Goiânia vem se afirmando como um novo pólo de rock no país, principalmente, após a
segunda metade da década de 1990. Já é palco de um dos maiores e mais importante festivais
de rock independente do Brasil, o Goiânia Noise, que surgiu em 1995, além de dois outros
festivais que atendem mais a comunidade de rock local: o Bananada e o Vaca Amarela. Há
ainda a criação da Rádio Feminina 10, especializada no gênero rock’n’roll, a proliferação de
vários bares e casas noturnas voltada ao estilo musical e uma crescente representatividade de
bandas de rock goianas em cenário nacional. Sem falar na criação de grandes estúdios, selos e
produtores de eventos focados em rock na cidade, dentre eles: Monstros Discos, Two Bear e
Not to Bears, Fósforo Cultural e o Rocklab.
O desenvolvimento desta cena parece, a princípio, improvável em um local como
Goiás, conhecido como um estado rural, agrícola e sertanejo. Isso fica claro em manifestações
de figuras públicas importantes, como Roberto Carlos, que denominou a capital goiana como
uma “roça asfaltada” – nesse caso, em sentido positivo, de lugar onde todos se conhecem 2.
Essa imagem de “ruralidade” é alimentada pela economia do Estado, baseada na
agropecuária, e também pelo estilo de música mais conhecido da cultura local: o sertanejo,
representado, em especial, por famosas duplas goianas, como Leandro e Leonardo, Zezé de
1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
2
Reportagem “A conquista do Oeste”. In: Revista Tam, ano 2, n. 20, Agosto de 2009, p. 86 a 93.
2
Camargo e Luciano e Bruno e Marrone. Além disso, essa representação do sertanejo aparece
com força na mídia local e nas políticas públicas.
Observa-se, então, que essa mistura acaba criando uma espécie de tensão nas
representações locais da identidade goiana. Ao que se parece, o início da formação da cena
não havia um grupo de pessoas com intenções claras de ação. Isso parece ter se formado ao
longo do próprio andamento do movimento, através, também, de imprevistos, dúvidas e
indecisões. De qualquer forma, desde o momento de maior afirmação do movimento –
considerado, neste trabalho, a realização do primeiro Goiânia Noise Festival, em 1995 – já
havia um discurso de contestação por parte dos integrantes desta cena. Na reportagem do
Jornal O Popular, do dia 4 de maio de 1995, sobre o 1º Goiânia Noise Festival, este discurso
é mencionado. O seguinte trecho fecha a reportagem intitulada “Festival do Barulho na
Praça”:
Portanto, há uma contestação explícita sobre a representação que se tem de Goiás, por
parte deste movimento. Por outro lado, neste mesmo ano, o então prefeito da cidade lança um
projeto que intitularia Goiânia como a capital country do Brasil, mas a população não aceita a
caracterização, o que gera bastante polêmica. Assim, percebe-se que o movimento de rock na
capital goiana surgiu também como uma negação e contestação a algo que é extremamente
forte na cultura local, no caso, o sertanejo.
Desta forma, compreende-se o movimento de rock independente em Goiânia como
palco de tensões em que se configuram certos conflitos relacionados ao que se quer apresentar
como identidade goiana – elemento constitutivo de um processo histórico marcado por
indefinições e disputas. Como já mencionado, num primeiro momento, Goiânia aparece como
um lugar improvável para o desenvolvimento de um movimento como este, devido às suas
características próprias. Primeiramente, devido à história do Estado de Goiás, ligada à
ruralidade, sendo identificada, na maioria das vezes, por este tipo de referencial.
Em pesquisa sobre patrimônio cultural em Goiânia, Clarinda Silva e Cristiane Mancini
falam que o aspecto agrário do estado de Goiás, que se estende à capital, passa por um
enfoque na cultura sertaneja – representações presentes na mídia sobre a capital e seu estado.
