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SOVIÉTICA
Das Origens até a Dissolução da URSS: uma Síntese
Osvaldo Coggiola
Com um apêndice de Angelo Segrillo
1
Índice
INTRODUÇÃO, 3
ENTRE A AUTOCRACIA ABSOLUTISTA E A REBELIÃO SOCIAL, 4
PANESLAVISM O E POPULISM O, 15
M ODERNIZAÇÃO E LUTA DE CLASSES, 27
M ONOPÓLIOS, CAPITAL FINANCEIRO, IM PERIALISM O, 42
M OVIM ENTO OPERÁRIO E SOCIALISM O, 57
A INTERNACIONAL SOCIALISTA, A TRANSIÇÃO E O PODER, 70
RÚSSIA: DO POPULISM O AO SOCIALISM O M ARXISTA, 84
A DIVISÃO DA SOCIALDEM OCRACIA RUSSA, 96
A EXPANSÃO DA INTERNACIONAL SOCIALISTA, 111
UM A NOVA ERA POLÍTICA M UNDIAL, 121
O DEBATE SOBRE O IM PERIALISM O, 131
A GUERRA RUSSO-JAPONESA, 146
A REVOLUÇÃO DE 1905 E SUAS CONSEQUÊNCIAS, 156
CONTRARREVOLUÇÃO E GUERRA M UNDIAL, 174
A CISÃO INTERNACIONAL DO SOCIALISM O, 192
REVOLUÇÃO NA RÚSSIA, 204
ENTRE SÃO PETERSBURGO E BREST-LITOVSK, 224
DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DO POVO TRABALHADOR E EXPLORADO, 240
GUERRA CIVIL, INTERVENÇÃO EXTERNA E COM UNISM O DE GUERRA, 251
PARTIDO CENTRALIZADO, ECONOM IA DESCENTRALIZADA, 266
A INTERNACIONAL COM UNISTA, 291
REVOLUÇÃO NA ALEM ANHA, 311
HIPERINFLAÇÃO E COLAPSO DO CAPITAL, 331
A DERROTA DO OUTUBRO ALEM ÃO, 344
A INTERNACIONAL COM UNISTA NO ORIENTE, 360
A ESTABILIZAÇÃO EUROPEIA, A “FRENTE ÚNICA” E A SOCIALDEM OCRACIA, 379
A BUROCRACIA, A URSS E A INTERNACIONAL COM UNISTA, 393
A REVOLUÇÃO CHINESA, 414
COM UNISM O E REVOLUÇÃO NAS AM ÉRICAS, 430
CRISE ECONÔM ICA M UNDIAL E VITÓRIA DO NAZISM O, 451
O STALINISM O, 463
DA OPOSIÇÃO DE ESQUERDA À IV INTERNACIONAL, 489
GREVE GERAL E FRENTE POPULAR NA FRANÇA, 511
REVOLUÇÃO E GUERRA CIVIL NA ESPANHA, 523
O ASSASSINATO DE TROTSKY, 546
O DEBATE SOBRE A NATUREZA DA BUROCRACIA E DO ESTADO SOVIÉTICO, 571
DO ACORDO COM A FRANÇA AO PACTO COM A ALEM ANHA (E À PARTILHA DA POLÔNIA), 592
A URSS NA SEGUNDA GUERRA M UNDIAL, 603
DERROTA DO NAZISM O E VITÓRIA DA URSS, 617
A UNIÃO SOVIÉTICA, OS PCs E A ORDEM DE PÓS-GUERRA, 635
REVOLUÇÃO NA CHINA E GUERRA (QUASE ATÔM ICA) NA COREIA, 662
O LESTE EUROPEU, O KREM LIN E A GUERRA FRIA, 672
A “CONSTRUÇÃO DO SOCIALISM O” NA CHINA, 683
A REVOLUÇÃO LATINO-AM ERICANA: DE BOLÍVIA A CUBA, 695
O FIM DA URSS E DO “BLOCO SOCIALISTA”, 704
A ECONOM IA ARM AM ENTISTA NA URSS (Angelo Segrillo), 725
2
INTRODUÇÃO
O texto que segue constituiu uma prim eira versão de um t rabalho mais extenso e aprofundado
acerca da revolução soviética, iniciada na Rússia em 1917, suas causas e antecedent es e seu
alcance histórico mundial. Divulgamo-lo nesta versão longe de acabada, que pode ser
considerada uma introdução, carente, por exemplo, de um apêndice bibliográfico, devido à
at enção suscitada pelo cent enário da Revolução de Outubro, celebrado em outubro-novembro
de 2017. Na ocasião, participamos de diversos event os, acadêmicos ou não, dedicados à sua
análise, que nos tomaram boa parte do tempo não dedicado ao t rabalho cotidiano. Estivemos,
inclusive, entre os organizadores do Simpósio Internacional Cem Anos que Abalaram o M undo,
realizado no Departam ent o de História (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP) entre 3 e 6
de out ubro de 2017, evento considerado um dos maiores do mundo, se não o maior, dedicado
`Revolução de Outubro em âmbito universitário.
Os textos de Jorge Altamira e Angelo Segrillo, aqui incluídos com devida autorização, esclarecem
pont os abordados de modo sucinto no t exto principal. Seus autores, porém, não têm nenhuma
responsabilidade por esse t exto, cujas fraquezas ou erros devem ser considerados com o de
minha exclusiva responsabilidade.
O. C.
3
ENTRE A AUTOCRACIA ABSOLUTISTA E A REBELIÃO
SOCIAL
A Revolução de Outubro de 1917, que “ abalou o mundo” e deu origem à URSS (União das
Repúblicas Socialistas Soviéticas, criada em 1922 e dissolvida em 1991) teve raízes e
antecedentes locais e internacionais que se interpenetraram. As primeiras dizem respeito às
especificidades do desenvolvimento “ nacional” russo que, na era moderna, est eve fort em ent e
condicionado pelo papel geopolít ico da Rússia como barreira entre a Europa (conceito político-
cultural nascido com a modernidade) 1 e a Ásia, ou seja, pelo seu papel internacional. As
segundas se relacionaram com a expansão mundial do sistema capitalista e suas contradições e
com o desenvolvim ent o int ernacional do movim ent o operário e socialista. Em solo russo,
porém, estes (capitalismo, movim ent o operário e socialismo) adquiriram peculiaridades
notáveis, que exigiram a cunhagem de novas cat egorias t eóricas e políticas, reagindo sobre suas
matrizes ao ponto de alterá-las profundament e. Vejam os, em primeiro lugar, as raízes chamadas
“ locais” .
O primeiro Est ado eslavo na região da atual Rússia foi o Rus' de Kiev. 2 A região esteve, a partir
do século X, na órbita de Bizâncio, com seu crist ianismo “ místico” (chamado de ortodoxo),
diferenciado do cristianismo “ neoplatônico” de Roma, e sua liturgia em língua grega.3 Pouco
tempo depois foi introduzido o primeiro código de leis da região, o Russkaya Pravda. O
cristianismo bizantino convert eu-se a religião dos três povos que tiveram origem a partir do
antigo reino da Rus’ de Kiev: os ucranianos, os russos e os bielorussos. O cristianismo floresceu,
mas em 1240 a cidade de Kiev foi arrasada durant e a invasão pelos mongóis: a maioria da
população teve de fugir para o norte. Os mongóis, sob a liderança de Batu Khan, anexaram a
região do rio Volga a seus domínios. A invasão precipitou a fragmentação da Rússia; área
conquistada tornou-se parte integrant e da “ Horda de Ouro” , como era chamada a porção
noroest e do Império M ongol. Ela foi dividida em vários principados, alguns deles recebendo
alguma autonomia. Os invasores construíram uma capital, Sarai, no baixo Volga, próxima ao M ar
Cáspio, onde reinava o comandante supremo da Horda de Ouro, que dominou a maior parte da
Rússia por t rês séculos. Embora animistas e religiosament e tolerant es, os mongóis faziam
1
A noção de “ Europa” exist ia desde os t em pos da Grécia clássica, só para designar a civilização helênica:
“ Os ant igos não saíram de uma noção formal de Europa, sem noção de uma Europa hum ana, definida em
t ermos humanos, pelo simples f at o de que essa Europa não exist ia... Grécia invent ou a Europa, mas o
mundo grego não er a um m undo europeu” (Lucien Febvre. L’Europa. St oria di una civilt à. M ilão, Felt rinelli,
1999, p. 30).
2
O t ermo " Rus'" , que deu origem a " Rússia" , deriva provavelment e da palavra finlandesa ruot si e da
est oniana root si , que derivam por sua vez de rodr , remadores: rus era a f orma de os vikings se
aut odenominarem quando viviam fora de sua t erra nat al.
3
Em 395, o Império Romano dividira-se em duas part es, ocident al e orient al. Na Europa, com a queda do
Império Romano houve um fort e ret rocesso econômico, com a ext inção da maioria das rot as de com ércio
ext er no, e t ambém de boa par t e das rot as int ernas. A part e orient al do império (o Império Bizant ino) se
mant eve em pé e se expandiu, permanecendo abert a às t rocas com er ciais com o ext erior através das
rot as do M edit errâneo, que passavam pelo Orient e M édio. A Igreja de Const ant inopla (a Igreja Bizant ina)
foi cada vez mais se dist anciando da Igreja Romana, se recusando a reconhecer o Patriarca de Roma como
aut oridade crist ã universal, e est abelecendo um exarca no Oest e. Foi assim criada a t radicional divisão
Orient e/ Oci dent e, a part ir da cisão da crist andade. A Igreja ocident al se proclamou “ universal” , o
kat holikos grego lhe deu seu nome. O dist anciament o ent r e as duas f rações crist ãs acabou levando ao
rompiment o em 1054, com um curt o período de reunificação no século XV, devido ao Concilio de Florença.
Durant e o moviment o da Reforma prot est ant e na Europa, Lut ero negou que a salvação da alma fosse
propriedade exclusiva da Igreja Cat ólica; ela se mant inha, segundo ele, t ambém na Igreja Ort odoxa do
Orient e ou na dout rina do pregador t checo Johann Huss, queimado na fogueira da Inquisição no século
XV.
4
incursões punit ivas contra os principados crist ãos remanescent es; o principado de Kiev nunca
se recuperou.
A Rússia moderna, que se transformou no maior Estado de todos os tempos em área continua,
foi fundada depois da derrota dos ocupantes mongóis, chamados pelos russos de “ tártaros” . O
primeiro grande confronto entre eles t eve lugar em Kulikovo, em 8 de setembro de 1380, em
um campo próximo do rio Don, e terminou com a vitória russa. Exércitos russos sob o comando
do Grão-Duque de Vladimir, Dimitri Ivanovich, enfrent aram uma força mongol muito maior sob
o comando de M amai, líder militar da Horda Dourada. Este tinha como aliados o Grão-Príncipe
Oleg de Ryazan e o Grão-Príncipe Jogaila da Lituânia. Acredita-se que os contingent es
combatent es eram compost os de 80 mil russos e 125 mil tártaro-mongóis. M amai, após a
derrota, escapou para a Crimeia, onde foi assassinado. A Horda ficou sob o comando de
Tokhtam ysh, que empreendeu uma massiva campanha militar punitiva contra os principados
russos, que passaram mais um século dominados pela Horda de Ouro. Kulikovo, ainda assim, foi
considerado o início do fim do domínio mongol sobre a Rússia (“ os russos vieram ao campo de
Kulikovo como cidadãos de vários principados e retornaram com o uma nação russa unida” ,
escreveu o historiador nacionalist a Lev Gumilev), domínio que t erminou com uma batalha
definit iva no rio Ugra, um século depois. Segundo Serguei Soloviov, a batalha foi também um
“ símbolo do triunfo da Europa sobre a Ásia” .4 Na era st alinista, esses eventos t ornaram a ser
celebrados como grandes fastos nacionais.
