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Cemitério de elefantes
Dalton Trevisan
3ª edição
Civilização Brasileira
Montagem de capa: Dounê
Diagramação: Léa Caulliraux
Direitos desta edição reservados à
EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S. A.
Rua da Lapa, 120 – 12º andar
RIO DE JANEIRO
1972
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
Contracapa
Dalton Trevisan reúne os melhores momentos do seu universo de
ficção.
Em breves e densas narrativas o autor apreende neste livro os dramas
pungentes ou ridículos de uma pequena humanidade vivendo o seu banal
cotidiano em meio a frustrações e amarguras, anseios sopitados e miúdos
sonhos que nos tocam por sua amplitude universal e extraordinária
realização artística.

Abas

ELEFANTES

Les éléphants sont contagieux.


(Provérbio surrealista)

Se você vai ler DALTON TREVISAN pela primeira vez, eu o invejo. Não é
todos os dias que temos essa revelação do primeiro encontro com um
grande escritor. Digo-lhe mais: você vai encontrar DALTON TREVISAN em
um de seus melhores momentos, este Cemitério de Elefantes.
Os elefantes são por definição mitológicos, não tivessem eles carregado
o mundo no dorso durante tanto tempo, DALTON TREVISAN é também um
mito. Não ficaria nada admirado se, depois de ler o livro, você me viesse
com uma pequena decepção. Afinal de contas não são assim tão grandes.
Há muitos anos, um amigo me pediu uma relação de romances que ele
deveria ler. Indiquei-lhe alguns. Mais tarde me comunicou que desistira de
lê-los, porque logo o primeiro, aquela história de pescaria, era de fazer
dormir um pote.
Que história de pescaria, quis eu saber (não lhe indicara nenhuma
história de pescaria). Moby Dick. Botei as mãos na cabeça: Moby Dick, uma
história de pescaria! Nem o tamanho da baleia branca impressionara aquele
diabo.
Pode acontecer que você já tenha lido elogios ao autor deste livro e
queira saber por que nós o colocamos nos cornos da lua. Em primeiro lugar,
não empregamos essa linguagem bárbara. Em segundo, achamos
simplesmente que DALTON TREVISAN é o maior contista brasileiro vivo e um
dos maiores que o mundo possui atualmente. Por que então é ele menos
conhecido do que o permitiriam esses títulos? Porque é um homem
misterioso. Ninguém sabe onde ele mora, ninguém o vê.
Sabemos que ele existe porque publicou alguns livros e porque — eis o
principal — de tempos a tempos, alguns privilegiados recebem pelo correio
um folheto rústico, onde se contém a melhor literatura escrita no Brasil.
Quando isso acontece, esses privilegiados vão para um canto escondido e
saboreiam as páginas de DALTON como quem toma um excitante.
Depois, na rua, trocam sinais misteriosos, cochicham e olham para o
resto do mundo com um ar de superioridade. Se alguém lhe falar no
vampiro de Curitiba, é DALTON. Especialmente se lhe falar em Curitiba. Há
no mapa uma cidade com esse nome.
É outra. Curitiba, mesmo, está todinha em DALTON, com seus tarados e
suas solteironas, seus botequins e seus casos noturnos. Alguns curitibanos
ficam orgulhosos quando lhes dizemos que eles vivem na capital do mundo.
Mas isso é um código nosso, que eles não entendem. A falar verdade, eles
nem sequer vivem em Curitiba.
Leia este livro como se fosse um clássico. Não se preocupe com as
histórias. Se elas não terminarem, é porque os personagens regressaram à
sua vida normal, ou DALTON não quis acompanhá-los por mais tempo.
Todos eles estão vivos, a distância entre as páginas deste livro e a realidade
é menor do que entre uma rua e outra. (Cuidado com os alfinetes.
Eles podem espetar as duas moças gordas. Não dê dinheiro ao velho.) O
segredo da grandeza de DALTON TREVISAN é esse: trazer o mundo para
dentro de seus livros, sem distorções, sem desidratar a realidade. Viver já
em si é uma coisa espantosa. Manter a vida é como empalhar o pássaro sem
que ele deixe de cantar. Que faz DALTON? Não empalha.
Nas suas histórias não há grandes tragédias nem sujeitos excepcionais.
Seu mundo é tão real que talvez nem seja captado para nós de hoje: sua
obra é todo um ato de sobrevivência — sobrevivência de uma linguagem,
de um tipo de vida, de um tipo de morte. Nenhum outro escritor brasileiro
atual traz mais do que ele a marca do futuro, o sinal forte da perenidade. Ele
escolheu a estrada simples dos que têm alguma coisa a dizer.
Os elefantes morrem na solidão, você sabe, e além da tromba e do
marfim têm os seus dias de circo e de furor. No mais, são medíocres e
pacíficos. Não diferem muito dos homens.
Para DALTON TREVISAN, os homens vivem na sua florestazinha
particular, num assombro. O homem e a mulher são animais que precisam
de ternura e de sonho, e se alimentam de frustrações e de chocolates.

