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TEMAS LIVRES FREE THEMES


Problemas éticos vivenciados por dentistas:
dialogando com a bioética para ampliar o olhar
sobre o cotidiano da prática profissional

Ethical problems experienced by dentists: dealing with bioethics


to wide the view on the daily professional practice

Adriana Gomes Amorim 1


Elizabethe Cristina Fagundes de Souza 2

Abstract Bioethics strives for humanization in Resumo A bioética busca a humanização dos ser-
health services along with promoting the rights viços de saúde e a promoção dos direitos dos usuá-
of patients. In view of the lack of dental research rios. Na odontologia, são poucos os estudos que
dealing with this topic, the present study was tratam dessa temática, o que justificou a realiza-
undertaken to identify, from the viewpoint of den- ção da pesquisa que apresentamos neste artigo. O
tal surgeons, ethical problems experienced in den- objetivo do estudo foi identificar, a partir da visão
tal practice. It is a descriptive exploratory inves- dos cirurgiões-dentistas, os problemas éticos vi-
tigation within a qualitative approach. Empiri- venciados na prática odontológica. Trata-se de
cal material was collected through semi-struc- uma investigação qualitativa de caráter explora-
tured interviews performed with 15 dental sur- tório descritivo. O material empírico foi coletado
geons in the state of Rio Grande do Norte, Brazil. através de entrevistas semiestruturadas, realiza-
The results indicate that many of the ethical prob- das com quinze cirurgiões-dentistas que atuam no
lems coincide with infringements of the norms estado do Rio Grande do Norte. Os resultados apon-
and rules of the Dental Code of Ethics, confirm- tam que muitos dos problemas éticos coincidem
ing a dental ethic acquired during professional com infrações ao Código de Ética Odontológica,
formation and therefore, inadequate for solving confirmando uma noção de ética deontológica ad-
the problems that emerge in professional prac- quirida na formação profissional e, portanto, in-
tice. We concluded that the ethical problems iden- suficiente para solucionar os problemas que emer-
tified in professional practice need to be under- gem na prática profissional. Concluímos que os
stood beyond the dental dimension, towards a problemas éticos identificados na prática profissi-
human approach. It is therefore necessary to in- onal precisam ser compreendidos para além da di-
corporate health care management technologies mensão deontológica em direção aos aspectos da
1
into health practices which imply recognizing the produção do trabalho. Torna-se preciso, então, in-
Curso de Odontologia,
Universidade do Estado do different dimensions that surround individuals corporar nas práticas de saúde, incluindo as de
Rio Grande do Norte. Rua and their health needs. saúde bucal, as tecnologias da gestão do cuidado, o
André Sales 667,
Key words Bioethics, Dentistry, Professional que implica o reconhecimento de diferentes di-
Paulo VI. 59300-000 Caicó
RN. Adrianagamorim1@ practice, Professional formation mensões que produzem os sujeitos e suas necessi-
hotmail.com. dades de saúde.
2
Programa de Pós-
Graduação em Odontologia,
Palavras-chave Bioética, Odontologia prática
Universidade Federal do Rio profissional, Formação odontológica
Grande do Norte.
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Amorim AG, Souza ECF

