Você está na página 1de 20

NOVAS MOBILIDADES METROPOLITANAS

E AS TRANSIÇÕES ECO-ENERGETICAS, URBANAS E SOCIOAMBIENTAIS EM


BORDEAUX (FRANÇA), CINCINNATI (EUA), CURITIBA (BRASIL)1

Patrice Godier*, Kent Fitzsimons*, Guy Tapie*, Cristina de Araujo Lima**

INTRODUÇÃO

Mobilidades e metropolização: uma abordagem comparada

Neste início do século XXI, a mobilidade está associada às experiências


metropolitanas renovadas pelas práticas e necessidades dos seus usuários a partir
da localização residencial e sua condição de vida. Se entendida por seu significado
ampliado, a mobilidade é considerada geralmente como um direito e um modo de
cumprimento de projetos individuais ou coletivos (Viard, 2012). Nesse sentido, a
mobilidade traz em si questões políticas e sociais, que são expressivas quanto a
desigualdades sociais, étnicas, raciais. A mobilidade metropolitana também gera
incertezas e dificuldades para a definição de políticas públicas territoriais em uma
escala adequada, tanto pelo lado de habitantes e usuários, quanto pelo lado de
tomadores de decisão ou especialistas no tema.
Mais precisamente, a acessibilidade às zonas de moradia, de trabalho, de lazer, de
consumo, de equipamentos públicos é uma problemática compartilhada pelas
metrópoles do Norte e do Sul, mesmo se os modos de acesso (formas de
acessibilidade) sejam divergentes.
Os anos 2000 se viram carregados de outros fenômenos que impactaram os
processos e as políticas de mobilidade. Assim, a situação energética está agora
presente nas agendas políticas locais, após ter estado por longo tempo oculta, em
favor de um modelo econômico sustentado pelo baixo custo do petróleo. Os
componentes principais são a sobriedade quanto à produção e consumo, a
preservação de recursos, a transformação dos comportamentos. Esses elementos
se inscrevem em uma narrativa mundializada e dentro de ações internacionais de
grande envergadura, destinadas a enfrentar o contexto do desafio climático. Os
sistemas de transporte e viagens incorporados nisso, estão diretamente
confrontados com a incerteza da energia. A mobilidade é desafiada por seu
consumo direto, realizado pelos veículos e, indiretamente, pela distância entre as
zonas onde ocorrem as atividades e as zonas de moradia. Os benefícios do
transporte público são valorizados para reduzir as contas ambientais, econômicas
e sociais, porém são de alto custo econômico e político. No entanto, como grande

1
Texto apresentado no Congresso APERAU, na Universidade de Montréal, Canadá, 2014.
(Tradução do francês por Cristina de Araújo Lima).

1
número de estudos demonstra, o impacto dos modos suaves de transporte deve
ser relativizada em termos de territórios urbanos tomados como referência, já que
difundem que o seu desempenho é menor.

Mobilidades, regimes de mobilidade e transições

No contexto da metropolização confrontada com novas incertezas, nós optamos


por fazer uma comparação internacional de « regimes de mobilidade » de três
metrópoles internacionais (Bordeaux, Cincinnati e Curitiba).

Cidade Pólo Bordeaux Cincinnati Curitiba


50 km2 206 km2 435 km2
240 000 habitantes 300 000 hab. 1,7 milhão hab.

Aglomeração Comunidade urbana Condado de Hamilton Núcleo Urbano Central


de Bordeaux (NUC)
• Núcleo 579 km2 1069 km2 1449 km2
Urbano 28 comunas 49 jurisdições 14 municipalidades
Central 740 000 hab. 845 000 hab. 2,9 milhões hab.

Área Urbana/ Área urbana (INSEE) Região metropolitana Região metropolitana de


Região (MSA) : OH-KY-IN Curitiba (RMC)
metropolitana
192 comunas 3 estados, 15 condados, 28 comunas
3800 km2 11500 km2 16 581 km2

1,2 milhão hab. 2,2 milhões habitantes 3,1 milhões hab.


Figura 1 – Síntese de dados das três metrópoles.

Um sistema de mobilidade é um conjunto de regras decorrentes de condições


tecnológicas e regras de mercado que concorrem em uma sociedade para o
cumprimento de uma função social determinada, como o transporte, a circulação,
conformando o conjunto da mobilidade. Esse conjunto remete tanto aos elementos
físicos (topologia, infraestruturas), quanto a um discurso e a valores que remetem e
justificam a dinâmica do regime em curso, em diferentes níveis de ação individual e
coletiva. Cada regime de mobilidade aparece também como o resultado da
evolução conjunta de um estado inicial, da organização do território já existente e
de estruturas de mobilidade que aportam inovações cumulativas e influências de
grupos de atores. Neste caso, o regime automotivo se inscreve na corrente do
século precedente conformando uma vereda de dependência para a mobilidade de
numerosas cidades.
Três eixos descrevem o regime de mobilidade dominante em cada metrópole. O
primeiro se refere às formas urbanas e do território. As infraestruturas e as
estruturas materiais inscreveram hábitos e « habitus », e como toda mudança

2
drástica introduz revoluções comportamentais. Um segundo eixo se refere às
experiências metropolitanas que traduzem o todo dos comportamentos e das
representações coletivas dentro da busca por uma mobilidade metropolitana
sustentável. O eixo da governança interpreta as configurações, os instrumentos de
ação pública utilizados e as interações complexas existentes entre os atores
públicos, privados, profissionais, mediáticos que contribuem potencialmente para a
problematização da relação entre metropolização e mobilidades.
A aproximação dos regimes de mobilidade permite compreender melhor a maneira
como as metrópoles reagem ao desgaste dos seus sistemas de deslocamento
dominantes e históricos para se projetarem em direção a outras mobilidades
metropolitanas. Movimento este que combina particularidades próprias à cada
situação nacional e histórica, e dinâmicas comuns, características de um
funcionamento metropolitano: o desenvolvimento contínuo da variedade de
sistemas de transporte articulam modos existentes e modos alternativos,
especialmente quanto ao automóvel, uma nova combinação entre atividades e
mobilidades (integração física e serviços) ; uma organização territorial que privilegia
a economia de energia (densidade, mix de usos) ; uma evolução técnica e
tecnológica de todos os modos de transporte (aviões solares, robótica e inteligência
artificial, novos combustíveis) ; uma transformação dos componentes e dos usos. A
dinâmica da mobilidade se articula no contexto da metropolização, em um momento
de fortes transformações, por várias razões: o relativo desgaste do modelo de
deslocamento individual, as reflexões proporcionadas pela busca de alternativas e
novas combinações entre veículos individuais e transportes coletivos ; o desafio
energético e climático que se tornam critérios-chave para abordar a mobilidade.
Portanto a direção é para mobilidades sustentáveis que integram de forma especial
os critérios de acessibilidade em uma economia global que privilegia o meio
ambiente.
Levando em conta as diferenças e semelhanças entre os planos de mobilidade e os
seus três componentes nos três países, a noção de transição vai apontar as
transformações observadas e as representações associadas. Inicialmente, do
ponto de vista das formas urbanas, depois das experiências metropolitanas e
finalmente, dos modos de governança.