De acordo com o estudo, Goiânia possui vários rótulos, que, de forma geral, são ligados a
3
esses aspectos: como rural, interiorana, country, terra de migrantes, “cidade das praças, das
flores, ecologicamente correta”:
Da mesma forma, o geógrafo Eguimar Felício Chaveiro (2007, P.27), em seu livro
“Goiânia, travessias sociais e paisagens cindidas”, também apresenta esses rótulos nos quais
Goiânia é enquadrada como “capital do cerrado”, “capital do sertão”, “capital country”,
“capital da música urbaneja”, “capital do pequi”. Ou seja, Goiânia e Goiás carregam consigo
essas características, ao menos, no campo da idéia.
Fazendo um balanço historiográfico em relação aos estudos sobre a cultura e política
goiana, aparecem muitas referências relativas à tradição e ao moderno convivendo
concomitantemente no Estado e, provavelmente, gerando essas contradições. As construções
das identidades contemporâneas, da mesma forma, são realizadas nessa ambiência tensa,
contraditória e híbrida. Haesbaert fala sobre a construção da identidade cultural no mundo
contemporâneo, mostrando sua fragmentação e ligação com o mercado:
Goiânia, muito mais do que uma nova cidade, representava um local onde as
relações capitalistas se processavam no bojo da acumulação em Goiás. (...) O
estado de Goiás, na época, era essencialmente agrário, com uma população quase
que totalmente rural dedicada à agropecuária. Desta forma, podemos notar a
expansão capitalista cada vez mais ativa com a construção de Goiânia,
demonstrando a transição onde o rural e o urbano se mesclavam. (CHAUL, 1998ª:
110-111)
Sobre isso, Chaveiro (2005) diz que havia um universo conhecido composto pelas
paisagens construídas, pelos objetos e pelas próprias relações pessoais, que constituíam
elementos identitários. Cita como exemplo a arquitetura das casas de fazenda, os carros de
boi, as rodas de fiar, a enxada, as relações de compadrio e até mesmo a moral machista. Braga
mostra que as mudanças estruturais do estado foram resultado de políticas econômicas e
3
A construção da nova capital veio quase que em paralelo com a conhecida Marcha para o Oeste, durante o
Governo Getúlio Vargas, quando se iniciam políticas nacionais que pretendem integrar os chamados estados
“periféricos”, como Goiás, ao resto da nação. Portanto, é a partir disso, que o Estado goiano “atrela-se” à história
nacional, pois o movimento objetivava, exatamente, a integração do Estado à economia nacional. E foi também
isso que deu as bases para a modernização do território goiano (BRAGA, 2006).
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Goiás tinha população majoritária no campo até 1970, mas houve uma movimentação em direção as cidades
antes disso. Várias famílias percorreram o caminho em direção a cidade a partir da década de 1960. Dados do
censo demográfico do IBGE mostram que 69,2% dos goianos, de um total de 1.917.460, viviam na zona rural
em 1960. Ou seja, apenas pouco mais de 30% estava na cidade. Dez anos depois, essa imagem mudou bastante.
A migração fez com que a população da zona urbana subisse para 42,5%, mas agora de um total de 2.899.266
goianos. “O restante ainda continuava no campo, mas não por muito tempo. A virada ocorreu em meados da
década de 1970”. (CUNHA, P.10)
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Goiânia Noise, 2008, por exemplo, teve patrocínio da Novo Mundo (via Lei Goyazes – lei de
cultura do Estado de Goiás) e apoio da Agepel, Prefeitura de Goiânia, Lei Municipal de
Incentivo à Cultura. E, na medida em que a cultura está diretamente ligada à hegemonia e
incentivos culturais, isso deve ser levado em consideração.
Desta forma, atenta-se para a necessidade de um levantamento mais sistemático sobre
a relação do movimento com essas políticas culturais. Para tanto, a análise dos discursos
políticos dos participantes da cena torna-se de extrema importância, já que mostra a forma
como se quer apresentar o movimento a um público maior.