Introdução Os problemas éticos enfrentados pelos cirur-


giões-dentistas são produzidos nas circunstân-
Problemas éticos na prática odontológica ocorrem cias discutidas acima, mas certamente envolvem
rotineiramente e podem envolver aspectos referen- outras situações. Neste artigo, trazemos algumas
tes ao paciente, à organização dos serviços de saú- reflexões, à luz da bioética, a partir de estudo que
de, ao relacionamento com os colegas e com a so- realizamos com o objetivo de identificar e anali-
ciedade como um todo. No entanto, os profissio- sar os problemas éticos vivenciados pelos odon-
nais nem sempre estão preparados para lidar com tólogos na prática profissional. Esperamos, desta
as questões de caráter ético, o que pode levá-los a forma, contribuir para a divulgação e inclusão do
vivenciar conflitos éticos no exercício profissional. tema da ética na odontologia, ampliando concep-
Para os dentistas, em especial, as dificuldades na ções restritas à dimensão deontológica para as-
resolução de tais conflitos são reforçadas pela ex- pectos da produção de trabalho em saúde bucal e
cessiva tecnificação do trabalho odontológico. dialogando com outras áreas do conhecimento.
Esse tecnicismo é mantido principalmente pelo
ensino odontológico que desconsidera, na mai-
oria das vezes, a produção histórica de saberes e Metodologia
práticas de saúde, ou seja, as dimensões ético-
política, social e cultural que estão implicadas nas Trata-se de uma pesquisa de caráter explorató-
questões da saúde como um todo e, em particu- rio descritivo, dentro de uma abordagem quali-
lar, na prática odontológica1. tativa. Os sujeitos da pesquisa foram dentistas
O conhecimento odontológico fragmentado que atuam no Estado do Rio Grande do Norte,
em disciplinas – as especialidades técnicas, em sua escolhidos intencionalmente e por adesão: pro-
maioria – dificulta a percepção da integralidade do fissionais que trabalham em consultórios parti-
ser humano, que sempre será a um só tempo bio- culares, em posto de saúde e como empregados
lógico, psicológico, cultural e social. Consequente- em clínicas populares ou naquelas mantidas por
mente, predomina um modelo dentista-centrado, planos odontológicos, tanto na capital quanto
ou seja, uma clínica baseada na técnica cirúrgica e no interior do estado. Visamos, dessa forma,
em procedimentos reparadores do dente2. identificar os problemas éticos em todas as di-
Outra característica da odontologia é a ênfa- mensões do trabalho odontológico. Consideran-
se dada ao seu caráter privado. Regida pelas leis do que os problemas éticos podem surgir logo
do mercado capitalista, a prática odontológica no início do exercício profissional, escolhemos
tem concentrado a oferta de serviços junto a gru- desde recém-formados até profissionais com trin-
pos de média e alta renda, tendo como um dos ta anos de experiência. A origem institucional de
seus efeitos mais notórios a limitação do alcance formação desses profissionais não foi conside-
social dos avanços tecnológicos3. Além disto, a rada. O número de participantes foi definido no
alocação e distribuição de recursos em saúde bucal decorrer da realização da pesquisa, levando-se
no setor público têm se dado, ao longo dos anos, em conta o alcance dos objetivos propostos pela
de forma insuficiente e ineficiente, restando para saturação do conteúdo das entrevistas. O total
a grande maioria da população assistência odon- de entrevistados foi de quinze dentistas.
tológica inadequada, com enfoque predominan- Como critério de exclusão, estabelecemos não
temente cirúrgico-mutilador. incluir os profissionais que estivessem sem exer-
A dicotomia entre prática técnica e prática so- cer atividade clínica, no último ano, como os de-
cial é reforçada pela atual situação do mercado sempregados ou os que atuam em atividades,
odontológico no Brasil, onde a cada ano são for- exclusivamente, administrativas ou de ensino.
mados 11 mil profissionais num contingente de Após explicar o propósito e a importância do
cerca de 155 mil cirurgiões-dentistas4. Diante des- estudo, os encontros foram marcados com cada
ses dados, Vasconcellos5 identifica uma crise de entrevistado de acordo com a disponibilidade e
realização de oferta de serviços odontológicos em local de sua preferência, assegurando-lhes a con-
que, gradativamente, dá-se a substituição do tra- fidencialidade na coleta das informações e o ano-
balho autônomo pelo assalariado de forma dire- nimato na apresentação dos resultados. Seus
ta (contratação) e indireta (credenciamento). O nomes foram substituídos por nomes de flores.
excesso de profissionais concentrados nas gran- Utilizamos um roteiro de entrevista semies-
des cidades também leva a uma concorrência de- truturado. Este roteiro foi flexível, ou seja, per-
senfreada e, na briga por pacientes, a dimensão mitiu acomodar qualquer aspecto novo que pu-
ética da prática profissional é desconsiderada. desse emergir ou ser trazido pelo entrevistado6.
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As entrevistas foram gravadas e, posterior- Problemas éticos
mente, transcritas na íntegra. As informações tro- identificados nas práticas dos colegas
cadas ao final dos encontros e as impressões ini-
ciais da pesquisadora também foram anotadas, Evidenciamos que os conflitos éticos referidos pe-
logo após o término de cada entrevista6. Apenas los dentistas entrevistados são, em sua maioria,
uma das entrevistas deixou de ser gravada, por situações nas quais há divergência de pensamentos
solicitação da pessoa entrevistada; as informa- e atitudes em relação aos colegas de profissão.
ções foram anotadas, buscando-se reproduzir o Após a análise dos relatos, identificamos de
relato, da forma mais fiel possível. imediato que as situações descritas coincidem
Nesta investigação, garantimos também o es- com o desrespeito às normas contidas no Códi-
clarecimento, a livre participação e o direito do go de Ética Odontológica, caracterizando o pre-
entrevistado retirar-se da pesquisa em qualquer domínio da noção de ética vinculada a uma con-
momento, conforme o termo de consentimento cepção deontológica.
livre e esclarecido elaborado segundo a Resolução A título de ilustração, selecionamos alguns
n o 196/96 do Conselho Nacional de Saúde7 e apro- trechos dos relatos e os associamos a trechos do
vado pelo comitê de ética em pesquisa da UFRN. Código de Ética Odontológica, apresentados no
Na análise do conteúdo das entrevistas e das Quadro 4.
anotações, procuramos identificar sentidos e com-
preendê-los, pois o que é realmente falado consti-
tui os dados, mas a análise do material, como nos
lembra Bauer e Gaskell6, deve ir além da aceitação Quadro 1. Problemas éticos identificados na
deste valor aparente. Para esses autores, a entre- prática dos colegas.
vista semiestruturada é em si mesma uma tenta-
tiva de colocar em termos concretos a idéia de . Aliciamento de pacientes.
triangulação interna ao método, através da com- . Capacitação técnica-científica inadequada ao
binação de diferentes enfoques (do tipo narrativo exercício da atividade.
. Realização de tratamentos desnecessários.
e argumentativo) com respeito ao tema em estu-
. Comentários desfavoráveis sobre o trabalho
do, a fim de aumentar a qualidade dos dados, das
realizado por outros colegas.
interpretações e dos resultados. No entanto, con- . Negligência no cuidado com o paciente.
sideramos importante buscar a triangulação da . Omissão de informações técnicas necessárias à
análise dos dados extraídos do conteúdo das en- decisão.
trevistas, das anotações da pesquisadora e do re- . Falta de visão integral do usuário.
ferencial teórico estudado; este, a partir da utiliza-
ção de diferentes perspectivas da bioética e do con-
texto de trabalho em saúde bucal8.
Quadro 2. Problemas éticos identificados nas
relações com os usuários.
Resultados e discussão
. Desacordo com as escolhas de tratamento dos
usuários.
A partir da leitura sistemática do conteúdo das . Identificar e manter-se em silêncio diante de
entrevistas, buscamos identificar os problemas iatrogenias realizadas pelos colegas.
éticos contidos nos relatos dos cirurgiões-den-
tistas. Os problemas identificados no material
examinado foram agrupados segundo três di-
mensões de situações vivenciadas na prática odon- Quadro 3. Problemas éticos identificados nas
tológica: problemas éticos identificados na práti- relações de trabalho e com os serviços de saúde.
ca dos colegas (Quadro 1); problemas éticos iden-
tificados nas relações com os usuários (Quadro
. Submissão a condições inadequadas de trabalho.
. Não poder encaminhar o usuário a serviço de
2); problemas éticos identificados nas relações referência especializado.
de trabalho e nos serviços de saúde (Quadro 3). . Número elevado de pacientes associado ao
A despeito da categorização realizada, os proble- tempo reduzido de atendimento.
mas éticos entre si não são indissociáveis uns dos . Desvalorização das ações preventivas e
outros e, no decorrer do texto, também se entre- educativas.
laçam e se superpõem. . Concorrência profissional pelo mercado de
trabalho.
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Amorim AG, Souza ECF