MOBILIDADE E FORMAS URBANAS

A estrutura territorial, o planejamento e o meio ambiente se adaptam às exigências


dos modos de transporte, propiciando às condições de mobilidade (e, portanto, de
seu regime), um papel em parte determinante na constituição da forma urbana e
seus impactos ambientais. A análise da relação entre estrutura urbana e mobilidade
em cada uma das cidades estudadas (suas taxas de urbanização sendo bastante
similares, entre 77 e 85%) é, portanto, pertinente a fim de identificar as formas
compatíveis com os critérios do desenvolvimento sustentável (Le Néchet, 2012).

3
Para caracterizar o link mobilidade- metropolização nos referimos ao planejamento
e projetos urbanos recentes através de iniciativas-chave nesta área, bem como ao
desempenho de cada local no vínculo entre a forma urbana e o sistema de
mobilidade.

Bordeaux

A aglomeração bordelesa (740.000 habitantes) é profundamente vinculada às


práticas de mobilidade que a longo tempo privilegiaram o automóvel. Em 2013, 61%
dos habitantes da Comunidade Urbana de Bordeaux se deslocaram em automóvel,
mesmo que os investimentos em transporte público (tramway) tenham passado do
bilhão de euros. Eles são 24% de pedestres, 7% de usuários de tramway e somente
3,5% de usuários de ônibus urbanos. Este regime de mobilidade dominado pelo
automóvel é exercido de maneira diferente na escala da cidade-pólo, quase
santificada, e nos espaços difusos da aglomeração, onde o automóvel domina. Em
meados dos anos 2000, os documentos de planejamento são uma ligação direta
entre urbanização e transporte, indicando claramente os objetivos de limitação da
expansão urbana em torno de cinco direções principais na grande escala
metropolitana (Plano SCOT) : o desenvolvimento da cidade em torno dos
equipamentos existentes; a recuperação de espaços vagos dentro da cidade; a
preservação e valorização das zonas naturais existentes na aglomeração; uma
melhor organização da vida dos moradores da cidade em torno das áreas centrais
e bairros; o controle da gestão das despesas públicas e equipamentos. As
orientações que se encontram adaptadas para toda a aglomeração da comunidade
(Plano PLU) visam reduzir o uso do carro, apostando na proximidade entre locais e
atividades.
A partir dos anos 2000, alguns projetos importantes de oferta de moradias são
vinculados a políticas de mobilidade e de densificação da aglomeração. A chamada
Operação de Interesse Nacional (OIN) – Euratlantique representa a proposta mais
importante. Este projeto é uma vasta operação de planejamento e de renovação
urbana para o entorno da estação ferroviária central de Bordeaux, e está
programada para 2017, por ocasião da inauguração da linha ferroviária de alta
velocidade para ligar Paris a Bordeaux em 2 horas. Neste espírito o processo de
densificação deve privilegiar as formas de mobilidade sustentáveis reduzindo a
participação do automóvel para 20 e 30% dos deslocamentos gerados pelos bairros
do entorno da estação ferroviária, assegurando o essencial do desenvolvimento da
mobilidade por meio do reforço da oferta de Transportes Coletivos em canaletas
exclusivas (tramway e ônibus).
Na mesma linha, a operação denominada de « 50.000 moradias »foi concebida a
partir de 2010 pela Comunidade Urbana de Bordeaux para engajar ações de
densificação ao longo dos eixos de transporte, notadamente os corredores do
tramway. O projeto deve responder à três questões principais : limitar a expansão

4
urbana, construir habitações inovadoras e acessíveis economicamente, oferecer
moradias situadas à uma distância razoável do local de trabalho.

Cincinnati

Como a maioria das grandes cidades do Meio-Oeste dos Estados Unidos, Cincinnati
viu sua população aumentar ao longo do último meio-século. O recenseamento
populacional especificou 296.945 habitantes dentro do perímetro urbano em 2010
e, após seis décadas de perda de população, Cincinnati se diz pronta a acolher uma
nova população.
O Plano de Cincinnati (2012) indica a intenção da administração local, de acordo
com as comunidades, de intervir no espaço social por meio da ocupação do solo e
do uso de serviços, principalmente pelo viés do transporte. O plano decorre
diretamente da correlação entre as condições de vida dos moradores, proprietários
de veículos, da localização de suas moradias, e da configuração urbana de
Cincinnati, que comporta densidades diferentes. Assim, dentre de seis objetivos,
um é de oferecer mais opções de transporte coletivo. Desta forma, a cidade define
um novo código urbano que visa determinar a forma urbana na escala local de
Cincinnati – o Form-Based – que introduz os elementos para planejar os locais
urbanos calmos, fornecer as diretrizes para a concepção de tipos de edificações,
de fachadas e de espaço público, com a intenção de valorizá-los. Este documento
acentua a modificação de uso intensivo do automóvel para criar espaços para os
pedestres e tornar a paisagem mais atraente. Uma parte dos regulamentos
urbanísticos apresentam os princípios gerais de organização da cidade, dos bairros
e edificações. Trata-se principalmente de reforçar um modelo de bairros urbanos
direcionados para pedestres, de consolidar e fortalecer as características próprias
de cada bairro. Igualmente, se tende a prever uma concepção do sistema viário
sensível ao conforto; a encorajar a economia local e favorecer as pequenas
empresas; a localizar os serviços em lugares providos de segurança, e acessíveis à
pé (“caminhabilidade”) e enfim, a criar uma estrutura viária segura para uso dos
pedestres e dos ciclistas. Contudo, a passagem da instância dos princípios para a
instância operacional se mostra difícil como, por exemplo, no caso de um dos raros
projetos para transporte público, o « street car », um trem leve sobre trilhos na área
central, que foi brecado em seus estágios iniciais devido a oposições políticas e
sociais.

