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O PROCESSO COMPOSICIONAL E A NOTAGAO DA MUSICA CONTEMPORANEA — UM RELACIONAMENTO DE INFORMAGAO E CRIATIVIDADE Celso Mojola" Certa vez um engenheiro amigo meu, apreciador de mdsica e ouvinte assiduo, comprou num sebo um velho livro de teoria musical. De natureza curiosa e bastante interessado no assunto meu amigo comegou a ler 0 tal livro ainda que ndo tocasse qualquer instrumento, @ sempre que nos encontravamos ele me perguntava alguma coisa sobre o que havia lido.Uma tarde, ao visitd-lo em seu escritério, encontrei-o profundamente intrigado com o que acabara de descobrir sobre o “ponto de diminulgdo". Um ponto acima ou abaixo de um valor indica subtragéo da metade na duragdo desse valor —era o que rezava a velha cartilha. A conclusao do meu amigo nao fol menos precisa: uma semfnima com um ponto colocado acima vale entéo a mesma coisa que uma colcheia seguida de uma pausa de colcheia (Fig. 1): SS - Se — Vocés, misicos, séo uns loucos!, exclamava ele confuso. Compli- cam tudo. Como pode haver dois sinais signiticando a mesma coisa? Alguns dias depois ele descobriria os problemas da ligadura (um mesmo sinal tendo varios significados diferentes) e sua cabega se confun- diu de vez. Acabou desistindo de estudar teoria carregando para sempre a idéia de que mdsica é realmente uma arte muito complicad: Fig. 1 *Licenciado em Mésica e Bal, em Composico pela Escola de Gomunicagdss @ Artes — USP, OPUS, Porto Alagra, v.2, n.2, jun. 1990. 29 Passaram-se j4 varios anos desde que este fato aconteceu mas devo confessar que até hoje quando componho (e fago portanto uso de alguma forma de notagdo musical) as dividas do meu amigo as vezes retornam & minha mente. Teria ele mesmo raz4o ao desejar um sistema em que a cada sinal correspondesse um Unico significado? O que é precisdo @ objetividade em termos de notag&o musical? Este texto pre- tende oferecer uma resposta a essas quest6es bem como levantar ele- mentos que possam orientar 0 compositor no sentido da escolha de uma notagdo que, interagindo com o processo criativo, aprofunde e precise (dentro das ambigiidades préprias do sistema) as idéias compo- sicionais. Uma discuss4o sobre os problemas que envolvem a notacao musical contemporanea nao constituiu de maneira alguma um fato novo. Periodi- camente temos visto surgir textos sobre o assunto, embora a maioria deles se concentre ou num catdélogo de novos sinais usados por diversos composi tores @ saus respectivos significados (uma espécie de diciondrio) ou em propostas reformistas gerais visando criar normas para uma poss!- vel sistematizagéo universal. Menos comum s&o textos que discutem a problematica da comunicag&o em geral e o relacionamento estreito e dialético entre a notagao e 0 processo composicional propriamente dito. ‘© desenvolvimento da misica serial (que visava um completo con- trole sobre todos os parametrosde uma obra musical, inclusive a interpre- tag&o) bem como o desenvolvimento da mUsica aleatéria (que procurava deixar o acaso se incorporar 4 composigao) trouxeram grandes transfor- magées na maneira de se conceber o fendmeno musical. A idéia de que a uma nova musica deve corresponder uma nova notagao tornou-se praticamente uma palavra de ordem durante as décadas de 50, 60 e 70. Entre as inovagdes mais ou menos duradouras que surgiram nesse periodo pademos enumerar a notagao proporcional, anotagdo paradoxal, @ notagdo indeterminada, a notac&o grafica e a musica grafica.' Os anos 80 n&o parecem apresentar um interessa especial no que diz respei- to a inovar em termos de notagéo e de um modo geral poderlamos caracterizar a tendéncia atual como a de uma re-utiliza¢do do sistema tradicional, porém agora incorporado das modificagées que a ele jd 14 respelto da diferenciagdo entre estes dois ditimos itens veja o seguinte trecho: “In graphic music the graphic aspect of the notation has become dominant. It's appropriate here to spend some time ongraphic notation, as opposed to graphic music. Graphic tation is a perfectly expansion of normal notation in cases where the composer has an imprecise conception,” Comelius Cardew, “Wiggly Lines and Wobbly Music", In Breaking the sound barrier, editado por Gregory Battcock (E.P. Dutton, New York, 1961), pégina 248, 30 se agregaram de uma forma muito organica como, por exemplo, 0 uso da dupla clave de sol para indicar que uma nota deve soar uma 8! acima do que esté escrito (Fig. 2): ee - Fo - Vérias sao as razes que explicam o menor interesse pela busca de inovagées graficas no momento atual. A primeira delas é a dificuldade de uma padronizaco universal. Foram realizadas muitas tentativas de se obter essa padronizacéo e muitos reformadores chegaram mesmo a proper novas diretrizes para unificagdo do sistema. Outros pesquisa- dores mais pragmaticos, trabalhando em bibliotecas especializadas, ata- caram o problema de forma oposta, procurando fazer um levantamento tao completo quanto possivel de todos os novos sinais usados pelos compositores contemporaneos e com o auxilio de processamento de dados imaginaram construir um enorme catélogo com todos esses sinais e seus significados, tendo como objetivo final propor regras para uma normatizagao geral se ndo para o presente (uma vez que um compositor j4 acestumado a se utilizar de um determinado sinal dificilmente modifi- caria sua atitude) pelo menos para o futuro onde, nas escolas, a notagdo da misica contemporanea seria ensinada de acordo com essas novas regras.? Nenhum desses projetos parece ter atingido o resultado pratico desejado e a situacdo do intérprete da musica contemporanea continua a ser (talvez um pouco menos do que nos anos 70) a de se defrontar com novos sinais a cada nova peca a ser executada. A situagdo apresenta até um certo aspecto paradoxal uma vez que muitas das inovagées tinham por finalidade precipua conseguir maior precisdo e objetividade no efeito desejado, idéia bastante semelhante a que levou meu amigo engenheiro a se decepcionar com a notagdo tradicional. O resultado, fo entanto, foi que devido & falta de padronizagdo esses novos sinais se multiplicaram em quantidade exagerada e naéo sé continuamos na Fig. 2 2Um trabalho como © desse tipo foi desenvolvido na Biblioteca do Lincoin Center, am Nova lorque, Sobre esse assunto verificar: Kurt Stone, “Standardization of new musical notation, pro and con”, in Sympasivm Internazionale sulla problematica deif'attuale grafia musicale, organizado por Domenico Guaccero (Instituto Italo Latino Americano, Roma, 1972), paginas 179 a 189, 31 situagdo “defeituosa” anterior (muitos sinais significando o mesmo efeito efeitos diferentes notados com o mesmo sinal) como o problema até aumentou pois a0 contrario da notacdo tradicional os sinais agora modi- ficam seu significado de obra para obra (inclusive quando so de um mesmo compositor). Muitas pecas trazem uma série de explicacdes sobre os sinais utilizados, 0 que 6 chamado de “bula” pelos musicos; mas apesar de em alguns casos essa bula ser maior que a prépria obra musical a profusdo de explicagdes n&o parece ser o melhor meio de esclarecer 0 exato efeito desejado quando este 6 por sua prépria nature- za concebido de forma confusa. Embora seja um problema de natureza diversa é importante deixar registrado aqui que se um determinado efeito nao esté claro na mente do compositor dificilmente estard claro no papel, por mais explicagdes que ele forneca. O problema é que na 2? metade deste século nos encontramos em uma situagdo que néo é muito diferente daquela que existiu no perfodo anterior a 1600, época que € considerada como a do inicio da padronizagao do sistema tradicional de notagdo. E certo que entre 1600 e 1950 muitas modificagédes ocorreram mas nunca no sentido da destruigéo desse sistema e sim no seu aperteigoamento. Esse perlodo 6 também 0 que corresponde ao do sistema tonal como sistema Unico de composicao — sua superacaa comeca a surgir no inicio de século XX mas é s6 por volta de 1950 que isso se torna um fato unanimimente aceito. O perfodo anterior a 1600 (pré-tonal} e o posterior a 1950 (pés-to- nal) 6 marcado por uma maior diversidade de sistemas tanto do pensar musica quanto o de sua notagao. A padronizagao geral e completa como a pretendida por alguns pesquisadores sé serd possivel de ser atingida se voltarmos a contar com um sistema nico de composigao como foi o sistema tonal durante 3 séculos, possibilidade esta que apesar do aparente retorno a “tonalidade” que estamos enfrentando nao parece existir de forma alguma. Uma segunda dificuldade que pode ser apontada como atuando contra o desenvolvimento da nova notagao é o fato de que uma linguagem 6 atinge plena eficiéncia ¢ utiliza todo seu potencial de comunicagdo apés ter passado um certo tempo, quando seus usuarios jA se acostu- maram devidamente com suas inflex6es e sutilezas especiticas.4 As trans- 3+Languages acquire depth, as users acquire the background knowledge of possible connota- tions that gives to every combination of symbols, in every context, its own subtly shaded inflection of meaning, It is this depth of meaning that the codes, the artificial languages of avant-garde notations, inevitably lack,” Hugo Cole, Sounds and signs (London, Oxford University Press, 1974), pagina 150. 32 formagées ocorridas nos Gltimos anos foram nfo apenas muito rapidas (ndo permitindo um lapso razodvel para a devida assimilagéo dessas inovag6es) como também ocorreram em diversos aspectos simultanea- mente, gerando muitas vezes sistemas de notag&e contraditérios (e ndo- complementares como acontecia no perfodo tonal), Na verdade todas essas modificagdes caracterizam um perfodo que tem como marca princi- pal uma busca incessante do novo; porém muitas dessas inovag6ées foram colocadas de lado antes mesmo que tivessem atingido todo seu potencial em termos comunicativos. Além disso deve ser ressaltado que o misico, mesmo em escolas com grande espaco dedicado a mdsica contempo- ranea, ainda hoje é treinado dentro da notac&o tradicional, tanto na formagdo de seu repertério bdsico (a maior parte dos concertos de mdsica erudita é dedicada a misica tonal) como nas prdprias técnicas especfficas (harmonia, contraponto, percepcdo). A existéncia de um nd- mero enorme de obras consideradas verdadeiros marcos do pensamento artistico ocidental e criadas na era tonal e em constante circulagdo nas salas de concerto do mundo todo parece assequrar que o interesse pela notagao tradicional esté longe de esmorecer. Novos sistemas que procuram conviver com a antiga pratica de escrita ¢ fazem uso adequado das suas particularidades de comunicagaéo tendem hoje a serem vistos come mais tteis e eficazes que os sistemas que preconizam inovacdes mais radicai: Um terceiro fator que conjura contra uma busca desenfreada de uma nova notacdo é a propria estética dos anos 80. Ao contrério do que aconteceu em anos anteriores caminhamos agora por uma estrada que esta nos conduzindo a centros tonais, regularidade de pulsos, comu- nicabilidade e interesse pela plasticidade sonoro (leia-se beleza). Retro- cesso ou crise de idéias para alguns, simples movimento pendular da histéria para outros, o fato 6 que esta tendéncia tem se manifestado ‘com grande intensidade e antes de lamentarmos a fato de que estarlamos vivendo uma era de repetig&o apds um perlodo criativo tao fértil melhor sera observarmos o outro lado da questdo, qual seja, o de que agora podemos fazer uma utilizagdo mais consciente e até mais sutil de muitas daquelas inovagées dos anos anteriores. Temos conhecimento hoje de que muitas das obras que criaram inovagOes grdficas poderiam ter sido escritas de um modo um pouco mais aparentado & notacAo tradicional caso 0 compositor assim o desejasse. Isso sem nada perder de sua idéia original e com a vantagem de se abrir para intérpretes e publico ndo necessariamente ligados de forma especializada a vanguarda. Na verdade muitas obras foram escritas em uma notagao especial visando 33 até mesmo sua protegdo contra intérpretes ndo desejados, situagdo esta que de resto ndo incomum no mundo musical.‘ Uma nova notagao para ser legitima e duradoura deve estar organicamente ligada ao pensamento ccomposicional a que ela serve. Se concebo uma musica com pulsos regulares e uma simultaneidade das partes instrumentais pertfeitamente coordenada é bastante provavel que a notagdo com barras e formula de compasso seja a mais adequada, e isso nao significa de antem&o que esta mdsica vai soar antiquada; por outro lado se a minha nogéo de tempo é mais préxima da de um ente continuo e as partes instrumentais n&o necessitam de qualquer sincronismo deve existir um outro sistema grafico que corresponderaé melhor ao que desejo expressar. Uma gama ampla de possibilidades abre-se hoje a frente do compo- sitor e ele deve procurar fazer o melhor uso possivel de toda o material & sua disposi¢ao visando obter o resultado final desejado com a maior @ficiéncia — uma situagdo basicamente de escolha. Se o perfodo tonal determinava o uso da notagéo tradicional e a referéncia a tonalidade, © perfodo da vanguarda determinou a notag&o inovadora e a rejeigdo do centro tonal; a década de 80 por sua vez denota uma convivéncia mais ou menos pacffica entre sistemas divergentes e as grafias tendem @ acompanhar 0 mesmo processo de sincretismo. Um compositor apés ter passado pela experiéncia serial mais ortedoxa quando recomeca a se utilizar de elementos da tonalidade em sua obra o faz de uma forma menos ingénua, com uma viséo mais completa do problema e um melhor dominio do material 4 sua disposi¢4a; igualmente isso aconte- ce com © compositor que uma quinzena de anos atr4s se utilizou de grafismos radicalmente inovadores e na sua composic¢ao atual prefere um tipo de notagéo mais préxima da tradicional: ele o faz de uma maneira mais aprofundada e também com mais objetividade, com aquela Objetividade pertinente ao sistema em si e nao exterior a ele. Dentro desse panorama 2 aspectos devem nortear o compositor na escolha da sua notagao: a fidelidade do intérprete as idéias do compositor e 9 tom do discurso. - De um modo geral existe uma preocupagao muito grande por parte dos intérpretes em executar uma obra musical de acordo com a visdo do compositor —a fidelidade & partitura é um elemento importante para “Pieces need camouflage to protext them from hostile forces in the early days of their ‘fe, One kind of ‘protection is provided by the novelty and uniqueness of the notation; new musicians will take the trouble to decipher and learn the notations unless ‘they have a positive interest in performing the works.” C, Cardew no prefécio de sua obra Four Works, cltado por H, Cole, op. cit., pagina 148, 34 a boa qualificagéo de uma interpretagéo. Na verdade esse respeito As idéias do compositor tem se transformado num verdadeiro fetiche neste século e influencia inclusive a maneira de se recriar a musica dos séculos anteriores. Se com relagéo & musica do passado uma preocupagao algo excessive pode acarretar alguns problemas (pois nem sempre se pode saber com certeza qual 6 a idéia original do compositor) com relagéo a obras do presente este 6 um ponto praticamente acordado por todos, até mesmo por motivos de ordem pratica.° O compositor de hoje tem consciéncia dessa situagéo e serd bastante Util se utilizar todos os recursos asua disposic¢ao para deixar o mais claro possivel o que deseja. E evidente que isso deve ser trabalhado com as potencialidades do sistema em si e levar em conta inclusive que uma informagao incompleta, ambigua até, pode ser precisamente o que estd sendo buscado num determinado momento. Um exemplo bastante simples dessa situag&o, @ que acredito que todo compositor j& enfrentou, € o que diz respeito 4 indicagdo do andamento de uma pega. Nao 6 porque o metrénomo Se tornou hoje um instrumente de uso comum e tambémporquecontamos com a possibilidade de marcagdo do tempo musical em segundos que sempre devemos ser o mais detalhado possivel neste item. Muitas vezes 6 justamente 6 a pouca clareza que buscamos e isso ndo significa uma desinformagaéo ou descuido por parte do compositor. Se no inicio de uma partitura indica-se ANDANTE,4 =84 esté permitida ao intérprete uma certa flexibilidade nesse nGmero, pois ele teré que relaciona-lo ‘com a idéiade Andante, que devido a sua grande utilizagdo histérica carrega ja consigo uma certa carga de informagao; se a indicagdo se reduz para ANDANTE apenas 6 evidente que a flexibilidade de variacdo para o intérprete agora sera maior, pois aqui ele poderé executar a pega no andamento que considera ser um Andante nesse contexto espec!- fico sem qualquer restrig&o.* Por outro lado a indicagdo de d = 84 (sem a palavra Andante) coloca o problema numa situag&o oposta: aqui o intérprete deve ser o mais fiel possivel a esse nimero ja que nenhuma 5*The situation Is quite otherwise with regard to living, or recently deceased, composers. For by failing to perform a piece the way a composer intended can well detract from his reputation and even adversely affect his Income and happiness {or those of his heirs).” Randall A, Dipert, “The Composer's intentions: an examination of thelr relevance for perlommance", The Musical Quarterly, vol. 68 2 2 (Abril 1980), pagina 213. 8Uma situag&o intermedidria entre essas duas ocorre quando a partit indica ANDANTE, # ca 84, que parece Indicar explicitamente o de que o Intérprete deve relacionar @ Idéia de Andante com a marca¢so de seminima Igual a 64. 35 outra referéncia complementar estaré sendo fornecida.’ Duas outras possibilidades mais extremas ainda podem surgir: a néo colocagéo de andamento algum, que poderd ser entendido como "Toque em qualquer andamento” ou “Toque no andamento que Ihe parecer mais correto” ou a indicagéo de um andamente que se modifica a cada instante, notado por um diagrama especial colocado acima da partitura, como fez Stock- hausen na sua Klavierstiick VI.° Todas essas indicagdes podem ser consi- deradas igualmente criativas, significativas e precisas, servindo cada uma delas para contextos especificos. E evidente que para se obter © melhor resultado de todos esses elementos em agéo é de fundamental importéncia o resgate da credibilidade na capacidade profissional do compositor como um artesdc detentor de uma técnica e uma autoridade naquilo que realiza. O respeito a partitura que constatamos neste mo- mento histérico poderia indicar que essa situagdo A existe porém deve- se levar em conta que muito dessa obediéncia ao que esta escrito pode ter sua raiz numa acomodagao do intérprete. Todos os recursos & dispo- sig4o do compositor a que me referi no infcio deste par4grafo incluem as diversas formas de notagéo bem como a divulgagéo de suas idéias quer interpretando suas préprias obras, quer trabalhando com outros intérpretes, quer elaborando textos onde essa preocupagao esteja pre- sente, Por ditimo seria interessante fazer algumas observagées com rela- gao aa tom do discurso: este aspecto que envolve a notagéo quase nunca 6 abordado embora ndo seja de pouca importancia. Se observar- mos sob esse Angulo as partituras desde o final do século XIX até © apogeu do serialismo perceberemos que o tom do discurso dessas notag6es caminha em direcdo a ser cada vez mais autoritario, no qual © intérprete se situa numa posig¢&o completamente subserviente aos menores caprichos do compositor. Paralelamente a musica aleatéria, a improvisagdo e certas notagées graficas procuram resgatar o trabalho 7Lg métronome existe depuis plus da cent ans. Si toutes les partitions derits depuis lors ne sont pas griboullées de chiffres, ce nest ni par négligence ni par paresse des auteurs, mais parce que, & bon droit, beaucoup dontre eux auralent ou en ce faisant fimpression de tendre & Finterpréte une poche trop facile pour détrulre le sens de leur musique en fenserrant dans un corset orthopédique, et il en est beaucoup qui, apres avolr noté um mouvement, adjurent les interprétes de ne pas le suivre.” Jacques Challley, La musique et le signe (France, Editions D'aujourdhul, 1967), pagina 135, 8Na verdade ainda 6 posslvel criar mais uma situagSo, talvez até um pouco excessive. Digamos que numa composigao em 3/4 asteja indado ADAGIO,@ = 180. & um tipo de notagio paradoxal multas vezes funclonando como pardédia ou critica e que busca desconcertar o intérprete qua, sozinho, tera que decidr o que fazer. 36 rr a inter-criativo de compositores e intérpretes fornecendo a estes tltimos maiores opgdes de expressdo. O compositor inglés Hugo Cole afirma sobre essa situagdo: “Ndés ndo possuimos hoje um quadro claro e consis- tente dos papéis do compositor e do intérprete na realizagdo musical @ nossa incerteza é refletida nas notagées musicais”.° O tom do discurso hoje 6 variado e varidvel — nfo devemos nos esquecer inclusive da forga criativa que advem da misica com forte tradi¢ao nao escrita, como 6 a mdsica popular no Brasil. E evidente que um musico de jazz vai preferir tocar através de uma partitura cifrada com notagdo simples, ficando a seu critério durante a execugo as variagées de altura, ritmo, dinamica, fraseado e articulagdo; uma notagdo mais detalhada neste caso provavelmente o confundiria e dificultaria sua execugdo (Fig. 3a @ 3b), Da mesma forma é certo que muitas das notagées contemporaneas ao demandarem uma participagao bastante ativa do intérprete no ato de execugdo podem ser usadas com excelentes resultados em exercicios de criatividade e propdsitos diddticos.'° Fig. 3a—Notacgdo standard Fig. 3b—Uma poss{vel interpretagao SH. Cole, op. cit., pagina 29. 1soora este assunto ver: Ernst Widmer, “Perspactivas ddaticas da atual grafla musical na composi¢o @ na prética Interpretativa — grafia @ prética sonora”, In Sympasiun Internazionale, op. cit. paginas 137 a 163, 37 © dominio dos tons do discurso passa a ser uma ferramenta 8 mats nas mos do compositor: uma composig&o destinada a intérpretes formados na tradigAo serial européia e que sera executada sem a presen- ¢a do compositor dave ser o mais claro e detalhado posslvel notada, utilizando-se espaclalmente os sinais préprios desse. segmento do uni- verso musical; uma composigdo destirada a jovens estudantes de musica, influenclados pela misica popular e por improvisacdo, serd mais interes- sante que utilize uma notag&o que passa desenvolver o potencial crlativo proprio dessa idade. Se a peca se destina a um grupo da misicos no qual o préprio compositor atua come instrumentista ou regente muitas vezes até mesmo nenhuma notacdo (pelo no seu sentido mais usual) sera necessdria. Esses aspectos, se observados com cuidado, poderao contribuir para uma maior clareza das idéias composicionais, uma particl- pacao mais ativa e crialiva dos inlérpretes (@ consequentemente, meiho- res interpretagées) @ maior interesse do plblico pela mdsica do seu tempo. 38

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