Quadro 4. Comparação entre o Código de Ética Odontológico e alguns problemas éticos relatados pelos
dentistas entrevistados.

Conteúdo do código de ética Relatos de alguns entrevistados


Capítulo III, art. 5, inciso III: Constituem deveres Quando eu cheguei lá vi que tinha um kit de
fundamentais dos profissionais manter resina foto completo. Aí, eu disse: que legal! Você
atualizados os conhecimentos profissionais, tem resina fotopolimerizável. Aí, ele: “não minha
técnico-científicos e culturais, necessários ao filha, isso não é resina, não. É material para
pleno desempenho do exercício profissional. obturar canal”. Ele nem sabia que aquilo era
resina! (Gardênia)
Capítulo V, seção I, art. 7, inciso III: Constitui Já vi profissional dizer: “se a pessoa vem para mim
infração ética exagerar em diagnóstico, com o primeiro molar e no segundo molar a
prognóstico ou terapêutica. restauração é profunda, eu digo logo para fazer o
canal. Vamos fazer os dois por que mais cedo ou
mais tarde vai precisar”. (Lírio)
Capítulo V, seção II, art. 9, inciso I: Constitui O profissional quer roubar o paciente do outro. A
infração ética desviar paciente de colega. filosofia predominante é: “melhor perder o amigo
do que o paciente”. (Tulipa)