Curitiba

Curitiba é o pólo de um núcleo urbano central composto por 14 municípios, e cerca


de 3 milhões de habitantes que representam 93% da população da região
metropolitana. A cidade possui uma estrutura urbana diversificada, que inclui
inovações que se tornaram modelos para o Brasil e outras regiões do mundo há
algumas décadas. Assim, a cidade é famosa por seu sistema de planejamento

5
urbano e a invenção do sistema de ônibus BRT, lançado em 1974, reforçando a
concepção linear da cidade. Os tipos de linhas de ônibus foram decompostas em
múltiplas variantes de acordo com o seu serviço. A rede principal funciona em
corredores exclusivos, sem que isso tenha necessitado de grandes infraestruturas
ou equipamentos de alto custo. A razão do sucesso de um urbanismo de mobilidade
é que ele foi, desde o início, concebido de acordo com o sistema viário hierarquizado
e a distribuição estratégica do uso do solo. Dentro deste contexto, a qualidade do
espaço urbano foi aperfeiçoada, com ênfase na realização de obras de espaços
públicos como a primeira rua de pedestres do Brasil, os parques (atualmente 30
parques), e outros equipamentos públicos. Contudo, Curitiba enfrenta o desafio
representado pela metropolização, pelas desigualdades sociais e pelas limitações
ambientais. O planejamento do território corresponde ao crescimento periférico – o
Plano metropolitano existe desde 1978 – mas a implantação e a gestão dos planos
setoriais ou de obras públicas não foram inteiramente implementados.
A partir de 1990, o aumento da população da aglomeração levou à necessidade do
aumento da rede de transporte público. O sistema denominado RIT utilizado por 2
milhões de pessoas diariamente chegou à saturação, não podendo responder aos
usuários das classes média e popular (B e C), que esperam mais conforto e eficácia
em termos de tempos de deslocamento. O baixo custo do combustível (gasolina
ou etanol) e os subsídios da política federal para a aquisição de automóveis
tornaram o ônibus menos atraente que o automóvel e assim o seu uso é mais
flexível. Para enfrentar isso, um projeto de linha de metrô estava previsto para 2015,
dentre outros projetos de mobilidade: a implantação de uma linha de ônibus
interbairros, a remodelação das linhas do BRT, a implementação de 300 km de
ciclovias suplementares. Sem esquecer o projeto da “Linha Verde”, lançado em
2011, que consiste em efetivar um grande eixo urbano de alta densidade
(habitação, equipamentos, serviços coletivos). A política urbana de Curitiba tem
orientação teórica para uma concentração populacional, sem abrir zonas periféricas
para urbanização futura, ou sobre as zonas de preservação ambiental, apesar da
pesada carga social dos assentamentos irregulares.

Convergências e divergências

A análise dos planos, dos programas e dos projetos das zonas urbanas e das
cidades centrais, assim como a observação das concordâncias e contestações a
respeito deles, permitem separar alguns elementos de convergência: o primeiro é a
referência ao controle da expansão urbana. Em conformidade com cada sistema
político, jurídico e cultural, há a previsão de romper ou de limitar esse fenômeno.
Um outro ponto de convergência é a escolha pelo modelo de cidade compacta. Em
todos os casos, se quer privilegiar uma maior densidade da área urbana, seja pelos
edifícios de maior número de pavimentos - especialmente os de uso residencial -,
ou pelo aumento das taxas de ocupação dos lotes ao longo dos eixos de maior valor

6
econômico. Ao final, o que está em perspectiva é uma cidade mais calma,
alicerçada sobre a diminuição ou distanciamento do uso do automóvel.
Entretanto, a gestão da mobilidade diverge entre as metrópoles. Por assim dizer, a
relação entre a proporção de vias, a densidade da população e as linhas de
transporte coletivo variam bastante entre Curitiba, Bordeaux e Cincinnati,
mostrando diferenças. A primeira fez do ônibus a sua referência principal, uma
característica encontrada geralmente em países emergentes mas, no caso de
Curitiba, a cidade o fez com o objetivo de enquadrá-la e de organizá-la de forma
integrada com o desenvolvimento urbano.

MOBILIDADE E EXPERIÊNCIAS METROPOLITANAS

O objetivo de uma mobilidade metropolitana durável e de uma gestão de mobilidade


que lhe corresponda se fundamenta nos modos de vida dos seus habitantes, qual
seja o seu local de moradia, de trabalho e de outras atividades realizadas dentro do
aglomerado urbano. O horizonte de uma mobilidade sustentável é delineado pela
experiência, entendida como a síntese de práticas reais no espaço metropolitano,
e pela ideia formada por meio destas práticas. A noção de experiências
metropolitanas – componente de uma gestão da mobilidade – engloba a
interrelação entre a conceituação de entidade urbana e a realização da sua
dimensão espacial por meio da mobilidade.
As medidas e dispositivos relativos às práticas de mobilidade agem sobre os dois
componentes da experiência metropolitana. De um lado, eles modificam a oferta
efetiva, quer dizer, o inventário de mobilidades possíveis graças à infraestrutura, aos
serviços e aos subsídios. E de outro lado, eles propõem chaves para a conceituação
da metrópole, com noções como da cidade calma, da cidade dinâmica, da cidade
das escolhas, da cidade passante ou da cidade conectada. Além do mais, as
iniciativas dos habitantes por fora das vias oficiais e institucionais contribuem à sua
maneira para a evolução das experiências metropolitanas. Estas práticas
contribuem para identificar as numerosas oportunidades para a otimização do
sistema existente. A sua eficácia é então multiplicada pela disponibilidade de bases
de dados e pela hiper-comunicação resultante, muitas vezes, da sua recuperação
posterior pelas vias oficiais de planejamento e gestão da cidade. De certa maneira,
se trata de traduzir dentro da cultura da mobilidade, o princípio amplamente aceito
de que o monopólio do automóvel particular na região metropolitana se constitui, a
longo prazo, em um problema, e que seu reinado sobre os deslocamentos
realizados na aglomeração urbana não pode perdurar. A situação nas três
metrópoles demonstra diferentes fases dessa tendência, e as “palavras-de-ordem”
ou colorações dadas às suas abordagens. As novas mobilidades – mais ou menos
inovadoras – que irão emergir em razão da dupla pressão - demográfica e
energética – contribuirão para reconfigurar a geografia mental dos grupos e dos
indivíduos que praticam o espaço metropolitano.