Duelo do campeão “russo” Alexander Peresvet contra o campeão da Horda de Ouro, Temir-M urza, por
Viktor Vasnetsov
Quando Constantinopla caiu sob o jugo turco em 1453, a Rússia expulsava os mongóis de seu
território, dando início a um Estado independent e. O fato de Roma ter “ caído em heresia” e a
segunda Roma (Constant inopla) nas mãos dos turcos otomanos islâmicos, fez com que alguns
russos começassem a se referir a M oscou como a “ Terceira Roma” , a que preservaria a tradição
e a pureza da fé ortodoxa e a civilização romana. O Czar (César) era agora o novo campeão e
protetor da ortodoxia, do mesmo m odo que, em outros t empos, havia sido o Imperador
bizantino. A Igreja Ortodoxa Russa nest e t em po já desenvolvia seu próprio estilo, t anto na
lit urgia como na iconografia.5 Desde o final do século XV, nos primórdios na Era M oderna, na
4
Aleksêi Timofeit chev. A bat alha de Kulikovo e o nascim ent o da nação russa. Russia Beyond . In:
ht t ps:/ / br.rbt h.com/ .../ a-bat alha-de-kulikovo-e-o-nascim ent o-da-nacao-russa.
5
Em meados do século XVII, um cisma t eve lugar na Igr eja Ort odoxa Russa, quando o pat riarca Nikón
reformou os numerosos usos lit úrgicos locais a f im de adapt á-los aos cost um es gregos. Aqueles ort odoxos
que se negaram submet er-se à reforma e insist iram em permanecer com suas ant igas t radições lit úrgicas,
5
Rússia, “ mais cedo do que em qualquer out ra região da Europa, tornou-se evident e o impulso
para uma monarquia milit ar grassando no seio da aristocracia. Tal deveu-se ao traçado da pré-
história do Estado de Kiev e à tradição imperial bizantina que ele transmitiu através da caótica
Idade M édia russa, por interm édio da ideologia da ‘Terceira Roma’ (no entanto) m enos
important e do que a constante pressão material exercida pelos pastores tártaros e turcomanos
da Ásia Central. A suserania política da Horda de Ouro se mant eve até o século XV (mas) faltava
aos cavaleiros tártaros a capacidade de conquistar ou ocupar com carát er de permanência. A
Rússia, ‘sentinela da Europa’, tinha de suportar a força de seus ataques; o resultado foi um
movimento no sentido de um Est ado centralizado... A partir do século XVI, a ameaça militar do
Ocidente foi muito maior do que a oriental, já que a artilharia pesada e a infantaria moderna
venciam com facilidade os arqueiros montados com o armas de guerra... Na Rússia, as fases
decisivas da transição para o absolutismo ocorreram durante capítulos sucessivos da expansão
sueca” . 6 Rússia era, nas palavras de Fernand Braudel, “ a outra Europa” , seu território “ uma
enorme zona front eira ent re a Europa, que ela prot egia, e a Ásia, da qual amortecia, às suas
custas, os golpes sempre violent os” . Suas cidades, no entanto, eram “ abertas” , “ como as da
Antiguidade, como Atenas... não unidades fechadas sobre si mesmas e sobre os privilégios de
seus cidadãos, como no Ocidente medieval” . Daí que seja impróprio falar de um “ feudalismo
russo” caracterizado por poderes e part icularismos regionais, como na Europa ocident al.
O Estado absolutista russo esteve, desde sua origem, sob a pressão das potências ocidentais, o
que alimentou o processo de centralização. Sua raiz foi principado de M oscou, que liderou seu
processo de formação e desenvolvim ento até atingir o Oceano Pacífico, no século XIX. Enquanto
o com ércio ent re as nações era ainda pouco considerável, foram as relações militares com o
ext erior as que exerceram a influência principal sobre a Rússia: foi menos o impulso da
sociedade russa, e mais a pressão militar das potências europeias, a que deu forma e natureza
ao seu Estado. A necessidade de se mant er contra inimigos melhor armados (no começo,
principalment e a Lituânia, a Polônia e a Suécia) forçou o Est ado russo a criar um forte exércit o
e uma indústria militar. A Rússia moderna “ só chegou à maturidade no dia em que barrou o
istmo russo, quando Ivã, o Terrível (ou antes, o Temível, 1530-1584) conseguiu apoderar-se de
Kazan (1551) e depois de Ast racã (1556), passando a controlar o enorme Volga, de suas
nascentes ao Cáspio. Esse duplo sucesso foi obtido pelo emprego de canhões e arcabouços...
Todo o Sul do espaço russo se achava ocupado pelos mongóis, ou tártaros” . A “ Terceira Roma” ,
a “ M oscóvia” , passou a ser governada pelos czares (tít ulo equivalent e ao César romano, que é
sua raiz etimológica) e voltou-se cada vez mais para a Europa, com um sistema de opressão
interno destinado a apagar suas particularidades centrífugas: segundo Fernand Braudel, foi um
“ ideólogo” de Ivã o Terrível, Ivã Peresvetov, quem elaborou a teoria política do terror de Estado
(que se voltaria, como o Iluminismo europeu, contra seus formuladores): “ Em profundidade,
mas também se desenrolando na superfície, a Revolução caminhou at ravés de toda a história da
modernidade russa, do século XVI até a explosão de outubro de 1917” . 7
A revolução socialista soviética se inscreveu na “ longa duração” da história russa? Braudel não
desenvolveu com maior aprofundamento essa indicação. Tentando retoma-la -a foi afirmado
que “ enquanto a Revolução Francesa de 1789 foi o coroam ent o e consolidação de todas as
mudanças econômicas, sociais, políticas e culturais que viveu a sociedade europeia desde o
século XVI – que alcançaram seu clímax no século XIX – a Revolução Russa de 1917 teve ant es
um caráter antecipat ório e premonit ório com relação às transformações e experiências que
passaram a ser conhecidos como os “ velhos crent es” . At ualment e, exist em ainda algumas com unidades
de velhos-crent es sob a jur isdição da Igreja Ort odoxa Russa no exílio.
6
Perry Anderson. Linhagens do Est ado Absolut ist a. Port o, Afront am ent o, 1984, p. 234.
7
Fernand Braudel. Gramát ica das Civilizações. São Paulo, M art ins Font es, 1989, pp. 470-482.
6
adviriam” . 8 Lênin, como veremos, qualificou os primeiros movimentos revolucionários da
Rússia moderna como ant ecipatórios, mas esse enfoque, considerado de modo unilateral,
descartaria qualquer influência do passado russo (em especial o mir ou comuna rural) como
elem ent o const itutivo do caráter soviético da revolução, sem falar no peso do passado “ asiático”
russo na sua degeneração stalinista, indicado por Trotsky. 9 Foi em resposta a uma carta de Vera
Zasulich que M arx escreveu (em carta de 16 de fevereiro de 1881, incluída no prefácio à primeira
edição russa do M anifest o Comunista ): “ [Na Rússia], graças a uma excepcional combinação de
circunstâncias, a comuna rural, estabelecida em escala nacional, pode ir-se desprendendo de
suas características primitivas e se desenvolvendo como elemento da produção coletiva em
escala nacional. É precisament e graças à contemporaneidade da produção capitalista que pode
apropriar-se de todas as suas aquisições positivas sem passar por suas espantosas peripécias” .
Esta questão est eve no cent ro do debat e dos revolucionários russos.
Outro elem ento de peso desse passado é que as revoltas sociais percorreram quase toda a
história russa desde seus primórdios na era moderna. A partir da segunda metade do século XVI
e, sobretudo, na primeira metade do século seguinte, houve nas regiões ocidentais da antiga
Rússia revolt as camponesas sistemáticas contra os proprietários e funcionários administrativos
polacos, que dominavam M oscou. Um papel important e na luta cont ra os nobres na Ucrânia foi
desempenhado pelos cossacos oriundos da região em volta do Dnieper. A comunidade
camponesa era constituída por ucranianos e bielorrussos que fugiam à opressão dos senhores
boiardos, dos dvoryane e seus funcionários. Por volt a de 1640-1650 rebentou por toda a Ucrânia
e Bielorrússia, territórios alógenos do principado de M oscou, uma revolta popular em larga
escala. Os camponeses, chefiado por Bogdan Khmelnitsky, tiveram o apoio dos cossacos e dos
habitantes pobres das cidades; a guerra começou na primavera de 1648. Os camponeses
com eçaram a ajustar contas com os nobres polacos e com os proprietários ucranianos locais:
em breve a revolta se espalhou por toda a Ucrânia e Bielorrússia. Depois de um tempo, o Estado
russo apoiou a lut a contra os suseranos polacos. Destacam ent os de cossacos do Don e
habitantes das cidades tomaram part e nela. O governo russo ajudou os ucranianos enviando-
lhes víveres e armas. Khmelnitsky voltou-se para o Czar Aleixo pedindo-lhe que fizesse da
Ucrânia uma parte do Estado Russo. A Rada de Pereyaslav de 1654 decret ou que a Ucrânia e a
Rússia se unissem em um só Estado, resultado de grande importância na história ulterior.
Em finais do século XVII, outra grande revolta cam ponesa com eçou na região do Don, com
camponeses fugitivos da servidão e da pobreza. Os cossacos pobres que a encabeçaram foram
chefiados por Stepan Razin, um soldado que atravessara a pé grandes ext ensões da Rússia e
test emunhara os sofrimentos dos servos, o seu ódio amargo e suas queixas contra os
proprietários e os voyevods (inspetores) czaristas. A revolta com eçou com uma expedição ao
longo do rio Volga em 1667: Razin e os seus hom ens armaram emboscadas a comboios,
apoderando-se dos seus carregam ent os, livraram-se dos funcionários czaristas e convenceram
a maioria dos membros das tripulações dos navios a juntar-se a eles. Razin e seus homens
dirigiram-se depois ao mar Cáspio, onde capturaram comboios de navios persas. Em 1669, eles
volt aram ao Don; em 1670 sua revolta adquiriu um caráter mais político. Os homens de Razin já
8
Carlos Ant onio Aguirre Rojas. A revolução russa no espelho da longa duração. M ouro nº 12, São Paulo,
janeiro de 2018. A redução da revol ução prolet ária à sua dimensão ant ecipat ória (ou “ ut ôpica” ) não se
coaduna com a t ese m arxist a acerca do socialismo como realização posit iva da socialização negat iva da
produção realizada pelo capit al (o “ carát er cada vez mais social da produção” ), e do com unismo como “ a
expressão de um moviment o que se realiza sob os nossos pr óprios olhos” . A diferença princi pal ent re a
revolução bur guesa e a prolet ária consist e em que a dominação econômica e social da bur guesia pr ecede
sua dominação polít ica, conquist ada ou não de modo revolucionário, o que não acont ece no segundo
caso.
9
Leon Trot sky. St alin. São Paulo, Livr ar ia da Física, 2014.
7
não procuravam apenas saquear, mas t ambém questionar a dominação política da autocracia;
tornaram-se uma séria ameaça para os propriet ários de terras e os voyevods.
