreender muitas transformações que se têm vindo a operar, de forma
tes fases do trabalho científico. De facto, tanto o símbolo, como o modelo acelerada, no último quarto de século. O território está hoje fortemente
são permanentes e recorrentes nas abordagens geográficas. marcado pela acção do novo nomadismo: os não lugares, os múltiplos cen-
tros de lazer e de consumo, o “caravansérail” que antecede a entrada em
muitas cidades europeias e americanas... Torna-se também visível, mais no-
tavelmente a diferença entre as paisagens do feminino (sedentárias) e as do
masculino (nómadas).

Esta permanente (e crescente) deriva origina também novos movimentos


de peregrinação, gerados pelas saudades da paisagem perdida: quer seja a dos
campos (que no revivalismo do macroarranjo paisagístico se confunde com
paisagem – sobretudo em França), quer seja a das cidades.

Yoshio Nakamura (Nakamura, Frieling et Hunt, 1993) a propósito da visão


da paisagem a partir do TGV, fala-nos de outras situações em que “o olho
do homem contemporâneo se desloca num espaço englobando as vias aé-
* Adaptado de Dematteis, 1995, p.47. reas e as autoestradas, as torres e o metro. Também aí, a visão vacila sem
interrupção. A fragmentação da cidade e do território, que não resulta de
Recordo aqui uma inesquecível excursão de uma semana, com Orlando uma visão linear exclusivamente imóvel, é apreendida através de ruídos
Ribeiro, por terra de Lião e Galiza. Então, por volta de 1970, Orlando Ri- e vibrações sentidas pelo corpo em movimento.” (p. 17) e conclui logo a
beiro não gostava de ouvir falar de “modelos em Geografia” e eu, no meu seguir “já não se trata da ordem estabelecida pelas civilizações agrícolas se-
entusiasmo com Christaller, vinha amiúde com argumentos (creio que pou- dentárias. É a imagem de um mundo nómada em perpétua mobilidade”
co convincentes) a favor. Viajávamos de Corunha para Orense, e Orlando (p. 17; sublinhado nosso).
Ribeiro puxa do microfone do autocarro e começa a “descrever”, de forma
exemplar, a paisagem típica da Galiza interior, mas o que víamos não cor- Também François Béguin nos chama a atenção para os casos do pintor Ed-
respondia ao modelo que ele nos apresentava no seu estilo modelar! Não ward Hopper e do cineasta Wim Wenders, que tão bem “exploraram as pai-
perdi a oportunidade de lhe mostrar como os modelos eram importantes em sagens da errância” (Béguin, 1995, p. 27). Poderíamos juntar muitos outros
Geografia (!) e como, mesmo no campo, temos necessidade de recorrer a artistas plásticos, escritores, fotógrafos e cineastas, que sentiram, através
essas simplificações da “realidade” observável. de todo o século XX, o fascínio e a mensagem das estações de caminho de
ferro, das autoestradas, dos motéis, das cafeterias de estrada, das estações
Que pena só 20 anos mais tarde ter sido publicado um artigo de Dematteis de camionagem, dos caminhos das estrelas.
onde estas questões são explicitadas (Dematteis, 1989).
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De entre os valores que mais se afirmaram na avaliação paisagística emerge da abordagem das paisagens, com um claro alargamento do conceito, sendo
a água, de todos os tipos, a todas as escalas. Será também um sinal do cami- cada vez menos precisa a diferença entre panorama, vista e paisagem, já
nho para um novo nomadismo? diferenciáveis no século XIX, como, por exemplo, nos “Apontamentos de
Viagem”, de Alexandre Herculano (cf. Herculano, s/d).
A água que se bebe, que se aprecia, como os vinhos ou as cervejas – o
gosto, o tacto, as propriedades dos constituintes; a água dos banhos – a re- As paisagens olfactivas
descoberta da arte do banho (das imersões aos jacuzzis); a água como visão
frequente (repuxos, lagos, quedas de água – nos centros comerciais, nos ho- Embora menos consciencializada que outras paisagens, a olfactiva deixa
téis...); ou como companhia – habitar numa frente de água (o sucesso das impressões fortes na memória dos lugares e dos momentos. Durante muitos
waterfront development...); em última análise a litoralização que se observa anos, as cidades da Europa (que então começava nos Pirenéus) tinham um
em todos os continentes: para residências permanentes e secundárias (ou cheiro característico, que levei algum tempo a localizar, era o do fastfood –
primeiras e segundas...). os Wimpy, MacDonalds, BurgerKing e tantos outros, que então ainda não
existiam na Península Ibérica. Hoje, Lisboa já começa a ter uma paisagem
A água é um bem escasso – não se cansam de pregar todos os ministérios do olfactiva que a aproxima das congéneres europeias.
ambiente, organizações internacionais planetárias e várias ONGs. É cada
vez maior o consumo de água (da ingestão, às lavagens ou simples contem- Em contrapartida, para muitos portugueses, o cheiro da cidade espanhola
plação – visual ou auditiva). Talvez porque é um bem escasso! Talvez por- era marcado pelos fritos (as churrerias...) e pelo tabaco negro.
que há um desejo de voltar à origem. A água é o elemento-chave nas novas
Ainda hoje, há uma diferença grande na paisagem olfactiva das aldeias do
paisagens que se constroem. As paisagens do novo nomadismo: marcado
Norte e do Sul, em Portugal. Nas Beiras, Trás-os-Montes e Minho, é forte o
por rotas (redes) e oásis.
cheiro do fumo das lareiras e, embora menos que noutros tempos, o cheiro
do gado bovino (estrume) povoa a atmosfera de grande parte dos aglome-
“El agua es, en efecto, la conciencia del paysage; en el agua, cuando queda
rados rurais. Já no Alentejo, as aldeias não só são mais “limpas”, como são
quieta y serena, se reflejan las árboles y las rocas, en el agua se ven como
quase inodoras – nalgumas épocas do ano destaca-se apenas o odor da flor
en espejo, en el agua se desdoblan, adquieren reflexión de sí; el agua es,
de laranjeira, quando as ruas estão arborizadas com esta espécie.
repito, la conciencia del paysage. Donde hay agua parece el paysage vivo.
Y el agua del río es conciencia viviente, conciencia movediza.” (Unamuno, No fundo, temos aqui mais uma dimensão da oposição das paisagens produ-
1907; 1960, p.175). zidas pelo campesinato e pelo proletariado agrário.

A abordagem sistemática das paisagens olfactivas é feita pelo geógrafo ca-


Outras paisagens nadiano J. Douglas Porteous (Porteous, 1977; 1982; 1985), que terá mesmo
“fundado” o conceito de smellscape. Este autor assinala que o homem, no
O renascimento dos estudos da paisagem em Geografia tem contemplado seu processo de evolução social, perdeu muito da sua capacidade olfactiva:
não só novos “olhares”, como também a emergência de novas apreciações na actualidade, 90% das percepções são adquiridas visualmente e grande
sensoriais da paisagem, com destaque para o olfacto e para o ouvido. En- parte das restantes adquirem-se através do tacto e da audição.
traram assim no vocabulário geográfico, termos novos, como smellscape e
soundscape. Apesar do “smellscape” não ser contínuo, “fragmentado no espaço, epi-
sódico no tempo e limitado pela altura dos nossos narizes em relação ao
Referimo-nos às nossas abordagens de geógrafos, relevando embora que chão”, segundo Porteons, os cheiros podem ser ordenados espacialmente
também nas artes e na literatura se tem verificado uma grande renovação (Porteons, 1985, p. 359).
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As paisagens olfactivas variam no espaço e no tempo e têm claras diferen- field from the road you must step around small holes venting fumes from far bel-
ciações de lugar para lugar. Por outro lado, ocupam uma presença impor- low. A taste of soil from near one of these vent holes betrays some sense of the
tante nas memórias, que pode determinar decisões, com reflexos no orde- place: a complex, slight sulfury burnt flavour with a mettalic overtone, fine and
namento espacial das pessoas e das actividades. dusty in consistency. Surprisingly moist and organic, it quickly coats your mouth
Se a literatura de ficção constitui uma fonte inesgotável para aprofundar as with an inky pervasiveness. Repeated spitting never quite expels the blackness,
paisagens olfactivas, o inquérito e o levantamento sistemático constituem and the taste remains in your mouth as Centralia remains in your mind.
os métodos adequados para o apoio à gestão e planeamento da componente
do odor no ambiente urbano. Centralia is duplicity in a duplicitous lanscape. A town that really isn’t a town,
yet someone repairs and maintains the roads and sidewalks, and a post of-
O ambiente olfactivo é, de resto, desde há muito, uma preocupação na fice and a location on the state road map are retained. A town with solitary
questão urbana e no planeamento urbano. Em países como o Japão e os Es- “row” houses and empty lots filled with wildflowers simmering over a malodor-
tados Unidos o tema encontra-se tratado nalguns planos de estudos (Ohno ous fire. A town which ended up in turmoil, half the Centralians wanting to
e Kabayashi, 1997 e 1998). get paid and get out and half wanting to stay. A town where death threats and
tire slashings and fire bombings peppered the debate over whether to preserve
O caso mais espantoso que encontrámos relativo à paisagem olfactiva re- the “community”. A town where state and federal engineers, bureaucrats, and
mete para uma catástrofe ecológica que afecta uma cidade numa região politicians bumbled and dug holes and sunk test pits and declared the place safe
carbonífera do sudeste da Pensilvania (EUA): Centralia. and declared the place dangerous and confused themselves and the Centralians.
Above all, the taste of Centralia is much as Centralia is: sulfury, burnt,
“Centralia, near the heart of Western-Middle anthracite region, appears sud- and sparse, dense with organic material, once alive but now dead, seem-
denly, striking in change from the piles and rubblescapes which precede it ingly fertile but damned by what burns below.” (Krygier, J.B., 1998).
along highway 61. The familiar grid street pattern, sidewalks, curbs, a mu-
nicipal bench to sit on, and large curb-side trees which betray the age of the
town. Then, driveways and walks up to... empty lots. Some mowed, some As paisagens sonoras
planted with wildflowers. But, oddly, no houses. Then a few houses. Row
houses, narrow and tall. Actually a single row house, divorced from its long- O interesse pelo som das paisagens é recente entre os geógrafos e manifes-
time neighbors and necessarily propped up with red brick buttresses. A fire ta-se apenas na corrente “Humanista”, no contexto das experiências senso-
smolders in the abandoned mines under Centralia. Most of the 1400 Cen- riais que os lugares facultam. Mas o elemento som/ruído preocupa cada dia
tralians, after years of protracted conflict with state and federal agencies and mais os profissionais do Ordenamento do Território, no contexto da quali-
each other, have left, their homes purchased and demolished by the federal dade ambiental. Assim, fazem-se medições de ruído e elaboram-se mapas
government, converted into piles somewhere else. de ruído, existindo directivas comunitárias e legislação nacional que regula
esta componente da “degradação” das paisagens. Importa aqui remeter para
The sulfury smesllscape of Centralia grows more insistent as one nears os trabalhos de Murray Schafer, nomeadamente o The Vancouver Sounds-
the “hot” part of town, where the fire is closest to the surface. A Church cape e os vários estudos comparativos de “paisagens sonoras no Mundo”,
near a field of pipes venting noxious gasses – and further stoking the fire – sits resultantes do Projecto Mundial de Ambiente Sonoro, lançado em 1971, a
near the southern edge of town. Beyond this gentle curve of highway 61 (this partir da Universidade Simon Fraser (Vancouver, B.C. Canadá); para uma
street closed to traffic) slopes through a broad, rumpled, smoking field, well- visão de síntese veja-se Schaffer, 1977.
baked dead trees bleached white and charred at their bases. One stands on the
buckled asphalt road and watches this curious, roasted landscape... but not Por outro lado, há hoje uma preocupação com o “paisagismo” sonoro, em
for long. The road is hot through your shoes. Moving onto the spongy, burnt espaços públicos, que vão das lojas e centros comerciais até zonas urbanas
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de algumas cidades. O objectivo é, como no paisagismo visual, amenizar o Foi naquela hora primaveril e solar que me foi dada, no tédio e no reco-
ambiente, tornando-o mais aprazível, o que muitas vezes não é conseguido lhimento, a posse de uma verdade fecunda a saber: que o Barroco está
nos sons, onde o consenso sobre o aprazível é mais difícil; vejam-se, por secretamente animado pela nostalgia do Paraíso Perdido.”
exemplo, o pesadelo sonoro de algumas praias da nossa costa ocidental ou a (E. D’Ors, O Barroco, ed. Vega, Lisboa, s/d).
estridência “musical” que ocupa certos lugares públicos de algumas cidades
de pequena e média dimensão, mormente por altura de eventos festivos. As imagens sonoras estão para a paisagem visível como a imagem de avião
(ou de satélite) está para a do observador no terreno: já tem um trabalho
Também nos campos se alterou profundamente a paisagem sonora, onde o de modelação, de abstracção.
roncar dos automóveis e das motocicletas substituiu o chiar dos carros dos
bois, de que nos falam muitos escritores, ou, por vezes, de forma irreverente, A paisagem sonora é, muitas vezes, a que selecciona, a que apreendemos
a substituição radical do sino da aldeia pela aparelhagem sonora, que marca quando fechamos os olhos – a derradeira lembrança que queremos levar
o ritmo do dia com a música sintetizada alusiva a Nossa Senhora de Fátima. de um lugar; ou de uma vivencia, como diria Ortega y Gasset. As imagens
que guardamos antes do sono, quer o sono do dia a dia/noite a noite, quer
Mas os sons, apesar do crescente ruído de fundo, sobretudo em ambientes o sono absoluto.
urbanos, são referências fortes nas leituras e memórias dos lugares, tanto
pela presença como pela ausência: só quando saímos da grande cidade e Agora só me resta ouvir, [Now I will do nothing but listen]
nos “embrenhamos” no campo, fora das fontes sonoras, nos apercebemos Para juntar o que oiço a este canto, para deixar que os sons contribuam
do que é o poderoso pano de fundo sonoro do meio urbano. Escutar o si- para ele.
lêncio da peneplanície alentejana, entrecortado por sons novos, subtis, ao Oiço bravuras de pássaros, o rumor do trigo que cresce, o crepitar das
ponto de os desconhecermos, é também a tomada de consciência da di- chamas, o crepitar da lenha com que cozinho,
mensão da poluição sonora das nossas cidades, dos nossos ambientes de Oiço o som que amo, o som da voz humana,
trabalho, das nossas casas. Oiço todos os sons, juntos, combinados, fundidos ou seguindose,
Sons da cidade e sons de fora da cidade, sons do dia e da noite,
Foi através das abordagens literárias que primeiro se desenharam esses por- (…)
menores do som da paisagem, de que Eugenio D’Ors, um autor espanhol, O granizo bateme com toda a fúria, perco o ânimo,
grande especialista do Barroco, nos deixou numa amostra inexcedível na Mergulho na doce morfina, estrangulamme os falsos sinais da morte,
recriação ambiental, em 1921: Por fim de novo me ergo para sentir o enigma dos enigmas,
Isso a que chamamos Ser.
“Fielmente guardo a memória de uma hora meridiana, certo dia de
Maio, no Jardim Botânico de Coimbra. Hora lenta e turva, de perfumes (Walt Whitman, The Song of Myself, 1881; tradução de José Agostinho
vegetais e arrulhos voluptuosos. As palmeiras esbeltas, ávidas de sol, su- Baptista, Canto de Mim Mesmo, Assírio e Alvim, 2ª. ed. Lisboa, 1999,
biam, dominando desde cima as copas, que agora esqueciam, nas alturas pp.6871).
do seu palácio de luz; assim mulher desnuda ante o espelho olvida, pelo
resplendor inteligente dos olhos, as feras sombras que o instinto en- As paisagens do tacto
contrara a meio subir... Sim, as palmeiras dominavam os loureiros; mas
as trombetas marciais soantes nalgum quartel vizinho não afogavam o Foi ao ler o fascinante Passing, Strange and Wonderfull (YiFuTuan, 1993), na
cálido gemer das rolas. Parte II, Sensory Delights, quando cheguei à abordagem das Landscapes of
Vozes de rolas, vozes de trombetas, ouvidas num jardim botânico... Não Touch, as paisagens do tacto, que me lembrei de uma experiência extraordi-
há paisagem acústica de emoção mais caracteristicamente barroca. nária que os meus alunos de primeiro ano me proporcionaram. A propósi-
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to da multidimensionalidade e multisensorialidade da paisagem, um aluno are warm, light-blue glittering ones cool. A glass coffee table next to a polished
interpelou-me sobre como sentiriam os invisuais a paisagem – lembrei-me walnut chest is a tactile composition...” E é pela mão do geógrafo norte ameri-
logo de uma disposição que existia (não sei se ainda permanece nalgumas cano que podemos aprender que a pintura tem “tactile values” e que Robert
faculdades), que barrava o curso de Geografia a invisuais. De certo modo, Hughes escreveu a propósito de The Leaping Horse de John Constable “...
esta era uma das respostas... this is the landscape of touch.” (p. 43).
Depois falámos dos cheiros, dos sons e, em última análise, do tacto...
Creio que ainda não tinha sido publicada a obra de Yi-Fu Tuan. Na aula Tuan ensina-nos ainda coisas extraordinárias sobre o tocar “An old European
seguinte o mesmo aluno veio ter comigo a propor que convidássemos um town with cobbled streets and half-timbered houses opening onto a sun-drenched
invisual para participar numa aula sobre o tema das paisagens. Sugeri que plaza is a visual-tactile feast” (p. 44); “The softness of water...” no jardim chi-
o convidássemos antes para uma excursão e indiquei mesmo um percur- nês, que é composto de Yin (soft) e Yang (hard) (p.44). Lembra-nos também
so, curto e a fazer a pé, local rico em cheiros e em sons variados, talvez o que o tacto é o sentido mais seguro, por isso São Tomé tocou Cristo, não se
percurso ribeirinho, de Cacilhas à Quinta da Arealva, na base da arriba da contentando com o “ver para crer” (p. 45).
margem esquerda do gargalo do Tejo, pelo Ginjal, Olho de Boi, Companhia
Nacional de Pesca....com os cheiros do mar, do rio e da terra, de águas já Só depois de ler Tuan me lembrei como é pelo tacto que muitas vezes pro-
salgadas, limpas ou menos limpas, sons de barcos variados, da ondulação, curamos atingir o tempo na paisagem – as pedras, as esculturas, as árvores
das actividades económicas ribeirinhas e, como som de fundo, em crescen- ancestrais, geram em nós o impulso de tocar.
do, à medida que caminhávamos para aquela pérola que nos lembra uma
marinha do Renascimento (a Quinta da Arealva), o bum/vrum/bum/vrum E partindo da ideia de que comer é um modo de tocar (p.46) ou, segundo
dos automóveis sobre a estrutura metálica da Ponte 25 de Abril. Samuel Butler, “Eating is touch carried to the bitter end”, pude finalmente ra-
cionalizar muitos impulsos que temos face à paisagem: a passagem do visual
Essa excursão acabou por não se realizar, mas o aluno entrou em contacto para o comestível – os vegetais, os animais, a água.
com a Associação de Cegos de Portugal, através do seu presidente, um
jovem licenciado em Filosofia, que se prontificou para nos acompanhar
numa visita de estudo que calhou ser a excursão “habitual” aos antigos As paisagens biográficas
portos fluviais do Tejo (Lisboa-Valada-Santarém-Salvaterra de Magos-
-Lisboa). Foi uma jornada inolvidável. O diálogo com o nosso convidado Há ainda as paisagens biográficas, percorrer os caminhos da vida de al-
proporcionou novos aprofundamentos na leitura das paisagens, sobretudo guém que nos deixou memórias, em imagens imaginadas ou em imagens
pelas “paisagens do tacto” – é sobretudo a partir das solas dos sapatos que construídas na paisagem que herdámos no terreno; são paisagens que po-
os invisuais lêem mais continuadamente a paisagem, além do recurso a demos visitar através de dois percursos, complementares. O da imaginação,
outras formas tácteis e, naturalmente, com outros sentidos. Mas o mais auxiliada ou não por documentos (escritos, fotográficos, orais, edificados),
interessante veio na conversa do fim da excursão, em jeito de síntese, ou revisitando com olhar retrospectivo a materialização, possível no agora,
quando o nosso amigo nos chamou a atenção para outras paisagens: as de uma vida.
paisagens do espírito! Também, neste caso, só mais tarde descobri um
livro que teria ajudado, Les Géographies de L’Ésprit, de Marc Crépon Recordo com alegria uma visita de estudo, feita em duplicado, pois a turma
(Crépon, 1996). de Geografia Humana I tinha perto de 200 alunos, pelo que a excursão
teve dois turnos. Visita facultativa, extraprograma, sugerida por um aluno
Pena foi, além disso, não termos ainda a obra de Yi-Fu Tuan, para apren- durante uma aula teórica, quando falávamos de paisagens, representações,
dermos como os que usam sobretudo a visão também recorrem frequente- memórias e, também, da capacidade de síntese que os poetas podem alcan-
mente ao tacto, inclusive através dos olhos (p.43): “Reddisf fluffy surfaces çar.
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Foi uma visita pela paisagem biográfica (e bibliográfica) de Cesário Verde. Que esta população, com um terror de lebre,
Primeiro, o encontro, no jardim que leva o nome do poeta, no mesmo qua- Fugiu da capital como da tempestade.”
drilátero onde o arquitecto Norte Júnior desenhou e construiu o seu atelier, (…)
obra de iniciado, hoje escondida por detrás da vegetação, naquele espaço “Que fruta! E que fresca e temporã,
que poderia ser um pequeno quarteirão do que foi então um bairro moderno. Nas duas boas quintas bem muradas,
Em que o Sol, nos talhões e nas latadas,
“Dez horas da manhã; os transparentes Bate de chapa, logo de manhã!
Matizam uma casa apalaçada;
Pelos jardins estancamse as nascentes, O laranjal de folhas negrejantes,
E fere a vista, com brancuras quentes, (Porque os terrenos são resvaladiços)
A larga rua macadamizada.” Desce em socalcos todos os maciços,
Como uma escadaria de gigantes.”
Dali descemos para a Cidade, para a Baixa, onde Cesário terá sonhado (…)
com poemas por detrás do balcão da loja de ferragens; e lembrámos o outro “Era admirável – neste grau do Sul! –
poeta de paisagens em nostalgia. Entre a rama avistar teu rosto alvo,
Verte escolhendo a uva diagalvo,
“Há quem olhe para uma factura e não sinta isto. Que eu embarcava para Liverpool.”
Com certeza que tu, Cesário Verde, o sentias. (…)
Eu é até às lágrimas que o sinto humanìssimamente. “A mim mesmo, que tenho a pretensão
Venham dizer-me que não há poesia no comércio, nos escritórios! De ter saúde, a mim que adoro a pompa
Ora, ela entra por todos os poros... Neste ar marítimo respiro-a,” Das forças, pode ser que se me rompa
(Fernando Pessoa, Ode Marítima) Uma artéria, e me mine uma lesão.”

Percorrendo as ruas pombalinas, em direcção ao Tejo, chegavanos o cheiro Com o “anúncio” da doença que em breve se declarava, também nós deixá-
da maresia – a permanência da paisagem dos cheiros – e a visão retrospec- vamos as terras que tão bem Garrett tinha descrito e viajávamos até Cane-
tiva das paisagens do espírito. ças, onde Cesário Verde passou os últimos tempos da sua vida, procurando
a cura, nos bons ares e boas águas, como tantos outros lisboetas do seu
“Nas nossas ruas, ao anoitecer, tempo afectados pela tuberculose. A propósito, uma referência ao facto de,
Há tal soturnidade, há tal melancolia, no Diário de Notícias desse tempo, um hotel de Caneças sublinhar no seu
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia anúncio que não aceitava hóspedes doentes... Talvez por isso a busca dos
Despertamme um desejo absurdo de sofrer.” bons ares tenha migrado mais para norte, para Montachique.