A noção deontológica predominante nas fa- des, levando à formação de especialistas que não
las dos entrevistados justifica-se na medida em conseguem mais lidar com as totalidades ou com
que o ensino da ética nos cursos da área de saúde realidades complexas. Formam-se profissionais
e, particularmente, na odontologia, é pautado na que dominam diversos tipos de tecnologias, mas
transmissão de regras estabelecidas como direi- tornam-se cada vez mais incapazes de lidar com
tos e deveres reunidos em códigos de ética pro- a subjetividade e a diversidade moral, social e
fissional9. No entanto, a perspectiva de tais re- cultural das pessoas11.
gras e valores deontológicos é limitada diante dos A formação odontológica é, em parte, res-
problemas e/ou dilemas éticos vivenciados no co- ponsável pela manutenção de uma prática cen-
tidiano pelos profissionais. trada na assistência individual, realizada com
A consequência da formação alicerçada em exclusividade por um sujeito individual, o cirur-
normas deontológicas, e de caráter comporta- gião-dentista, no restrito ambiente clínico. Esta
mental, é a carência no que diz respeito a uma concepção tem forte influência no desenvolvi-
fundamentação crítica e reflexiva. O saber pro- mento da ciência e da tecnologia odontológica12.
fissional é dirigido a uma objetividade tecnicista As técnicas e tecnologias odontológicas são
e com ênfase no aparato tecnológico, que em os saberes e as práticas que tomaram como seu
grande medida desconsidera as subjetividades objeto os dentes e, eventualmente, a boca13, pro-
dos termos intervenientes sobre seus cuidados9. movendo o desenvolvimento de materiais e pro-
Nesse sentido, Morin 10 nos inspira a afirmar cedimentos cirúrgico-restauradores a partir de
que o conceito de ética no cotidiano do ensino um saber organizado no interior das disciplinas
odontológico precisa também ser ampliado de odontológicas: cirurgia, dentística, periodontia,
uma ética profissional, codificada em obrigações endodontia, ortodontia, materiais dentários. Se-
e direitos, para uma ética do gênero humano, gundo Botazzo14, “os dentes vincam de tal modo
visando a aprender um saber-ser e não somente o espaço de um saber, e a tal ponto, que continu-
um saber-fazer. Para o autor, alcançar esta ética am como referentes até mesmo quando estão
implica que a educação assuma a concepção com- ausentes por completo do seu cenário de emer-
plexa do humano, comportando a tríade indiví- gência”, aqui se referindo à prótese.
duo/sociedade/espécie10. O termo tecnologia não engloba apenas o
Contudo, a formação tradicional em saúde, conjunto de máquinas, equipamentos e instru-
baseada na organização disciplinar e nas especi- mentos odontológicos. Há outras formas de tec-
alidades, conduz ao estudo fragmentado dos nologia representadas pelo saber científico (e sua
problemas de saúde das pessoas e das socieda- aplicação/utilização pelos profissionais), pela
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organização da prestação dos serviços e pelas aos usuários. Sem essa visão, partimos para um
form as de aproxim ação com os u su ários. discurso ético-filosófico na sala de aula, total-
Merhy15discute o trabalho em saúde e as tecno- mente vazio, e desvinculado da realidade social.
logias utilizadas classificando-as em duras (fer- A formação ética do profissional de saúde
ramentas e equipamentos), leve-duras (saberes deve ser iniciada no ciclo básico da formação de
estruturados) e leves (saberes adquiridos no pro- nível superior, enfatizando a análise dos proble-
cesso de trabalho “em ato”). mas e casos práticos que poderão acontecer na
A tecnologia “leve”, entendida como o proces- realidade concreta da vida profissional de futu-
so de relações entre o trabalhador de saúde e o ros dentistas19.
usuário3,15 de expressar-se na gestão do cuidado, Nesta perspectiva, torna-se importante que
traz consigo a proposta de humanização do pro- essas discussões não fiquem restritas ao âmbito
cesso de desenvolver ações e serviços de saúde. A acadêmico. Os profissionais devem ser continua-
humanização, vista como prática inerente ao tra- mente preparados para a superação de suas limi-
balho em saúde, implica a responsabilização dos tações e para aperfeiçoamento e atualização técni-
serviços e dos trabalhadores da saúde, em cons- cos, a partir da educação permanente, pois o com-
truir, com os usuários, a resposta possível às suas promisso ético dos profissionais pode ser desen-
dores, angústias, problemas e aflições16. volvido em qualquer etapa da vida humana20.
O mercado, por outro lado, tem influencia- Consideramos, pois, que formar profissio-
do a ênfase em programas que incorporam tec- nais éticos e cidadãos responsáveis por suas ações
nologias “duras”, ou seja, em modelos de práti- é um grande desafio para o ensino; isto é, dotar
cas estruturadas a partir de aparato tecnológico profissionais de visão crítica da realidade e com
de densidade e custo elevados, e de difícil acesso competência para agir de forma responsável, au-
para o usuário. Este modelo requer profissio- tônoma e, fundamentalmente, comprometidos
nais cada vez mais especializados e pouco quali- com os usuários, a comunidade e seu trabalho.
ficados para perceber e atuar em dimensões mais
amplas do processo saúde-doença3, ou seja, com
baixa capacidade técnica para desenvolver tecno- Problemas éticos
logias leves e leves-duras. identificados nas relações com os usuários
O cuidado com o ser humano é negligencia-
do ao invés de ser o centro das ações. A escola, A ética médica foi desenvolvida a partir dos tra-
além de educar para a inteligência e a razão, de- balhos de Hipócrates. A atitude do médico pe-
veria também educar para a cidadania e a emo- rante o paciente, desde então, baseava-se no
ção. Da mesma forma que o aluno precisa ser modelo da beneficência e cabia unicamente ao
preparado para realizar as técnicas, também deve médico a decisão, tanto diagnóstica quanto tera-
ser preparado para lidar com pessoas, levando pêutica, ao passo que a obrigação do doente era
em consideração sentimentos, o ser completo de acatar passivamente as decisões e prescrições21.
um indivíduo9. A beneficência é o princípio por meio do qual o
As discussões interdisciplinares promovidas profissional deve ter em mente que todo ato ou
pela bioética podem servir como base de mudan- ação deve, obrigatoriamente, trazer benefícios ao
ça no processo de ensino-aprendizagem da ética paciente22.
nos cursos de ciências de saúde. O seu enfoque A partir da definição dos direitos humanos e
deve contemplar principalmente os princípios da do desenvolvimento da democracia e da cidada-
autonomia dos diversos atores sociais, a plurali- nia, iniciam-se os debates a respeito da necessi-
dade sociocultural das pessoas, a definição dos dade de se destacar a posição do paciente e de se
conteúdos tendo como referência a responsabili- valorizar ainda mais sua responsabilidade com
dade científica e social das áreas de saúde. Aos três o tratamento.
pontos acima referidos, devem ser agregados, ain- O usuário passa a ser visto como um agente
da, os princípios da beneficência, da justiça, da autônomo, ou seja, respeitado no seu direito de
excelência (qualidade) e da virtude17. ter opiniões próprias, fazer escolhas e agir de acor-
Em conformidade com Germano18, o funda- do com seus valores e crenças, lembrando que,
mental é estruturar o ensino de ética a partir da muitas vezes, suas opções podem discordar das
compreensão da realidade social e do exercício indicações técnicas. A posição do usuário não
da crítica sistemática às questões mais gerais da pode ser a de um objeto que recebe um benefício,
saúde e da sociedade que repercutem no dia a dia mas a de um sujeito que discute opiniões sobre
da profissão e na assistência que dispensamos sua saúde, seu tratamento e seu bem-estar. A
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concretização dessa autonomia se daria através Entretanto, o aprendizado acadêmico é dire-


