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Dessa maneira, o sujeito não tem o domínio completo sobre seus discursos, assim
como não pode ser “enquadrado” em uma estrutura homogênea. E o Outro, como
colocado por Lacan, sempre se encontra em relação com o sujeito. Destaca-se o fato de
que, ao enunciar, este está submetido às estruturas da língua(gem) e também aos sentidos
construídos pela memória e pelo contexto histórico-social, sendo que todos esses
elementos intervêm sobre si. A alteridade está plenamente presente nesse modo de
observar os processos discursivos. Da mesma maneira, as repetições, os esquecimentos,
os equívocos e diversos outros elementos representam marcas desse inconsciente que se
estrutura em linguagem. Vale lembrar também da relevância do deslizar da cadeia
significante, a qual abordamos anteriormente, para a significação e todo o processo
discursivo.
Essas questões estão traçadas em “Discurso: estrutura ou acontecimento”, no qual
Pêcheux (2008) trabalha a articulação entre os dois elementos pontuados no subtítulo da
obra. A questão teórica levantada por ele passa a ser a do estatuto das discursividades
“[...] que trabalham um acontecimento, entrecruzando proposições de aparência
logicamente estável, suscetíveis de resposta unívoca (é sim ou não, é x ou y, etc.) e
formulações irremediavelmente equívocas” (PÊCHEUX, 2008, p. 28).
Essa relação “resposta unívoca” e “formulações equívocas” fica evidente no
exemplo do enunciado “Ganhamos” (“On a gagné”, em francês), que atravessou a França
no dia 10 de maio de 1981, após consolidação da vitória eleitoral do candidato François
Mitterrand, do Partido Socialista. Considerando o “[...] ângulo em que aparecem através
da mídia, os resultados eleitorais apresentam a mesma univocidade lógica”, uma vez que
“[...] o universo das porcentagens de resultados, munidos de regras para determinar o
vencedor é ele próprio um espaço de predicados, de argumentos e relações logicamente
estabilizados”. Ou seja, o resultado em si é um acontecimento lógico, comprovado pela
maioria dos votos recebido pelo candidato. Assim, a proposição “F. Mitterand foi eleito
presidente da República” tornou-se uma proposição verdadeira após o encerramento da
apuração, este é um fato incontestável (PÊCHEUX, 2008, p. 23). Contudo, o enunciado
“On a gagné” é opaco:
Contudo, essas ligações não podem ser encaradas como um simples processo
lógico. É preciso refletir sobre o real fora dessas interpretações logicamente estáveis e
que levar em consideração, inclusive, que ele pode existir sem ser conscientemente
percebido e transmitido. Em outros termos, que o fato apreendido pode produzir efeitos
no inconsciente do sujeito e esses efeitos gerarem novas ações e significações.
Os primeiros movimentos que buscaram analisar o entrecruzamento entre
linguagem e história trouxeram novas práticas que permitiram “[...] multiplicar as
relações entre o que é dito aqui (em tal lugar), e dito assim e não de outro modo, a fim de
se colocar em posição de ‘entender’ a presença de não-ditos no interior do que é dito”
(PÊCHEUX, 2008, p. 44).
Pêcheux (2008, p. 45) menciona Althusser para destacar que o movimento das
teorias de Freud sobre o inconsciente levou a um entendimento de que, a partir daí,
passou-se a “[...] suspeitar do que escutar, logo do que falar (e calar) quer dizer: que este
‘quer dizer’ do falar e escutar descobre, sob a inocência da fala e da escuta, a profundeza
determinada de um fundo duplo, o ‘quer dizer’ do discurso do inconsciente”, conforme o
filósofo francês. Esse golpe ao narcisismo da consciência humana – sobre a percepção de
que o sujeito possuiria domínio sobre o que diz e cala, como abordamos anteriormente –
, contudo, leva a caminhos que trazem novas bases e visam impedir o enraizamento a um
outro narcisismo: o das análises das estruturas que ignorariam a posição de interpretação.
Esta anulação da interpretação que daria a essa perspectiva teórica “[...] ares de um
discurso sem sujeito, simulando os processos matemáticos” (PÊCHEUX, 2008, p. 47)
passa a ser desmistificada com a recepção de trabalhos como os de Lacan, Foucault e
Derrida.
