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VIVÊNCIAS
EM BIBLIOTERAPIA
práticas do cuidado através da literatura
Direção editorial: Jean Cândido Brasileiro
Revisão: Gracinda Rosa e Luiz Antonio Barros
Design da capa: Raquel Ponte
Programação Visual e diagramação: Absoluta Criações
Esta obra está protegida por direitos autorais de acordo com a Lei 9.610/98.
Editora Cândido
Rua General Andrade Neves, 63/401 São Domingos
Niterói/RJ
Aos grandes mestres: Nise da Silveira,
Paulo Freire, Augusto Boal
e tantos outros que dedicaram seu ofício e arte
para transformar e libertar pessoas.
O poeta não me confere o passado de sua imagem,
e, no entanto, ela se enraíza imediatamente em mim.
Gaston Bachelard
Apresentação por Lena Jesus Ponte
Cristiana Seixas
Mas o que é biblioterapia?
Com o Quixote, a literatura se torna “clínica”.
Passa a ser não apenas objeto de prazer intelectual,
mas objeto de cuidado humano.
José Castello
[...] ninguém está mais vivo dentro de mim do que o meu pai.
(HILST, 2012, p. 103)
[...] não pense que a pessoa tem tanta força assim a ponto de levar
qualquer espécie de vida e continuar a mesma. Até cortar os
próprios defeitos pode ser perigoso – nunca se sabe qual é o
defeito que sustenta nosso edifício inteiro.
Clarice Lispector (2002, p. 165)
Bachelard reforça:
A extorsão, o insulto,
a ameaça, o cascudo, a bofetada, a surra,
o açoite,
o quarto escuro, aducha gelada,
o jejum obrigatório, a comida obrigatória,
a proibição de sair,
a proibição de se dizer o que se pensa, a proibição de fazer o que
se sente,
a humilhação pública
são alguns dos métodos de penitência e tortura tradicionais na
vida da família. Para castigo e desobediência e exemplo de liberdade, a
tradição familiar perpetua uma cultura do terror que humilha a mulher,
ensina os filhos amentir econtagiatudo comapeste domedo.
Os direitos humanos deveriam começar em casa – comenta
comigo, no Chile, Andrés Domínguez.
Eduardo Galeano (2000, p. 141)
Ele então percebe que está num meio que não o compreende e
acolhe. É, pois, incentivado a se aproximar dos seus semelhantes, da sua
turma. Um trecho do livro As cidades invisíveis contribui neste processo:
O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já
está aqui,o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos
estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é
fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se
parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é
arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: procurar e
reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e
preservá-lo, e abrir espaço.
(CALVINO, 1990, p. 150)
[...] uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de.
Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se
deve morrer. Inclusive é o próprio apesar de que nos empurra para
a frente. Foi o apesar de que me deu uma angústia que insatisfeita
foi a criadora de minha própria vida.
(LISPECTOR, 1998, p. 26)
[...] um dia procurou entre os seus papéis espalhados pelas
gavetas da casa a prova do melhor aluno de sua classe, que ela
queria rever para poder guiar mais o menino. E não achava,
embora se lembrasse de que, na hora de guardá-la, prestara
atenção para não perdê-la, pois era muito preciosa a
composição.A procura se tornava inútil. Então ela se perguntou,
como antes fazia, já que perdia tanto as coisas que guardava: se
eu fosse eu e tivesse um documento importante para guardar que
lugar eu escolheria? Na maioria das vezes isso a guiava a achar o
perdido.
Mas desta vez ficou tão impressionada pela frase “se eu fosse eu”
que a procura da prova se tornara secundária, e ela começava sem
querer apensar, o que nela era sentir.
[...]
“Se eu fosse eu” parecia representar o maior perigo de viver,
parecia a entrada nova no desconhecido.
(LISPECTOR, 1998, p. 128-129);
Ou seja, apesar dos motivos que a fazem não ter espaço para o
desenho da vida, o “se eu fosse eu” da Clarice convida a criar outra
realidade, primeiro na imaginação. E isto requer uma canalização da energia
para outro foco. Como diz Caio Fernando Abreu:
Tão voltada para sua própria dor que estava, também, meio cega.
Via pra dentro: charco, arame farpado, grades.
(ABREU, 2006, p. 77)
A própria imaginação deve ser cuidada, pois pode muito bem ser
ela mesma a origem de nosso ferimento.