da obtenção do consentimento livre e esclareci- cionado ao domínio do conhecimento técnico atra-
do23. No entanto, sabemos que a autonomia não vés de disciplinas, na maioria, com enfoque den-
se reduz à formalização de um consentimento, tário, dificultando a compreensão do ser huma-
mas implica conquistas de cidadania, isto é, o no como produção biopsicossocial: Eu me encon-
exercício de direitos sociais, políticos e econômi- trei com uma amiga que está fazendo odonto e ela
cos que, em nossa realidade brasileira, a maioria estava super feliz por que tinha feito a primeira
da população ainda tem muito a conquistar. extração. “O máximo, né? Ah, eu extrai e tal”. Mas
O pleno exercício do consentimento somente nem pensava na pessoa que perdeu o dente, né?O
é possível após serem discutidos com o usuário que isso podia causar para a pessoa. Não é culpa
pontos essenciais como o diagnóstico, o plano dela por que ela está ali para aprender a fazer aquilo
de tratamento, as consequências dos procedimen- mesmo, mas acho que falta um pouquinho assim
tos, incluindo possíveis sequelas, caso existam, e [de ética] dos professores de algumas disciplinas, de
os seus custos. A linguagem precisa ser clara e repente na disciplina de cirurgia, né? Ter alguma
acessível dentro dos padrões de compreensão coisa em relação a isso para que a pessoa se ache
intelectual, cultural e psicológica do indivíduo. bacana porque fez a técnica correta, mas se sensibi-
Para informar o usuário, é preciso, antes de tudo, lize também com a pessoa que está ali. ( Lírio)
ser capaz de comunicar-se com ele. A comunica- O modelo de ensino vigente traz as marcas
ção é um dos pilares mais importantes para o do relatório Flexner proposto em 1910. Este do-
alcance do relacionamento efetivo entre o profis- cumento é baseado na aplicação de regras carte-
sional e o usuário e talvez esteja relacionado a sianas como norteadoras da formação médica.
uma das grandes barreiras a serem superadas na O conhecimento fragmentado passa a ser privi-
odontologia. As habilidades técnicas não suple- legiado de acordo com as percepções específicas
mentam a necessidade de se estabelecer uma re- de diferentes áreas do saber médico, desconside-
lação com o usuário que propicie segurança, con- rando-se a inseparabilidade entre as partes e o
fiança e comprometimento9. todo do ser humano. O indivíduo, antes de ser
Um de nossos entrevistados corrobora a im- visto como sujeito de seu processo terapêutico,
portância da informação e da interação com o de ser respeitado em sua dignidade, vontade, li-
usuário: Acho que o essencial é a informação. In- berdade e razão, transforma-se em objeto de es-
formar o paciente o que ele precisa e o que você é tudo, em consumidor de tecnologias25-27.
capaz de fazer por aquilo ali. Que o paciente parti- Encontramo-nos diante, portanto, de um
cipe tanto do seu plano de tratamento quanto da modelo pedagógico obsoleto.Torna-se urgente,
execução, sempre ele decidindo junto com você o então, a adoção de novas propostas pedagógicas
que deve ser feito. (Margarida) para o ensino que melhor atendam as necessida-
No presente estudo, os entrevistados demons- des do ser humano enfermo. As novas estratégi-
traram preocupação em preservar o direito à au- as de ensino a serem incorporadas devem forne-
tonomia dos usuários, desde que as consequênci- cer conhecimentos mais amplos do processo saú-
as das decisões não resultassem em ameaças à de-doença, contemplando enfoque inter e trans-
integridade dos indivíduos. Em tais situações, per- disciplinar.
cebemos que se impõe o princípio da não-malefi- Ainda é pertinente considerar que, não obriga-
cência, pois o tratamento só é aceito ou recusado toriamente, o usuário que concorda com indica-
pelo profissional após serem ponderados os cus- ções do dentista esteja devidamente esclarecido em
tos e benefícios de sua administração. De acordo um processo de consentimento e, ainda que o esti-
com este princípio, o profissional deve, além de vesse, não se pode desprezar os aspectos relativos
beneficiar, não causar danos aos pacientes. ao sistema de saúde e ao acesso aos serviços como
Destacamos ainda que as decisões não envol- potenciais determinantes de restrição da liberdade
vem somente aspectos técnicos, mas também os das pessoas. Na impossibilidade de acesso ao tra-
valores, as metas pessoais e as concepções singu- tamento endodôntico, como acontece principal-
lares de saúde, felicidade e bem-estar dos usuári- mente no sistema público, o usuário consente em
os dos serviços odontológicos5. Nesse sentido, extrair dentes, não por que avaliou todas as alter-
concordamos com Garbin et al.24 ao afirmar que nativas e escolheu aquela que mais se adaptava a
a percepção do usuário como um todo, com per- sua necessidade, mas sim por completa falta de
sonalidade específica, problemas e anseios parti- opção. Da mesma forma, há situações, no setor
culares, é fundamental para a boa comunicação privado, quando o usuário não tem capacidade
e o sucesso do atendimento odontológico. financeira de consumo das ofertas de mercado.