7
Bordeaux
Em Bordeaux, o fim do monopólio do uso individual do automóvel como artefato do
sistema de mobilidade dominante é profundamente assimilado nos discursos dos
políticos e dos experts. A Comunidade Urbana de Bordeaux – CUB (entidade de
gestão metropolitana) visa « uma divisão mais equilibrada dos modos de
deslocamento: 60% para os automóveis, 25% para o transporte coletivo e 15% para
a bicicleta » no horizonte do ano 2025, para a zona coberta pela rede TBC (área
atendida pela CUB), conforme dados do Relatório Anual (CUB, 20120. Ainda que o
automóvel guarde um grande espaço no conjunto, as medidas dissuasivas – como
a supressão dos locais de estacionamento, extensão das zonas de acesso limitado
– encontram muito pouca resistência. Enfim, uma parte importante dentre os
modais para o automóvel não significa forçosamente uma taxa correspondente de
uso individual do carro, se o compartilhamento de veículos for desenvolvido em
grande escala.
No conjunto, a palavra de ordem em Bordeaux é a regulação: « uma mobilidade
regulada por uma maior fluidez ». Ela está colocada abertamente como ferramenta
de gestão e de planejamento urbano, e se traduz frequentemente pelo
constrangimento. Os poderes públicos evocam a noção de esforço coletivo para
“uma mobilidade coletiva” (pelos transportes coletivos) ou para a “mobilidade
compartilhada”. E as promessas do veículo elétrico não parecem atenuar o
sentimento, bem perceptível dentre os poderes públicos, de ser necessária uma
mudança radical da cultura de mobilidade. O discurso reinante adota a redução
geral do consumo energético para a mobilidade, qualquer que seja, de origem
carbônica ou elétrica. Sem dúvida, isso está ligado ao fortíssimo segmento do
mercado de energia nuclear, o que é causa de uma angústia bem perceptível na
França, apesar do apoio, mais ou menos tácito de uma maioria da população por
este vetor da independência energética.
Em Bordeaux, a diferença entre os modais seria sobretudo geográfica, com uma
parte das zonas urbanas se prestando a um cotidiano sem automóveis e aquelas
outras, periurbanas, que dependem do carro e onde o uso dos modais ativos fica
restrito às crianças e ao lazer. O reforço dos pequenos centros urbanos periféricos
(dos municípios em torno da cidade central), não escapam ã essa lógica. Com
efeito, a configuração de polos de troca relativamente densos dentro desses polos
urbanos periféricos reproduz em outra escala a polarização entre centro e periferia
que é conhecida de cidades como Bordeaux, pois as distâncias entre estes polos
não permitem imaginar uma mobilidade ativa (não motorizada) e por transporte
coletivo que sejam tão práticos que possam concorrer com o uso do automóvel
individual. Este modelo policentrico busca uma grande fluidez para os
deslocamentos entre os polos por meio do uso do transporte coletivo, multiplicando
os bairros onde a vida cotidiana talvez não seja ameaçada sem o veículo particular
(atualmente limitada à cidade-polo de Bordeaux, no interior das vias arteriais (cours

8
e boulevards) conservando grandes áreas entre estes bairros, conforme o modelo
de baixa densidade (sobretudo residencial) atual.

Cincinnati
Em Cincinnati, as medidas em favor de melhorias no transporte coletivo são
demoradas em relação aos meios mobilizados, para manter o modelo “carro total”,
bem que a construção de uma linha de “street-car” (de uma extensão inicial de 6
km) tenta reintroduzir, em doses homeopáticas, uma experiência urbana ausente
após muitos anos, nesta cidade outrora exemplar em termos de rail urbano. Face à
impossibilidade de imaginar uma intermodalidade estendida sobre o território em
razão da estrutura física da aglomeração e da distribuição da densidade existe,
contudo, a consciência dos políticos a respeito da necessidade de oferecer
alternativas ao sistema de mobilidade dominante, baseado no uso individual do
carro particular. A palavra-chave em Cincinnati é a escolha individual. Os poderes
públicos não querem ou não podem agir em contrariedade a isso, mas eles têm a
consciência da necessidade de uma oferta mais ampliada. Há um apoio no uso da
tecnologia, qual seja a da extração de combustíveis fósseis com eficiência e em
segurança (gás de xisto, por exemplo).
O modelo difuso ou « em tapete » em Cincinnati assume a predominância de um
regime de mobilidade individual e motorizado no qual a fluidez seria garantida por
um sistema de autopistas urbanas de qualidade (donde a importância das obras da
rodovia I-75) e a durabilidade pelos avanços tecnológicos (captura de CO2,
automóveis elétricos eficientes), tudo facilitado por projetos de urbanismo para
favorecer uma mobilidade local mais leve, sobretudo em relação à população
escolar e à uma minoria de população ativa que trabalharia perto da moradia. A
escolha da escola é um fator preponderante na localização residencial dos
contextos familiares.
O território é como um lençol de bairros mais ou menos equivalentes, unidos pela
malha de mobilidade por automóvel, com exceção do centro de Cincinnati;
constituído do centro-cidade-alta/cidade-baixa, que em termos de proporção de
população que lá vive, é insignificante, mas que concentra bastante emprego, em
parte graças à presença de sedes de grandes empresas (como Proctor &Gamble,
Kroger), e de instituições importantes (Universidade de Cincinnati, hospital
regional). As práticas de mobilidade urbana são, portanto, muito contrastantes mas
coexistentes em um mesmo território, tanto em um mesmo foyer ou para um mesmo
tipo de indivíduo, conforme os dias da semana. No conjunto, a aglomeração seria
um espaço isotrópico graças ao uso do automóvel e distribuído pelos bairros, nos
quais existe um bem-viver a pé ou em bicicleta.

Curitiba

9
Curitiba por sua vez enfrenta o desafio de manter o nível de qualidade do serviço
de transporte coletivo de forma competitiva em um contexto de pressões
demográficas, econômicas e sociais (os movimentos de junho de 2013). A mutação
difícil do modelo econômico do seu sistema de ônibus (orçamento quase totalmente
financiado pela renda proveniente dos bilhetes de passagem) para investir na
pesadas e custosas infraestruturas complementares (do tipo do metrô subterrâneo)
obriga Curitiba a inovar no âmbito circunscrito do BRT. Contra a concorrência do
automóvel, se trata de seduzir novamente os habitantes da aglomeração (o Núcleo
Urbano Central de Curitiba servido pela rede RIT) antes que a mudança cultural
seja irreversível. A palavra de ordem continua sendo o planejamento, apesar dos
reveses que esta atividade tenha vivenciado depois de alguns anos.
Em Curitiba, o regime de mobilidade combina dependência do transporte coletivo
com uso individual do automóvel. A alta recente do modal automóvel apesar da
densa malha do espaço urbanizado servida por múltiplas opções de linhas de
ônibus, mesmo que o transporte coletivo represente ainda a metade dos
deslocamentos diários, sugere a co-presença mais ou menos regular de uma parte
dos habitantes que depende dos transportes coletivos e, de outra parte, dos
adeptos do uso individual do automóvel para o deslocamento diário. Mas a dinâmica
do mercado imobiliário faz com que alguns bairros estejam mais bem servidos por
este sistema concebido exatamente para liberar a população da carga do uso do
automóvel. Mais distantes, bairros mais modestos e pior servidos por transporte
coletivo como o Guarituba2 acumulam uma acessibilidade difícil com uma
localização imprópria para urbanização, apesar do ambiente natural agradável.

As necessidades em mobilidade decorrem igualmente da natureza do mercado de


trabalho. Na condição de muitas pessoas empregadas que não dispõem de carro
próprio e tem necessidade de acessar aos bairros de classes mais altas, observa-
se que muitos trajetos casa-trabalho não correspondem à uma divisão territorial
simples entre habitats, mostrando a necessidade transporte coletivo e de um outro
modal para mobilidade individual motorizada. Nesse contexto, os cativos do
transporte coletivo têm necessidade disso para acessar a todos os locais.
Em Curitiba, a diferenciação entre dois modos de vida não é nem tanto devida a
questões geográficas, nem tanto à mobilidade em duas velocidades diferentes que
se articulariam dentro de um mesmo contexto em função das distâncias que cada
um deve percorrer. Sobretudo, ela derivaria das condições socioeconômicas
contrastantes. Os habitantes submetidos ao sistema de transporte coletivo se
encontram distribuídos no território de forma difusa, tanto quanto aqueles que se
beneficiam da opção do automóvel. Deste ponto de vista, a imagem marcante dos
eixos estruturantes com suas torres alinhadas como soldados é um chamariz; a

2
Assentamento irregular que reúne grande quantidade de moradores, localizado na área rural do Município de
Piraquara, na Região Metropolitana de Curitiba. Nota da tradutora.

10
realidade do espaço existente contradiz este ideal de mobilidade sustentável.
Contudo, os projetos e o planejamento persistem em promover o modelo dos eixos
densos e rápidos, modelo baseado em uma lógica de polarização espacial. Nessa
perspectiva, o projeto do metrô é uma apoteose. Lutar contra a ascensão do
automóvel será assim tanto mais árdua quanto a diferença radical entre essa
imagem das práticas e o imaginário resultante do espaço vivido, mesmo que isso
não seja reconhecido.

Convergências e divergências

Este estudo dos efeitos da dupla pressão da metropolização e do fator energético


sobre a geografia mental do espaço urbano, revela tendências contrastantes entre
os regimes de mobilidade das três cidades. Em cada um dos casos a ideia de
mobilidade que se configura por meio dos projetos e também pela evolução das
práticas já em curso, se caracteriza por uma disjunção. Em Bordeaux, se trata da
disjunção geográfica entre dois tipos de experiências metropolitanas: a cidade
policêntrica de proximidade3 por um lado, e a cidade suburbana, de outro. Em
Cincinnati, uma dicotomia funcional se desenha entre duas velocidades de
mobilidade que se superpõem em um mesmo espaço isotrópico. Uma superposição
espacial de dois tipos de mobilidade já está em curso em Curitiba, mas ela se
caracteriza por uma cisma social entre os automobilistas e os cativos de outros
modos de deslocamento.

MOBILIDADE E GOVERNANÇA URBANA

O eixo governança é o terceiro componente dos regimes de mobilidade, é se integra


em nossa comparação das estratégias de regulação territorial por meio da
mobilidade.

Bordeaux
Em Bordeaux, a especificação de um planejamento estratégico para a mobilidade
em escala local se ajusta em função da existência de uma governança de “múltiplos
níveis” (são três níveis: europeu, nacional e local), o que é de compreensão difícil
pelo cidadão, pelo usuário ou pelo habitante. Então toda a questão para o poder
público é de passar do nível conceitual para o nível operacional, ou seja, de uma
noção difusa (a cidade sustentável) para medidas aplicáveis, hierarquizadas, e a
um custo suportável.
A primeira cena que funciona como uma conferência permanente entre autoridades
organizadoras do transporte (AOT) foi concebida como “local de coordenação
sobre as reflexões prospectivas relativas à mobilidade, um centro de recursos e de

3Conceito de cidade de proximidade que faz referência à distância de equipamentos e atividades para
mínimo deslocamento, segundo o plano PADD).

11
debates, um local de trocas sobre os grandes projetos de deslocamento, um local
de difusão de uma cultura da mobilidade, um centro de vigilância sobre a evolução
das práticas e, enfim, um local de análise, de expertise e de proposição em matéria
de intermodalidade”4. Seu objetivo é de coordenar as políticas de três coletividades
com um objetivo comum de estabelecer um direito à mobilidade pela oferta de
transporte e de serviços globais e coerentes. A sua forma ativa contempla
seminários, estudos e relatórios destinados a aproximar de maneira integrada a
ação dos atores participantes e a coordenar as ações em favor das tarifas, das
informações dos usuários, das novas práticas como o compartilhamento de veículos
ou carona. A mobilidade se torna por si mesma uma temática transversal na escala
metropolitana, ultrapassando assim uma lógica unidimensional setorial, que
prevalece dentro das instituições.
A segunda cena, o Acordo das Mobilidades, permitiu lançar um vasto entendimento
sobre a problemática dos transportes e dos deslocamentos na área metropolitana
bordalesa. Três contextos foram fixados nesse assunto para fixar as orientações a
respeito de uma reflexão entendida como co-produção (a inteligência coletiva):
“reforçar a performance econômica do território, garantir a todos o direito ao acesso
do sistema, e reduzir o impacto ecológico do sistema de deslocamentos”. Sob
coordenação da agência de urbanismo (órgão do poder municipal local), o
resultado conduziu os atores locais a definir uma versão local do conceito de
mobilidade sustentável, um modelo de mobilidade que é à sua maneira “fluido,
racional e regulado”. O mapa resultante visa suscitar um movimento cidadão a partir
da passagem de uma oferta de mobilidade baseada no automóvel para uma oferta
de mobilidade mista, multimodal, intermodal e de maior sobriedade. O mapa
resultante pressupõe igualmente um operador único, e a criação de instâncias ad
hoc para integrar os representantes da demanda e dimensão energética. Missão
difícil em função das muitas dificuldades de hierarquização e participação no poder,
especialmente no campo dos financiamentos que não são diretamente abordados
pelas duas instâncias.

Cincinnati
Dentre as cidades norte-americanas que pretendem enfrentar o desafio climático,
se distingue com clareza duas categorias: a das “cidades-ícones” onde as políticas
de desenvolvimento sustentável são mediatizadas e reconhecidas (como em
Portland) e as aquelas, mais numerosas, onde as iniciativas são ainda recentes e
menos difundidas. Cincinnati faz parte da segunda categoria. De qualquer maneira,
todas essas cidades militam, - seja na forma “de propostas de ponta”, seja de forma
mais retraída- por uma maneira nova e coletiva de conceber seu modo de
funcionamento urbano, especialmente quanto às práticas de mobilidade no
cotidiano. Esse movimento se insere no âmbito de um fenômeno que certos autores

4 www.mouvables.fr

12
na França denominam de “uma virada urbanística” americana (Chevalier, 2006).
Uma virada que se mostra mais virtuosa em matéria de desenvolvimento e de
organização urbanas, ao menos para o consumo e a acessibilidade dos espaços, e
portanto, mais atenta à integração e à qualidade de vida das populações.
A cidade de Cincinnati se inscreveu neste movimento com o seu Plano Verde o qual
presta testemunho desta transição urbana necessária do ponto de vista da imagem
junto às revoltas raciais de 2001, que tinham reforçado a reputação, e enfraquecido
(em recursos financeiros) a cidade-polo ao abrigar a sede do grupo multinacional
Procter & Gamble. De qualquer forma, havia o interesse público e privado de
demonstrar que a vida urbana densa não apenas é possível como desejável.
Uma dupla iniciativa foi identificada nesse contexto: a primeira destaca a ação em
rede dos atores locais de uma região em que, no assunto mobilidade, diariamente
as pessoas atravessam as fronteiras do condado e do estado para trabalhar. Assim,
seis condados e onze cidades participaram do trabalho de definição de um plano
regional no contexto de uma organização específica de planejamento: « Plano de
Transporte para OKI 20405 ». O objetivo deste plano era contornar a concorrência
intraregional e encontrar subsídios. Nesse âmbito, a coordenação dos atores vai
além das limitações da competência para criar um sistema de transporte eficaz, tipo
BRT – sistema coletivo de transporte integrado – destinado a melhorar a
acessibilidade ao território metropolitano. A segunda iniciativa - a agenda 360
Southwest Ohio – ao contrário do caso de Bordeaux, centrado principalmente na
iniciativa governamental (top down), focaliza os tipos de ação de base comunitária
(bottom up). Sendo necessária a colaboração regional para atender aos objetivos
da Agenda 360, a aliança (dos seis condados e onze cidades) trabalhou em estreita
colaboração com Vision 2015, uma outra organização regional da Grande
Cincinnati versus Nord Kentucky. Essa aproximação permitiu ampliar o conceito de
“Guarda-Chuva Verde”, abrigando 200 empresas agindo na direção do
desenvolvimento sustentável. A Agenda 360 e Vision 2015 definiram assim uma
lista de indicadores destinados a comparar as performances da comunidade da
Grande Cincinnati em relação à onze outras regiões com as quais há concorrência
pelas empresas, empregos e moradores.
As modalidades de governança devem regular as diferentes relações dentro da
mesma cidade e entre estas cidades e os estados federados para que restem
problemáticas ao mínimo. Assim, para Cincinnati, a estratégia da agenda 360,
visando mobilizar o escalão federal (Ohio) se submeteu até o momento à política do
governador do Estado que defende uma política de inovação em matéria de
transporte público. Dessa maneira, a gestão da mobilidade é enquadra à escala
local que é submetida à alianças e coalisões que não entram nos esquemas
clássicos de oposição entre progressistas e liberais de um lado, e conservadores
de outro. No caso do modesto projeto de tramway nos bairros centrais de Cincinnati

5
No original o plano se intitula « 2040 OKI transportation plan ».

13
– o projeto do Street-Car, inscrito na Agenda 360 – os representantes da
comunidade afro-americana se associaram no front de refugo aos liberais e aos
opositores do transporte coletivo. Portanto, a conjunção de interesses muito
divergentes quanto à mobilidade contribuiu para a agregação de desentendimentos
fiscais e segregacionistas que inviabilizaram parte de um projeto multimodal.

Curitiba
Verdadeiro ícone internacional da mobilidade sustentável dos anos 1990, com seu
“metrô de superfície” Curitiba tem a particularidade de se ter alçado à posição de
modelo, e estar regularmente situada em alta posição na lista das boas práticas de
planejamento de transportes públicos sustentáveis. Essa condição decorreu de
uma governança que há 40 anos soube construir um dispositivo perene de gestão,
associando uma equipe ativa em torno do prefeito Jaime Lerner, das competências
técnicas conjugadas no interior de um dispositivo específico (a agência de
urbanismo IPPUC) e a confiança dos investidores e dos financiadores que
souberam se beneficiar – de uma maneira ou outra – desse sistema. Sem esquecer
um contexto autoritário (governo militar) que, paradoxalmente para nossas
consciências ocidentais, permitiu esta experiência em sua origem e uma série de
decisões econômicas muito favoráveis ao Brasil durante os anos 1970 e 1980 em
que a urbanização decolou em conjunto com a industrialização. Sem esquecer
também uma certa capacidade de utilizar a força do marketing público para divulgar
o seu êxito para o mundo inteiro.
Portanto, a pouca legitimidade democrática do nível comunitário, e o aspecto ainda
autoritário da liderança dos personagens políticos e administrativos locais não
facilitam os modos de governança, no sentido das práticas e das regras que
determinam a decisão e a ação. Novos cenários se colocam para debate, além
daqueles dos argumentos técnicos sobre problemas públicos, como os relativos
aos transportes, ao meio-ambiente ou à energia. Cenas que não são
exclusivamente de soberania (como comissões, associações, etc.) como durante
os períodos precedentes, onde a participação popular tinha um papel
essencialmente instrumental, mas sim, cenas que se abrem à participação e à
contestação cidadã, até mesmo ao contra-projeto. Na esfera institucional de
Curitiba, a revisão devida à iniciativa governamental dos planos de mobilidade
urbana em 2012 (o precedente adaptado em 2010 era de natureza muito técnica e
pouco discutida) deu lugar a este tipo de cenas. As audiências públicas foram
organizadas pela municipalidade em 2013 (9 no total), algumas a respeito das
principais diretrizes a serem implementadas em relação aos transportes. As
intervenções e debates fizeram aparecer um certo número de pontos salientes
como a emergência do contexto metropolitano no rol dos problemas de
deslocamento casa/trabalho; a importância da tarifação (ligada com as políticas
energéticas do governo federal), as práticas de corrupção no âmbito do transporte,
mas também o fortalecimento dos grupos de cidadãos e usuários que tem podido

14
debater cenários alternativos (por exemplo, o do metrô) a fim de perenizar o
“modelo de transporte coletivo”. O âmbito das audiências públicas é uma maneira
da nova municipalidade reconhecer plenamente as manifestações “bottom up”.
Para uns, é uma maneira de interpelar as instituições responsáveis (no caso, a
prefeitura) a respeito das práticas anti-democráticas. Para outros, se trata de
traduzir as expressões “bottom up” em projeto como dos que militam por ampliar a
cultura da bicicleta (Programa Ciclovida6), mas também de discutir projetos futuros
para os transportes públicos, dentro de um contexto marcado pela urgência e pela
ameaça (trombose automobilística, poluições diversas, insegurança). Mais
globalmente, esta estratégia é o sinal e o reconhecimento do fortalecimento do
poder das classes médias urbanas no Brasil, as quais sustentam fortes
reivindicações sobre a qualidade do padrão de vida, sem se restringir à única
temática dos transportes públicos.

Convergências e divergências

As três metrópoles possuem em comum territórios em tensão, com problemas de


governança, os quais são mais fortes do que a cidade que se espalha
geograficamente como Cincinnati, que os perímetros da metrópole que extravasam
as fronteiras institucionais como em Bordeaux, e que a fragilidade dos níveis
intermediários de governança entre cidade e metrópole, como em Curitiba.
Contudo, se destaca nesse efeito a capacidade dos atores de se inserir dentro das
lógicas dos planos em diferentes escalas, apesar das diferenças nas lógicas de
mobilização dos atores da “transição” (políticos, cidadãos, empresas, técnicos),
como revelam as cenas locais de debate. Assim, as 3 cidades estão inseridas em
uma postura participativa que consiste a ler a realidade e a fazer cenários para o
futuro, a saber o que é desejável e os meios para tornar possível esse desejo. Esse
relato visa a população (a sociedade civil), os contextos de negócios e as
organizações associativas em favor de uma tomada de consciência, e de uma ação
voluntarista para limitar os efeitos nefastos da urbanização em face às mudanças
climáticas, e a imaginar nesse sentido um regime de mobilidade mais sustentável.
Mesmo se neste plano a competitividade como a questão social, através da
acessibilidade e da coesão social, formem as prioridades que limitam o alcance do
imperativo ambiental.

CONCLUSÃO

Em um ambiente urbano mundializado onde os elementos de uma cidade pós-


carbono são regularmente discutidos, as questões de mobilidade cotidiana e de

6 Programa da Universidade Federal do Paraná criado em 2007. (Nota da tradutora).

15
acessibilidade à cidade devem ser levados a um novo nível de incertezas: aquele
da mudança climática e da nova ordem energética. Três pontos fortes se
desprendem de nossa comparação que a traduzem em termos de “regime de
mobilidade” e de tipos específicos de transição.

Uma inflexão dos regimes de mobilidade dominantes

O regime de mobilidade dominante – seja aquele do automóvel em Bordeaux e


Cincinnati – ou seja aquele de dois regimes como acontece em Curitiba (ônibus e
carro) – passou por numerosas inflexões quanto às condições de vida
metropolitanas. Aconteceram inflexões importantes em cada uma das situações
estudadas: tanto no âmbito do replanejamento de uma grande via urbana que
redesenha a proximidade dos bairros, assim permitindo a caminhada; quanto
naquele grande projeto de renovação urbana de um setor antigo de moradia,
estruturado entorno de um nó de mobilidade lenta e de transportes coletivos; ou
bem ainda com um plano ambicioso de deslocamento em bicicleta que oferece uma
alternativa às soluções binárias entre ônibus ou automóvel. Com certeza uma das
razões mais importantes é enfrentar os riscos múltiplos e concretos de imobilidade
resultante da congestão automobilística, mas também de responder às
necessidades de segurança, a redução das desigualdades sociais, mesmo de
maneira mais hipotética conforme as cidades, e de antecipar o risco climático.
Contudo, o adiamento modal induzido pela multimodalidade se torna por toda parte
uma opção que considera a hipótese de um automóvel que, no limite, poderia se
tornar um modal de deslocamento dentre outros.
As mudanças que são devidas a este regime de mobilidade variam em função do
contexto: podem ser de natureza vinculada ao planejamento do regime
implementado, estritamente pela melhoria da infraestrutura, ou pela reorganização
do tecido urbano (como no caso da policentralidade em Cincinnati). Ou as inflexões
podem ser de natureza a ampliar o sistema para novas práticas de mobilidade,
como a multimobilidade e a intermobilidade à maneira europeia, como no caso de
Bordeaux. Ou ainda, as inflexões podem ser para preservar ou ganhar partes do
mercado dentro de um regime mais centrado na oferta de transporte coletivo (como
no caso do ônibus metronizado em Curitiba). Mesmo que as transformações do
regime automobilístico se mostrem limitadas por variados efeitos (de
aferrolhamento) políticos ou financeiros, se constata em cada cidade a
preocupação de lançar proposições, de redefinir a oferta de mobilidade. Algumas
proposições vingam, levadas adiante por grupos, em contextos como do
planejamento, de operações-piloto, ou por iniciativa de grupos de atores da
sociedade civil, empresários, ONG’s, associações, universitários que acreditam em
dispositivos participativos de reflexão e mudança.

16
Sem dúvida, exceto o caso bordelês que anuncia suas intenções, nós não estamos
ainda na perspectiva do desenvolvimento metropolitano sob o ângulo de um regime
(europeizado) de mobilidade sustentável que, num dado momento, se tornaria
dominante. Contudo, a abordagem específica da metropolização nos termos de
mobilidade, com características duráveis ou sustentáveis, levanta, dentre as
problemáticas de transporte, inicialmente interrogações de ordem social e
ambiental, e em seguida energéticas. E, mesmo que se combinem pouco com
considerações sobre qualidade de vida e sobre atração econômica das cidades,
realmente essa abordagem aparece para as elites locais como uma “vantagem
metropolitana”.

Contexto e regimes de mobilidade dominantes

A governança revela o peso das lógicas urbanas e individuais que caracterizam a


ação das instituições locais em matéria de oferta de mobilidade. Trata-se
primeiramente de gerar volume de movimentação, de antecipá-las no meio, com
base nos planos (Green Plan em Cincinnati, Plan Climat/Energie em Bordeaux,
Plano de Mobilidade em Curitiba). Para isso é necessário dispor de instrumentos
de gestão antecipatórios, a fim de estimar o crescimento espacial e o consumo dos
recursos em um mundo que se tornou incerto socialmente, economicamente e
financeiramente. A parte vivenciada por cada um dos casos estudados, pela
sequência da montagem técnico-financeira dos projetos é significativa nesse
aspecto, e mostra a fragilidade dos equilíbrios institucionais: veja-se a saga do
Street-Car em Cincinnati, a novela do metrô em Curitiba, os riscos do Sistema VLT
em Bordeaux.
Trata-se também de agir no âmbito da mobilidade, em função de uma lógica de
adaptação à mudança climática e às suas consequências, especialmente locais,
mesmo se o nível de tomada de consciência sobre este assunto seja desigual. Uma
mudança que se manifesta na escala planetária, mas sobre a qual se reconhecem
efeitos geográficos diferenciados, localizados quanto ao clima urbano. Donde o
reconhecimento do risco ambiental, de suas expressões em termos de qualidade
de vida e de saúde. Nesse sentido, é o caso do sistema integrado de mobilidade
de Curitiba, “capital ecológica”, facilitando a acessibilidade ao transporte coletivo
para todos, como reconquista dos espaços públicos em relação ao automóvel;
“lugares de alta urbanidade” em Bordeaux; da transformação de um projeto de
transporte em um ecossistema sustentável em Cincinnati; todos os casos visando
reduzir as externalidades negativas dos transportes sobre os ambientes naturais e
construídos das metrópoles.
Enfim, a questão da governança da mobilidade leva em conta as relações –
interações – da cidade com todos os territórios sob sua influência: entorno e região
urbanizada. É na “grande escala” que se definem as escolhas técnicas, os objetivos
de planejamento e os esquemas de organização dos transportes. Ou, estes saltos