Com os novos meandros, as descrições – de objetos, acontecimentos ou algum
arranjo discursivo-textual – “[...] está intrinsecamente exposta ao equívoco da língua”,
conforme pontua o autor. Para ele, isso leva a constatar que “[...] todo enunciado é
intrinsecamente suscetível de tornar-se outro, diferente de si mesmo, se deslocar
discursivamente de seu sentido para derivar para um outro”. Ponderação esta que
podemos ligar ao deslizar da cadeia significante e aos momentos de parada dos pontos de
estofo, os quais entrelaçam a significação. E é nesta instância que a interpretação ganha
lugar, já que “[...]todo enunciado, toda sequência de enunciados é, pois, linguisticamente
descritível como uma série (léxico-sintaticamente determinada) de pontos de deriva
possíveis”. Nesse espaço é que a análise de discurso irá trabalhar, assim
MIMESE Questões, fatos, incidentes, conteúdos O contato com as bases de dados e outros
I que configuram as acepções que levarão elementos que irão compor ou influenciar a
à percepção de necessidade e/ou elaboração do material jornalístico. Pode ser
potencialidade de criação de bases de um ou o conjunto de elementos, como fatos,
dados. eventos, leitura de outros conteúdos,
entrevistas, comentários sobre a temática etc.
que levaram a refletir sobre o assunto.
MIMESE A materialização das bases de dados por A escolha dos dados dentre todo o universo
II meio de sua configuração. Incluem-se a disponível, os cruzamentos entre eles, a
forma como os dados serão coletados, escolha dos entrevistados, personagens,
quais metodologias serão utilizadas gráficos e a própria redação do conteúdo
para isso, a ordenação das categorias traduzir-se-ão na tessitura da narrativa.
para sistematização e a própria
confecção da base de dados.
MIMESE A recepção e interpretação dessas bases O material será consumido pelos receptores,
III de dados, que pode ter a finalidade os quais agregarão seu próprio contexto e
jornalística. suas virtualidades à concepção da notícia.
5
Tradução livre a partir do original: “Trabajamos para revalorizar la verdad y elevar el costo de
la mentira”.
6
Tradução livre a partir do original: “un sitio no partidario que tiene como finalidad hacer un
cotejo informativo de las declaraciones de políticos, economistas, empresarios y personas
públicas, medios de comunicación u otras instituciones formadoras de opinión. Se recurre a las
fuentes más confiables y, cuando es necesario, a los especialistas de la materia que se investiga
para poder determinar en qué medida los dichos analizados son consistentes con los hechos reales
o los datos comprobables a los que se refieren”.
gerou a demanda pelo tipo de trabalho que executa: “[...] a proposta da Chequeado - La
Voz Pública se destaca em um cenário de polarização e multiplicação de tarefas que
dificultam a destinação de tempo e recursos jornalísticos para consulta com várias fontes,
o que acaba resultando em relaxamento na verificação de discursos públicos”7. Portanto,
a organização pretende auxiliar a “[...] melhorar o nível de conhecimento e compreensão
e eventos públicos e aumento do nível de transparência, seriedade e profundidade no
debate, para enriquecer a qualidade da democracia na Argentina” (BECERRA,
MARINO, 2014, p. 7)8.
Já a Folha de S. Paulo e o La Nacion são veículos de comunicação mais antigos.
O argentino foi fundado em 4 de janeiro de 1870 por Bartolomé Mitre, cuja trajetória
pessoal baseou-se na vida política e militar antes de lançar o jornal. Ele foi presidente da
Argentina entre 1862 e 1868 (POMER, 2008, p. 257).
O veículo possui uma equipe voltada para a produção de conteúdos ligados a bases
de dado. Esta é composta por jornalistas, engenheiros, designers, programadores e
analistas de dados que “[...] se dedicam a inovar no uso de novas tecnologias a partir de
dados e documentos públicos para investigações e cobertura jornalística”9 (LA NACION,
2019). Tratam essa atividade como uma forma de “[...] aproveitar as vantagens das
ferramentas de colaboração aberta e reutilizar as suas próprias para produzir um conteúdo
de qualidade diferenciado que cobre vários tópicos”10.