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Outro problema abordado por nossos entre- O usuário, mesmo diante da possibilidade de
vistados diz respeito à omissão dos profissionais recuperação do seu quadro clínico pelo conheci-
frente às iatrogenias cometidas pelos colegas. mento técnico-científico disponível na odonto-
Detectamos receio por parte dos entrevista- logia, é obrigado a extrair dentes. Sabemos que a
dos em informar ao usuário que o tratamento perda dentária ainda é vista com naturalidade
realizado pelo colega não foi executado dentro em nossa prática, pois o paradigma curativo-
das adequadas normas técnicas. Consideram reabilitador encontra-se profundamente enrai-
que, assim, estariam desrespeitando as regras da zado em nossas ações. O olhar profissional é re-
ética deontológica, representadas pelo Código de duzido ao “tratar de dentes”, sendo o indivíduo e
Ética Odontológica, que tem influência impor- seu contexto, na maioria das vezes, esquecido no
tante no exercício da profissão. A má conduta que poderia ser uma ação de cuidado.
profissional é, na maioria das vezes, envolvida Como já discutimos no tópico anterior, essa
por um muro de silêncio, especialmente quando percepção é reforçada pelo modelo cartesiano de
o usuário não está ciente do problema ou, então, ensino-aprendizagem, a partir do qual as doen-
se a falha é percebida pela pessoa, a situação é ças são compreendidas como processos indivi-
contornada por desculpas que justifiquem a ação duais, naturais e biológicos, guardando relações
realizada pelo colega, constituindo-se numa cer- exclusivas com determinados órgãos26.
ta “lealdade” com os demais dentistas. Tais concepções estão, evidentemente, presen-
No entanto, esse respeito ao código de ética tes nas formas de organização da assistência. O
não é absoluto. Diante de iatrogenias sérias que centro da atenção, ao longo da nossa história,
impliquem ameaça à saúde do indivíduo, alguns tem sido a doença em detrimento do doente. Esta
participantes da pesquisa consideram que deve visão norteou a elaboração das políticas públi-
prevalecer uma postura honesta com os usuários cas no Brasil que se centraram num modelo de
dos serviços odontológicos. Nesses casos, julgam assistência hospitalocêntrica, com rápida incor-
que denunciar o colega torna-se justificável, pois poração de procedimentos de alta densidade tec-
estaria em jogo a integridade de um ser humano. nológica e pouco investimento em ações preven-
tivas e de promoção da saúde.
A saúde bucal da população, nesse contexto,
Problemas éticos identificados nas não foi considerada prioritária e, segundo dados
relações de trabalho e nos serviços de saúde do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE), de 1998, até aquele ano, trinta milhões
A universalidade da cobertura, a igualdade de aces- de brasileiros nunca tinham ido ao dentista29. Um
so e a integralidade da assistência são os princípios crescente processo de mercantilização foi produ-
fundamentais do SUS relacionados ao princípio zido e a alta tecnologia odontológica tem sido
da justiça. A partir deles, é possível estabelecer as disponibilizada apenas para aqueles que podem
bases de uma gestão moralmente legítima e social- pagar pelos seus serviços, o que representa a mi-
mente aceitável no contexto de saúde brasileiro28. noria da população. Para a maior parte da po-
Contudo, ao se considerar que o SUS ainda pulação, são oferecidas exodontias, muitas ve-
se encontra em fase de implementação, apesar de zes, como o único recurso terapêutico possível.
definido legalmente desde a constituição de 1988, Nestes últimos anos, algumas iniciativas de
não deve causar estranheza o fato de uma parte expansão da cobertura da assistência odontoló-
dos problemas éticos vividos pelos profissionais gica, no setor público, têm sido observadas - a
de saúde que atuam no serviço público serem inclusão da equipe de Saúde Bucal no Programa
decorrentes de aspectos organizacionais do siste- Saúde da Família desde 2001, logo após a divul-
ma de saúde. gação dos dados da pesquisa do IBGE30, e em
No caso particular da odontologia, muitos 2004, o lançamento do programa Brasil Sorri-
problemas éticos relacionam-se com a questão dente16, política nacional que incorpora propos-
da integralidade no que se refere à hierarquiza- tas de assistência integral com expansão dos ser-
ção dos níveis de assistência como, por exemplo, viços odontológicos desde a atenção básica, pelo
a falta de um serviço de referência especializado, incremento do número de equipes de saúde bu-
principalmente em endodontia. A ampliação do cal da família, até a implantação de serviços es-
acesso ao tratamento endodôntico diminuiria, pecializados nos demais níveis de atenção. Além
sem dúvidas, o montante de exodontias e de ne- do atendimento básico curativo e das ações pre-
cessidades de tratamento reabilitador que a per- ventivas e promocionais, o programa incentiva a
da dentária ocasiona. implantação de centros de especialidades odon-