Da Praça do Comércio, arrancámos, não de trem, mas de autocarro, pelo A 16 de Junho de 1886, Cesário escreve uma carta a um amigo, datada de
aterro, até Linda-a-Pastora, onde ainda são visitáveis os restos da quinta, Caneças:
em socalcos, dos pais de Cesário Verde. Quinta de lazer, mas também de
rendimento e, além disso, refúgio na natureza, quando Lisboa se tornava “A minha nova pequena casa é tudo o que há de mais rústico e de mais pito-
repulsiva. Entrámos na leitura do NÓS: resco; da janela do meu quarto, estendo o braço, toco a rama dum pinheiro
“Foi quando em dois verões, seguidamente, a Febre balsâmico e bravo. De roda tudo pinhais espessos e rumorejantes. Não fica na
E a Cólera também andaram na cidade, Caneças oficial e consagrada, dos Hintzes e dos hotéis; fica longe, do outro
88   O retorno da paisagem à Geografia – apontamentos místicos território & imagem    89

lado das ribeiras e dos pomares, no sítio a que chamam O Lugar d’Além. Lucy R. Lippard, The Lure of the Local – senses of place in a multicen-
Sabes quem fez esta minha habitação? Foi o próprio dono, mestre carpinteiro tered society (Lippard, 1997) onde, através de uma série de narrativas
e marceneiro, à hora presente fabricando com mais 30 companheiros, numa da América do Norte (ilustradas por excelentes fotografias), se segue
grande oficina do Aterro, uma rica mobília para a princesa de Orléans... um programa “anunciado” numa citação de Michel Foucault, com que
Mas subitamente chegam-me dúvidas, descrenças, terrores do futuro. Curo- inicia a obra: “We are in the epoch of simultaneity; we are in the epoch
me? Sim, talvez. Mas como fico eu? Um cangalho, um canastrão, um gran- of justaposition, the epoch of the near and the far, of the sidebyside, of
de cesto roto, entra-me o vento, entra-me a chuva no corpo escangalhado.” the dispersed.” (in Lippard, 1997, p. 4).
(Serrão, s/d).
Explorando a obra de Lippard, Don Mitchell evidencia os “engodos” da
Segundo a 3ª. edição da Obra Completa de Cesário Verde, organizada, pre- abordagem local da paisagem e seu dinamismo, sem a sua inclusão no con-
faciada e anotada por Joel Serrão, o poeta teria falecido em Caneças, no texto da reestruturação económica global. Concluindo que “Local theory
dia 19 de Julho, com 31 anos de idade. Mas a mesma edição refere, em – the lure of the local – is not enough.” (Mitchell, 2001, p. 278), pois “A
nota, que o Diário de Notícias de 20 de Julho de 1886 comunicava que o multicentered world, as Lippard makes clear, must be one that is not lo-
falecimento se verificara “numa casa do Lumiar”. Assim, a nossa excursão calist, but fully reciprocal. So must our theories of landscape.” (Mitchell,
terminaria no Paço do Lumiar, junto a uma casa que ostenta uma lápide 1997, p. 279).
alusiva à última morada do Poeta.
As escalas, do espaço e do tempo, são fundamentais para entender e sentir
(entender o sentido; sentir o entendimento) a paisagem, como tão bem po-
A Escala demos encontrar, mais uma vez, num poeta, neste caso, Carlos de Oliveira
e a sua Micropaisagem:
A questão da escala é central nas abordagens geográficas, sendo que o âm-
bito da disciplina é muito mais limitado do que à primeira vista poderá “O céu calcário
parecer – do local ao global! Ou da rua ao planeta! Ainda assim é muito duma colina oca,
pouco, como assinala Peter Haggett, na sua escala, com uma magnitude donde morosas gotas
que varia entre 10-20 e 1030 cm, que vai da menor à maior distância mensu- de água ou pedra
ráveis, o campo da Geografia aparece limitado pelos tamanhos de um ser hão-de cair
humano e da Terra (Haggett, 2001, p. 21). daqui a alguns milénios
(…)
Esta continuidade e articulação de escalas é também indispensável nos es-
tudos da paisagem. Embora se verifique a persistência no enfoque da me- “Imaginar
soescala, com alguma tendência para se procurar mais o local, não pode ser o som do orvalho,
esquecido que as manifestações nesse âmbito reflectem sempre fenómenos a lenta contracção
de outra amplitude. das pétalas,
o peso da água
“Our streets! Our world!”, o “grito” de Seattle, nas manifestações contra a tal distância,
a globalização, são as palavras com que Don Mitchell inicia um artigo registar
recente sobre o “perigo” de isolar o local de contextos mais alargados e, nessa memória
sobretudo, do global (Mitchell, 2001). Como o autor refere, o título do (…)
seu artigo, “the lure of the local...”, é inspirado no livro espantoso de
90   O retorno da paisagem à Geografia – apontamentos místicos território & imagem    91

“Localizar fia humana alle scienze del territorio, Milão, Angeli, p.47.
na frágil espessura GASPAR, J. (1997a) “Códigos para uma Geografia” in Pereira, A.S., Man-
do tempo, to de Ceres, Idanha-a-Nova, Centro Cultural Raiano, pp. 512.
que a linguagem HAGGETT, P. (2001) Geography – a Global Synthesis, London, Pren-
pôs tice-Hall.
em vibração HERCULANO, A. (sem data) Cenas de um ano da minha vida e Apon-
(…)” tamentos de viagem, coordenação e prefácio de Vitorino Nemésio, Lis-
boa, Livraria Bertrand.
(Carlos de Oliveira, Trabalho Prático, segundo volume, pp. 31-34, Sá da Cos- KRYGIER, J.B. (1998) “Place Taste and the Taste of Place: Centralia, Penn-
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território & imagem    93

10. SENTIR O Aqui, hoje, agora, sei pela memória, que estamos sobre água, muita água
– não porque é previsível (estrutura monoclinal, Miocénico, camadas po-
rosas de areias alternando com calcários conquíferos e argilas), mas porque

LUGAR OU AS tenho na minha memória os poços, as noras, os tanques e os pequenos


aquedutos, tudo alimentando a herança islâmica (Saloio/Sarahui), das hor-
tas, a água correndo até ao último regueiro para irrigar canteiros e alfobres.
PAISAGENS DA A água que, como escreveu Miguel de Unamuno também é o “espelho da
paisagem”.

MEMÓRIA3 * Daqui, por uma janela de Pardal Monteiro, que já não há, via até há poucos
anos restos de oliveiras/zambujeiros, dos olivais da minha infância.

10. SENTIR O LUGAR OU AS PAISAGENS DA MEMÓRIA3 Desço através das hortas da Alameda da Universidade, em pleno anacro-
(2001) nismo, em direcção ao que resta da antiga Estrada de Malpique; à esquer-
da, as memórias industriais do sítio, a Pensal/Nestlé e a Nally; ao fundo,
em localização imprecisa, o grande Cartaz, em que recordo siglas e nomes:
As paisagens existem na memória. CNEU (Comissão dos Novos Edifícios Universitários, Pardal Monteiro,
Diamantino Tojal, Amadeu Gaudêncio...); à direita o vulto do Dr. João

C
omo estamos entre geógrafos, basta citar a abordagem de Vidal de Soares.
La Blache à noção de paisagem: “Quando procuramos evocar uma
paisagem escondida nas nossas lembranças, não é a imagem de uma Por esta altura do ano (o tempo na paisagem), há 50 anos (outro tempo
planta em particular, uma palmeira, uma oliveira, que se desenha na nossa me- na paisagem), estavam as cegonhas tratando as crias no ninho e cruzavam
mória; é o conjunto de vegetais diversos que revestem o solo, sublinhando as o céu do Jardim do Campo Grande à procura de alimento para os filhos.
ondulações e os contornos, imprimindo-lhe pela sua silhueta, as suas cores, o Rente aos telhados, a azáfama das andorinhas, acabadinhas de chegar, na
seu espaçamento ou as suas massas, um carácter comum de individualidade”. A construção/reconstrução dos ninhos. Os sons, os guinchos das andorinhas,
memória funciona assim, como um modelador, num processo de selecção e com o silvo da sineta do eléctrico em fundo: iam a nove, do Campo Grande
“alisamento” da informação. ao Campo Pequeno, atravessando Entrecampos.

Mais recentemente, e dos lados da Ecologia e Antropologia, Simon Schama Lembro-me como variam as paisagens das migrações, no tempo.... Nos
escreveu sobre Paisagem e Memória, as paisagens lidas através da memó- tempos em que vinham e iam as cegonhas e as andorinhas, também vinham
ria. Nesta obra o autor estrutura essa memória, essas paisagens, em três e iam os gaibéus e gaibéuas, para as mondas e ceifas, e os caramelos do
partes: a árvore, a água, a rocha. Baixo Mondego para as hortas, ainda os ratinhos... era o final das paisagens
de Cesário Verde, já em tons de neo-realismo. Depois vieram tomarenses e
serranos, trolhas e serventes, a afirmarem, alguns, a sua identidade original:
3  Texto apresentado no Colóquio sobre Paisagens organizado pelo Centro de Estudos Geográficos, e erguera-se já então, do lado de lá do Campo Grande, uma boa parte de
na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Trata-se de “uma viagem” a partir da arquitectura Alvalade, e a Avenida de Roma estava em estaleiro...
em que decorre o Colóquio, com regresso ao mesmo local, a sequência das imagens mostra o per-
curso dessa viagem. Foram-se as cegonhas, daqui, definitivamente, foram-se as gentes dos cam-
*in Jornal Arquitetos nº. 206, Lisboa, 2002, pp. 36-39. pos, vêm outras gentes.
94   Sentir o Lugar, ou as Paisagens da Memória território & imagem    95

Estação do Campo Grande: interface de transportes e gentes, de mão-de- para os eléctricos (o estribo era bastante alto e quando as saias começaram
-obra. Visito na memória a antiga feira dos homens, uma praça de jor- a ser travadas...), o Profumo di Donna que ainda paira em Alvalade, o Grande.
na, dominical... resta a continuação do Restaurante do Campo Grande, a
Churrasqueira, outros clientes, outra paisagem olfactiva. Mas agora voltou  
a feira dos homens, a praça de jorna, a bolsa de trabalho em contínuo, para
alimentar as obras do novo estádio… voltaram também as tascas ambulan- Volto ao lugar e ao tempo, a cavalo, por estradas e azinhagas, a música ca-
tes, as roullotes, já em permanência. denciada das ferraduras na calçada de basalto, entre muros. Regresso aqui,
agora.
Rapidamente, passam as memórias dos espaços de desporto, a continuida-
de, a reciclagem: do jogo da pela, ao Campo da CUF, ao do Campo Grande,
em madeira, ao do novo estádio José de Alvalade e agora Estádio do Euro...
cem anos (ou mais? ou quase?) de permanência, uma vocação? A viscosi-
dade dos lugares, das suas funções, que se tornam em “espírito”, o espírito
do lugar (o ‘genius loci’ dos antigos).

Deixo as aventuras das azinhagas que seguiam para Telheiras, ou da Ala-


meda das Linhas de Torres, para fora de portas, e volto, pelo Jardim, onde
permanecem as palmeiras longilíneas, memórias de outros nómadas, os ci-
ganos que sempre povoaram estes territórios, noutro espaço, noutros com-
primentos de onda: dos feirantes de burros e cavalos, aos actuais romenos
(famílias inteiras que cercam os automóveis). As palmeiras, alinhadas, mas
sem os sons da memória – a paisagem sonora foi a que mais se alterou. Ela
permitiria, aqui, fazer meio século de história da aviação.

E o fim dos eléctricos, que se combinavam com a passarada, o bater das


bolas de ténis, o rolar dos patins, o grasnar dos gansos e cisnes e os barcos a
chapinhar no lago do Campo Grande.

E a música, a jazz band do Restaurante Alvalade... Porquê este Caleidoscópio


sem cores, sem música, triste, sem mistério, nem as sugestões eróticas: a
música, os vestidos, o baton nos cigarros Vic e Chesterfield. As memórias a
preto e branco, com os móveis coloridos do estilo americano... os risos na
esplanada com Sol. E a maître, impecável no seu smoking, branco ou negro,
consoante a estação, mas ele sempre rosado, mesmo vermelho da vida –
saudades do Signore Giulio Alfieri (parafraseando J. R. Miguéis).

E o cheiro... lá dentro de uma cozinha internacional, cá fora das flores, ao


longo do ano, e de outros odores do Campo Grande. As senhoras perfuma-
das descendo dos Ford, dos Citroen, dos Peugeot, dos Riley... ou subindo
território & imagem    97

11. COIMBRA E A a Faro, do Porto a Castelo Branco, vejo como nunca compreendi este país
e a força de Coimbra, que foi por séculos a Universidade de Portugal, a
que o país ficou a dever as suas elites, ao longo de mais de meio milénio de

PROCURA DA filosofia.

2 – Coimbra, uma capital nacional da Cultura. Porque foi pre-


PAISAGEM* ciso lembrá-lo, instituí-lo?

Uma tal ideia não se colocaria há 50 ou há 100 anos. Coimbra era, no ima-
ginário dos portugueses, naturalmente, a capital, uma capital nacional da
cultura (e do conhecimento e da ciência).

Assim como ninguém se lembraria de nomear, por um ano, Paris, Londres


ou Berlim como capitais europeias da cultura, porque o são naturalmente
A Paulo Quintela, Coimbra com Q grande e em permanência, também pareceria estranho nomear Lisboa, Porto ou
Coimbra capitais nacionais da cultura, já o seriam em permanência.

Só a desclassificação de Coimbra para o nível regional pode justificar a

1
– Há a força das tradições que atualizam os presentes e proje- validade desta proposta.
tam os futuros. Mas há também o peso da tradição, que pode ser um
fardo esmagador para as gentes, para as cidades. Ora, ao longo de cinco séculos, Coimbra foi a sede da universidade por-
tuguesa, afirmando por essa via uma capitalidade nacional indiscutível,
Numa tarde de início do longínquo Verão de 1968, com colegas de outra prolongando-se mesmo para lá das fronteiras, para os espaços da lusofonia,
Universidade também com História, Lund, Suécia, percorremos a cidade e, com destaque para o Brasil do século XIX.
claro, a Universidade. Nos seus claustros, no Páteo..., estudantes de Direito,
envergando suas tristes batinas, caminhavam pausadamente, empinando Nesse sentido se prolongou, até à segunda metade do século XX, a excecio-
as sebentas, para trás e para diante. Olhámos, eram estudantes da tradição. nalidade de Coimbra, cidade sem região, cidade de todos os portugueses.
Creio que não houve comentários. Para mim a situação era algo embara- Por isso, o seu símbolo com mais poder de transversalidade social e cultural,
çosa. Passei à frente. Só à noite, ao jantar, na Figueira, me apercebi que os a equipa de futebol Académica de Coimbra, era a equipa de todos os portu-
meus colegas tinham visto nos estudantes, reais, figurantes de uma repre- gueses, não competindo com os grandes ou os pequenos, estava à parte – e
sentação histórica, como num dos muitos museus da história cultural das todos sofríamos com os seus desaires, e todos gostávamos dos seus sucessos,
cidades escandinavas. Tive dificuldade em convencê-los que eram estudan- mesmo quando estes se faziam à custa de um pior desempenho do clube das
tes em pleno estudo de preparação para os exames: empinando a sebenta. nossas preferências. Por isso, não havia crise quando um jogador do Spor-
ting ou do Benfica rumava para a Académica, onde podia não auferir um
Quando hoje vejo as “praxes” que apoquentam qualquer pequena cidade salário tão bom, mas tinha mais probabilidades de tirar um curso.
universitária ou politécnica, de Angra do Heroísmo a Bragança, de Lisboa
A Académica fazia parte do património Cultural da Nação, tinha adeptos e
simpatizantes em todo o mundo dos portugueses, do Minho a Macau.
*in Coimbra, Centro de Artes Visuais – Encontros de Fotografia, Coimbra, 2003, pp. 22 60.
98   Coimbra e a procura da paisagem território & imagem    99

Hoje a Académica faz parte, como os outros clubes de futebol, de um pe- Há, pois, uma frequente confusão entre o antigo e o arcaico, entre a he-
queno mundo de pequenas paixões, querelas e enredos, e a maioria dos rança cultural e o exótico (quando não o pitoresco), o estranho, que só um
portugueses, sobretudo os mais jovens, já não reconhece como um clube conhecimento mais aprofundado permite integrar no processo patrimonial.
diferente.
5 – Coimbra foi para sucessivas gerações de estudantes a
3 – Os jovens, os estudantes que procuram aqui a Univer- Mãe e a Amada, impossível, com fim anunciado.
sidade, continuam a representar o ponto forte de uma cidade que busca
uma nova identidade, na medida em que a memória já não se ajusta aos Coimbra, solo mátrio, como lhe poderia ter chamado o Padre António Viei-
novos desafios. ra, sem dúvida a mais imediata Mátria, numa leitura sugerida por Natália
Correia.
Os jovens vêm de todo o país e também de além-fronteiras, mas a Uni-
versidade já não é a Universidade de Portugal e a maioria do recrutamen- Porque Coimbra vem até aos nossos dias como referência identitária para
to faz-se numa base regional, sobretudo para os candidatos com melhores gerações que por lá passaram. Muitos cantaram os melhores anos das suas
classificações. vidas ali passados, outros nem tanto, mas a bruma do tempo faz esquecer os
piores momentos e o mito impõe o alinhamento.
Mas os rostos de Coimbra ainda são os de jovens estudantes que continuam
A Alma Mater, transposta para a canção-fado de Coimbra, herdeira de
a povoar as ruas e os cafés, a marcar o espaço público, que é também uma
tantas coisas, mas decerto um permanente hino à mátria, longe no tempo e
marca distintiva da cidade, não obstante o seu declínio relativo, no que a
mesmo no espaço, mas sempre mais perto do coração.
cidade acompanha o declínio da urbanidade nacional.
No melhor e talvez também no menos bom, o fado de Coimbra é a ma-
Um certo número desses jovens tem vindo a promover a actualização, a terialização imaterial de um lugar mítico, que cada um vai construindo e
inserção no Mundo – das terras e dos saberes. Apesar de frequentemente ajudando os outros a construir.
ofuscados pelo peso dos rituais da Tradição, os novos rostos da Universida-
de projectam-se em afirmações no meio das ciências, das tecnologias, das 6 – Olhando algumas destas imagens, ocorreu-me esta
Humanidades, apesar da ignorância do País e da viscosidade das “institui- ideia: e Coimbra poderia ter sido uma dessas cidades à es-
ções”. cala dos homens, com um quotidiano feito das matérias simples, de
respostas sugeridas, onde também cada um facilmente encontraria o seu
4 – Para uma parte do Mundo que nos visita, Portugal lugar.
atrai pelo exótico – um dos raros recantos exóticos no espaço indíge-
na ocidental ou, hoje, da União Europeia. E neste caso Coimbra, enquanto Nas ruas pouco povoadas da Alta, nos encontros com gente simples dos
cidade Universitária, continua a representar o País. bairros serenos, no silêncio interrompido dos passeios modernos. E, nas ma-
nhãs de sol, um passeio exaltante nas alamedas do Jardim Botânico.
O que procuram alguns destes fotógrafos na “cidade dos doutores”? Na ca-
pital cultural de Portugal? Na que é uma das mais antigas universidades do As esplanadas da Praça da República, os cafés, ainda com cheiro ao moder-
Mundo? Antes de mais, cada um segundo as suas preocupações, procurarão nismo, onde uma mesinha nos espera para o animado tertuliar do final do
o mesmo do que em qualquer outra parte do Mundo: respostas. Mas o que dia, enquanto não chegam de Lisboa os jornais da tarde. Um dia por outro,
se destaca, o que fica das respostas, remete para as heranças não actualiza- uma sortida mais animada, pelo vinho, pela comida, pelas companhias. E
das, para o património vertido em arcaísmo. por ali, junto ao rio, param e arrancam os comboios, que durante mais de
um século marcaram o ritmo e a centralidade de Coimbra.
100   Coimbra e a procura da paisagem território & imagem    101

Não foi só a banalização das universidades, também o abrandamento do 9 – O Sagrado e o Profano são uma omnipresença na foto-
transporte ferroviário contribuiu para este esmorecimento da cidade dos dou- grafia, mas também nos olhares sobre a cidade e, com mais razões, nos
tores, enquanto já os futricas e as tricanas tinham ido por aí, fazer pela vida. relatos de experiências vivenciais – na literatura, no cinema, na música, na
Coimbra A, Coimbra B, Estação Nova, Estação Velha fotografia..

7 – Coimbra tinha tudo para ter sido uma cidade maior. O Em Coimbra a abordagem do Sagrado e do Profano é quase um pleonasmo
sítio, a infraestrutura, a posição central, o capital humano e a importância, e uma redundância. Além de ter na sua génese, como outras cidades, razão
o peso político. de ser e de vida, esse confronto sinergético que converge na sua arquite-
tura, nas acções performativas que os seus habitantes (estantes ou transi-
E se mais não fora, um Rio, bom e mau, como todos os rios, mas um rio em tantes) levam a cabo nos palácios da cidade, Coimbra tem uma memória
plenitude: marcando a paisagem, animando o movimento das estações do mítica, produzida e reproduzida a partir da Universidade, irradiada pelo
ano, das navegações à fecundidade piscícola, acima de tudo estimulando os tempo e pelo espaço.
pensamentos e os espíritos.
Fonte de profanações e de vocações profanas, a Universidade faz parte do
Na esfera natural, o Mondego foi o maior dom que assistiu a Coimbra e domínio do sacralizado, pela génese, pela necessidade da sua imposição
seria tão bom hoje podermos parafrasear Heródoto, mas não o podemos através dos séculos.
fazer: Coimbra não é um dom do Mondego. Faltou o diálogo mais pragmá-
tico, sobrou o namoro. Ainda hoje, ora é tratado como obstáculo, ora como Coimbra suscita, assim, a um tempo, a reverência e o apelo à libertinagem,
instrumento de “marketing urbano” (?). E o mar ali tão perto, mas sempre chama o espírito para a meditação e o corpo para a acção. Nesta cidade a
esquecido. Universidade sente-se e valoriza-se a referência da irreverência. O princí-
pio está lá.
Estrada da Beira, Estrada Real, comboios, automóveis... e o Mondego a
correr para o Mar, como quem não quer a coisa. 10 – A cidade e o campo! Coimbra também tem o seu campo, o Campo
do Mondego. Um campo com água, árvores e luz, luz que tem atraído os
8 – Humberto Rivas vê a Coimbra monumental – no seu Patrimó- fotógrafos e que merecia também o cinema. Um campo cheio de movimen-
nio edificado, mas sobretudo pelas poses, Coimbra é uma grande Senhora, tos, e águas, e aves, e árvores, e automóveis, e cavalos, e espíritos.
sejam de quem forem os enfeites. É a Universidade, nas suas paredes, nas
suas esculturas extemporâneas, mas também na projeção de saberes que O campo tem sido mal-amado pela cidade, que não gosta de ser invadida.
se impõem. E os elementos? O céu, a terra e a água – um pôr do sol em Por isso há tensões, há explorações e não se tem estabelecida a possível
Coimbra celebra uma possível grandeza que só não foi por um acaso que parceria. Talvez os poetas, mas esses passam, percorrem apenas com o olhar
não se explica. e as palavras.

Porque não foi Coimbra o natural repositório das grandezas que se pode- Por isso tudo, o Campo está cada vez mais esquecido, da praxis e do imagi-
riam aí acumular, pelo menos do século XIX ao século XX? Mas mesmo nário. Coimbra, um ponto de grandezas diferentes consoante as redes em
agora, no final do século XX, como não aconteceu nada de especial, onde que se integra, mas uma cidade que se afasta do seu território natural.
tudo era mais óbvio?
11 - Coimbra e os seus cheiros, um itinerário possível, para ir desco-
As paredes sumptuosas na sua rugosidade; a colina tapada, marcada pela brindo, acompanhado por um guia para os olhares.
Torre da Universidade, que também poderia ter sido da Universalidade.
102   Coimbra e a procura da paisagem território & imagem    103

Chegar a Coimbra B, o cheiro da bruma que caminha Mondego acima, por E de repente num voltar de esquina, depois das emanações da nova pas-
entre os choupos, as árvores do Choupal – o silêncio agridoce entra pelas telaria, com o cheiro das árvores serenas das alamedas, um choque, uma
nossas narinas. Depois, olhar o bocado de cidade que ali foi escavada, na mudança: finalmente, o cheiro da Universidade.
encosta, onde todos se encolhem para fazer caminho para a urbe.
Inebriados com a imponência das arquiteturas, só recuperamos a tranquili-
Ziguezagues, solavancos, travagens, luzes, néones, andares, prédios, volumes, dade na paz bendita do Jardim Botânico, onde recomeçaria outra expedição
paramos e fugimos para o labirinto da Baixinha, Rua Direita, ruelas direiti- pelas paisagens suculentas desta Coimbra, a que só falta não sei bem o quê.
nhas, as azáfamas traduzidas em sons: os tacões na calçada lembram os tem-
pos dos tamancos de madeira que elas, e ainda alguns deles (os que vinham 12 – A cidade e as suas sombras. Sempre me fascinaram as sombras
do Campo – os camponeses), usavam em dias de feira, em dias de 23. de Coimbra. Primeiro tinha muito a ver com os candeeiros da iluminação
pública nas ruas e ruelas da Alta, remetendo para a poesia de Coimbra, para
Peixe frito, sardinhas em seu polme generoso, têmpora da melhor, em sítios Antero, para António Nobre. A Torre de Anto é em si mesma uma grande
escondidos, são também memórias tácteis que entroncam nas memórias de sombra maciça que nos faz parar, quando se apagam os sons das passadas
In Illo Tempore, e também nas do Mata Carochas. na calçada.