(HILLMAN, 2010, p. 116)
Bachelard menciona:
Seguimos a imaginação em sua tarefa de engrandecimento até
chegar a um ponto além da realidade. Para ultrapassar bem, é
preciso primeiro aumentar. Vimos com que liberdade a imaginação
trabalha o espaço, o tempo, as forças.
(2008, p. 123)
isso de querer
ser exatamente aquilo que a gente é
ainda vai
nos levar além
Paulo Leminski (2013, p. 228)
Assim sendo, é mais sensato lutar pelo difícil que valha a pena.
Vamos juntos, tecendo leituras de livros, destecendo situações
opressoras e construindo possibilidades de mudanças de rumos.
Mas sei que ao mesmo tempo quero e não quero mais me conter. É
como na agonia da morte: alguma coisa na morte quer se libertar
e tem ao mesmo tempo medo de largar a segurança do corpo.
Clarice Lispector (1998, p. 147)
Todo mundo conhece ciclo seco, a maioria até já passou por ele.
Alguns mesmo vivem desde sempre dentro dele, achando que isso é
vida e eternizando o que, por ser ciclo, deveria também ser
transitório.
[...] Só que passa, por ser ciclo, e por ser da natureza dos ciclos
passar. Até lá, recomenda-se modestamente o que se tem a fazer
com o máximo de disciplina e ordem, sem querer novidades.
[...] Todo mundo tem os seus, é preciso paciência. E contemplá--lo
distante como se se estivesse fora dele.
(ABREU, 2006, p. 136 e 138)
4. Diante da velhice:
COMITIVA
Não, não vou só.
Vou acompanhada de muita gente: escritores, ilustradores, personagens,
apoiadores, seres protetores, guardiões.
O quarto se ilumina por olhos faróis de fantasia, da capacidade de colorir
qualquer cenário, do aprendizado da verdadeira liberdade: a interior.
Cada dia, uma exploração: ora contar coletivamente, ora olhos nos olhos,
aprender a linguagem dos bebês, adolescentes, adultos ressecados pela vida.
Temas atemporais, apresentados de forma possível, apesar do desconforto,
da dor, dos raros silêncios.
Tranças de histórias das páginas da memória, da vivência.
Fendas imaginárias.
Abertura para riquezas que relativizam as prioridades do cotidiano.
Distanciamento e aproximação de si.
A cada saída do hospital, um agradecimento sincero pela alta, pela liberdade
para a vida.
GABRIEL
De tempo de vida, apenas 2 anos.
Meias encardidas, roupas e olhar que denunciam a desatenção.
Frágil e só, num hospital público. Acompanhado apenas do soro encravado
em sua pequena mão.
Diante de minha presença, franziu os olhos, repelindo a aproximação de
quem veste branco: cor de visita de dor.
Deitou-se ignorando-me.
Sentei ao seu lado para contar uma história, mesmo que estivesse dormindo.
Nunca se sabe o caminho que elas percorrem e o poder regenerador que
provocam.
Ao iniciar a leitura e virar as páginas, constatei surpresa que ele estava
sentado e com olhos bem abertos.
Brilho de curiosidade no olhar.
Aos poucos foi relaxando e, antes que a história terminasse, adormeceu.
Entregou-se nos braços do afeto sob forma de palavras.
Sou um cego que vê muitas portas. Abro a janela que está mais
perto. Não escolho, tropeço a mão no fecho. Minha vida não é um
caminho. É uma pedra fechada à espera de ser areia. Vou entrando
nos grãos do chão, devagarinho. Quando me quiserem enterrar já
eu serei terra.
Mia Couto (2013, p. 84)
***
Recuse-se a cair.
Se não puder se recusar a cair, Recuse-se a ficar no chão.
Se não puder se recusar a ficar no chão, Eleve o coração aos céus
E, como um mendigo faminto, Peça que o encham,
E ele será cheio.
Podem empurrá-lo para baixo. Podem impedi-lo de se levantar.
Mas ninguém pode impedi-lo De elevar seu coração
Aos céus – Só você.
É no meio da aflição
Que tantas coisas ficam claras.
Quem diz que nada de bom resultou disso Ainda não está
escutando.