FAUSTO CUNHA
Sumário

O primo
O caçula
Questão de família
A casa de Lili
Angústia do viúvo
Duas rainhas
À margem do rio
O espião
Uma vela para Dario
O jantar
Ao nascer do dia
Dinorá, moça do prazer
Os botequins
A armadilha
Beto
O roupão
O baile
Caso de desquite
O coração de Dorinha
Dia de matar porco
Bailarina fantasista
A visita
Cemitério de elefantes
Morte na praça
Começo de vida
O velório
Entre homens
Cena doméstica
Paixão de corneteiro
Ismênia, moça donzela
Casa iluminada
O coronel
Filha de Babilônia
A mão e o punhal
Iaiá, por que choras?
André e o Rei da Inglaterra
Orgulho de mulher
A viúva
CEMITÉRIO DE ELEFANTES
O primo
Na primeira noite ele conheceu que Santina não era moça. Bento havia
casado por amor e ficou desesperado; matar a noiva e suicidar-se era deixar
o outro sem castigo.
Depois de muita insistência, ela revelou que, havia dois anos, quando se
achava deitada, pajeando uma criança, entrara no quarto um primo chamado
Euzébio e lhe fizera mal, sem que pudesse defender-se. De vergonha, não
contara a ninguém e prometera a Nossa Senhora ficar solteira.
O próprio Bento não a deixava mentir e fora testemunha da sua aflição
antes do casamento. Santina pediu perdão, mas ele respondeu que era tarde
— ela casara de grinalda sem ter direito.
A mulher jurou que, se não falasse com ela, iria enforcar-se no galho da
pitangueira. Concordou Bento em aceitá-la por alguns dias, até decidir o
que seria da vida deles. Santina procedia corretamente, atendendo aos seus
pedidos e agradando-o quando ele permitia. Lavava toda a roupa, não
deixava faltar botão na camisa e remendou a calça de fazenda riscada. Por
mais que ela se enfeitasse, com banho no rio e fita no cabelo, Bento
mastigava a raiva no prato de feijão.
Ficou muito nervoso, comia pouco e quase não dormia, olhos acesos na
escuridão. A moça estirava-se a seu lado, sem que um pudesse consolar o
outro. Nunca mais ele fez qualquer carinho. Não resistindo por vezes ao
desejo, dispunha dela como de uma dama, sem a menor delicadeza.
Aconteceu duas ou três noites, afinal ele se dominou e a deixou em paz.
Não podia esquecer o agravo, ofendido com o primo, e sentia gana de se
vingar. Era verdade que Santina apenas se casara de tanto ele insistir, mas
não se conformava com a traição. Ah, se lhe houvesse contado antes...
quem sabe pudesse perdoar e, pelo caminho, berrava palavrões e feria as
árvores com o machado.
Euzébio morava na cidade e Bento conseguiu da mulher um retrato
dele, em grupo familiar, aos oito anos de idade: um rostinho assustado de
criança. Começou a atormentá-la para saber mais — ela fez cruz na boca.
Recortou a silhueta do piá, insignificante entre as pernas dos adultos, e a
pendurou no espelho da cozinha, onde a estudava cada manhã, ao fazer a
barba.
De gênio manso que era, tornou-se violento e mau. Bem quieto no seu
canto, os camaradas não se aproximavam dele, adivinhando-lhe o ódio.
Numa rixa de botequim, cuja origem ninguém soube explicar, agrediu com
tal fúria um dos amigos, que lhe partiu o braço, defeituoso para o resto da
vida. Perversamente divertia-se matando corvo a tiro.
Certa noite, sem poder dormir, saltou da cama e foi ao potreiro, onde se
pôs a espancar o cavalo tordilho até deixá-lo estropiado.
Foi o primeiro a ter consciência de que não era o mesmo e, para que
todos soubessem, deixou crescer o bigode. Depois de almoçar sentia o
ventre em fogo, a comida inchando a barriga — torcia-se com medonhas
cólicas e suor frio escorria da testa. Enrolava o cigarro de palha, de repente
a pálpebra direita piscava sozinha e, então, usou o chapéu de aba derrubada.
Por fim decidiu entregar a mulher ao sogro Narciso.
Velhote de fala macia, agradava aos que lhe pagassem bebida.
Maneiroso, encheu de cachaça o copo de Bento e afiançou que podia
receber a filha, se era como dizia o moço; pena que estivesse fora do prazo
de verificação. Não carecia de se exaltar e ficasse com a menina, não como
dona de casa, mas criada de servir.
Bento cuspiu no chão e o esfregou com a bota, de nojo do velho. Não
expulsou a mulher e passou a viver os dias desgostoso; entrando em casa,
não a podia encarar. E porque não a olhasse, ela chorava. Persistia na faina,
enrolando a massa do pão, os braços enfarinhados até o cotovelo, e ainda
era mais triste observá-la a furto, as lágrimas escorriam do rosto, sem que as
enxugasse, para ele não reparar na sua aflição, intrigado porque não a
abandonava, tinha pena dela que chorava muito e, além do mais, estava
grávida. Já não pretendia matar o primo e sim avisá-lo que a viesse buscar.
Não mais sonhava em abafar no travesseiro o rosto da moça, antes
precipitar-se do alto da pitangueira, a corda no pescoço e com um berro de
ódio.
Ao sair de casa pela manhã, depois de tomar café com beiju (comovia-
se ao surpreender os modos desajeitados de Santina, a figura contemplativa
em sossego, a enorme barriga, os olhos vermelhos de soprar as cinzas a fim
de ferver mais depressa a água; a sua faceirice ingênua que, bem o sabia,
não era mais para ele e sim para o outro que ia nascer; os dedos rudes
penando no afã de bordar uma touca — azul ou rosa? — e sentia-se prestes
a iniciar o diálogo sobre a preferência do sexo e a escolha do nome, para
sempre esquecido o retrato no canto do espelho), reparou Bento num rapaz
de sua idade conversando com o velho Narciso à porta do botequim, bons
amigos que se davam palmadinhas nas costas. Ainda pensou em voltar:
nunca se encontrara com o primo e não teve dúvida de que era ele.
Os dois já o tinham avistado e cochichavam do segredo vergonhoso.
O beiju e o café eram vidro moído rasgando as entranhas — não se
sustinha de pé, com a vista turva e as pernas trêmulas.
Mal podia erguer as botas, tão penosamente como se arrastando através
de chão lamacento e, entre clarões, distinguia aos poucos, no lugar do
rostinho assustado da criança, o carão obsceno do primo. Os dois
estancavam o riso e o velho Narciso tinha a boca aberta da graça
interrompida.
Todo o empenho de Bento era se manter de pé, a cabeça baixa,
resfolegante ao galope do coração.
Sem se dar conta encaminhava-se direito aos dois homens.
Levantou a cabeça e abriu com dificuldade a boca para os cumprimentar
— som algum produziu a careta de dor. Viu surgir, outra vez, no vulto do
primo o rostinho medroso do retrato, já o velho estendia a mão e
interpunha-se entre eles. Bento conseguiu desprender o braço e, cego de um
olho pelo tremor da pálpebra, encontrou na cinta o punhal e, sem palavra,
atingiu com força o primo, fundo e uma só vez. Euzébio levou as mãos ao
ventre, tropeçou alguns passos até cair, gaguejando surpreso e com voz
rouca:
— Ele me esfaqueou!
Bento ficara no mesmo lugar, vacilante aos golpes do velho Narciso e
dos outros que o atacavam com ripas da cerca. Esquivando-se às pancadas,
sacudiu a cabeça, a faca ensanguentada na mão:
— Eu corto o primeiro que se mexer.
Correu em direção a casa onde Santina o esperava no portão. Ao chegar
perto, ela pediu:
— Acabe também com minha vida.
Encarou-a pela última vez — a moça até se espantou dos olhos de tanto
amor — e, o punhal caído a seus pés, deu-lhe as costas e desapareceu na
curva da pitangueira.
O caçula
De volta da repartição, José pendura o chapéu no cabide e atira na mesa
da sala a correspondência que retirou da caixa postal. Assim que ele entra
no quarto, o velho Francisco, que estava à espreita, vem apanhar as cartas e
o jornal.
A mãe bate na porta e traz o prato de comida na bandeja.
Assiste ao almoço de José, sentado na cama, e põe um pouco de ordem
no quarto. Antes de se afastar, passa-lhe a mão de leve na cabeça quase
calva:
— Meu filho, por que você não fala com seu pai?
— Puxa, mamãe. A senhora não vai aprender nunca?
Há dez anos, José não fala com o pai e faz as refeições no quarto. Até
hoje, os filhos, quase todos casados, não têm permissão de fumar na
presença do velho Francisco; ai de quem esquecia de tomar a bênção pela
manhã e antes de dormir! José, o caçula, mimado pela mãe, foi o único a
desafiar sua prepotência.
— Esse rapaz, Cecília, não tem jeito não.
— Estou velho demais, mãe, para pedir louvado.
Os filhos casaram e desertaram a família, ficou somente José. O pai, que
se diverte cm maltratar a coitada de D. Cecília, verifica antes se ele não está
por perto. Envelhecem, ambos intransigentes no seu rancor, o ancião lépido
aos setenta anos e José, de bigode grisalho, na casa dos quarenta. Herda os
ternos usados dos irmãos e D. Cecília, escondida do marido, dá-lhe pequena
mesada para cinema e cigarro.
Após o rompimento, proclamando que não queria ser dependente do
pai, José circulou por algum tempo de pasta, com prospectos de seguros e
amostras de chocolate. Não vendeu apólice alguma, era suficiente a
importância da pasta preta. As amostras ele mesmo comeu. Chegava em
casa, o paletó nas costas e, diante da velha, pretendia estar exausto. Acabou
ocupando-se em recados e servicinhos para a mãe.
Se lhe entregam um cheque para descontar no banco, sente-se
imediatamente aflito. Dos jornais lê a página esportiva, perplexo ao ser
informado que a Rússia é comunista.
Tido como rapaz bem mandado, embora incapaz de ganhar a vida.
Romântico, foi noivo duas vezes. A primeira de uma Fagundes, gorducha e
ruiva. O velho Francisco levantou os braços para o céu:
— Onde é que esse rapaz tem a cabeça?
José desfez o compromisso, depois de uma discussão com o pai —
como iria sustentar a família se não quer nada com o trabalho? — e não
mais se falaram. A moça casou com outro, do qual se separou um ano mais
tarde.
Anunciou José em voz alta para que o pai ouvisse lá da sala: — Aqui do
bichão elas não se esquecem!
O noivado seguinte foi com uma prima de terceiro grau, bem ao jeito de
D. Cecília, que fez gosto no casamento.
Chamava-se Laura, era magra, bonitinha e anêmica. José não se decidia
a marcar a data e ela acabou morrendo, doente do peito, cinco anos depois.
Uma tarde surgiu na casa a mãe de Laura, que vinha reclamar as cartas da
filha.
José ficou em dúvida se as teria ou não devolvido. Acompanhado das
duas senhoras, foi vasculhar o quarto, enquanto D. Cecília se desculpava
das migalhas na cama. Após muita busca, encontraram as cartas amorosas
de Laura perdidas no fundo de um baú — o noivo as jogara lá e se
esquecera delas.
Às festinhas de família comparece o irmão Agenor, preferido do pai.
José retira-se e só volta de madrugada, mais bêbado que das outras vezes. A
mãe traz-lhe a comida, e ele se queixa, coçando a barba:
— O menino de ouro vem aí. Dão o auto para ele. O menino querido sai
de auto. E o bichão aqui não tem nada.
Depois dizem que sou eu que vivo à custa do Chiquinho.
— Respeite o seu pai, meu filho.
— Quem, o Chiquinho? Ele que se dê ao respeito para as negras dele.
O pai espairece pelo jardim, de braço dado com Agenor.
— Olhe a calça caída do Chiquinho. O velho vai mal, hein, mãe? Já está
de pescoço fino.
Bebe furiosamente durante a semana e, no domingo, deixa-se estar em
cuecas, peito cabeludo, o dia inteiro debaixo do lençol, folheando antigas
revistas e bebericando copos de leite. A mãe censura-lhe a falta dos dentes.
— De todos não, mãe. Veja, o canino está firme. Ora, o Chiquinho quer
que tome a bênção, não é?
— Deus te ouça, meu filho.
— Pois este canino é para lhe morder a mão!
Não sossega a velha Cecília enquanto ele não chega e, muita
madrugada, envolve o xale na cabeça e vai brigar com o botequineiro:
— O senhor é que está perdendo meu filho. Não deixa ele ir para casa.
Segura ele aí nessa vida de perdição.
Defende o filho das insinuações da família do marido:
— Nada como um moço em casa. Se entra um ladrão, a mulher
esmorece. O que pode um casal de velhos?
E olha dos lados, que o velho Francisco não escute, ainda se considera
mais homem que o filho.
— Um moço é diferente. Ele enfrenta o ladrão!
José tem fama de bailar tango com passinho floreado na pensão de
mulheres, o lenço de seda ao pescoço, chapéu de banda para esconder a
calvície:
— Fiquei careca do elixir 914 que deram ao Chiquinho!
É o querido das damas, às quais conta história terrível: o Chiquinho
descoberto aos beijos com uma negra, há dez anos proibido de frequentar o
quarto da dona da casa.
Em desafio ao velho, exibe-se aos sábados, no cinema, de braço não
com uma, senão duas e três putinhas douradas de plumas — por todas é
amado de graça. E cada dia está mais parecido com o pai, o mesmo andar
de mãos cruzadas nas costas, o jeito de alisar o cabelo atrás da orelha.
Questão de família
Há um ano Elvira estava casada no religioso com Miguel, de quem tinha
um filho de seis meses. Nos primeiros tempos viveram em boa paz. Nasceu
a criança, e como era doentinha, passaram a discutir. Miguel pretendia que a
mulher não cuidava do menino como era preciso.
A mãe dele mimava o netinho, ficando Elvira com raiva da sogra.
Miguel começou a se embriagar; berrava palavrão, dava soco na mesa e
provocava os vizinhos. Depois avançava contra a mulher, que fugia com o
filho para o quintal. Elvira ia pernoitar na casa paterna, de regresso no dia
seguinte.
Por duas vezes ela foi espancada. Para apagar a luz, subia na cama e
torcia a lâmpada no bocal. Perdeu o equilíbrio e quase caiu em cima da
criança, quando Miguel a segurou e lhe deu uns tapas para que tivesse mais
cuidado.
Na segunda vez, o filhinho choramingava e, como estivesse inquieto na
cama, Miguel pediu que a mulher o ajeitasse melhor, ao que ela respondeu
mal. Então acertou um tabefe no olho de Elvira que rolou sobre a máquina
de costura.
De manhã Miguel foi para o serviço e, na volta, com espanto recebeu da
mãe a notícia de que Elvira e o filho estavam na casa do sogro, tendo a
mulher carregado tudo o que era dela.
Elvira chegou à casa do velho Felipe chorando muito, com manchas
azuis no corpo — Miguel havia batido nela por intrigas da sogra.
Ele foi beber no botequim: desafiou que ali não havia homem e cuspiu
no soalho. Um dos presentes o ameaçou com o chicote e Miguel,
arrancando do punhal, fez o outro fugir. Um terceiro quis desarmá-lo e saiu
ferido na orelha esquerda.
Invadiu a casa do velho Felipe, e como de costume quando bêbado,
derrubou cadeiras e bradava nomes feios contra a sogra. Dando gritos ele
pulava com a garrafa na mão. Provocou discussão com o sogro e despiu o
paletó para brigar. Conseguiu Felipe que ele vestisse o casaco e lhe
entregasse a garrafa. Como não enxergasse bem, Miguel estranhou a fala da
sogra e passou uma rasteira, estirando-a no chão com as pernas de fora.
Felipe acudiu em socorro da velha, que gemia muito.
Com a machadinha de picar lenha, Miguel desferiu-lhe três golpes que
foram desviados. O sogro alcançou a garrafa e o derrubou com uma
pancada na cabeça. Partiu-se o vidro e gritou o velho com o gargalo em
punho:
— Acertei uma boa!
Aturdido, Miguel levantou-se e saiu cambaleante. Elvira foi atrás para
saber se estava ferido. Sentia-se um pouco tonto e a mulher, palpando-lhe a
cabeça, descobriu um caroço no lado direito. De repente ele esmoreceu e o
corpo foi ao chão, os pés numa poça d'água. Ia dormir e, depois que
melhorasse, tornaria para casa.
Ergueram-no as duas mulheres pelos braços, era pequeno e magrinho,
só quando bebia ficava perigoso e muito ligeiro.
Amparado nelas, Miguel caminhou até o quarto e ainda voltou a cabeça
para resmungar um palavrão contra o sogro.
Deitado na cama balbuciou algumas palavras. Foi-se arruinando ao
ponto de perder a fala e de madrugada saiu-lhe uma espuma branca na boca.
Pela manhã era transportado para o hospital e morria sem reconhecer a
esposa que lhe sustentava a cabeça no colo. Quando o desceram da carroça
ficou um pouco de sangue no vestido amarelo de Elvira.
A casa de Lili
Após o falecimento do marido, D. Carlota, gorda de noventa quilos,
realizou com a filha uma célebre viagem de vapor, onde ambas passeavam
de guarda-pó no tombadilho.
Foram pagar uma promessa em longes serras e deixaram na gruta da
santa o retrato de Lili, com o pedido de um noivo; no verso da fotografia
estava rabiscado o endereço. Qual não foi a surpresa de D. Carlota quando,
um ano mais tarde, bateu à sua porta o distinto moreno, de bigodinho, que
se apresentava para casar com a moça, depois de ver o retrato na gruta.
Os que passavam na rua entreviam, pela cortina de bolinhas azuis, Lili
ao piano e o cometa, de pernas cruzadas, calça xadrez e polaina, sacudindo
a cinza do charuto no soalho fulgurante com faixas quadriculadas a óleo.
Lustre prateado de canutilhos pendia do fio coberto de papel crepom.
Loucas flores de parafina cresciam em vasos envoltos no estanho das
carteiras de cigarro. Na mesinha, frutas de cera e estatuetas; ao pé dela, uma
boneca faustosamente vestida. Quadrinhos recortados de revistas — e as
molduras eram desenhadas na própria parede. Discretamente, a um canto, a
preciosa escarradeira de porcelana azul.
No domingo iam de trole à missa, o caixeiro de palhetinha e bengala, e
Lili, a boca pintada em coração, o curto pescoço afogado na pele de coelho.
Apresentou-se então um circo na cidade. Antes do salto mortal, rufava o
tambor e D. Carlota ficava de boca aberta, sem engolir a pipoca. No
intervalo, desfilando entre as cadeiras, os volantins em maiô branco de
malha ofereciam retratos coloridos. Com o circo viajou o cometa,
enfeitiçado da loura trapezista.
Alegrou-se a gente perversa da cidade com a desgraça das duas
senhoras: alguns de nós pretendiam ter surpreendido o caixeiro saltando de
madrugada a janela do quarto de Lili.
Na noite seguinte, iluminou-se a sala, de janelas abertas, e ouviu-se o
piano. Era a moça, muito pintada, ninguém podia dizer se teria chorado, os
grandes olhos assustados, a cabecinha trêmula e um pente de madrepérola
no cabelo. D. Carlota ouvia, rigidamente sentada, com o lenço de seda ao
pescoço.
Lili continuou a dar lições de piano, gorducha, baixinha e de sorriso
triste, um brilho de ouro nos dentes miúdos. A uma das vizinhas que se
referiu à ausência do caixeiro, levou-a até o oratório da família. Ao pé das
imagens, entre os retratinhos dos entes queridos, lá estava o do noivo. No
cinzeiro da sala, intocável, o último charuto que havia fumado.
Na tarde de verão os cachorros estiravam-se às portas, a língua bem
vermelha de sequiosa. A brisa ondulava nas janelas as franjas das cortinas,
entre o rangido dos portões mal fechados. Com o pano embebido em
gasolina, Lili esfregava o soalho e no degrau da soleira podia-se distinguir a
impressão de um pé descalço. Os maledicentes indagavam do cometa.
— Meu pobre noivo está morto — respondia Lili. — Vou levar-lhe
flores no cemitério.
Os homens respeitavam a farsa e, surgindo um dia o caixeiro na estação,
foi proibido pelo delegado de descer à cidade. Passaram-se anos. D. Carlota
morreu de arteriosclerose e, à hora do enterro, a moça tocou no piano em
despedida a sua valsa predileta. Perdidas as alunas, e sem recurso, foi
obrigada a vender o piano. Desde então um menino, de cesta no braço,
batendo nas portas, oferecia fantásticas rosas de miolo encarnado.
Para fazer-lhe companhia, instalou-se na casa a família de um primo. A
mulher dele, dias mais tarde, consumiu as ricas prendas, até o cinzeiro com
o último charuto do cometa. Lili não mais saiu do quarto, onde um dos
sobrinhos ia levar-lhe o prato de comida. Certa manhã foi encontrada morta,
deitada na colcha de retalhos, toda vestida e de sapatos, a boquinha
duramente pintada. Uma profusão de folhagens e guirlandas abafava a
alcova e a cidade acreditou que ela se envenenara com o perfume das flores.
Seis meses depois a mulher do primo apareceu leprosa e a casa foi posta
à venda.
Angústia do viúvo
Ele desperta e, encolhido, começa a tossir resmungando: "Essa
bronquite..." Ainda na cama, com dedos trêmulos, acende o primeiro
cigarro e o segundo enquanto faz a barba. Entra debaixo do chuveiro frio.
Bebe o café preto servido por D. Angelina e sai sem ver os filhos
adormecidos.
São sete horas e chega ao emprego às oito. Depois é a rotina de
preencher ficha e calcular percentagem.
Volta para o almoço e os filhos já estão no colégio. De tarde, a copiar
faturas, não pensa em nada; engole cafezinhos bem quentes — uma de suas
habilidades — sem queimar a língua. Um sanduíche e um copo de leite,
demora-se a ler no escritório ou vai ao cinema. Às dez horas, sobe no
ônibus, com o jornal dobrado no bolso. Caminha três quarteirões até a casa
silenciosa, apenas com uma luz na varanda.
D. Angelina dorme em sossego; não precisa vir tirar-lhe os sapatos e
deitá-lo vestido na cama. Já não era o bêbado sórdido, de rolar na valeta. No
escuro, atravessa o corredor e a sala, acende a luz da cozinha. Despe o
paletó, pendura-o na cadeira e prende a gravata na cinta para não respingá-
la.
O jantar está no armário com tela: um prato fundo coberto por outro
raso. Coloca-o na mesa nua e, antes de instalar-se, guarda de volta no
armário o prato raso úmido de vapor. Senta-se e come tudo; não acha gosto
e usa o vidro de pimenta. Deita o café na caneca. A porta do fogão está
aberta, os cavacos arrumados, é só riscar o fósforo, mas ele não acende o
fogo para requentar o café. Engole-o frio, com resto de pó no fundo. Dispõe
na pia o prato e a caneca, abre a torneira e enche-os de água.
Fuma um cigarro e, com a lima presa ao chaveiro, limpa as unhas
amarelas: consome duas carteiras por dia. Encaminha-se ao banheiro,
escova os dentes e bate três vezes com a escova na beira da pia. Observa-se
no espelho com olho rancoroso. Exibe a língua, os dentes manchados de
sarro:
— Hoje é dia de ficar bêbado.
Já não bebe, mas repete em voz alta o desafio. Com a morte da mulher,
entregou os filhos à D. Angelina e, por cinco meses, morou só na casa, sem
acender o fogo, sem arrancar as páginas da folhinha, nem arrumar uma vez
a cama. Desertou o emprego, não visitava as crianças e D.
Angelina ignorava se ainda era vivo. Dormia embriagado todas as
noites, não no quarto do casal, mas no paiol da lenha. Trazia um embrulho
de pastéis, que mastigava entre goles de aguardente; estavam frios e
pegajosos de gordura, o que era indiferente, pois não descobria sabor.
— Hoje é dia de ficar bêbado — anunciava aos seus botões. — Vou
olhar para as telhas...
E olhava: as velhas telhas encardidas e cobertas de teias.
Quando chovia, despregavam-se as aranhas de ventre peludo.
A cabeça debaixo do lençol, mordendo os dedos, tremia sufocado de
pavor.
Transbordou a caixa d'água, inundada a casa, e os vizinhos deram o
alarma. D. Angelina veio providenciar o conserto e, ao descobrir no colchão
os rombos das brasas de cigarro, arrastou com ela o filho, que se deixou ir,
cansado demais para discutir. Fechou-se no antigo quarto de solteiro, olhou-
se muito tempo no espelho, a princípio curioso, depois aborrecido e, enfim,
com náusea — na mesma hora, sem atentar que era uma decisão, deixou de
beber.
E agora, passado um ano, apagada a luz do banheiro, dirige-se no escuro
ao seu quarto. Detém-se um instante na sala e escuta: o ronco estertoroso da
velha encobre a respiração dos filhos. O menor dorme com D. Angelina no
leito de casal e a menina na cama de grades. Bem que ela o preveniu:
— Você está perdendo a melhor idade de seus filhos.
Embora a porta aberta, ele se afasta sem voltar o rosto: é uma gaiola o
amor dos filhos, dourada quem sabe, mas não furam os olhos do passarinho
para que cante mais doce? Fuma outro cigarro enquanto se despe; dispõe a
roupa na cadeira onde, no dia seguinte, bem cedo, a mãe virá apanhá-la,
para escovar e passar a ferro — tem um único terno. Os colegas do
escritório não diriam que é sempre o mesmo, de tão bem cuidado, não fora
um buraco de cigarro na manga. Aos domingos é ele mesmo quem capricha
no vinco da calça preta.
Afofa os dois travesseiros para ler o jornal, nunca mais abriu um livro.
Uma vez por semana, com repugnância e método, entrega-se a certo prazer
solitário — o mísero consolo do viúvo. Afinal vem o sono, aninha-se nas
cobertas e dorme, a ouvir o grilo debaixo da janela.
Não consegue escapar ao sonho: ei-lo no meio da sala, de pé ao lado do
caixão, espantando as moscas no rosto da falecida, e a ninguém pode
revelar a sua dor — os outros dão-lhe as costas, é dele que cochicham:
— Olhe bem para a sua vítima. Foi você quem a matou. Morreu por sua
culpa!
Finou-se de leucemia, que a família dela atribuiu aos seus maus-tratos.
Ele baixa a cabeça e começa a chorar — é quando desperta, as lágrimas
esfriando na face.
Não tem coragem de fechar os olhos e espera a manhã.
Encolhido, tosse e resmunga: "Essa bronquite..." Com dedos trêmulos,
acende o primeiro cigarro ainda na cama e o segundo enquanto faz a barba.
Chuveiro frio. Sai sem ver os filhos. Na rotina de preencher ficha e calcular
percentagem, debaixo das telhas espiam-no as aranhas de ventre cabeludo.
Duas rainhas
Duas gorduchinhas, filhas de mãe gorda e pai magro.
Não sendo gêmeas, usam vestidos iguais, de preferência encarnados e
com bolinhas. Guardam bombons sob o travesseiro e de manhã o soalho
está cheio de papelzinho amassado.
Rosa, a mais velha, tem o rosto salpicado de espinhas.
Augusta, três anos mais moça, é engraçadinha, para quem gosta de
gorda. Esteve noiva duas vezes de sujeitos cadavéricos, esfomeados,
atraídos por aquela montanha de doçuras gelatinosas. Os noivados são
desfeitos pela irmã, que se instala com eles na sala e implica com os
pretendentes.
— A Rosa é muito tirana — desculpa Augusta sem azedume.
Lembram duas pirâmides invertidas que andassem, largas no vértice e
fininhas na base. Têm manchas roxas pelo corpo de se chocarem nos
móveis. Lamentam-se da estreiteza das portas. Sua conversa predileta é
sobre receita de bolo. Nos aniversários são as primeiras a sentarem-se à
mesa ou, para lhes dar passagem, todos têm de se levantar das cadeiras.
O terceiro noivo, mais magro, com mais cara de fome, casou-se com
Augusta, apesar da oposição da irmã. Moram na casa dos pais dela e, após
algum tempo, Glauco torna-se esquisito. Proíbe a moça de acompanhá-lo ao
portão. Não a leva aos bailes e queixa-se de que todos esbarram nela. No
cinema, as suas carnes opulentas extravasam da cadeira e o marido,
inquieto, vigia a todo instante o vizinho. Ela explica que é ciúme, se bem a
irmã pretenda que é antes vergonha de Augusta.
Acompanha-o ao banheiro, enquanto ele faz a barba.
Fecham-se no quarto e não saem senão para as refeições.
— Já se viu — exclama Rosa para a mãe — que pouca vergonha!
O marido quase não dorme — ela transborda do leito —, embevecido a
vê-la roncar levemente de boca aberta. Por insinuação dele, Augusta
preocupa-se com as formas. Enquanto ela emagrece alguns quilos, Rosa
engorda. Saem juntas a fazer compras.
— A senhora está esperando? — pergunta a caixeira para Rosa. — De
quantos meses?
— Eu não. É minha irmã que está.
Augusta tricoteia um casaquinho de lã, que nunca termina.
E com dor no coração soube o marido que é falsa gravidez o excesso de
quilos — ela come escondida. Cada gaveta é um manancial de guloseimas.
Então a arrasta em longas caminhadas para perder peso. A moça tropeça de
pés inchados e, de esfregarem uma na outra, as coxas roliças estão em carne
viva.
Glauco deu para beber. Recusa-se a fazer visita e desconfia dos risos às
suas costas.
— Você tem vergonha de mim — choraminga Augusta.
— Não tenho, meu bem.
— Tem, sim.
— Se ao menos evitasse as bolinhas no vestido.
— Eu bem avisei — comenta Rosa — que esse casamento não ia dar
certo.
Ele tentou em vão uma aliança com o sogro. Depois começou a implicar
com Augusta, Rosa e a sogra, D. Sofia.
A moça chorou muito, fez dieta e perdeu dois quilos, que recuperou na
semana seguinte. Estão sempre beliscando algum petisco e anunciando uma
para outra:
— Olhe que amanhã é dia de regime!
Lambiscam e discutem os sonhos. Em nenhum deles aparecem
borboleta ou esquilo. Os bichos dos sonhos são proporcionais: rinocerontes,
focas, hipopótamos. As noites de Rosa povoam-se de cavalos empinados
relinchantes. Augusta sonha com um elefante branco:
— O elefante chegou, ergueu as patas e ficou rindo para mim.
— Não se olhe tanto ao espelho — resmunga o marido.
Uma tarde explodiu o escândalo. D. Sofia e Augusta foram ao dentista.
Na volta encontraram Rosa em pranto.
Glauco avançara para ela e derrubou-a no sofá, aos berros de —
"Rainha das vacas!"
Jurava ela que era declaração de amor:
— Não me abandonem só com ele. Não respondo pelos meus atos se
ficar sozinha. Gritou que não me deixaria em paz. Vou persegui-la até que
seja minha. Você me quer, Rosa, como eu te quero.
Fechou-se Augusta no quarto, engoliu um tubo de pílulas.
Teve medo e abriu a porta, chamando pela irmã, depois de vomitar na
colcha nova.
As duas instalaram-se na cama do casal e o marido, esse, dorme em
quarto separado. Chega tão bêbado que D. Sofia deve tirar-lhe os sapatos e
deitá-lo vestido. Cada uma engordou mais cinco quilos em dois meses —
abaixo dos joelhos é que Rosa vai enrolar a meia na liga.
— Você viu o Glauco?
— Magro que dá pena.
Abanam-se com ventarolas e mordiscam confeitos recheados de licor:
— Não sei onde é que estava com a cabeça.
— Gente magra é tão feia!
Contemplam-se com orgulho. Os pés bem pequenos, com roscas, iguais
aos pés torneados das mesas antigas de jacarandá.
— Amanhã é dia de regime — anuncia Augusta, numa nuvem de talco
para evitar queimaduras nas dobras.
Depois do almoço ficam em pé para facilitar a digestão.
Não se encostam no peitoril, eis que dói o estômago dilatado.
Permanecem direitas, as mãos apoiadas na janela — uma janela para
cada uma —, vendo a gente magra e feia que passa na rua.
— Que tal um pedacinho de goiabada? — sugere uma delas.
Refesteladas, a guloseima a derreter-se na língua, gozosas tremelicam o
papo rubicundo. Não pode Augusta cruzar os joelhos senão suspendendo a
perna com as duas mãos.
À margem do rio
Numa tarde de sábado, Abílio estacou a carroça à margem do rio. A
balsa estava do outro lado; ele saltou do banco, onde ficaram os dois filhos
menores, e encostado numa das rodas, enrolou a palha do cigarro. De longe
reconheceu na barca o seu amigo Nicolau:
— Como vai, compadre?
O outro respondeu que ia bem e, ao descer em terra, de cara fechada,
pediu o acerto de uma conta.
— Eu já estive devendo muito mais.
E Abílio ofereceu todo o dinheiro, que o outro recusou: eram devidos
três dias de serviço.
— Eu nunca faltei com a obrigação e sempre andei direito.
— Mas desta vez falhou.
Recolhendo as moedas do bolso e estendendo a mão, Abílio retrucou
que lhe confiava todo o dinheiro. O compadre não aceitou, já que era
pouco.
— Você é polaco! — bradou o primeiro, pálido de fúria.
Nicolau, o mais forte, agarrou-o pela camisa, levou-o de encontro à
carroça e estava-o esganando. Com a gritaria dos filhos, Abílio puxou a
faca da cinta e encostou-a no peito do agressor:
— Conhece que está morto!
Nicolau queria fugir, mas não pôde escapar, ensanguentado e fraco.
Corria aos tropeções e sem destino, perseguido pelo compadre que o
alcançou e desferiu novo golpe, desta vez no braço, mas continuou
cambaleante e recebeu a facada seguinte defronte à casa do balseiro. A
mulher surgiu à janela:
— José, estão esfaqueando um homem!
Mãos agarradas à cerca, Nicolau pediu com voz queixosa:
— Ai, Abílio, só não me mate.
A quarta punhalada atingiu-o nas costas. Em pé contra a cerca, ele
arrastou-se até o portão. Sem força para subir os degraus caiu numa poça de
sangue.
Abílio esfregou a faca na ripa antes de guardá-la, andou até a margem e
saltou no bote. Atravessando o rio, parou um instante de remar e, as mãos
em concha, gritou ao balseiro que entregasse em casa os filhos e a carroça.
O espião
Só, condenado a estar consigo mesmo, fora do mundo, o espião espia.
Eis um casarão cinzento, com janelas quadradas, defendido pelo muro
faiscante de cacos de vidro. Embora não o deseje, é forçado a conhecer os
eventos principais do edifício, cujas letras na fachada — porventura o nome
de um santo — não consegue distinguir, cada vez mais míope. Surpreendeu
o pai chegando com a menina pela mão.
Era homem alto, o bigode grisalho, manta de lã ao pescoço, de grandes
botas. A menina, de uns quatro anos, miúda, pálida e, as pernas tão finas,
era um espanto que ficasse em pé. A mãozinha suada — o espião podia
supor, pelo seu tipo nervoso, que a menina, emocionada porque se despedia
do pai, tivesse a mão úmida de terror — apertava um pacote, amarrado com
barbante grosseiro, onde trazia todos os seus bens: uma muda de roupa, e
quem sabe, um punhado de balas azedinhas.
Empertigado, sem um gesto, o pai conversava com a freira de óculos.
Explicava — assim o imaginou o espião na sua torre — como a mulher
pintara de vermelho a boca e se perdeu no mundo, abandonando-o com a
filha. Internava-a no casarão, não podia cuidar dela — era viajante,
negociava em galinhas e porcos. Ajoelhou-se o homem, então a menina
prendeu-lhe os bracinhos no pescoço e não queria deixá-lo sair: era muito
agarrada ao pai. Sujeito duro, ainda ressentido pela traição, rompeu com
força o abraço e deixou a filha chorando no pátio.
Cerca de oitenta meninas, a maioria entre cinco e onze anos, e em tão
grande número não se ouve riso nenhum.
Brincam em sossego com seus trapinhos, carretéis vazios e — as mais
afortunadas — bruxas de pano. Durante a semana usam avental riscado e,
no domingo, o vestidinho xadrez agora pendurado no corredor. Em cada
prego há um número: de um lado, os vestidos xadrez e, do outro, os
casaquinhos de algodão.
Desde os seis anos fazem todo o serviço: arrumam as camas, esfregam o
soalho de tábuas, varrem o pátio. À tarde, entre as ladainhas, ocupam-se
umas a bordar, outras a cerzir, a costurar os pontos e meios-pontos e, antes
que chegue a noite, apertando os olhos e curvando as cabecinhas, escutam
distraídas a voz abafada da cidade (as horas no relógio da igreja, o chiado
das rodas de uma carroça, o apito do trem) e, inesperadamente, acima do
trisso das andorinhas e do latido de um cachorro, o eco de um riso de
criança brincando ao sol.
Para uma menor de cinco anos é destacada outra de onze, que dorme na
cama ao lado, lava-lhe o rosto, corta-lhe as unhas (se não estão roídas até o
sabugo) e limpa-a no gabinete. É uma procissão de duplas inseparáveis, a
andar de mãos dadas, cumprindo voltas no pátio, os pezinhos rachados de
frio — a menor com uma vela escorrendo do nariz, a mãozinha enrolando a
barra do vestido. Se choraminga, a outra ralha com ela: não seja nojenta,
não seja pidona. E vá cascudo na cabecinha mole da menor. Às vezes, a
maior, raquítica, é do tamanho da companheira. Tão diversas, são todas
iguais nos olhos que enchem a cara miudinha — o olho aflito dos adultos.
Umas cuidam bem de suas protegidas, como faz a galinha com o
pintinho. Ah, não existe criatura mais perversa que a criança doente de
solidão: essa outra judia da amiguinha, castiga-a, devora a milagrosa —
embora azeda — laranja que, saiba você como, surgiu entre os dedinhos
rapinantes, sem dar um gomo à companheira, que engole em seco, e como
se não bastasse, espreme a casca no seu olhinho guloso. E, se a menor faz
xixi na cama, vai denunciá-la à vigilante, que a põe de castigo no meio do
pátio — o acolchoado na cabeça até secar.
A um canto, comentam duas maiores estalando os lábios iguais a duas
mãezinhas de volta da feira:
— Esta menina é muito nojenta.
— É. Mas aqui ela perde o luxo.
Há o pavilhão das velhas — nove ou dez, as que ninguém quis, uma
paralítica, outra surda-muda, outra retardada de meningite — que vivem
isoladas, pois gritam em noite de lua, soluçam dormindo e não podem ver
homem sem arregaçar a saia. São chamadas de bobas, mas prestam alguns
serviços: lidam na horta, racham lenha, puxam água do poço.
As meninas admiram em silêncio as velhas, que passam balançando
tanto a cabeça quanto o balde que arrastam com as duas mãos — praga de
boba pega.
Manhã cedinho, em filas de duas, marcham para a igreja.
Antes de sair, calçam as alpercatas e correm alegres, é a única vez que
usam alpercatas, desapercebidas da traição dos caminhos. Lá se vão elas,