17
e jogos de escala remetem aos modos de governança, sejam os que estão em vigor
(Bordeaux e Curitiba), ou os torna ainda mais complexos como em Cincinnati e,
portanto, obrigam à pesquisa sistemática de parcerias, a recorrer à uma regulação
à base de contratos e/ou de compromissos.
É, enfim, uma maneira de agir publicamente com apoio na imagem da cidade. Por
todos os lados, nós notamos a vontade das cidades de adquirir ou de preservar
uma imagem de criatividade e de dinamismo em matéria de inovação e de
experimentação. A mobilidade se constitui em um atributo essencial, o mais
frequentemente em conexão com a morfologia e a forma urbana. Trata-se, portanto,
de implementar novos conceitos para mudar a ideia de cidade junto aos habitantes.
Assim, a melhoria da imagem de um bairro mais denso e melhor conectado pode
guiar a localização de habitantes e atividades, e oferecer uma alternativa ao
subúrbio, como em Cincinnati; a revalorização do modal de transporte possibilitar
novas práticas, mais sóbrias quanto ao uso de energia – o tríptico tramway,
bicicleta, caminhada – como em Bordeaux, ou ainda a instalação de uma “linha
verde”, um longo corredor verde ladeado por parques, percorrido pelos ônibus
articulados, usando bio-combustível, e melhorando o serviço público em Curitiba.
Do lado da sociedade civil, o estudo dos fatos ligados à mobilidade e de suas
representações destaca os fatores determinantes próprios de cada experiência
metropolitana. Alguns são de ordem econômica e tecnológica, outros de natureza
financeira ou importante quanto à urbanidade. Em Cincinnati, cidade sem limite
quanto a práticas urbanas de mobilidade, há as vantagens da proximidade como
fator de bem-estar quanto à saúde e de melhor qualidade de vida. Em Bordeaux, se
perfila um usuário esclarecido, utilizador de modais lentos e partidário de
sobriedade energética nos bairros ecológicos, instaurando ao mesmo tempo uma
metrópole binária onde o automóvel reina na periferia e onde as opções intermodais
se impõe nas áreas centrais da aglomeração. Em Curitiba, a Universidade Federal
do Paraná desenvolve um projeto de mobilidade para a bicicleta, primeira alternativa
de ampliação da oferta de opção ao transporte coletivo e o aumento do veículo
individual.
Os dispositivos de modificação das práticas remetem às iniciativas levadas à cabo
por indivíduos e grupos, habitantes e usuários, associações cívicas e redes sociais
em matéria de mobilidade sustentável e/ou durável. Estes dispositivos baseados na
evolução dos comportamentos das famílias não ficam à margem e focalizam a
atenção e a expectativa dos atores públicos que formam uma estratégia de
reconquista dos territórios centrais sob o regime do automóvel individual. Eles
suscitam também o interesse dos atores econômicos que veem se abrir, por essa
mediação, novos mercados voltados à diversidade de vetores energéticos
potenciais como o gás natural, o biogás, a eletricidade, o hidrogênio, a motorização
híbrida. Tanto as práticas fazem passar da condução do seu próprio veículo para a
escolha do seu próprio modal de mobilidade, da propriedade para o uso, que elas
transformam em profundidade a “fábrica do movimento”. Práticas que se toma

18
como referência nas três metrópoles, mas de maneira ainda dirigida, para as
populações “pioneiras”.
De maneira geral, a mobilidade ou sobretudo o potencial de mobilidade levanta
questões sobre as desigualdades estruturais de classe e de raça em Curitiba e em
Cincinnati, de precariedade e de exclusão para as habitações modestas e para as
populações rurais em Bordeaux. As experiências metropolitanas suscitam assim,
um certo número de controvérsias em cada situação: os efeitos da gentrificação,
tanto as iniciativas públicas parecem dizer respeito às classes médias relativamente
abastadas do centro da cidade que para aqueles que viajam longas distâncias, as
segregações sociais e espaciais, o peso das políticas nacionais de energia, o papel
das baixas densidades urbanas, os cálculos de interesse (o lobby automobilístico),
e mesmo a corrupção.

Formas de transição e mudança

A partir da análise dos modos e procedimentos de mobilidade, nós podemos inferir


finalmente as formas de transição para cada situação, assim como as dinâmicas de
mudança em cujo âmbito se inscreve a abordagem de funcionamento metropolitano
de mobilidade.

A transição eco-energética está claramente colocada em Bordeaux, onde ela


supera os objetivos fixados pelas políticas de transporte na escala metropolitana.
Segundo os fatos, ela está no estágio da experimentação, da criação de locais-
piloto no âmbito de projetos de éco-bairros urbanos, ou na futura implantação de
uma rede de transporte metropolitano, do tipo RER regional.

Ela é uma transição socioambiental em Curitiba, onde as preocupações sociais de


acessibilidade aos transportes coletivos e ao “direito à mobilidade” se colocam de
acordo com uma organização de mobilidade urbana respeitosa com o meio
ambiente, sob o caminho traçado por 40 anos de planejamento. A crise da
primavera de 2013, que em parte surgiu pelas reivindicações sobre o custo do
transporte, é a expressão mais marcante.

Cincinnati experimenta uma transição urbana onde as questões de mobilidade e de


acessibilidade são tratadas como suporte das políticas de revitalização, que visam
reatar com a recuperação econômica e de renovação da imagem (branding) das
áreas centrais. A preservação e valorização do meio ambiente (o clima urbano) são
apresentadas como uma nova força de prosperidade e de saúde (caminhabilidade),
sugerindo a multimodalidade dos deslocamentos sem colocar em questão o uso
predominante do automóvel.

Referencias

19
Allaire J., Criqui P. 2007. Trois modèles de ville Facteur 4 : comparaison
internationale. Les annales de la recherche urbaine, n° 103, p. 54-63.
Badia, T D « Au Brésil, Curitiba, l’ex-ville modèle d’Amérique latine, peine à se
réinventer », Le Monde blogs 27 mars 2014.
Banister D, 2008, The sustainable mobility paradigm in Transport Policy 15, pp 73-
80
Chevalier J, 2006, Défi énergétique et « tournant urbanistique ». les initiatives des
agglomérations des Etats-Unis. Les annales de la recherche urbaine, n°103.
Futuribles : La société postcarbone, n°392, janvier 2013.
Hartog F, 2003, Régimes d’historicité. Présentisme et expériences du temps.
Editions du Seuil.
Kaufmann V (Dir) 2011, Mobile, Immobile. Quels choix, quels droits pour 2030,
Editions de l’Aube.
Le Nechet, F, 2011 Consommation d’énergie et mobilité quotidienne selon la
configuration des densités dans 34 villes européennes, Systèmes, Modélisation,
Géostatistiques.
Viard J, 2006, Eloge de la mobilité. Essai sur le temps libre et la valeur travail.
Editions de l’Aube.

20

Você também pode gostar