As forças de Razin tomaram a cidade de Tsaritsyn e depois Astracã. Em todas as cidades que se
renderam a Razin os governadores foram mortos ou expulsos e os seus arquivos, onde eram
conservados os documentos que continham os direitos dos proprietários sobre os camponeses,
foram queimados. Camponeses das aldeias vizinhas juntaram-se em massa ao exército de Razin
e se levantaram contra os senhores. Os camponeses devastaram as propriedades dos boiardos
e dos dvoryane, e mataram seus senhores. Os homens de Razin fizeram proclamações exortando
o povo a pegar em armas. Entre os chefes camponeses havia uma mulher chamada Alyona, que
chefiou um bando de sete mil camponeses e era muit o destemida na batalha. Os camponeses
tinham ainda a ilusão de que um Czar hostil que defendia os proprietários poderia ser
substituído por um bom Czar que compreendesse suas necessidades. O governo czarista enviou
um enorm e exército contra Razin, chefiado por comandant es experim ent ados. Apesar da forte
resistência, a revolta camponesa foi esmagada. Onze mil homens foram enforcados em três
meses. Razin foi trazido para M oscou e submetido a tortura: em junho de 1671 foi esquartejado
na Praça Verm elha.
Uma década depois, Pedro I (1672- 1725), dito “ o Grande” , foi empossado Czar da Rússia, que
governou desde 1682 at é a formação do Império Russo em 1721, continuando a reinar com o
Imperador at é sua mort e. Seu governo ensejou um a modernização e “ ocident alização” da
Rússia, derrotando a Suécia, sua adversária ancestral, na “ Grande Guerra do Norte” , marcada
pela batalha de Poltava em 1709. Decidido a combat er o atraso econômico e social da Rùssia,
Pedro resolveu abrir uma janela para o Ocident e: em preendeu um périplo de dezoit o meses
pela Europa ocidental, em que se fez passar por marinheiro e trabalhou como carpint eiro num
estaleiro da Holanda, aprendeu a retalhar a gordura da baleia, estudou anatomia e cirurgia
observando dissecação de cadáveres, visitou museus e galerias de arte. Em 1697, Pedro
organizou uma expedição diplomática à Europa ocidental, a chamada “ Grande Embaixada” , na
busca de conhecimentos t écnicos, milit ares e náuticos, e tent ou obt er o apoio das nações
europeias para fazer frent e ao Império Otomano. Oficialment e a expedição era liderada por
Franz Lefort; Pedro integrava-a de incógnito sob o nome de Pedro M ikhailov.
Pedro o Grande
O Patriarcado Ortodoxo Russo fora oficialment e estabelecido pelo patriarca ecum ênico Jeremias
II em 1589; foi abolido por Pedro em 1721. Desde os tempos de Pedro até Nicolau II, a Igreja da
Rússia foi administrada por um Santo Sínodo sob a estrita supervisão do Czar. Em 1717, Pedro
deslocou-se novam ent e à Europa ocidental; logo depois enviou diversas expedições de
reconhecim ento à Sibéria. O cientista alemão Daniel Gottlieb M esserschmidt recolheu entre
8
1718 e 1727 dados sobre a geografia, a população e a fauna e flora das regiões ocidental e
central da Sibéria. No extremo orient al, a Península de Kamchatka foi explorada por Ivan
Jevrejnov e Fiodor Lujin; o ext remo nort e pelo dinamarquês Vitus Bering (que deu seu nom e ao
estreit o que comunica com a América do Nort e). Foi adotado o calendário juliano, houve uma
simplificação do alfabet o cirílico e uma reforma do sistema administrativo. Em 1703, Pedro
mandou edificar São Pet ersburgo, a nova capital da Rússia, com um projeto urbanístico de
molde ocidental concebido como uma ligação cultural da Rússia com a Europa.10 O mais notável
do reinado de Pedro foi sua tentativa de criar uma “ nobreza baseada no mérito” , baseada numa
definição rigorosa de cada categoria ou classe na Rússia, nobreza, servos e população livre
urbana, definindo direitos e responsabilidades de cada grupo e, ao mesmo t empo, reforçando a
opressão sobre os camponeses.
Pedro criou uma “ Tabela de Posição Social” através de um ukase, ou decret o imperial: a Tabela
regulava a hierarquia milit ar, a hierarquia dos funcionários civis do Estado e a hierarquia da
nobreza, num tot al de 14 graus ou classes. O mais alto grau era o dos príncipes, o dos marechais
e o do chanceler do Império, beneficiando as autoridades militares, declarando-as acima dos
funcionários civis e até judiciais, o que proporcionou aos oficiais do exército facilidades para ter
acesso à alta nobreza. Para tanto criou a Ordem de Santo André, tendo com o modelo da Ordem
do Espírito Santo da França, que conf eria nobreza automat icam ent e para o agraciado. Isso
est endeu a condição de nobre para aqueles que a conquistassem por mérito pessoal; até então
ela só era reconhecida aos descendestes dos Ruríquidas, antigos príncipes do velho Estado
russo, aos boiardos11 e aos nobres com ascendência nos tempos do Rus'Kievana .
Cont ra a influência eclesiástica Pedro criou o “ imposto sobre as barbas” : para a Igreja Ortodoxa
ela era um símbolo de reconciliação do homem com o divino. Na Corte de Pedro não se podia
usar barbas (Pedro não a usava), consideradas arcaicas e símbolos de atraso social. Os boiardos,
em geral, usavam barba. Em agosto de 1698 foi emitido o decret o "sobre as vestim ent as e estilo
dos alemães, a obrigação de fazer a barba e aparar os bigodes, sobre os dissidentes que não
andarem nest e traje e não cumprirem a obrigatoriedade sobre a barba, e suas consequências” .
O “ Armorial da Nobreza da Câmara de Heráldica do Senado” , em São Pet ersburgo, estava
dividido em cinco volumes: o Livro de Príncipes do Império, o Livro de Condes do Império, o Livro
de Barões do Império, o Primeiro Livro de Aristocratas sem título heredit ário (antes da reforma
petrina) e o Segundo Livro de Arist ocratas sem título hereditário (depois da reforma): 12 “ O
tremendo edifício estatal de Pedro I se ergueu durant e e contra a ofensiva do militarismo sueco
na Rússia, conduzida por Carlos XII... Desse modo, o poder czarista foi testado e forjado no
combate int ernacional contra o império sueco, pela supremacia no Báltico. A Áustria fora
afastada da Alemanha pela expansão sueca; o Estado polaco esboroou-se; os Estados russo e
prussiano, pelo contrário, repeliram-no e se mantiveram firm es, assumiram seu modo de
evolução durant e a lut a. O absolutismo oriental foi, portanto, fundam entalm ent e det erminado
pelas restrições impostas pelo sistema político internacional em que as nobrezas de toda a
região estavam objetivam ent e integradas. Foi o preço de sua sobrevivência numa civilização em
que era constant e a guerra territorial: o desenvolvim ent o desigual do feudalismo as forçou a
10
Nicholas Riasanovsky. A Hist ory of Russia. Londres, Oxford Universit y Press, 2000.
11
Est es er am a classe mais alt a da sociedade russa e det inham poder polít ico at ravés da Duma boiarda.
Além das suas ext ensas pr opriedades, eram os legisladores principais do Principado de Kiev. Com a
cent r alização de poder pelo Grão Duque de M oscou, sua influência perdurou. A Duma boiarda, que
inicialment e cont ava com t rint a mem bros, foi-se expandindo, t endo chegado a cont ar cem mem bros no
século XVII: ela foi abolida por Pedro o Gr ande em 1711.
12
Robert K. M assie. Pedro, o Grande. Sua vida e seu m undo. Lisboa, M anole, 2014.
9
confrontar-se com as estruturas políticas do Ocident e antes destas terem atingido um estádio
de relativa transição econômica para o capitalismo” .13
Em 1715, no contexto da “ Grande Guerra Nórdica” , surgiu uma aliança entre Rússia, Dinamarca,
Polônia, Prússia e Hannover para a part ilha do império da Suécia: M arx a chamou de “ primeiro
grande at o da diplomacia moderna e premissa lógica da partição da Polônia” , assim como de
alicerce da aliança estratégica anglo-russa. Rússia entrava no “ Concerto Europeu” com o
potência báltica e, baseada nisso, candidatava-se ao posto de árbitro da Europa0, tecendo um a
aliança com a geograficam ent e isolada Inglat erra, que seria a base da política
contrarrevolucionária europeia no século sucessivo. 14 Na própria Rússia, em que pese seu
caráter “ m odernizador” , as reformas petrinas consolidaram o sistema nobiliárquico: no século
XVIII, a Rússia era ainda um país de estrutura econômica agrária e atrasada; os avanços
industriais e manufatureiros do período de Pedro não tiveram continuidade em seus sucessores.
A Czarina Isabel concedeu monopólios, suprimiu impost os e acabou com os direitos sobre o
consumo para potenciar as iniciativas individuais. Catarina “ a Grande” (1762-1796) est endeu
essas reformas, privilegiando grupos e famílias próximas ao poder. Proprietários agrícolas,
ganadeiros, industriais, poderiam vender seus excedentes sem restrições. O efeit o das medidas
foi que os camponeses, que eram a enorme maioria da população, passassem a complem entar
suas economias com “ incursões” (empregos t emporários) na indústria e no comércio. Durante
o século XVIII, Rússia “ recorreu a inumeráveis ocidentais para tudo construir, inclusive a
indústria russa, na escala da época. Uma multidão de engenheiros, arquitetos, pintores,
artesãos, músicos, professores de canto e governant as se abateram sobre um país ávido de
aprender, decidido a t udo tolerar para consegui-lo... A massa inaudita de correspondências e
papéis em francês amontoada nos arquivos públicos fala do imenso esforço ao qual a
intelligent sia russa se ent regou de muito bom grado” . 15
As tensões e lutas de classe no campo se tornaram agudas na região dos Urais, no local onde
cem anos antes o cossaco Stepan Razin tinha se t ornado uma lenda. Entre os camponeses e os
cossacos da região com eçou a espalhar-se o boato de que Pedro III, que havia sido mort o por
ordem de sua mulher Cat arina, estava ainda vivo e escondia-se nos Urais ou perto do Volga. Em
13
Perry Anderson. Op. Cit, p. 236.
14
Karl M ar x. Hist ória de la Vida de Lord Palmerst on. Palmerst on y Rusia. Buenos Aires, Rescat e, 1986;
Robert Payne. El M arx Desconocido. Barcelona, Bruguera, 1973.
15
Fernand Braudel. Op. Cit , p. 481.
16
John Lawrence. A Hist ory of Russia. Londres, M eridian Books, 1978.
10
breve apareceria e declararia guerra à Imperatriz Catarina, a opressora dos camponeses. Nesta
versão russa do sebastianismo, o homem que disse ser Pedro III foi Yemelyan Pugachev, um
cossaco pobre que havia desert ado do exército e, como Razin, percorrera grande parte do país
e vira o sofriment o do povo. A revolta de Pugachev com eçou em 1773. Os camponeses e os
cossacos, descont entes com as condições de servidão, começaram a apoiá-lo. Nas suas
proclamações e apelos ao povo, Pugachev prometia libertar os camponeses, distribuir terras e
pôr as florest as e os rios à sua disposição. Exortava-os a levantarem-se contra os dvoryane e
contra todos os que estavam ao serviço do Czar: ordenou que seus funcionários fossem
capturados, mortos e enforcados.
