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Projeto de extensão “Venha ler a África: as histórias que não nos contaram”.

GUERRA DOS PALHAÇOS


(Mia Couto)

Uma vez dois palhaços se puseram a discutir. As pessoas paravam, divertidas, a vê-los.
– É o quê?, perguntavam.
– Ora, são apenas dois palhaços discutindo.
Quem os podia levar a sério? Ridículos, os dois cómicos ripostavam[1]. Os argumentos
eram simples disparates[2], o tema era uma ninharice[3]. E passou-se um inteiro dia. Na manhã
seguinte, os dois permaneciam, excessivos e excedendo-se.
Parecia que, entre eles, se azedava a mandioca. Na via pública, no entanto, os
presentes se alegravam com a mascarada. Os bobos foram agravando os insultos, em afiadas e
afinadas maldades. Acreditando tratar-se de um espetáculo, os transeuntes deixavam
moedinhas no passeio.
No terceiro dia, porém, os palhaços chegavam a vias de facto. As chapadas[4] se
desajeitavam, os pontapés zumbiam mais no ar que nos corpos. A miudagem[5] se divertia,
imitando os golpes dos saltimbancos. E riam-se dos disparatados, os corpos em si mesmos se
tropeçando. E os meninos queriam retribuir a gostosa bondade dos palhaços.
– Pai, me dê as moedinhas para eu deitar no passeio[6].
No quarto dia, os golpes e murros se agravaram. Por baixo das pinturas, o rosto dos
bobos começava a sangrar. Alguns meninos se assustaram. Aquilo era verdadeiro sangue?
– Não é a sério, não se aflijam, sossegaram os pais. Em falha de trajetória houve quem
apanhasse um tabefe sem direcção. Mas era coisa ligeira, só servindo para aumentar os
risos. Mais e mais gente se ia juntando.
– O que se passa?
Nada. Um ligeiro desajuste de contas. Nem vale a pena separá-los. Eles se cansarão,
não passa o caso de uma palhaçada.
No quinto dia, contudo, um dos palhaços se muniu de um pau. E avançando sobre o
adversário lhe desfechou um golpe que lhe arrancou a cabeleira postiça. O outro, furioso, se
apetrechou de simétrica matraca e respondeu na mesma desmedida. Os varapaus assobiaram
no ar, em tonturas e volteios. Um dos espectadores, inadvertidamente, foi atingido. O homem
caiu, esparramorto.
Levantou-se certa confusão. Os ânimos se dividiram.
Aos poucos, dois campos de batalha se foram criando. Vários grupos cruzavam
pancadarias. Mais uns tantos ficaram caídos.
Entrava-se na segunda semana e os bairros em redor ouviram dizer que uma tonta
zaragata[7] se instalara em redor de dois palhaços. E que a coisa escaramuçara[8] toda a praça.
E a vizinhança achou graça. Alguns foram visitar a praça para confirmar os ditos. Voltavam com
contraditórias e acaloradas versões. A vizinhança se foi dividindo, em opostas opiniões. Em
alguns bairros se iniciaram conflitos.
No vigésimo dia se começaram a escutar tiros. Ninguém sabia exatamente de onde
provinham. Podia ser de qualquer ponto da cidade. Aterrorizados, os habitantes se armaram.
Qualquer movimento lhes parecia suspeito. Os disparos se generalizaram.
Corpos de gente morta começaram a se acumular nas ruas. O terror dominava toda a
cidade. Em breve, começaram os massacres.
No princípio do mês, todos os habitantes da cidade haviam morrido. Todos excepto os dois
palhaços. Nessa manhã, os cómicos se sentaram cada um em seu canto e se livraram das
vestes ridículas. Olharam-se, cansados. Depois, se levantaram e se abraçaram, rindo-se a
bandeiras despregadas. De braço dado, recolheram as moedas nas bermas[9] do passeio.
Juntos atravessaram a cidade destruída, cuidando não pisar os cadáveres. E foram à busca de
uma outra cidade.
 

[1] revidavam ataques; [2] bobagens, tolices; [3] coisa nenhuma, sem importância; [4] tapas; [5]
criançada; [6] colocar na calçada; [7] briga com pancadaria; [8] começava uma pequena; briga.
 

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