Clarissa Pinkola Estés (2006, p. 84)
Alberto Caeiro
Ricardo Reis
Álvaro de Campos
1. Leitura solitária
Ouaknin observa:
3. A leitura coletiva
Clarissa Pinkola Estés é doutora em psicologia etnoclínica, que é o
estudo da psicologia clínica aliada à etnologia, dando esta última ênfase ao
estudo da psicologia de grupos. Em seu livro Mulheres que correm com os
lobos, menciona:
2. O estranhamento e a desconstrução
a) dor sem sentido – como um mal que a pessoa quer eliminar a qualquer
preço, sendo capaz de procurar o médico, psicoterapeuta ou curandeiro;
b) dor como ocasião de provar nossa força ou coragem – uma
oportunidade de manifestar a grandeza da alma, a capacidade de ser maior
do que sua dor;
c) o absurdo, o sofrimento, a solidão e a morte são assu-midos e
transcendidos. Há um contato e restabelecimento com as raízes de sua
existência;
d) a não interpretação, o não questionamento dos males pela aceitação do
sofrimento e da morte como inerentes à vida.
4. O desmame
5. O movimento
Dor verde é aquela que está aberta, sangra ao toque, ainda faz chorar. Dor
madura é aquela que já cicatrizou, que virou história, como se fosse aquele
rasgo no tecido que foi cerzido e está mais forte que antes. É possível passar
por ela de cabeça erguida. Se algum livro ou texto ainda mobiliza você,
utilize-o para cuidar de você e não dos outros.
Para trabalhar com rodas de leituras, sugiro também o livro O milionésimo
círculo de Jean Shinoda Bolen (2003), pois ressalta ritos que auxiliam a
dinâmica de trabalhos em círculos não só de mulheres.
Há formações que certamente potencializarão este caminho: psicologia,
biblioteconomia, literatura, arteterapia, trabalhos com grupos, filosofia,
dentre outros.
Temos que lidar com a incompletude e, com humildade, dar pequenos passos
e aprender com tudo. Jamais estaremos plenamente preparados. Incomodo-
me muito com as teses que apodrecem empoeiradas nas prateleiras.
2. Clubes de leitura.
Faço parte do Clube de Leitura de Icaraí, em Niterói – RJ. Este
completou 15 anos de existência em 2013 e realiza encontros mensais para
discutir um livro eleito pelo próprio grupo. Os encontros acontecem na
segunda sexta-feira de cada mês, na livraria da UFF, no horário das 19 às
21h. O grupo publicou uma antologia com produções de seus participantes,
na qual também é detalhado seu histórico e funcionamento: Clube de Leitura
Icaraí: 15 anos entre livros, organizado por Evandro de Andrade e Cintia
Campos (2013). É possível participar de forma virtual através de e-mails,
facebook e twitter. Se houver interesse, acesse o blog
www.clubedeleituraicarai.blogspot.com.br para mais informações. O grande
benefício dos clubes de leitura é o fato de que propiciam o contato dos
participantes com plurais perspectivas do conteúdo lido, além de ter acesso
à riqueza dos caminhos literários de um grupo eclético.
8. O acaso.
Bisbilhotar continuamente livrarias, sebos e bibliotecas, à espera de
que algum livro pule em cima de você…
Reconheço que há várias outras formas de nutrir o acervo
biblioterapêutico e já agradeço pela contribuição que você pode dar, ao
enviar sugestões.
Constato com muito prazer que foi possível transformar meu lazer
em trabalho. Quando atuava em empregos formais, tinha que dar muitas
cambalhotas para ler, participar de eventos literários. E isto era feito apenas
nas brechas de tempo, no deslocamento de casa para o trabalho e vice-versa.
Muitas vezes em ônibus cheios, com iluminação, balanço e ruídos
desfavoráveis, lendo enquanto caminhava (como fazem as pessoas hoje com
seus celulares) ou aproveitando qualquer espera (em filas, consultórios,
pontos de ônibus). Ficava exausta pelas demandas e quase nada sobrava
para o que era relevante. A poesia sempre me pediu mais espaço. Já tive
uma geladeira toda escrita com versos. Hoje, eles sobem pelas paredes da
cozinha.
Atualmente, o meu lazer é o meu trabalho. Todo passo no caminho
fortalece o propósito. Não há desperdício de tempo, de energia e de vida. Se
participo de uma festa literária, crio e medeio cafés-concerto literários, leio
poesias para os clientes, estas são atividades inerentes ao meu ofício. E
como o prazer é imenso, para descansar, leio! Para me distrair, vou a
eventos da área literária: leitura de poesia, contação de histórias... Tudo o
que faço alimenta minha prática. O que mais desejar?