O exército de Pugachev tomou algumas fortalezas e pôs cerco à cidade principal do Império nos
Urais, Orenburgo. Servos revoltados juntaram-se a Pugachev; os povos dos Urais e do Vale do
Volga que estavam subm etidos a uma opressão particularmente dura também aderiram à
revolta. Os manifestos de Pugachev eram feit os não só em russo, mas também em tárt aro, na
língua dos bachkirs e em outras. Alguns chefes desses povos desem penharam um papel de
relevo na rebelião: os servos eram uma parte importante do exércit o de Pugachev. Nessa altura
já havia um grande núm ero de fábricas nos Urais, sobretudo oficinas de ferro e cobre, onde se
fabricavam canhões e projét eis. Os homens que os faziam revelaram-se compet ent es quando
foi preciso usá-los. No cerco de Orenburgo os homens de Pugachev revelaram-se bons
at iradores. Tomaram ainda Samara e Krasnoufimsk e cercaram Tchelyabinsk, mas, tendo
fracassado em Orenburgo, Pugachev se retirou para a Bachkiria. Depois de se refugiar na
Bachkiria, Pugachev ia preparar-se para enfrentar o exército czarista com uma força maior e
mais ameaçadora. Atravessou o rio Kama e tomou as fábricas de Ijevsk e Votkinsk, abrindo assim
caminho para Kazan. O próprio Pugachev chefiou o cerco a Kazan e conseguiu tomar a cidade.
As riquezas dos dvoryane foram divididas pelos homens do exército revolt oso.
11
Na segunda metade do século XVIII, a Rússia era ainda um império no qual a direção das
questões de Estado estava exclusivament e nas mãos dos dvoryane. Os interesses dessa classe e
o número crescent e de mercadores exigiam expansão territorial. O sistema de servos com eçava
a desintegrar-se, o que os dvoryane t entavam impedir, t udo fazendo para preservar a velha
ordem. Esperavam utilizar a aquisição de novas terras para este fim. A costa do mar Negro tinha
at rações especiais. Em 1768 as tropas do Khan da Crim eia — vassalo do sultão turco — invadiram
o Sul da Rússia; começava a guerra russo-turca. Os russos obtiveram grandes vitórias,
comandados por Rumyantsev e Suvorov. Em 1774 a guerra acabou com o t ratado de Kuohuk-
Kainarii. Os termos do tratado eram vant ajosos para a Rússia, que adquiriu uma firme posição
na cost a norte do mar Negro e out ra na costa orient al. Em 1783, o khanato da Crimeia, cuja
independência ficara pouco mais do que nominal, renunciou às suas exigências e a Crim eia
passou a fazer parte da Rússia, que adquiriu desse modo uma saída para o mar Negro. No final
do século XVIII o Império Russo parecia estar no auge do seu poder e em rápido progresso,
est endendo-se do mar Branco e do mar Báltico no Norte at é ao mar Negro ao Sul; tinha um
serviço de funcionários civis bem organizado e um exército e uma frota que tinham conquistado
fama em batalha.Catarina II, que havia reinado mais de trinta anos, conservou-se fiel ao seu
sangue nobre e defendeu com firmeza os interesses da classe proprietária das t erras: a
exploração dos servos e os privilégios da nobreza radicalizaram-se durante o seu reinado.
No século XVIII, uma das figuras mais notáveis da cultura russa foi M ikhail Lemonosov (1711-1765)
que vinha de uma simples família camponesa. Lemonosov era um génio multifacetado: talentoso
físico e químico, astrónomo, geólogo, geógrafo, linguista, historiador, poeta, pint or e engenheiro.
Organizou o primeiro laboratório químico da Rússia e descobriu a lei da conservação de matéria.
Na obra de Lemonosov a teoria estava sempre intimamente ligada à prática. Lutou pela exploração
dos recursos minerais russos e pela pesquisa de novos depósitos. Lemonosov fez muitas
descobertas em muitos e variados campos da ciência, inclusive a astronomia. Inventou um aparelho
parecido com o moderno helicóptero; escreveu ainda o primeiro livro russo sobre metalurgia e a
primeira gramática russa. Lemonosov desempenhou um papel importante na fundação da primeira
universidade russa, que foi aberta em M oscou em 1755. Também foram abertas duas escolas
especiais ligadas à universidade — uma para os dvoryane e a outra para os filhos das outras classes
livres, como a classe dos comerciantes. Os servos, contudo, não eram admitidos nem nas escolas
nem na universidade. Lemonosov defendia direitos iguais de admissão para todas as classes sociais,
mas o governo czarista o impediu. A Universidade de M oscou tinha três faculdades: filosofia, direito
e medicina; não tinha faculdade de teologia. Em breve se tornou um importante centro da ciência
e da cultura russa. Alexandre Raditchev, do seu lado, foi o primeiro intelectual livre na Rússia a exigir
o fim da autocracia e da servidão. Não limitou a sua crítica a aspectos isolados do sistema, o que
era prática comum entre outros progressistas da época, mas exigiu (em publicação anônima) a
abolição do sistema em bloco: depois de várias vezes preso e deportado, em set embro de 1802
suicidou-se com veneno.
No abalo continental que acompanhou a passagem para o século XIX, a expansão napoleônica
atingiu um pont o em que o único obstáculo para o Império Francês era a Inglaterra, favorecida por
sua posição insular, por seu poder econômico e por sua superioridade naval. O sucesso de bloqueio
do país, decretado a 21 de novembro de 1806 por Napoleão, dependia de que todos os países da
Europa aderissem a ele. O Acordo de Tilsit, firmado pelo Imperador com o Czar Alexandre I da Rússia
em julho de 1807, garantiu a Napoleão o fechamento do extremo Leste da Europa contra a
Inglaterra. No seu zênite, o Império Francês atingiu sua extensão máxima em 1812, com quase toda
a Europa Ocidental e grande parte da Europa Oriental ocupadas pelas suas tropas. Em 1812, a
aliança franco-russa foi quebrada pelo Czar Alexandre I, que rompeu o bloqueio cont ra Inglaterra.
Napoleão empreendeu ent ão sua campanha contra a Rússia, à frente de mais de 600 mil soldados,
oriundos dos mais diferent es países da Europa. Rússia usou a tática de terra arrasada, destruindo
cidades inteiras para criar um campo de batalha favorável aos defensores. Quando Napoleão
entrou em M oscou, realizando seu sonho de ocupar o Kremlin, encontrou uma cidade em chamas,
12
queimada pelas suas próprias autoridades. Os defensores da cidade tinham se retirado para esperar
o inverno que castigaria as tropas francesas; estas, no ínterim, se livraram a todo tipo de saques e
abusos contra a população remanescente na capital da “ Roma do Oriente” .
Aliada ao inverno rigoroso, à pest e e às doenças que assolaram as tropas francesas, Rússia
conseguiu finalment e vencer o exército napoleônico, que retornou à França com apenas 120 mil
homens. A campanha da Rússia em 1812 marcou a virada do empreendimento imperial
napoleônico. Sua Grande Armée foi derrotada na campanha russa e nunca se recuperou. 675 mil
homens, franceses ou ao serviço da França, invadiram a Rússia: as perdas totais do exércit o
napoleônico (compreendidas mortes, prisões e deserções) somaram 300 mil, aproximadament e
45% do total, um autêntico desastre militar. Após o fim da época napoleônica, os países vencedores
da França (Áustria, Rússia, Prússia e Reino Unido), no entanto, ainda temiam uma nova revolução
nos moldes daquela de 1789. Sua política foi a “ restauração legitimista” , realizada no Congresso de
Viena de 1815, e a exigência compensações territoriais por parte da França. Seu inst rumento de
ação: a Santa Aliança político-militar reunindo os exércitos de Rússia, Prússia e Áustria, prontos
para intervir em qualquer situação que ameaçasse o Antigo Regime na Europa e alhures. Com base
no princípio geopolítico das "fronteiras geográficas", Rússia anexou parte da Polônia, a Finlândia e
a Bessarábia.
A “ Sant a Aliança” foi uma tentativa da Rússia, Prússia e Áustria, as três potências vencedoras da
guerra contra Napoleão, de garantir a realização prática das medidas aprovadas pelo Congresso de
Viena, bem como de impedir o avanço nas áreas sob a sua influência das ideias liberais e
constitucionalistas que se fortaleceram com a Revolução Francesa e que haviam desestabilizado
toda a Europa. O bloco militar, que durou até as revoluções europeias de 1848, combateu rebeliões
liberais e interferiu na política colonial, já que era a favor da recolonização. A Aliança foi proclamada
no Congresso de Viena como a união dos três ramos da família cristã europeia: os ortodoxos russos,
os protestantes prussianos e os católicos austríacos. Surgiu por inspiração do Czar Alexandre I, que
propôs aos outros príncipes cristãos reunidos em Viena governarem seus países de acordo com os
"preceitos da Justiça, Caridade Cristã e Paz" e formarem um bloco de potências cujas relações
seriam reguladas pelas " elevadas verdades presentes na doutrina de Nosso Salvador". O tratado da
Santa Aliança foi assinado pelos chefes de Estado presentes, sem ser submetido a ratificação nos
países assinantes. No seu esteio, a “ Polônia do Congresso” (oficialmente Reino da Polônia:
Królestw o Polskie) ou “ Polônia Russa” surgiu da união constitucional da Polônia com o Império
Russo. Embora oficialmente a Polônia fosse um Estado com alguma autonomia política, o Czar não
aceitava restrições ao seu poder no território.
A Rússia se caracterizava pela sua estrutura econômica primitiva em relação à Europa ocidental
e pela lentidão da sua evolução social. A vitória contra a invasão napoleônica não deteve a
mudança modernizant e em curso na mentalidade de boa parte dos oficiais russos. Depois da
derrota de Napoleão em Wat erloo, em 1815, Paris viu-se tomada por três anos (de 1815 a 1818)
pelos países que haviam se coligado cont ra o imperador francês, entre eles o exércit o russo.
M uitos oficiais czaristas, formados sob a dura mão da autocracia, ficaram impressionados com
o ar de liberdade e tolerância que encontraram na Europa ocidental. Coment ou nas suas
memórias o príncipe Volkonski: “ As campanhas de 1812-1814 trouxeram a Europa para perto
de nós, dando-nos a conhecer as suas formas de governo, instituições públicas e direitos de que
gozam os seus povos... A nossa vida estatal, os ridículos direitos do nosso povo e o despotismo
do nosso regim e revelaram-se pela primeira vez no nosso coração e no nosso pensamento” . A
consequência foi que, quando esses oficiais retornaram a São Petersburgo e M oscou, trouxeram
consigo as “ perigosas” ideias iluministas e liberais, as “ ideias francesas” . Entre eles estava o
conde Sergei Trubet skoi, herói da guerra de 1812 e int egrante da maçonaria que fundou a
“ Sociedade Secreta do Norte” , celula mater da futura “ rebelião dos dezembristas” . Como na
Rússia a classe média fosse inexpressiva, sufocada pelo clima opressivo devido à aliança entre o
Estado despótico e a Igreja Ortodoxa, que imperava sobre uma im ensa massa de camponeses
13
rudes e supersticiosos, coube a uma franja da alt a nobreza instruída empunhar o programa
constitucional.
Na ausência de uma burguesia autônoma ou de um at ivo Terceiro Estado, outro corpo social
tomou as bandeiras da liberdade e do progresso e tentou levá-las a diante, situação que levou
Rostopchine, governador de M oscou em 1820, a constatar o fenôm eno que ocorria no país
observando que "ordinariamente são os sapateiros que fazem a revolução para tornarem-se
grandes senhores: mas ent re nós são os grandes senhores que desejam t ornarem-se
sapateiros" . 17 A “ revolta liberal” teve sua expressão num a rebelião dos oficiais de baixa patent e,
em dezem bro de 1825. O Czar Alexandre I morrera repent inam ent e sem deixar um herdeiro
para sucedê-lo. O substituto natural para o cargo era seu irmão Constantino, ocupant e do cargo
de vice-rei da Polônia. A chegada de Constantino ao poder agradava aos m embros da alta cúpula
militar imperial. A expectativa era a de que Constantino empreendesse reformas liberais e
transformasse Rússia em uma monarquia constitucional. M as Constantino abriu mão do cargo,
deixando-o para Nicolau I, seu irmão mais novo. No dia 14 de dezembro, Nicolau I organizou os
protocolos que oficializariam sua chegada ao trono russo. Na mesma data, sem ter
conhecim ento da abdicação de Constantino, militares russos entregaram um manif esto jurando
fidelidade ao vice-rei da Polônia.
Abolia-se também, no projet o dos dezembristas, o recrutam ento militar forçado bem como as
colônias militares para onde eram enviados os inimigos do regime, uma espécie de pena das
galés a ser cumprida em áreas remotas e inóspitas, obrigando todas as classes ao serviço militar.
A administração das comunidades, regiões e governos espalhados pelo império, seguindo um
modelo federal, seria escolhida nos próprios locais, não sendo mais exercida por um governador
a mando do Czar. Por fim, encaminhava o procedim ento da eleição dos represent ant es para a
Alta Câmara (uma Assembleia Geral do povo russo) para ratificar a forma do futuro governo.
Diante da ousadia dos oficiais, Nicolau I convocou forças militares fiéis ao governo para sufocar
a rebelião em sangue; test emunas relataram que muitosdos revoltados reunidos na praça
gritavam em defesa da Constituição pensando que ela seria a mulher de Constantino. Após a
vitória das forças oficiais, o Czar Nicolau I empreendeu a perseguição contra o moviment o
dezembrista. Além da prisão de três mil pessoas, o imperador ordenou o exílio de 120
participantes do movim ent o e o fuzilamento de cinco líderes. A derrota dos dezembristas foi
chamada de “ fracasso histórico do liberalismo russo” , mas teve por efeito avolumar a oposição
ao regim e dos czares, especialmente de part e das “ classes m édias” ;18 na próxima et apa, elas
buscaram uma base social nas classes populares, em especial no campesinat o pobre.
17
Apud Lionel Kochan. A Formação da Rússia M oderna. Lisboa, Est ampa, 1962.
18
Simon Sebag M ont efior e. Os Románov (1613-1918). São Paulo, Companhia das Let ras, 2016.
14
PANESLAVISM O E POPULISM O
Depois de sufocada a revolta dezembrista, em 1826 a Rússia invadiu a Pérsia, numa tentativa de
recolocar o exército imperial nos seus trilhos e sob o comando inconteste do Imperador. O Czar
queria também expandir seu território e conseguir uma saída ao Golfo Pérsico, aos “ mares
quent es” , que at é então haviam estado fora do alcance do Império. Os russos infringiram uma
dura derrota ao Irã em 1827, em consequência do que foi firmado o tratado de Turkomanchai,
concedendo à Rússia a terra ao norte do rio Aras que demarca atualment e o limite entre os dos
países. A nova calmaria política era só aparente: as agit ações revolucionárias continuaram na
Europa na década de 1830, at ingindo as fronteiras do Império. Na Polônia, a revolução
democrática assumiu o caráter de um movimento pela independência. Após o Congresso de Viena,
a maior parte do país ficara submetida à Rússia; Polônia estava subm etida desde 1815 ao controle
conjunto da Áustria, da Rússia e da Prússia. Aproveitando-se da organização de um exército para
intervir na Bélgica, a nobreza de Varsóvia, com auxílio de forças liberais francesas, se rebelou contra
a dominação russa.
Em pouco tempo, uma revolução nacionalista atingiu toda Polônia. As tropas de Nicolau I
esmagaram, contudo, os patriotas poloneses. A derrota, seguida de violenta repressão, decorreu
também da falta de ajuda externa e da cisão entre os revolucionários, divididos entre republicanos
burgueses e monarquistas com base na pequena nobreza. Na sequência da derrota da “ revolta de
novembro” as instituições autônomas polonesas e os acordos de autonomia administrativa com a
Rússia foram abolidos e iniciou-se um processo forçado de russificação: ainda assim, mesmo após
a anexação formal ao Império Russo, o território polonês mant eve algumas formas autônomas e
continuou a ser chamado informalmente de Congresso da Polônia. Em que pese sua circunstancial
derrota, a questão da independência polonesa se transformou em bandeira de toda a democracia
europeia. Os comunistas se solidarizaram com as reivindicações nacionais polonesas. Na
fundação da Prim eira Internacional (Associação Internacional dos Trabalhadores) a questão da
independência da Polônia foi um divisor de águas e de princípios com relação à democracia
burguesa e pequeno-burguesa. Engels defendeu que o internacionalismo proletário passava, na
Europa, t ambém pela defesa do nacionalismo irlandês e polonês contra os imperialismos inglês
e russo. Tal reconheciment o radicava, não apenas na experiência de organização de um Estado
nacional anteriorment e vivida pelos poloneses, mas também no impact o que a restauração do
seu Estado provocaria sobre o “ sistema de poder” europeu hegem onizado pela aliança entre a
Inglaterra e a Rússia imperial.
Em 1839, no Oriente M édio, diante da expansão egípcia comandada por M ehmet Ali, Grã
Bretanha, Rússia, Áustria e Prússia, enfrentadas com a França, agiram sust entando um Império
Otomano debilitado contra um eventual poderoso Egito, formando uma aliança que exigiu de
M ehmet, apoiado pelos franceses, o abandono de suas pret ensões ao nort e do Egito (a Síria e o
Líbano). A resistência de M ehm et Ali levou às forças combinadas da aliança europeia a atacar a
frota egípcia e destruí-la, pondo um fim à ocupação egípcia da Síria e do Líbano. Para a Rússia,
esse era um passo em direção de sua expansão para as regiões eslavas no Bálcãs, ainda
pert encentes ao Império Otomano. O Czar, no mesmo período, multiplicou as compras de terras
na Palestina e reforçou a opressão cont ra as minorias nacionais de seu Império. Na década
seguint e, a questão polonesa voltou à baila: em Cracóvia, os insurretos poloneses conseguiram
uma vitória contra os russos em 22 de fevereiro de 1846, criando um governo nacional que
publicou um manifesto pela abolição das cargas feudais.
A insurreição, no entanto, foi esmagada no com eço de março desse ano pelas tropas russas; em
novembro, a Áustria, a Prússia e a Rússia subscreveram um t ratado sobre a integração de
Cracóvia ao Império Austríaco. A Rússia se transformava cada vez mais num fator da política
europeia; o papel internacional reacionário da Rússia na conjuntura revolucionária de meado s
do século XIX foi decisivo: durante as revoluções de 1848, foi com o apoio militar da Rússia que
a Áustria finalment e derrotou os húngaros em 1849 (quando as tropas do Czar ocuparam
15
Budapest e, a capital húngara que as tropas imperiais austríacas tinham sido incapazes de
recuperar) e os mant eve submetidos ao Império Austríaco. As revoluções húngara e veneziana
(na Itália) foram as últimas a ceder dentro do ciclo revolucionário de 1848. O retalham ento e
submissão da Polônia continuaram sendo, entretant o, a questão chave das relações políticas
internacionais na Europa continental: na segunda metade do século XIX, a independência da
Polônia foi para os democratas europeus uma causa tão sagrada quanto o fora a independência
da Grécia do Império Otomano na primeira metade do século. Em 1848, M arx e Engels
esperavam que os países atingidos pela revolução fizessem uma frent e comum contra a Rússia,
sustent áculo da reação na Europa. O Czar reduziu severament e os poderes autônomos polacos
depois da revolt a de 1863, fazendo da Polônia um est ado fantoche do Império russo, dividido
em províncias: a “ autonomia polonesa” ficou reduzida a uma ficção.
19
Nikolai Gogol. Les Soirées du Hameau. París, Gallimard-Folio, 1989.
16
uma espécie de bíblia do paneslavismo; Nikolai Strakhov, do seu lado, escreveu e publicou uma
obra chamada A Luta Contra o Ocidente. A luta da Rússia, evidentem ent e.
Os dem ocratas europeus eram visceralm ent e opost os ao paneslavismo. Nas lut as nacionais de
meados do século XIX, M arx e Engels apoiaram a destruição dos impérios multinacionais e a
constituição das grandes nacionalidades (Itália, Alemanha, Hungria e Polônia). Rejeitaram em
bloco as aspirações nacionais dos povos eslavos do Im pério Austro-Húngaro e do Império Russo
(com exceção da Polônia), qualificados por Engels como “ povos sem hist ória” . Engels citou o
exemplo " dos rom enos da Valáquia, que nunca tiveram história nem a energia necessária para
tê-la, e que teriam a mesma importância que os italianos, dotados de uma história de dois mil
anos e de uma vitalidade nacional incomparável" . M arx e Engels distinguiram os " povos
históricos" (aqueles que tiveram a energia suficient e para constituir-se em Estado nos períodos
históricos pré-capitalistas) dos “ povos sem história” (carent es dessa característica). Eric
Hobsbaw m desculpou Engels (" totalment e errado a respeito dos tchecos e outros povos" ) por
ser " um puro anacronismo criticá-lo por sua postura essencial (a do direito nacional dos " povos
históricos" ) a qual era part ilhada por qualquer observador imparcial de meados do século XIX" .20
Num trabalho crítico a respeito das análises de Engels, Roman Rosdolsky sust entou que “ essa
concepção (que remonta a Hegel) era insustent ável e estava em contradição com a concepção
mat erialista da hist ória que o próprio Engels contribuiu a criar, pois em vez de derivar a essência
das lutas entre nacionalidades e dos movimentos nacionais das condições materiais de vida e
das relações de classe (cont inuament e mudadas) dos povos, encontrava sua ultima ratio no
conceito de ‘viabilidade nacional’, com ressonâncias metafísicas, e que não explica
absolut ament e nada” .21 Em Hegel, a noção de “ povos sem história” rem etia à racionalidade do
devir histórico: “ Na existência de um povo, o objetivo essencial é ser um Estado e manter-se
como tal. Um povo sem formação polít ica não tem propriament e história; sem história existiam
os povos antes da formação do Estado, e outros também existem hoje como nações
selvagens” . 22
20
Eric J. Hobsbawm. Nações e Nacionalismo desde 1780. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1992.
21
Roman Rosdolsky. Friedrich Engels y el Problema de los Pueblos sin Hist oria. M éxico, Siglo XXI-Pasado y
Present e, 1980.
22
G.W.F. Hegel. Lecciones sobre Filosofía de la Hist oria Universal . M adri, Revist a de Occident e, 1974.
17
O que dizer, ent ão, sobre os eslavos? A questão dividiu os intelectuais ocidentais, inclusive os
dem ocratas. A opinião de Karl M arx sobre o paneslavismo, doutrina que det estava, repudiando-
a em autores e at ivistas como M ikhail Bakunin,23 era a de que sua coloração “ revolucionária”
era uma mistificação que visava ocupar uma part e da Alemanha para restituí-la ao mundo
eslavo; referindo-se ao decadent e Império Otomano, escreveu: “ Não se trata de det erminar
quem governará em Constantinopla ou quem reinará sobre a Europa inteira [...] A luta por
Constantinopla põe a questão de se saber se a cult ura ocident al vai ceder o passo à cultura
bizantina ou se o antagonismo entre ambas se irá acentuando e virá a revestir formas mais
terríveis do que nunca [...] A raça eslava, que durante muito t empo foi dividida pelas suas
querelas intestinas, repelida para Leste pelos alemães, submet ida em parte pelos turcos, os
alemães e os húngaros, encontrou-se, graças à súbita expansão do paneslavismo a partir de
1850, rapidament e reunida. Tendo de defender pela primeira vez essa unidade, seria levada a
declarar uma guerra sem tréguas às raças latina, céltica e germânica, que governam o
continent e. O paneslavismo não é um movimento que aspire apenas à independência nacional,
é um movim ento que, volt ando-se contra a Europa, aniquilaria os frut os de mil anos de Hist ória.
Não poderia chegar aos seus fins sem riscar do mapa a Hungria, a Turquia e uma boa parte da
Europa. E, para conservar esses resultados, se conseguisse obtê-los, o paneslavismo deveria
subjugar a Europa. O que não era mais do que uma ideologia tornou-se hoje um programa, ou
melhor, uma ameaça política apoiada por 800 mil baionetas” . 24
Aleksandr Herzen (1812-1870), revolucionário social e eslavófilo, antes de assumir essa posição
tinha sido entusiasta do ocidentalismo, primeiro à maneira de Hegel e, em seguida, de Ludw ig
Feuerbach. A mudança de Herzen ocorreu depois do autor, no exílio, ter sofrido a ressaca da
revolução frustrada de 1848, passando a detestar o “ m ercantilismo ocidental” : “ Como antes
com M azzini, e também com M ichelet, Herzen se separou dos melhores representant es da
primavera dos povos, que em finais de 1851 jazia, desflorada e caduca, sob a tempestade da
reação e o peso de seus próprios erros e de uma persistente miopia. Não era para Herzen difícil
dem onstrar que a crise não tinha um carát er nacional, que não dizia respeito a esta ou aquela
pátria, mas que afetava a toda civilização moderna” . 25 Herzen, romântico socialista, sonhava
23
M ikhail Bakuni n (1814-1876) é considerado o principal fundador e expoent e hist órico do anar quismo.
Sua t rajet ória em diversos países europeus t eve import ant e influência, em especial na It ália e na Suíça.
Passou t am bém pela Ásia ext remo-orient al e pela Am ér ica. Em sua Rússia nat al passou t rês anos em uma
cela da fort aleza de São Pedr o e São Paulo, e out r os quat ro anos nas masmorr as subt errâneas do cast elo
de Shlisselburg. Saiu livre depois de cont rovert idas “ confissões” ao Czar. Sua oposição a M arx e à dit adura
do pr olet ariado era uma oposição a qualquer dit adura revolucionária: “ Sob qualquer ângulo que se est ej a
sit uado para considerar est a quest ão, chega-se ao mesmo result ado execr ável: o governo da imensa
maioria das massas populares se f az por uma minoria privilegiada. Est a minoria, porém, dizem os
marxist as, compor-se-á de operários. Sim, com cert eza, de ant igos operários, mas que, t ão logo se t ornem
gover nant es ou repr esent ant es do povo, cessarão de ser operár ios e se porão a observar o mundo
prolet ár io de cima do Est ado; não mais represent arão o povo, mas a si mesmos e suas pret ensões de
gover ná-lo. Quem duvida disso não conhece a nat ur eza hum ana” , ao que opunha “ uma rebelião universal
de part e das pessoas e organização livre das mult idões de t rabalhadores de baixo para cima” . Suas
opiniões ant issemit as f oram consideradas part e de um preconceit o geral da época - “ Uma seit a de
exploradores, um povo de sanguessugas, um único parasit a devorador est reit a e int imament e ligado, não
só at ravés das front eiras nacionais, mas t ambém em t odas as divergências de opinião polít ica… cuja
paixão mercant il const it ui um dos principais t raços de seu carát er nacional” – mas eram part icularment e
singificat ivas num país em que o ant issemit ismo, além de amplam ent e difundido, era uma polít ica da
aut ocracia czar ist a.
24
Karl M arx. La Russie et l’Europe. Paris, Gallim ard, 1954. Exist e uma colet ânea com ent ada (em t om
ant ieslavo) dos f ragment os de M arx dedicados à Rússia: M aximilen Rubel (org.). M arx y Engels cont ra
Rusia. Buenos Aires, Libera, 1965.
25
Franco Vent ur i. Prólogo. In: Aleksandr Herzen. El Desarrollo de las Ideas Revolucionarias en Rusia.
M éxi co, Siglo XXI, 1979.
18
com uma f ederação russa das comunas camponesas livres, inspirado nas teses do historiador
prussiano August von Haxthausen que descreveu idilicament e o coletivismo agrário das aldeias
russas do tempo de Nicolau I, as obshina , onde as assembleias camponesas (mir ) tinham a
missão de gerir coletivam ent e a terra comum e a de arbitrar as disputas entre part iculares.
Aleksandr Herzen
Para os ocidentalistas, ao contrário dos eslavófilos, Rússia era um país basicament e europeu que
devia seguir o desenvolvim ento ocidental; seus adversários insistiam em que Rússia não era nem
europeia nem asiát ica, mas uma civilização única, sem igual, que devia seguir seu caminho
próprio; finalment e, os “ eurasianistas” defendiam que a Rússia era uma síntese de Europa e
Ásia, do princípio eslavo europeu com o princípio turco-mongólico asiático, e que dessa síntese
provinha sua força:27 “ A eslavofilia se havia transformado na cobertura mística de uma opinião
pública conservadora, mas desejosa de progresso, difundida nas camadas médias da aristocracia
da terra. A deformação do passado, a idealização da civilização russa, o âmbito religioso do
movimento, induziram os eslavófilos a confront os esquemáticos entre Rússia e Ocident e que
desaguaram em um sentim ento de oposição irredutível e de superioridade nacional. Os
26
Friedr ich Engels. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Est ado . Rio de Janeiro, Bert rand
Brasil, 2002.
27
Angelo Segr illo. Rússia: Europa ou Ásia? Curit iba, Prismas, 2016.
19
eslavófilos, contudo, não eram hostis a um progresso que respeitasse as estruturas tradicionais:
desejavam ‘as máquinas, não as ideias, do Ocidente’ (o que era) uma adaptação ao capitalismo
que estava penetrando na Rússia às relações sociais que eles consideravam fatores de
estabilidade, dissimulando essa contradição sob uma torrent e de palavras” . 28
Fiodor Dostoievski
A frota russa destruiu a frota turca na Bat alha de Sinop, provocando uma comoção política
internacional. O Reino Unido, já sob o governo da rainha Vitória, t emia que uma possível queda
de Constantinopla para as tropas russas pudesse lhe ret irar o controle estrat égico dos estreitos
de Bósforo e de Dardanelos, tirando-lhe as comunicações com a Índia. Por outro lado, Napoleão
III da França mostrava-se ansioso para mostrar que era o legítimo sucessor de seu tio, buscando
obter vitórias militares externas. Depois da derrota naval dos turcos, as duas nações, França e
Inglaterra, declararam guerra à Rússia no ano seguinte, seguidos pelo Reino da Sardenha
(governado por Vittorio Emanuele II e o seu primeiro-ministro, o Conde de Cavour, futuro
unificador da Itália). Em t roca, o auxiliado Império Otomano permitiria a entrada de capit ais
28
Roger Por t al. Gli Slavi . Roma, Riunit i, 1975, p. 310.
20
ocidentais. O conflito iniciou-se efetivament e em março de 1854. Em agosto, Turquia, com o
auxílio de seus aliados ocidentais, já havia expulsado os russos dos Bálcãs.
De forma a encerrar o conflito, as frotas dos aliados convergiram sobre a península da Crimeia,
desembarcando suas tropas a 16 de set embro de 1854, iniciando o bloqueio naval e o cerco
terrestre à cidade portuária fort ificada de Sebastopol, sede da frota russa no mar Negro. Embora
a Rússia fosse vencida em diversas batalhas, o conflito arrastou-se com a recusa russa em aceitar
os t ermos de paz. A guerra t erminou com a assinatura do trat ado de Paris de 30 de março de
1856. Pelos seus termos, o novo Czar, Alexandre II da Rússia, devolvia o sul da Bessarábia e a
embocadura do rio Danúbio para o Império Otomano e para a M oldávia, renunciava a qualquer
pret ensão sobre os Bálcãs e ficava proibido de mant er bases ou forças navais no mar Negro. Por
outro lado, o Império Otomano, representado por Ali-Pachà Emin, era admitido na comunidade
das potências europeias, tendo o sultão se compromet ido a tratar seus súdit os cristãos de
acordo com as leis europeias. A Valáquia e a Sérvia passaram a estar sob a “ proteção” franco-
inglesa. Isso fort aleceu as ambições inglesas sobre o Orient e Próximo.
A indústria militar e o numeroso exército russo não haviam impedido que, na guerra da Crimeia,
Rússia fosse derrotada pelos corpos expedicionários franco-britânicos, que a impediram de
at ingir Constant inopla e de ter acesso ao M editerrâneo, isto é, às “ águas quent es” , motivo
principal de seu expansionismo, que se apresentava cobert o por uma ideologia de reconquist a
cristã dos lugares santos.29 A guerra da Crimeia colocou pela primeira vez o descompasso com a
civilização ocidental: o Czar Alexandre II pôde então avaliar as debilidades de seu império e
compreender que a mera inércia era incapaz de proporcionar as gloriosas vitórias que sonhava.O
primeiro grande fracasso do expansionismo russo t eve fortes repercussões internas. O czarismo,
impressionadompelaeficiência militar ocident al, passou a importar técnicos e especialistas
estrangeiros na arte militar, até começar a formá-los local e tardiament e no século XIX, assim
como também import ou quadros para a crescent e burocracia estatal. Os recursos materiais para
isso eram extraídos do próprio país, o que significava a imposição de impostos enormes às
classes burguesas em vias de formação, e principalment e aos camponeses e pequenos
com erciant es, que se viam forçados a escolher entre a fome e a fuga, o que levou a que se
registrasse até uma diminuição da população russa.
Encarada como uma questão de segurança bélica, a “ modernização” russa reforçou as bases
históricas do atraso econômico: “ O at raso do conjunto do processo está suficient em ent e
caract erizado pelo fato de a lei da servidão, nascida no final do século XVI, e estabelecida no
século XVII, atingir seu auge no século XVIII, e ser juridicamente abolida apenas em 1861” : 30 “ A
partir desse mom ento abriu-se um novo período de desenvolvimento econômico do país,
caract erizado pela rápida formação de uma reserva de trabalho ‘livre’, pelo rápido alastrament o
do sistema ferroviário, construção de portos, afluxo incessant e de capitais europeus,
europeização da técnica industrial, crescim ento dos incentivos e do crédito, o aparecim ent o do
ouro no mercado, um forte prot ecionismo e a inflação da dívida pública” 31 - tudo isso sob o forte
controle burocrático e policial do Estado.
Em 1881, o Czar Alexandre II foi assassinado por um dos grupos populistas, os pervomartovtsky:
as forças conservadoras russas uniram-se em torno do novo Czar, Alexandre III, que retomou
com vigor o regim e monárquico absolutista. Alexandre III concedeu grandes poderes à polícia
política do governo (Okhrana), que exercia severo cont role sobre os setores educacionais, sobre
a imprensa e sobre os tribunais de justiça. Alexandre III faleceu em 1894. A pressão fiscal estatal
continuou aumentando: entre 1885 e 1913, em virtude do esforço para o fortalecimento do
setor estatal, verificou-se na Rússia um aum ento na tributação de 1,78 vezes per capita (78%).
29
Orlando Figes. Crimea. The last Crusade. Londr es, Penguin Books, 2011.
30
Leon Trot sky. Hist oire de la Révolut ion Russe. Paris, Seuil, 1950, p. 42.
31
Leon Trot sky. 1905. Paris, Seuil, 1969, pp. 26-27.
21
No imposto indireto, o imposto sobre consumo, o aumento foi de mais de três vezes, com um a
política de substituição de impostos diretos por indiretos, os que penalizavam o consumo
popular; em 1885, os impostos indiretos eram 37,91% do tot al, em 1913 eles perfaziam 64,22%,
onerando a população trabalhadora, em especial os camponeses. A percentagem das receitas
destinadas ao set or militar, por sua vez, foi sempre, durante os séculos XVII, XVIII e XIX, superior
a 50%, chegando até 85%. 32 Quando o Estado encont rou a possibilidade de completar seu
financiamento através de empréstim os ext ernos, a pressão financeira da Europa ocident al
somou-se à pressão milit ar: “ O financiamento da industrialização russa diferiu do Japão; na
Rússia foi maciça a entrada de capital estrangeiro, não somente por m eio de empréstimos
oficiais e na const rução ferroviária, mas também por investimentos diretos na indústria e por
emprést imos aos bancos russos” .33
Essa era a diferença entre o capitalismo “ tardio” (Japão) e o “ periférico” (Rússia). Ao lado da
inflação da dívida pública, o Estado russo continuava absorvendo, comparado ao Ocident e
capitalista, uma porção relativament e muito maior da fortuna pública, minando as bases de
desenvolvim ento das classes burguesas e retardando o processo de diferenciação social das
classes possuidoras, configurando “ um Estado fort e, centralizado e burocrático, carent e de
mediação de qualquer grupo social capaz de constituir uma pont e social, econômica e política
entre ele e as massas camponesas” . 34 Esse Est ado, que ret ardava o desenvolvim ent o da
burguesia, procurava simult aneam ent e apressar sua formação, pois necessitava seu apoio:
“ Para existir e dominar, o Estado tinha necessidade de uma organização hierárquica de estados
(grupos da sociedade pré-capitalista que possuem direitos e deveres particulares definidos por
lei). Daí porque, apesar de minar as bases econômicas que t eriam permitido a hierarquização, o
Estado procurava impô-la através de medidas governamentais” . 35 O “ capitalismo de estado”
czarista, misturado com a miséria e o atraso agrários da Rússia, suscit ou contradições sociais e
políticas mais agudas do que as existent es na Europa ocidental.
Foi a intelectualidade russa, a intelligentsia , e não a raquítica burguesia nacional, a camada social
sensível ao aguçamento das cont radições sociais e políticas, t anto quanto ao carát er
insuportável da repressão e do absolutismo czarista, pois via-se tolhida nas suas bases
elem ent ares de exist ência. Entre os dekabristas (corrente filosófica vcinculada à nobreza liberal
“ dezembrista” ) havia várias t endências ideológicas e políticas: desde a nobreza liberal da
Sociedade do Norte (Trubetskoi, Rylev) até as ideias jacobinas da Sociedade do Sul (Pestel ) e da
“ Sociedade dos Eslavos Unidos” . Os pontos de vista dos “ dekabristas” sobre os problemas
fundam entais da filosofia eram het erogêneos: havia ent re eles elementos influenciados pelo
idealismo clássico alemão, por sobrevivências maçônicas e por conceitos próprios ao
mat erialismo francês do século XVIII. Na sua filosofia social, era predominante a influência da
filosofia dos " filósofos ilustrados" franceses do século XVIII (M ontesquieu, M ably, Rousseau,
Holbach, Helvetius) e a de Radichtchev.
Os princípios sociais básicos e comuns dos “ dekabristas” eram: o regim e de t irania (a autocracia)
existente, o fanatismo (o domínio da igreja) e a servidão (o direit o feudal) deveriam ser
destruídos. Em seu lugar era preciso construir uma sociedade baseada nos princípios da
natureza e da razão, traduzidos nas leis naturais, iguais para todos e regidas pelo direito natural,
a lei básica da natureza. Essas ideias reflet iam tardiament e as concepções da burguesia
revolucionária francesa e seus princípios de liberdade e igualdade. Ideias análogas desenvolveu,
de forma poética, o grande poeta russo da época, amigo dos dekabrist as, A. S. Pushkin, na ode
32
W. E. M osse. An Economic Hist ory of Russia. Londres, I. B. Tauris, 1996.
33
Carlos A. Barbosa de Oliveira. Processo de Indust rialização. Do capit alismo originário ao atrasado. São
Paulo, Edit ora Unesp, 2003, p. 254.
34
Eric J. Hobsbawm. A Era dos Impérios 1875-1914. Rio de Janeiro, Paz e Terr a, 1989.
35
Leon Trot sky. Op. Cit , p. 20.
22
" Liberdade" (de 1817), na qual, dirigindo-se ao Czar, escrevia: " Senhor; a vós, a coroa e o trono
/ Dá-lhe a Lei, e não a Nat ureza / Viveis em cima do Povo / M as em cima de vós vive a Lei " . Na
organização mais radical dos dekabrist as, a “ Sociedade dos Eslavos Unidos” , havia influência
forte do mat erialismo francês: P. I. Borisov e A. P. Bariatinski chegaram at é a formulação do
at eísmo. Depois do ext ermínio dos dekabristas pelo governo czarista, alguns deles, quebrados
pelos t ribunais e pelos trabalhos forçados, afastaram-se do mat erialismo, mas a maioria
conservou seus pont os de vista filosófico-revolucionários.36
Foi nesse marco de evolução acelerada que o democratismo burguês foi superado antes que
pudesse expor suas propostas e horizonte histórico. A força do absolutismo cegava o tímido
liberalismo russo ao ponto de lhe fazer negar qualquer possibilidade de revolução na Rússia. No
início do século XX, e contra isso, foi prognosticado: “ Quanto maior a centralização do Estado e
independência em relação às classes privilegiadas, mais rápida será sua transformação em
organização absoluta elevada acima da sociedade. Quanto maiores forem as forças militares e
financeiras de uma organização desse tipo, maiores serão as chances dela prolongar a sua
existência. O Estado centralizado... com um exército permanent e de um milhão de homens pôde
continuar existindo por muito tempo depois de ter deixado de satisfazer as exigências mais
elem ent ares do desenvolvim ento social (...) O poder administrativo, milit ar e financeiro do
absolut ismo, que lhe possibilitou existir a despeit o da evolução social, longe de impedir toda
revolução, como acreditava o liberalismo, fazia da revolução, ao contrário, a única questão
admissível, sendo que, quanto maior o abismo entre o poder e as massas populares engajadas
no novo movimento econômico, mais radical deveria ser o caráter dessa revolução” . 39
36
B. Zenkovsy. Hist oire de la Philosophie Russe. Paris, Gallimard, 1953.
37
Em Pais e Filhos, Ivan Turgueniev encenou uma discussão filosófica sobr e Hegel, animada por um
agit ador-professor, Bazarov, em um pequeno sarau celebrado no salão da casa de um propr iet ário rural
de uma região af ast ada.
38
Guy Plant y-Bonjour. Hegel e Il Pensiero Filosofico in Russia (1830-1917). M ilão, Angelo Guerini, 1995, p.
14.
39
Leon Trot sky. Op. Cit ., pp. 20-23.
23
Inglaterra. Na geração post erior, a intelect ualidade judia de esquerda incorporou-se em grande
parte à socialdemocracia russa.
O Narodnaia Volia surgiu por volta de 1870; seus prosélitos eram int electuais militantes que
pret endiam instaurar o poder e o cont role coletivos da economia agrária pelas comunidades
rurais, derrubando o autoritarismo czarista. O objetivo dos populistas era menos a democracia
política do que promover a just iça e acabar com as desigualdades sociais. O seu movim ento ficou
conhecido como o narodnichestvo, derivado da expressão russa " Khoj denie v narod" , " ir para o
povo" . Os líderes populistas provinham em geral da classe média ou alta: inspiravam-se nos
anarquistas ocidentais, pensando poder levar a Rússia ao socialismo devido à existência de
comunidades rurais organizadas em torno do mir (unidade de produção comunal agrária) que
facilitariam sua implantação. A maior parte deles não tinha qualquer afinidade social com os
lavradores russos e sua cultura, e muitas vezes nem sequer falavam sua língua, mas t inham a
certeza de que no campesinato, na comunidade aldeã, est ava a base para uma nova sociedade
mais just a e harmônica, pois os camponeses ainda não haviam sido atingidos pela corrupção
moral e material do capitalismo ocidental.
Os populistas se inspiravam m enos nas teorias dos socialistas europeus seus contemporâneos
do que em Jean-Jacques Rousseau e nas ideias que inspiraram a Revolução Francesa: o homem
era bom em sua essência, a sociedade é o que o corrompia. Além da busca pela just iça social e
da esperança no campesinato, havia muitas divergências entre os populistas. Um setor mais
radical do movim ent o pensava que o povo deveria ser forçado, se preciso fosse, a se revolt ar.
Propunham a destruição violenta do Estado czarista e depois conduzir o processo que levaria a
sociedade para um mundo m elhor, era uma espécie de blanquismo de base pequeno-burguesa
e de escopo agrário. Outro setor, mais moderado, condenava essa post ura. Aleksandr Herzen
fazia parte da segunda ala. Pensador da geração dos anos de 1840/ 1850, não compartilhava a
ideia de um movim ent o violento, o povo deveria ser educado e conscientizado da necessidade
da revolução. Temia que o processo revolucionário, conduzido por uma minoria de homens
esclarecidos, independent emente de suas boas int enções, levasse à ditadura de uma elite
intelectual, “ tão inaceitável quanto àquela do czar” .40 Tchernichevski, autor do romance Que
40
“ Por que a liberdade é valiosa? Porque const it ui um fim em si, porque é o que é. Reduzi-la a um sacrifício
a algo mais significa simplesment e realizar um at o de sacrifício humano” . “ Quem t erminará conosco? A
senil bar bárie do cent ro ou a selvagem bar bárie do comunismo, o sabre sangrent o ou a barbárie
ver mel ha?” . “ O com unismo varrerá nossas inst it uições, que serão, como diz delicadam ent e Proudhon,
liquidadas. Lam ent o (a mort e da civilização). M as as massas não a lament arão, as massas a quem ela não
t rouxe nada além de lágrimas, penúria, ignor ância e humilhação” (Aleksandr Herzen. Op. Cit.). Herzen era
24
Fazer? e um dos mais influentes pensadores da democracia revolucionária russa do século XIX,
também se indagava sobre a questão. Segundo Joseph Frank: “ Nenhum livro da literatura
moderna (com exceção, talvez, de A Cabana de Pai Thomas) pode competir com O Que Fazer?
em t ermos de efeito sobre vidas humanas e de poder de fazer história. O romance de
Tchernichevski, mais que O Capit al de M arx, forneceu a dinâmica emocional que eventualm ent e
desembocou na Revolução Russa” .41
O pensam ento revolucionário russo, em todas suas fases, não foi simples transposição ou
adaptação de ideias elaboradas alhures (embora reconhecesse sua influência). Para autores
marxist as russos, “ Narodnaia Volia representou a cont inuidade de todo o processo precedent e
do pensamento socialista populist a russo... O movimento populista combat eu sempre contra a
autocracia e imaginou a nova Rússia como um país libertado do despotismo czarista (...) Os
revolucionários russos pensavam o socialismo como uma sociedade sem classes onde todos
trabalhariam e o trabalho seria não só um meio de sobrevivência, pois permitiria aos homens
usufruir a vida mais plenament e. O trabalho intelect ual e físico criaria um homem novo... O
programa socialista de Narodnaia Volia era utópico, irrealizável naquele período concreto, em
aquelas condições concretas, com os meios e modos propostos pelos revolucionários. Sua
realização teria tido consequências que os socialistas russos estavam longe de esperar e desejar:
um desenvolvimento muit o mais rápido e completo das relações de produção burguesas, sem o
obstáculo de sobrevivências feudais ou escravocratas. A utopia socialista dos revolucionários
camponeses foi, em que pese eles próprios, uma expressão indireta de aspirações radicais em
direção de uma transformação democrático-burguesa” . 42 M enos enfático na questão e,
sobretudo, menos esquemát ico, Lênin afirmava que os populistas “ viam para onde se dirigia o
movimento real e se adiantavam de fato a esse desenvolvim ento” . O populismo russo era
menos uma utopia do que uma ant ecipação .