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tológicas para referência em endodontia, perio- de financiar, com seus próprios recursos, os cui-
dontia e prótese16. dados de que necessita em clínicas estruturadas
Problemas relacionados com as ações dos dentro do modelo liberal clássico (entendimento
gestores do SUS ao nível municipal da assistência direto quanto aos serviços e honorários entre
de saúde também foram relatados pelos entre- profissional e usuário). Em contrapartida, tam-
vistados. bém há dificuldades de acesso aos serviços públi-
A política de descentralização do SUS exige dos cos, estes sendo ainda considerados de qualida-
municípios um bom desempenho de sua capaci- de inferior; e ainda há um número razoável de
dade de gestão para a implantação de serviços e pessoas que nunca fizeram consulta odontológi-
ações de saúde voltadas para a mudança positiva ca, como mostraram os dados da pesquisa do
nos indicadores de saúde da população. Na con- IBGE29 (que 18,7% da população brasileira nun-
dução do processo de atenção à saúde, o gestor ca foi ao dentista). Estes fatos apontam para a
municipal tem papel fundamental e suas decisões, necessidade de se organizar o setor de forma a
por afetarem tanto os indivíduos quanto as cole- prover a assistência odontológica aos milhões de
tividades, são atos de natureza ética, devendo ser pessoas que dela necessitam e, ao mesmo tempo,
guiados pelo princípio da responsabilidade. absorver a abundância de profissionais no mer-
As transformações das ações de saúde, entre- cado de trabalho29.
tanto, não dependem apenas das atitudes do ges- A dificuldade de inserção no mercado de tra-
tor, mas também do envolvimento e do com- balho tem levado os profissionais a buscar a con-
promisso dos profissionais, incluídos aí os den- tratação direta em clínicas odontológicas, onde
tistas. Observamos nos relatos obtidos nesta muitas vezes são oferecidos baixos salários, re-
pesquisa que a preocupação maior dos profissi- cursos técnicos precários e, sobretudo, uma de-
onais direciona-se à estruturação do consultório manda sufocante. Contudo, tais condições tam-
odontológico: Tem que se impor. Não tinha nada bém são encontradas em alguns serviços do se-
quando cheguei lá. E eu disse: “eu não trabalho tor público.
assim, não adianta”. Não chega um incentivo do Os entrevistados nesta pesquisa acreditam que
governo? Use aquele dinheiro para comprar mate- a busca por uma melhor remuneração tem leva-
rial. Então para eu começar a trabalhar, o secretá- do alguns profissionais a realizarem procedimen-
rio de saúde teve de comprar o todo o instrumen- tos para os quais não possuem a devida capacita-
tal. Teve que equipar toda a sala para que real- ção técnico-científica, tendo sido citados os trata-
mente aquilo se parecesse com um consultório odon- mentos endodônticos, protéticos e, principalmen-
tológico. (Gardênia) te, os ortodônticos, por serem aqueles que pro-
Reconhecemos que dispor de condições de porcionam os maiores ganhos ao profissional. A
trabalho adequadas é importante, mas que ou- respeito dos males produzidos, observe o relato a
tras questões dificultam o processo de trabalho, seguir: Eu vi profissional dizendo ao paciente que
como a própria adequação da formação do pro- estava fazendo canal quando não estava fazendo
fissional para atuar no SUS. canal nenhum. Quando ele só abria o dente mal e
A formação dos trabalhadores de saúde bu- colocava um cone solto dentro de um dente, fechava
cal ainda não se orienta pela compreensão crítica e pronto. Estava feito o canal. (Azaléia)
das necessidades sociais de saúde. O modelo for- O que pode estar implícito nestas ações é fal-
mador continua dissociado da realidade de saú- ta de compromisso e de responsabilidade do pro-
de da população brasileira. Quanto ao mercado, fissional com o usuário, resultando em um alto
crescem a competição por postos de trabalho número de iatrogenias, o que vai de encontro ao
odontológico e a disputa de profissionais para princípio da não-maleficência, isto é, a obriga-
assegurarem seu emprego, numa população de ção de não prejudicar e de não impor riscos de
dentistas que cresce cerca de 5,7% ao ano, en- danos, intencionalmente, ao usuário.
quanto o crescimento anual da população é de O fundamento ético que deve nortear as prá-
1,6%26. A concorrência no mercado é também ticas de saúde é a promoção do bem-estar dos
uma realidade para os dentistas e tem implica- indivíduos, o restabelecimento da saúde integral.
ções na dimensão ética da prática profissional. A beneficência, então, é uma exigência para as
Com exceção de um dos entrevistados, todos profissões de saúde, incluindo a odontologia, na
consideraram este fato como fator importante medida em que é um princípio que guia a agir
na geração dos desrespeitos éticos. segundo o melhor interesse do outro.
A despeito do alto número de profissionais, a A efetivação da beneficência se expressa em
maior parte da população tem baixa capacidade compromissos e responsabilidades dos profissio-
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Ciência & Saúde Coletiva, 15(3):869-878, 2010