olhos arregalados sob a franjinha — todas de franjinha na testa pálida, a não
ser as pretinhas, ainda mais infelizes por isso. Por último as bobas,
sacudindo a cabeça em toucas verdes de crochê, enterradas até as orelhas, e
que se agitam ao dar com um padre na rua: cada padre, um beliscão na
vizinha.
No domingo frequentam a missa das nove e entram contritas as
meninas, de cabecinha baixa, arrastando as alpercatas a fim de marcar o
passo, mas não muito para não gastar o solado. Durante a cerimônia, as
bobas escondem na mão as medonhas bocas sem dentes e piscam divertidas
para uma estampa de Nossa Senhora com o menino — a pombinha de fora.
Triste é a volta: cruzam com as crianças, as outras, nos vestidinhos
coloridos de tafetá e fitas nas longas cabeleiras, a lamber deliciadas um
canudinho de sorvete.
Nos dias de primeira comunhão, senhoras piedosas entregam na portaria
duas ou três formas de cuque, em fatias bem pequenas. No domingo a
solidão dói mais: a chegada de algum parente é para lembrar às outras as
visitas que nunca virão. Andam inutilmente à volta do pátio, cantam em
vozes apagadas as suas canções de roda, vestem e desvestem as bruxinhas
de pano, beliscam-se inquietas, choramingam e — depois que as visitas se
retiram — muitas são postas de castigo, ajoelhadas sobre grãos de milho.
Não se queixam — como a gente lá de fora — quando chove no domingo: é
doce ouvir a chuva. Um relâmpago incendeia as janelas e o raio abafa os
gritinhos das mais assustadas, eis as bobas que arrastam latas sob as
goteiras. Burlando a vigilância, algumas chapinham nas poças, os cabelos
escorrendo água. Outras se distraem desenhando bonecos no vidro
embaçado.
Elas inventam os próprios brinquedos: corrida de besouro, é um telefone
a caixinha de pó de arroz na ponta do barbante estendido, espiam as
formigas de trouxa na cabeça, prendem vaga-lumes na garrafa para vê-los a
um canto escuro acender sua lanterninha e, sem receio de verruga no dedo,
agarram os sapos e atiram-nos para o alto, batendo palmas ao vê-los cair
esperneando e esborrachar-se no chão.
Ah, quando chega a noite, as que varrem, olham para trás e varrem mais
depressa, as que costuram curvam os ombros e não descansam a agulha
entre os dedos furadinhos, e as que andam de mãos dadas no pátio acercam-
se uma da outra — elas fazem tudo, mas tudo, afim de que a noite não
chegue, a noite maldita dos que têm medo. E a noite chega nas asas dos
pardais que se empurram entre as folhas, chega no latir perdido de um
cachorro ao longe, chega na sineta que toca no fundo do corredor
assombrado e, após a xícara de chá e a fatia de polenta fria, rezada a última
prece, recolhem-se ao dormitório, encolhidas nas camas, só a pontinha do
nariz de fora. Ao lado da porta, escondida no seu biombo de pano, a
vigilante apaga a luz. Morrem de medo no escuro e a quem, meu Deus,
gritar por socorro?
Escutam os sapos do banhado: durma, menina, que o bicho vem te
pegar. O gemido da coruja no cedro, as unhas do morcego que riscam a
vidraça — ele vem te pegar, menina, acuda que ele vem te chupar o
pescoço.
As que não são mais meninas, pensam no fim que as espera: devolvidas
a algum parente distante que não as quer, empregadas para todo serviço nas
casas onde a patroa fecha o guarda-comida a chave, as mais bonitinhas
desfrutadas pelo patrão e pelo filho do patrão. Nem uma delas esqueceu as
palavras de Alberta, a negrinha que caiu na vida: "Minha novena agora é
homem". Reboa no seu coraçãozinho apertado de angústia a profecia da
superiora: "Todas elas ficam assim. São desencaminhadas pois não
conhecem o mundo.
Ficam todas lunáticas ou taradas. A única salvação está na prece,
minhas filhas". E elas rezam, rezam até que vem o sono.
No fundo daquela cama eleva-se o queixume de uma menor. Lembra
antes o ganido de cachorrinho perdido na noite; seja dor de dente ou bichas
ou, quem sabe, simples medo que uma das bobas venha no escuro se
esfregar nela e então acorde de manhã com um papo de velha. Ninguém
atende, os soluços vão espaçando e ela dorme.
Sonham as mais felizes com a pombinha branca. Foi o caso que uma
das bobas, paralítica, domesticou de sua cadeira de rodas uma pombinha.
Onde ia ela. ia a pombinha, que não se afastava senão para ligeiros voos ao
redor do pátio — a paralítica estalava os dedos de aflição. Trazia uma vara
na mão, sebosa de tanto a alisar: mantinha a ave prisioneira no círculo de
alguns metros. Saltava da ponta da varinha para o seu ombro e as duas
beijavam-se na boca. As meninas faziam roda, assustadas com a aleijada e
deslumbradas com o bichinho pomposo, a cauda enfunada em leque,
exibindo-se em galochas vermelhas de um lado e depois do outro. Ora, de
manhã, a pombinha amanheceu morta. A paralítica gemeu sem sossego um
dia e uma noite: a ave foi enterrada numa caixa de sapato e cobriram-lhe o
túmulo de margaridas do banhado. Para acalmar a boba, presentearam-na
com outra pombinha branca, que ela matou, dias depois, enterrando-lhe a
agulha de tricô no peito ingrato.
O casarão seria mais fácil de sofrer se não estivessem sempre famintas;
quando se deitam, antes de dormir, ou até dormindo, uma ouve o
marulhinho na barriga vazia da outra.
Apesar de sem gosto, engolem o grude nauseante — sopa de angu.
Naco de carne uma vez por semana. Polenta fria no lugar de arroz. Se
alguma fruta lhes cai porventura nas mãos ávidas — figo ou caqui, por
exemplo —, devoram-na com casca, a língua saburrosa de castigo. Não
deixam capim ao seu alcance, sem que chupem a doce aguinha dos talos.
Comem terra e, algumas, o ouro do nariz. Outras têm ataque de bichas e
rolam pelo chão rilhando os dentes.
Não bastasse a fome, há o pavoroso banho frio de imersão, que deve ser
tomado de camisola. Uma das meninas adoece, é isolada em quartinho
escuro, nada por fazer senão esperar que definhe. As outras rezam o terço
em volta da moribunda, o corpo encomendado na própria capela, o
cemitério ali pertinho.
Eis que o pai voltou para visitar a filha ou levá-la talvez consigo.
Aguardando no pátio, olhos aflitos a buscar entre tantas uma franjinha
muito querida, nem reparou na freira de óculos ao seu lado e que, em voz
monótona, recomendava-lhe fosse forte e tivesse fé: a menina, coitadinha,
ela morreu. Uma febre maligna. Ele viajava longe, não tinham por quem
mandar avisá-lo. A filha enterrada havia uma semana — elas morrem que
nem mosca no vinagre.
O espião podia ler nos lábios do pai as palavras que não disse: Se fosse
em casa, perto de mim... Mas ai, finar-se sozinha, com a certeza de que a
tinha abandonado. Não dizia nada o homem, a ouvir a freira de óculos e
afinal, de cabeça baixa, começou a girar a aliança no dedo, eriçado de pelos
ruivos.
Uma vela para Dario
Dario vinha apressado, o guarda-chuva no braço esquerdo e, assim que
dobrou a esquina, diminuiu o passo até parar, encostando-se à parede de
uma casa. Foi escorregando por ela, sentou-se na calçada, ainda úmida da
chuva, e descansou na pedra o cachimbo.
Dois ou três passantes rodearam-no e indagaram se não se sentia bem.
Dario abriu a boca, moveu os lábios, mas não se ouviu resposta. Um senhor
gordo, de branco, sugeriu que devia sofrer de ataque.
Ele reclinou-se mais um pouco, estendido agora na calçada, e o
cachimbo tinha apagado. Um rapaz de bigode pediu ao grupo que se
afastasse e o deixasse respirar. E abriu-lhe o paletó, o colarinho, a gravata e
a cinta. Quando lhe retiraram os sapatos, Dario roncou feio e bolhas de
espuma surgiram no canto da boca.
Cada pessoa que chegava erguia-se na ponta dos pés, embora não o
pudesse ver. Os moradores da rua conversavam de uma porta à outra, as
crianças foram acordadas e vieram de pijama às janelas. O senhor gordo
repetia que Dario sentara-se na calçada, soprando ainda a fumaça do
cachimbo e encostando o guarda-chuva na parede. Mas não se via guarda-
chuva ou cachimbo ao lado dele.
Uma velhinha de cabeça grisalha gritou que ele estava morrendo. Um
grupo transportou-o na direção do táxi estacionado na esquina. Haviam
introduzido no carro a metade do corpo, quando o motorista protestou: se
ele se finasse na viagem? Concordaram em chamar a ambulância. Dario foi
conduzido de volta e recostado à parede — não tinha os sapatos nem o
alfinete de pérola na gravata.
Alguém informou que na outra rua existia uma farmácia.
Não carregaram Dario além da esquina; a farmácia era no fim do
quarteirão e, além do mais, ele estava muito pesado. Foi largado ali na porta
de uma peixaria. Imediatamente um enxame de moscas lhe cobriu o rosto,
sem que fizesse o menor gesto para espantá-las.
As mesas de um café próximo foram ocupadas pelas pessoas que tinham
vindo apreciar o incidente e, agora, comendo e bebendo, gozavam as
delícias da noite. Dario ficou torto como o deixaram, no degrau da peixaria,
sem o relógio de pulso.
Um terceiro sugeriu que lhe examinassem os documentos.
Vários objetos foram retirados de seus bolsos e alinhados sobre a
camisa branca. Ficaram sabendo do seu nome, idade, sinais de nascença,
mas o endereço na carteira era de outra cidade.
Registrou-se correria no público de mais de duzentos curiosos que, a
essa hora, ocupavam toda a rua e as calçadas: era a polícia. O carro negro
investiu a multidão e várias pessoas tropeçaram no corpo de Dario, que foi
pisoteado dezessete vezes.
O guarda aproximou-se do cadáver e não pôde identificá-lo — os bolsos
vazios. Restava apenas a aliança de ouro na mão esquerda, que ele próprio
— quando vivo — não podia retirar do dedo senão umedecendo-o com
sabonete.
Ficou decidido que o caso era com o rabecão.
A última boca repetiu — "Ele morreu, ele morreu", e então a gente
começou a se dispersar. Dario havia levado duas horas para morrer e
ninguém acreditara que estivesse no fim. Agora, os que podiam olhá-lo,
viam que tinha todo o ar de um defunto.
Um senhor piedoso despiu o paletó de Dario para lhe sustentar a cabeça.
Cruzou as suas mãos no peito. Não pôde fechar os olhos nem a boca, onde a
escuma tinha desaparecido.
Era apenas um homem morto e a multidão se espalhou rapidamente, as
mesas do café voltaram a ficar vazias.
Demoravam-se na janela alguns moradores, que haviam trazido
almofadas para descansar os cotovelos.
Um menino de cor e descalço veio com uma vela, que acendeu ao lado
do cadáver. Parecia morto há muitos anos, quase o retrato de um morto
desbotado pela chuva.
Fecharam-se uma a uma as janelas e, três horas depois, lá estava Dario à
espera do rabecão. A cabeça agora na pedra, sem o paletó, e o dedo sem a
aliança. A vela tinha queimado até a metade e apagou-se às primeiras gotas
da chuva, que voltava a cair.
O jantar
Condenado à morte, devorava seu último jantar, o molho pardo a
lambuzar o queixo.
— Como vão as coisas, meu filho?
Chupando a sambiquira, piscava os olhos de gozo.
— As coisas vão.
Diante dele, o bem mais precioso da terra: seu filho.
— Me passe a pimenta, Gaspar.
"Logo será um homem. Meu filho. Dar-lhe conselhos: não beba água
sem ferver, não beije as criadas na boca, não case antes dos trinta."
— E de namoradas como vai, seu Gaspar?
A pergunta ofendeu-o tanto como um dos arrotos do pai. Olhos frios de
estrangeiro: não era filho de ninguém.
— Não tenho namorada.
Não casar antes dos trinta, não deixar o vinho no copo." Bebeu até a
última gota.
— Que me conta da poesia?
"Graças ao seu dinheiro é que o Cilho tem o dom de sonhar."
— Vai mal.
"Todo filho é uma prova contra o pai."
— Ora, Gaspar. Bobagem.
O olho estrábico de Gaspar era bobagem para ele, que tinha seis dedos
no pé. O filho sentia o olho a incomodá-lo como o sexto dedo.
— A poesia fede.
A família chocava um ovo gorado no ninho: olhos remelentos de
manhã, a cueca xadrez, o pano de pratos na cozinha — "Deus abençoe esta
casa".
— Foi à missa, Gaspar?
"Se meu pai abre a boca para falar, eu sei as palavras que dirá, e antes
do que ele."
— Não, senhor.
"Se ele sabe, por que pergunta?" Descobria o gosto de romper nos
dentes um pedaço de carne sangrenta.
— Eu lhe pedi, não pedi? Por que o senhor não me escuta?
— Não creio em Deus!
"Desterrado de meu reino, fugindo de mim, encontrei na estrada minha
mãe, e depois meu pai, e depois o fantasma de meu avô."
Borborigmos na barriga do pai — ou do filho?
— O aniversário da morte de sua mãe!
"Filho, meu filho, desiste de lutar contra mim. Há mais de mim em você
que de você mesmo."
— Sua mãe nunca me compreendeu, meu filho.
Gaspar ficava ouvindo nos sábados à noite os ruídos no quarto do casal.
"Sem mãe e sem dinheiro no bolso."
— Minha pobre mulher...
— O senhor tem algum para me emprestar?
"Com a dor de dentadas furiosas no coração — um dos filhos do Conde
Ugolino."
O pai levou a mão ao bolso, abriu a carteira, escolheu uma nota, alisou-
a entre os dedos: sentiu-se trinta dinheiros mais pobre.
O filho observou a Santa Ceia na parede. Judas com o saquinho em
punho.
— O vinho é sangue de Cristo, bebamos!
Dois estranhos.
— Vai sair?
— Vou.
Os dois abateram a aba do chapéu, um com o gesto do outro.
Ao nascer do dia
Bem cedo Idalina pulava da cama, acendia o fogo e preparava o
chimarrão para o seu homem — sem mate ele não era gente. A maleta de
amostras no ombro, João corria para a estação, saudado pelo alegre latido
de dois cachorrões.
Eu ficava oculto no capão próximo e, depois de ouvir o apito do trem, é
que me dirigia aos fundos, estalava os dedos e chamava os cães pelo nome.
Falando-lhes em voz baixa, a reprimir os saltos e ganidos, batia duas vezes
com o nó dos dedos na porta da cozinha, e somente duas vezes, para não
acordar os meninos.
Idalina abria a porta e, depois de prender os cachorros, seguíamos
apressados para o arvoredo. Eu estendia a capa no chão, por causa do
orvalho, e a fumaça branca na sua boquinha pintada trazia até ali o quente
aconchego da cama.
Os cães gemiam e arrastavam a corrente, nem a voz da dona os
aquietava.
Durante os meses que a conheci jamais a avistara de dia, apenas à luz
indecisa do crepúsculo. Naquela tarde, quando entrou na loja, não me
alegrei de vê-la, pois sabia o que a visita significava. Fingindo examinar o
tecido que eu exibia, contou que, pela manhã, preparado o chimarrão e
partido o mascate, voltara para o leito, quando ouviu o sinal na porta da
cozinha. Não foram duas, senão cinco batidas fortes, embora — o que era
estranho — os cachorros não latissem. Não era eu, o coração lhe advertia,
assim mesmo prendeu depressa uma fita no cabelo.
Entreabriu a janela e olhou: era o cunhado José. Tendo-nos
surpreendido um dia antes, iria denunciá-la ao irmão.
E para a desmascarar é que foi bem na hora em que o outro se
ausentara? Então revelou que também ele a queria.
Mas, José, ele é teu irmão, rogou Idalina de mãos juntas. Como é que
você quer o velho Orides e não me quer a mim que sou forte? Se não quiser,
olhe que eu conto ao mano João. Respondeu ela: Espere um pouco, que eu
já volto.
— Ah, sua ingrata — comecei eu —, então com você não precisa pedir
duas vezes?
Idalina saiu da janela e José foi se colocar diante da porta. Abrindo-a de
súbito, a mulher atirou sobre ele a água fervente da chaleira, queimando-lhe
a mão e o braço direito. Gemendo, ao se afastar, ele berrava que contaria
tudo ao irmão. Teria José a coragem de falar, após a declaração amorosa?
Seria prudente, na opinião dela, que eu não aparecesse até novo recado.
Três semanas passaram. João prosseguiu nas suas viagens e não recebi
aviso da mulher. Na madrugada eu ia rondar o bangalô de longe, por causa
dos malditos cães. Insinuava-me por entre as árvores, à espera de qualquer
sinal.
Cabeceando de sono, eis que ouvi correria e brados que partiam da casa:
— Acudam, bandido, me acudam!
Encostado à porta, deparei com o homem, os braços caídos ao longo do
corpo.
— João, que foi que houve?
— Não foi nada.
Ergueu as mãos em sangue e perguntei se tinha se ferido com o punhal.
Retrucou que havia esfolado um ladrão.
Escutei latidos no capão e corri até lá. Era o irmão, rodeado pelos
cachorros, que lambiam as suas feridas. Rosnaram contra mim e observei o
quadro à distância. Deitado de costas, José tinha a perna direita encolhida e
as manchas pelo chão assinalavam grande luta. Impedido pelos cães de me
achegar, não descobri se os dedos dele estavam chamuscados.
Tornando ao bangalô, avistei João no mesmo lugar, reclinado na porta,
de braços cruzados. Vez por outra examinava de olhar vazio as mãos
peganhentas.
— Que houve aqui, João? Onde está Idalina?
Um vizinho, que ouvira os gritos, surgia com o sargento — a rogo de
Idalina, na noite anterior, os meninos haviam ido dormir na sua casa. Às
perguntas, João resmungou que não tinha malquerença com o mano e
depois ficou mudo, sacudindo a cabeça.
Eu já sabia o que ia encontrar no quarto: a mulher nua e morta com sete
facadas. Antes de entrarem os outros, vasculhei as gavetas e, debaixo do
colchão, achei o que buscava — a carta anônima.
Passamos diante de João com o fardo da mulher no lençol sujo de
sangue. Ele virou o rosto, mas não chorou: apenas gemeu que esfolara um
ladrão. Foi conduzido de braços amarrados para a cadeia. O sargento, a
balançar a ponta da corda, explicava que João, não sendo dado a vício,
devia ter tido acesso de loucura, pois era muito chegado ao mano José.
Dinorá, moça do prazer
No estilo de Fanny Hill: Meu nome é Dinorá.
Nascida em Curitiba, de pais pobres, mas honestíssimos, fui na infância
ignorante do vício. Vítimas da gripe espanhola, morreram os coitados mal
entrara eu nos quinze anos. Fiquei só, sem parente nem amigo que me
advertisse dos perigos que rondam uma jovem órfã.
Condoída de minha triste sorte, uma venerável matrona decidiu
encarregar-se graciosamente da minha proteção.
Mme. Ávila podia contar cinquenta anos, aparentando mais idade pelo
abuso de banhos quentes. Queria-me antes como dama de companhia do
que criada de servir e, se eu me revelasse boa menina, seria para mim
verdadeira mãe. Senhora gorda e espalhafatosa, envolta sempre em casacão
de pele, ainda em pleno verão, eu lhe invejava os vestidos de púrpura, os
chapéus de fitas farfalhantes e as pulseiras douradas que tilintavam nos
bracinhos gorduchos.
Convidou-me uma noite ah, terrível noite foi aquela! — que a
acompanhasse a uma festinha galante, espicaçando-me a curiosidade com a
descrição do ambiente luxuoso e das finas maneiras dos convidados. No
casarão, escondido entre antigos ciprestes, esperava-nos a uma das portas
laterais o nosso anfitrião, a quem madame, entre mesuras, saudou de —
Excelência. Sem que deparássemos com qualquer conviva, fomos
introduzidas ao salão discretamente mobiliado de uma mesa, algumas
cadeiras, um canapé e uma cama de colcha de veludo encarnado, que mais
parecia digna de uma rainha.
Beijou-me sua excelência a mão enluvada; era baixo, de pernas
arqueadas, com mais de sessenta anos, rosto rechonchudo, uma pastinha
lambida de cabelos, esticados de um a outro lado do crânio reluzente. Após
a apresentação, madame alegou afazeres urgentes para atender. Suplicou-me
que fizesse um pouco de sala a sua excelência e, conduzindo-me a um
canto, perguntou misteriosamente se eu apreciaria ter como protetor tão
bonito pedaço de homem.
Respondi ingenuamente que não possuía dote e, além do mais, era
muito jovem para casar. Madame retrucou que ele pretendia fazer a minha
fortuna e, se o soubesse agradar, seria elevada à categoria de grande dama e
poderia escolher joia, vestido e carruagem. Cortejou nosso anfitrião em
graciosa reverência e, ameaçando-o com o dedo, piscou-lhe um olhinho
faiscante de cupidez.
— Muito juízo, excelência. Não vá assustar nossa pombinha!
Foi para mim tão inesperada esta saída que, embora dócil de caráter,
sentei-me no canapé, petrificada. Para aumentar minha inquietação, assim
que ficamos sós, sua excelência apagou as luzes, exceto uma discreta
lâmpada azul, que se refletia nos espelhos circundando o riquíssimo leito.
Nem a virtude, nem a modéstia contribuíam para a minha defesa
naquele difícil transe e, de olhos baixos, eu retorcia o lenço de cambraia
com rendas da Ilha da Madeira. Sob o enganoso pretexto de ler a sorte,
pegou-me gentil mente nos dedos que fariam a inveja dos lírios e, apesar de
meus protestos indignados, preveniu-me dos perigos de uma cidade infame
como Curitiba. Deveria obedecê-lo em tudo, evitar as más companhias.
Montar-me-ia casa e permitiria que me exibisse pelas avenidas, sentada em
esplêndida carruagem.
Poderia até ser uma duquesa!
Acrescentou outras promessas deslumbrantes, para iludir a ingênua
menina e moça, que já se acreditava premiada com tanta riqueza,
convencida de tratar com um senhor de bem. Terrivelmente confusa,
esforçava-me por dar-lhe o tratamento de — Excelência. Vencida a minha
desconfiança inicial, entrou a passar a mão de leve pelo meu colo de
brancura imaculada, produzindo-me sensações estranhas que me comoviam
e perturbavam, se logo não me escandalizassem.
Doces palavras com que acompanhava as carícias não eram suficientes
para me tranquilizar. Os dedinhos grossos e cobertos de anéis titilavam-me
a nuca, brincando de fazer e desfazer caracóis com a loura cabeleira e —
coro ao confessar — proporcionando-me os primeiros arrepios de prazer.
— Ó, Deus, tua carne é mais branca que a neve! Deixa, deixa, um
beijinho só.
Qual não foi a minha surpresa ao reconhecer a chama da paixão na
desgraciosa figura pelo revirar dos olhos, os lânguidos suspiros, a
respiração ofegante e a calva em fogo.
Tentei em vão proteger-me de suas investidas, queixando-me de ligeira
enxaqueca. A cólera, o desprezo, a indignação eram impotentes diante
daquele gladiador, meio cego de luxúria.
Aproveitando-se da minha agitação, quis o monstro libidinoso desfrutar-
me a concha dos lábios nacarados. Gritei que planejava a minha ruína:
— Ai, o senhor me perde. Antes a morte!
De tão descontrolada, teria desmaiado se algumas lágrimas
providenciais não aliviassem a aflição que me consumia.
Abusando de minha inexperiência, rompeu o falso gentil-homem a
preciosa mantilha de Granada que me cobria os ombros resplandecentes de
alvura e conspurcava-os com seus olhares impuros. Encorajado por este
prelúdio, avançou contra mim — ai de mim! — que, possuída de terror,
tombei em decúbito dorsal, trêmula e palpitante, sobre o canapé que ele
escolhera para nosso campo de batalha. Implorei, olhos cheios de lágrimas,
que não me profanasse.
As palavras serviam apenas para atiçar-lhe a imunda paixão. Meus
grandes olhos verdes e cismadores, que lançavam lampejos, não
intimidaram o velho corcel que tomara a brida nos dentes. Na confusão
rompeu-se uma alça do vestido de tafetá branco. Os cabelos esparsos — na
luta eu perdera um dos sapatinhos bordado com fio de ouro —, toda a
encantadora desordem de minha pessoa excitaram a sua febre criminosa. Se
fosse submissa aos seus caprichos, antes que madame regressasse, jurou
que iria cobrir-me de joias da cabeça aos pés. E com os lábios impuros
queria babujar minha face de alabastro.
— Senhor, é demais a repulsa que me inspira!
Empurrei-o violentamente, puxei o cordão da campainha e o criado
acorreu pressuroso para receber as ordens de sua excelência. Quando soube
o que era, ofereceu-me algumas gotas de amoníaco para aspirar e retirou-se
no mesmo instante. Depois desta prova, senti me tão abatida, tão lânguida e
enervada que não tinha ânimo de levantar o braço — estava à mercê do meu
impiedoso carrasco.
Propôs-me sua excelência combater a crise de melancolia com uma ceia
tão delicada que satisfaria a gulodice de um cardeal. Com admirável apetite,
causado pelo grande trabalho que me dera, ataquei uma fatia de peru e duas
asas de perdiz; alguns cálices de vinho generoso refizeram-me as forças
para resistir ao novo assalto.
Atendendo às instruções de seu mestre, trouxe-me o criado em copo de
prata um licor batizado de "Bênção Nupcial". Sorvendo o verde líquido
adocicado, senti como um fogo sutil espalhar-se nas minhas veias: era o
efeito da traiçoeira cantarida. Tremi pela minha virtude e, com grito abafado
de terror, olhei para o infame instrumento de minha tortura que, de joelhos
sobre o luxuoso tapete, enquanto assistia ao meu banquete, contentava-se
em devorar-me com olhinho lúbrico. Prodigalizando-me louvores à beleza,
afiançou que respeitaria a minha honra, satisfeito em adorar-me à
cerimoniosa distância.
Vendo-me indefesa, em delicioso abandono, molemente reclinada entre
as almofadas de veludo carmesim, principiou em frases inspiradas a acenar-
me com os ricos tesouros da volúpia. Apresentava-se fogoso campeão nas
liças do amor e, se o recebesse como herói, seria instalada na classe das
senhoras teúdas e manteúdas, bem provida e mimada como uma princesa.
Em troca, desertando os míseros consolos da solidão, poderia abrir-lhe as
portas do paraíso.
Ou então vomitava horrendas injúrias, anunciando que não seria
ridicularizado por uma suposta menina e moça, em conluio com a viúva
desonesta que, devido ao precoce envelhecimento, praticava o humilhante
ofício de rufiã.
Incitava-me a provar o néctar da maçã proibida e, arrebatada na torrente
avassaladora de sua eloquência, eu sentia as consequências do primeiro
passo na estrada do vício — o rubor que me tingia as faces era antes do
frenesi que da modéstia. A timidez da discrição, o recato, a pureza que eu
trouxera do lar paterno, pareciam esvanecer-se feito gotículas de orvalho ao
sol.
Embevecido, passando e repassando os olhos ávidos nas minhas vestes
em desalinho e nos cabelos em graciosos caracóis que se espalhavam sobre
a testa pálida, sua excelência buscava sub-repticiamente devassar as minhas
belezas escondidas.
Enquanto eu ouvia enlevada o seu caviloso discurso, o velho sátiro
arrastava-se, ainda de joelhos, pelo tapete escarlate. Agarrou de súbito o
meu pezinho descalço e cobriu o centro de seus desejos com beijos úmidos
e quentes.
Um resto de pudor sustinha-me à beira do precipício. Mal de mim, as
forças já não respondiam, combalidas pelo inebriante filtro de amor.
Apelei para todos os meios de defesa que reclama a honestidade. O
cruel assassino gargalhou sinistro e, desfazendo-se do colarinho engomado,
voltou à carga. Servia-se com desenvoltura das armas usadas em tais
embates, as mais pérfidas que se pode imaginar e seria impossível
descrever.
— Mata-me, ó bruto apache! Não posso mais. É demais! Eu morro...
Meu sangue gelou nas veias e empalideci como um condenado diante
do patíbulo. Nessa altura abandonaram-me as forças, triste de mim.
Os botequins
Noite fria e, como todas as noites, o botequim deserto.
José sentava-se à mesa do fundo e o gordo vinha ao seu encontro com a
garrafa. Enquanto ele ficava no botequim (e ficava até a hora de fechar), o
gordo deixava a garrafa aberta no balcão. José trazia um jornal dobrado no
bolso e com o cálice fazia círculos úmidos na mesa.
Antes de beber, lia uma notícia inteira do jornal. Erguendo então o
cálice e fechando os olhos, engolia dum trago. Ao abri-los, via no teto a
sombra redonda da lâmpada.
O gordo contornava o balcão, enchia o cálice até a borda, derramadas
algumas gotas. José esperava o dia em em que, escondendo-se atrás do
jornal, iria lamber as gotas perdidas.
Na quarta ou quinta dose principiava a bebê-la em mais de um gole.
Estendia as pernas sob a mesa, contemplava a sombra no teto e lia o jornal.
Não olhava para o gordo de calva brilhosa, um galhinho de arruda na
orelha. Se demorava em servir, José batia o cálice na mesa.
O botequim era um corredor escuro, com três ou quatro mesas
encostadas à parede e o balcão no meio, atrás do qual o gordo abaixava a
cabeça sob as garrafas. No balcão havia um vidro de pepinos com manchas
de bolor boiando no vinagre.
E nenhum espelho na parede. José não gostava de se olhar quando
bebia. Descobriu aquele botequim e vinha, todas as noites, sentar-se à sua
mesa, o jornal amassado no bolso. Sempre o mesmo jornal, rasgado nas
dobras. Lia uma notícia completa antes de emborcar a primeira dose.
Os raros intrusos que se aventuravam no botequim davam as costas a
José. Ninguém gosta de ficar, no botequim vazio, de cara com um
desconhecido. A sua mesa era ao lado do reservado. Cada vez que alguém
ali entrava, José sentia o odor familiar de amoníaco. Quedava de chapéu, o
rosto na sombra, bebendo seus tragos. Na hora de fechar, o gordo retirava
da barriga o avental sujo e, sem olhar para o cliente, começava a contar o
dinheiro da gaveta.
José avançava devagar por entre as mesas, assim não fosse tempo de ir
para casa. Tinha casa e família, preferia ficar no botequim, desenhando na
mesa os círculos úmidos.
Botequim frio, escuro e pestilento. Não falava com ninguém, nem
sequer com o patrão. Mas ali não se sentia só. Sabia que no balcão estava a
garrafa aberta e mulher nenhuma diria: "Não beba mais, por favor... Pelas
cinco chagas de Nosso Senhor, seja esse o último cálice!" Não tinha
vergonha de beber no botequim. O gordo era pessoa que compreendia as
coisas. Além do mais, não havia espelho.
O gordo era pessoa que compreendia. Quando José não tinha dinheiro,
deixava o jornal no bolso e depois do quinto cálice ainda o bebia dum trago.
Na hora de fechar, empurrava a cadeira e saía, sem que o patrão corresse
atrás.
José tornava na noite seguinte; o relógio no bolsinho do gordo e a
aliança na grossa mão cabeluda do gordo já haviam sido a aliança e o
relógio dele. Desde que o outro passou a usá-la no mindinho, soube que
também o patrão era casado. Por amor da família sujeitava-se a encher o
cálice do único freguês?
No balcão havia um prato com ovos cozidos, ao lado do vidro de
pepinos, e ninguém adivinharia a sua idade, as cascas escuras de pó. O
botequim não tinha movimento e o gordo permanecia debruçado no balcão,
o raminho fresco de arruda na orelha. Por medo da solidão, conservava o
lugar aberto, na esperança de que alguém entrasse?
Era o último botequim funcionando no domingo, ainda que sem a
fumaça dos cigarros, sem o burburinho das vozes, sem o bafo azul na boca
dos bebedores.
Naquela noite um desconhecido surgiu inesperadamente no bar deserto,
além do gordo e de José na mesa do fundo. Em vez de dar-lhe as costas,
sentou-se o estranho à mesa próxima. O patrão serviu-o e retirou-se. O
outro saudou José com o copo e, lívido, numa careta de terror, adicionou o
veneno à bebida.
José observou a sombra redonda no teto, as duas manchas de goteira e,
por fim, o vizinho que, depois de beber, deixava a cabeça cair na mesa e o
braço pender até o chão — lentamente o copo veio rolando aos seus pés.
O gordo, arrecadando o dinheiro da gaveta, tinha abandonado o lugar.
José afastou-se vagarosamente e, a cada passo, sentia a meia encharcada.
Por mais cansado que estivesse, podia andar a noite inteira na chuva. Não
era hora de ir para casa. Teria de achar outro botequim e começar outra vez.
A armadilha
Aquietou-se aos poucos o movimento da casa. Ficou por último a tosse
do velho asmático. Para não dormir, eu media o tempo entre os acessos; eles
foram espaçando, contei até cinquenta e três — o velho adormecera. De vez
em quando eu riscava um fósforo para olhar o relógio.
O quarto de Odete era vizinho ao meu e, às onze horas, ouvi a cama
ranger. Eu deixara a porta entreaberta e fui olhar pela fresta. Ela acendera a
lâmpada do corredor; descalça, em combinação e toda despenteada, trazia
um cigarro na boca, o rosto crispado pela fumaça. Foi beber água no barril
da cozinha e, apagada a luz, voltava pé ante pé.
Dei um passo e segurei-a pelo braço, mas não se assustou.
— Vou deixar a porta aberta eu cochichei.
Em resposta ela me apertou a mão. Foi pelo corredor até o quarto e
fechou a porta, mas permaneceu do lado de fora. Escutávamos a respiração
ofegante um do outro no silêncio da casa. O velho roncava. Eu podia
distinguir um pé descalço arrastando-se no soalho, mais leve que a corrida
noturna da ratazana. Ela surgiu no vão da porta. Fui ao seu encontro, beijei-
lhe a boca e mordi-lhe a orelha.
— Vou embora se você continua assim.
Ouvimos tumor no quarto dos velhos e quedamos transidos, sussurrando
entre risos nervosos. Resistia a deitar-se na cama.
— Tenha modos. Não vim aqui para isso — ela repetia, entre beijos
afogueados. Fique quieto. Não faça isso, meu bem. Não, queridinho. Minha
mãe do céu. Por favor.
Eu estava deitado entre ela e a parede.
— Tua mão é menor que a minha.
Era mesmo: mão de mulher que trabalha. Passou a comparar as duas,
entre apertões furiosos.
— Me dá um cigarro.
— Se eu me levanto faço barulho.
O paletó estava pendurado no cabide.
— Nós erramos. É pecado muito feio.
Não podia envolver-me nas cobertas sozinha, ela ocupava a cama.
— Com os outros não era pecado?
— Você é o primeiro, querido.
Agora eu queria dormir, o trem passava bem cedo.
— Ora, a gente logo vê que você tem experiência. Tua família não liga?
— Ah, é? Não queira saber o que meu pai faz quando zangado. Ele
dorme com o revólver debaixo do travesseiro.
Dei um pulo e ouvi, eu podia jurar que tinha ouvido a mulher lá no
quarto: "Você está acordado, velho?"
Odete desmanchava-se em beijos, eu sentia neles o gosto enjoado de
sarro. Pensei com aflição no trem que me levaria para longe. Tatalando as
asas, os galos cantavam sem parar.
— E o meu cigarro?
— Não fale tão alto. Se teus pais ouvem?
— Quer que eu vá embora, não é? Antes bem queria que eu viesse.
Comecei aos poucos a empurrá-la fora da cama. Ela deu um salto.
Apanhou a carteira no paletó e deitou-se outra vez. Restavam quatro
cigarros, dei-lhe dois:
— Um é para fumar depois no teu quarto.
Odete cobriu a cabeça com o lençol a fim de esbater o clarão do fósforo.
Apertava-me os dedos contra o peito e, fumando, segredava cada vez mais
alto:
— Agora você não me quer mais e antes queria. Parecia um louco.
Agora está diferente.
— Por favor, fale baixo.
— Quer que eu vá embora, não é?
— Até gosto que fique.
Relinchou um cavalo escarvando na terra. Ela deseja provocar
escândalo comigo aqui. Nunca mais na vida hei de ficar nu.
— Diga. Diga que quer que eu vá embora.
— É tarde, meu bem. Seria melhor se voltasse para teu quarto. Teu pai
pode acordar.
Não respondeu; acabou de fumar e sentou-se na cama.
O relógio da igreja deu as horas. Deus meu, fazei por favor que ela
suma-se daqui... Suor frio pegava-me à colcha: o velho furioso com o
revólver!
Um cachorro latiu ao longe, outros respondiam cada vez mais perto.
Afinal ela ia embora; em despedida, afastei-lhe os cabelos da nuca e
depositei casto beijo. Ela voltou a se deitar. Cresceram ruídos no quarto do
casal.
— Não se mexa. Fique bem quieta.
Odete insistiu em acender outro cigarro. E tragando, a brasa incendiava-
lhe o rosto: duro queixo, olho sem piedade.
Eram da madeira antiga os estalidos sinistros no corredor?
Procurei lugar debaixo das cobertas para esconder a nudez vergonhosa
— não cabíamos os dois. Odete estava gasta e seca, mas nádega de mulher
não encolhe.
O soalho repercutia os rumores. Meu coração era um sapo coaxando no
pescoço. De repente a porta abriu-se.
Odete deu um grito, alguém acendeu a luz.
Beto
O desgosto do velho Tobias era o filho Beto — a medonha carinha
vermelha de mongoloide.
— É tarado — desculpava-se ele e depois corrigia. — Doente de
nascença.
Fora um bicho em criança, andava de quatro, a língua de fora; aos
pulos, subia nas árvores com a agilidade do mico. Era amarrado com os
cachorros no fundo do quintal.
Escapando por vezes, arrastava a coleira pela rua — uma correria entre
as crianças. Aprendeu que, se se comportasse, poderia brincar no gramado
diante da casa, senão era preso na corda enrolada no caquizeiro. A
cabecinha bem pequena, nariz purpurino, descalço, silvava entre os dentes
afiados um guincho selvagem. Aos vinte anos, engrolava as palavras — a
língua era como uma ostra que ele não pudesse engolir.
— A omba oou...
A pomba voou. Mais que as surras de correia do pai, domesticara-o a
paciência amorosa da velha Zica. Aos sábados, vestia-o de roupinha limpa,
cortava-lhe as unhas e dava um cigarrinho para que deixasse o barbeiro lhe
fazer a barba. Não ficava quieto na cadeira, saía com dois ou três talhos no
pescoço atarracado.