Livros para todas as idades
O homem seria metafisicamente grande
se a criança fosse seu mestre.
Sören Kierkegaard
Hillman afirma:
A terapia é um modo de revivificar a imaginação e exercitá-la. O
negócio terapêutico, como um todo, é esse tipo de exercício
imaginativo. Ele retoma a tradição oral de contar histórias [...].
Naturalmente, temos de voltar à infância para fazer isso, pois é lá
que nossa sociedade, e cada um de nós, colocamos a imaginação. A
terapia tem de estar, assim, interessada na parte infantil em nós
para recriar e exercitar a imaginação.
(HILLMAN, 2010, p. 76)
Há livros que até podem ser lidos por crianças, mas pela densidade
e sensibilidade, atingem todas as idades. Este tipo de livro é de uso
frequente no consultório, pela síntese, pela força das imagens, pelo lúdico
que toca no ponto adoecido de forma certeira e com humor. O que mais
posso querer? Conhecê-los!
Com este objetivo, iniciamos encontros semanais para pessoas
interessadas no compartilhamento de acervo. O passe para participação
seria apresentar ao menos um livro com a característica de ser adequado a
qualquer idade. No período de 05 de fevereiro de 2013 (data de nosso
primeiro encontro) a novembro do mesmo ano, foram realizados 32
encontros, com 138 livros abordados. O grupo é eclético, composto por
bibliotecários, educadores, psicólogos, escritores etc. A partir dos
encontros, fomos tecendo desdobramentos: a criação de um blog para
partilhar os livros apresentados com comentários dos participantes;
entrevistas com escritores e ilustradores; projeto Ler Conviver de leitura de
livros infantojuvenis para idosos numa casa de convívio; compartilhamento
de acervo em apresentações em bibliotecas públicas; disponibilização de
textos inéditos para despertar interesse de editoras numa “Estufa criativa”. O
blog, criado em 02 de maio de 2013, registrou, em dezembro do mesmo ano,
mais de 2.500 acessos.
Durante a Flipoços, Feira Literária de Poços de Caldas, em 2013,
num dos garimpos em estandes de editoras, uma atenciosa vendedora me
descortinou uma possibilidade que eu não imaginava: de fazer parcerias com
editoras, pois, em decorrência da biblioterapia, atuo como forte
disseminadora de livros. Só trabalho com livros que amo e acabo
divulgando-os de forma apaixonada, como um processo de polinização. É
muito comum clientes de atendimentos clínicos, participantes dos círculos ou
palestras que realizo, idosos nas rodas de leitura, anotarem os nomes das
obras para adquiri-las. Isto vale tanto para quem gosta de ler quanto para
quem não aprecia. É o “arrebatamento do encontro”, expressão de Rubem
Alves. O que faço, em essência, é encontrar um livro ou autor que dialoga
com a pessoa. Creio que este seja o maior incentivo à leitura: encontrar
alguém com quem se possa conversar. A partir desta ideia, comecei a
recolher catálogos e estudar resenhas que potencialmente apresentassem
livros com conteúdo biblioterapêutico. Em 2013, em companhia de Neide
Graça e Mercedes Fernandes, companheiras neste projeto, participamos da
FNLIJ (Feira Nacional do Livro Infantojuvenil) e iniciamos o diálogo com
representantes das editoras. Foram feitas parcerias com: Biruta, Brinque- -
Book, FTD, Gaivota, Moderna, Paulinas e Salamandra, que doaram livros
identificados por nós e, em troca, divulgamos os exemplares através de
ações variadas:
A flor do lado de lá, de Roger Mello (1999): “É humano chorar pelo que
não se tem, desejar a beleza distante. Só que, às vezes, há tanta beleza
pertinho e a gente não vê”. Toda a densidade e humor de Roger Mello nos
faz reconhecer no personagem as emoções e ciladas de se desejar o que está
inalcançável e a não reconhecer o que está disponível. Livro sem texto que
nos faz calar ao receber uma grande lição ao final. Através do lúdico, a ficha
cai como uma flecha na consciência. Adoraria poder registrar a cara de
perplexidade dos pacientes após conhecer esta história. Foi também o livro
predileto de uma jovem hospitalizada, que uma semana após faleceu de
câncer. Uma pessoa de sua família relatou ter sido um dos últimos momentos
lúdicos de sua vida;
Nós, texto e ilustrações de Eva Furnari (2003): Quem não tem um nó? Na
garganta, no estômago, na família, na vida? Nós temos muitos nós! A
protagonista do livro foge, pois não consegue mais esconder os nós que vão
se formando em seu corpo. Na sua viagem, acaba descobrindo que não é a
única e, acolhida, expressa sua dor. Descobre assim um caminho para
compreender e desfazer nós. Um livro cheio de humor, leveza e sabedoria;
Longe como meu querer, conto “As janelas sobre o mundo”, texto e
ilustrações de Marina Colasanti (2002): o rei mandou construir um castelo
com 365 janelas para que cada dia pudesse descortinar um novo cenário.
Num determinado dia, apaixona-se por uma donzela na paisagem, mas
ansioso com todas as outras ainda a abrir, não se permite parar. As demais
imagens já não o extasiam, e, após um ano, retorna à janela da donzela, na
esperança de revê-la, mas o tempo a levou. Uma história que pode ser usada
para abordar o desapego como antídoto para a ansiedade de tudo querer e
nada ter;
Vovó tem Alzha... o quê?, texto de Veronique Van den Abeele, ilustrações
de Claude K. Dubois (2007): retratos do olhar de uma criança que, diante
da doença da querida avó, passa da condição de ser cuidada a cuidadora.
Tocante história de retribuição de afeto;
Em 2012:
13 de setembro: “Sê plural como o universo” – Um diálogo
imaginário entre Fernando Pessoa e seus heterônimos: Alberto Caeiro,
Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Apresentado na Cinédia, Rio de Janeiro.
Escrevo. E pronto.
Escrevo porque preciso
preciso porque estou tonto.
Ninguém tem nada com isso.
Escrevo porque amanhece.
E as estrelas lá no céu
Lembram letras no papel,
Quando o poema me anoitece.
A aranha tece teias.
O peixe beija e morde o que vê.
Eu escrevo apenas.
Tem que ter por quê?
Paulo Leminski (2013, p. 218)
Em 2013:
17 de janeiro: “O poder transformador da arte” – Um contato com
nossa loucura, utilizando trechos literários como um fio de Ariadne para a
travessia dos múltiplos universos interiores, mediados pela expressão da
arte.
em mim
eu vejo o outro
e outro
e outro
enfim dezenas
trens passando
vagões cheios de gente
centenas
o outro que há em mim
é você
você
e você
assim como
eu estou em você
eu estou nele
em nós
e só quando
estamos em nós
estamos em paz
mesmo que estejamos a sós
Paulo Leminski (2013, p. 32)
É preciso ajudar.
Porém primeiro,
para poder fazer o necessário,
é preciso ajudar-me, agora mesmo,
a ser capaz de amor, de ser um homem.
Eu que também me sei ferido e só,
mas aconchego este animal sonoro
que reina poderoso em meu peito.
Thiago de Mello (2006, p. 151-152)
A palavra ancora
Gosto muito de ser intruso assim. Junto a cada um. Com suas
razões próprias. Uma oportunidade de tentar entender melhor a
natureza humana.
Ana Maria Machado, em Infâmia. (2011, p. 28)
lamento muito que o meu pai não esteja a viver a terceira idade,
por isso decidi inventar uma terceira idade para nós, malucos os
dois.
valter hugo mãe, em A máquina de fazer espanhóis. (2011, p. 253)
Curioso que este trecho tanto parece dar um sentido para o fluxo da
narrativa, como para a valorização do esquecimento que o autor cita em
trechos diversos:
Foi lido numa porta de hospício: “Nem todo mundo que é, está. Nem todo
mundo que está, é.” Relativizar loucura e sanidade é outra grande
discussão. Há que se citar O Alienista, do mestre Machado de Assis (1998).
Ser autêntico é uma ameaça, uma transgressão.
Cristiana: A Literatura como uma ampla estrada que se abre diante dos
nossos olhos para nos levar pelos caminhos do desconhecido e o
vivenciarmos.
Cristiana: Você considera que exista uma grande Literatura que nos convoca
a criar a nós mesmos?
Dília: A nós mesmos, sem dúvida. Segundo o crítico literário Harold Bloom,
a grande Literatura é sempre reescrever ou revisar e baseia-se numa leitura
que abre espaço para o ver, ou que atua de tal modo que reabre as velhas
obras a nossos novos sofrimentos. Os originais não são originais, o inventor
sabe como tomar emprestado.
Nietzsche também defendeu a ideia de que toda a conquista, todo o passo
adiante na senda do conhecimento é fruto de um ato de valor, de dureza
contra si mesmo, da própria depuração. Acredito que é preciso chegar a si
próprio, à sua própria voz, não como uma performance ou um ato decorativo,
mas como um desbravamento essencial.
Ler grandes livros e escutar as vozes desses autores não nos vai tornar
melhores cidadãos. A arte é inteiramente inútil nesse sentido, como lembrou
Oscar Wilde. Mas se não o fizer, pode, contudo, tornar-nos mais
conhecedores de nós mesmos.
Dília: Quando nos deixamos tocar pelo poder de um texto literário, logo nos
perguntamos o que ele representa para nós. Que implicação provoca. Como
nos sentimos perante o que nos afetou de uma determinada maneira. Como
fomos transformados pela força desse contato. Há certamente personagens,
pensamentos, ações, reflexões, que têm um efeito modificador em nós
mesmos, na nossa condição de ser. Metamorfoses múltiplas ocorrem em nós
após sermos provocados pelo inesgotável e, por vezes, assustador, poder da
palavra escrita.
Dília: Não temos como escapar ao fato de que nossas leituras nos convocam
para novos modos de pensarmos. Assim como não podemos deixar de nos
interrogar como alguns escritores vêm ao nosso encontro de um modo tão
avassalador e outros não.170
Dília: É isso que eu penso. Nós, enquanto leitores, temos esse mistério, esse
segredo: somos enfeitiçados e, ao mesmo tempo, feiticeiros.
Jacques sempre tinha devorado todos os livros que lhe caíam nas
mãos e engolia-os com a mesma avidez com que vivia, brincava ou
sonhava.
[...] satisfazia neles duas sedes essenciais, a sede de alegria e a
sede de coragem.
[...] importava era aquilo que sentiam primeiro ao entrar na
biblioteca, onde não viam as paredes de livros pretos, mas um
espaço e horizontes múltiplos que, assim que transpunham a porta,
os tiravam da vida restrita do bairro.
Albert Camus (2005, p. 209/212-213)
Cris,
Apreciei sobremaneira sua entrevista.
Fiquei particularmente encantado com o brilho nos seus olhos
quando cita como grandes autores permanecem contemporâneos no seu trato
de importantes dramas humanos. A mestria com que você se apropria desse
substrato e os põe numa orientação psicoterápica chama a atenção. Sinto arte
no seu trabalho!
Esses instantes em que me reservo para captar e refratar a luz
emanada das suas mensagens têm se constituído num exercício espiritual
intenso e extremamente edificante. Cada palavra que você me dedica
alimenta minha alma de nutrientes raros que a têm fortalecido. Suas
referências bibliográficas estão sendo absorvidas com intensa avidez.
Saúdo minha descoberta! Sua energia me faz muitíssimo bem e
atenua a dor crônica de uma solidão intelectual que me acompanha. O mundo
precisa da sua voz, dos seus encantos, do cumprimento da sua missão – é
cármico, minha cara.
A verossimilhança detectada por você entre o pensamento de
Bachelard e sua leitura de um fragmento importante do meu momento revela
uma pertinência resplandecente. Não desconfiava que eu pudesse ser tão
previsível – isso me assusta! Sob sua lupa, a acuidade do seu olhar é
revelador e desconcertante. Ao lê-la me veio à memória um antigo fragmento
da fé Bahá-í, que acredita que ‘o ápice do recolhimento é a expansão.’ Puxa,
não tenho a menor ideia dos próximos passos ou do cheiro que o vento me
reserva depois da próxima esquina. A única certeza é que trago em mim um
entusiasmo renovado pela possibilidade de novas experiências e saberes que
o novo me reserva. Não tinha a menor noção da riqueza da Biblioterapia –
tão somente o conhecimento que soldados americanos, no pós-guerra, foram
submetidos a seus conceitos e práticas como método de terapia de
reabilitação pelos traumas das batalhas.
Gostaria que soubesse que estou aprendendo muito através dos seus
vídeos e encantando-me cada vez mais. Suas letras me fizeram companhia.
Anoiteceram minhas certezas para descortinar, nesta manhã, um lindo sol de
perspectivas reluzentes...
Confesso que você me desconcerta. De repente começo a me
enxergar por uma janela que já não é mais aquela visitada pelos meus
observadores.
Peço licença a Maiakóvski para lhe dizer que você poliu minh’alma
com a lixa do verso. Eu que sempre me norteei por um senso de utilidade,
percebo que meu cavalo tem demonstrado, há muito tempo, sinais de uma
agonia insana. Eis que aí vem você, uma criatura encantada que até agora me
pergunto com que magia vasculha os porões de minhas certezas (olha, quanta
poeira que só agora percebo) para avocar o poeta que adormecia na caverna
da estupidez do jóquei de quem jamais suspeitei da sua competência.
Que experiência maravilhosa essa de me expressar e ter a certeza de
que do outro lado existe uma inteligência ressonante cujas devoluções se
mostram trajadas de tanto carinho e sensibilidade, embora não deixando de
estarem eivadas de uma maturidade cortante. Pois lhe retribuo com o mais
doce e merecido néctar, afinal, suas intervenções restabelecem uma íntima
alegria. Se para Camus ‘só vivemos verdadeiramente algumas horas de
nossa vida’, unge-me a verdadeira vida nesses momentos em que me banho
nas águas límpidas de seu pensamento. Por mais que às vezes conjecture
sobre o que representa para você esta experiência – e estou certo que muitos
feedbacks positivos fazem parte de seu relicário – fico pensando no estímulo
que a leva a tentar entender e apreender o que pode existir por detrás das
letras de um espírito distante. Mas num instante seguinte visita-me a intuição
de que esse exercício refina e calibra a arte que já a torna tão hábil.
Perdoe-me a euforia de espírito, mas é que estou muito contente e
você é vetor deste estado de ser.
Obrigado por você fazer já diferença no meu enredo. No meu script
sua fala assume destaque, brilho, e tem melhorado minha ‘atuação’.
Algumas pessoas têm me perguntado se aconteceu alguma coisa
diferente comigo ultimamente. Perceberam mudanças de que não me dei
conta. Os mais próximos perceberam certa dose de ousadia nas minhas
atitudes e falas. Isso tem retroalimentado meu comportamento.
Mas o fato é que a atmosfera de Paraty e, especialmente nossos
contatos, fizeram-me sentir mais integrado a um universo em que percebo
não estar tão só quanto imaginava. Precisava experimentar uma dose de
semelhança de pontos de vista ou percepções que pudessem se assemelhar às
minhas. O prazer pela leitura, o gesto de se encantar diante de uma folha
beijada pelo vento, de uma aparição apoteótica do sol no horizonte como se
fosse espetáculo de estreia. Dizem que os opostos se atraem, mas
necessitamos dos semelhantes para sermos felizes. Seus pensamentos me
iluminam e as cenas daquele barco são inesquecíveis.
Gostaria muito de ter participado do evento sobre Bachelard. Tenho
certeza de que você guarda marcas interessantes desse encontro. Por falar
em marcas, um dia gostaria de lhe falar sobre o personagem Arlequim da
obra do filósofo francês Michael Sèrres. Acho que somos dois,
multifacetados pelas marcas que acumulamos ao longo das experiências
vividas. A cada aprendizado, Arlequim recebia na sua pele uma marca
colorida que o tornava diferente na medida em que evoluía. O curioso é que
as pessoas percebiam as mudanças.
Você me imprimiu adoráveis marcas, que ostento com orgulho.
Portanto, considero-me, de certo modo, arte viva pela sua intervenção.”
Marco Antônio Bregonci (14/10/13)
Tem gente que vai te amar pelo que você é. Tem gente que vai te
odiar pelo mesmo motivo.
COUTO, Mia. A confissão da leoa. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
______. Cada homem é uma raça. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
______. E se Obama fosse africano? São Paulo: Companhia das Letras,
2011.
______. Estórias abensonhadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
______. O beijo da palavrinha. Ilustrações de Malangatana. Rio de Janeiro:
Língua Geral, 2006.
______. O fio das missangas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
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