nais não apenas em nível individual, mas tam- cas e é reforçada, também, por formas fragmen-
bém coletivo. A promoção de saúde e bem-estar tadas de conhecimento, com ênfase no tecnicis-
da população deve ser o objetivo, o fundamento e mo, no aprendizado das técnicas cirúrgico-res-
a justificação das profissões de saúde12. tauradoras que tomam como objeto os dentes,
Para sermos capazes de promover o bem- distanciando-se da compreensão mais ampliada
estar, precisamos olhar o usuário de modo inte- do processo saúde-doença. Por outro lado, as
gral. Portanto, a relação sujeito-objeto, hegemô- ações são desenvolvidas na direção de curar a
nica na prática odontológica, precisa ser substi- doença de um indivíduo, negligenciando o cuida-
tuída pela relação sujeito-sujeito. O usuário não do da pessoa doente e a perspectiva de contribuir
deve mais ser visto como uma boca ou como um para que o doente desenvolva maiores níveis de
dente, objeto do desenvolvimento das técnicas autonomia e autocuidado. Falta ao profissional,
cirúrgico-reabilitadoras. Devemos ampliar nos- durante sua formação e nos espaços de trabalho,
sa visão de uma clínica dente-centrada em dire- a reflexão crítica, por exemplo, sobre a prática
ção a uma saúde bucal integral, tanto na forma- odontológica apresentar baixa resolutividade aos
ção quanto no trabalho odontológico. problemas básicos da população, como a cárie e
Encontramo-nos, portanto, diante da neces- a doença periodontal, que ainda persistem em ele-
sidade de mudanças não somente dos antigos vados níveis na população adulta.
paradigmas técnico-científicos, como também Tais limites colocam para a odontologia a ne-
dos compromissos e responsabilidades profissi- cessidade de nova prática que considere a huma-
onais. Será preciso tomar a produção da vida em nização, o cuidado, o exercício da cidadania e a
sua dimensão complexa e relacional, como prin- compreensão de que as condições de vida têm
cípio e desafio do agir ético, para que então pos- papel fundamental na definição do processo saú-
samos reconhecer, compreender e lidar com os de-doença das populações, demandando dos
problemas/dilemas éticos que surgem no cotidi- dentistas novas habilidades para lidar com a re-
ano, em especial, na prática profissional. alidade social, visando alcançar a integralidade
das ações de saúde bucal. Faz-se importante, pois,
incorporar no cotidiano do trabalho, no setor
Considerações finais saúde, processos educativos que permitam a or-
ganização das práticas profissionais a partir das
Os problemas éticos apontados referem-se, prin- necessidades de saúde da população. A educação
cipalmente, ao desrespeito às normas e regras do deverá ser enfatizada como instrumento forma-
Código de Ética Odontológica, confirmando a dor de um sujeito socialmente responsável e
primazia do enfoque deontológico no ensino da como elemento fundamental no contexto da aten-
ética durante a formação profissional. No entan- ção à saúde.
to, o conhecimento dos deveres e direitos profis- O modelo hegemônico de prática odontoló-
sionais é insuficiente para solucionar os conflitos gica baseado na clínica dente-centrada deve ser
éticos que emergem no exercício da profissão, pois substituído, então, pelo “cuidado em saúde bu-
oferece uma visão muito restrita dos problemas. cal”31, do qual deriva uma nova prática mais co-
Dessa forma, a formação ética do profissio- nectada com as dimensões da subjetividade hu-
nal não possibilita reflexões críticas de suas práti- mana.

Colaboradores

AG Amorim elaborou a pesquisa e escreveu o


manuscrito e ECF Souza orientou a execução do
trabalho.
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Amorim AG, Souza ECF

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