Subir depois à cidade burguesa, percurso de perfumes de perfumaria e de Depois, verifiquei que por todo o lado, até aos Olivais, ao Tovim, ao Ca-
café de cafés. Também agora pela primeira vez despertamos aqui e ali (mui- lhabé, ou mesmo fora de portas, as sombras eram uma constante, que na
to ali e pouco aqui) pelo “Profumo di Donna” que tradicionalmente falta Adémia ou na Pedrulha até parecia emanar da toponímia. Será o carácter
em Coimbra. noturno da cidade? O negro, o cinza e o branco são as cores mentais desta
cidade, que pelo sítio, pelo clima, pelo rio, pelas águas, poderia ter sido uma
Porque será que Coimbra é uma cidade sem erotismo, para não dizer anti cidade soalheira e colorida. Mas não é. Pergunte-se a qualquer pessoa qual
erótica? é a cor de Coimbra, assim! E verão a resposta.

Sofia, a Sofia, que nome fabuloso, para uma rua fria, tão fria que faz esque- Mesmo agora que aparece mais a fotografia a cores, olhe-se bem e aí estão
cer o nome... vade retro e voltamos à Santa Cruz, ao aconchego herético as sombras, a cor com medo, as cores apagadas, como que um por detrás.
(mas nada erótico) ...
Em noites de chuva miúda, quando as mini-gotas se confundem com o
Volvemos para cima, subir a Avenida, mas antes passar pelo mercado das nevoeiro, é então que Coimbra se aproxima da Metropolis moderna, na mul-
abóboras, carnes e peixes, hortaliças, repolhos, diospiros, tomates, bananas titude das suas sombras – visuais, sonoras, olfativas, tácteis. Sentir a maciez
e flores. Algazarra, mas faltam as transfigurações e as “pernas... das peixei- da névoa, na expectativa de alguém que se aproxima anunciado pela som-
ras.” Cesário Verde – porque não teve Coimbra, entre tantos poetas, um bra dos passos na noite. Esta é a força da minha nostalgia de uma Coimbra-
Cesário? Decerto foi a falta de “maresia”... -cidade, Coimbra-A, Coimbra AAA, Coimbra em esplendor.

A Avenida, finalmente o encontro das urbanidades, da Baixa e da Alta, a 13 – A outra margem começa agora a confirmar a cidade,
Universidade com a medicina e os miasmas, já longínquos do arrabalde. [o mas é uma cidade fragmentária, nos tempos e nos espaços. Santas Claras, a
Ribad da Baixa, que já foi Vila Nova...]. Velha e a Nova. Esta a lembrar, não sei porquê, o Castelo de Kafka, encimando
a encosta da Malastrana; talvez porque aquela mole imponente que conheci
Os mistérios da Praça da República e das místicas “repúblicas”, cujo cheiro desde muito criança nas mãos dos soldados, na minha imaginação era uma
não consigo recuperar, evanesceram com as correntes de ar da Alta. fortaleza em absoluto, que fora dos espíritos e agora era dos poderes da terra.
104   Coimbra e a procura da paisagem território & imagem    105

O Portugal dos Pequenitos, que me divertiu tanto em pequenito, mas que refrigérios de que tanto careciam – Santa Clara (pastéis), Tentugal (folha-
só me fascinou, como a tantos outros, já muito no serôdio – era o Parque dinhos).
Temático à nossa escala, sem envergonhar, naturalmente. Por definição es-
tava fora da cidade, entrava mesmo numa hierarquia autónoma, num ou- Visconde da Luz, com os seus bulícios, Estação Nova com os seus silvos, lá
tro mapa de Portugal, com uma clara leitura topológica – Fátima, Nazaré, estou eu na plataforma nº 1 acenando a mão a quem parte, que eu fico para
Bom-Jesus, Batalha, Cabo da Roca, Santos de Santo António. prosseguir na procura.

Encostas, vales, infernos, canas, restaurantes e as feiras, a dos 23, afastan- 15 – A Arte, os Homens, mudaram de século na busca da
do-se na memória, mas também deixando a cidade, que assim corta mais paisagem, em múltiplas leituras, noutras tantas invenções. Quando, por
uma ligação ao campo. abordagens diversas se chega à conclusão de que a paisagem faz parte do
património, forçoso é aproximar a invenção da paisagem.
As Outras Margens têm sempre um atractivo, o de olhar esta margem. Por
isso em tempos se atravessava a ponte para olhar Coimbra, reconstituindo A multidimensionalidade das paisagens não cessa de ser afirmada, amplia-
gravuras, coloridas, ou a preto e branco, Lusa-Atenas das iconografias. da, através das abordagens várias, que vão dos técnicos à poética. Esta mos-
tra é uma grande ilustração desta marca do espírito, do novo tempo, tendo
Mais além, no recato, da História e dos que podem, lá estava a Quinta da Coimbra, a um tempo, como objecto-objectivo e como objecto-subjectivo.
das Lágrimas. Hoje democraticamente aberta: dos que podem aos que têm. Há assim uma aproximação, simultânea, do Património e do Matrimónio,
Daí se pode também olhar Coimbra, do outro lado, além das pontes, e so- nesta vida de Pátria, neste território Mátrio.
bretudo no novo recato do conforto, tão propício à deambulação, amável
para todo o flâneur de memórias, de espíritos, de imagens. Nestas viagens através das heranças, produz-se património, a acumular,
a verter, em nova herança, identitária. É importante, é necessária, não se
14 – Em Coimbra procuramos, procurei, procurámos, continuarão a pode parar ao lado de uma reflexão a partir destas paisagens, patrimoniais
procurar a mulher, a que se quer mostrar a cidade escondida, misteriosa, a e matrimoniais.
que eu tenho o acesso pelos códigos que domino.
Pensar Coimbra no século XXI já não pode ser um olhar de saudades, ainda
Ela é magra, esguia, viajante das cidades – cidades, seca, com os músculos que de futuros se tratem. Está claro que o núcleo reside na cultura, nas cul-
marcados, nas maçãs do rosto e nas pernas (de tanto caminhar em cidades turas, na necessidade da sua produção, das trocas e dos encontros.
difíceis). Julgo encontrá-la num Domingo de calor. Verão, cidade quase de-
serta, como que por minha conta. 16 – Coimbra, cidade saudável, também ambiciona ser um dia capital
da saúde ou das “indústrias da saúde”, assim, no sentido das indústrias da cul-
Aproximamo-nos. Começamos pelo Rio, é ao Mondego onde a levo pri- tura.
meiro. Coimbra será mesmo uma lição? A Magia da subida que se mostra
à nossa frente, vencer as Couraças, atacar os Quebra Costas. Que calores! Coimbra já tem tudo o que faz dela uma frente no ataque à doença, cidade
Os Penedos, os aquedutos, as Cruzes, voltas e voltas, até reencontrar a de doutores, médicos, todos preocupados em promover a saúde, dos corpos
cidade-redonda, retratada nas Praças, da República à P. Velha é um salto, e dos espíritos.
mas longo.
Dos campos e dos montes vizinhos, das paragens longínquas onde chega a
Aconchegamo-nos na sombra e no embalar das sombras. Tentações abafa- fama dos mestres de à beira Mondego, aqui convergem muitas preocupa-
das nas doçuras celestiais dos espíritos dos religiosos que nos deixaram os ções, na busca do alívio e do bem-estar, se não mesmo da salvação na Terra.
106   Coimbra e a procura da paisagem território & imagem    107

A cidade, reconhecida como grande palco dos mestres do espírito, tem portuguesa. Sem complexos, numa visão prospetiva da História: dar um
talvez esquecido a homenagem aos mestres do corpo, cujos contributos, futuro à História, construir a desejada História do Futuro.
materiais e imateriais, têm sido decisivos para a saúde de Coimbra. Embora
por vezes se pense que esta também é uma cidade doente, a precisar de um Sem esquecer os que estão embebidos na sua própria identidade – os mu-
rigoroso diagnóstico e de tratamentos adequados, em que a incluem algu- çulmanos, os moçárabes, os judeus, os Brasis, as Áfricas, e estes novos/
mas operações cirúrgicas e vivificar o metabolismo. nossos irmãos, agora nómadas transeuropeus, à procura das dimensões ade-
quadas no novo espaço em construção.
17 – Coimbra, cidade de exames, os mais diversos, de análises, de
estudos e de laboratórios. Uma tradição renovada, transmitida de geração As fotografias de António Brásio rementem-nos para um imaginário polié-
em geração sem grande segredo. drico, de vidas nómadas, em transumância, com escalas. Gentes da estrada
(Fellini) e do Rio (Kusturica).
Por isso as pesquisas, tanto as orientadas como as deambulantes, no presen-
te ou no histórico, encontram-se sempre com essa tradição, de técnicos e E de novo o Mondego, agora vertido em Danúbio, os violinos a substituir
cientistas, de artesãos do conhecimento. as guitarras. A nostalgia romana, de Brahms e Dvorjak, a fundir-se com a
nostalgia do fado local. No fundo, retomar percursos que o tempo interrom-
Coimbra acolheu (e também expeliu) muitos sábios, resultado da dupla peu em distintos momentos.
face da mesma verdade materna. Tantos! E ainda todos aqueles que nunca
foram descobertos, que passaram silenciosamente e, devagarinho, assenta-
ram as pedras no edifício social do conhecimento.

Talvez ingenuamente também algumas destas paisagens-imagens permitem


decifrar e homenagear esses filhos da casa, os queridos e os abandonados.

Alguns já estarão em trânsito, na procura do próximo elo, quando não tam-


bém na ânsia de encontrar a outra cidade-mãe, a verdadeira metro-polis.

18 – Coimbra, cidade multicultural, da sua refundação moçárabe


à longa vida dos contactos de civilização que a Universidade tem propor-
cionado, poderá (poderia?) nos próximos anos desempenhar um papel di-
dáctico para Portugal e para a Europa.

As referências, as âncoras e pontos de partida são vários, como por exemplo


o convívio interclassista e multicultural que a Académica enquanto clube
de futebol proporcionou no passado – quantos jogadores desfilam na nossa
memória, oriundos de quatro continentes e que representaram nas suas
histórias de vida desportiva e profissional, exemplos para o país...

Coimbra, uma das capitais da lusofonia – assumidamente, com força, com


projecto. Mas também Coimbra, capital do multiculturalismo, de matriz
território & imagem    109

12. TRADIÇÃO, Hoje a modernidade estaria no ciberespaço, como o sugere William J. Mi-
tchell, estabelecendo a ponte para Charles Baudelaire: “My name is wjm@
mit.edu (though I have many aliases), and I am an electronic flâneur. I

MODERNIDADE E hang out on the network”, (Mitchell, 1995, 6th edition, 2000, p.7)

Diz-nos, a propósito Jacques Le Goff “A modernidade é o resultado ideoló-


FRONTEIRA* gico do modernismo. Mas – ideologia do inacabado, da dúvida e da crítica
– a modernidade é também impulso para a criação, ruptura declarada com
todas as ideologias e teorias da imitação, cuja base é a referência ao antigo

e a tendência para o academismo” (Le Goff, 1984, p. 385).

Para Raymond Aron o ideal da modernidade é “a ambição prometaica, a


ambição retomando a fórmula cartesiana, de ser mestre e possuidor da cul-
tura, graças à ciência e à técnica” (p. 287). “A modernidade definiu-se pelo

T
seu carácter de massa: é uma cultura da vida quotidiana e uma cultura de
radição, modernidade e fronteira são termos a que correspondem massas”, diz-nos Le Goff (p. 388) na esteira de Edgar Morin (1975).
conceitos e valores muito diversos, no tempo e no espaço.
Consoante o conceito a que se refere cada um, assim também a Na América e em particular nos Estados Unidos da América do Norte, a
valorização que se lhes pode atribuir, numa dada escala imaginária, de 0 a fronteira é uma palavra com conotações muito positivas e, por isso, larga-
100. Imaginemos um triângulo equilátero em que cada lado corresponde mente utilizada na linguagem promocional, no marketing.
a um destes conceitos: a cada ponto do interior do triângulo, equivale um
valor de 100%, definido pelas 3 variáveis: o clássico diagrama triangular. A frontier integrou mesmo a tradição e a cultura. Há um espírito de frontei-
Teríamos assim que uma situação de equilíbrio total (o que não significa ne- ra na cultura americana, que se traduz na abertura e na vontade de avan-
cessariamente a desejável, esta depende das circunstâncias de cada tempo e çar, de ir mais longe. Mas ao mesmo tempo, também significa o desejo de
cada espaço) daria 33% a cada domínio. Assim, Tradição, embora etimolo- estabelecimento, de consolidar raízes.
gicamente tenha um sentido dinâmico (transmissão: receber e legar) é mais
assumida como um conjunto de memórias, configurando uma tendência O conceito já está consignado numa das casas maiores da cultura norte
para o conservadorismo, para a manutenção de técnicas, de saberes, de americana, a Disneylândia, através de uma “Região”, a Frontierland; tem
valores. A modernidade equivaleria à actualização, ao estar no espírito do também parques temáticos específicos, como a Frontier City em Oklahoma,
tempo, à atenção à informação e à comunicação; a(s) fronteira(s) signifi- mas talvez a iniciativa, com o seu vasto conjunto de acções, que melhor
cariam contacto, abertura, potencial interactivo, mudança. mostra a integração cultural seja o Museum of American Frontier Culture.

Foi Baudelaire, no artigo “Le peintre de la vie moderne”, (1863) que lançou Claro que podemos olhar as três palavras com sentidos quase opostos aos que
o termo modernidade. Mas a grande difusão da palavra e do conceito deu-se aqui assumimos. Alguns lugares têm como tradição a capacidade para mudar,
depois da 2ª Grande Guerra e teve como propulsores, entre outros, Roland para inovar; um recente CD da música popular brasileira chama-se mesmo
Barthes e Henri Lefèbvre. Segundo este filósofo, Baudelaire orientou a mo- A Modernidade da Tradição (Marcos Sacramento e Maurício Carvalho).
dernidade no sentido da “flor do quotidiano”.
Por referir o Brasil, alguns autores vêem negativamente o “modelo brasileiro
de modernidade”, como o meu saudoso colega e amigo Milton Santos, que
*in Raia sem Fronteiras, C. M. Castelo Branco, 2003, 5 pp.
relaciona “modernização com o agravamento da desigualdade”. Propõe-nos
110   Tradição, Modernidade, Fronteiras território & imagem    111

para o Brasil um caminho que de certo modo também aproxima tradição e teiras, pouca tradição e tocada pela modernidade, teríamos a frontierland
modernidade: “O que seria uma modernidade à brasileira e como podere- (a turbulência criadora, mas sem modernidade que supõe regulação, o que
mos alcançá-la? Cumpriria, em primeiro lugar, não enxergar a modernidade aqui não se verifica).
como dogma, uma obrigação, um credo. Em duas palavras, isso implicaria
não seguir o conselho do poeta Rimbaud para quem a modernidade era algo Próximo ao vértice superior estamos numa situação de conservadorismo
a tomar a qualquer preço. Ao contrário, o que se postula é a predicação de e de formação de arcaísmos. Já no vértice inferior direito, cabem casos de
uma modernidade guiada por um objectivo nacional e brasileiro. Se antes isso entidades fechadas em relação a contactos de cultura e civilização, mas
já era possível, agora o é muito mais, embora nos façam crer que há apenas abertos a certas modernizações procurando ao mesmo tempo o corte, por
uma opção, um caminho, com vistas à construção do futuro” (Santos, 2000). vezes radical, com a tradição: correspondem a certos estados totalitários,
de que são exemplo os países que aderiram ao Estalinismo, ao Nazismo, ao
De facto, com frequência, assimila-se modernidade a ocidentalização ou Fascismo, ao Maoísmo. Caberia aqui também o ideário fascista referente
a imitação. Neste contexto, a modernidade tem limites. R. David Sack ao 28 de Maio de 1926, de que o Estado Novo acabou por se afastar, recu-
(1997), o geógrafo americano, no seu Homo Geographicus, chama a aten- perando os valores da tradição, embora numa situação de fronteiras com
ção para “a confiança ilimitada da modernidade nos poderes da razão”, o pouca abertura.
que pode levar a “avaliações e expectativas irrealistas e, frequentemente
a apoiar formas de intolerância e de estreiteza de espírito que era suposta A emigração4 é outro fenómeno que permite uma leitura através do nosso
eliminar” (p. 3). A modernidade privilegia o discurso científico e as lógicas triângulo, leitura decerto também inconclusiva, mas estimulante. Emigrar
do mercado (“das transformações económicas até ao capitalismo”), pelo é uma atitude própria do espírito de fronteira: vencer barreiras, escapar
que a religião, a magia, o ritual, perdem força no comando da perspectiva aos limites da sociedade e da terra; aqui, nas terras raianas, como na serra,
moral (cf Sack, 1997, 170). no Norte e no Sul, do Minho ao Algarve, emigrar é um acto cultural, faz
parte da tradição. Assim, também emigrar pode representar não a atitude
Do mesmo modo, Jacques Berque, referindo-se ao mundo da língua árabe, mais racional, mas apenas a mais resignada: escapar sem se dar conta que a
(citado por Le Goff) considera que a modernidade hoje em dia não opera realidade se alterou e gerou oportunidades...
como criação mas “como aculturação ou transição, entre o arcaico e o im-
portado” (Le Goff, 1984). Ora a emigração também vai abrir novas frentes, permitindo aceder à mo-
“Cansei de ser moderno, agora quero ser eterno”, cantou Carlos Drum- dernidade, que muitos souberam transportar, no retorno, trazendo consigo
mond de Andrade. a mudança: nas oportunidades de investimento, nos comportamentos so-
ciais e culturais.
Também as fronteiras são frequentemente apreciadas em contradição com
aquele conceito que enunciávamos: limites, factores de isolamento, de ar- A Beira Interior foi ao longo de um ou dois pares de séculos (IX-XIII) uma
caísmo, de marginalização. De uma maneira geral, a Europa não dá à fron- vasta terra de fronteira, entre portugueses, castelhanos e muçulmanos: lu-
teira o mesmo sentido “heróico” e “positivo” que encontramos na América. tas, roubos de gado, razias, mas também contactos de cultura, trocas. E,
Veja-se, por exemplo, o tema geral destes encontros Raia Sem Fronteiras; depois, uma terra livre, uma terra de promissão, uma terra que foi preciso
os franceses também insistem bastante nas sans frontières... lembremos os planear, organizar de novo: através da fundação de cidades, afastadas da
médicos sem fronteiras, os jogos sem fronteiras. Já no Brasil, predomina a con- raia muçulmana – por isso se transfere o Bispado de Egitânia, para Nor-
cepção americana: editora Nova Fronteira...

Voltamos então ao triângulo, no pressuposto de que os 3 conceitos com- 4  Refiro-o porque é um tema central, aqui na Beira Interior (e em Portugal): no passado com a
petem, completando-se. Assim, numa situação de grande abertura de fron- emigração; no presente com a imigração.
112   Tradição, Modernidade, Fronteiras território & imagem    113

te, para a Guarda (que na sequência do Tratado de Alcanises também se Se é um facto que a linha de fronteira, a raia, funcionou muitas vezes
resguardaria em relação a Leão e a Castela), levando a raia para além do como uma barreira, à comunicação e às trocas, outros obstáculos, outras
Coa; fundando-se Castelo Branco... e ao longo da fronteira vilas novas, barreiras (fronteiras negativas) existem, tanto nas áreas urbanas como nas
bem geométricas, com suas regalias, de que Salvaterra do Extremo é, até no rurais: a estrutura social e a estrutura de posse da terra, são dois exemplos;
topónimo, o caso exemplar. mas que também não são generalizáveis – o latifúndio na Cova da Beira
teve consequências diferentes do latifúndio do Campo de Castelo Branco
A Beira Interior e em particular a Sul da Cordilheira Central, é uma área de e as pequenas e médias explorações agrárias da Cova da Beira, também
inovação5: aberta a contactos de civilização, atenta ao pulsar dos grandes não observam idêntico comportamento às do periurbano da Guarda ou de
centros, longínquos – mas forte na construção da identidade: uma quase Castelo Branco. A agricultura da Cova da Beira foi tradicionalmente mais
imutável quietude. inovadora, manteve-se mais atualizada, sensível aos sinais do mercado. Em
contrapartida, a oposição entre industriais e proletários da Covilhã, pobres
Dos arcaísmos e anurbanos, explica muito do conservadorismo local: recordo-me que des-
As xerobias de o final dos anos 60 se me ocorre aproximar Évora e Covilhã, um centro
Os teares/ as colchas agrário a um centro industrial, pelos comportamentos societais, de ricos e
Os falares pobres, de conservadores, resignados e revoltados. É curioso verificar que é
Os cantares na fronteira do urbano covilhanense que vamos encontrar gente que quer
O pastoreio mudar, que procura oportunidades: do Dominguiso a Peso ou a Belmonte.
Os malpiqueiros
Castelo Branco é uma cidade de fronteira, próximo de uma linha de fron-
Às inovações – perceção das oportunidades: teira política terrestre, mas também na área de fronteira entre Norte e
A fruta Sul, na esfera sub-regional próximo da charneira das 3 unidades: Campo,
As confeções Charneca (Pinhal) e Serra. Mas, acima de tudo, terra de fronteira do de-
O frio senvolvimento – terra de esperança e promissão: para os serranos e para os
Os iogurtes (Guarda, Castelo Branco). charnequeiros, para gentes de outros mundos, do Interior (até Espanha),
do Litoral (até Lisboa); em dado momento para os imigrados das fronteiras
Estas terras, que são da Beira (que de facto significa fronteira6), viveram africanas (na altura, 1974/1975, chamados retornados), que aqui reencon-
sempre em tensão entre os valores da mudança e os do conservadorismo traram espaços de oportunidade para demonstrar as suas capacidades para
(tradição), mas também houve períodos, situações, subespaços geográfi- ultrapassar as barreiras que à partida se lhes colocaram. Deles nasceram
cos, onde a tradição é base para a mudança, para a inovação: como no inovações locais, na agricultura, na indústria, no comércio.
têxtil, pelo menos desde o século XVIII, como na agricultura da Cova da “É nas cidades que melhor se projeta a fronteira: as cidades são em si mes-
Beira, no regadio do Ladoeiro, na recente revolução queijeira de Castelo mos sítios de fronteira – de encontro e confronto, de esperança, de resis-
Branco/Idanha-a-Nova, como na confeção em Alcains, para citar alguns tência. É nas cidades que um mundo em nomadismo, um mundo que é a
exemplos. maior “terra de fronteira”, procura hoje a esperança, a âncora. Com mais
evidência ainda nestas terras que se assumem como raianas e que sempre
honraram a urbanidade.

5  Talvez porque também tem sido um corredor de passagens: Norte-Sul e Este-Oeste.


Algumas visões apocalípticas são-no só na aparência. É nas margens das
6  O que mostra, mais uma vez, que na Idade Média a fronteira era mesmo um espaço vasto, de cidades, nessas fronteiras da grande fronteira, que se agarram as gentes,
contornos indefinidos, a Beira, que cresceu do interior para o litoral. aprofundando novas raízes.
114   Tradição, Modernidade, Fronteiras

O aparente caos urbano (e também rural) é a resposta ao novo ordenamen-


to, uma resposta em construção, num processo de aprendizagem. Após o
inquérito, à medida que vamos elaborando o diagnóstico, descortinamos
13. O FASCÍNIO
também aqui novos elementos poéticos das terras de fronteira, nestas pai-
sagens de agressão e sofrimento, mas também de afeição e de esperança. A DOS MAPAS*
épica da frontierland.

E a consonância entre gentes, territórios, aldeias, vilas e cidades – entre os


lugares e a terra – é patente. Apesar dos desencontros, os encontros preva-
lecem. E Castelo Branco, cidade, é a paisagem icónica deste tempo e deste

S
espaço.” (Gaspar, 2002).
ou geógrafo por via dos mapas: na Instrução Primária frequentei uma
escola, o Colégio Moderno, onde os mapas conviviam com os alunos
no dia a dia das salas de aula. Decerto por influência do Diretor, o
Dr. João Soares, autor de um excelente Atlas Escolar, os mapas murais, de
várias escalas e tipos, abundavam nas paredes das salas de aula. Um fascí-
nio para uma criança que sempre sonhou com o Mundo e com as viagens.
O que para muitos foi um martírio, o conteúdo programático da Geografia
no ensino primário e secundário, para mim foi um êxtase, uma aventura:
Bibliografia conhecer os países e as suas capitais, os rios e os seus afluentes, as linhas de
caminho de ferro e os seus ramais, as montanhas e as planícies...

Aron, R. (1969) Les désillusion du progrès. Essai sur la dialetique de la moder- No Liceu, tínhamos Geografia (só) a partir do 7º ano de escolaridade (“o 3º
nité. ano do liceu”); sofri um 1º ciclo (5º e 6º ano) quase sem mapas e aguardei,
Baudelaire, Charles (1863) “Le peintre de la vie moderne”, in Le Figaro, 26 com ansiedade (não exagero!), aquela Geografia descritiva, dos continen-
e 29 Novembro, 3 Dezembro. tes, das grandes regiões, dos países, com as suas fronteiras, cidades, acti-
Berque, J. (1974) Languages arabes du présent, Gallimard, Paris. vidades económicas. Do 3º ao 5º ano, adorei viajar da Europa à Oceânia,
Gaspar, J. B. (2002) “A propósito de raia e de fronteira”, in Fronteiras espe- apoiado nos pobres manuais, que eu enriquecia com atlas e tudo o que
lhos do mundo fotografias, ed. C.M.C.B, Castelo Branco, s/d, s/p. apanhava, sobretudo nas “pedinchas” que fazia com frequência nas embai-
Lefébvre, H (1962) Introduction à la modernité, Minuit, Paris. xadas e consulados. À noite, adormecia muitas vezes a sonhar com viagens,
Le Goff, J. (1984) La Civilization de l’Occident médieval, Arthaud, Paris. com itinerários que ia construindo a partir do meu atlas mental.
Mitchell, W. J. (1995/2000) City of bits: space, place and the infobahn, M.I.T. Da teoria à prática foi natural a passagem, primeiro apoiado num conheci-
Press, 7th ed., 2000, M.I.T. Press, Cambridge, Mass. mento vivido de andarilho na companhia de meu Pai, por Lisboa e arredo-
Morin, R. (1975) L’ésprit du temps. Une mythologie moderne, Paris. res, até ao Norte e Centro do país. Mais tarde, a primeira saída autónoma, a
Rosenberg, H (1959) The Tradition of the New, Horizon Press, N. York.
Sack, R. D. (1997) Homo Geographicus, The John Hopkins University
Press, Baltimore. *in Coimbra: o País e o Mundo – Olhar o mundo, ler o território: Uma viagem pelos mapas (colecção
Santos, M. (2000) “Por um modelo brasileiro de modernidade”, in Correio Nabais Conde), Instituto de Estudos Geográficos/Centro de Estudos Geográficos, Faculdade de Letras
Brasiliense, 2000. da Universidade de Coimbra, 2003, pp. 27-31.
116   O fascínio dos mapas território & imagem    117

primeira aventura, na companhia do meu irmão (Victor), nas férias grandes Ainda no 1º ano, mas sobretudo no 2º, não esqueço a magia da Carta Geo-
entre o 4º e o 5º ano do Liceu... saímos à boleia para ir acampar a Troia e lógica de Portugal, tanto a mais antiga, na escala 1/500000, de 1876, por
acabámos, logo no primeiro dia, no Algarve, numa Armação de Pêra que onde começávamos, como a muito incompleta, mas belíssima, que os Servi-
ainda não tinha eletricidade, água ou esgotos. Foi uma viagem sem mapa, ços Geológicos de Portugal foram produzindo, na escala 1/50000.
bastou-nos, para tanto, o mapa mental e a amabilidade dos automobilistas
que nos foram dando boleias. A experiência de um País diferente, o das Na descoberta de novas cartografias, associadas ao ofício de geógrafo,
estradas e dos contactos humanos. Não esqueço o velho lavrador e advo- emergem duas figuras que conheci na Universidade de Lund, Suécia, na
gado oposicionista, Major David Neto, mas recordo, com mais intensida- segunda metade dos anos 60: Torsten Hagerstrand e Peter Gould. Com
de, o Senhor Cardador que nos trouxe, em duas jornadas, de Bensafrim a o primeiro, entre tantas coisas, aprendi a importância da transformação
Setúbal. Era vendedor dos queijos Vouga Sul e fazia algumas paragens com logarítmica das escalas e da projecção zenital na representação de certos
visitas algo misteriosas, a pessoas que não tinham, aparentemente, nada fenómenos, nomeadamente, a do Campo Médio de Informação; com
a ver com os queijos... encontrei a resposta dois anos depois, quando nos o segundo, aprendi o conceito e o valor operativo dos mapas mentais.
encontrámos em Paris, junto à Posta Restante dos correios da Rue Rivoli: ti- Mas, definitivamente, o mais promissor dos ensinamentos de Hagers-
nha sido obrigado a fugir na sequência da campanha eleitoral de Humberto trand foi a abertura à cartografia por computador, associada a bases
Delgado. de dados georreferenciados: era 1967, os primeiros mapas numéricos
gerados por computador não permitiam antecipar a beleza e a eficiência
No terceiro ciclo do Liceu aprendi com Evaristo Vieira, professor e me- dos futuros sistemas de informação geográfica, mas era o início de um
todólogo, como eram feitos os mapas e como podiam variar consoante o caminho harmonioso, que percorremos e que permitiu o recentrar da
objetivo das representações, de Ptolomeu a Mercator, toda a evolução da Geografia, não tanto como ciência autónoma, mas sobretudo como um
Cartografia, que acompanhou a da descoberta do Mundo e das geografias. campo de convergências.
Mas nesse período, os mapas mais importantes foram os das estradas, pri-
meiro de Portugal, depois da Europa. Três meses e meio à boleia pela Euro- Fui também descobrindo com o tempo que o mapa é uma ferramenta co-
pa, entre o 6º e o 7º ano do Liceu, deram-me uma nova visão da Geografia. mum a um número crescente de atividades e que cada vez mais entra no
O encanto de descobrir que nalguns países, além Pirenéus, nas bombas de quotidiano de todos nós: nos transportes, na política, na gestão do territó-
gasolina, ofereciam mapas, do País ou da região, e nas cidades era frequente rio, na publicidade...
a oferta de plantas, algumas de grande qualidade, que não só permitiam
orientar as visitas, como descobrir para lá do que o tempo permitia calcor- Por todas estas dimensões, os mapas, ao mesmo tempo que fascinam, po-
rear. Três meses e meio que também contribuíram para desenhar e colorir dem ser instrumentos de manipulações, mais ou menos maldosas. Veículos
outros mapas mentais, com mais notoriedade para os que emergem da obra de transmissão de mensagens, forçando ou facilitando a apreensão de con-
de Albert Camus e para o cinema que era interdito em Portugal, Le Beau teúdos. Informando, mas também deformando leituras.
Serge... a inocência da “inocência perdida”.
Todavia, são mais as razões para o optimismo e a satisfação. O desenvolvi-
O regresso e a certeza que só na Universidade poderia aprofundar esta ânsia mento das ciências da informação e da computação tem vindo a permitir
de mais, de novos mapas. O 1º ano do Curso de Geografia não desiludiu, não só avanços da Cartografia, como o alargamento da multifuncionalida-
em grande medida porque trouxe a descoberta da maravilha que são as 600 de dos mapas. Porque o Homem é um ser “eminentemente geográfico” (Da-
e tantas folhas da Carta Militar de Portugal, na escala 1/25000 dos Serviços vid Sack), as novas fronteiras da ciência, da arte e da técnica de mapear,
Cartográficos do Exército, hoje Instituto Geográfico do Exército. Que sorte contribuem decisivamente para a melhor adequação dos humanos à sua
a minha que, 14 anos depois, enquanto cadete e aspirante a oficial, aprendi casa – do local ao global.
como se fazia o 25000, a partir do terreno!
118   O fascínio dos mapas

Agora, viajando na luz coada do Outono, no Outono de uma vida de per-


cursos mapeados a diferentes escalas, interesso-me mais e mais pela des-
coberta das descobertas dos artistas, que também se deixam fascinar pelos
14. A PROPÓSITO
mapas e pelas escalas. E à medida que percorro museus, galerias e outros
“sites”, vai-se abrindo uma nova geografia, feita de itinerários, julgo que até DE RAIA E DE
ao infinito, neste tempo e espaço de múltiplos nomadismos. Dos aprofun-
damentos topográficos às sínteses globais. FRONTEIRA*
Assim vos deixo, sem necessidade de ir mais longe, com dois artistas por-
tugueses, cujos percursos tão diversos têm igualmente contribuído para
enaltecer o nosso amor à Terra – é disso que também tratam os mapas (ou
cartas – cartas de amor).

A
ssim como no corpo humano, também nos países e nos territórios
vividos as raias são linhas que o tempo endureceu, são sulcos, mar-
cas de memórias doloridas.

A raia que ao longo de séculos separou Portugal de Espanha e que dois


jornalistas espanhóis batizaram, com sucesso editorial, de “raia do subde-
senvolvimento”, foi abolida pelos tratados que constroem a União Euro-
peia e que os dois países ibéricos integram desde 1986. Mas ao contrário
do que muitos sonharam, ela não terminou enquanto barreira, enquanto
linha geradora de marginalidades e de conflitos potenciais, agora envolta
em ilusões, em leituras muitas vezes desfocadas nos tempos e nos espaços.
Mas de um e de outro lado dessa linha, que há séculos trava as gentes e o
seu engenho, construiu-se o espaço da fronteira. Esta é uma palavra mági-
ca, apesar das leituras diversas, das ambiguidades. Desde a ideia de sonho,
de Terra de Promissão – o que fica para lá de uma montanha, o que nos
espera quando finalmente atravessamos o nosso rio.

Também nestes territórios de fronteiras, ao mesmo tempo que ressaltam os


arcaísmos, as especificidades, nasce uma esperança, noutros tempos vertida
em libertação dos homens que fugiam à perseguição de outros homens e
onde lhes era oferecida hospitalidade sem lembranças de passado. Resta-

*in Fronteiras, espelhos do mundo, fotografia, C. M. Castelo Branco, 2004, 4 pp.


120   A Propósito de Raia e de Fronteira território & imagem    121

-nos, desses tempos, a memória da toponímia: SALVATERRA, Salvaterra As minas e o património cultural valorizam a história, assim como as límpi-
do Extremo. das formas de geomorfologia valorizam a geografia.

Terras de promissão e territórios de realização, em respostas aos desafios, As paisagens e os territórios destas terras raianas vão ganhando uma beleza
na busca continuada de oportunidades decorrentes do afastamento. Dos exaltante e vertiginosa.
coutos de homiziados às comunidades cripto judaicas, dos emigrantes aos
contrabandistas, quantas capacidades, quanta imaginação e determinação É nas cidades que melhor se projeta a fronteira: as cidades são em si mesmas
para vencer as adversidades. sítios de fronteira – de encontro e confronto, de esperança, de resistência. É
nas cidades que um mundo em nomadismo, um mundo que é a maior “ter-
Apesar da lonjura dos mundos e das múltiplas barreiras, manifestou-se ra de fronteira”, procura hoje a esperança, a âncora. Com mais evidência
sempre uma renovada sensibilidade para sentir os sinais das mudanças, os ainda nestas terras que se assumem como raianas e que sempre honraram
azimutes das oportunidades. a urbanidade.

Por isto, as paisagens não são de abandono, mesmo quando o meio fica mais Algumas visões apocalípticas são-no só na aparência. É nas margens das
repulsivo, mas de afirmação ou de expectativa. A raia gera o arcaísmo, mas cidades, nessas fronteiras da grande fronteira, que se agarram as gentes,
os homens, respeitando as memórias, avançam para novos mundos e a terra aprofundando novas raízes.
responde: com novos assentamentos, com outras produções.
O aparente caos urbano (e também rural) é a resposta ao novo ordenamen-
Temos aqui, agora, como em regiões aparentemente mais dinamizadas, uma to, uma resposta em construção, num processo de aprendizagem. Após o
recomposição dos territórios e das paisagens. É nestes momentos cruciais inquérito, à medida que vamos elaborando o diagnóstico, descortinamos
que se avantajam as memórias, que se procuram os contornos das iden- também aqui novos elementos poéticos das terras de fronteira, nestas pai-
tidades, que se confrontam as ambições da mudança com os temores do sagens de agressão e sofrimento, mas também de afeição e de esperança. A
esquecimento – dos outros e de nós mesmos. épica da frontierland.

É aqui que adquirem um significado operativo os confrontos de olhares de E a consonância entre gentes, territórios, aldeias, vilas e cidades – entre
dentro para fora, de fora para dentro. É assim fundamental perscrutar as os lugares e a terra – é patente. Apesar dos desencontros, os encontros
paisagens, com todos os sentidos e linhas dos horizontes, os volumes. Os prevalecem. E Castelo Branco, cidade, é a paisagem icónica deste tempo e
sons dos campos e das cidades, os cheiros, as asperezas dos caminhos, a deste espaço.
maciez das águas. Aí podemos encontrar os apontamentos para a reflexão
e para a ação.

É através de caminhos incertos que deambulam aqueles que são mais


sensíveis a esses sinais, que nos permitem construir os cenários para o
futuro. Para lá das abordagens analíticas e do rigor dos inquéritos, são
indispensáveis as visões poéticas.

Claro que é nos muros e nas pedras que mais facilmente sentimos a nostal-
gia do tempo, assim como é nos descampados e nas águas desiguais de rios,
ribeiros e outras linhas de água, que podemos gozar a nostalgia da solidão.
território & imagem    123

15. NOTA DE São também, como enuncia,” retratos de mudança” de uma região a vários
títulos Central, tanto para as Geografias do Passado, como para a Geografia
do Futuro. Um território que constrói continuamente a sua identidade a

APRESENTAÇÃO* partir de memórias e de heranças que se cruzam e complementam.


As ausências vertem-se em permanências, nas lembranças das gentes, mas
também inscritas na paisagem, traduzindo no tempo e no espaço as vicis-
situdes das “Rotas da Emigração”, decerto com sucessos e insucessos, mas
sempre transportando vida, mudança e futuro. 

Merecem uma particular detenção os textos que se traduzem numa “geo-

O
grafia dos escritores” e das escritas, em que Rui Jacinto se empenhou com
s tempos livres permitem os ócios, que não são necessariamente entusiasmo, contribuindo para a abertura de novas paisagens da Raia, pai-
sinonimo de inatividade. Por isso, quando fazia a primeira leitura sagens que só pela mediação da literatura é possível cobrir e percorrer. Pe-
deste Entre Margens e Fronteiras, veio-me à mente uma obra no- rante os resultados conseguidos, espera-se que continue a explorar estes
tável, embora menos conhecida, de David Mourão Ferreira, cujo título é territórios, que complementam as dimensões mais visíveis dos espaços das
já um achado: Ócios do Ofício. Só um poeta poderia fazer tal síntese em Beiras, como das outras Regiões do país, e que constituem muitas vezes
três palavras. De facto, todos nós temos ócios, mas só alguns privilegiados dimensões ocultas, marginais para os iniciados e crípticas para os leigos. 
conseguem viver os ócios do ofício.
Útil para o viajante e para o planeador, esta coletânea de “textos em exer-
Rui Jacinto, geógrafo, técnico de planeamento regional e gestor de “coisas cício” deve ter como primeiros destinatários os seus protagonistas maiores,
públicas”, tem vivido os últimos 30 anos em dedicação às terras da Beira as mulheres e os homens da Beira Raiana, que encontrarão aqui fragmentos
– da fronteira da terra à fronteira do luar, entre Tejo e Douro. Nesse labor, de um retrato, que podem ser úteis para o reforço da sua identidade. São
levou a cabo importantes tarefas no âmbito do desenvolvimento regional, gentes que de há muito convivem com outras realidades, através de várias
sub-regional e local, que muitas comunidades locais e respectivos eleitos fronteiras que souberam transpor, num e noutro sentido e que encontrarão
podem testemunhar.  na leitura destas “memórias revisitadas” estímulos para o confronto com as
novas fronteiras que se desenham. 
Homem do litoral, sentiu como outros o “apelo” da Beira, da Beira matri-
cial, que pleonasticamente vamos designando por “Beira Interior”. É desse
chamamento/encantamento que nos dão conta muitos dos textos desta co-
lectânea, que são a um tempo de circunstância e ócios do ofício. 
O subtítulo referencia os textos como uma contribuição “para uma geogra-
fia das ausências das identidades raianas”. Mas o conteúdo evidencia um
âmbito mais vasto, projectando estes territórios nos tempos e nos espaços
– levando-nos a um futuro desejado, em que o diálogo frutuoso com as
além-raias seja finalmente conseguido.

*in Jacinto, R. (autor) Entre Margens e Fronteiras – para uma geografia das ausências e das identi-
dades raianas, Colecção Iberografias, nº. 4, Campo das Letras Editores, Porto, 2005, 2 p.
território & imagem    125

16. GUARDA, CIDADE eram tristes, soturnas e dificilmente cativavam o visitante. Por muito que
nos doa o tristemente famoso retrato de D. Miguel de Unamuno, em rela-
ção à Guarda, ele não resultava do seu desconhecimento, nem tão pouco

DE FRONTEIRA, da dimensão desta cidade portuguesa, pois Unamuno até preferia as pe-
quenas às grandes cidades, como o escreveu em 1908, num artigo no La
Nación. Mas às novas pequenas cidades faltava tudo! Gente, elites, uma
PARA SEMPRE* burguesia ambiciosa e empreendedora, um ambiente urbano atraente. E
por isso elas tiveram sempre dificuldade em crescer de forma sustentada:
os equipamentos públicos mais relevantes não tinham dimensão crítica,
as indústrias vinham de fora, na busca de alguma matéria-prima menos
custosa e, sobretudo, atraídas pelos salários muito baixos e algumas ajudas
públicas.

E
esse navio às avessas é ainda hoje o brasão de uma história que só espera Por isso, não conseguiram fixar nem valorizar os camponeses das suas áreas
de nós que descubra outra vocação, outro rumo, para ter tanto sentido de influência que, em geral, não ultrapassava a função administrativa. Gen-
como o tinha nesse tempo em que a sombra de Castela não nos deixava te heroica que procurava uma urbanização dolorosa mas vitoriosa, além Pi-
dormir. (Eduardo Lourenço). renéus: quantas grandes cidades médias não poderiam ter sido erguidas por
esses reconstrutores da Europa – de Bragança a Portalegre, de Chaves a Beja!
Como mudaram as pequenas cidades de meados do século XX! Cresceram
em gentes e em edificações. Aumentaram a área ocupada e a volumetria. Hoje, não obstante algumas disfunções e atropelos urbanísticos, estas cida-
Também se qualificaram na variedade dos serviços que oferecem e na irra- des vivem um passado cada dia mais longínquo, onde apenas buscam he-
diação territorial. ranças patrimoniais que valorizem o presente. Ao mesmo tempo, procuram
o futuro com maior ambição, embora, amiúde, de contornos menos legíveis
Onde tínhamos quartéis, temos universidades e centros culturais. Onde e com tendência para obscurecer: o futuro de hoje para algumas destas
tivemos feiras e acampamentos, temos hoje modernos centros comerciais, pequenas cidades não deixa sequer ambicionar que se sonhe com a “beleza
com uma oferta semelhante à das grandes cidades ou, pelo menos, à das evanescente do declínio”. O futuro só será possível com gentes.
periferias das grandes cidades.
Já assim o prospetivou o inventor da cidade da Guarda, D. Sancho, que
As classes médias, signifique esta tipologia o que significar, são hoje domi- mereceu, por isso, o cognome de Povoador. Para levar a bom cabo tal tare-
nantes, pelos consumos que praticam, pelos valores que impõem. Vão lon- fa, mandou mensageiros pela Europa a chamar gente, a quem prometiam a
ge os tempos em que a estrutura social destas pequenas cidades se resumia terra prometida.
a uma classe privilegiada limitadíssima e heterogénea e um povo que vivia
às portas da cidade ou estava de passagem pelos mercados, pelas repartições Na mesma linha, D. Dinis consolidou a urbanidade e a centralidade da
públicas, pelos quartéis. Guarda, colocando-a fora das terras de fronteira, ao empurrar, pelo Tratado
Sem esquecer alguns encantos que o tempo das memórias tende a sobre- de Alcanises, a linha da raia para lá do Côa e ao criar novos embriões de ci-
valorizar ou mesmo a efabular, essas cidades, que ainda conheci e analisei, dades. Mas hoje, além de nos faltarem os povoadores, faltam-nos as gentes
sedentas de terra, crentes no paraíso terrestre, e sobram-nos as que já há
muito iniciaram a retirada.
*in Um (eterno) olhar – Eduardo Lourenço, Virgílio Ferreira e a Guarda, CEI, Guarda, 2008, pp 217-221.
126   Guarda, cidade de fronteira, para sempre território & imagem    127

O futuro está sempre no arrojo, na ambição, no sonho tumultuoso. Para A futura plataforma logística, infraestrutura que pretende criar as condi-
termos futuros precisamos de povoar, de ganhar gentes, mas para lá chegar, ções para beneficiar do encontro das rodovias com as ferrovias, facilitando
agora que perdemos por mais do que uma vez ao longo de meio século o transporte e a distribuição, pode, a partir daí, garantir uma nova produ-
comboios e caravanas de fugitivos, é urgente abrir novas portas para cativar ção e uma nova intermediação. É imperativo passar da plataforma logística
novos imigrantes. da Guarda, para Guarda como plataforma logística de novos bens e ser-
viços. Mas essa plataforma física deverá ser, ao mesmo tempo, hardware e
Não se trata de refazer a História, que é ambição inacessível, mas de apren- metáfora de Guarda plataforma logística global: Guarda, de novo, cidade de
der com ela, de acertar o passo com o tempo, sem esquecer as lições das fronteira.
oportunidades desbaratadas: os retornados de África, os jovens conquista-
dos a vilas e aldeias do entorno, os estrangeiros do Leste que lembraram os Os modelos são multifacetados, eventualmente fragmentários, resultantes
povoadores caminheiros da Idade Média. de múltiplos riscos e multiplicadas leituras, dos seus habitantes e dos seus
cidadãos. Por isso, a Guarda só pode ser naturalmente ambiciosa, não
Como nas origens, o futuro de Guarda-cidade está na nova fronteira, no se limitando aos horizontes da sua “elite académica” de “antanho”, mas
que significa de oportunidade, de recomeço, de ambição e risco, de crença deixando-se levar pela ambição daqueles que conquistaram o novo sentido
nas terras de promissão. Hoje, com o encolhimento da Terra, a abertura ao do lugar e do tempo, ambicionando assim ser uma verdadeira cidade de
Mundo é global, as fronteiras expandiram-se e multiplicaram-se. Por isso, fronteira, surfando as ondas do tempo.
são mais as oportunidades, mas também as ameaças.
Aqui a reflexão sobre a História pode contribuir para encontrar os cami-
A Guarda tem de voltar a viver em sintonia com o seu território, aquele nhos do futuro. Perguntemo-nos como foi possível a Sancho e aos seus
que conquistou ao longo de sete séculos e de que tem vindo a descolar. sucessores trazer para este ermo alcandorado uma comunidade judaica, de-
A cidadania Guardense estende-se muito para lá do burgo, do perímetro tentora de saberes/fazeres, a que decerto ainda se juntaram alguns francos
urbano e até dos limites municipais. E está ancorada em materialidades, e outros povos de “longínquas fronteiras”. Não terá hoje a Guarda, pelo
memórias e futuros. menos, o equivalente para oferecer, num mundo maior, mais populoso, mais
rico e mais conectado?
Assim, torna-se imperativo aceitar os futuros e os passados, enquanto ac-
tivos patrimoniais. Nestes, não podem ser esquecidos os patrimónios ima- Como enviar os emissários com trombetas, a prometer terras como o pre-
teriais, as heranças a integrar e a valorizar como parte do processo de qua- goeiro (porteiro) no Juiz da Beira de Gil Vicente “são terras novas guardadas,
lificação urbana. que nunca foram lavradas. Oh que matos pera pão! Que vales pera açafrão
E canas açucaradas!”.
Se Virgílio Ferreira e Eduardo Lourenço engrandecem a Guarda, amando-a
e cantando-a, Miguel de Unamuno não deixa de dar um contributo impor- Mas o que são hoje os equivalentes às terras boas para pão? Terras boas para
tante: ao aparente desdém, sobrepõe-se, bem vistas as coisas, muita afeição o corpo e para a mente? Como reconfigurar a base económica e a economia
e o aviso das ameaças, sobre um futuro que não queríamos aceitar. exportadora de produtos e de serviços? Alguns documentos de estratégia,
planos e artigos de reflexão, apontaram caminhos, oportunidades, ideias:
Hoje, a Guarda já não tem Coimbra como modelo, não precisa de a imitar. cidade saudável, cidade de turismo, cidade da logística, cidade com Histó-
É uma cidade que procurou o futuro numa confrontação global: olhando ria, cidade da Cultura, cidade de interface e mais e mais…
para o Mundo que chega aos seus cidadãos pelas viagens e pelos contactos
de culturas, da emigração ao turismo, do import/export aos consumos, da Creio que todas estas ideias são boas e podem ser caminhos de futuro, mas
comunicação social à internet. para tanto é necessário agir em várias frentes:
128   Guarda, cidade de fronteira, para sempre território & imagem    129

1º Tomar como emblema a sua localização, cuja escolha constituiu um Guarda tem uma posição privilegiada para o acesso ao nível urbano supe-
acto de decisão estratégica: no encontro das três grandes bacias hidro- rior: a equidistância de Madrid e de Lisboa e a quase meio caminho entre
grafias do Centro Interior, dos rios Douro, Tejo e Mondego, Guarda Salamanca e Coimbra. E quando os comboios voltarem a funcionar, quan-
apesar das barreiras montanhosas, pode estender a sua acção sobre um do se actualizarem, sairá reforçada a centralidade da Guarda: encolhendo-se
território muito vasto e diversificado, caracterizado pela complemen- os territórios expandem-se as fronteiras…
taridade dos seus recursos endógenos e pelos acessos fáceis a mercados Do que não há dúvidas é quanto à vontade de futuro que se sente, que se
com características diversas. respira, na cidade da Guarda e seu entorno. Talvez por isso já se inscreveu
esse querer, essa saudade, em nome de rua, na toponímia da periferia, que
2º Estabilizar o conceito da cidade consolidada, começando por definir é onde começa o futuro. Será um sinal, como um outro que um dia encon-
a vocação do Centro Histórico; o que poderá não ser muito difícil, mas trei, vagueando por terras de fronteira, que já tinham sido páramos e depois
implica mobilizar as vontades e a manifestação da burguesia guardense, terras de promissão: a Aldeia do Futuro!...
o seu amor-próprio. Também aqui, a essência do espaço resulta de actos
de voluntarismo e de rigor: o tecido urbano da Guarda intramuros é o
primeiro acto do urbanismo português de raiz geométrica.

3º Cuidar do ambiente e actualizar a paisagem urbana, eliminando bar-


reiras, físicas e sociais, construindo novos relacionamentos entre os cen-
tros e as periferias.

4º Regenerar e conter a coroa suburbana, dando continuidade à inter-


venção Polis e às acções de reabilitação do centro histórico, bem como
a outras boas práticas, no sentido de integrar e cerzir os tecidos urbanos.

Também aqui, na execução das acções e dos projectos que vão fluir das
estratégias e das políticas, vale a pena, mais uma vez, revisitar Unamuno e
reter a sua genial observação a propósito das paisagens, actual, oportuna e
necessária: a beleza é o aforro da utilidade. Do engrandecimento da cidade,
no sentido que lhe deu Aristóteles, resultará também o seu embelezamento.

Na Guarda, como noutras cidades de pequena e média dimensão, as popu-


lações têm de ser incentivadas para o aproveitamento das vantagens que
lhes são oferecidas face às grandes metrópoles e aos pequeníssimos centros,
beneficiando o mais possível da proximidade de uns e de outros. Se o refor-
ço da ligação ao território recupera a cidadania e elimina as descontinuida-
des, a aproximação à metrópole contribuirá para que a Guarda não descole
da Cosmopolis. Esta ambição configura também uma estratégia – os objec-
tivos da comunidade, dos habitantes, devem centrar-se no caminho para a
urbe cosmopolita, sem necessidade da imitação da Metrópole.
território & imagem    131

17. PREFÁCIO* Essa errância manifesta-se a distintas escalas espaciais, do global ao local, e
em diferentes formas de ocupação e apropriação, não só nos espaços da(s)
residência(s), de trabalho ou de lazer, mas também nos espaços de contem-
plação e de memória, ou nas formas de apropriação simbólica.

Esta teia de relacionamento entre os habitantes, nómadas e sedentários, e


os territórios, origina espaços de grande complexidade, multidimensionais,
que não são apreensíveis nas interações tangíveis, entre os habitantes, en-
tre os habitantes e os territórios.

É nos espaços urbanos, nas cidades convencionais ou, melhor, nas cidades

T
erritório é um conceito em aprofundamento, da dimensão biológica herdadas, e nas novas urbanidades, que se desenrolam e se aprofundam
à dimensão antropológica: o território não é dissociável dos seus esses processos. E cada vez mais a viagem pelas novas paisagens que são
habitantes. imagens modeladas dos novos territórios é fragmentária, descrevendo-se
através de “paragens” em pontos discretos, que são as estações intermodais,
Os territórios afirmam-se através de processos de apropriação e de identi- interacções de planos resultantes de uma riquíssima combinatória, conti-
ficação… nuamente reelaborada na relação entre todos os tipos de habitantes e os
diferentes territórios.
A complexidade da sociedade contemporânea, com um incremento das
mobilidades espaciais, tem levado à emergência de novas formas de noma- É nessas “estações”, em momentos específicos, que se encontram pessoas
dismo ou, em muitos casos, de formas de sedentarismo policêntrico. Este que dão sentido ao território, que o marcam e assinalam, podendo inscrevê-
fenómeno traduz-se numa complexidade dos territórios e ao mesmo tempo los nos mapas, quiçá nos Atlas de lugares.
de novas formas de identificação entre habitantes e território.
Errâncias, viagens e estacionamentos, através de diferentes espaços, con-
Tanto a polivalência de alguns espaços como a coerente especialização fun- tinuam a marcar os territórios, criando e recriando a lugaridade de que se
cional de outros, não só geram mais movimentos, como uma diversificação alimenta a reflexão geográfica: a Geografia Humana é uma ciência de luga-
nas formas e intensidades de apropriação desses espaços, de construção de res, não de homens, como afirmou Vidal de la Blache, ele que também nos
novas realidades territoriais. alertou para os mecanismos de construção da paisagem, em que a memória
A errância é outro conceito-chave das novas relações entre os habitantes é um fator operativo chave, ao “alisar” rugosidades, que permitem separar
e os territórios. O desenvolvimento tecnológico de novos meios de o essencial do acessório.
transporte e de comunicação, ao mesmo tempo que extensificou a relação
entre os habitantes e o território, criou novas polaridades territoriais, A Fotografia de que a moderna Geografia Humana é coetânea também
construídas a partir de relações funcionais afetivas, em descontinuidade es- responde a esta necessidade, captando a lugaridade, ao mesmo tempo que
pacial e temporal. a modela e memoriza.

O fascínio da Fotografia também pode estar no acesso, através de visões


discretas, a errâncias, viagens e estacionamentos, das pessoas nos territó-
*in Simões, José Manuel (2009). Pessoas & Territórios: catálogo. [Lisboa]: Governo Civil de Lisboa, rios, permitindo ao novo observador redesenhar, construir, os itinerários
2009, 2 pp. possíveis, nos limites, e os horizontes da resolução.
território & imagem    133

18. FOTOGRAFIA mormente o retrato, conferindo-lhe um enquadramento, ou servindo como


pretexto, foi o retrato fotográfico que desvinculou a paisagem dessa função,
autonomizando o tema central.

E PAISAGEM* Desde a Primeira Exposição Universal no Crystal Palace, onde o fotógrafo


americano Mathew Brady apresentou, entre outros trabalhos, daguerreóti-
pos de paisagens, que a fotografia de paisagem não deixou de se banalizar e,
em certo sentido, passou a ser uma das fontes de construção da “paisagem”.
Primeiro através da difusão dos álbuns de fotografias e a partir de finais
do século, através do postal ilustrado, sem dúvida o principal agente de
construção e divulgação de paisagens. É famoso o primeiro postal ilustrado,
mostrando a paisagem alpina de Davos, enviado da estação de correios
É em nós que as paisagens têm paisagem. BS/FP: Livro do Desassossego local, em 30 de Dezembro de 1890.

F
otografia e paisagem são dois termos que aparecem frequentemente A fotografia é desde cedo associada ao caminho-de-ferro, contribuindo
associados. Num artigo de 2001 em que defendíamos a ideia de que o para fomentar o interesse pela viagem e pelas paisagens. As estações dos
interesse da Geografia pela paisagem se tinha renovado, escrevíamos: caminhos-de-ferro, e também as carruagens, vão ser dos mais conspícuos
“Mas o regresso à paisagem não é só apanágio da Geografia, manifesta-se apresentadores de fotografias, sobremaneira as dedicadas a paisagens. É o
em vários outros domínios onde é necessário apreender a luz, as formas, os nascimento do turismo moderno. Por todo o Mundo, as gares mostravam,
ambientes, para compreender os lugares e o sentido do espaço e do tempo; em fotografia, revelavam através da reprodução de imagens fotográficas,
daí as novas paisagens da pintura, da literatura, da arquitetura e a continui- panoramas, paisagens, hotéis e monumentos, lojas e restaurantes, onde se
dade renovada da fotografia.”. Assim se tem verificado. podia chegar no conforto do comboio.

A fotografia de certo modo veio “democratizar” a arte e ao mesmo tempo Poucos anos depois, sobretudo após a 1ª Grande Guerra, o automóvel irá,
dar outra amplitude àquele que era um dos grandes desideratos das artes a um tempo, competir e complementar o caminho-de-ferro. O automóvel
visuais – o permitir a objetivação/concretização/materialização da memó- vai permitir o alargamento de horizontes e aprofundamento da sua pes-
ria. Se a pintura, a escultura, as tapeçarias, tinham permitido sobrelevar quisa. Disso nos deu nota Miguel Unamuno, já em 1907, nas suas notas
determinados factos e personagens memoráveis, a fotografia permitiu o finais sobre as viagens Por Tierras de Portugal y de España: «Outra de las
crescente alargamento dessa memória material para as pessoas, as coisas, cosas que contribuyen hoy aqui a desarrollar la afición al campo y al goce
as experiências, as vivências, os acontecimentos banais. Assim, com a fo- de las bellezas de la Naturaleza es el automóvil. El deporte automovilista
tografia, também a imagem da paisagem se banalizou e, sobretudo, deixou ha llebado a muchos a conocer campiãs y rincones que antes ignoraban, ha
de ser necessária ao que continua a ser um domínio maior da fotografia: hecho que muchos empiecen a descubrir España.» (Unamuno, 1907; 1960,
o retrato – do retrato de pose, intencionalmente encenado, ao retrato de pp. 187-188).
identificação pretensamente objetivo: dos arquivos (civis, militares, judi-
ciais, prisionais), ao passaporte, bilhete de identidade, entre outros. A popularização do automóvel que, entretanto, se verificou a níveis nunca
É interessante que tendo a paisagem sido inventada pela pintura, imaginados, não só banalizou o passeio, como a viagem, permitindo multi-
plicar ao infinito as visões de paisagens, que variam segundo o observador,
mas também, e de que forma, segundo a velocidade.
*in Transversalidades – Fotografia sem Fronteiras, CEI, Guarda, 2013, pp. 27-31.
134   Fotografia e Paisagem território & imagem    135

Até que o TGV veio trazer novas imagens, como nos apresentou Yoshio Brunhes, projecto que terminaria por efeito da grande crise financeira de
Nakamura « Le TGV est un aspirateur du paysage» a-t-on dit quelque part 1929. Entre 1909 e 1931 foram realizados e arquivados 72000 autocromos,
en une bien intéressante métaphore. En effet, le paysage, disséminé en corps 4000 fotografias a preto e branco, e cerca de 100 horas de filme, abran-
poudreux comme de la poussière, est aspiré vers l’arrière, comme dans un gendo meia centena de países. Este acervo pode ser visitado em Paris, no
aspirateur. A la pointe de la civilisation contemporaine, cette métaphore museu Albert Khan.
célèbre annonce la mort du paysage traditionel» e mais adiante «L’aspira-
teur du paysage fait pressentir que le train à grande vitesse est en outre un PAISAGEM, FOTOGRAFIA E LUZ
média générateur d’images.» (Nakamura, Frieling e Hunt, 1993, pp.16-17).
A fotografia permite nos nossos dias múltiplas interações com a paisagem: Toda a paisagem não está em parte nenhuma.
registo, arquivo e instrumento de planeamento (guia para a intervenção), BS/FP: Livro do Desassossego
ela prolonga ou recupera a contemplação, permitindo ou facilitando ima-
ginar/construir futuros. A fotografia, ao representar a paisagem enquanto Acabo de ler que no dia 25 de Abril p.f. o pároco de Fátima irá celebrar
modelo, constitui um campo aberto não só à leitura e interpretação, como uma missa às escuras dedicada aos invisuais; todos poderão assistir, desde
à intervenção, à imaginação, à manipulação, à (re)criação… que coloquem vendas que serão distribuídas.

Se o objetivo da Geografia é contribuir para o conhecimento do Plane- Olho agora para estas fascinantes 65 fotografias que já me levaram em múl-
ta, não nos pode surpreender que o aparecimento da fotografia no século tiplas viagens (à volta do meu quarto…) e procuro imaginá-las às escuras,
XIX tenha contribuído para novas perspetivas do trabalho dos geógrafos. feitas numa noite de lua nova e com o céu carregado de nuvens baixas, sem
Assim, ao mesmo tempo que as técnicas fotográficas progrediram e se con- luzes.
solidaram, a Geografia progrediu e afirmou-se como domínio científico.
Não admira, pois, que os primeiros laboratórios de Geografia do início do Está tudo naqueles 65 retângulos negros, só falta a luz, mas são 65 paisa-
século XX tenham atribuído um lugar central à fotografia, tanto nos seus gens, para lá da luz. Mas não são paisagens das trevas. E, no entanto, à medida
equipamentos como nas coleções, a par com mapas e atlas, com os quais que aprofundo esta procura das paisagens na escuridão (os deuses vivem da
aliás a imagem fotográfica foi construindo relações e associações originais luz, até ao exagero de serem só luz – só Espírito Santo), navego sobre as águas
e fecundas. Correlativamente, os livros e os artigos das revistas de Geogra- de rios e oceanos, de montanhas velhas da Ibéria ou sobre os jovens sertões
fia passaram a apresentar regularmente ilustrações fotográficas, ao mesmo dos Brasis. Sinto os frios na cara e ouço aves, ventos e pessoas… vozes, canti-
tempo que a fotografia contribuía para o reforço do paradigma paisagístico gas, florestas, vinhedos, ondas, cheiro mais e mais e a cada minuto que passa
da Geografia. A fotografia estava tão fortemente associada ao progresso cresce em mim aquele impulso táctil de que escreveu Y Fu Tuan a propósito
científico da Geografia que o congresso da UGI que teve lugar em Washing- do The Leaping Horse de John Constable, e em relação ao qual Robert Hu-
ton DC, em 1904, aprovou a proposta do geomorfólogo alemão Albrecht ghes foi definitivo: “...this is the landscape of touch.” (Tuan, 1993, 43).
Penck para que se promovesse um levantamento fotográfico da superfície
da Terra, o que viria a originar o Atlas phographique des formes du relief terres- Respiro mais e mais fundo, na busca do fundo daquelas paisagens e sinto a
tre, da autoria de Jean Brunhes, Émile Chaix e Emmanuelle De Martonne, angústia da busca ansiosa de Kazimir Malevich, 18 meses de escuridão ilu-
cujas primeiras lâminas foram apresentadas por De Martonne no X Con- minada até chegar ao quadrado negro (черный квадрат Tchorniquadrat).
gresso Internacional de Geografia, Roma 1913, (Robic,1993).
Volto a respirar bem fundo, e percebo que as funções vitais adquirem a sua
Mais ambicioso seria o banqueiro Albert Khan que em 1909 inicia o pro- plenitude quando se processam ao ar livre, “em plena paisagem”. Comer na
jecto de levantamento fotográfico e cinematográfico, Les Archives de la paisagem é um acto que marca a estética dos séculos XIX e XX – Le déjeuner
Planète, para cuja direcção científica convida, em 1912, o geógrafo Jean sur l´herbe!
136   Fotografia e Paisagem território & imagem    137

A vitória da liberdade, “que c’est bon de se desembêter!”, na expressão quei- os territórios. É fundamental saber incorporar subtilmente as mudanças,
roziana, e a recuperação do gosto simples, da vida saudável, é o contrapon- mantendo ou reforçando os valores de identidade, de memória e de uso”.
to aos miasmas pútridos da cidade. Daí também o fascínio de pintores e de
fotógrafos pela comida na paisagem que nos actos prosaicos e populares dos Estas 65 imagens mostram-nos outras paisagens para lá da fotografia, para
habitantes de Lisboa de 1900 era prática frequente – comer fora de portas lá da luz.
porque as portas davam acesso aos ares puros, à natureza, ao que hoje diría-
mos paisagem, no sentido de campo. Paisagem
Desejei-te pinheiro à beira-mar
É assim que inspirados, por exemplo, no picnic de burguesas do Cesário para fixar o teu perfil exacto.
Verde, podemos encenar sobre a toalha, as paisagens de diferentes latitu-
des. Entre nós os mais comuns podem resumir-se na memória literária de Desejei-te encerrada num retrato
Orlando Ribeiro: as paisagens mediterrâneas e as paisagens atlânticas, que para poder-te contemplar.
poderão ser mescladas com uma paisagem ibérica, onde as cecinas e os que-
sos assumem o essencial da paisagem da meseta, podendo mesmo convocar Desejei que tu fosses sombra e folhas
as dimensões gustativas do Quijote e esconjurar a hambre do Lazarillo. Com no limite sereno dessa praia.
luz, espanto, serenidade e grandeza.
E desejei: «Que nada me distraia
Dia a dia recebemos testemunhos, também através das leituras fotográficas, dos horizontes que tu olhas!»
das contradições resultantes dos movimentos que se operam nas infinitas
dimensões do Planeta, que por um lado se encolhe e achata e, por outro, Mas frágil e humano grão de areia
nos mostra o crescendo explosivo das rugosidades da paisagem. não me detive à tua sombra esguia.

E aquelas ovelhas, exibindo a pele da sua pele, paisagens mutantes, paisa- (Insatisfeito, um corpo rodopia
gens do corpo, que virão a transmutar-se em pele de outros corpos. Lem- na solidão que te rodeia.)
bro-me de David Mourão Ferreira “Quem foi que à tua pele conferiu esse papel
de mais que tua pele ser pele da minha pele”. David Mourão-Ferreira, in “A Secreta Viagem”

De facto, não podemos deixar de ter presente, entre outros, dois factos que
colocam limites à capacidade de a fotografia captar as paisagens. Por um
lado, a paisagem é a síntese de um lugar, de um território, de uma região,
mas é uma síntese modelizada (simplificada). Vidal de La Blache escreveu
que a construção mental da paisagem é o resultado da memória, é aquilo Referências:
que fica...; por outro lado, como se sublinhou nos trabalhos conducentes
ao PNPOT (Programa Nacional de Políticas de Ordenamento do Território):

“É ainda necessário ter presente que a paisagem, enquanto valor cultural Gaspar, J. (2001) “O Retorno da Paisagem à Geografia – apontamentos
e societal, constitui uma realidade dinâmica. Por essa razão, a paisagem místicos” in Finisterra, XXXVI, 72, pp.83-99.
não é passível de tipificações datadas nem de processos de cristalização: os Nakamura, Y., Frieling, D., Hunt, J. D. (1993) Trois Regards sur le Paysage
usos alteram-se, assim como as relações dos habitantes e dos visitantes com Français, Seyssel, Champ Vallon
138   Fotografia e Paisagem

Robic, Marie Claire (1993) «La Géographie dans le mouvement scienti-


fique» in Jean Brunhes – autour du monde: regards d´un géographie/regards
de la Géographie, Paris, Musée Albert Khan.
19. OS transpOR-
Tuan, Y-F (1993) Passing, Strange and Wonderful – aesthetics, nature and cul-
ture, Washington, D.C., Islands Press. TADORES
Unamuno, M. (1907) Por Tierras de Portugal y de España, 5ª. ed., Espasa-
Calpe, 1960. DE MEMÓRIAS*

O
s imigrantes transportam consigo as suas memórias, os seus valores,
a sua cultura e, se nos meios de destino têm oportunidade, procu-
ram restaurar aí, até ao limite do possibilitado, as práticas materiais
e imateriais inerentes.

As cidades constituem os destinos privilegiados da larguíssima maioria das


populações migratórias e, por isso, encontramos aí as marcas mais conspí-
cuas daquelas culturas: no vestuário, nas práticas alimentares, nos usos dos
tempos livres, nos consumos…

Para os imigrantes oriundos dos campos há necessidade de aquisição dos


códigos da vida urbana, o que passa frequentemente pela anulação/submis-
são das suas práticas culturais.

As exsurgências da metrópole

Quantas entradas para o mundo a partir de tantas marginalidades contidas


nas encostas deste vale!... Então poderemos falar, aqui, de vazios? Vazios
urbanos?

Estas imagens, da singularidade da cultura cabo-verdiana a brotar nos in-


terstícios da metrópole, encontram homólogas por todos os continentes,

*in texto inédito, apresentado num projeto fotográfico de Rodrigo Bettencourt da Câmara, 2014.
140    os transportadores de memórias

onde a urbanização gera sombras que favorecem surpreendentes exsurgên-


cias culturais. 20. BREVE ROTEIRO
Que farei com estas canas?
DE MEMÓRIAS
Gentes do mundo que os portugueses ajudaram a construir trazem de volta
a memória das memórias primordiais da colonização: a cana-de-açúcar que
também ajudou a promover o conhecimento vivido do Atlântico e das suas
E VIVÊNCIAS.
margens; o açúcar gerador de modelos – tráfico triangular, ciclos…

Olhando agora estas gentes e estas canas poderíamos perguntar se não es-
CONTEXTOS,
tamos perante o fim do ciclo dos ciclos. Que farão eles com estas canas?
MORAIS,
PASSADO E
FUTURO*

A
gradeço ao Dr. Rui Jacinto por se ter lembrado do meu recôndi-
to espólio fotográfico, resultado da aprendizagem da Geografia na
Licenciatura da Faculdade de Letras, onde o exemplo e os ensina-
mentos de Orlando Ribeiro e seus discípulos nos apontavam a fotografia
enquanto ferramenta indispensável à atividade do geógrafo. A fotografia
é assim entendida no triângulo notas do caderno de campo – esboço gráfico/
cartográfico – fotografia. A facilidade de disparo leva sempre ao excesso e
consequentemente à necessidade de cuidadosa avaliação e seleção, práticas
que no processo de produção do geógrafo vão sendo adiadas, pelo que se

*in Iberografias – revista de estudos ibéricos, n.º 12, ano XII, Centro de Estudos Ibéricos, Guarda,
2016, pp. 203-217. Com separata.
142   Breve roteiro de memórias e vivências território & imagem    143

amontoam as fotografias – em rolos, em caixas de slides, em discos da Ma- 2. Imilchil – 1966


vika, em discos externos de n gigabytes e, por último, nas nuvens que nos
são disponibilizadas pelos grandes operadores globais.

Por isto, o simpático convite do Rui levou-me à mais infrutífera das esca-
vações. Então, fiz ao contrário, escolhi os temas e fui buscar uma ou outra
foto que se adequava. Enfim, foi o que se pode arranjar e assim cheguei a
este breve roteiro de memórias e vivências, no sentido com que Ortega y
Gassett cunhou o termo.

Como disse, parti da memória para a fotografia, embora algumas vezes te-
nha sido obrigado a fazer o percurso inverso, pois a fotografia é também
um estimulador de memórias. Mais, a fotografia inquieta, acorda o esqueci-
mento. E aí a ação começa a ser interessante, interessante e perigosa.

1. O Vale do Draa – 1965

Naquele tempo Imilchil, no Alto Atlas, não era o cartaz turístico dos nossos
dias, mesmo o acesso automóvel era difícil. A chegada foi surpreendente
– o azul do céu e das lagoas, no meio do silêncio envolvente, são imagens
guardadas na memória da nossa imaginação e que então, como hoje, reme-
Volvidos mais de 50 anos após a primeira visita, a memória deste percurso tem para o que idealizamos como um “teto do Mundo”. Mas a grande sur-
de Ouarzazate a Zagora permanece como uma das mais fortes impressões presa aconteceu quando contatámos as gentes e em particular as crianças,
na minha vida de geógrafo. Aí encontrei, então, explicações para muitas e olhámos as cabeças rapadas e as longas e perfeitas tranças, um dos sinais
perguntas, tanto da Geografia Física como da Geografia Humana, mas, so- da identidade cultural dos Aït Yaazza.
bretudo, pude confirmar o fascínio da e pela Geografia.
144   Breve roteiro de memórias e vivências território & imagem    145

3. Lund, promotionen na Universidade de Lund – 1967 bastides”! Depois li Lacarra e Torres Balbas, visitei o Sudoeste da França e
encontrei várias bastides que mantinham a designação… e também Puente
La Reina. Percebi então o que aconteceu em Portugal nos séculos XIII e
XIV e essa explicação seria confirmada em Fernão Lopes…
Sobre isto publiquei um artigo em 1969, entretanto, Luísa Trindade, na sua
dissertação de doutoramento, fez referência a um esquecimento de duas
décadas...

5. O Tejo e os seus portos fluviais – 1970

É o momento alto do ano académico na Universidade de Lund e realiza-se


desde 1670. Tem lugar na última 6ª feira do mês de maio que, em 1967,
calhou no dia 26.
É uma cerimónia plena de tradição e de festa, e a primeira impressão que
guardo na memória é a profusão no uso de raminhos de loureiro… para os
laureados…

4. Monsaraz – 1967

Este foi o título de um artigo que se publicou antes do tempo, por oportuna
falta de material, para a Revista Finisterra. Este proto-ensaio, originaria a
mais repetida e consagrada viagem de estudo/excursão com os alunos do
1º ano.
Replicou-se uma vez, com o Centro Nacional de Cultura. Foi a grande
aventura – DE LISBOA AO ESCAROUPIM – em estilo de expedição,
subir o Tejo com a maré numa Lancha de Desembarque Media (LDM) que
tinha feito as campanhas da Guiné. Acampamento e caldeirada no areal da
margem esquerda do Tejo, peixe apanhado pelos avieiros no mesmo dia…
foi pelos feriados de junho de 1981, dias memoráveis em que os termóme-
tros atingiram temperaturas superiores a 40 graus.

Foi aqui, olhando a planta de Monsaraz, já lidos Mumford, Gutkind e ou-


tros, que disse para Orlando Ribeiro, “mas isto foi planeado, recorda as
146   Breve roteiro de memórias e vivências território & imagem    147

6. Porto Santo, com alunos do Centro de Apoio do Funchal Ainda assim continuavam a lutar e foi histórica a manifestação de 3 de
– 1980 setembro no Luna Park.

8. O Delta do Rio das Pérolas – 1983

O início da aventura atlântica da parceria luso-italiana. Em cada canto,


em cada curva há um motivo de reflexão, que nem o implante aeroportuá-
rio destruiu completamente. Nos limites da sustentabilidade ambiental e
económica, a História mostra-nos como se vão refazendo as estruturas de
oportunidades.

7. Buenos Aires 1982

Desde as leituras da obra de Pierre Gourou na licenciatura em Geografia,


que sabia da riqueza e da multidimensionalidade da vida nos deltas dos
grandes rios asiáticos. Mas nada como a aprendizagem vivida através do
trabalho de campo, o que me foi possível levar a cabo ao longo de quase
duas décadas... Depois aprofundei conhecimentos e acompanhei os pro-
gressos, pelos livros, pelo cinema e, mais recentemente, pela internet – o
Em 1982 a Argentina, já sem Videla, continuava em ditadura e vivia a delta do Rio das Pérolas transformou-se na maior megapolis do Mundo, um
ressaca da derrota das Malvinas: economicamente no fundo, demografica- poderoso triângulo inovador à escala global. Policêntrico – na distribuição
mente depauperada, social e culturalmente empobrecida e amachucada. da população, nas especializações funcionais, na distribuição das infraestru-
148   Breve roteiro de memórias e vivências território & imagem    149

turas de transporte, na criatividade das artes e das tecnologias, na eferves- quentava este hotel; e apesar da floresta de betão, no Rafles continuava-se
cência dos saberes e das experiências. a adormecer e a acordar ao som dos passarinhos no pátio/gaiola.

9. Bombaim – 1983 11. Palestina – (Israel) Regadio no West Bank – 1985

As grandes metrópoles mundiais sempre me fascinaram, de São Paulo a Naquela manhã de junho de 1967 o meu amigo Anders tocou-me à porta
Tóquio, de Nova Iorque a Hong Kong, de Los Angeles a Buenos Aires… para ser confortado – estava aterrorizado com as perspetivas para Israel,
Bombaim ainda mais. Sendo uma cidade de fundação tardia (seculo XVI), daquela guerra que estourara há poucas horas. Disse-lhe para ter calma,
tornou-se uma encruzilhada de culturas, plataforma ativa de povos oriun- que Israel iria vencer. Nem eu imaginava que fosse tão rápida, tão intensa
dos de outros tempos, onde se conjugam tradição e inovação. A porta de e duradoura a vitória israelita. Depois visitei Israel várias vezes, fiz amigos
entrada na India é também uma porta de entrada para o Mundo. israelitas e palestinianos. As dúvidas e as dores cresceram e não se vê uma
saída. Entre outras, a água é uma questão maior…
10. Em Singapura, o Rafles – 1984/1988
12. Setúbal – 1986

A pluralidade cultural valoriza as diferenças. Até os britânicos aqui foram


diferentes – é talvez a herança de Somerset Maugham que também fre-
150   Breve roteiro de memórias e vivências território & imagem    151

A Península de Setúbal esteve sempre presente nos meus interesses pro- 14. As Torres Gémeas – 1991
fissionais ao longo de meio século de atividade. O estudo preparatório da
Operação Integrada de Desenvolvimento (1986-1987) foi um tempo de
entusiasmo e de esperanças, em certa medida concretizadas.

13. Umeå – 1988

O fascínio da grande metrópole e a intensidade da paisagem urbana. Esta


fotografia foi feita no contexto de uma excelente visita de estudo organi-
Em 1988 passei um semestre na Universidade de Umeå como professor vi- zada pela FLAD e dedicada aos temas do planeamento, ordenamento e
sitante convidado, múltiplas experiências, acumulação de aprendizagens – gestão do território.
habitar uma casa histórica no museu ao ar livre, conviver com um conjunto
de colegas tão diferentes e tão amigáveis, conhecer uma cidade do grande 15. Barreiro, cidade e sítio – 1993
Norte, cosmopolita e animada – ópera, museus, dança, bibliotecas… e um
dia, no Carnaval, as escolas de samba saíram à rua. Passados 28 anos, ao ver
um programa da TV angolana, perguntei-me, será que Umeå já terá escolas
de kuduro? E tem!!

O sítio corresponde a uma das mais belas frentes de água de Portugal, um


areal entre dois esteiros do Tejo, onde ao longo de séculos a ação dos huma-
152   As oliveiras – uma perspetiva geográfica e sentimental território & imagem    153

nos aproveitou vantagens, gerou riqueza, atraiu gentes – muitas e variadas Desde a Idade Média que Lisboa se aproxima de Barcelona, pela navegação,
gentes. Terra de utopias recorrentes, de lutas, de esperanças. Terra de cida- pelas alianças, pelas trocas, pelas afinidades e pelas diferenças. Também o
dãos, uma cidade difícil de formalizar, uma cidade do futuro – as cidades, mesmo acontece entre geógrafos e cartógrafos. Com Horácio Capel tive a
como a natureza, têm uma grande capacidade de se regenerarem. felicidade de um continuado convívio científico e pessoal que muito ajudou
ao aprofundamento das nossas formas de fazer Geografia. A reabilitação
urbana tem sido o tema de uma longa charla que prossegue, em Lisboa, em
16. Macau – 1995 O fecho da Baía da Praia Grande
Barcelona e no resto do Mundo. O Bairro do Raval não só é um ícone das
experiências de reabilitação urbana, uma quase utopia, como um local de
trabalho de alguns jovens artistas portugueses que conheci e apreciei.

18. Mansão Somoza na costa do Pacífico / Ruínas da Cate-


dral de Manágua – 1997

Ao longo de duas décadas, quase sempre por convite de Manuel Vicen-


te, trabalhei em vários projetos para este território, que em 1980 tinha
16km2 e em 2000 já chegava aos 25 e hoje já passa dos 30km2. Aí ex-
perienciei a contínua tensão entre passado, presente e futuro, no trabalho
de geógrafo.

17. Barcelona, Raval – 1996 A libertação dos opressores e a construção de identidades são as linhas do-
minantes das visões e das políticas dos países da América Central. A Nica-
rágua, causticada e empobrecida pela ditadura do clã Somoza, cuja casa de
férias, na costa do Pacífico, foi adaptada a resort e centro de conferências,
mantém, ao mesmo tempo, na capital, o convívio com Carlos Mejia Godoy,
na casa-retiro-café da família. Na Catedral, recorda-se o anátema dos sis-
mos (1931 e 1972) e veneram-se as ruínas de betão (1928-1938). Hoje há
uma catedral nova (1993), moderna, e restaurou-se (2014) a do século XX.
154   Breve roteiro de memórias e vivências território & imagem    155

19. Varsóvia, Telepizza e Orangerie – 2004 20. Toronto, Dominion Centre – 2005

Uma intervenção magistral no centro da grande metrópole Canadiana – a


articulação de várias escalas, do nacional ao local, a qualidade do desenho
urbano e da arquitetura, a adequação às condições climatéricas, a funcio-
nalidade urbana, o proporcionar bem-estar e condições para promover a
produtividade.

21. Crystal Cathedral, Orange County – 2005

Da necessidade de olhar o chão ou o chão também é paisagem e tem as suas


geografias. Em Varsóvia, por umas horas liberto das reuniões de trabalho do
projeto ESPON dedicado ao “alargamento a Leste”, que reunia cientistas
europeus, de entre os quais destaco o querido Peter Hall, fui em demanda
das Orangeries, a velha (XVIII) e a nova (XIX), tema que me é muito
caro… esta palavra laranja em distintas línguas, no caso vertente a Stara
Pomarańczarnia (Alte Orangerie) e a Nowa Pomarańczarnia (Neue Oran-
gerie)
156   Breve roteiro de memórias e vivências território & imagem    157

A história da Garden Grove Community Church, fundada em 1955, filiada 23. O Cairo – 2010
na Reformed Church in America, epítome dos caminhos fantásticos da Ca-
lifórnia desde os anos 1950 até à atualidade. O último episódio, sequente
à declaração de bancarrota pela Catedral de Cristal, em 2010, levou à sua
aquisição pela Diocese Católica de Orange, em 2013. Após os trabalhos
de adaptação em curso, o templo será aberto ao culto católico romano em
2017, com a nova designação de Christ Cathedral.

22. Valparaíso – 2007

A par de Fez, que visitei várias vezes entre 1965 e 1978, o Cairo oferece im-
pressivas paisagens urbanas, que estimulam a aventura da Geografia. Não
será por acaso que ambas inspiraram Ibn Khaldun, um dos grandes pen-
sadores da Idade Média (Tunis, 1332 - Cairo, 1406), que descreveu essas
paisagens em textos memoráveis.

24. Noruega, Unredal – 2011


Cidade e topónimo que fazem parte do meu imaginário recôndito, situa-se
entre o continente dos lugares imaginados e a lista das cidades vivenciadas,
na companhia de Bartolomeu Cid dos Santos (cf. Gaspar, 2013). E mesmo
depois de visitada e calcorreada continua a pertencer ao território das ima-
ginações.

A descoberta de grandes e deliciosos queijos de cabra. Embora à margem do


eixo Lund-Copenhaga, que marcou a minha formação de geógrafo e de ci-
158   A propósito das expedições de João Paulo Feliciano a Xabregas City

dadão, a Noruega tem estado presente desde a primeira viagem, do extremo


sul ao extremo norte, em 1967. Quantas descobertas, quantas experiências
como geógrafo-docente, conferencista, investigador. E só recentemente
21. AS OLIVEIRAS
descobri a excelência dos queijos de cabra, únicos. Um dos melhores é o de
Unredal – 80 habitantes e 300 cabras. – UMA
25. Chioggia – 2015 PERSPECTIVA
GEOGRÁFICA E
SENTIMENTAL*

“Pois que qual outra entre as árvores frutíferas nestes nossos climas é
mais necessária e útil aos homens que a Oliveira, que dá aquele licor
saboroso, tanto mais saudável, quanto mais simples; que serve de tem-
Desde criança que a paixão pela Geografia foi acompanhada pelo amor ao pero a qualquer comer; que pelo ordinário nos livra das tristes trevas das
cinema e com o tempo as pontes foram sendo lançadas. Io sono Li (Shun Li dilatadas noites, e ainda neste tempo nos põe em estado de trabalhar;
e o Poeta, 2011) é um filme delicioso, que se insere num humanismo glo- que serve a conservar tantos e tantos géneros de alimentos, a preparar
bal, o que aproxima Andrea Segre de Ang Lee. Foi o filme que me levou a as lãs, a fabricar os sabões; e que em tantas ocasiões concorre para nos
Chioggia, uma cidade da Laguna, que se desenvolveu na órbita de Veneza. fazer recuperar a saúde perdida?”
A cidade vale bem a viagem, mas descobrir os ambientes em que decorre o João Antonio Dalla-Bella (1786)
filme aumenta o interesse.

H
á muito que sinto um impulso instintivo para participar na salvação
e dignificação das oliveiras. Por isso em 2007, animado por amigos
e vizinhos de Alvito, promovi a organização, no âmbito dos Estudos
Gerais de Alvito, de um colóquio sobre o azeite e os olivais antigos, com o
fito de cativar a população, e se possível os políticos locais, para a necessi-
dade de ações conducentes à proteção enquanto valioso património cultu-

*in Renée Gagnon, Now and Ever. Oliveiras, Ed. Giefarte, Lisboa, 2017, pp. 48-53.
160   As oliveiras – uma perspetiva geográfica e sentimental território & imagem    161

ral de um conjunto notável de oliveiras milenares que enquadram o edifício As fotografias de Renée Gagnon, para lá do seu valor artístico e poder em-
de uma capela, também milenar, que já foi uma azóia (zaouía), o edifício pático, são lancinantes documentos de resgate de oliveiras. Quando nos
tumular de um homem santo muçulmano: a cristianização não eliminou a concentramos frente a estas imagens, podemos ouvir um choro lento e fino
força da luz, que também pode vir do azeite, e foi reforçada pela chama do que vem do interior destes troncos ainda com vida, mas sentidamente sem
Espírito Santo – que sempre ajudou nas conversões ao Cristianismo. Talvez utilidade, sem perspetivas de virem a ser olhadas com ternura, tocadas e
também por isso a “nova” capela tenha sido dedicada a Santa Luzia. afagadas. Noutros tempos impunham contenção e respeito, faziam parte
das famílias e mesmo quando atingiam o fim da vida eram levadas para os
Foi ainda neste contexto que há dois anos convenci (sem dificuldade) Pau- crematórios dos lares, para as lareiras, e as suas chamas inspiravam afeições,
la Moura Pinheiro a dedicar uma das suas fascinantes visitas guiadas às amor e poesia.
oliveiras milenares de Alvito. Apesar do bom sucesso do programa televi-
sivo, temo que ainda não tenha sido desta vez que se iniciou a salvação do Uma Breve Geografia da Oliveira
vetusto olival alvitense. Todavia, creio que foi por esse caminho que acabei
por chegar a Renée Gagnon, como escrevi, em boa hora. A oliveira é uma das três árvores de fruto com maior antiguidade nas cul-
turas do Mediterrâneo, sendo as outras duas a palmeira e a figueira. A sua
Os poetas, os artistas, as mulheres e os homens de bondade têm, ao longo cultura, com a finalidade do aproveitamento do fruto, a azeitona, para pro-
dos milénios, feito muito pelas árvores. Na nossa cultura a árvore é enca- duzir o azeite ou para o consumo como conserva, remonta há pelo menos
rada a par dos filhos e dos livros como consagração da vida de um crente: 5500 anos, como o documentam achados arqueológicos.
um homem só completa com zelo o seu percurso nesta vida, se conseguir
plantar uma árvore, escrever um livro e ter um filho. Mas também é verda- A sua difusão é feita por dois processos, um natural e outro cultural. O
de que ao longo da marcha da humanidade, os humanos tiveram sempre o primeiro, que levou esta planta ao hemisfério sul, a diversas latitudes e lon-
trágico desígnio de matar os seus filhos, queimar livros – os já publicados e gitudes, é feito pelas aves que transportam as sementes, que em condições
os que ainda não conheciam o prelo – e, continuadamente, destruir árvo- climáticas propícias – afins das que se observam no Mediterrâneo – germi-
res, por vezes, até à extinção das espécies. nam e dão origem à “oliveira brava”, conhecida entre nós por zambujeiro.
O segundo, corresponde ao transporte e cultivo não só da planta como das
Ora a oliveira é, na nossa civilização, a árvore por excelência e neste tempo técnicas que lhe estão associadas para a produção da azeitona e do azeite,
de consumismo sem limites, chegou a vez da venerável árvore ser vítima de implicando práticas diversas, desde a alimentação, ao tratamento dos ali-
estranhas ofensas à sua dignidade que antes nunca fora posta em causa. As mentos e a certas práticas religiosas.
oliveiras antigas, mas que ainda podem originar excelente azeite, já não têm
uso devido ao custo do trabalho com a apanha da azeitona. Dá-se então O foco inicial do cultivo e da difusão da oliveira abrange um território que
uma insólita inversão: enquanto o azeite passa a ser produzido em regi- participa de um dos berços originais da atividade agrícola, o crescente fértil,
me de “jardinagem” com os olivais superintensivos, as velhas senhoras são que se estende da Anatólia Oriental à Mesopotâmia e ao Egipto, abran-
sujeitas a tratos criminosos para irem alindar jardins, públicos e privados, gendo a Síria, o Líbano e a Palestina. Daí, rapidamente terá chegado aos
servindo para as mais ridículas funcionalidades – bonsais, mesas de exterior, territórios da Grécia e por via marítima, muito por ação dos Fenícios, teve
suportes de tampos para apoio à prática do aperitivo al fresco… a primeira vaga de difusão para ocidente: África do Norte, Sicília, Itália,
França e Península Ibérica.
E tudo tem acontecido perante uma enorme passividade. Finalmente che-
gou-nos de Espanha um filme que denuncia este odioso crime ecológico e Embora esta visão seja não só a mais consensual, como a que melhor com-
cultural: El Olivo, realizado por Icíar Bollain e com o aclamado desempe- porta as dimensões natural e cultural do processo de difusão, alguns auto-
nho de Anna Castillo. res fizeram pesquisas que apresentam resultados diversos, nomeadamente
162   As oliveiras – uma perspetiva geográfica e sentimental território & imagem    163

a origem da espécie no foco etíope e o eixo Nilo/Egipto como o primeiro A introdução no Brasil é tardia, apesar de existirem, no Sul, condições cli-
percurso da difusão. (Cf. Bartolini e Petrucelli, 2002. matéricas adequadas. Serão as origens culturais dos imigrantes e as conjun-
turas políticas que levarão à promoção do plantio, só em meados do século
A difusão da oliveira no Mundo está limitada às condições climatéricas, XX, primeiro no Rio Grande do Sul, depois em Santa Catarina, Minas Gerais
mas ao longo de milénios foram os povos que desenvolveram o cultivo e a e São Paulo. Mais recentemente, os novos hábitos alimentares e o contributo
cultura da oliveira e do azeite os promotores dessa difusão. Assim proce- favorável dado pelos avanços da engenharia genética, proporcionaram um
deram os Fenícios, os Gregos e os Cartagineses, ao longo de toda a bacia salto qualitativo e quantitativo no cultivo da oliveira no Brasil.
do Mediterrâneo e no Atlântico pelo menos até à foz do Tejo – é no Baixo
Tejo, perto da confluência com o Trancão, que se encontra uma das mais São também recentes os surtos produtivos na África do Sul, na Austrália e,
antigas oliveiras datadas em Portugal. de certo modo, na Nova Zelândia, que disfrutam de climas do tipo medi-
terrâneo e onde a enraizada cultura vitivinícola proporciona afinidades que
Os romanos foram grandes promotores da produção oleícola através do ajudam à promoção da oliveira e do azeite.
Império, com o reforço do azeite enquanto produto comercial, com múl-
tiplas utilidades. Na Península Ibérica e decerto no território que hoje é Mais recentes são as tendências radicadas nos mercados como resposta a
Portugal, a oliveira terá sido um dos instrumentos da romanização e temos procuras originadas na difusão de comportamentos globais, que levaram à
como hipótese de trabalho que não terá sido despiciendo o papel dos judeus promoção do azeite como a melhor gordura alimentar. Primeiro o Japão e
enquadrando a ocupação romana ao longo de toda a Lusitânia e mesmo a depois a China aderiram a estas tendências e tornaram-se grandes importa-
Norte do Douro, na Galécia. A permanência das palavras azeite e azeito- dores de azeite e, em menor escala, também produtores. A China, um mer-
nas, convergindo com topónimos latinos referentes à romanização, como cado oleícola em crescimento, tem feito grandes investimentos no plantio
por exemplo Alvito, de olivetum, no atual concelho de Barcelos, e patroní- da oliveira e na produção de azeite, podendo vir a ser dentro de alguns anos
micos de origem judaica, são pontos de partida para apoiar aquela hipótese uma potência oleícola.
de trabalho. Assim, a difusão da oliveira a norte do Douro teria tido lugar
ainda antes da chegada dos Suevos. Globalmente podemos afirmar que a geografia da oliveira e do azeite obser-
va um processo de expansão territorial das plantações e de aprofundamento
Herdeira e continuadora do Império Romano, a Igreja (de Roma) vai ser dos usos e consumos. Esse dinamismo verifica-se em todos os continentes,
também responsável pela continuação da difusão da oliveira e pela gene- mas é mais acentuado nalguns países da América do Sul, na Austrália e na
ralização do uso do azeite nas suas diversas valências: alimentação, ilumi- China. Sendo que na Europa, Norte de África e Próximo Oriente, em graus
nação, indústria, práticas religiosas. O valor da oliveira enquanto árvore variados, se observa a substituição dos olivais mais antigos pelos novos hí-
sagrada e do azeite como óleo santo, ajudam na sua difusão e proteção de bridos com modos de produção mais intensivos.
ações maléficas, como poderiam ser as de povos pastores. A oliveira será
assim, no dizer de historiadores como Virgínia Rau, uma das armas da Re- Em Portugal, depois do forte declínio dos olivais e de um grande recuo no
conquista. consumo de azeite – só no período 1957-1979 a área de olival diminuiu cer-
ca de 44% (REIS, 2014) – assistiu-se nas duas últimas décadas ao desenho
Do mesmo modo, os povos ibéricos e em particular os espanhóis levarão a de uma nova geografia da oliveira, com numa forte expansão dos olivais
oliveira para os territórios que ocuparam e onde as condições edafoclimáti- intensivos e superintensivos, com o recurso à irrigação, sendo que a área
cas são adequadas. É assim que a oliveira se cultiva na Argentina a partir de onde o fenómeno é mais evidente corresponde aos perímetros dos regadios
1556 e no Chile e Peru poucos anos depois. No século seguinte é noticiado proporcionados pela Barragem de Alqueva, o que originou uma profunda
o seu cultivo no México e no século XVIII, por ação dos Franciscanos, alteração na paisagem desses espaços do Alentejo.
inicia-se com sucesso a difusão californiana.
164   As oliveiras – uma perspetiva geográfica e sentimental

Embora de forma mais gradual, outras regiões olivícolas do País também


têm prosseguido ações de modernização do olival e da produção de azeite,
no Alto Alentejo, no Ribatejo, na Beira Interior, na Beira Alta, no Douro
22. A PROPÓSITO
e em Trás-os-Montes.
DAS EXPEDIÇÕES
DE JOÃO PAULO
FELICIANO A
XABREGAS CITY*
Referências bibliográficas

Della-Bella, J.A. (1786) Memória sobre a Cultura das Oliveiras em Portugal,


Coimbra.
Giorgio Bartolini and Raffaella Petrucelli (2002) Classification, origin, diffu-
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Gouveia, José (2002) “História da cultura olivícola e oleícola em Portua- 1. DA LISBOA ORIENTAL E DO TEJO
gal”, in Gouveia, J., Saldanha, J., Martins, A. Modesto, M.L., Sobral, V. O

C
Azeite em Portugal, Inapa, 81-130. omo o escreveu Oliveira Martins, “Pelo Tejo o Portugal marítimo
Reis, P. (2014) O Olival em Portugal, dinâmicas, tecnologias e relação com o abraça o Portugal agrícola, fundindo numa as duas fisionomias típi-
desenvolvimento rural. Animar, Lisboa. cas da Nação. Rio acima, o Alentejo de um lado, a Beira do outro,
Ribeiro, O. (1979) “Significado ecológico, expansão e declínio da oliveira por esta forma se comunicam com a população marítima do litoral.” O
em Portugal” in Boletim do Instituto do Azeite e produtos Oleaginosos, VII-2, Tejo, ao longo de séculos, até ao advento do Caminho de Ferro, drenou
Lisboa, 72pp. para o porto de Lisboa uma bacia económica mais ampla que a sua bacia hi-
drográfica em Portugal – produtos da agricultura e pecuária, da mineração
e da transformação de variadas matérias primas (cinzas, carvão, sabões...)
desciam o Tejo por um integrado sistema de transportes - dorso de animal,
carroças, flutuações nos afluentes e a montante no interior de Espanha,
por jangadas e finalmente em barcos de tonelagem crescente à medida que
a foz (e as marés...) estava mais próxima. Sem o Tejo, Lisboa poderia ser um
porto de pesca, eventualmente um porto oceânico, voltado para fora, mas nunca

*in Feliciano, J. P. (autor) Xabregas City, Ed. Sistema Solar, CRL (documenta), Ed. Giefarte, Lisboa,
2017, pp. 48-53.
166   A propósito das expedições de João Paulo Feliciano a Xabregas City território & imagem    167

o polo de comando de um vasto território, o íman que permitiu a configuração do mento linear: em 1611 noticia-se o primeiro serviço de transporte público
estado-nação a que muito cedo correspondeu Portugal. em Lisboa: de barco e no percurso Belém-Xabregas. Em 1880 a cidade
estende-se por vários quilómetros ao longo da praia, de poente a nascen-
Lisboa e o Rio Tejo deram um contributo decisivo para a unidade e para a te, e na sua maior “espessura” termina no que é hoje, mais ou menos, a Rua
individualidade de Portugal: as gentes e as mercadorias descem e sobem o das Pretas.
rio, onde convergem estradas e caminhos, além de outros rios navegáveis;
são assim viabilizados os mercados locais e regionais e definem-se bases A expansão para o hinterland vai apoiar-se em dois eixos principais, que vi-
económicas específicas que assim se afirmam ao longo dos séculos. Estabe- riam a originar a Avenida da Liberdade e a Avenida Rainha Dona Amélia/
lecem-se e fortalecem-se as relações comerciais além da terra, na direção Almirante Reis, que, de certo modo, prolongam para o interior a secular
do Mediterrâneo, do mar do Norte e do Báltico. Pela navegação fluvial dicotomia nascente-poente. Será o urbanismo do Estado Novo, com a ação
difunde-se um urbanismo ribeirinho que ajuda à construção da unidade de Duarte Pacheco, que procurará contrariar essa oposição, com a implan-
cultural da fronteira a Lisboa. tação do Instituto Superior Técnico, a Alameda, o Areeiro, a Praça de
Londres, a Avenida de Roma e Alvalade.
Neste processo está integrada Lisboa, cidade linear, que se prolonga pela
faixa ribeirinha oriental, e os transportes foram sempre marcando os con- Mas a nascente há um processo de sinal contrário, com sucessivas vagas de
teúdos e a forma desse desenvolvimento. industrialização, apoiada no transporte aquático e no caminho de ferro, e a
simultânea desvalorização urbana e o abandono da burguesia. O caminho
O caminho de ferro sobrepõe-se ao rio e vai competir com o transporte de ferro vai desenhar e determinar o futuro do território com variadas ins-
fluvial, conquistando as suas clientelas – no Entroncamento e nas envol- talações de interface caminho de ferro/água, com a atração de indústrias e
ventes de Vila Nova da Barquinha e de Atalaia, a competição é mais acesa de armazéns, mas também com a desqualificação da qualidade ambiental…
e a companhia de caminhos de ferro vai ao ponto de comprar barcos (que em consequência, pouco a pouco, vai-se perdendo a dimensão aristocráti-
inutiliza) e empregar os barqueiros para eliminar a concorrência. ca – os palácios e palacetes degradam-se, dando lugar a conglomerados de
habitação coletiva, misturada com armazéns lojas e oficinas, quando não a
Desde muito cedo que se desenhou uma oposição entre uma Lisboa a poen- antecâmaras de bairros de lata como no caso do Bairro Chinês.
te e uma Lisboa a nascente. Já o crescimento arrabaldino dos muçulmanos
definiu uma Alfama piscatória e garimpeira (Adiça) a leste e um arrabalde Num inquérito que levámos a cabo nos liceus de Lisboa nos anos 1970, era
mais comercial e de artesãos a poente. patente a oposição nascente-poente, e nos mapas mentais dos alunos inqui-
ridos a Avenida Almirante Reis funcionava como uma barreira, constituin-
A partir do período muçulmano o arrabalde ocidental vai adquirir mais do o território a nascente um enorme vazio, com ausência de informação
importância económica e social, o que se acentua com Afonso III que va- – topográfica e funcional.
loriza a Rua dos Mercadores e desloca o mercado das terças-feiras da porta
da Alcáçova (atual Chão da Feira) para o Rossio. Dom Dinis continua a Nos anos 1940 chegaram as ideias e os projetos do planeamento contempo-
orientação do pai, construindo a muralha da Ribeira e promovendo a aber- râneo, que continuavam a entregar a Lisboa Oriental ao trabalho – indús-
tura da que será a grande rua de Lisboa até 1755, a Rua Nova (dos Ferros), tria, logística, habitação.
paralela à linha da praia.
Começaram pela faixa ribeirinha, onde a cidade neotécnica se sobrepôs aos
A expansão urbana dos séculos XV e XVI tem maior expressão a poente, farrapos moribundos da frágil cidade paleotécnica. Os novos aterros para
tendência que se mantém nos séculos seguintes. Mas o aspeto mais rele- as novas indústrias permitiram a recuperação do eixo linear que percorre a
vante na forma que a cidade adquire até ao século XIX é o seu desenvolvi- cidade de poente a nascente, de Algés a Cabo Ruivo.
168   A propósito das expedições de João Paulo Feliciano a Xabregas City território & imagem    169

No hinterland, onde o município fez grandes aquisições de solo rústico para nem industrial ou pós-industrial. Será protoneourbana? Necessariamente pós-
urbanizar, tiveram lugar sucessivas experiências urbanísticas, enquanto -urbana, mas que não se pode considerar anurbana, pois tem, em amostras
ecos dos vários paradigmas que se impuseram na Europa ao longo do sé- muito fragmentadas, todos os caminhos que podem levar à urbanidade.
culo XX, da cidade jardim ao funcionalismo e ao retomar da cidade linear É uma paisagem que permite, e até exige, uma variedade de chaves para
na segunda metade do século; havendo ainda oportunidade para algumas a sua leitura e descoberta. Desde logo impõe-se a abordagem cinemato-
experiências de cariz assistencial e terceiro-mundista. gráfica, como é ilustrado com exemplaridade pelas fotografias de João
Paulo Feliciano. As deambulações por estes territórios de desesperos, de
Do mesmo modo sucederam-se as experiências de arquiteturas que propor- múltiplas espacialidades, levam-nos ao neorrealismo italiano, mas tam-
cionaram, no bom tempo, alguma discussão em torno dos múltiplos pro- bém aos cenários derivados da pulp fiction, de tal forma que por vezes
blemas que se colocam face à carência de alojamento para as classes mais temos a sensação de visitar os depósitos dos grandes estúdios de cinema
desfavorecidas. em Hollywood. De resto, a leitura pode ser orientada para a procura de
cenários para filmes vários: das utopias às distopias, da nova urbe à cidade
Como resultado destes processos espaciotemporais, com diversos enqua- da ferrugem.
dramentos económicos e sociais, o território de Lisboa Oriental oferece,
em cada travessia que se faça, verdadeiras inversões estratigráficas, caval- Fugitivos e Criativos
gamentos dos usos do solo e permanentes conflitos.
Esta poderia ser uma das entradas para este foto-território, um espaço re-
1. AS IMAGENS DE UMA LEITURA construído a partir da camara fotográfica. Amiúde encontramos as marcas
dos que foram empurrados, escorraçados doutros territórios e encontraram
O inquérito-expedição levado a cabo por João Paulo Feliciano na Lisboa aqui refúgio, numa região de transição, em trânsito não se sabe para onde
Oriental e que está sintetizado neste conjunto de fotografias abre-nos múl- nem para quê, aproximando-se de outras plataformas transitórias; como
tiplas janelas para aquele espaço fascinante, encriptado nas suas complexas nas centrais rodoviárias ou nas estações ferroviárias, aguarda-se um veícu-
geometrias. lo para algures, para um futuro, mas onde muitas vezes se acaba por ficar
reconstruindo o seu próprio espaço, que assim vai ganhando lugaridade.
É um fim na medida em que é uma síntese, uma visão poética, domínio da
abordagem artística, mas é também um princípio (vários princípios) para São também frequentes os sinais da criatividade de outros transitários lan-
novas viagens, pesquisas, reconstruções de modelos. çados na busca de um futuro que sentem embebido neste solo que por vezes
cheira à terra prometida, mais uma Nova Califórnia.
Consequência do ecossistema, da paisagem com luz e do olhar, nestas foto-
grafias de João Paulo Feliciano sente-se uma serenidade oriental, que nos Que farei eu com estas imagens?
transporta para lá das cores e das formas. São patentes as narrativas poéti-
cas, que não só proporcionam leituras, como experiências. São fotografias Tanta coisa! Desde logo um fantástico Atlas de apoio aos estudos urbanos,
para serem visitadas e viajadas. na sua riqueza multidisciplinar. Pois aqui está quase tudo: o antes e o de-
pois, o passado e o futuro da cidade e das gentes. Manual enciclopédico
Através deste aturado mapeamento é possível percorrer um extenso e sinuo- que explica e demonstra a flora, a natureza, as edificações, os sagrados e
so percurso histórico que conduziu os espaços da Lisboa Oriental a situações os profanos, as cores – coradas e descoradas, as tecnologias, a indústria
contrastantes: repositório de arcaísmos, emergência de novidades, promessa de e a agricultura, os trabalhos e os lazeres, incluindo o trabalho do lazer. A
inovações. Tudo configurando uma paisagem atípica que não é possível incluir hidráulica e a vinícola, as navegações e os transportes terrestres, a guerra e
em qualquer categoria das classificações disponíveis: nem rural, nem urbana, a paz, os sonhos e os pesadelos:
170   A propósito das expedições de João Paulo Feliciano a Xabregas City território & imagem    171

“Débora ama Zé Manel”, “puta deixa Meu Marido”. e sempre à produção de vinho do termo, precedido no calendário pela
água-pé.
“Até me custa dizer, quando aqui cheguei, saí em Braço de Prata. Ao ver a
barraquita que ele tinha, encostei-me às tábuas e pensei: ‘Para onde eu vim. Este povoamento formado por quintas, de espaços murados, fechados por
Deixei uma casa tão boa, em pedra, para vir para aqui.’ Então, chorei, chorei, portões imponentes, era servido por uma rede de vias, em geral calçadas
chorei...” com pedra basáltica em que predominava a designação muçulmana de azi-
http://rr.sapo.pt/especial/48500/marvila_o_lado_invisivel_de_lisboa nhaga, e comandavam as estradas, que, frequentemente, quando entravam
nos povoados, passavam a ser designadas por Rua Direita (Rua Direita de
Um tal Atlas tem de servir para muita coisa; guia orientador e arca salva- Marvila, Rua Direita dos Olivais…).
dora, onde se vai sempre procurar um azimute, uma explicação, o missing
link. Daqui poderão partir novos caminhos, daqui poderão nascer novos Ora este sistema começou a ser corroído a partir de fora com o caminho de
itinerários. ferro e a correlativa industrialização: por um lado, as externalidades físicas
(fumos, cheiros, lixos) que degradam o ambiente, por outro lado, a pressão
1. VINHETAS da procura de alojamento barato para os operários que afluíam do Portu-
gal Rural e que se adaptavam facilmente às condições rústicas que essas
Hortas e quintas quintas podiam oferecer pela adaptação de estábulos e de celeiros, ou de
outros anexos da residência principal que, muitas vezes, com o declínio da
A proximidade da cidade – o mercado, a estrutura geológica, a existência agricultura e a desvalorização da quinta como espaço da burguesia urbana,
de um aquífero interessante para a abertura de poços que se revelaram mui- também eram adaptados a alojamento coletivo, na sequência, já no século
to produtivos – facilitou a produção hortícola, e daí as notícias de almui- XX, do incremento da imigração dos campos, também o espaço agricultado
nhas desde a Idade Média, cuja produção podia chegar à cidade, ao Cais da será ocupado por bairros de lata, bairros de lata que em muitos casos são de-
Ribeira ou a outro, por transporte fluvial. signados pelo nomes das quintas: Quinta do Marquês de Abrantes, Quinta
dos Alfinetes, Quinta…
Assim, os múltiplos vestígios arqueológicos das hortas que foram a base
das quintas que precederam os grandes projetos urbanísticos de Chelas e Deste povoamento multifacetado das quintas restam inúmeros vestígios,
de Olivais Sul, entroncam nesses antepassados, nas almuinhas que pelo desintegrados, formando uma autêntica dispersão arqueológica, com gran-
Vale de Chelas desciam até Xabregas, e de que as atuais hortas urbanas e de número de depósitos de superfície onde é muito difícil desenhar uma
hortas sociais não conseguem recuperar a memória, nem topográfica nem estratigrafia aceitável. Além de escavações são necessárias análises atura-
funcional. das através dos muros das quintas, para encontrar cacos e muitos outros
restos de cerâmicas, fósseis de diferentes andares e eras, cantarias, ladrilhos,
A quinta é uma forma de ocupação do território típica do habitat periur- azulejos e rebocos. Depois há ainda a arqueologia viva, o que resta de uma
bano, que em Lisboa tem um desenvolvimento que remonta ao período agricultura minuciosa e sábia que remonta aos romanos e é enriquecida no
da colonização romana e que observou os períodos de maior expansão do período muçulmano, que deixou vasta terminologia neste sistema que ain-
século XVI ao século XIX. da perdura: noras, azinhagas, almácegas, alfobres, alcatruzes, alfenim…mas
só subindo a um alto ou trepando a um muro nos apercebemos do legado
As quintas eram espaços de prolongamento da cidade, de refúgio dos agrícola que perdura ativo, aqui e além enriquecido por novos contributos
malefícios urbanos (da peste à tuberculose), de vilegiatura, mas também em que avultam os oriundos de Cabo Verde, com maior saliência para as
de produção agrícola e pecuária: do regular abastecimento diário (dos canas açucaradas, matéria prima para o grogue que vão produzir algures.
produtos hortícolas ao leite) a alguma produção de azeite e de cereal Hortas urbanas, hortas clandestinas, hortas da saudade e hortas da neces-
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sidade, onde ainda se escondem os genes desta história agrária milenar que turas, como os muros, as calçadas, as infraestruturas hidráulicas – poços,
nasceu e se mantém na sombra da cidade. noras, fontes, aquedutos, chafarizes, lavadouros, tanques, almácegas.

Arqueologia silvícola Do mesmo modo, há um rico património, que pode passar despercebido, de
habitação operária, nalgumas tipologias bem representadas e que ainda per-
Os olivais, que ocupam uma posição central na toponímia da Lisboa Orien- sistem: vilas (ilhas), prédios de habitação coletiva, correntezas que marcam
tal, ainda são hoje uma presença constante ao longo de todo o território, as penetrações do urbano pelo espaço rural.
apesar da rasoira que constitui o processo de ocupação por rodovias e habi-
tação social ao longo das últimas seis décadas.
As oliveiras, que têm aqui seguramente direitos de antiguidade que podem Os ciclos urbanos e a reutilização de espaços
muito bem remontar há dois milénios, trazidas e plantadas ou tão só enxer- e de infraestruturas
tadas por gentes da Grécia ou da Fenícia, resistem encostadas aos muros
das antigas quintas, no meio dos vazios, que além do mais são também A adaptação da infraestrutura a diferentes usos de acordo com os ciclos
formas de resistência do solo, da memória da paisagem e da biodiversida- económicos é uma constante na relação entre os humanos e os territórios.
de. Resistem na natural degenerescência em zambujeiros, refugiadas em Este dinamismo é particularmente ativo na cidade e na sua envolvente
encostas e valados. E, absurdo dos absurdos, encontram-se ainda como imediata.
abrilhantamento paisagístico, transplantadas do Alqueva, em recantos do
chamado espaço público. Tais processos têm mais continuidade e prevalência no tempo se não se
verificarem alterações de grande escala no uso do solo. A Lisboa Oriental
Também perdidas, sem reconhecimento do lugar a que pertenceram, ou- oferece um rico portfólio destas dinâmicas e situações contrastantes.
tras árvores, correlativas do antigo povoamento das quintas, aguardam um
olhar responsável que as aproxime, que lhes confira um papel nas novas As “contaminações” e os conflitos de usos e de procuras diversas caracte-
paisagens em configuração. São palmeiras, as que resistem à mais recente rizam o processo urbano-territorial desde o século XIX e chegam até nós.
moléstia; são os raríssimos ulmeiros, típicos da Lisboa rústica de outros tem- Os grandes “cortes”, com a rápida fixação de um novo paradigma de uso
pos, até que uma doença fatal os dizimou sem que ninguém os protegesse; do solo ocorrem a partir dos anos 1950 com os superprojectos urbanísticos
são os freixos, as araucárias, os choupos, os ciprestes, todos constituintes da de Olivais-Sul e de Chelas e, no final do século XX, com a Expo 98/Parque
memória desta Lisboa, que prefere(?) as plantas que os hortos lhe fornecem das Nações.
em cada momento, desde que cresçam depressa.
Mas enquanto no segundo caso há uma limpeza radical do “passivo”, esque-
Património – abandono e esquecimento cendo-se para sempre o vazadouro, o ferro velho, a ferrugem, o alojamento
degradado e temporário, os fumos e outros miasmas, nos novos bairros a
A Lisboa Oriental, como é patente em vários levantamentos e estudos pu- gestação foi lenta, foram e vieram gerações de moradores, de diferentes
blicados, oferece um riquíssimo património edificado, com valor histórico matrizes geográficas e sociais, em procuras contrastadas de povoamento,
e cultural relevante. Talvez ainda com maior incidência que em qualquer gerando paisagens desequilibradas, em que os ambientes distópicos ocor-
outra área urbana do País, estão patentes a degradação e o abandono desse rem lado a lado com mostruários de arquitetura contemporânea, por vezes
património. configurando atitudes de experimentalismo.

A situação é particularmente gravosa no edificado do espaço rural, mor- Assim, o “miolo” destes grandes conjuntos residenciais oferece uma enor-
mente nas quintas, mas onde também será necessário reter outras estru- me riqueza sociocultural, resultado das origens diversas e de interessantes
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processos de conflito, aproximação e construção de novas identidades, que casos já obsoleta, estão abertas à reciclagem – para serviços, para habitação,
se refletem numa paisagem que só de longe pode parecer uniforme. para logística ou esperando através da adaptação a oficinas e ateliers de
variadas artes.
Mas a maior diversidade de intervenções socioculturais “espontâneas” Ou as margens entre vivos e mortos, ou sejam os espaços de contacto com
ocorre nas margens, nas superfícies de contactos, nos recantos e retalhos os cemitérios, tão maltratados ou só esquecidos pelos urbanistas, pelos polí-
que as grandes intervenções deixaram e esqueceram e, inclusive, nos es- ticos, pelos cidadãos, e que quando se desqualificam podem gerar refúgios,
paços muito na moda e que simplificadamente se designam como vazios, arcaísmos, repulsa, mas que não são vazios…
mas que encerram realidades distintas ou, por outras palavras, observaram
distintos processos de enchimento. Os vazios

As Margens É na chamada Malha de Chelas, pitoresca designação que radica na urbanís-


tica dos anos 1960, que mais se tem “escavado” na busca e aprofundamento
Temos documentação sobre os encontros gerados nas margens da Lisboa dos vazios urbanos. Além das abordagens sociológicas e antropológicas, são
Oriental, dos imigrantes rurais vindos do Minho, de Trás os Montes, do também interessantes as abordagens experimentadas pelas artes visuais, de
Douro, das Beiras ou do Alentejo, ou do pequeno burguês Artur Corvelo, que o projeto Lisboa – Capital do Nada é talvez o exemplo mais profícuo.
com quem Eça nos retrata tão bem a entrada na Metrópole, até ao pobre
rapaz com saco às costas, que nos anos 30, empurrado pela crise, pela fome, Numa manhã, aí por 1969-1970, andava eu em indagações geográficas e
e sem hipótese de emigrar para o Brasil, vem procurar um conterrâneo que arquitetónicas por Olivais-Sul, quando na orla de um amplo espaço devo-
trabalhava já numa quinta, ali ao lado do Armador, e por isso desceu do luto, que o plano urbanístico indicava como futuro centro de comércio e
comboio correio no apeadeiro de Braço de Prata, para encetar assim o seu serviços, vi chegar um grupo de homens, mulheres e crianças – como num
longo percurso na grande cidade, a partir das margens… começou logo a filme italiano dos anos 40-50, com enxadas, sacos de serapilheira e cestos.
trabalhar numa daquelas quintas que alimentavam Lisboa, talvez na das Pararam, tiraram uns pontos (alinhamentos) e desataram a cavar, cavar
Conchas, o que ajudou ao milagre da integração! e cavar, com vontade, genica e entusiasmo. Elas abriam os sacos de onde
retiravam batatas que recortavam (pelos olhos…) e os troços assim obtidos
Outra imagem, poderosa e bem documentada, é a passagem da cidade moder- iam para os cestos, eram a “semente”.
na, modernista e consolidada, para esse território desconhecido, agro-rural,
no princípio da degeneração, e que viria a ser integrado na “Malha de Che- A meio da tarde começaram a semear (ao rego). Ao por do sol já aquele
las”, o que nos é mostrado no filme “Verdes Anos”. Um espaço em transição vazio estava bonito e produtivo, à espera do comércio e dos serviços que só
que fora umas décadas antes vivido pelos lisboetas da boémia ou constituíra, chegariam umas décadas depois, primeiro com um supermercado – centro
tão só, o passeio domingueiro das famílias – o espaço do ir para fora de portas, comercial e mais tarde com o shopping, agora apoiado no metro.
das tascas e retiros da Azinhaga da Fonte do Louro, do Vale Formoso de Cima
ou, mais longe, dos Olivais… era também o passeio/devaneio de namorados. Uma incubadora – ou viveiro

As margens com os bairros dos anos 30-40 viveram um quarto de século de Neste espaço intricado, com tempos e geografias em cavalgamentos, existe
isolamento, de costas voltadas para o lado de fora, ligados à cidade conso- um sem número de projetos e de ideias que tanto podem estiolar, como po-
lidada pelo cordão umbilical do autocarro da Carris: Praça do Chile – En- derão germinar e ganhar a luz do dia, in loco ou muito longe, tal é a energia
carnação, Praça do Chile – Madre de Deus… daquela geografia relacional: Marvila-Nova Iorque, Braço de Prata-Dubai,
Capitão Leitão-Bogotá, Chelas-Antiguidades-Áfricas-…, Olivais, Londres,
As superfícies de contacto com a indústria moderna, na maior parte dos Poço do Bispo, São Francisco, Dublin, Miami, … o Mundo.
176   A propósito das expedições de João Paulo Feliciano a Xabregas City

É um território fragmentado ou até pulverizado, no espaço e no tempo,


carente de articulações, de relações, de proximidades, de densidade.
Mas ao mesmo tempo um lugar propício ao sonho e nesse sentido mantém-
23. CENAS DE
-se ligado aos tempos da imigração para as fábricas ou tão só para os traba-
lhos da cidade moderna, ou seja, volta a ser terra de promissão. UMA VILA
Oriente oriental ALENTEJANA:
É com o Mar da Palha, atravessado pelo Tejo a caminho do Oceano,
que este território de Lisboa se torna mais oriental. Talvez por isso foi o
derradeiro destino, o último cais, para muitos navegantes dos mares do Sul
AMARELEJA –
e do Oriente.
a urbanidade
da grande
Ao fim da tarde, em todas as estações do ano, iluminado pelo crepúsculo
vespertino, grave e silencioso, o Mar da Palha, pardacento e luminoso, in-
tenso e sonolento, com alguns barcos, mas sem navegação, é um cenário
para os grandes rios orientais – Ganges, Irauadi, Mecão, das Pérolas, Yang-
tzé, Huang Ho… aldeia*

N
o início dos anos 1960, em excursão escolar pela Margem Esquer-
da, aprendi com Orlando Ribeiro que a Amareleja era a maior
aldeia portuguesa, atingindo quase a meia dezena de milhares de
habitantes, mais do que algumas cidades do País. A maior parte da popu-
lação vivia da agricultura, a cujas tarefas dedicava o essencial da sua ativi-
dade; nesse tempo um grande número de casas participava de algum modo
na atividade agrária, inclusivamente tinham um espaço para o animal de
transporte, fosse burro, macho, mula ou cavalo. Note-se que, nos manuais
clássicos de Geografia Humana, estes atributos das habitações da Amare-

*in José Manuel Rodrigues, Amareleja – As Paisagens Rurais, C. M. de Moura, 2017, pp. 29-37.
178   Cenas de uma vila alentejana: Amareleja território & imagem    179

leja correspondiam ao tipo da casa rural. Mas o mestre acrescentava que, AS PAISAGENS DA SOMBRA
não obstante essa dimensão rústica, o número de habitantes era suficiente
para promover um certo número de unidades de comércio e serviços, que Amareleja é terra de sol, abundante, omnipresente, por vezes abrasador.
constituíam um embrião de vida urbana. A primeira consequência do sol é a sombra, que os humanos desde sem-
pre buscam em continuadas rotações e translações de 360º. A esse fado
Volto agora à Amareleja pelo olhar de José Manuel Rodrigues que nos dedicou o antropólogo Francisco Ramos, ilustre filho da terra, um livro de
oferece um compêndio de leituras cativantes e instigantes. Passado mais reflexões sobre Os Proprietários da Sombra (2007).
de meio século tudo parece mudado, mas também tudo parece na mesma,
depende dos olhos, depende das escalas, depende para onde está o Norte, No terreno como nas fotografias de José Manuel Rodrigues, somos con-
depende para onde está o Oriente. vocados para a aprendizagem dos percursos ao longo da linha de sombra.
É assim que descobrimos que há a sombra do dia, projetada pelo sol, e a
Entretanto a Amareleja tem vindo a perder população e no censo de 2011 sombra da noite, puro aconchego, projetada pelas paredes e pelas pedras…
não ia além dos 2564 habitantes, muito envelhecidos, e os que se dedica- quentes… da frescura à quentura.
vam à agropecuária eram uma minoria; todavia, devido ao aumento dos
salários, pensões e de outros rendimentos e às novas políticas públicas de No exercício de José Manuel Rodrigues encontramos fotografias onde se
natureza social, aumentaram os serviços, públicos e privados, mormente sente o calor, do dia e da noite, as noites quentes da Amareleja, lenitivo
nas áreas da saúde e da educação. para mil padecimentos. São essas noites que ao longo dos séculos alimenta-
ram as memórias mais fortes.
A aproximação ao modo de vida urbano deve-se também às grandes alte-
rações nos comportamentos e nos valores de que comparticipa a população Era nessas noites que o cinema ao ar livre atraía pelo tal aconchego e pela
em geral, e que são mais afins dos centos urbanos, pelos novos consumos, frescura, mas também pelos sonhos que as imagens preenchiam. Que sau-
materiais e imateriais, pelo uso do tempo, nos ritmos anual, sazonal, sema- dades do paraíso do nosso cinema ao ar livre, o nosso walk in. A sombra e
nal ou diário. as sombras fantasmáticas.

Assim, a Amareleja continua a ser, não só pela forma, mas também pela AS CASAS E AS GENTES
paisagem e pela memória, uma aldeia, mas plena de urbanidade. Uma al-
deia também pela platitude generalizada, na topografia, no casario, nas me- As casas e os casões: a morada e os haveres – separação funcional, que re-
mórias. Por tradição ou por força da apertada regulação dos comportamen- mete tanto para uma ideia de vida em urbanidade, como para a de acumu-
tos, a distinção não é cultivada. lação, mindinha e ainda assim envergonhada. Percorrendo estas imagens e
tendo-as como guia para as deambulações por ruas e travessas, consolida-se
É muito curioso o conteúdo e original a forma que o pároco de Amareleja a impressão da pobreza, que domina o lugar ao longo dos séculos. Alguma
utilizou para responder ao inquérito das Memórias Paroquiais em 1758: mediania, aqui e além, nas ruas principais, mas não há opulência. Onde
«Nam ha memória que de tal lugar florecesse homem algum em virtude ou le- estão os senhores? Os ricos já não moram aqui. Nem mesmo a Igreja se er-
tras, em armas também nam, ainda que há notícia de ter criado homens munto gue e ostenta para o elogio a Deus; também a sua infraestrutura se encolhe
alentados e animonos (sic), o que ainda hoje en dia se achará por serem robustos, e arruína, apesar de as reparações e as caiações a manterem funcional. O
corpulentos e animozos e nam rombos do intendimento mas nam inclinados às le- maravilhoso é possível no “caio alvinitente” das paredes e dos muros…
tras, por cuja cauza nam mostram suas abellidades, porque para algumas couzas
sam águias mas sem uso.» Tema que mereceria um estudo aprofundado é o das elites locais, o seu
aparecimento em contextos históricos bem definidos, a sua afirmação, con-
180   Cenas de uma vila alentejana: Amareleja território & imagem    181

tinuidade e resolução. Quais as formas de afirmação no território, tanto no A COMIDA: A GRANDE REFERÊNCIA CULTURAL
espaço rústico como no espaço urbano? Com esta abordagem relacionam-
-se aspetos diversos da economia, da organização político-administrativa, Os exercícios e os rituais da vida, da confraternização, o tempo que penetra
das inovações no ensino, saúde pública, artes. nas veias e nas entranhas, o teste permanente da afirmação do estar vivo.
Conversado ou silenciado, o copo é o epicentro da consagração, tudo o
Um aspeto relevante deverá ser o das relações com Espanha, sabendo-se resto são pretextos, acompanhamentos, exercícios inventivos, em que o li-
que daí vieram imigrantes em diferentes momentos e para tarefas tão diver- mite à imaginação está na obrigatoriedade do pão. Tudo o resto vem por
sas como as ceifas, o investimento agrário, o exercício de profissões liberais acréscimo, ritualizado: provar os produtos locais, partilhar os produtos da
como a de médico. Particularmente importante parece ter sido a introdução casa, valorizar a recoleção.
de novos cultivos, como a figueira, a oliveira (variantes), a vinha, o melão.
As imagens e o real interpelam-nos sobre os mistérios que encerra a pala-
TABERNAS, CAFÉS, PASTELARIAS vra petisco; talvez por isso já exista o museu do petisco, onde também se
demonstra a moderna economia circular: valorizando o que ficou, os restos
Mesmo nos nossos dias, com o envelhecimento da população e as grandes são reciclados.
forças da dispersão que são a televisão e a internet, os alentejanos de todas
as idades continuam a dar vida aos tradicionais espaços de convívio. Assim Olhando as imagens da confraternização em torno da comida, da festa que
é, também na Amareleja. Como tudo na vida e sobremaneira no Alentejo a alimentação sempre proporciona, uns dirão que estamos perante uma
os territórios são diferenciados e estratificados socialmente. Apesar da nova demonstração da cultura alentejana, outros alargam a escala, que enqua-
realidade política, que gera outros relacionamentos, continua a ser válida a dram no que há de mais português, mas na realidade estamos aqui perante
observação de cada um no seu lugar. a universalidade da festa do comer e do beber, como tão bem nos ensinou
Ang Lee no seu fantástico Comer, beber, homem, mulher.
Há muitas mudanças em Amareleja, mas uma que me impressionou em
visita recente foi o quase desaparecimento das vendas, das tascas. Em con- TERRA DA VINHA E DO VINHO
trapartida, aumentaram os comércios com a designação de pastelaria, este
é um tema a justificar pesquisa aprofundada. Naturalmente que estas mu- Amareleja participa plenamente do espaço e da cultura do Mediterrâneo e
danças configuram transformações nos comportamentos que, entre outros isto está bem demonstrado na excelência da trilogia clássica: o pão, o vinho
aspetos, implicam alterações nos hábitos da bebida e do convívio e atestam e o azeite. As condições naturais e as vicissitudes da História fizeram do vi-
os progressos da presença da mulher no espaço público e na vida social da nho a referência maior no exterior e no seio da comunidade, com presença
comunidade. Estas observações trouxeram-me à ideia um estudo que há 40 necessária nos trabalhos mais duros, nas festas dos calendários dos anos e
anos levei a cabo na Madeira, em que verifiquei a existência de um número das vidas e sobremaneira nos convívios dos dias.
muito elevado de pastelarias, embora na maior parte não se vendessem pas-
téis ou bolos, nem servissem chá ou café! Creio que este uso tão frequente As vinhas e as cepas são belas como em todo o Mundo, os cachos estão
da designação pastelaria é mais uma influência italiana na Madeira, já que cheios e lustrosos, da casta moreto (que nome mais apropriado!) por isso
observei que em Itália são muito abundantes as pasticcerie, frequentemente não só a videira, mas também o próprio nome, se adaptou tão bem ao chão
associadas a bar e a café. Não creio que a hipótese tenha a mesma consis- da Amareleja.
tência em Amareleja, mas fica a nota.
Imagino as viagens das cepas, os percursos das uvas através dos ciclos eco-
Além de territórios de encontro e convívio, estes espaços continuam a afir- nómicos e da fuga às moléstias: Amareleja, a Margem Esquerda como refú-
mar-se enquanto repositórios da cultura e do tempo.
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gio da filoxera? A Geologia e a Petrologia, através das carapaças calcárias e o Mundo. Ao olhar estas gentes na sua diversidade que converge na sólida
do Miocénico, contribuem para um aprofundamento da mediterraneidade. construção da Comunidade, interrogo-me como foi possível neste recanto
encostado à fronteira construir uma síntese das singularidades portuguesas,
A memória do Mediterrâneo, que se mantém desde a Antiguidade, revela- porque estão aqui caras, mãos e corpos de todo o país, resultado de um
-se na continuidade das vasilhas de barro dedicadas à produção e guarda processo acumulativo de genes e de culturas.
do vinho, potes e talhas. Assim, Amareleja é um dos lugares de memória
do vinho da talha, que se mantém forte no corpo e com uma alma sempre Naturalmente que, ao percorrer estas imagens de mulheres e de homens,
disposta a cantar na garrafa, à saúde do grande Carlos. acudiu-me à mente a obra de Nuno Gonçalves, os Painéis de São Vicente
de Fora: Amareleja também nos remete para a gravidade da História de
DIÁSPORA Portugal e sente-se que por aqui também passa o sangue dos fundadores e
de todos os outros que os precederam e lhes sucederam.
Ao longo dos séculos a maior riqueza da Amareleja é de natureza braçal,
que noutros tempos chegou a ser quase única. Ainda hoje os que procuram Amareleja, nas suas gentes, presentes e ausentes, assume as dimensões hu-
longe, mesmo além-fronteiras, os meios para prover à subsistência, recor- manas do Portugal nas suas múltiplas relações com o Mundo.
rem a tarefas físicas e muitos continuam a ajudar a continuidade da agri-
cultura e da pecuária, sobremaneira em França, mas também na Suíça, na A MÚSICA E O CANTO
Alemanha, ou mais perto, em Espanha.
Segundo podemos ler no estudo de Vitor Pavão dos Santos sobre uma das
De onde vem a força, a resiliência de uma terra que ao longo dos séculos mais ilustres amarelejense, Eunice Muñoz, seu pai, Hernâni Muñoz, vivia
viveu de partilhar, em magras proporções, o que ajudavam a retirar da Ter- sobretudo da sua profissão de afinador de pianos; embora tendo em conta
ra, da terra dos outros, hoje que está muito reduzida a atividade agrícola e a que parte do seu labor se processava noutras localidades, pode presumir-se
pecuária ocupa pouca gente? Como noutras pequenas pátrias, é da diáspora que existiriam pianos ativos na Amareleja e decerto também professores
que vêm as energias sob várias formas. Desde os anos 1950 que a população desse instrumento.
começou a debandar, primeiro para a área de Lisboa, depois para a Europa
e, em menor número, para outros destinos. Amareleja tem uma tradição do cultivo das músicas, populares e eruditas,
que ao longo do tempo se traduziram em iniciativas diversas. A Filarmónica
Hoje existem importantes comunidades amarelejenses na Quinta do Con- Amarelejense é o símbolo da afirmação interclassista e intergeracional de
de (Sesimbra) e noutras terras da Margem Sul, bem como na Amadora. Por uma aldeia urbana. A recolha do Cancioneiro Alentejano, levada a cabo
outro lado, desde os anos 1960 que existem migrações temporárias para pelo padre António Alfredo Marvão (um apelido que sugere reflexão) é
alguns países europeus. outro marco dos interesses culturais que se têm manifestado em Amareleja.
Ver a banda desfilar e encher com música e alegria as ruas da vila é a opor-
OS ROSTOS E AS MÃOS: REGISTOS DA IDENTIDADE tunidade para confirmar que Amareleja vai ter continuidade e tem futuro.

As mãos e os rostos que nos são apresentados, com os rigores destas ima- Mas são as manifestações difusas, do cante às modas oriundas de outras
gens, revelam-nos muito sobre os ciclos de vida das gentes, dos sucessos e regiões, do País e da vizinha Espanha, que caracterizam a abertura e as
insucessos, das perspetivas face aos futuros. dinâmicas de encruzilhada que é possível ler no contacto com as gentes, no
deambular pelas ruas, na participação em festejos e cerimoniais que mar-
É nos rostos e nas mãos que melhor podemos ler o fantástico património cam o ritmo do tempo.
humano da Amareleja. São histórias e geografias tão diversas como o Tempo
184   Cenas de uma vila alentejana: Amareleja território & imagem    185

AS CORRIDAS DE TOUROS -silvo-pastoril, traduzido na existência de baldios e adua dos gados, com
diferentes regulamentações em diferentes momentos; o desenvolvimento
Tudo começou pela confraternização e pelo sacrifício: jogava-se com o touro, da estrutura fundiária e seus contextos sociais, históricos, políticos e geo-
matava-se o touro, comia-se o touro. Era a festa do bodo, mais uma faceta da gráficos; a articulação da organização da Igreja com a administração econó-
história de ricos e pobres. Hoje ainda há paixão e exaltação, mas é o espetá- mica e social do território.
culo que sobreleva, com as artes e as fantasias de outros mundos sonhados.
A localização recôndita, num recanto fronteiriço do Alentejo, tem certa-
O sagrado e o profano: é um dos espaços míticos da fotografia. Recordo a mente contribuído para a falta de informação sobre Amareleja, mas tam-
Tríade sagrada da “Aldeia da Luz” que os planeadores procuraram manter, bém para algumas ideias que decorrem de estereótipos originados no deter-
ou melhor, replicar na aldeia nova, levantada no sítio da Herdade da Julia- minismo das distâncias geográficas. E, no entanto, Amareleja tem, ao longo
na: a igreja paroquial, o cemitério e a praça de touros, formavam um núcleo da sua longa história, evidenciado uma grande capacidade de inserção em
de vida, afastado do aglomerado da aldeia… espaços mais amplos, nacionais e internacionais: pelas populações que tem
atraído, pelas saídas dos seus naturais para a diáspora que, tendo Lisboa
No sul peninsular as grandes touradas estão associadas a grandes peregri- como principal foco de atração, estende-se aos vários continentes.
nações, o caso icónico será o da Virgen del Rossio… a lembrar uns certos
olhares, os eternos fotográficos, incluindo as vues de dos. Da nossa recente abordagem pessoal ficou-nos a ideia de que se tem verifi-
cado alguma erosão da memória dos Amarelejenses, que se traduz no des-
A tourada, a largada, o correr dos touros, dos novilhos, das vacas ou das conhecimento de aspetos singulares do seu passado. Um dos patrimónios
vitelas, mais do que um intervalo nas tarefas dos campos, é a continuidade mais interessantes desta comunidade está patente na riqueza dos nomes de
dos trabalhos e das artes da ganadaria. A começar pela lavoura da arena… família/apelidos oriundos de diferentes latitudes e séculos. Nomes de gente
Lavrar a arena… para que sementeira? Que colheita? que implicam viagens, encontros, vindos da Galiza, de Itália, do Império
Austro-Húngaro, da Andaluzia, da Catalunha, do Algarve, do Minho, da
A ARTE DAS MEMÓRIAS E DOS FUTUROS faixa raiana portuguesa, Cristãos-Novos de outros tempos…
Os artistas são, amiúde, construtores de sínteses e visionários do tempo, Mas a erosão da memória individual e coletiva abrange aspetos importantes
para o que estabelecem pontes de vária natureza: entre cidades, entre do passado da terra. Na nossa inquirição procurámos saber da atividade
países, entre ideias, fazendo sobressair pontos de amarração e referências cerâmica e não conseguimos informações, ou melhor, o que nos disseram
identificáveis. Ora o Senhor José Pepo, artista multifacetado da Amareleja, apontaria para a inexistência de tal atividade, quando nas publicações do
desempenha essa função e dá-nos, a um tempo, a gravidade e a alegria das padre Rodrigues Lobato encontrámos referências concretas, como por
visões poéticas do mundo e da vida, de que nos apercebemos nas fotogra- exemplo, em 1838: “Auto de arrematação do Telheiro que pertence à Fá-
fias, nos desenhos, nos mapas, nos registos. brica desta Paróchia, cito no Valle de Juncos, que se fez a António Maria
Cipriano desta freguesia” (p. 94).
Apesar de algumas iniciativas para dilucidar a epopeia Amarelejense no
tempo e no espaço, de que enalteceríamos a obra do padre João Rodrigues Na busca de uma síntese, revejo de memória a Amareleja segundo José Ma-
Lobato, Amareleja – rumo à sua História, Évora, 1961 (reeditado em 2012, nuel Rodrigues e dou-me conta da universalidade deste território e desta
na mesma cidade), temos ideia de que há muito para descobrir e para expli- comunidade que atravessaram o tempo para chegarem ao século XXI na
car relativamente a esta freguesia, a esta comunidade secular. coerência glocal.

A obra do padre Rodrigues Lobato tem informação “lateral” que sugere te- Por isso, em cada imagem temos uma viagem, em várias escalas e em vários
mas/discussões muito interessantes como sejam a do comunitarismo agro- tempos.
território & imagem    187

24. GEOGRAFIAS DO nais, pertencem a viajantes errantes, surpreendidos numa estação da sua
deambulação. Por isso, num primeiro impulso de organização taxonómica,
procurei agrupá-los por tipos de passageiros: estantes, migrantes, turistas e

SOFRIMENTO E deslocados, sem terra, sem pão, sem, sem, sem nada. São cenas da “mar-
cha da Humanidade” que prossegue inexorável, desenhando mais e mais
labirintos, jogos para cegos. Detenho-me na profunda melancolia inscrita
DA MELANCOLIA* nos olhares a que eu me fixo, melancolia da vida que não chegou, que não
veio mesmo. Vejo-os todos enquanto crianças, que nunca deixaram de ser,
inocentes: sobretudo as crianças, Senhor!!! Não houve, talvez não pudesse
mesmo haver, lugar a uma poética da esperança, tão vivas eram as feridas,
as más memórias, tão grandes que nem o pitoresco conseguiu lugar. Ficou-
-nos assim o grito suspenso destes rostos que nos interpelam.
Sinto-me numa vertigem, procuro uma âncora, no espaço e no tempo, se-
guro-me na tábua cronológica: já que as geografias são insuficientes, vou

C
hegado a esta fase da minha vida é já muito difícil ver alguma coisa procurar os lugares na cronologia, decifrar as memórias apagadas nestes
que não pelo filtro da Geografia, do onde das coisas e das pessoas, rostos que para já estão imobilizados no tempo das duas imagens e descubro
que com as coordenadas definem os lugares. Mas hoje quis a sorte, que são rostos que nos puxam para um tempo sem tempo, para um buraco,
ou seja, a mão do meu querido amigo Rui Jacinto, que não ficasse com os o buraco que ameaça a Humanidade.
lugares, nem com as paisagens, nem norte nem sul, nem este ou oeste, mas
com os rostos: uma coleção de rostos que, pelo que ficou dito, são necessa- O ATLAS ESCOLAR
riamente rostos de geografias. Desde logo, numa primeira viagem a galgar
páginas, a galgar imagens, encontro duas geografias muito evidentes: uma Lembro-me do Atlas Escolar Português do Professor João Soares, uma ver-
geografia do sofrimento e uma geografia da melancolia. são excelente, de um Atlas do Instituto Agostini de Novara. Quantas via-
gens maravilhosas me proporcionou esse Atlas. No final tinha uma rica
Rostos que são os mapas das geografias do poder, os mapas que os impérios ilustração cartográfica e a série que mais me animava era a dedicada às
desenham e depois dominam, exploram, à escala natural, à escala um para raças humanas: rostos de gentes dos cinco continentes.
um: um ser humano, um ser explorado, um ser descontado, um espaço
vazio, pronto para novo ciclo. Rostos que traduzem as ações de abuso. São Nós, crianças, viajávamos no Mundo através daqueles rostos amigos, dos
fotografias implacáveis, na denúncia, mas também na exaltação da des- nossos irmãos europeus, dos nossos irmãos africanos, asiáticos, oceânicos,
graça, da iniquidade, do fim sem retorno, sem paraísos ocultos, sem terras das fadas da Nova Zelândia e da Austrália aos exóticos papuásios/novagui-
prometidas. neenses. Aos queridos chineses de olhos em bico, que nos ofereciam/ven-
diam gravatas na Baixa de Lisboa – “já tinha passado o tempo do “perigo
Na sua crueza, no seu isolamento, estes rostos são representantes de geo- amarelo”, juntavam-se os índios que nos arrepiavam nos ecrãs dos cinemas,
grafias deslocadas, descoordenadas, sem azimute. Olhando estas imagens onde os heróis eram os vaqueiros e pistoleiros brancos, por vezes com as
verificamos que na sua maioria parecem deslocadas das geografias origi- fardas das tropas da União e, aí, já metia cornetas e clarins. Índios que
ali, nas belas páginas daquele adorado Atlas, também se tornavam figuras
familiares, com seu adornos, colares e coifas de penas de aves exóticas. E as
*in Jacinto, R. (Coord.) Transversalidades – Fotografia sem fronteiras: pessoas, olhares, outros lugar- viagens tornavam-se mais locais, com os rostos a afeiçoarem-se às aldeias
es, Centro de Estudos Ibéricos, Guarda, 2018, pp.34-35. e às cidades.
188    Geografias do Sofrimento e da Melancolia

DAS UTOPIAS E DAS DISTOPIAS

Rezem, irmãos, ao Senhor dos Aflitos, à Senhora das Candeias, à Virgem


de Guadalupe, ao grande Haddad, senhor do tempo, das trovoadas e das
chuvas, a Baal, que comanda o trovão e protege os navegantes e os comer-
ciantes, a Yu Shi, o mestre das chuvas que nos dá a água e nos defende das
secas, a Indra, o Rei dos Deuses, o rei da luz e do trovão, da chuva e dos
rios: Mestres do Tempo e do Clima, que são também os Mestres do Futuro
que agora nos atormenta.

As mudanças climáticas e as alterações dos elementos comandam as novas


marchas da Humanidade e aumentam as angústias, ansiedades e desespe-
ros. E tudo já começou, tanto que foi ao encontro destes fotógrafos, passou
Imagens
por estes rostos. As virgens voltam a ensaiar bailados para aplacar as fúrias
dos deuses e dos demónios.

EM CADA ROSTO IGUALDADE

De facto, a grande utopia de Zeca Afonso torna-se enorme necessidade


face a estes rostos que nos contemplam a lembrar a tábua cronológica e o
Atlas da Humanidade. Temos de fincar bem os pés no futuro para ver que a
nova Amaurota poderá mesmo ser a Grândola que, como sinal, até encerra
nos seus limites geográficos uma Aldeia do Futuro.

Terra da Fraternidade
Em cada rosto igualdade.
II    01. campos do mondego josé afonso furtado  albano silva pereira         01. campos do mondego    III
IV    02. O Olhar do Geógrafo Orlando Ribeiro    Orlando Ribeiro    02. O Olhar do Geógrafo     V
VI    03. Itinerários de Fronteira (1994) albano silva pereira  | George Krause  George Krause  |  pierre devin    03. Itinerários de Fronteira (1994)     VII
VIII    03. Itinerários de Fronteira (1994) Álvaro Rosendo josÈ manuel rodrigues   03. Itinerários de Fronteira (1994)     IX
X    04. Códigos para uma Geografia albano silva pereira    albano silva pereira  04. Códigos para uma Geografia     XI
XII    04. Códigos para uma Geografia inês gonçalves inês gonçalves  04. Códigos para uma Geografia     XIII
XIV    05. Setecentos Anos até a Nova Fronteira duarte belo duarte belo   |  albano silva pereira  05. Setecentos Anos até a Nova Fronteira     XV
XVI    05. Setecentos Anos até a Nova Fronteira NUNO CERA NUNO CERA  05. Setecentos Anos até a Nova Fronteira     XVII
XVIII    06. ORLANDO RIBEIRO E LES PAYS À L’EST DE CASTELO BRANCO Orlando Ribeiro    Orlando Ribeiro    06. ORLANDO RIBEIRO E LES PAYS À L’EST DE CASTELO BRANCO     XIX
XX    07. Anti-metropolis ou as paisagens da desolação António Júio Duarte Fernanda Fragateiro  07. Anti-metropolis ou as paisagens da desolação     XXI
XXII    08. TRÊS SINAIS E UMA VISÃO Monteiro Gil Monteiro Gil 08. TRÊS SINAIS E UMA VISÃO      XXIII
XXIV    10. SENTIR O LUGAR OU AS PAISAGENS DA MEMÓRIA jorge gaspar jorge gaspar  10. SENTIR O LUGAR OU AS PAISAGENS DA MEMÓRIA     XXV
XXVI    11. COIMBRA E A PROCURA DA PAISAGEM Bernard Plossu   | GeorgesKrause  Debbie Fleming Caffery  | Paulo Nozolino    11. COIMBRA E A PROCURA DA PAISAGEM     XXVII
XXVIII    12. TRADIÇÃO, MODERNIDADE E FRONTEIRA Pedro Letria Pedro Letria   12. TRADIÇÃO, MODERNIDADE E FRONTEIRA     XXIX
XXX    13. O FASCÍNIO DOS MAPAS Pedro Calapez Rigo 23  | Rui Calçada Bastos 13. O FASCÍNIO DOS MAPAS     XXXI
XXXII    14. A PROPÓSITO DE RAIA e DE FRONTEIRA anna elias anna elias 14. A PROPÓSITO DE RAIA e DE FRONTEIRA     XXXIII
XXXIV   15. Nota de Apresentação Rui Jacinto Rui Jacinto  15. Nota de Apresentação    XXXV
XXXVI    16. Guarda, cidade de fronteira, para sempre luisa ferreira   |   monteiro gil  José Manuel simões  17. Prefácio    XXXVII
XXXVIII   18. FOTOGRAFIA E PAISAGEM    Dirce Suertegaray  | João Pedro Costa   Sérgio Pinto  | Enric Vives-Rubio 18. FOTOGRAFIA E PAISAGEM    XXXIX
XL    19. Os transportadores de memórias Rodrigo Bettencourt da Câmara Rodrigo Bettencourt da Câmara 19. Os transportadores de memórias     XLI
XLII    21. As oliveiras – uma perspetiva geográfica e sentimental Renée gagnon Renée gagnon 21. As oliveiras – uma perspetiva geográfica e sentimental     XLIII
XLIV    22. A propósito das expedições a Xabregas City João Paulo Feliciano João Paulo Feliciano 22. A propósito das expedições a Xabregas City     XLV
XLVI    23. Cenas de uma vila alentejana: Amareleja José Manuel Rodrigues José Manuel Rodrigues 23. Cenas de uma vila alentejana: Amareleja     XLVII
XLVIII    24. Geografias do Sofrimento e da Melancolia Ahmed Abdulamir Javier P. Fernández Ferreros 24. Geografias do Sofrimento e da Melancolia     XLIX
Antonio Aragón Renuncio Mohammad Rabikul Hasan

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