O La Nacion também já recebeu algumas das principais premiações jornalísticas
mundiais, como o de melhor equipe de jornalismo de dados, em 2019, pelo Data
Journalism Awards (DJA), organização internacional da Global Editors Network e que
conta com o apoio do Google News Lab e do Knight Foundation.
O veículo de comunicação brasileiro Folha de S. Paulo foi fundado por Olival
Costa e Pedro Cunha como “Folha da Noite”, em 1921, como alternativa midiática ao O
Estado de S. Paulo. Sua versão impressa é, atualmente, a de maior circulação no país,
7
Tradução livre a partir do original: “La propuesta de Chequeado – La Voz Pública resalta en una
escena de polarización y de multiplicación de tareas que dificultan la asignación de tiempos y
recursos periodísticos a la consulta con diversas fuentes, lo que redunda, en definitiva, en el
relajamiento en la verificación de los discursos públicos”.
8
Tradução livre a partir do original: “mejorar el nivel de conocimiento y comprensión de los
acontecimientos públicos y a aumentar el nivel de transparencia, seriedad y profundidad del
debate, para enriquecer la calidad de la democracia en la Argentina”.
9
Tradução livre a partir do original: “dedicados a innovar en el uso de nuevas tecnologías usando
datos y documentos públicos para investigaciones y coberturas periodísticas
10
Se trata de aprovechar las herramientas de colaboración abierta y reutilizar las propias para
producir un contenido diferencial de calidad que abarque múltiples temáticas”.
segundo o Instituto Verificador de Comunicação (IVC). Hoje, como um conglomerado
de mídia, o grupo controla o site noticioso que estudamos nesta pesquisa, além de possuir
outras vertentes, como o instituto de pesquisa Datafolha e a agência de notícias
Folhapress.
Em 2012, o grupo criou o blog FolhaSPDados, que utilizava “[...] mapas
interativos e infográficos para analisar e visualizar informação presente nas reportagens
e artigos do jornal e do site” e que trabalhava com “[...] dados abertos disponibilizados
por órgãos de governo, universidades e institutos de pesquisa independentes”. A iniciativa
começou com o jornalista Gustavo Faleiros, sendo uma parceria da Folha com o programa
Knight International Journalism Fellowships, do Centro Internacional para Jornalistas
(ICFJ, na sigla inglês). Como destaque para a medida, a Folha destacou que a iniciativa
do blog ocorria “[...] no momento em que jornais e sites em diversos países investem no
jornalismo de dados como forma de inovar o acesso à informação” (FOLHA DE S.
PAULO, 2012).
Anos depois, em 2017, o blog se tornou uma editoria do grupo jornalístico, aliás,
que passou a ser conhecida como DeltaFolha. O foco é a produção de conteúdo voltado
para a análise de dados, tendo como editor o jornalista Fábio Takahashi.
A ideia de também selecionar o La Nacion e a Folha de S. Paulo como parte desta
pesquisa se deu para observarmos como o jornalismo de dados também penetrou nas
redações dos chamados “veículos tradicionais”, que nasceram antes do período pós-
tecnologias da informação.
Dentro desses quatro sites, fizemos a observação de conteúdos vinculados à
temática do jornalismo de dados, entre os anos de 2016 e 2021, com o objetivo de
acompanharmos a produção atual dessa área. Durante esse período, realizamos a leitura,
seleção e divisão temática de cerca de quinhentas notícias.
No momento seguinte, recortamos o corpus a partir dessa classificação. Assim,
não focamos em apenas um tipo de conteúdo – por exemplo, somente política ou meio
ambiente –, pois preferimos observar a diversidade das narrativas do jornalismo de dados
em uma variedade maior de acontecimentos. Ou seja, escolhemos esse critério para
termos uma abundância que nos permitisse analisar a construção do acontecimento – mote
desta pesquisa – a partir de múltiplos focos.
Não trazemos a análise detalhada de todas essas notícias em função da repetição
de observações muito semelhantes. Nos próximos capítulos, trazemos algumas que nos
permitem enxergar os resultados das análises elaboradas ao longo da pesquisa. Os títulos
das produções, local de publicação, temática e ano encontram-se no quadro a seguir: