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O
MAGDA DE ALMEIDA NEVES **
de Murilo Rubião interpretativas dos cenários e
(1998), tem como RESUMO das trajetórias sociais que se
Este trabalho constitui um estudo dos trajetórias constituem objeto deste tra-
cenano uma cidade na qual
socia is de trabalhadores que migraram poro balho. O cenário, a cidade de
o aparecimento desses seres
lpotingo, atraídos pelo implantação dos Usinas Ipatinga, em sua formação e
misteriosos gera muitas con- Siderúrgicos de Minas Gerais (USIMINAS), mos
desenvolvimento como pólo
trovérsias entre os moradores: que, não tendo sido formalmente incorporados
urbano-industrial, situado na
seriam eles "enviados do de- ao projeto sócio-urbanístico do Empresa,
Região Metropolitana do Vale
mônio", apesar da "aparência formaram o primeiro núcleo de pobreza urbano
do Aço, ao leste do Estado de
dócil e meiga"? Ou seriam do cidade: o Ruo do Buraco. Examinam-se,
Minas Gerais, a partir do final
"monstros antediluvianos"? O pois, no trabalho, os processos socioculturois e
da década de 1950, no bojo
estranhamento provocado pela os cenários urbanos nos quais os moradores do
Ruo teceram os suas trajetórias como requisito do processo nacional-desen-
presença dos dragões na cidade
fundamental para compreender o seu destino volvimentista de expansão e
acabou por sujeitá-los às mais social no cidade, passados mais 40 anos do
dinamização da indústria de
discrepantes idéias e práticas início do suo formação.
base no país. As trajetórias,
dos citadinos. Primeiramente,
ABSTRACT por sua vez, protagonizadas
ao encerramento "numa casa
por trabalhadores que migra-
velha, previamente exorcis- This work constitutes o study of the social
trajectories of workers who migroted to lpotingo, ram para a cidade buscando
mada, onde ninguém poderia
ottrocted by the implontotion of the Siderurgicol se integrar a esse emergente
penetrar"; depois à sugestão de Plont of Minas Gerais (USIMINAS), but since universo urbano-industrial
seu aproveitamento na tração they hove not been formolly incorporoted to e, não sendo formalmente
de veículos e, mais tarde ainda, the sociol-urbonistic project of the Compony incorporados ao projeto da
à tese de que deveriam receber os o consequence they formed the first nucleus moderna cidade traçada pelo
nomes na pia batismal e serem of urbon poverty in the city: "the Street of the arquiteto e urbanista Rafael
alfabetizados. Em meio a tantas Hole" . Therefore, rt rs exomined in the work, the Hardy Filho\ ali criaram seu
e diferentes interpretações, os sociocultural processes ond the urbon scenes in primeiro núcleo de pobreza:
which the inhobitonts of the Street hod woven its
dragões seguiam o curso da a Rua do Buraco.
trajectories os bosic requisite to understond its
vida, por vezes, abandonados, A implantação e o funcio-
social destinotion in the city, ofter 40 yeors from
noutras, embalando o conví- the beginning of its formotron. namento do empreendimento
vio com as pessoas, com seu siderúrgico que nascia da co-
* Mestre em Sociologia pela Universrdade Federal de
dom de vomitar fogo. Em suas Minas Gerais. operação técnico-financeira
trajetórias urbanas, a maioria nipo-brasileira, a USIMINAS
** Doutoro em Sooologra, professora do Programa
dos dragões morreu afetada por da Pontifício Universrdode Católico de Minas Gerais -Usinas Siderúrgicas de Minas
moléstias, enquanto os poucos (PUC-Minos).
Gerais - dependiam funda-
sobreviventes foram corrom- mentalmente do recrutamento
pidos na vida do lugar, numa "resistência surda" aos de força de trabalho operária para a região, que, do
ensinamentos morais que lhes foram dispensados. ponto de vista da ocupação humana, até então se
O cenário e as trajetórias ficcionais dos perso- constituía em um "vazio verde". Em pouco tempo, a
tóricos. Maricato aponta duas razões cruciais para por populações de baixa renda; 2) a permanência no
designar a "confusão ideológica" que teria ocorrido centro, em uma de suas poucas ruas remanescentes,
em "cidades progressistas", dobradas aos encantos do uma vez não incorporados no plano de remoção e
Plano Estratégico. Primeiro o fato de a participação reassentamento do projeto; 3) a troca do imóvel de
democrática ser extremamente valorizada em suas origem por outro, em núcleos habitacionais situados
diretrizes, embora seja uma participação que "implica em bairros já existentes - Bethânia; Vale do Sol; Alto
em subordinação dos interesses de muitos aos inte- Iguaçu; e Bom Jardim; 4) mudança para o bairro Pla-
resses hegemônicos: unidade para salvar a cidade e nalto 2, seja obtendo nova unidade habitacional em
levá-la a uma vitória sobre as demais que competem troca pelo imóvel que possuíam na Rua do Buraco,
pelos mesmos investimentos" (MARICATO, 2002, p. ou mediante a participação na construção da nova
60). Segundo, o fato desse planejamento ter ocupado morada, em regime de mutirão.
o espaço deixado pelo plano modernista, fragilizado Ao negligenciar os demais e diferentes destinos
num contexto marcado pela desregulamentação e a da população interpelada pelo projeto de "revitaliza-
crise fiscal. Nesse sentido, o Plano Estratégico teria ção" do centro, o discurso oficial não apenas induziu
aparecido como uma alternativa pragmática, para a uma visão parcial da experiência, como a que se
governos municipais desnorteados, face ao aumento perdesse de vista os seus reais efeitos, em termos da
do desemprego e das demandas sociais, simultanea- superação da segregação sócio-espacial que afligia os
mente à diminuição dos recursos públicos nacionais, moradores da Rua do Buraco. E, mesmo a premiada
decorrente da crise do capitalismo internacional. experiência de construção do Planalto 2, foi marcada
por uma concepção reducionista, por parte do go-
A "REVITALIZAÇÃO" DO CENTRO E O
verno municipal, pois se restringia à realização das
DESTINO DOS MORADORES DA RUA obras físicas. Somente dois anos após a construção
É preciso, pois, perguntar pela extensão do do bairro, se iniciaram as ações de desenvolvimento
projeto Novo Centro, no que se refere ao destino dos da comunidade, por meio do denominado projeto de
moradores da Rua do Buraco, uma vez que ele repre- "Fortalecimento da comunidade do Planalto 2". Pro-
senta uma forte ruptura no curso de suas trajetórias jeto esse que só se efetivou porque uma Organização
de vida. O exame do discurso inscrito no marketing Não -- Governamental que em 1997 havia realizado
público acerca do projeto evidencia que as referên- estudo sobre os bolsões de pobreza da cidade, sob
cias ao destino dos moradores da Rua se restringem encomenda da Prefeitura Municipal, captou recursos
ao bairro Planalto 2, cuja experiência de construção junto ao Ministério das Relações Exteriores da Itália.
valeu à Prefeitura Municipal o prêmio "Gestão Pública Essa postura da administração municipal se reflete
e Cidadania': oferecido pela Fundação Getúlio Vargas na declaração de Fátima, moradora do bairro, em
e pela Fundação Ford. Ademais, a experiência ren- entrevistada que nos concedeu: "Aqui, nós estamos
deu à Prefeitura de Ipatinga o reconhecimento, pelo esquecidos':
Banco Mundial e pelo BDMG, como referência para Desloquemos a atenção para as famílias que
iniciativas semelhantes na América Latina. Portanto, permaneceram no centro, na antiga Rua Araxá,
o viés restritivo adotado pelo discurso do marketing cujo nome fora substituído por "Nossa Senhora das
público acerca da experiência acabou por salientar Graças", em um esforço deliberado de depuração da
suas dimensões consoantes às recomendações práticas memória coletiva, uma vez que ali funcionou, até o
dos organismos que a financiaram. início da década de 1990, a zona boêmia do Juá. Se a
No entanto, a execução do "sub-projeto de re- poligonal traçada no projeto de revitalização do cen-
moção e reassentamento" culminou em quatro tipos tro implicou a "remoção" de cerca de mil e duzentas
básicos de encaminhamentos/destinos dos morado- famílias da área central, ela, contudo, passou ao largo
res: 1) o recebimento de indenização pelo imóvel de de algumas famílias residentes na referida Rua.
origem, e a mudança para diferentes bairros da cidade, A ação habitacional do projeto Novo Centro
na maioria das vezes, distantes do centro, e habitados incorporou apenas as famílias residentes em um dos
Os resultados da pesquisa de 1998 evidenciam forma de inclusão que não possibilita aos subordina-
uma relativa melhora da situação da população do dos disputar em condições de igualdade as vantagens
Planalto 2, em termos dos níveis mais baixos de es- sociais e, assim, retro-alimenta o sistema com sua
colaridade. Essa afirmação se apóia na constatação lógica de produção de desigualdades sociais. Do
de que a proporção de analfabetos caiu para 11%, em ponto de vista dos formalmente integrados à dinâ-
função do programa de alfabetização implantado no mica sócio-econômica, "os subordinados" não são
município, no início da década de 1990. No segmento necessários apenas enquanto força de trabalho, mas,
da população com idade acima de 25 anos, o analfabe- igualmente, como não concorrentes aos privilégios
tismo alcança o índice de 20%. Contudo, essa melhora sociais (DEMO, 1998).
em termos de alfabetização não implicou a elevação Mesmo com a especificidade do caso dos mo-
dos níveis mais gerais de escolaridade dos moradores. radores da Rua no cenário sócio-urbano de Ipatinga,
Note-se, pois, que 74% dos entrevistados declararam há que se considerar que a sua inclusão subordinada
possuir apenas o primeiro grau, incluindo os que o possui estreita relação com a "lógica da inclusivi-
concluíram e os que não concluíram esta fase do en- dade" que marca a sociedade brasileira, como uma
sino formal. Outros 8% possuíam o nível médio. sociedade relaciona!. Essa lógica opera por meio de
Contudo, a pesquisa de 1998 demonstra que oposições hierárquicas e complementares, buscando
não é mais a falta de acesso à escola o principal fator a compensação dos extremos da escala hierárquica
explicativo dos baixos níveis de escolaridade da po- da sociedade (DA MATTA apud SCOREL, 1999).
pulação. Estes se devem, sobretudo, às dificuldades Com efeito, tal lógica abre margens para que as classes
enfrentadas pelos estudantes no processo pedagógi- pobres não percam o fio (às vezes, de esperança) da
co, cujos principais efeitos são os elevados níveis de sua conexão social a um sistema que se orienta pelo
"atraso escolar" e de "abandono do ensino". Dentre credo igualitário da modernidade, mas que despoja
a população com idade entre 07 e 20 anos, verificou- a pobreza de sua dimensão ética e a naturaliza (TEL-
se que 22% abandonaram a escola e, dentre os que LES, 1999). Como interpretar, pois, os baixíssimos
nela permanecem, 62% encontram-se em situação patamares dos indicadores sócio-econômicos que
de atraso, entre 1 e 3 anos. acompanharam os moradores da Rua, ao longo de
Com a análise desses índices não se pretende su- toda a sua trajetória senão por essa lógica que, se
gerir a abordagem da pobreza apenas como carência. não os excluiu por completo, acabou por lhes negar
Mais do que isso, ela deve ser vista como "expressão o acesso às vantagens sociais?
do acesso às vantagens sociais, denotando que faz O intento de produção sociopolítica do es-
parte da dinâmica dialética da sociedade, que se divide quecimento da Rua do Buraco se desenvolveu, pro-
entre aqueles que concentram privilégios, e aqueles gressivamente, ao longo de mais de quarenta anos,
que trabalham para sustentar o privilégio dos outros" até alcançar o seu ponto de maturação. Mas, não se
(DEMO, 2001, p. 13). A pobreza é, assim, resultado da tratou de um processo pautado pela intenção "pura"
discriminação no terreno das vantagens sociais. Nesse de expulsar seus moradores daquele espaço urbano.
sentido, às precárias condições materiais é preciso Seja porque os direitos que definem a civilização
relacionar a segregação e o estigma da população da não possibilitaram opor-se completamente a eles, ou
Rua - re-editados no bairro Planalto 2 e demais áreas porque em sua trajetória ocuparam um lugar social
para as quais se mudaram- como fatores que histori- que não se pode confundir propriamente com o dos
camente se constituíram em obstáculos à superação excluídos. Os moradores da Rua foram integrados
da sua condição de pobreza. Essa é uma terrível face ao sistema sócio-econômico vigente como força de
da exclusão social: a da sua funcionalidade ao sistema; trabalho barata e disposta a realizar atividades com
a face da integração dos pobres pela via da exclusão, baixas remunerações e/ou sem as garantias trabalhis-
ou seja, como forma de pertença. É justamente essa tas legais, para todo tipo de demandadores, sobretudo
face da exclusão social que, ao longo desse trabalho, famílias e empresas integradas à "cidade Usiminas";
estamos chamando de "inclusão subordinadà': uma bem como movimentando o universo boêmio da
e locais" (LEFEBVRE, 2001, p. 143). Para tanto, é pre- 12 Dentre esses signos, destaca-se a implantação, pela USIMINAS,
de um Shopping Center, tendo como âncoras um moderno
ciso avançar no sentido de conceber a cidade como
Centro Cultural e um Hipermercado. Outros empreendimentos
lugar capaz de comportar as diferenças e integrá-las surgiram na esteira desse processo: hipermercados; hotéis;
em lugar de segregá-las e de separá-las. centros universitários privados; um time de futebol que rem o
nome da cidade e disputa a primeira divisão do Campeonato
do Esrado de Minas Gerais, bem como algumas competições
NOTAS nacionais; eventos culturais e exposições tecnológicas.
Destaquem-se, ainda, os esforços da USIMINAS no sentido de
Este trabalho foi apresentado no 30° Encontro da ANPOCS
ampliar o sistema de aviação regional, interligando através de
(Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências
vôos diários o Vale do Aço aos principais aeroportos de Minas
Sociais), no Grupo de Trabalho: "Cidades: sociabilidades.
e do país.
cultura, participação e gestão", em Caxambu, Minas Gerais.
13 Entrevista que nos foi concedida por Joventino Feliciano, em
2 O projeto elaborado por Rafael Hardy Filho foi encomendado
27/11/05.
pela [então] recém-criada empresa USIMINAS.
14 Entrevista que nos foi concedida por Geraldo Fernandes
3 Nos informes publicitários da Prefeitura Municipal de lpatinga,
Barbosa, em 19 e 20/08/05.
constam que os investimentos totais no Projeto somaram 35
milhões de reais. Destes, 51 o/o financiados pelo BDMG/BIRD 15 Obviamente, a referência do Salário Mínimo nesta análise rem
e 49% provenientes do orçamento da Prefeitura Municipal de como ponto negativo o faro de que o mesmo representou, nos
lpatinga. contextos considerados (1974, 1977, 1995 e 1998), diferentes
poderes de compra para os trabalhadores, questão que não
4 IPA riNCA. Prefeitura Municipal. Projeto Novo Centro:
aprofundamos neste trabalho.
Sub-projeto: Remoção e Reassentamento. Programa Somma,
l995c.
5 Para Edéa Bosi (1994), lembrar não é reviver, mas re-fazer
o passado. As pessoas que se colocam a recordar no presente REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
estão, pois, a realizar um trabalho de auto-representação.
ARANTES, Otília Beatriz Fiori. Uma estratégia fatal. In:
6 Expressão cunhada em 1848, em seu Manijésto do Partido
Comunista. ARANTES, Otília Beatriz Fiori. A cidade do pensamento
único: desmanchando consensos. Petrópolis: Vozes, 2000.
7 Conforme consta em diagnóstico que subsidiou a elaboração da
proposta de Plano Diretor para Iparinga (1991), excetuando a BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de Velhos. 3• ed.,
década de 1990, a cidade teve taxas de crescimento populacional São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
superiores às médias nacional e estadual-mais de 18% ao ano, CASTRO, Cláudio Márcio Letro de. Trajetórias de deslocamentos:
na década de 1960 e 12, lo/o nos anos 1970. No período entre
experiências e narrativas de moradores da "Rua do
1980 a 1996, no entanto, esse crescimento foi de 1,7% ao
ano. Buraco" no espaço urbano de Ipatinga, 2006, 268 páginas.
8 IPATINCA. Prefeitura Municipal. Diagnóstico do Plano Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) - Programa de
Diretor de lparinga. Volume l, 1991, p. 70. Pós-Graduação, Pontifícia Universidade Católica de Minas
9 O Partido dos Trabalhadores deteve o mandato do Executivo Gerais, Belo Horizonte.
municipal, no período de 1989 a 2004. O Prefeito Chico D'ALÉSSIO, Márcia Mansor. Intervenções da memória na
Ferramenta exerceu três mandatos: 1989-1992; 1997 -2000;
historiografia: identidades, subjetividades, fragmentos,
200 1-2004; e o Prefeito João Magno exerceu o mandato no
período de 1993 a 1996. poderes. Revista Projeto História. São Paulo, n. 17, nov.
li Às intervenções do projeto Novo Centro, se seguiram outras DEMO, Pedro. Discutindo exclusão social. In: DEMO, Pedro.
etapas de "requalificação ambiental" do centro, como parte do Charme da exclusão social. Campinas/ SP: Autores Associados,
Programa Novo Som ma, aprovado em 200 I, cuja ênfase era a 1998. (Coleção Polêmicas do nosso tempo, v. 61).