Enxugava a louça para a mãe, sem quebrar nem um prato. Trazia água
do poço, cortava lenha, lidava na horta.
Tinha paixão pelo casal de garnisés. Ganhara da mãe um vira-lata,
mestiço de fox, que foi envenenado pelo fiscal da prefeitura.
— Matou o Foc. Ele que matou o Foc. Deu bolinha pro Foc.
Implicava com o vizinho:
— Quando é que ele sai? Tire o homem, pai. Ele deixou crescer o mato.
— Daqui a quatro luas o homem sai.
— Tá em...
Sofria o feitiço da lua. Correndo pelo pomar, atirava pedras no garnisé,
pendurava-se na cerca para chamar a pombinha. D. Zica perguntava,
intrigada:
— Será que vai chover, Alberto?
Somente com a mãe conversava ele, de boa sombra.
Imitava o jeito do pai. mãos cruzadas nas costas, fala pausada, a
cabecinha inclinada no ombro. Mostrava o cigarro de palha na orelha. De
repente, beijando a mão e virando os olhos, improvisava a cena de quem
acaricia uma mulher, e foi assim que revelou à D. Zica os amores
escondidos do marido.
— Tá uim, não é?
— Está, sim.
— Pode ser que ele saia.
— Quem?
— O homem-porco.
Pede licença ao vizinho para ir buscar o garnisé que pulou a cerca.
Pergunta pelo Foc. Ou pela pombinha que voou e não voltou. Para seduzir a
criadinha, balança-se de cabeça para baixo na laranjeira e fuma o cigarro
apagado que recolheu do chão. A menina ri nervosa, um pouco assustada.
Beto pisca os olhos, uma gosma pendente no canto da boca.
— Ela riu para mim. O pai deixa?
— Eu deixo — responde Tobias, divertido. — Mas e o homem?
— Homem brabo.
Chegou à cidade um circo. Durante a passeata dos carros, Beto xingou
os bichos, sacudindo-se na cerca, aos uivos:
— Ilhos das ães!
— Beto, olha lá o leão.
Não dormiu, agitado com os urros do leão doente: buzina rouca de
antigo fordeco.
A mãe encontrou-o, de véu no rosto, brincando com as imagens do
oratório, que dispusera em fila igual aos artistas do circo em desfile.
— A Maria está louquinha para casar. A Maria chora.
A casa do homem tem raposa.
— Ele vai se mudar daqui a três luas.
— Mas que deixe a Maria.
E encostando no ouvido o relógio de pulso:
— Agora são quinze minutos.
O circo foi embora. Despediu-se a criadinha da casa ao lado, com medo
de Beto que, de puro amor, espremia vaga-lume na unha fosforescente.
Nada mudou para ele, que imita os saltos de um sapo barrigudo no jardim;
com uma vareta risca-lhe a pele enrugada e baba-se de gozo ao ver pingar
leite das feridas — ai, se o bicho lhe espirrasse urina nos olhos ficaria cego
na mesma hora.
De repente, na tarde ensolarada, corre inquieto de um lado para outro,
um pedaço da língua de fora, chama a pombinha, sai atrás do garnisé. Então
D. Zica, gemendo de dor nas cadeiras, começa a recolher a roupa estendida
no varal.
O roupão
Assim que apertei a campainha, Lúcia abriu a porta — devia estar à
espera.
— Pensei que não viesse.
— Eu prometi, não foi?
— Com essa chuva. Só pode ser amor!
Tomou de minhas mãos a capa, que pendurou no cabide, e o guarda-
chuva, que deixou aberto na banheira.
— Se ele descobre pingos no soalho logo vai saber quem foi.
— Antes de bater... eu podia jurar que ouvi uma fala de homem.
— Que bobagem, meu bem. Estamos sós.
Sentamo-nos cerimoniosamente na sala, ela no sofá, eu na poltrona.
— Aceita um licorzinho?
— Não, obrigado.
— Deve ter molhado os pés.
Magra e seca, Lúcia movia-se de um a outro lado, com o andar
desengonçado de quem não tem quadris. Trouxe dois cálices na bandeja.
— Não me pegue, meu bem, que você derrama.
Fez questão de bater os cálices coloridos:
— Ao nosso amor!
Por que o arrepio na nuca de alguém ali atrás de mim?
— A verdade é que eu quase não vinha.
— Ah... — estalou um muxoxo, ofendida, com o dedinho espevitado.
— Tinha medo do que podia acontecer. Você é tão lindinha. Só nós
dois...
— Lindinha já fui — atalhou ela.
Apesar de meus protestos, encheu novamente o cálice.
Era licor enjoado de ovo. Ela estremecia a cabeça e, revirando os olhos,
contava que o marido a deixou por uma negra, e negra horrorosa era aquela!
De maneira que de nada valia ser bonita.
— Você acha que tenho dente postiço?
— Seu dentinho é perfeito, meu bem.
— É o que você pensa. Está vendo estes dois? São falsos. Isso foi de um
soco do meu marido.
— Barbaridade!
— Fiz bem de abandoná-lo, não fiz? Eu o enganava, é verdade. Mas ele
não tinha o direito de me bater, tinha?
— Um monstro moral, meu bem.
Ergueu-se do sofá e veio toda dengosa instalar-se nos meus joelhos.
— De maneira que me acha lindinha, querido?
— Você me deixa louco.
— Mas você é casado.
— E daí?
— Você adora sua mulher, não é?
— Adoro, sim.
— Não pensou nem um pouquinho em mim?
Repartia ao meio o cabelo, puxando-o dos lados do rosto comprido,
onde as narinas afiladas palpitavam. Ficou de pé e, a mão na cintura, deu
alguns passos requebrados.
— Você não acha que estou frufru?
— Acho.
— Eu me enfeitei só para você.
Estava mesmo frufru, o vestido em musselina rosa, com sapatos de
crocodilo, agitando as figas no pulso quase transparente.
Acomodou-se no sofá e estendeu-me os braços.
— Venha aqui no meu colo.
— Sou muito pesado.
Sentindo-me ridículo — "Coitada, é tonta de vez!" — fiz o que pedia:
eram joelhos pontudos.
— Tão gorduchinho! Já viu o meu relógio?
Era relógio de pulso, dourado, com tampa de mola.
— Presente do Oscar, querido.
Comecei a beijá-la no pescoço, os óculos ficaram embaçados e guardei-
os no bolso da lapela. Ela me repeliu e examinou de olho crítico.
— Você fica tão diferente.
Perturbado, quis beijá-la. Ela me conteve à distância.
— Não. Ponha os óculos. Fica mais engraçadinho.
Fui beijá-la e outra vez recuou a cabeça.
— Não seja tão apressado.
Vasculhou a bolsa de crocodilo, a um canto do sofá, e achou um
bombom. Descascou e pôs inteiro na boca. Depois, agarrando a minha
cabeça com as mãos, deu-me um violento beijo e, abrindo os meus lábios
com a língua, introduziu-me um pedaço de chocolate na boca. Eu o devolvi
com um movimento de língua. Ela o passou pela segunda vez para a minha
boca e, com repugnância, então o engoli.
Voltei a beijar-lhe o pescoço e mordisquei a orelha enfeitada por uma
enorme pérola.
— Aposto que é presente do Oscar.
— Não, querido. No ombro... morda...
Pediu que lhe chupasse o ombro até deixar sinal bem vermelho.
— Oscar é tão desajeitado. Gosta de morder a minha perna.
Pus-me de pé e ela ergueu o vestido para exibir as marcas roxas.
Agarrei-a, mas ela acudiu:
— Meu vestido novo, querido. Aqui não...
Acompanhei-a ao quarto.
— Não fecha a porta?
— Não há perigo.
— Será que ele não vem hoje?
— Hoje é dia da família.
Aos beijos, derrubei-a na cama de casal.
— Que horror! Espere um pouco, meu bem.
Sem pressa, ela principiou a desabotoar o vestido.
— Este vestido, sabe quanto custou? Combinação elegante, não é?
Último modelo. Oscar é doidinho por mim.
Onde estão teus óculos? Eu quero você de óculos, querido.
Insistiu que eu retirasse a camiseta:
— Para encostar a barriguinha.
Apanhou a camiseta de meia e esfregou-a no rosto:
— Ai, que gostoso!
Indiquei o retrato na mesinha de cabeceira:
— É ele?
Lúcia confirmou com a cabeça.
— Mas é um velho.
— É forte o velho!
Para provar que era, Oscar a erguia nos braços, ele de roupão, ela nua,
dava uma volta no quarto, mordia-lhe as pernas e atirava-a na cama.
— Me faz um favor, querido?
— O que quiser.
— Que você vista o roupão.
Estendido aos pés da cama, o fabuloso roupão vermelho.
— É grande para mim.
Ajudou-me a vesti-lo. Era enorme: arrastava pelo chão, cobrindo-me os
pés, e fui obrigado a dobrar as mangas. Por que não ia de uma vez olhar
atrás da porta?
— Dá dois de mim.
— Ele só tem tamanho.
— Que tal se ele entra agora?
— Pode ficar sossegado.
Três anos havia que era sustentada por ele. Babava-se todo quando a
beijava e ela ficava inteirinha arrepiada. Repetia a cerimônia de passear
com ela nos braços e lançava-a de repente sobre a cama. Por duas vezes
quebrara o estrado. No fim, para que baixasse o sangue da cabeça, Lúcia
fazia-lhe cócega nos pés. Morria de medo que o velho tivesse um ataque, na
idade dele não era brincadeira. Vinha ao apartamento todas as noites, menos
uma. Uma noite por semana era destinada à família, as outras para ela.
— E a mulher não desconfia?
— Ela sabe. Até me telefonou uma tarde. Olhe que é ter classe! O
problema é do Oscar, minha senhora, não meu. A senhora chegou tarde. De
maneira que... Me alcance a combinação, querido.
Cobri piedosamente a nudez obscena de magra. Pediu-me um cigarro,
fez questão que o acendesse na minha boca.
Tragou de olhos fechados.
— Cuidado com a cinza no tapete. Ele é muito desconfiado.
Olhou dos lados, embora estivéssemos sós, e segredou que tinha nojo
dele, pois era ruivo. Já arrastava os pés e ainda queria ser homem. Morriam
de tédio um ao lado do outro. Lúcia pintava as unhas, enquanto ele, de boné
e manta xadrez, ficava à janela, divertindo-se em cuspir na rua e
escondendo-se assustado quando acertava em alguém.
Ou então distraía-se com um elástico matando mosca: "Mas elas não
têm fim, Lúcia. Não acabam nunca".
Com um suspiro, foi estender o roupão aos pés da cama, e em voz alta:
— É a mania dele. Quer o roupão no mesmo lugar.
Na porta ofereceu-me a capa e o guarda-chuva.
— Você volta, meu bem?
— Que barulho foi esse?!
— Nada não, querido. É uma goteira. Agora você não gosta mais de
mim. Eu sei como são os homens. Volta mesmo, querido? Eu tenho
coisinhas do outro mundo para te contar.
No fim do corredor apertei o botão. Da porta Lúcia me dizia adeus e
atirava beijos. Abriu-se o elevador; antes de embarcar, voltei-me e ainda vi
o braço do roupão vermelho que a puxava para dentro.
O baile
O baile foi no paiol de D. Querubina, com gaiteiro, cerveja, cachaça e
vinho. Realizou-se a festa em grande harmonia até que Tobias, por efeito do
vinho doce de laranja, muito exaltado, em estado de embriaguez porém
furiosa, dessa que arrasta ao crime, pôs-se a quebrar copos e garrafas.
Mestre do botequim, o marido de D. Querubina protestou.
— Por enquanto é garrafa, logo mais é cabeça de negro — retrucou
Tobias. — Aqui não tem homem para mim.
Mais que ligeiro ferrou uma cabeçada no velho Emílio, que rolou
aturdido, a cuspir sangue. Exibindo a faquinha, Tobias bradou em altas
vozes:
— Quando não tem cerveja eu bebo sangue de gente.
Surgiu no salão e queria cortar a harmônica, sendo impedido a muito
custo. Obrigou as damas a dançar com ele, ora de um jeito, ora de outro;
gabava-se que ia bailar com as que eram moças e as que não eram e, se
alguém se doesse, que viesse tirar satisfação. De arma em punho, fez
barulho demais, trazendo os convidados em correria.
Afinal proclamou: "Aqui ninguém me aguenta!" e verteu égua no meio
do salão, na presença das senhoras que, virando o rosto, fugiram para a
cozinha.
No mesmo instante era agredido por uma dezena de cavalheiros; ao
acabar a confusão, estava desacordado no soalho e foi removido para o
terreiro, onde o deixaram dormindo debaixo da gaviroveira.
Pela meia-noite a festa seguia bastante animada. Como ninguém o
ajudasse a desencilhar o cavalo, Diogo foi entrando pela cozinha e
insultando os presentes de — "Filhos da mãe". Queria acabar o baile e
ameaçou bater em todos com rabo-de-tatu, ainda mais na velha alcoviteira
de nome Querubina.
Após ter invadido a festa sem ser convidado, de chapéu na cabeça e
rebenque na cinta, continuou a afrontar as pessoas chamando-as de —
"Carniças", desacatando o velho Emílio, pois que ele não era homem.
Respondeu o velhinho que era homem, mas não para brigar.
Com o rabo-de-tatu Diogo espancou gente, no meio de grande gritaria,
indagando se alguém achava ruim e, como ninguém se manifestasse,
anunciou que ali não havia homem para ele. Um cidadão de nome
Sizenando acudiu:
— Sou homem para qualquer desfeita.
Diogo saltou a janela e com o punhal riscava o chão:
— Aqui não tem homem.
— Já tirei faca de macho, quanto mais de um porqueira feito você.
Sizenando sacou do revólver e disparou, acertando no lado esquerdo da
cabeça de Diogo, que derrubou a faca e gritou: "Ai, meu Deus, estou
atirado!" Saiu correndo, embora ferido, e desapareceu na escuridão.
O estampido não chegou a assustar as famílias e o baile transcorreu na
mais completa ordem até às duas da manhã.
Eurides convidou uma dama para dançar e a desrespeitava no salão.
Homem honesto e trabalhador, gostava de conquistar as moças e quando
bebia era provocativo.
— Está de corno virado, moça? Está soberba que não quer valsar
comigo?
Sendo repelido, Eurides largou-lhe da mão e a proibiu de dançar com
outro. Ora, o noivo da moça, de nome Aníbal, vendo que o parceiro a
apertava demais, apoderou-se de uma garrafa no botequim, onde estava a
beber com amigos, e entrando no salão vibrou-a na cabeça de Eurides, que
caiu tonto entre cacos de vidro. Alguns convidados conduziram o ferido
para o terreiro.
Aníbal saiu a bailar com a moça. Plantou-se o outro a seu lado, sem
desviar dele o olho vermelho:
— Vamos ter uma conversa lá fora.
A noiva correu para a cozinha e D. Querubina acudiu com água de
açúcar. Ali no terreiro, com ares de provocação, Eurides retirou o punhal e
o enfiou na cinta, fora da bainha.
— Não se chegue que eu te corto! — berrou Aníbal, ao mesmo tempo
que recuava.
Eurides insistia em saber porque fora derrubado pelas costas com a
garrafada. O outro respondeu que era muito sem consciência e deveria ter
ao menos respeitado a noiva alheia. Retrucou Eurides que, se algum dia
tivesse noiva, qualquer um poderia proceder com ela de igual maneira, pois
de sua parte não se incomodava.
E, sacando da faca, procurou atingir Aníbal, que rebateu com a mão
esquerda, da qual espirrou sangue. Eurides tentou pela segunda vez cortar o
desafeto; este deu um pulo para trás e assim mesmo o punhal furou a
camisa.
Aníbal pegou também do punhal e, quando o outro investiu, esperou-o
de braço estendido e, com todo o peso do corpo, o peito de Eurides foi
trespassado pela faca. Virou-se com grito de espanto e correu vinte metros
para cair de cara no chão.
Aníbal foi buscar a noiva no paiol e, passando ao lado do corpo, nem se
incomodou de olhar se estava morto.
D. Querubina pediu ao gaiteiro que bisasse a valsinha "Lágrimas de
Virgem". O baile prosseguiu animado e na mais perfeita harmonia até de
manhã cedo.
Caso de desquite
— Entre, severino.
Ele cruzou as pernas e acomodou no joelho o chapéu de aba larga. Tirou
um cigarro de trás da orelha e acendeu o isqueiro: incendiou-se a palha,
logo abafada por dois dedos encardidos.
— Fui criado pelos Seabra, doutor. Devo me separar da mulher porque
sou homem de honra. Tenho de achar novo pouso. Moro no meu rancho, da
vida de ninguém não sei. E um vizinho foi fazer intriga da mulata para a
minha velha.
— Que mulata é essa, Severino?
— Uma conhecida, doutor... A Balbina. Ela dá dois aqui do hominho —
e travesseiro bom está ali.
— Não entendo nada, Severino.
Com a unha negra do polegar alisou a costeleta:
— A velha é uma jararaca, doutor. Fui tocado de casa, está bom? Há
uma semana que durmo no paiol. Nem por Santa Maria quero mais saber
dela. Olhe, doutor, nem por São Benedito, está bom? Para me ver livre da
velha eu deixo tudo para ela, o rancho, o palmo de terra, fora os trens de
homem: a carroça, as ferramentas, a cachorrinha que é de estimação. Mas
ela deve desistir da minha pensão. Agora é a vez dos filhos trabalharem
para ela.
— Quantos filhos, Severino?
— Eram onze, doutor, um morreu, agora são dez. Sete casados e três
solteiros. O hominho aqui é dos bons.
— Do lado de quem eles estão?
— Todo filho é sempre um ingrato, doutor. Estão todos do lado dela.
O cigarro havia apagado. Ele riscou a roda do isqueiro e a labareda
chamuscou uma ponta do bruto bigode.
— Olhe aqui, doutor, se ela insistir muito, pode ficar até com a
cachorrinha.
— Há quantos anos estão casados?
— Mais de quarenta, doutor. Estou com setenta, casei com vinte e
cinco. Não pareço, não é, doutor? Aqui entre nós, ainda sou dado às
mulheres.
— Agora é a vez da mulata, hein, Severino?
— Ninguém pode ver a gente feliz, doutor. Um vizinho veio com
enredo... Já lhe conto, doutor, quem é esse vizinho. Eu por mim não quero
saber da vida de ninguém. O que me dizem entra por este ouvido e sai pelo
outro.
Ao tragar, repuxou a boca desdentada. Mal se punha a falar, o cigarro
apagava. Às primeiras palavras, ainda se lembrava de espertar a brasa, e
depois, arrebatado, gesticulava com o cigarro na mão.
— A verdade, doutor, é que sou enganado. É uma história antiga. Por
muitos anos eu fui foguista. Fazia fogo a noite inteirinha. Ela e os onze
filhos dormindo. Ela, regalada, dormindo e o hominho aqui fazendo fogo.
— Já suspeitava dela naquele tempo?
— Para dizer a verdade, até que não. Homem é bicho confiado, não é
mesmo, doutor? Foi no baile que eu descobri. Era o casamento de uma das
filhas. Nunca fui cainho, doutor, quando caso as filhas dou baile. E fui à
delegacia pedir o alvará. O delegado destacou o inspetor de quarteirão, o
João Maria, o tal vizinho.
— Que vizinho é esse?
— O que mexericou da mulata para a minha velha. Não gostava do
homem, por isso nem tinha convidado. Mas ele foi como inspetor e foi bem
recebido. No meio do baile, imagine só, doutor, vai o João Maria até a
cozinha e convida a minha velha para dançar. Ela estava grávida do último
filho, já nos oito meses. E o homem nem me pediu permissão.
— Se ele tivesse pedido, Severino?
— Então eu deixava, doutor, não sou mal-educado, está bom? Mas não
pedir licença é uma desfeita ao marido. (Engoliu em seco.) Uma afronta,
doutor. Era uma valsa, eu me lembro até hoje. Eu fiquei brabo e os
convidados repararam, era só cochicho pelos cantos. Acabada a valsa, fez-
se silêncio no salão. Todos olhavam para mim esperando o que eu ia fazer.
Retirou outro cigarro do bolso do colete e repetiu a operação com o
isqueiro, sufocando a língua de fogo nas pontas calejadas dos dedos.
— Todos olhavam para mim, doutor. Eu precisava fazer alguma coisa.
Com voz grossa eu gritei: "Gaiteiro, agora toque Saudades do Matão." Daí
sabe o que o João Maria fez? (Soprou a brasa do cigarro.) Foi de novo tirar
a mulher lá na cozinha. Daí eu perdi a fiança, está bom?
— Ora, Severino, isso não significa nada.
— Ah, doutor, eu que me controlei para não acabar na cadeia. Naquele
dia eu tive á certeza de que a velha me enganava.
— Certeza, Severino?
— Bem, sabe o doutor como é. Sou homem de trabalho. Ganho a vida
com meu carrinho: vendo banana, faço carreto, puxo lenha. A pensão da
aposentadoria não dá para nada. Assim eu não podia perseguir a velha o dia
inteiro. Ela é muito ladina. Mas pelos sinais do lençol eu via tudo. Foi então
que de desgosto eu me engracei com a mulata. A velha se enciumou e me
escorraçou de casa. Até correu atrás de mim com um pilão de milho. Então
um homem não tem mais direito, doutor? Ela jurou que me arrancava o
cabelo. Chegou a agarrar quando eu me escapei.
— E a mulata na história?
— Não é feia nem bonita, doutor. Careço de alguém que cuide de mim
(leve sorriso). A velha tem os dez filhos por ela.
— Não é isso, Severino. Você teve algum caso com a mulata?
— Ela tem um rancho na beira da estrada. Lava roupa para fora, doutor.
— Ora, conte a verdade. Você é homem, Severino. Forte, bem disposto.
Deu uma gargalhada e ostentou as gengivas com apenas dois caninos.
Olhou a porta fechada. Depois enfiou a mão no bolso, exibiu um par de
meias riscadas de algodão.
— Presente da Balbina, doutor.
Ficou sério, acendeu o isqueiro e soprou a brasa:
— Qual a sua opinião, doutor?
— Não é motivo para desquite.
— A velha é uma assassina, doutor. Dois dias depois do baile, a criança
nasceu fora do tempo. Por causa das valsas, doutor. Nasceu aleijada e
morreu com trinta e dois dias... Foi castigo. Era um menino, doutor.
Duas ou três batidas ali na porta.
— É ela.
— Você deixou a mulher esperando, Severino?
— Deixei lá fora, doutor. Então nada feito?
— Meu conselho é a reconciliação.
Agora as pancadas eram mais fortes. Ele guardou o cigarro apagado
atrás da orelha.
— Posso ficar com a mulata, doutor?
— Poder, pode. Mas não deixe que a mulher saiba.
— Obrigadinho, doutor. Faço a velha entrar?
Severino abriu a porta; a cabeça dele chegava ao ombro da mulher, que
dava a mão a uma menina. Ela sentou-se e repuxou o longo vestido a fim de
esconder o chinelinho pobre.
— Eu tenho vergonha de vir incomodar o doutor (a mão trêmula diante
da boca). Veja, doutor, se este velho não está caducando. É bisavô, tem mais
de um neto casado. E agora está com mania de mulher. Depois dos setenta
todo velho fica sem-vergonha.
— Dobre a língua, mulher. O hominho é muito bom. Mas se me pisam
eu fico uma jararaca.
— Se ele quer sair de casa, doutor, que pague uma pensão para a gente.
— Você tem filho emancipado. Fui eu que criei um por um, está bom?
Ela não contribuiu com nada, doutor. Só dava de mamar nos primeiros
meses.
— E quando esteve desempregado quem é que fazia roça?
— Isso foi naquele tempo. O hominho aqui se espalhava. Fui jogado na
estrada, doutor. Desde onze anos estou no mundo sem ninguém por mim. O
céu lá em cima e noite e dia o hominho aqui na carroça. Sempre fui o mais
sacrificado, está bom?
— E se ficar doente, Severino, quem é que o atende?
— O doutor já viu urubu comer defunto? Ninguém morre só. Sempre
tem um cristão que enterra o pobre.
— Na sua idade, sem os cuidados de uma mulher...
— Eu arranjo.
— Só a troco de dinheiro é que elas querem você. Agora tem dois
cavalos e quer ir embora com os trens de homem. A carroça e os dois
cavalos é o que há de melhor, e vai me deixar sem nada.
— Você tinha a mula e a potranca. A mula, vendeu e, a potranca, deixou
morrer. Eu tenho culpa? Só quero paz, um prato de comida e roupa lavada.
— Para onde foi a lavadeira?
— Quem?
— A mulata.
A mulher falava devagar e com atenção na dentadura superior, que lhe
embrulhava a língua. Ela a apertou com o polegar num risinho de pouco
caso.
— Ele não respondeu, doutor? É que, a mulata, um polaco roubou.
— Nunca foi lavadeira, está bom? Prove, se puder. Depois, homem
pode fazer tudo, nada pega. Mulher é diferente.
— Ele quer alegar a história do baile, doutor. Por causa de duas marchas
que eu dancei oito anos atrás. No dia do casamento da mãe desta menina.
Acariciou a cabeça da neta, que se fingia interessada na folhinha da
parede.
— Negue para o doutor que você me perseguiu com a mão do pilão.
— É verdade, doutor. Dei com a mão do pilão, porque ele virou bicho.
— Deu, não. Ameaçou dar, quis dar.
— Não dei porque você fugiu.
— Mas não deu, está bom? Sou estimadíssimo na praça, doutor. O
prefeito e o delegado estão a meu favor.
— Eu conversei com o Severino, minha senhora. Ele está disposto a
fazer as pazes e ir dormir em casa. Uma família com dez filhos... depois de
tantos anos...
— Está bem, eu volto. O doutor manda e não pede. Então eu volto. Mas
ela que não me azucrine. O hominho aqui é brabo.
Riu-se a velha, entre desdenhosa e conciliadora, sustentando os dentes
com o polegar.
— Então é assunto resolvido.
A mulher despediu-se e foi até a porta.
— Pode ir na frente, que eu já vou. Quero uma palavrinha com o doutor.
Ela desceu os degraus, mão dada com a menina, e parou, voltando a
cabeça. Severino, de pé, coçava a costeleta, indeciso.
— Nada feito, doutor?
— Tenha paciência, Severino. Não é caso de desquite.
Apertou o lenço encarnado no pescoço e bateu com o saltinho da bota
no patamar.
— Homem é homem, doutor. Homem pode fazer tudo, nada pega.
Mulher é diferente. O João Maria foi à cozinha e tirou a velha para dançar,
está bom? Não pediu licença, como se fosse coisa dele. Não é prova, doutor,
quando eu gritei para o gaiteiro que tocasse Saudades do Matão, ele ir
convidar de novo a mulher lá na cozinha? O doutor estude bem o caso, eu
volto outro dia. Olhe aqui, doutor, o gaiteiro está morando em Curitiba, ele
se lembra até hoje.
O coração de Dorinha
Magra e pálida, de olho arregalado, Dorinha sofre do coração e —
segundo a confidência do médico à D. Iraíde — pode morrer de uma hora
para outra. D. Iraíde, abandonada pelo marido, adora a filha e quer para ela
tudo o que não teve. Matriculou-a no colégio das freiras e depois na escola
normal, onde se diplomou com distinção. Foi com ela duas vezes à capital
para consultar o especialista.
— Mamãe, meu coração para de repente...
O coração da moça suspenso por alguns segundos -nunca mais o escuta.
Perde o pulso como uma formiguinha que desaparece na manga do casaco.
A mãe acode com as gotas de coramina.
É menina miúda e feia, dente amarelo, longa cabeleira negra que desce
até a cintura e D. Iraíde a enrola em tranças no pescoço de brancura fria.
Nos bailes, sentada à mesa, sempre de casaco para esconder o vestido
modesto, segue enlevada as evoluções da filha pelo salão. Dorinha nunca
dançou o bis. Chega ofegante ao fim da marca, a respiração penosa. Com os
volteios da valsa, não tem pingo de sangue no rosto. Na trêmula mão lívida
uma luva de crochê disfarça as unhas roxas. Pede licença ao par, com
sorriso triste, e aspira fundo entre duas frases para cobrar fôlego.
Dorinha ama os moços com os quais dança, os artistas de cinema, os
cantores de rádio, de todos apaixonada. Suspirando por algum rapagão, de
súbito eis a parada no peito. Sabe o que é: desgasta o pequeno coração de
tanto amor, até pelos seus alunos vive enfeitiçada. Na penumbra do cinema,
a custo se retém de beijar o velho barbudo ao seu lado.
No domingo, a conselho médico, D. Iraíde sai com a filha em lentas
caminhadas, e segura a sombrinha sobre a cabeça já encanecida da moça —
aos dezoito anos, branqueiam os seus maravilhosos cabelos.
Dorinha sonha muita vez, horror! Debate-se nos braços de um homem,
que gargalha, cínico: "Para trás, miserável!"
O bruto enrola os bigodes e volta à carga. Ela foge, e ele cada vez mais
perto: "Minha, enfim!" A penitência do padre é invariavelmente 5 padre-
nossos e 5 ave-marias.
Faz mil promessas no seu diário: "Juro não fumar mais que três cigarros
por dia". Copia pensamentos das revistas: "O amor é um sonho nebuloso".
Ou suplica: "Deus, por que me deixou cair doente? Faça que aconteça um
milagre na minha vida e eu fique boa. P.S. — Por favor, meu Deus". Ou
então: "Fui comprar um novelo de lã; gordos e gordas por toda parte". Ai,
se D. Iraíde suspeitasse: "Não andes pelas estradas ao sol em busca de um
pouco de amor. Por que mais sardas no rostinho feio?" E frases misteriosas:
"Ela se despiu diante do espelho, beijou a carne fria, roeu os dedos e depois
cuspiu as unhas".
Sem apetite lambisca uma asa de galinha, faz careta para o remédio.
Amargo. Um pratinho quente de mingau?
Por favor, mãe, eu não quero. Ao sair para o grupo, diante do espelho
belisca o rosto descorado. Ah! os beijos que às vezes lhe arrepiam a nuca...
com susto descobre estar só no quarto. Ergue a mão contra o sol e quase
enxerga através dela. Cultiva profunda simpatia pelos três viúvos da cidade.
O único ódio de Dorinha são os gordos.
Espiando detrás da cortina os moços — nem um olha para ela —, sonha
com o noivo querido, que arrasta no chão a capa preta, forrada de seda
escarlate. Bruto príncipe, que anuncia: "Senhorita, não suporto chá com
bolacha Maria".
Na tarde fria de outubro vai, de manhã, indisposta para a escola e chega
febril a casa. Traz o guarda-pó dobrado no braço e pendura-o no cabide do
corredor. Abraça a mãe sentada à máquina de costura e a outra estranha a
gelidez do seu beijo. À janela, afasta a cortina de chita com bolinhas a fim
de seguir um dos viúvos tristes. Volta-se para a mãe e, de pálida que é, fica
roxa — abriu bem a boca e, a mão no peito, cai morta.
Com os gritos de D. Iraíde a casa enche-se de gente: "Minha filha,
acudam. Que é que eu faço, meu Deus?"
Acorre o médico e constata o desenlace. D. Iraíde não se conforma e
pede, as mãos juntas: "Faça qualquer coisa, doutor, salve minha filha!"
Na hora do enterro desaba uma violenta chuva. Atrás do caixão branco,
D. Iraíde sem abrigo, a cabeça nua. E as colegas de Dorinha em fila, no
uniforme de normalistas, de sapatos na mão e com risinhos fagueiros
saltando as poças pelo caminho.
Gemendo de aflição, D. Iraíde é lamentada pelas velhas nas janelas.
Alguns retardatários unem-se ao cortejo, os únicos de guarda-chuva. O
dilúvio despeja-se do céu, grossos pingos batem com fúria no caixão.
Encomendado o corpo na igreja, e ainda com chuva, D. Iraíde insiste em
acompanhar a filha ao cemitério. Na sepultura do padrinho foi aberta uma
cova, cheia de água suja. Com aquela água, a mãe não permite que enterrem
Dorinha — o vestido ficaria estragado. A chuva cai torrencialmente.
Dois coveiros com baldes começam a esvaziar a fossa. Pede-me D.
Iraíde que cubra o esquife com o guarda-chuva.
Impossível esgotar o buraco, sempre um pouco d'água no fundo. Enfim
a mãe consente que baixem o ataúde e dispersa-se o povo, sacudindo a terra
vermelha dos sapatos.
D. Iraíde vai para casa e não dorme: o quadro do caixão boiando na
água. Com permissão do prefeito, manda erguer às pressas um túmulo no
terreno mais alto do cemitério. E dois dias depois, numa tarde de sol, assiste
à exumação.
Desenterrado o esquife, exige que seja aberto, para ver se a filha não
está molhada. Os coveiros recuam, enquanto ela penteia a longa cabeleira
grisalha da moça. Só então regressou em paz para casa.
Dia de matar porco
Aos setenta anos, Onofre era velhinho sem moral.
Embriagava-se quase todos os dias e, depois de beber, maltratava a
mulher. Por vezes, recolhia damas no sítio, atropelando a companheira. Os
filhos já eram casados e a coitada da velha se obrigava a pedir pouso na
vizinhança. Enfim recebia recado que voltasse para cuidar dele. E, quando
regressava, Onofre tornava a beber e batia nela sem dó.
Havia uma semana, Sofia fugira para a casa de uma das filhas, a
descansar um pouco das surras e, ao mesmo tempo, esperar que ele se
acalmasse. O velho resolveu carnear um porco e avisou-a que viesse lidar
com o bicho. Desta vez quem veio foi a filha Natália.
— E a mãe, onde está?
— Está lá em casa.
— Você vá e diga que ela venha. Se ela não vem, eu vou lá e esfolo uma
por uma.
Recebido o recado, a dona achou melhor voltar. Deu com a porta aberta
e garrafas vazias de cachaça por toda parte. Foi logo acender o fogo para
derreter a banha do porco.
— Ah, é você que está aí? É bom, porque hoje é teu dia. Hoje eu acabo
com tua vida.
Onofre investiu aos socos e pontapés:
— Outra vez aprenda a ficar em casa e cuidar do teu homem.
A velha livrou um dos braços e ferrou-lhe as unhas no rosto:
— Eu ando onde quero e você não me manda.
A muito custo, Sofia chegou perto da janela e, quando o velho estacou,
empinando a garrafa para cobrar fôlego, ela subiu no peitoril e se deixou
cair, rolando no monte de lenha picada. Onofre saiu cambaleando:
— Será que essa cadela fugiu de mim?
Escondida debaixo da carroça, ouvia-o praguejar e bater a torto e a
direito com o chicote.
— É uma grande sorte tua. Se não fugisse, hoje eu dava o fim da tua
vida.
Era ela, entendeu Sofia, era ela o porco que o velho pretendia carnear.
Enquanto Onofre a buscava no paiol, a dona entrou em casa e armou-se
com a espingarda pica-pau, de chumbo perdigoto.
— Ah, então você está aí.
— Olhe o que você me fez, seu bandido.
Onofre olhou de longe, meio ressabiado. A velha toda ferida era uma
sangueira.
— Você está que é só pelanca. Já não preciso de você.
Eu arranjo outra mais moça para mim.
Sentou-se no banco diante da casa e bebeu no gargalo a grandes saltos
do gogó no pescocinho fino. Ameaçou que ia embora do sítio depois de
acabar com todos. Fingiu de dorminhoco para que Sofia se distraísse, mas
ela não largou da espingarda.
Com grande alarido Onofre correu atrás dela, dando-lhe chicotadas nas
pernas e gostando de ver os pulos aflitos da mulher, que trazia na orelha
esquerda a marca de uma dentada.
— É verdade, velha, que você teve um filho em solteira?
— Isso eu não conto. Isso você não há de saber até o dia de tua morte.
Afinal chegou aos gritos a filha Natália:
— Que é isso, pai?
— Aquela velha roubou minha espingarda e fugiu.
Sofia surgiu de trás da cerca.
— Não fugi. Estou aqui.
Apesar de embriagado, Onofre estava firme, corria de um lado para
outro e estalava o chicote. Então a espingarda explodiu, levantando um
bando de passarinhos no caquizeiro, e o velho foi ao chão. Era tiro de
espingarda pica-pau e foi para assustar, mas acertou na barriga de Onofre,
pois a mulher tinha feito pontaria, apoiando o cano na cerca. Ele caiu de
costas, meio que se ergueu e voltou a cair.
— Velha, me acuda. Estou morto, estou atirado.
De olho branco estirou-se no terreiro. Pediu um gole d'água. Sofia
trouxe a caneca. Ele estava mudo, a garrafa numa das mãos e o chicote na
outra, bem quieto, assim escutasse o pio dos pardais que anunciavam chuva.
Bailarina fantasista
— Confesse que é amante da Helena.
— Confesso coisa nenhuma.
— Meu bem, por que negar? Eu te perdoo.
— Você está louca, Elza.
— Não vou fazer nada. Só quero saber.
Ângelo estava deitado de pijama quando ela, a tesoura na mão, chegou à
porta.
— Eu sei quem é tua amante.
— Então diga.
— É uma loura.
— Quem te contou?
— A sortista.
— Você está brincando, Elza.
— Ela nunca se enganou. Disse que você sustenta essa loura. Por isso é
que chega tarde em casa.
— Mas eu não chego tarde. Sempre saímos juntos à noite.
— Então o encontro é de dia, não é? Não adianta mentir, meu bem.
Investiu contra ele, tesoura em punho. Elza era grande e forte e, com
dificuldade, alcançou desarmá-la.
— Sei que você tem amante. Agora eu tenho certeza.
— Outra sortista, não é?
— Não. Você não me faz carinho. Um homem sem amante não seria tão
indiferente.
— Acha então que eu posso te agradar, depois de tudo que você me fez?
Toda vez que entro em casa é uma cena. Se você me beija primeiro — como
às vezes tem feito — é diferente, eu reajo como homem. Mas ir atrás de
você, tenha paciência, isso eu não posso.
— Nunca vi maior mentiroso.
Não o deixava atender ao telefone, cheirava-lhe a roupa, revirava o
paletó atrás de um cabelo louro. Em sobressalto, Ângelo foi despertado de
sonho pavoroso com forte agulhada no ventre. A luz acesa do quarto e, em
pé, ao lado da cama, Elza afundava-lhe docemente a barriga com a ponta da
tesoura.
— Não vai doer, querido. Você nem vai sentir.
Atirou-se ao seu peito, soluçando e faminta de beijos.
Separaram-se de comum acordo. Ela exigiu os filhos, a casa, o carro,
uma mesada. Ele concordou e mudou-se para um hotel. Elza frequentava
clubes noturnos, procurava-o no escritório para revelar que havia dançado
com um senhor simpático e muito carinhoso — os outros não eram frios
como ele. Ângelo ouvia quieto e calado.
Uma noite em que se dirigia, encolhido à sombra das árvores, do
escritório ao hotel, um carro derrapou a seu lado e reconheceu os dois
toques de buzina. Era ela, que o convidou a subir. Estava embriagada e saiu
em corrida furiosa pela estrada.
— Você tem medo de morrer, meu bem?
— Pode me matar, é um favor até. Mas um de nós tem que cuidar das
crianças.
Os faróis acendiam um, dois, três olhos de bichos noturnos.
— Peça perdão do mal que você me fez, seu miserável.
— Eu peço tudo que você quiser. Agora dirija como uma pessoa
sensata, e não feito uma doida.
— Você me dá pena, querido.
Com a violenta freada o auto quase capotou, ela o mandou descer.
Obedeceu e, erguendo a gola do paletó, perdeu-se na estrada deserta. Eis os
faróis assassinos a persegui-lo, mas não se afastou, disposto a morrer com
dignidade.
— Suba, seu porco.
Sem discutir, ele subiu. Aquela noite dormiram juntos.
No dia seguinte, saiu bem cedo, escondido dos vizinhos.
Para não pensar esqueceu-se no vício. Jogava noites a fio e bocejava
durante o dia no escritório. Iniciou um caso com uma viúva, a primeira
mulher que conhecia desde a separação.
Nos braços do seu amiguinho, Elza o encontrou a dançar na boate. Aos
gritos, rasgou o vestido da viúva e sacudiu-a pelos cabelos. Sem piedade os
atormentava, jurando arrancar com as unhas os olhos azuis da outra. As
mãos no bolso, a ocultar os dedos feridos, Ângelo voltou a ficar só.
Um dos cabarés anunciou com estardalhaço a sua próxima atração:

TÂNIA
BAILARINA FANTASISTA

Nos cartazes a fotografia colorida de Elza, quase nua: "Estreia do


bailado afro-brasileiro!" Ao batuque do tambor, saracoteava descalça uma
imitação de hula-hula, entre as piadinhas cruéis da canalha.
Desonrado, em desespero, Ângelo decidiu matá-la. Somente o
pensamento dos filhos o continha. Foi à procura do sogro:
— O senhor não pode fazer nada? Ela me arruinou a vida, ainda não
está satisfeita. Frequenta os meus amigos e depois vem me contar.
— Nada me cabe fazer, sinto muito.
— Não pode pedir a sua filha que me deixe em paz? Ainda não viu no
jornal o seu retrato nudista? É assim que, segundo ela, recebe os
amiguinhos.
— Bem, eu sinto dó de você, Ângelo. Mas não tenho mais filha. Para
mim está morta.
Abriu a gaveta da escrivaninha:
— Tome este revólver e seja homem!
Ângelo apanhou a arma e foi até a porta.
— Meu filho.
Virou-se em silêncio.
— Se você não matar aquela perdida, quem te mata sou eu!
O revólver pesava-lhe no bolso, nunca dera um tiro na vida. E gemia:
"Meu Deus, que vai ser de mim?" De noite rondou os clubes suspeitos,
escondido atrás dos carros.
Quando a viu sair, aninhada nos braços de um senhor gordo, agarrou a
coronha de madrepérola. Não chegou a retirar a arma do bolso. Queria
matar e queria morrer, mas não tinha coragem. De cabeça baixa voltou
lentamente ao hotel: era um manso.
A visita
Alceu não saiu do apartamento por dois dias, de cama, com gripe. No
terceiro dia, Ema foi visitá-lo, acompanhada da filha.
— Por que trouxe a menina?
— Para não ficar falada, ora.
Ema deu uma revista à menina, trancou-a no banheiro e foi deitar-se
com ele, que se desculpava da barba comprida, o pijama cheirando a suor.
— Não faz mal, eu gosto.
Ela mordia os dedos e rolava a cabeça no travesseiro, em queixumes de
amor tão sentido que, do outro lado da porta, Verinha chamou: "Mamãe,
mamãe?" Alceu tinha de beijá-la com fúria para abafar o gemido.
Mais tarde, a fumaça do cigarro arrastava-se em curva caprichosa até o
nariz de Ema, aos pés da cama:
— Eu não disse? Nem a fumaça do teu cigarro me deixa em paz.
— Ema, jure que foi a primeira vez.
— Juro, meu amor.
— Ah, confessa que houve outros. Você deve mudar de homem como
de grampo no cabelo.
— Não me torture, por favor. Eu sou tão infeliz. Não basta que mamãe...
Certa manhã descobri o que mamãe era. Entrei no quarto sem bater e os
dois lá estavam. Eu já desconfiava de tudo. Quando eu chegava na cozinha,
ele tinha o cabelo ainda molhado, acabara de se pentear. Ah, o senhor por
aqui? Como se não tivessem passado a noite juntos. Mamãe não conseguia
se conter e gemia de noite.
Eu, dormindo no sofá da sala, perguntava o que era. Dor de dente, dizia
ela, sem abrir a porta. Aquela manhã em que encontrei os dois na cama, eu
fui lá para mamãe costurar a alça de minha blusa. Com o susto deixei cair a
alça e vi bem o olhar feio de Nestor. Aos doze anos, crescida para a idade, e
de maneira a esconder o que não podia, eu andava de ombros curvados e, se
alguém me olhava, eu cruzava os braços. Não gostava de Nestor, não sei
por que. Mamãe lavava-lhe a cueca e engomava a camisa, enquanto ele
passeava com a outra. Ela ficava falando e ele afiava a navalha naquela
cinta preta de couro (vai cortar a cabeça dela, eu pensava, vai acabar
cortando a cabeça dela) e depois se barbeava, olhando-a pelo espelho.
Botava o chapéu e saía, batendo a porta, sem tomar o café, que já estava na
mesa. Mas você não sabe de nada. Quando a mulher dele morreu, mamãe,
como não podia ir, me mandou ao enterro, em sinal de consideração. No
domingo não me queriam em casa, desde que surpreendi os dois no quarto.
Mamãe deixou de ir me buscar no colégio. Se fui ao enterro?
Ora, eu tinha de ir, meu bem. Ficava de uniforme o domingo inteiro no
corredor, aguardando quem eu sabia que não ia aparecer. Uma das internas,
chamada Eulália, tinha pena de mim, me levava para o quarto dela e
presenteava com bombons, escondidos debaixo do travesseiro e
peganhentos no papelzinho prateado; eu morria de medo, porque a porta
devia ficar aberta e ela não se cansava de me beijar na boca. Um dia Nestor
abandonou mamãe e nada lhe deixou, até um rádio velho levou com ele.
Casou-se com outra, o bandido. Eu recolhia as pontas de cigarro e fumava
no banheiro. Sonhava todas as noites com ele. Já me esqueci do sonho,
senão contava para você. Como ele era?
Bobinho, eu sei o que está pensando. Pois quer saber?
Era moreno, baixo, de bigodinho. As poucas vezes que mamãe me
visitava no colégio, ele ficava esperando lá fora.
Pensei de mamãe morrer, fazia tudo que ele queria, era sua escrava. Não
sei como não a matou quando gritava com ele.
Ficava afiando a navalha na cinta preta de couro e olhava quieto pelo
espelho.
— Você parece louca, Ema.
Pedia que ela repetisse entre beijos — Alceu, Alceu.
E uma noite, ao chamar o marido, diria o seu nome.
Antes de dormir, o marido precisava arrumar os sapatos lado a lado, ao
pé da cama, as meias enroladas dentro deles.
E dispor na mesa de cabeceira o relógio, a carteira, as chaves e o anel,
sempre na mesma ordem. Se ela esbarrava no sapato ou, ao olhar as horas,
mudava de posição o relógio, ele punha as mãos na cabeça: "Viu o que você
fez? Agora não posso mais dormir".
De repente, Ema estava chorando: grandes olhos verdes que rolavam
pelo rosto. Enxugava-os, mas não paravam de cair. Contou que, menina,
fora a um aniversário e lá a filha de Nestor apontara com o dedo: "Aquela
é..." Jurou vingar-se. Por isso fazia...
— O que você faz, afinal?
Não quis dizer, chorando no seu peito. Ah, pensou ele, deixa estar, sou
um tipo imundo.
Desculpou-se da desordem no quarto, mas ela adorou.
Um copo servia de cinzeiro, a roupa limpa na mala aberta e a suja
amontoada no canto. Ele pensava na menina fechada no banheiro,
sentadinha muito quieta na tampa da privada, lendo a revista.
— Não podia aguentar mais um dia longe, meu bem.
Exigiu que ele a assinalasse.
— Se teu marido vê?
— Nunca me viu nua. É um porco. Só me procura para uma coisa.
Na despedida correu os olhos pelas pontas de cigarro no soalho.
— Nunca esquecerei este quarto, meu amor.
Ema ergueu a blusa e ele mordeu quinze vezes o peitinho.
Abriu a porta, chamou a menina:
— Diga adeus para o moço, minha filha. Não sei o que fazer com esta
criatura.
Verinha era doentia, de olhos machucados.
— É uma pidona. Veja o casaquinho dela.
Para satisfazer as bichas roía o casaco de lã, cada dia um pedaço maior.
A menina virou as costas e, em loucura, Ema quis beijá-lo, mas ele não
tirou o cigarro da boca.
As duas desceram a escada, risonhas e de mãos dadas.
Cemitério de elefantes
Há um cemitério de bêbados na minha cidade. Nos fundos do mercado
de peixe e à margem do rio ergue-se o velho ingazeiro — ali os bêbados são
felizes. A população considera-os animais sagrados e provê às suas
necessidades de cachaça e peixe com pirão de farinha. No trivial
contentam-se com as sobras do mercado.
Quando ronca a barriga, ao ponto de perturbar-lhes a sesta, saem do
abrigo e, arrastando os pesados pés, atiram-se à luta pela vida. Enterram-se
no mangue até os joelhos na caça ao caranguejo ou, de tromba vermelha no
ar, espiam a queda dos ingás maduros. Sabem que estão condenados como
elefantes mal feridos e coçam as perebas, sem nenhuma queixa,
escarrapachados sobre as raízes que lhes servem de cama e cadeira, a beber
e beliscar algum pedacinho de peixe. Cada um tem o seu lugar e
gentilmente advertem-se:
— Não use a raiz do Pedro.
— Foi embora, sabia não?
— Estava aqui há pouco...
— Pois é, sentiu que ia se apagar e caiu fora. Eu gritei: Vai na frente,
Pedro, e deixa a porta aberta.
À flor do lodo borbulha o mangue — os passos de um gigante perdido?
João dispõe no braseiro o peixe embrulhado em folha de bananeira.
— O Cai Nágua trouxe as minhocas?
— Sabia não?
— Agora mesmo ele...
— Entregou a lata e disse: Jonas, vai dar pescadinha da boa.
Aporta de outras margens um elefante moribundo.
— Amigo, venha com a gente.
Dão-lhe uma raiz no ingazeiro, caneca de pinga, um rabo de peixe.
No silêncio o bzzz dos pernilongos assinala o posto de um por um.
Sentados entre as raízes, assombram-se com o mistério da noite — o farol
piscando no alto do morro.
Distrai-se um deles a afundar o dedo no tornozelo inchado, ergue-se e,
puxando os pés de paquiderme, afasta-se entre adeuses em voz baixa — que
ninguém perturbe os dorminhocos.
Esses, quando acordam, não carecem de perguntar para onde foi o
ausente. E, se indagassem, com intenção de levar-lhe um ramo de
margaridas do banhado, quem saberia responder? O caminho revela-se a
cada um na hora da morte.
A viração da tarde assanha as varejeiras grudadas nos seus pés
disformes e as folhas do ingazeiro reluzem como lambaris prateados — ao
eco da queda dos frutos os bêbados mais próximos levantam-se com
dificuldade e os disputam entre si rolando no pó. O vencedor descasca o
ingá e chupa de olhar guloso a fava adocicada. Jamais correu sangue no
cemitério — a faquinha na cinta é para descamar peixe. E, aos brigões,
incapazes de se moverem, basta-lhes xingarem-se à distância.
E eles que suportam o delírio, a peste, o travo de fel na língua, o
mormaço, as câimbras de sangue, berram de ódio obtuso contra os pardais,
que se aninham entre as folhas e, antes de dormir, lhes cospem na cabeça —
o seu pipiar irrequieto lhes envenena a modorra.
Da margem eles contemplam os pescadores mergulhando os remos.
— Tem um peixinho aí, compadre?
O pescador atira-lhes o peixe desprezado no fundo da canoa.
— Por que você bebe, Papa-Isca?
— Maldição de mãe, uai.
— O Chico não quer peixe?
— Coitado, morreu de barriga d'água.
Com a pressa que lhe permitem os pés tumefatos, despediu-se dos
companheiros cochilando à margem, esquecidos de enfiar a minhoca no
anzol.
A cuspir na água o caroço preto do ingá, os outros não o interrogam: as
presas de marfim que indicam o caminho são garrafas vazias. Chico perde-
se no cemitério sagrado, entre as carcaças de pés grotescos surgindo ao luar.
Morte na praça
A cidade orgulhava-se de sua praça, com igreja, hospital, farmácia, loja
de armarinho, retratista, dois carros de aluguel e, no canteiro de rosas, o
busto do herói. Eram casas antigas, de telha goiva, a porta da rua aberta
para os corredores escuros, onde à noite bruxuleava uma lâmpada, com
abajur de papel de seda colorido. Ao lado da igreja, revelando um trecho da
praça, as duas portas iluminadas da farmácia Sto. Expedito.
Jonas garimpou diamante, foi jogador profissional e respondeu a
processo pela morte de um homem. Voltara afinal para nossa cidade com
aquela mulher. O noivo abusara dela e a abandonara. Jonas a encontrou
feita dançarina no cabaré; casaram-se e tiveram três filhos. O velho
farmacêutico morreu e Jonas comprou a farmácia da viúva.
No quartinho dos fundos, com uma janela para o beco, montou o
laboratório, onde manipulava unguento, aplicava injeção e até inventou uma
cera para dor de dente. E serrava no dedo inchado das mulheres grávidas o
anel que não conseguiam retirar. A gente pobre o preferia ao médico:
derrubava vermes de criança, benzia verruga e os colonos vinham buscá-lo
para praguejar bicheira. Murmurava suas rezas e com um graveto riscava
uma cruz no animal doente — os bichos caíam como jabuticaba madura.
Anita ajudava às vezes no balcão ou, a cabeça curvada sob o lustre de
vidrilhos na sala, pedalava em fúria a máquina de costura — uma tira de
esparadrapo cobrindo úlcera varicosa na perna. A máquina em silêncio,
Jonas podia entender lá do balcão, ao arrepio da menor brisa, o murmúrio
dos pingentes azuis sobre a cabeça de Anita.
Ele passava a noite no clube, jogando e bebendo. Perdeu as economias
no pôquer e foi obrigado a assinar letras.
Não é que o escrivão esperava que ele comprasse fichas, para alegar
escritura urgente e levantar-se da mesa? Lembrou-se que a mulher havia
tirado o esparadrapo da perna.
Certa noite, comprou uma pilha de fichas, viu Ernesto sair e, com a
desculpa da receita para aviar, foi atrás dele até a farmácia. Observou que a
luz do corredor acendia e apagava: o escrivão entrou. Cinco minutos depois,
Jonas o seguia. Abriu a porta e encontrou a mulher de roupão e boca
pintada. Ernesto teria ouvido seus passos no corredor e desaparecera.
No dia seguinte, a mulher foi ao retratista. Na parede do quarto Jonas
fez um buraco que disfarçou com uma Pílula de Vida. À tarde disse a Anita
que fora chamado para benzer um animal doente e não o esperasse antes da
meia-noite. Amarrou o cavalo a uma árvore e voltou pelo beco,
escondendo-se no quintal. Retirou a Pílula de Vida e ficou espiando o
quarto escuro. Depois de uma hora a luz do corredor apagava e acendia.
Jonas continuou com o olho no orifício e a pílula na mão, até que a engoliu:
a luz do quarto foi acesa. A mulher entrou e Ernesto atrás. O escrivão tirou
o paletó. Jonas correu a chamar dois vizinhos para testemunhar o flagrante.
Eles vieram, descalços e de capa, olharam também pelo orifício na parede,
cada um por sua vez.
"Eu mato" — Jonas rugia em voz baixa, de revólver na mão — "eu não
sei onde estou que não mato." Os vizinhos entendiam-se por sinais a fim de
não espantar os amantes.
Jonas irrompeu aos berros pela casa, as testemunhas atrás.
Na confusão, Ernesto fugiu pela janela, esquecendo o relógio no criado-
mudo; era relógio de estimação, com tampa móvel, onde recortara o retrato
da esposa. Jonas acendeu todas as luzes da casa. Os filhos em lágrimas
desciam a escada do sótão. Enquanto a mulher arrumava a mala, ele foi até
a janela aberta e disparou dois tiros para o ar. Anita partiu para a capital no
trem da manhã.
Jonas encerrou-se em casa com os filhos, o menor, de três anos, ardendo
em febre, que eram saudades da mãe.
Esquecidas no arame do quintal ficaram duas camisas e uma calcinha de
mulher. Não as recolheu; com o vento, as mangas se retorciam de fúria,
escuras de poeira, até que a chuva as derrubou, arrastadas entre os pés das
galinhas.
Cochichavam os maldosos que o plano de Jonas era distribuir as
crianças entre os parentes e, a farmácia à beira da falência, desaparecer no
mundo. Eis que, três dias depois, Anita surgiu na cidade, com uma tia de
Jonas. A mulher esperou na praça, sentada na mala, enquanto a tia
conferenciava com Jonas, pedindo-lhe pelo amor dos filhos que a aceitasse
de volta. Anita entrou, e a tia partiu pelo trem da tarde. Por seis meses, a
cidade não viu a mulher.
Os curiosos iam comprar aspirina, algodão, pente; apenas ele no balcão,
a sala deserta, a casa silenciosa, nem sequer choro de criança. Observando
todas as janelas fechadas, a cidade interrogava-se como aquela gente
respirava.
A filha mais velha fazia compras. A presunção era de que Jonas estava
aos poucos envenenando a mulher. O negro Agenor, guardião da pracinha,
afiançava tê-la visto de relance na janela do sótão. Um circo chegou à
cidade. Jonas compareceu com os filhos todas as noites e alguns
assinalavam a sua paixão pelas crianças. Outros reconheciam que estavam
penteadas e bem vestidinhas — a mão de Anita.
O escrivão modificou o itinerário de sua casa ao fórum, dando volta ao
quarteirão, para evitar a farmácia. A cidade tremia pela hora em que os dois
se defrontassem. "Olha lá" — dizia um — "o Ernesto passando pela outra
rua." Ou então: "Ele olhou muito para a janela da farmácia." Anita, ao que
se imaginava, fora enclausurada no sótão, sem nunca descer a escada. A
farmácia era uma desolação, prateleiras vazias e empoeiradas — do estoque
velho apenas xarope São João.
O turco da loja de armarinho, ao matar um cabrito, achou no peito dois
corações. Jonas foi reclamá-los para colocar num vidro, no balcão da
farmácia. A cidade reconhecia no fundo do boião encarnado, encolhidos de
medo, os corações da mulher e do amante.
Pela janelinha iluminada do laboratório, os passantes do beco viam que
Jonas examinava um retalho de papel nas mãos trêmulas. Um de nós, de
olho penetrante, afirmou ser folha em branco: a sua carta de despedida, que
não sentia coragem de escrever. À tardinha caçava sapos no banhado e os
prendia no tanque de lavar roupa. Alguns insinuavam que, torturando os
bichos, experimentava a maneira de acabar com a mulher. Os sapos
engordavam e, segundo o negro Agenor, assim que ouviam os passos de
Jonas, saltavam para o canto mais afastado e coaxavam, os papos batendo
de susto.
Ululava à noite o vento do mar, que anunciava desgraça; desfazia as
teias de aranha, levantava a saia das mulheres e, descendo da torre da igreja,
os morcegos esvoaçavam na praça — seus guinchos ecoavam nos
corredores e as mães escondiam o pescoço das criancinhas. Para a esquina
do beco dirigiam-se o farmacêutico e o escrivão. Jonas arregalou o olho
vesgo. Ernesto, ligeiramente manco, puxou mais da perna esquerda, fugindo
ao encontro.
No verão os moradores sentavam-se em cadeiras de palha na calçada.
Abanavam-se as mulheres gordas com ventarolas e os velhos coçavam o
eczema no pé, de grossas veias azuis.
Tal era o sossego que a mulher do juiz, bordando um lencinho na sala,
ergueu a cabeça aflita com as pancadas pela casa: no aquário os peixinhos
vermelhos abriam e fechavam a boca. Na frente da farmácia, podia-se ver
Jonas, de polegar enfiado na alça do suspensório; negava-se a benzer uma
verruga infeccionada ou vender a famosa cera, indiferente a que a nova
farmácia lhe conquistasse a freguesia.
Não restaurava o estoque de medicamentos e, no entanto, abria cada
manhã as portas. Sacava do bolso o relógio do escrivão e ficava admirando
o retrato da mulher de Ernesto.
À noite deixou de acender as luzes da farmácia.
Numa tarde parada de calor invadiu o cartório, de punhal na mão.
Ernesto havia fugido com a família, abandonando a casa e os canários.
Jonas derramou a tigela de água nas gaiolas. Dias após, os passarinhos
foram recolhidos mortos: tinham-se debatido no arame, as tigelas forradas
de penas amarelas. Sua vingança voltou-se contra a cidade. Uma noite o
negro Agenor encontrou cortadas todas as roseiras da praça. Depois os
cachorros amanheceram envenenados por bolinhas de carne; era tanto
arsênico, que haviam estrebuchado sem nenhum ganido. De asas pregadas
na porta da igreja achava-se um morcego de cigarro na boca.
Se era capaz de tão grande ódio contra os pássaros e os cães e a própria
casa de Deus, que não faria com a mulher?
Foi quando a apresentou, no baile de carnaval: vestido de cetim preto, a
boca muito pintada. Jonas deixara crescer o bigode e perdia o cabelo.
Passou por nós, duas gotas de suor na ponta do nariz comprido, de braço
com a mulher. Não pularam nos cordões, mas dançaram uma ou outra
marchinha.
Anita bebia gasosa de framboesa, falando-lhe em voz apagada, sem que
Jonas respondesse. Ficaram até ao fim do baile e, de vez em quando, como
se tivesse receita urgente para aviar, Jonas tirava o relógio do bolso, mas
não via as horas, pois o relógio havia parado e nunca lhe dera corda: abria a
tampa móvel e namorava o retrato. Os perversos insistiam que a
envenenava aos poucos: "Veja como está magra".
Na manhã seguinte Jonas apareceu morto. Se Anita o envenenou ou se
comera, enganado, o prato com arsênico que destinava para ela, ninguém
soube. Anita chorou, acompanhando o enterro no vestido de cetim preto e,
sob o véu, podia-se ver a boquinha pintada. De noite a casa, escura por seis
meses, surgiu iluminando o canto da praça, atraindo os grandes besouros
que, ao cair, batiam sua negra carapaça nas pedras e, de costas, agitavam as
patinhas no ar. E, para escândalo da cidade, a luz do corredor começou a
apagar e acender. Não sabia Anita que o escrivão escapulira da cidade?
No outro dia ela abriu a farmácia, como sempre fizera Jonas. Ninguém
tinha coragem de chegar, para escolher chupeta ou escova de dente. Ficava
sentada, atrás do balcão, os olhos dourados na penumbra. Por vezes, andava
até a porta e olhava a praça: uma ratazana pardacenta e gorda atravessava a
rua, da igreja para o hospital. Apenas um caboclo entrou para pedir um
copo d'água.
Aos sábados, os moradores do interior, que vinham adquirir
mantimentos, traziam os filhos para conhecer o soldado diante da loja de
armarinho: era de lata, pintado de verde, arrimado ao poste da esquina. Sem
descer da carroça, as mulheres de lenço colorido na cabeça comiam pão
com linguiça crua e davam o peito aos filhos.
Os parentes de Jonas reclamaram as crianças. Anita as entregou sem
chorar, afinal só na casa. Era um mistério para a cidade como ela se
alimentava. Todos os dias lá estava, sentada atrás do balcão. Não se cansava
de olhar a praça, fumando um cigarro após outro, os olhos quase fechados,
por causa do sol ou da fumaça. Os meninos, que iam comprar pão,
passavam correndo diante da porta.
Quando acendia a janela da loja de armarinho, a cidade sabia que
alguém morrera: o carpinteiro estava escolhendo pano, tachinha, alça e
fechadura (era costume em nossa cidade que, selado o caixão na igreja, o
herdeiro guardasse a chave, presa a uma fitinha roxa). As pancadas do
martelo faziam parar, curiosas e de rabinhos satisfeitos, as velhas ratazanas
que rebolavam no pó amarelo.
No outro lado da praça era o hospital. Os doentes cruzavam a porta da
frente e saíam pelo portão do beco — os esquifes de tábua tosca envoltos
em pano negro. Eram trazidos de carroça, agonizantes, de lenço branco
amarrado ora na cabeça, ora no pescoço. Os parentes desciam, para
conversar com o médico e providenciar o quarto. Os meninos que
brincavam na praça, ouviam a sororoca do moribundo e trepavam na
carroça, empoleirando-se nas rodas.
Antes de desembocarem os enterros na praça, o sacristão subia a escada
em caracol da igreja e tangia o sino.
À passagem do morto as casas comerciais iam fechando as portas. Os
homens revezavam-se nas alças do caixão: o cemitério era perto, mas os
defuntos pesados.
Anita ausentou-se da cidade. Dirigiu-se ao trem, descalça, um sapato de
verniz em cada mão, para não manchá-los de pó. Dizia-se que estava à
procura do escrivão. Voltou no dia seguinte e abriu a farmácia, foi para trás
do balcão.
Um caixeiro-viajante entrou a fim de comprar um pente ou atraído pela
mulher solitária. Embora falasse com ela, a única resposta foi o riso dos
vidrilhos azuis.
O carteiro passava com a bolsa de pano no braço, um ombro mais baixo
que outro: chegara o trem. Gente vinha de longe para vê-lo. Era belo ao
crepúsculo o trenzinho de mil janelas iluminadas. Na estação, as mãos dos
viajantes estendiam-se para agarrar rosquinhas de polvilho, que os meninos
ofereciam nas cestas erguidas sobre a cabeça. Antes de bater o sino, o
agente da estação colocava o boné vermelho.
O trem desaparecia com um penacho de fagulhas que, no verão,
incendiavam os campos e o apito era tão triste que as velhas ao redor do
fogão faziam o sinal-da-cruz.
À tardinha, na copa dos pinheiros, alinhavam-se à espreita as
cabecinhas obscenas e peladas dos corvos. As mães vinham à porta,
chamando os piás que jogavam futebol no campinho ou voltavam da
estação, silenciosos e de olhos perdidos, porque tinham visto o trem. Anita
ouvia os gritos amorosos e aflitos, sem poder chamar os próprios filhos.
O silêncio crescia no fundo do beco, sob o velho pessegueiro que, com
pequena cruz ao lado, era a árvore dos anjinhos — os fetos enterrados entre
as raízes. Cobria a cidade e a praça o segredo mortal, enlouquecendo o
negro Agenor que, à noite, esquecido de todos, conversava na esquina com
o soldado de lata até que — evitando a luz que apagava e acendia no
corredor da farmácia — deitava-se ao pé do busto do herói e, a cabeça
pousada na terra, escutava a grama crescer.
Começo de vida
Nem dois dias atrás, onze horas da manhã. Era segunda, dia de lavar
roupa, e Juve trocou de vestido para ir buscar sabão no armazém. Gostava
de fazer compras, agradável estar ali na sombra fresca, depois de caminhar
quase um quilômetro pela vereda ensolarada. Sentia a fragrância do açúcar
preto misturado à dos rolos de fumo e das vassouras estendidas entre as
vigas. Ouvia a conversa de duas freguesas com a moça que atendia no
balcão; uma desmanchava os nós do lenço xadrez à cata do dinheiro e a
outra tinha papo. Juve desviou depressa os olhos pensando no filho. A moça
do balcão dizia que os pais tinham ido a um curandeiro benzer a erisipela da
velha.
Sim, estava uma irmã da tal moça, doente de tão gorda, paralítica e que
tinha acabado de ganhar uma cadeira de rodas. O pai, muito sovina,
comprou de uma viúva a cadeira em prestações e a gorda, satisfeita, fazia
evoluções com ela do lado de cá do balcão, onde havia mais espaço.
Enquanto esperava, Juve debatia-se entre o desejo de beber gasosa de limão
ou comer coração de Maneco, bolacha mole, de massa escura e doce, na
forma de colorido coração de açúcar.
Estou de seis meses, sim senhor. Não chegando o dinheiro para as duas
guloseimas, escolheu coração de Maneco.
Mais ninguém ali no armazém? Sim, ele estava lá, comendo banana,
sentado num dos caixotes vazios, sobre os quais no domingo os homens
jogam truco.
Nunca lhe tinha dirigido a palavra, ela só viera para aquela povoação
depois de casada. Juve fazia a compra do sabão amarelo e roía
disfarçadamente um canto da bolacha.
Ele acabou a banana, foi a uma das portas para jogar a casca — as
freguesas surpreenderam o brilho do anel — e depois ergueu o tampo do
balcão, desaparecendo nos fundos da casa. Não a havia olhado uma vez
sequer, ao menos que ela percebesse. Alguns minutos mais tarde, Juve
recebeu o pacote e saiu para o sol. As duas mulheres lá se demoraram
mordiscando rosquinhas de polvilho e apalpando um corte de brim riscado,
do qual ela sonhava fazer uma calça para o Iache. Nada não reparou de
estranho, senão que a gorda paralítica ficara olhando da janela, enquanto
Juve se afastava, desconfiando bem que era inveja do seu vestido de cetim
azul, um pouco solto na cintura.
No meio do caminho entre o armazém e a casa, ele tinha se escondido
atrás de um vassoural, essas plantas baixas que crescem no campo e por
isso estava de cócoras.
De repente deu um pulo à sua frente:
— Por aqui não passa!
Inútil suplicar-lhe que a poupasse, de olhos esbugalhados, dirigidos para
dentro de si mesmo e não para ela. Juve apertou no peito os pedaços de
sabão, assim a pudessem defender ou salvar. E ainda tinha um bocado de
bolacha na boca — a língua secou e não conseguia engolir.
Não, senhor. Só repetia — "Tem de ser hoje. Por aqui não passa!" e
também ele parecia não poder engolir, a boca cheia de saliva. Não me fez
nenhuma proposta, não senhor.
Nem precisava, era fácil de saber o que ele queria. Juve olhou de
relance para o lado e pensou em correr, ele era mais ligeiro. Como se não
estivesse bastante pesada, ainda tinha o pacote no braço. O homem agarrou-
a e iniciaram a luta: ele para a derrubar, ela para não cair. Juve conseguiu
segurar-se ao vassoural, enquanto ele lhe passava rasteiras.
Mostrou então os pés machucados, estava descalça e ele de sapatos. E
estendeu a palma da mão direita, com a qual se tinha pendurado na macega.
Ia esfolando os dedos à medida que escorregava aos poucos. Com a outra
mão tentava impedir que ele erguesse o vestido. Exibiu as escoriações no
tornozelo, no joelho e na coxa, produzidas quando ele forcejava para lhe
desprender a mão do vassoural.
Ali no pescoço assinalou as unhas dele. Então a quis estrangular? Não,
senhor. Havia-lhe apertado com força o pescoço, era verdade, mas não com
essa intenção. Também não a ameaçou de matar se resistisse. Isto é, antes
não, só ameaçou depois. Nem um dos dois falava, empenhados numa luta
surda, entre exclamações de raiva, dor e desafio. Enquanto não a derrubou,
orgulhosa de sua força, Juve ainda acreditou que poderia com ele. A mão
foi arrebatada do vassoural, arrancando folha, galho e até raízes. Os dois
embolaram no pó. Debaixo dele, ao sentir-lhe o peso, Juve deu um grito.
Não tinha gritado antes, o carreiro era pouco palmilhado e ninguém
ouviria. Iache estava longe, na roça. Mas quando sentiu o tamanho do
homem, ela gemeu. Então ele estrangulou o grito com a mão — ponhou a
mão na minha boca. E fez o que queria.
Se ela trazia roupa de baixo? Juve não a usava naquele dia, e houve um
silêncio longo. Só vestia a tal peça quando ia à cidade.
Não corri e não chorei, não senhor. Estava cansada demais. Enquanto se
punha de pé ela se compôs. Ó diacho, rasgado o decote branco, e ficou uma
fúria:
— Carniça, desgraçado! Vá fazer isso com tua irmã aleijada!
Ele não se ofendeu, ocupado em esfregar a mão repetidas vezes na boca
e alisar o cabelo bem preto. Foi quando a ameaçou:
— Se contar para teu homem eu te dou um tiro no pé!
Deu-lhe as costas e afastou-se a passo lento, nem se virou para a olhar.
Juve andou alguns metros e voltou à procura do sabão — ainda com a mão
fechada no monte de folhas. Não achou, o pacote desfeito, um dos seis
pedaços amarelos.
Pouco adiante encontrou-se na vereda com os pais dele, regressando do
curandeiro. De sombrinha aberta, a velha arrastava a perna, alguns passos
atrás do marido. Por questão de minutos teriam chegado a tempo.
Havia cruzado por eles olhando em frente e nem cumprimentara a
velha, que ficou muito ofendida. De pescoço doído, Juve não podia se virar
senão acompanhando a cabeça com o corpo.
Não, senhor — eu passei de viagem. Estava atrasada para o almoço e
era dia de lavar roupa.
Iache tinha ouvido tudo, chupando o cigarrinho de palha e concordando
com a cabeça. Batia no cigarro com a unha e a cinza caía na calça, nem se
incomodava. Era homem bastante para castigar o inimigo — não pela
frente, esse era um bandido —, mas de tocaia na estrada. Se o sangrasse,
teria de fugir ou seria preso, e o que aconteceria à mulher naquele estado?
Gostavam um do outro, casados havia seis meses e mal começando a vida.
O velório
Entre quatro círios acessos estava Doralice. Erguendo o fino lenço de
cambraia, que escondia o rosto da falecida, Sinhô revelou-nos o nariz
escurecido e, sob o lábio crispado, os dentes amarelos:
— Apagou-se...
Fora disposto o ataúde no meio da sala, rodeado de cadeiras encostadas
às paredes. À cabeceira, de pé, chorava uma velha de preto, irmã da
defunta. E, a um canto, de queixo apoiado na mão, Ivone.
— Como vai, meu bem?
Ela ergueu a cabeça e reconheci os olhos negros, quase vidrados.
— Doralice era minha amiga.
— Amiga de todos nós — eu a consolei, mas ela recolheu a mão.
— Não me pegue. Nem esfriou no caixão e você já quer me pegar.
Da cozinha chegavam cochichos, risinhos abafados e a voz rouca de
Mãezinha que pedia: "Sinhô, conta uma história triste. Conta, Sinhô,
aquela..." Apontei a velha ocupada em espantar as moscas.
— Mãezinha podia falar mais baixo.
— A velha é surda.
Fui reunir-me aos outros, cada um com seu copo na mão, festejando a
gorda gerente do 111. A legenda era de que, se um rapazinho a interessasse,
corria a mão na boca e lhe ofertava entre o polegar e o indicador um canino
de ouro. Ao erguer o copo, tilintavam as pulseiras:
— Ai, pianista desgracido!
Enxugou uma lágrima, e as carpideiras celebravam o coração da
Mãezinha, que tinha resgatado a moça do necrotério e vestira toda de
branco.
Mãezinha foi despedir-se de sua menina morta, sem poder transpor a
beira do ataúde com os seios de melões.
Então beijou a ponta dos dedos e, erguendo o lenço, encostou-os na
fronte de Doralice.
Lá na sala a velha continuava a enxotar mosca. Garrafas vazias
alinhavam-se na mesa da cozinha.
— Homens... — resmungou Ivone, quando eu voltei.
— Fazer com ela o que o Zeca fez.
— Que foi que ele fez. meu bem?
— Ainda pergunta? Jogou-a fora. naquele estado.
— Eu não faria isso com o meu amor.
— Você também não presta. Pensa que não sei do seu caso com a
Doralice?
Desatou a chorar — as lágrimas doces do álcool. Descansei a cabeça
dela no meu ombro. Estávamos sós na sala, os dois e a velha, sem contar
Doralice. A noite não tinha fim, éramos os vivos.
Chegavam as damas de casacos de pele e bocas muito pintadas, os
vestidos tão estreitos que elas não podiam dar passinho maior que o sapato.
O perfume rançoso pesava na sala. abafando o da morta e da cera derretida.
Houve um movimento de emoção entre as mulheres — às três horas Zeca
deixaria o piano. Olhavam ora para a porta, ora para Doralice. Ivone
comentou em voz alta:
— Os homens são assim mesmo. Ela se matou por amor dele. Não teve
coragem de ver Doralice no caixão!
As senhoras que circulavam na vizinhança apareceram inúmeras vezes
durante a noite, balançando as bolsas e fumando sem parar, como os
médicos em visita a doente contagioso.
E, cada vez que se fazia silêncio, ouvia-se o ganido do cachorro, que
arranhava a soleira.
— É o Luluzinho — informou Ivone. — Ele já sabe.
A velha foi recolher a roupa do quintal e o cãozinho se intrometeu na
sala: pequeno, branco e felpudo. Começou a latir, aos saltos, em volta do
caixão. E antes que alguém o agarrasse, tinha pulado para uma cadeira e
dela para o esquife, descobrindo com as patinhas o rosto da defunta.
Haviam demorado a fechar-lhe as pálpebras e estava de olho quase aberto;
ainda pude ver que era azul. Luluzinho debatia-se nos braços de Ivone.
— Veja o animalzinho como sente.
— Está com saudades da falecida.
Ivone prendeu-o no quintal e voltou para a sala, a soprar os pelos do
vestido. A velha, mastigando a gengiva, alisava as vestes amarfanhadas da
defunta.
Um senhor desconhecido olhou para o caixão, depois para a porta e
protestou em voz alta:
— Não está certo. Isso não está certo!
Agitaram-se nas cadeiras as damas indignadas.
— O que não está certo? Ainda tem coragem! Falta de respeito. Que
vergonha!
— É que os pés dela devem ficar na direção da porta.
Sinhô e eu nos apressamos a empurrar o caixão. Ao ser erguido com
violência, pendeu perigosamente e Doralice inclinou a cabeça na almofada
carmesim.
— Ela se mexeu...
— Estão bêbados.
— É uma profanação!
Enfim alinhamos o esquife no rumo da porta. Sinhô recolheu a camisa
na calça e desculpou-se:
— O caixão é muito grande.
Comentamos que era produzido em série — uma desconsideração não
ser fabricado sob medida. Desfilavam os músicos, guardas-noturnos e
garções de gravata borboleta.
Multidão de gente pálida, que falava em voz alta, como se soubesse que
a velha era surda.
Na sala ficaram a morta e a irmã. Da cozinha, vez por outra, irrompia
entre sussurros uma gargalhada. Aos poucos também a cozinha se
despovoou — as garrafas vazias.
Quedamos sós, Ivone, Sinhô e eu. Ele assoou a tromba purpurina:
— Adeus, meu príncipe. Bebida não há mais.
— Espera lá fora, Sinhô. Eu também vou.
Ivone abriu o fogão apagado e retirou uma garrafa.
— Fique, meu bem. Eu guardei para nós dois.
Encheu os copos e veio aninhar-se nos meus braços.
— Não, não faça isso. Esse é o nosso fim. Na vida tudo é ilusão. Por
favor, querido. Não respeita a Doralice?
Eu também quero morrer. Assim é um enterro só. Ó, meu querido... Por
favor, estou toda arrepiada.
Debatia-se nos meus joelhos e protestava na voz mais baixa. Não
fizemos ruído e o silêncio nos denunciou — a velha surgiu à porta. Com um
grito de Ivone, separamo-nos.
A outra olhou-nos ferozmente, seguindo os gestos de Ivone que abriu a
bolsa e, apoiando o espelhinho no copo, começou a pentear-se, os grampos
na boca.
— É surda, não.
Voltamos então à sala. Ao dar com os sapatos prateados da falecida,
Ivone abriu os braços:
— As flores, meu Deus! Como é que não me lembrei? Pobrezinha, nem
uma flor...
Apanhou a bolsa da cadeira e, diante da velha escandalizada, entregou-
me o dinheiro.
— Compre o mais que puder de flores, querido. Mande fazer também
uma coroa. Com palavras bem bonitas. — E sorria, amorosa. — Você que é
poeta.
No primeiro bar, encontrei Sinhô diante do cálice vazio, o garção
debruçado a seu lado.
— O que foi que aconteceu?
— Sentiu-se mal — disse o garção.
Sinhô agitou cegamente a mão como se espantasse a mosca do rosto de
Doralice.
O garção trouxe a garrafa. A loja de flores era longe e ao morto que
falta faz uma coroa?
Entre homens
Os porcos vinham invadindo a plantação de Isidoro.
Bem que homem de paz, no dia em que encontrou devastada a roça de
milho, abriu com a enxada a cabeça de um dos animais e pendurou-o pelos
pés a um galho da laranjeira.
Na manhã seguinte Bernardo estacou o cavalo diante da porta e indagou
se o homem da casa estava. Urbana foi chamar o marido que malhava
feijão. Ele apanhou a foice, sua única arma, e andou ao encontro do vizinho.
— Nós vamos ter uma conversinha sem testemunha — disse Bernardo.
— Entre homens a gente se entende.
— Não se assuste com a espingarda — avisou o cavaleiro — que é para
caçar rolinha.
Ao passarem diante da laranjeira, o vizinho perguntou:
— Esse leitão não tem dono?
Observou-os a mulher, protegendo os olhos com a mão, um a cavalo e
outro a pé, que se perderam na curva do caminho. Pouco depois ouviu um
tiro e disse para o filho de treze anos, que puxava água do poço:
— Foi um caçador.
O cavaleiro retornou sozinho e ao deparar com a mulher à porta:
— A dona não se incomode com a demora do homem.
Eu deixei ele lá no mato.
A essa hora, uma vizinha recolhia lenha, em companhia das três filhas,
no bosque próximo. Chegando a um valo, distinguiu uns pés descalços, que
reconheceu como de homem. Saiu gritando que as crianças corressem
também.
Encontrou Urbana na estrada e contou o que tinha acontecido. A outra
levou a mão ao peito:
— Vamos lá ver, que o Isidoro não voltou para casa.
Avançaram as duas pelo arvoredo, deixando as meninas para trás.
Urbana viu os pés sujos de lama e soube que era o marido, ali de cabeça
para baixo. A seu lado, a foice partida e uma espingarda, a coronha
empastada de cabelo e sangue coagulado. O inspetor de quarteirão
apreendeu a arma e, compadre que era de Bernardo, não descobriu o
assassino.
No dia de Santo Antônio, padroeiro do povoado, houve festa na capela,
com foguete, leilão e barraca da fortuna.
O filho de Isidoro pediu um churrasco, deu o dinheiro e afastou-se para
comer à sombra de uma árvore. Pouco depois, Bernardo conversou com o
churrasqueira e saiu à procura do rapaz. Ao encontrá-lo, palitando os
dentes, investiu o cavalo sobre ele:
— Então, seu vagabundo, tem coragem de roubar um churrasco do
Santo?
Paulinho explicou que havia pago o pedaço de carne, mas foi tangido a
chicote até a cadeia, onde Bernardo o entregou ao inspetor:
— Com sua licença, sargento, vim aqui trazer este ladrão que me
roubou um churrasco.
Vibrou o rebenque nas costas do rapaz:
— Se ele tivesse me pedido, sargento, eu bem que dava.
Paulinho pagou segunda vez, pediu desculpas ao inspetor e no dia
seguinte foi solto.
Quando não tinha tempo de se esconder, Bernardo o perseguia na
estrada. Atropelava-o com o cavalo e brandia-lhe o relho nas costas até
levá-lo ao chão — era chicote trançado com sete tiras:
— Seu gatuno sem-vergonha, não levante a cabeça que eu te mato aqui
mesmo.
Urbana mudou-se com o filho para longe e os porcos tornaram a
refocilar na roça de Isidoro. Dois anos mais tarde a mulher morreu. Paulo,
antes de partir pelo mundo, voltou para rezar diante da cruz do pai.
A fazenda de Bernardo ficava à margem da estrada; passou depressa o
moço e sem olhar para o lado. Duzentos metros além, ouviu o galope de um
cavalo:
— Olhe quem está aí. Olhe aí o gatuno fujão!
O vizinho arremeteu o animal para o derrubar. Paulo saltou fora da
estrada e gritou que não queria ver sangue.
Correu, mas foi alcançado. Bernardo o atacou a golpes de rebenque,
acertando no ombro e de raspão no braço esquerdo.
O rapaz levou a mão à cinta e recebeu uma pancada nas costas, com
tanta força que chegou a rasgar o paletó. O cavaleiro erguia ferozmente o
relho. Paulo sacou do revólver e desfechou-lhe dois tiros no peito, ainda o
outro despedia nova chicotada.
O inimigo rolou da montaria, ao mesmo tempo que empunhava o
revólver e estendido na grama disparou a esmo.
Paulo abrigou-se atrás de um pau de erva. O cavalo caído entre eles —
era baio, de cola e crina pretas, enroscada a cabeça no arame farpado.
Bernardo ergueu-se cambaleante e deu alguns passos, agora fazendo
pontaria. Acertou duas vezes no pau de erva e o terceiro tiro furou o paletó
do moço. Este ficou de pé e avançou, respondendo ao fogo, até chegar bem
perto. Deteve-se quando o velho caiu sentado, de boca aberta e com a mão
na barriga. Paulo baixou a arma rente à cabeça do adversário e detonou
mais dois tiros — um na nuca e outro no ouvido esquerdo.
A essa hora começou a juntar gente. Um dos camaradas aproximou-se
do patrão morto e pediu licença ao moço:
— Só quero levar o cinturão para a viúva.
O velho usava camisa branca de algodão e calça de brim riscada e, ao
redor, estavam espalhados o chapéu cinzento de abas largas e um par de
chinelos, sinal de que saiu com pressa. E, preso ao pulso, o chicote
caprichosamente trançado com sete tentos.
— Não tenho nada com isso — e Paulo enfiava as balas no tambor. —
Eu queria tirar o couro do velho, que sempre me atropelou e me surrou com
o rebenque.
O camarada desafivelou o cinturão trabalhado com botões prateados,
onde o velho carregava o dinheiro, e correu até a casa, para dar a notícia.
Pouco antes o filho de Bernardo fora tomar banho no rio. Entendeu
gritaria na frente da casa e dois tiros para o lado da estrada. Luís vestiu-se e,
enchendo um balde d'água, voltou às pressas. A meio caminho, ouviu mais
uma descarga de tiros. Abandonou o balde e saiu correndo, quando cruzou
com o camarada, trazendo a guaiaca e o revólver com cinco cápsulas vazias
e uma falhada.
— Volte para casa — gritou o amigo. — E!e está morto!
Luís avistou primeiro o animal caído, todo encilhado, de pelego
amarelo, e chegando perto, o vulto de um homem retorcido.
— Está tudo acabado — bradou Paulo. — O que eu queria já está feito.
Devagarinho Luís avançava na direção do outro:
— Quem foi que você matou?
— Teu pai eu matei — disse Paulo. — E você, como filho dele, eu
também te mato.
Luís alisou de leve os cabelos grisalhos do pai, e não chorava.
— Isso tem volta. Não fica assim.
Paulo reconheceu a dor do mocinho e guardou a arma:
— Contra você nada tenho. Eu queria era matar o bichão do velho.
Enfrentou o grupo de camaradas à roda do morto e repetiu com voz
grossa:
— Quem matou o bichão fui eu.
Depois bateu o pó da roupa e afastou-se pela estrada, sem olhar para
trás.
Cena doméstica
Bem cedo pedro escancarava as janelas, abria a porta, e o gato vinha
esfregar-lhe a cauda na perna. Assobiava diante da gaiola de Chico, o
pintassilgo. Enchia de alpiste o cocho e, ao mudar a água da tigela, molhava
o soalho que Amália, de joelhos, iria enxugar como todas as manhãs.
Deu tristeza no pintassilgo, que mal se sustentava no poleiro. Arriou-se
de lado no cocho, a cabecinha ainda erguida.
Pedro fez-lhe um ninho de algodão e, a conselho da mulher, deitou um
prego enferrujado na água e pendurou figa preta no arame.
Chico enterrava a cabeça no cocho e beliscava com fúria o alpiste.
Durou três dias, morrendo aos poucos —piolhos de um vermelho vivo
corriam pelo bico. De noite o homem cobria a gaiola e, sob o pano,
escutava o pássaro mordiscando os grãos.
Naquela tarde estava caído, a cabecinha dentro do cocho. Pedro soprou
no bico e no rabo: seco, frio, duro.
Eis que a morte chegou para o homem como chegara para o pintassilgo.
Ficou de olhar parado nos alimentos: uma língua alheia na boca. Batia-se
nas portas, a colher escorregava da mão, antes forte, ainda cabeluda.
Pedro baixava a cabeça sobre o prato, na mesma febre do pássaro morto
com um alpiste no bico — quem come não está liquidado. Após a refeição,
dizia consigo — "Agora vou beliscar a marmelada" e, com enorme fatia
derretendo na boca, instalava-se à janela, cuidadoso de não encostar a
barriga no peitoril. Do outro lado do muro brincavam as filhas do vizinho.
E, se Amália não estava olhando, sorria para elas.
Visitava os cemitérios e lia a inscrição dos túmulos.
Cruzava o corredor dos hospitais e detinha-se nas portas com o nome
dos doentes: "Este não sou eu", repetia, "este não sou eu".
O corpo, que tanto lisonjeara, agora o traía: era seu inimigo. Não era
dele o corpo gigante e obscenamente branco. Pela manhã acordava pegajoso
de medo e esperava que o suor enxugasse por si: uma gota no umbigo, essa
não secava.
Com saudade do Chico, falava para a gaiola vazia — ao sopro de sua
boca o poleiro balançava. Nu, diante do espelho, examinava a inchação da
barriga, onde os borborigmos corriam, e dirigia-se a ela com voz aliciante.
Entrava bêbado em casa, acendia a luz do quarto, sem olhar para
Amália, encolhida no seu canto — de olhos fechados, mas acordada. Não
podia desatar o cordão do sapato.
Repelia as mãos amorosas que o descalçavam e lhe esfregavam o pé
frio. Dormia então, ignorando se ela o beijava, como nos primeiros dias.
Há que de anos não beijava Amália? Ela o amava e nenhum sentimento
era mais penoso. Se o odiasse, estaria tranquilo e feliz. Falava com a mulher
sem a olhar. Não existia para ele, embora dormisse na mesma cama e
comesse na mesma cozinha, ele sentado à mesa e ela ao pé do fogão. Não
lhe extirpara o amor — resto de água no copo que ela bebia. Nem lhe
corrigira os modos de sentar-se na ponta da cadeira — "Mas eu já vou me
levantar", ela se justificava.
Na tarde de verão ele que, enlouquecido pelo ódio, não tivera tempo de
pensar — "Eu vou morrer um dia", ali no espelho dourado da sala viu a sua
própria morte. Ah, gritar na cara lívida da mulher: "Não é justo que me
roube, você, a ladra de minha vida." Amália era quem devia ocupar o seu
lugar: "Não é verdade. Eu não posso morrer... ainda não". Iria dormir, para
acordar no dia seguinte, sem gosto amargoso na língua, nem manchas pretas
na barriga.
Não era crente, mas rezava. No meio da prece, cobria os olhos: "Eu vou
me sentar nesta cadeira e, quando fizer o sinal-da-cruz, um milagre
aconteceu: estou curado".
Ao sair, fechava a porta com chave — a mulher lá dentro. Da cidade ela
conhecia a rua de sua casa; envolvia a cabeça no xale negro para ir à missa
ou despedir-se dos parentes mortos. Desde que ele soube do beijo de
Ângelo, não mais acompanhou a mulher. "Ora Pedro, o que é um beijo? Um
beijo de Ângelo, o seu próprio irmão. Você sabe como ele era".
Sendo rico, mentiu que era pobre e Amália, gulosa por queijo, deixara
de o comer. Ele trazia o menor pedaço e, olhos assustados, a mulher
perguntava se não estava gastando demais. "Você é tão burra, Amália" —
respondia.
Ajudando nas despesas, ela fazia gengibirra e geleia de pera — as
visitas não vinham e a gengibirra azedava no armário.
Pedro dava o dinheiro para a carne e acusava-a de esquecer acesa a
lâmpada do corredor. "Eu tenho medo do escuro, Pedro", era a sua desculpa.
Ou de não conferir o caderno do armazém — "Mas eu não sei fazer conta".
Punha o chapéu e saía todas as noites. Nos primeiros tempos Amália
queixava-se de ficar só: as paredes da velha casa estalavam e, segundo ela,
eram passos de ladrão. Acendia a luz do corredor e, o coração suspenso das
gotas pingando no filtro, esperava a volta de Pedro.
Ele cansava de gritar que, se não estivesse satisfeita, fosse para casa da
mãe — "Mas ela já morreu, Pedro, a casa foi vendida". "Ah" — respondia o
homem, em triunfo — "se fosse viva então você me abandonava, não é?"
Saía com lua ou chuva: visitava a amante? Seu prazer era ouvi-la
perguntar — "Onde é que você vai, Pedro?"
Aparecia com um cravo na lapela (colhido ali no jardim) que, depois de
murcho, guardava com outros na gaveta da escrivaninha.
Na casa silenciosa, entendia um soluço afogado: era ela que chorava e
mordia os dedos? Punha-se à escuta, girando o grosso pescoço vermelho, e
nunca soube de quem era aquele gemido.
Não recebiam visita, nem sequer a do filho, com o qual ele brigara:
apenas entrava na casa para arrolar os bens que, tão logo Pedro morresse,
esbanjaria com vagabundas.
Amália fazia todo o serviço; ele varria o quintal, juntava as folhas secas
e percebia o riso das moças no outro lado do muro. Subindo no banco,
oferecia as melhores peras às suas meninas queridas, e adivinhava na janela
o olhar de Amália. Em vez de afastar-se da cortina, encostava-se nela e,
ainda de longe, o homem via o tecido enrugado.
Irrompia aos gritos pela casa: "O que está espiando, ó mulher
impossível?" Ela se desculpava, mãos vazias, que molhava as malvas. "E o
regador, Amália, onde está o regador?"
Não falava com ela durante dias, semanas, meses quem sabe. Sem abrir
a boca, fazia apenas um gesto sobre a cabeça, que significava — "Onde
escondeu o guarda-chuva?"
Fitava a porta — "Deixe o gato entrar." Uma careta de ódio — "Cala a
boca, ó bruxa".
Bem sabia que, se o deixasse de querer, era o seu fim.
Se a olhava quando fazia tricô, Amália errava o ponto. Ouvindo os
passos no cascalho, ela tinha de enxugar na saia o suor das mãos. Não
pudera amamentar o filho diante de Pedro — ele secava o leite no peito.
— Não quer bolinho, Pedro? Tire, está bom.
— Não quero.
— Você gostava tanto de bolinho.
— Não é que não goste de bolinho. Gosto de bolinho. Mas hoje não
quero.
— Está gostoso. Eu fiz para você. Só um pedacinho... Eu ponho no
prato, quer?
— Engula você, mulher!
Esperava que Amália aprendesse a não lhe oferecer os pratos; ora, nem
sabia que Pedro tinha horror a pimentão.
— Quer pimentão, Pedro?
Não respondia.
— Você não quer um pedacinho?
— A senhora sabe que pimentão é veneno.
A velhice era isso: não ser respeitado. As crianças na rua imitavam-lhe
o andar de pés espalhados. Se erguesse o guarda-chuva, atirariam pedras...
Esquecia um botão aberto na braguilha. Perdia as forças ao saltar no banco,
de onde espiava as meninas. Amália, essa, servia-lhe café frio.
À noite voltava mais cedo para casa, cansado de olhar vitrina, de andar
atrás de sirigaita. A fim de se distrair da morte, planejava colocar dentadura,
usar loção para a calvície, comprar o anel mágico do anúncio.
Amália, antes proibida de pisar na igreja, pôde voltar às novenas. De
xale negro era bem uma viúva, a cruzar depressa a rua, com medo dos
carros. Agora, ele a vigiava detrás da cortina: "Reze por mim, mulher
ingrata".
Fugia dos olhos que o refletiam: uma coisa mole, branca, úmida, igual a
mãe-d'água morta. Ah, se pudesse multiplicar os dias como os pães de
Cristo. A língua azeda era de tanto contar as horas? Evitava as casas
funerárias, os caixões guarnecidos nas prateleiras: todos tinham o seu
tamanho.
Uns mortos encolhem feito ameixa preta ao redor do caroço. Outros
incham de gases e no verão, se não os enterram fundo, a barriga explode
com estrondo.
Seria sepultado no mesmo dia para não cheirar? Com que rosas Amália
enfeitaria o corpo? Já não suportava flores na casa, com seu perfume de
velório.
Na cama voltava-se para a parede, tremendo de medo.
Repetia consigo: "Eu não estou perdido, devo me alegrar. Eu tinha razão
para estar alegre, qual era? Ah, a morte de Ângelo. O beijo de Amália já
apodreceu na boca".
Ao chegar, pendurava o chapéu no cabide (se o derrubava, não tinha
força de apanhá-lo), reparando se Amália falava com alguém. Espiando-a,
descobriu que conversava com as agulhas de tricô: fazia intriga dele, a
inimiga. Não a proibia de sair, mas atormentava-lhe a volta: "Mulher
imprestável, o leite coalhou, o fogo apagou". Ela não aprendia e, no
aniversário de Pedro, enfeitava de rosas a mesa.
— Você é uma infeliz, Amália. Não quero flores dentro de casa. Ó
diaba, elas invocam desgraça.
Não comia nem um pedaço de pão de ló, seu bolo predileto.
— Devolvo presente de mulher. Dona que agrada quer dinheiro.
A lata de formicida sempre ali na prateleira. Porventura uma tarde,
desgostosa, Amália estendesse a mão e...
Casados havia dois anos e ela, na maior inocência:
— No dia de nosso casamento, Pedro, seu irmão Ângelo me deu um
beijo.
— Na boca? Um beijo na boca?
— Credo, Pedro! No rosto, aqui do lado.
Fazia-a lembrar todas as noites a história do beijo.
— Amália, no que está pensando? No beijo de Ângelo? Confesse,
Amália. Ele a beijou na boca. Você com meu irmão, no dia de nosso
casamento...
Amália bordava roupinha de criança e não tinha sequer uma boneca;
lembrava-se do filho longe de casa? No fundo do quintal, Pedro encontrou
pequenos bichinhos de barro, com os quais ela brincava.
Era visitada por Miguel, na ausência do marido. Adolescente, havia
fugido de casa, após uma cena violenta com Pedro. A mulher entrava no
quarto de Miguel, lustrava os sapatos, espanava os livros, chorava diante do
retrato. Pedro escondeu a chave; ela vinha gemer na porta fechada.
O homem sabia da passagem do filho: aspirava o ar com fumaça de
cigarro, encontrava no tapete o barro de outro sapato. Teria ela exibido a
lata de veneno? Denunciava o diálogo de Pedro com a gaiola do pintassilgo
(ela dizia "pintassilva"), revelando os esconderijos dele: o dinheiro na caixa
de charutos, as peras para as suas meninas amadurecendo na gaveta? Uma
noite a vizinha o surpreendeu de braço dado com outra.
— Mentira de comadre. Por que não vai para casa de sua mãe?
Pedia a história do beijo.
— Era seu irmão mais velho. Um beijo no rosto, nada mais.
— Na boca, não minta. Bem na boca.
— Ele morreu há quantos anos, Pedro!
— Ah, se fosse vivo, você é que passeava de braço dado com ele, não
é?
— No dia que estiver morta, aí é tarde, Pedro.
De cotovelos na mesa fazia estremecer os talheres.
— Não tem queijo nesta casa?
Benzia os alimentos em gesto da Santa Ceia — na mão o estigma das
verrugas.
— Em criança, Pedro, você judiava de rã?
— Cala a boca, mulher do diabo.
Eram as moscas que o atormentavam, adivinhando o cadáver.
Exigia que ela descrevesse a agonia de Ângelo, e ficava se embalando
na cadeira, cruzados na barriga os dedos curtos e grossos.
— Ele fez isso, Amália? Chegou a esse ponto? Sentia, na hora da morte,
o gosto do beijo?
O olhar parado nas moscas sobre a marmelada:
— Alguém andou mexendo no meu bolso, Amália. Foi você quem tirou
dinheiro?
— Tirei, para pagar ao padeiro.
— Já gastou o que dei?
— Era tão pouco, Pedro. Eu paguei ontem ao leiteiro.
— Quem não tem não tira do bolso alheio.
— Não sou ladra.
— Ó, mulher infeliz.
— Pegue o dinheiro. Pegue.
— Não me provoque. Eu rasgo na sua cara.
— Não sou ladra.
Pedro rompeu a nota e atirou os pedacinhos no rosto da mulher, que se
ajoelhou e começou a juntá-los.
Achou-a enrodilhada no canto da cama. Ao deitar-se, Pedro a espiou:
ela de olhos fechados. De repente um grito abafado:
— Minha mãe do céu!
— O que foi? Que você têm?
— Nada.
— Diga o que é.
Com as mãos no rosto:
— Nada, Pedro.
— Está se sentindo mal?
— Estou com medo.
— Medo de quê?
— Estou com medo de viver.
Nunca de sua boca ouvira aquela voz. O desespero dela era bem maior
que o seu. Deitados lado a lado, noites sem fim, e não tinha coragem de a
consolar, apertar-lhe a mão:
— Quer água com açúcar? Eu vou buscar.
— Não quero nada.
— Durma, que já passa.
Aquela manhã os pés arrastavam-se no soalho e encostou-se à parede.
Pensou então: "Me acuda, Amália, por favor". Distinguia os ruídos
matutinos: pardais, um ratinho no forro, corvos no telhado. "Uma
indisposição", disse consigo, "o pepino que comi ontem".
Não era mais ele: uma boca suja. Tremia tanto enrolado nas cobertas
que Amália, na cozinha, escutava o rangido da cama. Encontrava-o, a
careca lustrosa de suor frio, com a bacia nos joelhos. Não tinha tempo de ir
ao banheiro: lançava uma golfada na bacia, salpicando os lençóis e a
parede.
Ouvia lá fora o grito dos meninos. Também ele, criança gorda, brincava
com outras ao redor do porco, pendurado pelos pés, que berrava com voz de
gente. Súbito, via-se de cabeça para baixo, ele, o porco: os dedos tateantes
da morte apontavam-lhe a faca no peito.
O doutor olhou para ele e para Amália, no outro lado da cama. Pedro
leu as palavras na sua boca: "Meus pêsames, senhora dona viúva".
Falando sem parar, queria saber do que era o amargo na boca. O doutor
sorriu:
— Não é nada. Uma pequena indisposição.
Pediu álcool para desinfetar as mãos que lhe haviam apalpado a barriga.
— Eu me sinto mal, doutor.
Fechava os punhos sob o lençol para não gritar: "Eu vou morrer, doutor.
Me salve, que eu o faço rico".
— Com esta receita o senhor ficará outro homem.
Entendia o murmúrio de Amália e a pausa das contas do rosário: "Reza
por mim", pensava, "estarei morto?"
No dia seguinte era outro homem. Deixou o gato roçar-lhe a perna,
cortou com a navalha os calos do pé e assoou-se na janela: tapava uma
narina com o polegar e soprava forte pela outra.
Amália, depois de gemer na porta do quarto do filho, voltou para a
cama, sem acender o fogo. Não queria médico, com receio de gastar o que
não podiam.
Após o exame, o doutor confessou a Pedro:
— Sua senhora está muito mal.
— Ela se acabou aos poucos, doutor. Eu é que sei.
Sempre dizia: deixe o fogão, Amália. Não esfregue a chapa, não lave a
roupa. Mas era teimosa.
Assistindo a criatura que morria, perdeu-lhe o ódio.
Abrindo o guarda-roupa, para esconder os chinelos de Amália,
inventariou os vestidos: a quem dar o verde? dar a quem o encarnado?
Os vizinhos cruzavam o corredor, alguns pela primeira vez, e parados à
porta, contemplavam a mulher: — "Está morrendo. É ela, não sou eu".
O homem telegrafou a Miguel: "Sua mãe muito mal, venha".
Amália abria, por vezes, os olhos brancos de espanto: de que paisagem
vinham cheios? No último dia sentou-se na cama e deu um grito. "Ela se
viu no espelho" — cochichavam as vizinhas.
Pedro sabia: gritara ao vê-lo, entre ela e o espelho.
A dona rolava a cabeça no travesseiro, banhada de suor. Retorcia os
dedos, e no delírio, esfregava a chapa do fogão.
Desconheceu o filho, que chorava ao lado da cama.
Pedro debruçava-se em mangas de camisa: "Amália, Amália".
Se não atendia, chegava-lhe o espelho à boca. Amália, com um soluço,
abria os lábios. Ele embebia o algodão na água de marmelada e pingava-lhe
na língua. A caveira rebentando sob a pele repuxada de dor, a boca negra
chupava todo o ar do quarto — um longo suspiro e morreu.
Pedro ajudou a lavar-lhe os pés com álcool. E limpou demoradamente
nos lábios o beijo de Ângelo. Ao vê-la vestida de morta, reparou com susto
nos cabelos brancos. Enfim chorou — não era por ela que chorava.
Agradecia os pêsames em voz alta. Espantava as duas moscas disputando os
restos do beijo do outro.
O enterro saiu. Ele seguia ao lado de Miguel, mas não se falavam.
Voltou sozinho para casa e trancou portas e janelas — no quarto, a cama
com os dois travesseiros. O da mulher, afundado pelo peso da cabeça. Ao
deitá-la pela primeira vez naquela cama, tinha jurado que não a
abandonaria. Beijando-a — e como era inocente o seu beijo — prometera
amá-la até o último dia.
Afastou o crepe do espelho e, com um gemido, escondeu o rosto nas
mãos. Um gosto conhecido na língua insinuava: "Estou aqui. Sou eu,
querido".
Paixão de corneteiro
Irene vinha sendo atormentada pelo cabo corneteiro Euclides. Ela
procurava escapar mas era perseguida. O cabo insistia na proposta
vergonhosa; ela protestava que era moça e queria casar de branco. Então a
convidou que fugissem.
Isso ela não fazia, estava muito bem na casa do patrão.
Trazia as compras do armazém e no caminho era assediada pelo
corneteiro. Uma tarde, ao entrar em casa, tinha o vestido rasgado em dois
lugares. A patroa indagou como havia estragado o vestido novo, a moça
respondeu que fora o cabo Euclides.
Na vez seguinte que ele propôs fugirem, Irene acudiu que a patroa
cuidaria do casamento.
— D. Suzana quer você para escrava da casa — bradou o cabo com
desprezo.
Então a patroa revelou que Euclides era casado e separado da mulher.
Irene foi ao circo com um soldado do batalhão, para ver se o corneteiro
deixava de a perseguir.
À saída, Euclides esperava pelo soldado e voltaram juntos para o
quartel; nunca mais o outro chegou perto da moça.
Ela foi assistir a uma festa de igreja. Euclides aproximou-se e pediu
para tirar um retrato na sua companhia.
— Nem com branco eu tiro retrato — contestou a moça —, que dirá
com um moreno e casado.
— Cuide-se, menina, que de mim você não escapa.
Na estrada, andando atrás dela, o cabo ameaçava em voz baixa:
— Menina, eu quero o que você tem para me dar.
Apressando o passo e olhando para os lados, Irene respondia:
— Eu nada tenho para te dar.
Euclides trazia na mão uma garrafa de vinho de laranja e entre dois
goles berrava:
— Por Deus do céu, menina. Hoje é teu dia.
Fugindo do corneteiro, Irene conseguiu alcançar a porta de um vizinho à
margem da estrada. O homem tirou a espingarda do prego, mas já estava
muito escuro. Eles ficaram ouvindo os gritos do cabo em volta da casa.
Noite após noite, Euclides vinha despertar a moça tocando corneta a
plenos pulmões. O patrão de Irene deu queixa ao comandante do batalhão e
o cabo ficou uma semana detido.
Era de tardinha. Irene estava puxando água do poço, quando um vulto
lhe fechou a mão na boca e arrastou-a para trás do paiol. Rasgou-lhe o
vestido — o mesmo vestido que fora costurado mais de uma vez — e, como
ela não podia gritar, derrubou-a na grama. Irene só descobriu que era o
corneteiro depois que ele lhe havia feito mal. Ela ficou toda machucada em
diversas partes do corpo. Euclides deu-lhe as costas para se abotoar, depois
penteou o cabelo e foi-se embora, ajeitando o bibico na testa.
D. Suzana tinha ouvido os ganidos no quintal. Mandou a filha saber o
que era. A menina saiu à varanda e ralhou com o guapeca que latia correndo
ao redor do paiol. Mais tarde, o fogão ainda apagado, a patroa chamou pela
moça.
Encontrou-a deitada na cama, chorando. Irene explicou que havia
tropeçado numa pedra e o balde cheio d'água machucara-lhe a perna.
No dia seguinte queixou-se de dores nas cadeiras e a patroa disse que
era dos rins. Como ela continuasse indisposta, D. Suzana a levou ao
médico, que receitou cápsulas de três misturas. A patroa interrogava a moça
e ela dizia que não. Enfim confessou que o cabo corneteiro a tinha agarrado
e derrubado atrás do poço. Ela nada queria contar porque tinha muita
vergonha.
D. Suzana conduziu-a novamente ao doutor. Ele disse que a doença da
mocinha era gravidez. Irene revelou que, naquela tarde, antes de o cabo se
afastar, afirmara que poderiam chamá-lo, que se casaria com ela, pois era
comprometido com a outra só na igreja. E mostrou um bilhete do
corneteiro, que trazia guardado no corpinho: "Irene. Mais do que eu fiz
naquele dia eu não posso fazer mais. Tudo isso para você não foi nada, só
que até hoje meu coração dói ainda. Amor, você nem sabe como é triste
sem você no sábado e no domingo aqui no quartel. Para mim não tem
consolo. Meu coração anda tão pesado que não posso estar perto de
ninguém".
O patrão formulou nova queixa e o comandante mandou chamar o
corneteiro — ele confessou que era devedor.
Depois do casamento, Irene chorou muito e jurou que se matava se o
cabo chegasse perto. Então ela voltou para casa do patrão e Euclides para o
quartel. De madrugada lá vinha ele com o clarim, do qual só sabia toques
militares.
Por três noites a moça trancou a porta e não deixou o corneteiro entrar.
No quarto dia Euclides dirigiu-se a D. Suzana e pediu licença para
apresentar a mulher aos pais dele.
— Eles querem te conhecer, Irene.
— É longe a casa de teus pais?
Euclides informou que era meio longe. Ela preparou a merenda e foram
caminhando até que anoiteceu na estrada; o corneteiro disse que a casa era
ali perto.
— Vamos descansar um pouco.
Sentaram-se no toco de pinheiro ao lado do caminho.
A moça descascou uma banana e, segurando-a numa das mãos, mordia
um biscoito na outra — por que o cabo mastigava sempre o mesmo pedaço
sem engolir? Só ela conversava e, de cabeça baixa, Euclides nada
respondia. Ela sentiu uma ruindade por dentro e ficou de pé:
— Vamos embora, Clides, ou quer pousar aqui no mato?
— Nós já vamos — e!e soltou um berro e, sacando o punhal, agarrou a
moça pelo cabelo. — Conhece que está morta, menina. Hoje é o fim de tua
vida.
Irene tentou correr; foi alcançada pelo cabo, que a derrubou e quis
cortar-lhe o pescoço. Ela se defendia com os braços, que sangravam muito.
— Pelo amor de Deus, não me mate!
O corneteiro tinha os dedos peganhentos e atirou longe o punhal. Irene
fez-se de morta; o cabo acreditou que a moça estava com a vida acabada e
cruzou as suas mãos no peito. Com o casaco cobriu-lhe as pernas e sentou-
se no toco para ver se era fingimento. Como não se mexia, agarrou-a pelos
pés e a arrastou até um barranco, deixando-a de cabeça para baixo, de modo
que escorresse todo o sangue.
Arrumou ao lado dela o embrulho de banana e deu um grito feio,
perdendo-se na escuridão.
A moça ergueu-se cambaleante e foi à procura de socorro.
Logo descobriu a janela iluminada de uma casa.
— O que foi que aconteceu? — perguntou a mulher que abriu a porta.
Convidou-a que entrasse. Irene abateu-se no banco ao lado do fogão:
— O corneteiro me esfaqueou!
Já não pôde falar, muito fraca e cuspindo sangue. A outra deitou-a na
cama. Mais tarde ouviu que uma voz cochichava:
— Lá na estrada tem um soldado enforcado na aroeira.
Então dormiu com o murmurinho do sangue na garganta.
Algum tempo depois, estava boa e nem ficou mais feia — a cicatriz no
pescoço o cabelo comprido escondeu.
Ismênia, moça donzela

Saudações.
Dr. Antônio, desculpe a ousadia de escrever, mas é que ontem
fiquei arrependida de não confessar a paixão que sinto, porque
tive vergonha, e mesmo vejo que o senhor é casado e pai de
tantos filhos, mas acho que isso não tem importância, hoje em dia
a gente sabe de tanta mulher casada gostando do homem de
outra, quanto mais eu que sou moça donzela, a diferença é que
não sou correspondida.
O doutor venha na mesma hora de ontem, que eu espero no
portão e mamãe não vai nos ver. Se o senhor não vier é sinal que
não tem a mínima simpatia por mim.
Sem mais, sua criada obrigada,
Ismênia.
P. S. Desculpe os erros que estou um pouco nervosa.

Querido Antônio.
Eu te escrevo este bilhete porque não posso suportar este
amor. Olha, Antônio, se você quiser, de hoje em diante eu te farei
os desejos, mas só se você me estimar como tua amante, e não me
deixe faltar nada e nunca me abandone.
Eu te espero hoje, às três horas, no mesmo lugar de sempre.
Eu não quebro o juramento que fiz, mas você não sei, Antônio.
Da sempre fiel,
Ismênia.
P. S. De há muito pedi o teu retrato, será que serei
merecedora? Tenho andado doente do estômago, é tudo por
causa do nosso amor. Se for possível, mande-me qualquer
importância pelo menino para comprar algum remédio. Sonhei a
noite toda que me traías e não me querias mais, será?
Estimado Antônio.
Saudações.
Esta carta será a última que minha mão te escreve.
Eu acreditei no que você disse a semana passada, como
choveu enfim teve desculpa, mas hoje está uma bonita noite. E eu
te esperei até às nove horas, você não veio então eu sei que sou
desprezada.
Ou você não apareceu por mamãe não querer sair da sala?
Se foi por isso ela pode esperar fechada lá na cozinha.
Não se faça de rogado, Antônio. Mas que horror depois de
tudo que foi combinado você ficar arrependido, venha sim?
A que há de ser tua,
Ismênia.
P. S. Peço o obséquio de enviar pelo menino algum dinheiro,
que estou apurada para pagar uma conta e a pessoa está
esperando aqui.

Antônio.
Te peço por esmola, já que você não quer o meu amor, que me
mande qualquer importância para eu dar por uma prestação, que
o turco veio aqui com desaforo, e eu estou louca de tristeza.
Olha, Antônio, estou resolvida a ser tua de corpo e alma, e
não quero que você me dê nada de roupa, joia, nem perfume, só o
aluguel da casa, eu já fico satisfeita, e o resto Deus há de dar
forças para mamãe trabalhar, só queria que você garantisse o
aluguel.
Venha de noite que eu te espero, hoje, hoje. A que será tua,
Ismênia.
P. S. Falei com mamãe e ela está de acordo.

Querido Antônio.
Eu estou perdidamente triste, só pensando nesta vida amarga,
nós fizemos o trato de eu ser tua, e você me ajudava um pouco,
agora você faz oito dias que não me aparece, então eu acho que
se arrependeu e não me quer mais.
Sou ainda a mesma,
Ismênia.
P. S. Um pequeno favor eu te peço, você me faça esta
caridade de entregar ao menino qualquer importância, que
minha mãe tem de pagar umas continhas que eu fiz, eu também
preciso fazer a extração do dente, amanhã sem falta. Desculpe se
escrevi a lápis, por causa que não tinha tinta, anjinho meu.

Meu inesquecível Antônio.


Não seja ingrato, não iluda um pobre coração como o meu,
você me enganou e não vem matar esta paixão que sinto no peito,
você é mesmo mau, não quer o meu amor, já estamos a cinco do
mês e você só veio duas vezes aqui, não é longe, eu sei que você
está com raiva de mim.
O que foi que te fiz, Antônio, que você se tornou tão ingrato?
A dona da casa me falou se eu posso pagar, estou aborrecida
porque não queria te incomodar. Ontem passei o dia bem
amolada, escrevo esta cartinha com lágrimas nos olhos, está
vendo as letras como estão borradas?
Olha, Antônio, eu quero ser tua, inteirinha tua, e que você
seja meu também.
Ismênia.
P. S. Desculpe o papel e o envelope, tudo isto é efeito da crise.

Meu inesquecível Antônio.


Hoje estou tão triste, quase para desistir da vida, não dormi
nada, e só pensando nesta desgraçada sorte minha, faz seis dias
que você não vem aqui, sei que não mereço teu amor, sou humilde
e tu és um Doutor! Tens o mundo que sorri diante de ti, eu antes
pensava que você não vinha quando chovia por causa da lama,
mas com estas noites de luar por que não vem?
Antônio, resolvi mandar minha mãe falar com você, para ver
se pode emprestar algum dinheiro, fiquei muito doente com uma
forte gripe e muito magra, precisei ir ao médico, senão não sei o
que seria de mim, ele me receitou um remédio muito caro, eu
estou sem recurso e não posso pagar, se acaso você me emprestar
o dinheiro mande por mamãe e se você não puder tudo mande
pelo menos um pouco.
Da sempre fiel,
Ismênia.
P. S. Antônio, se quer me ver morta, então é que você não vem
hoje. Não fique zangado comigo, eu por você dou até minha
salvação, quero ser tua de alma e corpo e vida.

Saudações.
Queridinho, eu te mando esta cartinha para saber notícias,
pois eu tenho muitas saudades tuas, quero ver se esta semana vou
falar contigo, porque tu sabes que não posso sair de casa por
causa do meu amigo. Eu tenho coisinhas do outro mundo para te
contar.
Antônio, desde aquela noite ele não me deixa sair, até
apanhei uns tapas, eu fico esperando no portão, você é e continua
sendo meu primeiro amor, ainda há de perdoar a traição que te
fiz.
Não mereço a raiva que tens contra mim, bem sei que sou
inocente, eu fui iludida pela falsa lábia daquele homem e ele
agora está desempregado, eu não tenho mesmo sorte, por favor
mandes algum dinheiro pelo menino, que eu preciso demais, a tua
Ismênia.
P. S. Meu bem, enfim sempre tenho a satisfação de avisar que
hoje à tarde ele não estará em casa, você pode vir sem medo.
Espero às três horas no portão e serei tua, inteirinha tua.