Em uma primeira seleção, foram utilizadas matérias do site independente OverMundo,
que, afim de “promover a diversidade cultural brasileira”, produz textos e conteúdos dos
próprios leitores, se caracterizando como um site colaborativo. Nos textos escritos por pessoas
de Goiânia, há menções claras e diretas sobre a intenção de se mostrar ao Brasil outra faceta
de Goiás, colocando a produção musical alternativa do Estado em circuito nacional. Em um
dos textos sobre o lançamento do Guia Goiânia Rock City – “um mapa contendo informações
sobre os principais lugares ligados ao rock em Goiânia” – escrito por uma das produtoras do
guia, Geórgia Cynara (ou, ao menos, postado por ela no site), é assim mencionado:
Essa idéia de “cidade agroboy” ainda existe, mas Goiânia é cada vez mais ponto de
encontro de seguidores do Punk, Hard Rock, Metal, Gothic Rock, Alternativo, Folk,
Britpop, Indie Rock... Além de De Volta ao Samba, da elogiada Nova MPB goiana,
com Ton Só e a Parafernália, Milla Marques, Rodolfo Vieira, Larissa Moura,
Débora di Sá e TomChris.
O GNF busca essa indefinição de barulhos, com Woolloongabbas se apresentando
no mesmo evento que a gaúcha Pata de Elefante e os portugueses do The Legendary
Tiger Man. O cartão vermelho para Bruno e Marrone e Zezé di Camargo nesse
jogo é o grande troféu para o público goianiense. Como diz o jornalista e roqueiro
Pablo Kossa, em terra de cowboy quem toca guitarra é doido (MOREIRA, Túlio,
2007).
independentes do território físico. Stuar Hall, em seu livro Identidade Cultural na Pós-
modernidade, diz que há uma crise de identidade que faz parte de um processo de mudanças
bem mais amplo, que desloca “estruturas e processos centrais da sociedade moderna” e acaba
por abalar “os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no
mundo social”. (HALL, P. 7) Dessa forma, as identidades modernas estão sendo
“descentradas”, deslocadas ou fragmentadas:
O sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está
se tornando fragmentado, composto não de uma única, mas de várias identidades,
algumas vezes contraditórias e não-resolvidas. [...] O próprio processo de
identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades culturais,
tornou-se mais provisório, variável e problemático. (HALL, P.12)
Bibliografia:
- MOREIRA, Túlio. Goiânia Barulho Discos. Overmundo, Goiânia, 14 out. 2007. Disponível
em: <http://www.overmundo.com.br/overblog/goiania-barulho-discos>. Acesso em: 29 mai.
2010.
- NAPOLITANO, Marcos. História & Música: história cultural da música popular. Belo
Horizonte: Autêntica, 2002.
- NOBRE, Fabrício. Bananada 2006. Overmundo, Goiânia, 15 mai. 2006. Disponível em:
<http://www.overmundo.com.br/overblog/bananada-2006>. Acesso em: 28 mai. 2010.
- ORTIZ, Renato. Mundialização e cultura. São Paulo: Brasiliense, 2000.
- SARLO, Beatriz. Cenas da vida pós-moderna: intelectuais, arte e vídeo-cultura na
Argentina. Tradução de Sérgio Alcides. Rio de Janeiro: UFRJ, 2006.
- SILVA Clarinda A. MANCINI, Cristiane R. Percepção do patrimônio cultural art déco
de Goiânia: caminhos de identidade local, caminhos de turismo. 2007. 38 f. Relatório
(Pesquisa de Iniciação Científica). Centro Federal de Educação Tecnológica de Goiás,
Goiânia, Goiás.
- THOMPSON, Edward Palmer. O termo ausente: experiência. In: A miséria da teoria Ou
um planetário de erros. Rio de Janeiro, Zahar Ed: 1981.
-THOMPSON, Edward Palmer. Folclore, antropologia e história social. In: As
peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas, Ed. Da Unicamp, 2001, PP. 227-
267.
- TINHORÃO, Jose Ramos. Historia social da musica popular brasileira. Lisboa:
Caminho, 1990.
- WILLIANS, Raymond. Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro, Zahar, 1979.