Antônio, você pensa que não sei que tens um caso com uma
dama casada? eu te peço pelo amor de teus filhos que não fales
no meu nome para essa sujeita que você arrumou só para
prejudicar o nosso amor, por causa de você ser um homem sem
caráter, e o tempo de tratar de negócios como doutor de respeito
andas atrás de qualquer uma, tenho fé nas forças do inferno que
todo o mal há de cair sobre ela e você, que andou se gabando de
mim, eu não esperava que fosses tão ingrato assim, por isso
Antônio pense bem no que vai ser de mim, agora que fui
abandonada pelo meu amigo, não sei se sabias que ele me deixou
em estado interessante, não tenho coragem para fazer-te mal,
mas espero com resignação que Deus se vingará por mim, já tive
amor por ti, jurei que meu coração puro era só teu, mas o nosso
amor segundo tu dizes era como o pó que a gente limpa do
sapato, não faz mal porque uma coisa você não pode dizer, que
tenha sido tua, pois tua eu nunca fui, era preciso cortar a ponta
de tua língua comprida, falador não tens mais o que falar?
quanto mais velho mais sem juízo, eu te odeio até a morte, nunca
hei de te perdoar de me trocares por uma qualquer, quero mostrar
como se dá o desprezo para um homem, sou feliz e serei até
morrer, gozando na vida, fazendo inveja para você e sem mais
aceite um abraço desta que te odeia.
P. S. Não assino porque você nem é digno do meu nome.
Casa iluminada
Ao passar na rua ouvi gritos de socorro. A casa tinha as janelas abertas e
estava toda iluminada. Empurrei a porta entreaberta e, no fim do corredor,
deparei com a mulher caída no chão, a cabeça recostada à parede. A seu
lado, sentadinhos em cadeiras de palha, dois meninos de pijama; eram tão
pequenos que os pés balançavam no ar.
O soalho estava coberto de sangue em volta da mulher. Ela deixara de
gritar ou gemer. Perguntei-lhe se podia levantar-se e respondeu que não.
O marido surgiu à porta:
— Acuda minha mulher. Eu sou um criminoso!
Trazia o pulso enrolado numa toalha manchada de vermelho.
Carregamos a mulher para o quarto, deitando-a na cama de casal. Ele se
queixava, andando em roda da cama, que a mulher não lhe pregava botão na
camisa, não aprontava a comida na hora e não dava remédio para os filhos.
Ela não dizia nada, seguindo-o com os olhos queixosos.
A casa foi invadida de vizinhos; alguém reparou nas crianças e as levou
para fora do quarto. O marido insistiu que o acompanhasse ao escritório.
Entramos e ele fechou a porta a chave. Embora me convidasse a sentar,
ficamos os dois de pé. Apalpava o paletó e observei que não se desfizera do
revólver. Indicou o velho sofá de couro preto:
— É aqui que eu durmo. Minha mulher não queria saber de mim. —
Indeciso se falava dela viva ou morta. — Ela não quer saber de mim.
Na noite anterior, ele havia batido na porta, em vez de ir entrando; desde
que se pusera a beber, gostava de atormentá-la. A mulher veio e atendeu
imediatamente. Era a prova de que o traía. Por que não tinha ido à janela
saber primeiro quem era? Por que não perguntara, antes de abrir a porta,
quem podia ser? E não estava, três vezes maldita, à espera do amante?
Ele ficava deitado no sofá, sem dormir, a dona já não o queria como
marido. Então começou a beber, em dúvida se se suicidava ou matava a
adúltera. Não podia resignar-se a deixá-la para o amante. Naquele tempo a
mulher se entregara apenas uma vez quando ele chegou de viagem. Mulher
fria não era, devia ter outro e estava cada vez mais bonita. Foi quando me
perguntou se sabia da pinta de beleza num dos ombros, não se lembrava em
qual.
Alguém girou a maçaneta e bateu com força na porta.
Ele me fez sinal de silêncio, com o dedo nos lábios. Uma voz anunciou
aos gritos que a mulher tinha morrido. O delegado estava a caminho, que
fugisse o marido para evitar o flagrante. Ao ouvir a notícia, em vez de se
desesperar, ficou estranhamente calmo:
— É o fim, agora é o fim. — E olhando para o sofá.
— Agora não terei piedade.
Ele bebia para poder dormir. E bebendo imaginava os movimentos da
mulher com o amante. Na noite do crime entrara em casa fazendo barulho,
para contrariá-la e judiar dela. Exigiu pela última vez o nome do outro. Bem
que ela visse o revólver na sua mão, apenas perguntou se tinha jantado.
Estavam na cozinha; quando ela abriu o forninho, ele lhe deu um tiro pelas
costas. A mulher caiu no ladrilho, as pernas paralisadas, e ainda conseguiu
arrastar-se até a sala, onde apoiou a cabeça à parede. Pediu que chamasse
gente a fim de socorrê-la. Com a mão ele tapou-lhe a boca, não fosse
acordar as crianças, que se erguesse e deixasse de ser fingida.
A mulher gemeu que não podia, com as pernas insensíveis.
Ele foi ao banheiro e com a lâmina feriu o pulso esquerdo. Quando
começou a sangrar, havia mudado de ideia — precisava descobrir o outro.
Eis que alguém, passando na rua, ouviu os gritos de socorro e entrou pela
porta aberta. Podia ser qualquer pessoa e bem podia ser o amante que estava
à espera.
O coronel
— Cesaria, eu vou morrer.
— Não fale assim, coronel.
— Você perdoe as minhas maldades, mulher.
Era de garrucha na cinta que policiava os camaradas na roça. De volta
passava pela rua principal da vila e o cavalo estacava sozinho diante do
único prédio de alvenaria, para que o coronel desacatasse com palavrões o
prefeito dos maragatos:
— Venha para fora, se for homem!
Orgulhoso da proeza seguia caminho; à porta do antigo casarão, apeava
do animal e alguém corria a trazer-lhe a bengalinha.
— Vá lavar a mão, meu filho. Olhe que você pega a doença.
— Que bobagem, coronel.
Tinha no rosto as nódoas amarelas do velho e achava que era doença
ruim; já não consentia que os afilhados, ao pedirem a bênção, lhe beijassem
os dedos. Com bronquite asmática — espargia nos vastos cigarros de palha
uma pitada de erva doce —, recordava o conselho do médico que consultara
havia trinta anos:
— Sua saúde é de ferro, coronel. Mas cuide do peito.
O que pode levar o meu coronel é uma pneumonia dupla.
Para fortalecer os pulmões bebia vidros de emulsão, comprada em
caixas. Impaciente, depois de um acesso de tosse, imprecava:
— O dia em que não for mais homem eu sei o que fazer.
— O senhor tem muitos anos de vida — acudia Cesária.
Como todo velho, padecia de prisão de ventre e era guloso. No domingo
abusou do lombinho de porco e, antes de dormir, preparou dose violenta de
bicarbonato. Amanheceu com desarranjo e passou o dia correndo para a
capoeira atrás da casa. À noite estava tão fraco que não podia andar;
arrastou-se da cama. seis ou sete vezes, amparado pela mulher, que gemia
de reumatismo.
— Homem que não pode se limpar, Cesária, não é mais homem. Eu vou
morrer, minha velha.
— Não fale assim, coronel.
— Me perdoe, Cesária, por tudo que fiz você sofrer.
Empregada, na casa do coronel, não podia ser velha ou negra ou vesga.
Dois dias atrás, ele ainda as perseguia e seu gosto era erguê-las nos braços:
— Ai, coronel... Não aperte que dói.
Aos setenta e sete anos o coronel era como qualquer moço — quando
apertava, doía.
— Dói, peticinha?
— Dói.
Depositava no chão a menina que, ao escutar a tosse da velha Cesária,
fugia arisca, perdendo um dos chinelos.
Em dois dias o coronel murchara como caqui fora do galho. Cesária
abriu a janela para ventilar o quarto.
— Não se levante mais, coronel. Espere que amanheça.
Exausto, não se podia manter de pé, gemendo de dor nas cadeiras.
Todos os lençóis haviam sido usados. Ao arrumar a cama:
— Ai, esse revólver, coronel — ela se lamentou.
Com ódio de maragato, guardava a arma debaixo do travesseiro:
transferiu-a para a mesinha de cabeceira e derrubou na almofada a cabeça
lívida de suor frio.
— Eu quero me mudar, Cesária.
— Acabou-se a roupa limpa. Durma, coronel.
Ele ficou molhado sob as cobertas. Pela manhã, pediu que um dos filhos
o lavasse da cintura para baixo e lhe trocasse o pijama. Entregou, a fim de
ser depositado no banco, o dinheiro que escondia no colchão.
— O senhor ainda vai enterrar muita gente, coronel.
— Eu é que sei, meu filho.
Cesária trouxe chá com torrada. O coronel não quis e reclamou a sua
colherada de emulsão. Ordenou que o deixassem, cochilaria um pouco. O
filho encostou a janela e viu o coronel, de olhos fechados, bem quieto.
Ao entrar o moço na cozinha, uma xícara espatifou-se no chão:
— Meu filho, você deixou seu pai só?
Explodiu um tiro e a velha deu um grito:
— O coronel se matou!
Correram para o quarto. A bala penetrou no ouvido direito, através de
pequeno orifício, e saiu debaixo da orelha oposta, abrindo um rombo
enorme, por onde o sangue borbulhava, salpicando a parede e ensopando a
roupa. O coronel ainda batia as pálpebras e, no silêncio, estalava o pavio da
lamparina. Tinha-se atirado de pé, de costas para a cama, e segundo a velha
Cesária, para respingar o menos possível os lençóis. As mulheres acudiram,
colocaram-lhe a vela na mão e cerraram as pálpebras; foi vestido com o
uniforme da Guarda Nacional.
— O coronel até que está bonito — comentou a velha.
Entre lágrimas, uma das filhas lembrava que, de manhã, o coronel
dissera, enquanto ela varria o quarto:
— Depressa, minha filha, que se faz tarde.
Havia oferecido uma colher de emulsão, que o pai declinou.
Para não a entristecer, aceitou um gole d'água de marmelada branca. A
pressa era de se matar bem cedo para que o enterrassem no mesmo dia —
um coronel não incomoda ninguém com guardamento.
Filha de Babilônia
Sempre pelos cantos, de olhos fugidios, Julião era moço pálido — os
sonhos habitados pelas filhas de Babilônia.
No sábado saía do confessionário com o rosto lavado em lágrimas.
Balançava a cabeça rapada, o rosário entre as finas mãos trêmulas. Tinha as
mãos pegajosas, quentes e moles — ao examiná-las, pela manhã, da palma
não cresciam cabelos? Na solidão da cama, erguia a manga do pijama e
beijava o próprio braço. Embora fosse o primeiro aluno de latim, o superior
do convento pediu a visita do pai:
— Seu filho não tem vocação. Ele deve casar senão acabará tísico.
A família decidiu casá-lo com Eudócia. Órfã, havia sido criada pelas
tias, ansiosas por se libertarem dela. Era baixa e gordinha, dente branco e
uma sombra no lábio, que disfarçava com água oxigenada. Na primeira
noite Julião leu em voz rouca para a noiva o Cântico dos Cânticos. Outras
noites espicaçou a luxúria ora com Rute aos pés de Boaz, ora com Ester
enfeitando-se para o rei.
Foram morar numa povoação à beira da estrada; eram vinte casas
amarelas e iguais, de portas e janelas marrons.
As tias dela receberam um telegrama: "Encontrei jardim fechado filha
de Sião abraços".
Eudócia ficava à janela, de fita azul no cabelo e, ao longe, ele vinha a
cantarolar:
— Eudócia comeu ma-a-anga... Ela comeu ma-a-anga...
Por causa do buço que lembrava fiapos de manga.
Julião reclamava pratos esquisitos: miolo de boi, as partes do bode, tatu.
Exigia que Eudócia também comesse; ora, as tias haviam prevenido que
tatu de rabo amarelo engordava no cemitério.
— Bobagem, minha santinha — acudia Julião, a gordura escorrendo no
queixo empapuçado.
Todas as tardes Eudócia tinha de ir à janela, para a cantilena da manga.
Não a levava a passeio, queria dormir cedo. Eudócia demorava o mais que
podia com a louça; ele esperava, arranhando uma espinha no carão balofo,
sem despregar os olhos dela, que deixava cair um talher.
Julião ajoelhava-se aos pés da cama e a moça ficava bem quieta, as
pálpebras trêmulas, coberta até o queixo, com medo do que ia sobrevir. Era
como limpar miolo de boi e depois comer. Ele voltava o crucifixo contra a
parede:
— Não escandalizemos o Cordeiro de Deus.
Eudócia cuidou de enfeitar a casa: cortina de bolinhas azuis, toalha de
oleado xadrez, malvas nas latas penduradas ao lado da porta. Plantou
girassóis na horta e sua alegria era vê-los inclinar a cabeça quando ela
passava. Depois de enxugar a louça, varrer a cozinha e espanar os móveis,
começava a bordar um casaquinho de lã, olho apertado de míope.
Teve os filhos ali mesmo, assistida por uma das vizinhas, que nem
sequer lavava as mãos. Aos gemidos da mulher, Julião salmodiava:
— São as dores, ó pecadora, que lavam os prazeres imundos da carne.
Nasceu uma criança por ano, dois meninos e uma menina.
Havia de ter os filhos que Deus lhe desse, explicava Julião, e escolheu
nomes de santos: Geminiano, Tirso e Cesarina.
Eudócia chorava ao pensar no número de santos que há no céu. Em vão
ela se ocultava no quintal entre os girassóis.
Ele a perseguia no tom monocórdio de uma criança atormentando a
outra: "Eudócia comeu ma-a-anga... " Ficava inteiramente nu, sem que
tirasse os óculos. Depois a injuriava:
— Mulher fria, ó besta de sete cabeças!
Ou choramingava que a endemoninhada tinha aberto as portas do
inferno.
Julião viajava a serviço, de regresso no sábado. A mulher olhou-se no
espelho. Então pintou os lábios e foi para a janela. Apresentou-se um moço
de bigodinho, que rodava por ali, de mão no bolso. A noite em que o
recolheu, ele estava mais nervoso do que ela. Não lhe fez carinho,
impaciente e medroso de ser surpreendido. Eudócia não ficou arrependida,
apenas triste porque também ele a deixava fria.
Aceitou-o mais de uma vez. Lauro vinha às nove horas, assim que as
crianças dormiam, e partia de madrugada: deitavam-se sobre um colchão na
cozinha. As vizinhas descobriram e deixaram de cumprimentá-la, batendo
as janelas à sua passagem.
Julião recebeu carta anônima e surgiu furioso antes do sábado. Nem
bem começou a falar, Eudócia arrumou a mala e partiu no primeiro trem.
Julião impediu-a de beijar os filhos e berrava da porta:
— Mulher adúltera, concubina de Herodes, ó filha de Babilônia!
As tias não a quiseram em casa. Eudócia empregou-se como servente no
Bar São João. Lauro apareceu lá uma tarde e propôs casamento por contrato
— não podia viver sem ela.
— Eu fiz aquilo por causa do Julião — explicou a moça.
— Agora que estou separada, não careço de você.
Era penoso o trabalho, de pé o dia inteiro, correndo por entre as mesas;
os clientes faziam-lhe convites, mas ela não ouvia e afinal a deixaram em
paz. De volta ao quartinho da pensão atirava-se vestida na cama. O retrato
dos filhos estava na mesinha de cabeceira. Escondia então o rosto no
travesseiro e sentia vontade de morrer.
A mão e o punhal
O sargento vivera com a mãe de Cearinda e, depois que a menina
ganhou corpo, substituiu a companheira, enxotando a velha de casa. Tinha
gênio violento, sempre de garrucha na cinta, desconfiado de que estivessem
querendo roubar-lhe a mocinha, o dinheiro, o cavalo.
Cheguei até a casa e, da estrada, eu ouvia a discussão:
— Olha, mulher, tem gente rindo pelas minhas costas.
Clarinda acudiu, como se não entendesse:
— Não facilite, meu velho, que você tem muito inimigo.
E penteava os cabelos, de maneira que pudesse vigiar o sargento pelo
espelho:
— Para evitar falatório, acho melhor não trazer gente aqui.
Eu apareci à porta da cozinha:
— Você está enganado comigo, sargento, eu não sou o que está
pensando, não olho de frente, mas com o rabo do olho estou vendo o jeito
das pessoas, você está desconfiado, mas eu não devo, sou um moço de vinte
anos e disposto para qualquer coisa, sou capaz até de matar uma pessoa a
sangue-frio, mas não cobiço o alheio, de ninguém não falo pelas costas, se
você tem alguma diferença diga logo, sargento, eu não fico onde não me
querem.
O conto estava se prolongando, Clarinda molhou o pente na bacia e
retocou a franjinha:
— Não, seu Daniel, eu sei que o senhor não merece e vai nos perdoar,
pois é intriga do povo que tem inveja.
O velho falou por último:
— Vamos conversar lá fora.
Dei-lhe as costas, por mais que me lembrasse do facão bem afiado.
— Sabe do quê, sargento? Eu não volto lá, tua patroa não gosta de mim.
Ele estava comovido e, afastada a suspeita, explicou o nervosismo: um
vizinho, de nome José, exibia-se a cavalo diante da casa, tirando o chapéu
para Clarinda.
Na mesma tarde o vizinho cruzou a estrada, que era seu caminho para a
cidade. O sargento gritou para a moça, que tinha surgido à janela, como de
propósito a fim de receber o cumprimento do cavaleiro:
— É hoje o dia, mulher!
Despejou as balas na mesa. Na que escolheu fez uma cruz com o facão e
esperou atrás do tronco de pinheiro.
Ouviu o tropel do animal e, saltando no barranco, bradou com a pistola
no ar:
— Se der mais um passo eu mato!
José abriu o peito:
— Mata um homem!
Com o salto do cavalo, o outro caiu de pé. O sargento errou o tiro e os
dois atracaram-se no pó. O vizinho lá ficou desmaiado, entre um pacote de
farinha de mandioca e outro de açúcar preto.
Fui encontrar Clarinda no fundo do quintal. O velho dormia, bêbado.
Ela tremia toda e pensei que era de medo.
Contou que a espancava de chicote e, para mostrar os vergões azuis,
arrancou pela cabeça o vestido.
Perguntou se eu era capaz de matar e referiu o cavalo no potreiro e o
dinheiro escondido no colchão. Só ela que eu queria, e então me beliscou o
rosto: "Você é tão moço, ainda não tem barba". Eu deveria matá-lo de tocaia
na estrada ou quando estivesse dormindo — com ele ninguém facilitava.
Não era preferível, eu disse, que ela abandonasse o sargento?
— Com você eu não posso fugir, tão moço... — repetiu a dona. — Ele
ia atrás de nós e nunca mais dava descanso.
Havia sido avisada pelo velho de que não a deixaria escapar. Seguiria o
rastro, armado de sua garrucha: "Se alguém me foge, ó mulher, é para o
inferno".
— Pode arrumar a cama do sargento para mim — eu anunciei.
Outras noites ela voltou e, ofegante da corrida pelo quintal, desfazia-se
do velho vestido com duas manchas úmidas.
Defendia-se com as unhas e acreditaria que me odiasse, se não a visse
morder os dedos para não suspirar de amor, em queixumes tão sentidos,
capazes de acordar o sargento lá dentro da casa.
Levou-me à capelinha abandonada que o velho tinha jurado arrasar: da
madeira faria um paiol e enterraria no banhado o São João Batista de cabeça
para baixo. Clarinda ofereceu, de joelhos, uma dúzia de velas a fim de que o
sargento não profanasse a imagem.
— O diabo anda mais quieto?
Não tinha o que o sossegasse.
— Deixe que eu acabo com ele.
E ainda nessa hora a mulher sempre a falar no potro malacara e no
dinheiro do colchão. Lá se foi para casa e fiquei à espera do sinal. Havia de
ser aquela noite ou nunca.
Antes de dormir o velho estivera amolando o facão na pedra:
— Esta faca é para quem cuspiu no prato onde comeu.
Ao distinguir a luz, avancei até a cozinha. A porta entreaberta, e
Clarinda de pé, ao lado da mesa: os olhos bem maiores ao clarão da vela.
— A faca em cima da mesa. Entre devagar e quieto.
Está dormindo no quarto.
Com as vozes o sargento acordou:
— Quem está aí?
Batendo os chinelinhos, Clarinda passou à minha frente:
— Sou eu, meu velho. Durma.
No susto de ouvir o sargento, eu tinha derrubado a faca.
Lá fora, Clarinda injuriou-me que não era homem. No dia seguinte iria
procurar o vizinho José.
— Isso é loucura. Eu não faço o que você quer.
— Pelo amor de Deus, dê sumiço no homem. Senão ele me mata.
Em vão a convidei que fugisse, deixando o sargento viver. Ela se
afastou. Com um requebro livrou-se do vestido e conduziu-me para dentro.
— Você não perde. Daniel, você não perde...
Com a vela erguida na mão oferecia a sua nudez e o punhal. Eu comecei
a engolir em seco e, na mesma hora, ainda que roncasse na cama, o velho
estava morto. Ela empurrou a porta e encostei-me na parede até habituar os
olhos à penumbra. Como se, dormindo, percebesse a minha presença, o
inimigo silenciou de repente, e eu pude ouvir o meu coração batendo em
todas as portas. O sargento voltou a roncar.
Aproximei-me da cama, pé ante pé, sentindo o cheiro do homem e,
debaixo dele, o de sua própria morte. Ao levantar o punhal, vi a fuga dos
pernilongos pousados na boca aberta.
Tinha escolhido o pedaço de carne nua, entre a camiseta e a calça de
pijama verde — enterrei a faca na gorda barriga mole. O sargento sentou-se
na cama, de olho cego, com uma das mãos no ventre e a outra tateando a
garrucha. Saí do quarto gritando:
— Arre que eu sangrei o sargento!
Não a encontrei no corredor, e ao chegar à cozinha, ouvi um tiro no
quarto. Chamei, não houve resposta. Fugi na direção do riacho, onde lavei
as mãos e, ao erguer a cabeça, distingui um vulto branco na água.
Seria o fantasma do morto, ela não era. Eu dormia quando fui preso. Sei
que vou para o inferno, entre os malditos é o meu lugar. Clarinda jurou que
não havia nada entre nós, o que eu cobiçava era o cavalo e o dinheiro do
sargento. Os que examinaram o saquinho de moedas e o cavalo com uma
pinta branca na testa acreditarão — desde que não cheguem a ver a mulher.
Iaiá, por que choras?
O casamento de Iaiá com o barbeiro escandalizou a cidade. Quando
moça, recusara os melhores partidos — a última de uma linhagem de
heróis, com o busto do avô na pracinha. Envelhecia e, com a decadência da
família, aceitou o emprego de professora no grupo escolar; nem assim
perdeu a soberba, acaso você a surpreendera de guarda-pó na rua?
Murmurava-se que a união fora combinada entre Mafalda, a irmã mais
velha, e o barbeiro.
Abílio mudou-se para a casa das solteironas e, fechando a barbearia,
dedicou-se aos galos de briga. Se tivesse casado por dinheiro, e não pelo
nome ilustre, fora iludido: nada coubera às irmãs além da antiga mansão de
sete janelas.
Podia ser que Mafalda, adivinhando o seu fim, houvesse casado a irmã
simplesmente para não a deixar só. Morreu dois meses depois e, na agonia,
agarrando com febre a mão de Abílio, fizera-o prometer que cuidaria bem
de Iaiá. Não foi em vão que aparou o cabelo de todos os aventureiros que
cruzaram a cidade; após a barba, os clientes distraíam-se com ele a
manusear as cartas e revelou-se grande jogador de pôquer.
Iaiá era o terror dos alunos. Castigava-os com ódio, ajoelhados sobre
grãos de milho. Uma tarde, no meio da lição, sem poder conter-se, acariciou
os cabelos de um menino de dez anos, prendeu-lhe a cabeça nas mãos e
beijou-o na boca. Voltou para casa queixando-se de palpitação e falta de ar:
— É minha velha asma, Abílio.
Desertou das aulas e passava os dias na cadeira de balanço, agitando a
franjinha com o leque de marfim. Suplicava ao marido que não a
abandonasse, no casarão de quartos vazios, com a negra cozinheira e as
lamparinas diante dos retratos.
Se não é o baralho, Iaiá, como viver? Agora é a muda de pena e não há
briga de galo. Sei que estou numa aragem boa, Iaiá. Posso ficar rico numa
noite!
No meio do jogo, mal começava a recolher as fichas, a negra Augusta
batia na vidraça:
— D. Iaiá está chamando. Ela mandou dizer que já vai morrer.
Abílio corria para casa e, desde a porta, ouvia os suspiros no quarto:
— Ai, que falta de ar, eu morro. Me acuda, Abílio.
Ele abria a janela, afofava as almofadas de crochê:
— Está melhor, Iaiá?
Pedia suas gotas — ele lhe dava o remédio na boca.
Iaiá não dormia, nem deixava dormir. Vagava pela casa e, com medo do
escuro, acendia uma lamparina em cada aposento.
Deslizava nos chinelos de feltro, erguida a barra do quimono róseo.
Tinha horror ao pó, proibindo a negra de varrer o quarto. Agia com cuidado
para não desmanchar a toalha rendilhada de poeira que se depositava nos
móveis.
Encolhia-se diante da mão oferecida de Abílio.
— Sinto nojo que me peguem — ela se desculpava —, eu sou assim
desde menina.
Ao menor ruído, Abílio devia olhar debaixo da cama ou dentro do
guarda-roupa: algum menino escondido?
Segundo Iaiá, os alunos atiravam-lhe cartas obscenas pelo vidro
quebrado da janela — exibia ao marido uma folha de descrição intitulada
"Um dia de chuva" ou "A primavera".
Erguia a cabeça da almofada, olho perdido no canto escuro:
— Você ouviu, Abílio?
— O que, Iaiá? Ouviu o quê?
— Não ouviu o cachorro a noite inteira?
Um dia esperou-o de guarda-pó engomado, uma fita azul na longa
trança. Fê-lo sentar e andava à sua volta, com a régua no ar:
— Fica quieto, Abílio. Está com bicho-carpinteiro? Sete vezes três?
Noves fora? Pensa que não vi você cobiçando a perna das meninas?
Estenda a mão para levar bolo!
Abílio estendia pacientemente a mão e, de madrugada, ao vê-la enfim
de olhos cerrados, respirando placidamente, recolheu-se ao quarto. Acordou
com a luz acesa e picadas doloridas nos pés. Ao lado da cama, Iaiá
examinava-o rancorosa, uma agulha na mão.
— Foi você, Abílio, que prendeu o menino no guarda-roupa?
Não consentia que ele abrisse o móvel.
— Deus me livre, um menino no meu quarto!
— Não tenha medo, Iaiá.
— Tire o guarda-roupa daqui.
— Está bem, Iaiá. Amanhã eu tiro.
— Amanhã não. Tem de ser já, ouviu?
Ele gemia ao peso do traste antigo. No dia seguinte ia procurá-lo no
quintal, onde pincelava a garganta dos galos com azul de metileno:
— Você viu, Abílio? Alguém mudou o guarda-roupa do lugar.
Consolava-a, afagando-lhe a mão rechonchuda, que ela retirava com
violência:
— Não me pegue, por favor. Eu fico arrepiada.
Os amigos viam o barbeiro rondando altas horas o clube.
Perdera a confiança na sua estrela e as cartas lhe caíam da mão trêmula:
— É uma aragem ruim — ele justificava. — Iaiá não tem dormido. Ela
come que nem passarinho.
Na versão da negra Augusta, bastava ele dar as costas, Iaiá corria para a
cozinha, engolindo fatias inteiras de goiabada.
Dormia bem regalada. Eis no corredor os passos cansados do marido,
pronto se afundava na cadeira, um lenço com rodelas de batata crua na
testa.
Ele ia arrumar as damas no tabuleiro. Bastava Iaiá perder, atirava-as no
chão. Nos jogos seguintes, deixava-a ganhar e, ainda descontente, Iaiá
surrupiava as peças do parceiro, que fingia não dar pelo seu
desaparecimento.
A distração de Abílio eram os galos, desvelado com os pobres cegos
que bicavam às tontas o milho na sua mão.
Misturava pimenta na ração dos frangos, atirando-os para o alto, em
revoadas que fortaleciam o peito, massageava-os com cachaça no pescoço e
na coxa. Sacava do colete o canivete de madrepérola a fim de apontar os
esporões.
Iaiá odiava os rivais, a queixar-se de seus clarins que não a deixavam
dormir. Uma tarde, na ausência do marido, agarrou um por um os bichos
nas gaiolas e sacrificou primeiro os cegos: prendeu-lhes a cabeça entre as
mãos, a girá-los com fúria no ar, até ouvir o estalido do pescoço.
Deparou Abílio com os galos pelo terreiro — ao serem atirados no chão,
tinham-se posto de pé, o coração cheio de bravura e investido alguns passos
contra a inimiga, antes de saber que estavam mortos. Enterrou-os e, no dia
seguinte conduziu a mulher à capital e a internou no asilo.
Visitava-a toda semana e ouvia-lhe as queixas sobre a enfermeira do
pavilhão. Com ameaças, era obrigada a alimentar-se e Iaiá se envergonhava
de estar engordando: "Coma tudo, que amanhã é dia de choque". E se ela
punha a mão no peito para gemer: "Olha o choque, minha sirigaita".
Na visita seguinte, Iaiá não conseguia falar: com as descargas elétricas a
língua inchada saltara da boca. Sentado a seu lado, sem poder pegar-lhe na
mão, contemplava-a tristemente na camisola de pano grosseiro, assinalada
de gotas de café. Ela apontava os quatro cachorrões negros que, ao bocejar,
sacudiam as longas correntes. Eram soltos à noite no pátio; arranhavam a
soleira e rosnavam sob a janela. Escondia a cabeça no lençol, medrosa dos
morcegos que se debatiam nas grades da vidraça.
Abílio a seguia ao canto do pátio, único lugar de sol.
Trazia-lhe bombons e depois que os engolia, virando os olhos de gozo,
Iaiá guardava os papeluchos para lamber mais tarde.
De volta ao clube, Abílio ganhava no pôquer. Ele mesmo pintou de
cores alegres o quarto de Iaiá e encomendou uma nova cadeira de balanço.
Leu aos parceiros trechos da carta recebida: "Choro todas as horas, meu
querido, com saudades de você e da nossa casa. Venha me buscar, estou
bem boa". Ele respondia: "Por que choras, Iaiá? É o fim da nossa tristeza.
Nunca mais ficaremos longe um do outro".
Dias depois foi libertar a esposa. Atravessou o pátio, os cachorros
ressonavam ao sol. Aguardando ser introduzido no pavilhão, apertava a alça
da mala com a roupa de Iaiá.
Ao entrar na enfermaria não descobriu os seus olhos assustados.
Caminhou até o último leito — vazio, o colchão dobrado sobre as
molas. Ainda pensou que ela estivesse à espera no pátio. Chegou-se a um
enfermeiro:
— Onde está Iaiá?
— Quem?
— Aquela do último leito.
— A velhinha? Morreu, a pobre.
Três dias havia que estava morta e enterrada. Abílio fechou-se no
casarão de janelas azuis. Os parceiros foram visitá-lo e bateram em vão à
porta; surgiu por um instante na vidraça partida a cabeça da negra.
De madrugada ele apareceu no clube. Deram-lhe um lugar à mesa,
pendurou o chapéu e soprava as unhas pretas: o melhor jogador de nossa
cidade.
André e o Rei da Inglaterra
Aos últimos dias a velha Cândida sentiu desejo de abacaxi. Tio Lucas
morava no litoral e foi chamado com urgência. Ela finou-se às três horas, o
trem chegava quinze minutos depois; Lucas vinha à janela, com a fruta no
braço.
Uma amiga de vovó, bem velhinha como ela, entrava pelos quartos:
"Não chorem, ela foi para o céu". O abacaxi ficara esquecido na mesa; a
velha fechou-se no banheiro e comeu-o inteirinho.
André conhecia o horror da morte e, para disfarçar, ria-se dos pobres
mortos: vovó com seu lenço lilás no queixo, a dentadura oculta nas dobras
da mortalha...
À saída do enterro, André chorou de remorso, e meu pai disse,
pousando-lhe a mão na cabeça: "Homem não chora, meu filho".
Meu irmão perdeu-se de amor pela moça que, ajoelhada ao lado do
ataúde, escondia o rosto entre as mãos. Ele a olhou. Ritinha estava sorrindo.
Durante o velório, os dois cochichavam pelos cantos e ouvíamos a bandinha
ensaiando no teatro a Marcha Fúnebre.
Papai não queria o casamento. Qual de nós não estava enfeitiçado por
ela, desde que, havia dois anos, descera do trem? Fora a primeira moça em
nossa cidade a dizer — "Meu nego", como era moda no Rio de Janeiro.
Lançara a voga da meia xadrez. Sua entrada no clube era sensacional —
não chegava antes da meia-noite, embora o baile acabasse às duas da
manhã, e na mesa bebia champanha com o pai. Levantava-se ao meio-dia e
almoçava às três da tarde.
No piquenique das Filhas de Maria banhara-se nua na cascata e,
escândalo maior, as outras puderam ver que ela tingia as unhas do pé.
O pai era um aventureiro que trouxera, além da mulher e filha, a própria
amante, instalada no hotel. Jogava pôquer e bancava brigas de galo.
A mãe vivia doente, a roer as unhas, e a dona da casa era Ritinha. Das
portas pendiam cortinas de contas coloridas, que se agitavam ruidosas à
passagem das pessoas. No soalho ela pintara fantásticos tapetes. Nossos
jardins eram pródigos em rosas e Ritinha enfeitava os vasos de flores
artificiais, por ela inventadas com arame e crepom.
André mentiu a tio Lucas que Ritinha se entregara na noite do velório e,
sendo menores, ele não podia reparar o mal. Meu pai ouviu em silêncio a
revelação de Lucas, pôs o chapéu branco dos grandes dias e foi pedir a mão
de Ritinha para o filho.
Ela frequentou então a nossa casa e, apesar do luto, tocava trechos
alegres ao piano. Uma tarde eu a surpreendi riscando com um grampo a
tampa de pau-marfim e pude ler, antes que escondesse a inscrição sob uma
folha de música: "Rita e Hugo". Fiquei de pé a fim de virar a página de uma
valsa que ela executava; usava o cabelinho curto e, ao ver-lhe a tenrura do
pescoço, já não resisti e esmaguei os lábios na dourada penugem da nuca.
Em longo suspiro, abandonou o corpo e, se não a amparasse, teria caído do
mocho. Apavorado eu me afastei e, sem voltar a cabeça, ela continuou a
frase interrompida. Viajei no dia seguinte e apenas retornei na véspera do
casamento.
Na casa de André encontrei as cortinas de contas coloridas, o tapete
pintado na sala, as rosas artificiais nos vasos, as paredes cobertas de
estampas do Eu Sei Tudo — mas ele era feliz.
Naquele ano faleceu a mãe de Ritinha. A cidade murmurava que tinha
morrido de câncer do fígado, de tanto roer as unhas. Outros insinuavam que
fora o desgosto pela amante do marido. Mal se alimentara nos últimos
meses e ficou amarela de seca. E, cinco anos mais tarde, ao ser aberto o
túmulo para o sepultamento do pai, Ritinha deparou com a velha igual a
uma múmia: intacta como no primeiro dia. Ergueu-lhe delicadamente a
cabeça e com o pente de madrepérola arranjou os cabelos em desalinho. No
dia de Finados, em vez de tecer coroa de flores, como as mulheres da
cidade, Ritinha elaborava com cravos encarnados a inicial da defunta.
Meu pai estranhava que não lhe desse um neto. "É o André que não
quer", ela se desculpava. O velho o chamava: "Meu filho, você precisa ter
mais autoridade". Uma noite, diante de toda a família, Ritinha beijou-lhe a
careca — meu pai fora conquistado.
Ela depilava a perna e pintava as unhas do pé. No carnaval fantasiava-se
de dominó negro. André tinha de acompanhá-la, sem poder enganar
ninguém com a perna defeituosa.
O farmacêutico envenenou-se com arsênico e a mulher não quis seguir o
enterro, gritando da janela que ele se matara por amor de Ritinha. A cidade
cochichava que uma noite foi visto um homem a cavalo, de chapéu branco,
nos fundos da casa de André.
Com o falecimento de papai, André, o mais velho, assumiu a chefia dos
negócios. Tinha o cuidado de imitar-lhe o pigarro, usava a sua bengala de
castão de marfim e o cavalo tordilho. Encerrava as discussões com a frase
— "Papai era da mesma opinião".
Enfraquecida pelos abortos, Ritinha sofreu hemoptise.
Exigiu ser hospitalizada na capital e André concordou, entre a paixão da
mulher e o pavor da doença. Ele ia todas as semanas ao sanatório e fumava
sem parar durante as visitas.
De óculos pretos, frequentava os cabarés, colecionando retratos de uma
bailarina: "Ao gostosão André, mil beijinhos da Valquíria".
Nossas irmãs foram ver a cunhada e, na opinião delas, a tuberculose de
Ritinha era falsa como o tapete pintado na sala de visitas: gorduchinha e de
cabelo oxigenado, nem sequer perguntara do marido. Insinuaram que estava
de namoro com um enfermeiro, de nome Reinaldo. Pior dos nervos, negou-
se por alguns meses a receber André. Enfim ele reiniciou as visitas ao
hospital, onde a mulher permaneceu ainda dois anos.
Ritinha surgiu um dia na cidade, trazendo pela mão uma menina de dois
anos. Veio de surpresa e, quando André abriu a porta, ela entrou com a
pequena atrás:
— Vá beijar seu pai, minha filha.
Explicava que, na hora da morte, uma enferma confiou-lhe a pobre
Luísa.
André sentiu agulhada no coração e consultou uma cartomante, que o
preveniu: "Cuidado para não morrer de morte violenta. Se escapar até
dezembro, viverá noventa anos". Sobreviveu àquele ano, entre sustos. Não
tinha coragem de ir aos enterros e perseguia os amigos: "A mulher rolou
por cima do caixão? E a filha caiu de costas? Ela ergueu o lenço do rosto
para ver o falecido pela última vez?
Alguém disse que ele parecia estar dormindo? Ou bonito como um
noivo?" E ria-se, um riso que era de medo: "Hugo, eu vou ficar para
semente". Irritado pelo mau gosto das perguntas, eu respondi: "Você será o
próximo".
André rezava para não morrer dormindo. Não dormia e ficava a se ralar
de ciúme: a pobre Luísa era o retrato do enfermeiro, a quem os pacientes
chamavam de Rei, em vez de Reinaldo. A menina já não morava com eles,
mas na casa de uma amiga.
À noite, os dois distraíam-se com o baralho.
— Foi você que jogou a dama?
— Não, André. Joguei o rei.
— Ah, o Rei, é?
Ritinha lia o jornal e, reclinado na cama, ele cochilava.
— Veja você, André, o rei da Inglaterra morreu.
Erguendo a cabeça fatigada do travesseiro:
— Ah, o Rei, é? Você só pensa nele, não é?
Ritinha viajou para longe com a filha. Ele não suportou a ausência e,
uma semana depois, foi ao seu encontro.
Recebeu o aviso na farmácia, onde tomava chimarrão, e voltou para
casa, unhas crispadas na gravata: a dor no braço esquerdo irradiava-se pelo
peito. Ritinha ouviu os queixumes no corredor:
— Você agora deu para gemer.
Viu-o irromper pelo quarto e atirar-se na cama, arrebentando os botões
da camisa. Correu a fazer chá, era tarde: estava de olho vidrado, com duas
moscas no rosto.
No dia seguinte fomos buscar o corpo. Uma cena que lhe agradaria: não
havia lugar para Ritinha e a filha — o próprio caixão não cabia no fordeco.
André foi estendido sobre uma tábua no lugar dos bancos.
Ergui-lhe a cabeça pesada como se todo o sangue do corpo nela se
tivesse coagulado. Depois foi a corrida louca para alcançar a cidade — era
verão e devia ser enterrado no mesmo dia.
Aberta a porta da casa, a primeira pessoa que surgiu foi a tal Valquíria,
toda de preto. Já removia o lenço do rosto de André: "Parece que está
dormindo".
Ritinha veio à cidade para a missa de sétimo dia. Acompanhei-a ao
cemitério e indiquei o túmulo de André. Estava de luto, com uma
sombrinha rósea que, apoiada no ombro, fazia girar preguiçosa. De cabeça
baixa, ajoelhou-se e rezou.
Esperei de pé e dei-lhe a mão para se levantar. Minhas irmãs tinham
razão: ela engordara. Levei-a à estação e, por um instante, esqueceu o corpo
no meu braço; ainda era bela à sombra colorida da sombrinha. Ao subir os
degraus do vagão, ela disse:
— Se você tivesse falado, Hugo, naquela tarde, eu não me casava.
Em casa, ergui a tampa do piano e fiquei a olhar os nomes riscados pelo
grampo.
Orgulho de mulher
— Ah, João, tenho sofrido tanto com esta separação. Eu lhe peço, velho,
volte para casa — é pela nossa filhinha que eu peço. Não suporto viver
longe. Não pense que não gosto de você, eu sempre gostei. Me perdoe os
erros do passado.
Vamos para bem longe, velho, desta maldita cidade. Olhe, João, é muita
mentira aquela conversa dos vizinhos, um que disse: "Coitado do João!" e o
outro: "Por quê? Ele está doente?" e respondeu o primeiro: "Não. É que a
mulher não sai da janela". Eu vou obedecer em tudo, hei de ficar sempre em
casa, com a janela fechada. Não precisa me levar a nenhum passeio. Se
você voltar para mim, nem empregada eu terei durante um ano inteiro.
Prometo que não discuto e concordo com tudo que você fizer.
Não me abandone, João, tenha um pouco de pena de mim. Desde que
você saiu de casa a minha vida é só chorar.
Não posso mais viver longe. Rosinha tem sido tão querida, não me
deixa um instante. Quando estou chorando, ela vem com os olhinhos cheios
d'água e fala bobagem para me distrair.
Dorme agarrada no meu pescoço e pergunta se você já encontrou casa
para nos mudarmos. Você não sabe como dói ela falar assim.
Pense bem, velho, nós seremos felizes fora daqui. Vamos começar vida
nova. Olhe aqui, João, eu terei quantos filhos mais você quiser. Não vamos
jogar fora, velho, o que ainda tem valor. Prefiro acompanhá-lo mesmo que
você me queira só para criada. Mas não me abandone. Veja bem, João, não
me separe da Rosinha. Nunca mais entro em casa de cartomante, que só
sabe virar a cabeça da gente.
Só hei de viver para você e a Rosinha. Ela está comigo, mas não tenho
sossego. Sei que você quer ficar com ela.
João, tenha pena de mim. Vamos embora, ainda que não me goste mais.
Mesmo que não me ligue, prometo ser uma boa companheira. Você terá a
liberdade de procurar outras mulheres. Bem me lembro que deixava nas
camisas o batom das outras para que eu limpasse. E quando eu protestava,
você respondia que era homem. Seja homem, João, mas não me abandone.
Quem me dera que você visse ontem a Rosinha, quando eu estava
chorando com a cabeça na mesa. Ela só me faltava pôr a comida na boca. O
meu medo é que lhe dê ataque outra vez. Estala os dentes e repuxa as mãos
quando dorme. Inventa capricho diferente e porque ela pede eu tenho dado.
Que é que eu posso fazer, João?
Olhe, João, vamos fazer vida com nossa filhinha. Se não der certo então
você me abandona. Por favor, diga alguma coisa, velho. Pense bem e não
aceite muito conselho dos outros. Um palpite eu tenho que seremos felizes
longe daqui, como se eu estivesse vendo no espelho da sala. Daí você pode
entrar em casa à hora que quiser, não precisa ser à noite, nem escondido dos
vizinhos. Não estranha eles cochicharem que eu era amante de um tal
Lucas. Você sabe, velho, que não tive amante algum, nem pensei em ter.
Só você pode limpar o meu nome da vergonha e desprezo que não
mereço, mas você não quer saber de mim.
Ah, agora me lembro: o casaco azul para a Rosinha você comprou?
Achou o segredo do cofre, velho? Não esqueça de procurar, eu preciso das
joias. Se você puder me dar algum dinheiro, eu devo pagar a costureira.
João, pense bem no nosso caso, resolva de outro modo a sua vingança.
Faça isso não por mim, que você acha que não mereço, mas pela nossa
filhinha. Ela é tudo o que temos na vida.
Ainda está em tempo, só depende de você. Caso contrário, ela será
obrigada a viver sem pai nem mãe, internada no colégio. Por culpa de
quem? Faça de mim o que quiser, velho, mas não sacrifique nossa filhinha.
Você teve regalia na vida desde criança, não sabe o que é a falta de carinho
dos pais.
Não seja tão fraco assim, João, de contar para os outros o que se passa
com a gente. Ninguém precisa saber de nossas particularidades. O Zeca
levou a mala que estava aqui. Não pense que ia ficar com ela, pois não me
interessa.
Eu respondi que mandava depois, mas ele achou ruim. Então eu
entreguei a mala, você recebeu?
Agora falta que você devolva as minhas joias, quando encontrar o tal
segredo do cofre. Você não vai querer o que é meu para lembrança, não é?
Tem gente intrigando para que eu fique com raiva de você, mas não adianta.
Eu o estimo muito, apesar de que você não me ligue. Assim peço que não
sinta raiva de mim, nem acredite que lhe quero mal, velho.
Não se esqueça do retrato da Rosinha vestida de rainha.
As joias que estão no cofre são um anel grande com pedra amarela, um
par de brincos, um broche prateado, um medalhão com dois rubis, um claro
e outro escuro, três correntinhas de ouro e uma figa de prata. Você acha que
não se esquece, João? Olhe que falou que se eu quisesse o radiozinho você
me dava. E prometeu que me daria dinheiro todo mês e esqueceu.
Antes de você ir embora, João, eu lhe peço e imploro que volte para
mim. Tenho sofrido, velho. Estou muito doente. Você duvida de mim, mas
eu não devo: só amei e amo você. Não simpatizei com nenhum outro
homem, muito menos o tal Lucas. Velho, você pensa que falo assim por
achar falta em cinema ou algum baile? Nada me interessa na vida sem você.
João, por tudo que é sagrado, juro não brigar mais com você, obedecer
em casa e só fazer o que você quiser.
Mas deixe que eu viva ao seu lado. A Rosinha não quer ir para o colégio
e chora muito. Até as meninas perguntam se ela tem duas mães, porque
você vive com a outra.
Eu sei, velho, o que eu digo serve de caçoada, não faz mal. Sou uma
mulher que não sabe falar como você que teve estudo. Velho querido,
quando ouvir alguma música bonita, lembre-se de mim. Eu sempre que
escuto uma valsinha triste penso logo em você. Nos primeiros meses de
casados você me abraçava e dançava comigo. Quantas vezes derrubei
lágrimas no seu ombro. Você nunca soube, eu me sentia envergonhada e o
orgulho de mulher não me deixava falar.
Nem lhe conto, velho, estou tão desesperada. Não sei o que será de
mim. Estou disposta a qualquer coisa que você queira que eu faça. Por que
você não fala, João? Vamos para bem longe. Não sou mais aquela mulher
que você tinha, cheia de vaidade. Se eu respondia era que você me fazia
ciúme com as outras e eu, boba, o queria só para mim. Volte para casa,
João.
A viúva
O fordeco sacolejava pela estrada esburacada. Atravessei a povoação na
boca da noite, as portas bruxuleantes dos botecos, com seus bêbados ao
balcão. Solitário, um velho de chapéu fumava longo cigarro de palha.
— Pode me dizer onde é a casa de D. Abigail?
— Sei não.
— É uma viúva que tem dois filhos.
— Ah, D. Biga. O senhor siga em frente, depois dobre à esquerda. Vai
dar com uma cruz. Ali à direita é a casa da viúva.
À margem do caminho acendiam-se pares de olhos fosforescentes.
No meio do mato deparei com um ciclista. Ele apontou ao longe:
— O senhor está a três quilômetros da cruz.
Aquela mão de leproso, diante do farol, era mau presságio.
Às sete horas encontrei uma cruz. Da casa próxima cresceram latidos
furiosos. Um vulto surgiu à porta e informou que a encruzilhada era mais
adiante.
Outra cruz e enfim a casa silenciosa. Não distingui luz ou ruído. A
viúva — era bem ela — apontou na varanda.
Só me reconheceu quando cheguei ao portão, saindo da sombra da
laranjeira para o luar. Desapareceu e voltou com uma vela, a protegê-la do
vento com a mão em concha.
— O doutor então sempre veio! Que pena eu não ter sabido... Teria
matado uma galinha.
— Não se incomode, D. Biga. Eu como o que tiver. Estou é exausto da
viagem.
— Quer descansar um pouco?
Conduziu-me à sala, deixando a vela na mesa. Indicou o divã de couro
vermelho.
— O doutorzinho fique à vontade. Logo volto.
Cochilei, a ouvir o pio da coruja. De súbito a viúva estava ali na porta.
— Não chamei. Podia estar dormindo.
— Não dormi, mas descansei bem.
Levou-me ao banheiro. Eu estendia as mãos sobre a bacia e ela
despejava água de uma caneca. Na banheira um resto de espuma em volta
do ralo. Numa prateleira, frascos, três escovas de dentes, uma lâmina de
barbear enferrujada.
Ela havia tomado banho e trocado de roupa: blusa estampada, saia preta
e sapatos de salto alto.
Afastei a cortina de franjas que dava para a copa, onde os dois meninos
já estavam sentados, bem penteadinhos.
Ofereceu-me o lugar à cabeceira e desculpou-se da mesa pobre.
— Se estivesse prevenida tinha preparado uma janta melhor.
— Não sou de cerimônia, D. Biga.
Uma velha de belida no olho serviu os pratos. Com a velha insinuou-se
uma gata mourisca que miava desesperada, roçando-me a cauda na perna.
Um dos meninos a suspendeu pela nuca e devolveu ao quintal, fechando a
porta.
Pouco depois ali estava a gata à roda da mesa.
— Ela entra pelo vidro quebrado da janela.
A velha prendeu o bicho na despensa. Ouvimos em seguida o estrondo
de uma lata e grãos espalhados pelo chão. A gata foi expulsa outra vez da
casa. Surgiu de novo, recebida com risos e afinal deixada em paz.
A viúva abriu a cristaleira, ostentou um pote de pêssegos em conserva.
— Por mim não precisa, D. Biga.
— O doutor vai apreciar. E os meninos sempre me pedem. Eles gostam
tanto que tive de esconder o último vidro.
Depois do café, o convite para me distrair com as fotografias da família.
Na sala o retrato do finado em moldura oval prateada. Os meninos
chegaram à porta, de calças curtas e descalços — também queriam ver o
álbum.
— Não podem, meus filhos. A mãe tem de estudar uns papéis, não é
doutor?
— Não dispomos de tempo. Devo sair amanhã cedo.
Ela folheou os retratos amarelecidos, quase todos da lua de mel.
Entramos na cozinha e bebi um copo d'água — a linguiça muito salgada. A
velha desapareceu com a gata.
A viúva abriu uma das portas do corredor:
— O Tito, é o menor, não queria que me pintasse. O Afonso, esse é
vadio, porém amoroso. Vou ver se já estão deitados.
Deixou-me com um toco de vela. Lá fora as estrelas anunciavam bom
tempo.
— Disse que ia apanhar os óculos... — Mostrou-os na mão. — Podemos
estar sossegados. — Erguendo então os olhos: — Pensei que você tivesse
me esquecido.
— A porta fica aberta?
— Não carece fechar. Nem tem chave.
Andou até a mesinha de cabeceira e pousou a vela. Veio ao meu
encontro, enlaçando-me o pescoço e beijando-me a boca. Continuei de
olhos abertos — as suas narinas arfavam como asas de borboleta.
— Quer que apague a luz?
— Não, querido. Está bem assim.
Desvencilhou-se do vestido, a combinação era rosa.
— Sabe beijar com a língua?
Ela fez que sim e baixou os olhos.
— Fique nua.
Deixou cair as alças e enrolou a combinação na cintura.
Era toda branca, os cabelos do sovaco dourados.
Depois acendi um cigarro. Ela disse que muita noite sonhava comigo.
— Você precisa é de alguém.
Sei que preciso. Mas velho não quero mais. Moço desimpedido é difícil
de achar. Só me aparece viúvo carregado de filhos.
Começou a falar no marido. Aos vinte anos, professorinha, sofrera as
peludas mãos do velhote libidinoso.
— Eu já te contei que ele não tinha uma perna?
Era muito ciumento, ainda mais no fim da vida, preso a uma cadeira de
rodas. Ela saía para comprar remédio na cidade, consultar médico e
advogado. Na volta era aquele inferno: "Onde você foi, com quem esteve?
Sei que os homens a perseguem. E você bem que gosta, sua cadela".
Sossegava quando iam para a cama. Ela só descobriu o prazer depois do
segundo filho.
— Lembro de você quando entrou no escritório. Muito séria, de olhos
baixos, no casaquinho de astracã vermelho.
— Só falou de negócio, um santinho do pau oco.
— Você disse que era pena uma dona casada com velho imprestável.
Ah, querido. Ele já estava muito mal naquele tempo.
Se o enganasse — era a praga do marido —, viria à noite puxar-lhe o
pé. Mudou de ideia antes de morrer. Deu permissão para casar, desde que
guardasse luto por um ano.
Não era vida morar naquele fim de mundo, sem recurso em caso de
doença.
Certa ocasião Abigail havia sido operada e ele ficou ao seu lado. Estava
gorda, o médico demorou a encontrar o apêndice. Então o marido sentiu
uma dorzinha fina no pé esquerdo. Em casa descobriu no dedo um pontinho
preto.
Mais tarde, amputaram-lhe o pé e, depois, a perna. Durou um ano na
cadeira de rodas e afinal morreu. Ciumento, ranzinza, queria-a noite após
noite. Quase a enlouqueceu de gozo. O velho fazia tudo que lhe viesse à
cabeça, já que ia morrer. Nunca mais ela tinha podido esquecer o que era
homem.
— E eu, agora, o que vai ser de mim?
Entre estalidos apagou-se uma das velas. Nesse instante a gata começou
a miar debaixo da janela, em suspenso o cricri das moitas. Um ano inteiro
que não sabia o que era homem.
— Você volta logo, querido?
— Volto, meu bem. Já disse que volto. — Bocejei pela segunda vez. —
Eu tenho de sair bem cedo.
Ela saltou da cama, e com a vela na mão, foi apanhando as vestes
espalhadas. Debaixo do lençol achou a peça que faltava.
— Vou recolher a gata. — E fechando a porta, com a trouxa no braço.
— Coitada, ela é como eu.
Digitalização: Marisa Novaes

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