Na tent ativa de se aproximar dos camponeses, os jovens populistas urbanos aprenderam a falar
como eles, a se vestir como camponeses e a dançar com eles. Ao chegar às vilas do campo,
vestidos apropriadamente como lavradores, cantando e dançando como tinham aprendido,
chegaram a ser tomados por bruxos pelos camponeses; muitos desses intelectuais citadinos
foram maltratados pelos camponeses, alguns foram julgados em improvisados tribunais locais.
A Okhrana (polícia secreta czarista) respondeu também com repressão à agitação populist a:
revolucionários foram espancados, presos e exilados. Ainda assim, os estudant es populistas
continuavam a se revoltar contra a situação social iníqua do país, buscando agir para libertar os
camponeses das desigualdades sociais. Esta forma de pensar, de criticar moralment e a
sociedade foi “ a principal contribuição dos russos à mudança social no mundo” .43 Na segunda
metade do século XIX, milhares de estudant es urbanos, inspirados pelo populismo, se
deslocaram para o campo, com vistas a organizar as revoltas camponesas, que periodicament e
sacudiam diversas regiões russas, permanecendo, no entanto, isoladas entre si. Em breve eles
foram confrontados com uma realidade rural que era bem diferent e da idealizada. Os narodniks
tentaram ensinar aos lavradores o imperativo moral da revolta: não encontraram neles quase
nenhum apoio. Os idealizadores do movimento concluíram que os camponeses russos eram
refratários à sua propaganda e às suas dout rinas. Terminado o capítulo da agitação no campo,
alguns desses intelectuais enveredaram por uma nova estrat égia: o terror político, com a criação
do Zêmlia i Vólia em 1876. A 6 de dezembro de 1876, o movimento populista organizou a
primeira manifestação pública opositora ao cazrismo da moderna história russa.
de or igem nobre, possuía a mesma raiz familiar da dinast ia reinant e, os Románov, que governavam o país
desde 1613.
41
Apud Angelo Segrillo. Int rodução. In: Nikolai Tcher nichevski. O Que Fazer? Curit iba, Pr ismas, 2015.
42
Valent ina Aleksandrovna Tvardovskaia. El Populismo Ruso. M éxi co, Siglo XXI, 1978, pp. 15-16.
43
Isaiah Berlin. Pensadores Russos. São Paulo, Companhia das Let ras, 1998.
25
O zênit e do populismo foi vivido em 1877. Um líder narodnik , Stepniak, escrevia em 1876 a seu
amigo Lavrov: " Não conseguimos nem sequer mudar o pensamento de um entre 600
camponeses, quanto mais de um em sessenta" . “ O resultado foi a criação de uma est rutura
partidária nesse mesmo ano, que estava mais centralizada do que os círculos frouxos dos anos
1860. Ela recebeu o nome de Terra e Liberdade, e deu menos importância à propaganda abert a,
para se concentrar nas atividades conspirativas clandestinas” . 44 Depois dos métodos da
revolução social, os narodniks se viraram para os métodos da conspiração, do terror e do golpe
de Estado em nom e do povo. Os escritos do populista Piot r Tkatchov marcaram esta transição.45
O açoitam ent o dos presos políticos levou à militante narodniki Vera Zasulich a expressar a
indignação geral em 1878, com um atentado contra o general Trepov, responsável principal e
visível pela repressão política. 46 Seu exemplo repercutiu na intelect ualidade revolucionária: o
que com eçou com o um ato de vingança foi elevado ao estatuto de sistema em 1879-1881. 47
As reformas executadas pelo Czar Alexandre II (ent re 1861 e 1865), como a abolição da servidão
da gleba, a criação das câmaras municipais ( zemstvos), a atenuação da censura na imprensa e
nas universidades, haviam sido provocadas pela crescente agitação int erna e o fracasso da
política externa do czarismo. As reformas, devido à sua t imidez, geraram um descont entament o
ainda mais amplo. Desgostaram à nobreza porque tornaram os camponeses " insolent es" , e a
est es, porque tiveram que se endividar para obter sua autonomia; à intelligentsia porque as
reformas haviam sido insuficientem ent e profundas, não mudando a essência autocrát ica do
regime czarist a. Foi, desse modo, das camadas “ esclarecidas” da população que partiu a
tentativa de derrubar o regime por um m ovim ento não palaciano. Em 1881 o Czar Alexandre II
foi morto por uma jovem militante russa, Sofia Perovskaia. O terrorismo, no entanto, apenas
reforçou ainda mais o aparto estatal e justificou a intensificação da opressão e da censura. É
nest e cont exto que o marxismo surgiu como uma nova alternativa política. Engels chegou a
escrever a Plekhánov (fundador do marxismo russo), em 1895: “ Um narodnik , um ex terrorist a,
poderia terminar facilment e como partidário do czarismo” . Anos depois, Lênin chamou os
terroristas do Partido Social Revolucionário de “ radicais burgueses com bombas no bolso” .
44
Orlando Figes. Op. Cit .
45
Franco Vent uri. Il Populismo Russo. Turim, Einaudi, 1952.
46
Vera Ivánovna Zasulich (1849-1919) foi milit ant e dest acada do moviment o populist a e, mais t arde,
pioneir a da socialdemocracia na Rússia. Em 1883, exilada na Suíça depois de libert ada da prisão, fundo u
o grupo “ Emancipação do Trabalho” , primeiro grupo socialist a marxist a r usso, junt o com Giorgui
Plekhánov e Pável Axelrod.
47
Vera Zasulich. The t error ist t endency in Russia. Hist orical M at erialism , Vol. 23 nº 4, Londr es, 2015.
26
M ODERNIZAÇÃO E LUTA DE CLASSES
Embora vicejasse uma ideologia de cunho tradicionalista e paneslavista, a modernização
econômica e política capitalista (ou “ ocidental” , como era chamada) se impunha no Império dos
czares, principalment e diante dos perigos e am eaças externas. Ela det erminou as peculiaridades
de sua formação econômico-social cont emporânea. Foi analisando essas particularidades que o
pensam ento social russo, através de um caminho cheio de obstáculos, fracassos e contradições,
superou suas matrizes iluministas, hegelianas ou ainda positivistas. Começando por constatar
que, na transformação capit alista da “ periferia” do planeta, ausência de democracia política, de
dominação social burguesa e de formas de produção modernas não eram contraditórias com o
avanço do capitalismo: não eram anomalias históricas, mas formas específicas, particulares, da
expansão mundial do capital. Nicolau II, o sucessor de Alexandre III, procurou facilitar a ent rada
de capit ais estrangeiros para promover a industrialização do país, capitais oriundos
principalment e da França, da Alemanha, da Inglaterra e da Bélgica. O desenvolvim ento
capitalista russo foi ativado pelo início da exportação do petróleo, a implant ação de estradas de
ferro e da indústria siderúrgica. Os investim entos industriais ficaram concentrados em centros
urbanos como M oscou, São Pet ersburgo, Odessa e Kiev. A rapidez do cresciment o industrial
durante alguns períodos, longe de constituir uma prova cont ra o “ atraso russo” , comprovava
esse at raso ou, nas palavras de Trotsky, “ completava-o dialeticament e” , conservava-o sob
formas “ modernas” .
Sint etizando a questão das singularidades no desenvolvimento capitalista, Leon Trotsky afirmou
que as particularidades nacionais representavam uma combinação dos traços fundamentais da
economia mundial; a economia mundial não representava “ uma simples soma de fat ores
nacionais de t ipo idêntico” : “ Essas peculiaridades nacionais são o produto mais geral, aquele em
que, por assim dizer, se resum e tudo, a partir do desenvolvim ento histórico desigual” . A
desigualdade era uma lei básica da história: “ O desenvolvimento desigual, que é a lei mais geral
do processo histórico, não se revela em parte alguma com a evidência e a complexidade com
que o demonstra o destino dos países atrasados. Fustigados pelo chicot e da necessidade
mat erial, os países atrasados vêm a necessidade de avançar aos saltos. Dessa lei universal do
desenvolvim ento desigual deriva outra que, na falta de nome mais adequado, qualificaremos de
lei do desenvolviment o combinado , aludindo à aproximação das distintas etapas do caminho e
à combinação de distintas fases, à mistura de formas arcaicas e modernas” .48 Essa perspectiva
reformulava as ideias sobre a questão vigent es até então no campo histórico, inclusive no
marxismo.
A grande indústria, “ criou de fato a história mundial, na medida em que fez depender do mundo
inteiro cada nação civilizada e cada indivíduo para sat isfazer suas necessidades, e na medida em
48
Leon Trot sky. A Revolução Permanent e. São Paulo, Ciências Humanas, 1980 .
27
que aniquilou nas diversas nações a ident idade própria que até então lhes era nat ural” :49 “ Uma
vez que não haja intercâmbio transcendendo a vizinha imediata, cada invenção é feita
separadamente em sua respectiva localidade. Em tais condições basta que ocorram simples
incident es como as irrupções de povos bárbaros, ou mesmo guerras corriqueiras para que um
país que tenha atingido um nível avançado de desenvolvim ento de suas forças produtivas
mat eriais t enha que recom eçar tudo do ponto de partida. (...) Apenas quando o intercâmbio
houver se transformado em intercâmbio universal e sua base se assentar sobre a grande
indústria, quando todas as nações forem arrastadas para o interior da concorrência, a
permanência das conquistas produtivas estará assegurada” . O capitalismo unificou o planeta
não só economicam ente. A economia mundial como fator histórico, e as relações internacionais
como fator político dominant e, se impuseram já no século XIX, quando muitos autores
imprimiram um enfoque internacional ao estudo das sociedades. Só se poderia falar em história
universal a partir do mom ento em que a própria história criasse “ homens empiricam ent e
universais, históricos” , forçados a viver “ no plano de história mundial” e não mais “ no plano da
vida local” . A hist ória mundial fora criada pela grande indústria moderna, através da qual o
capitalismo tornou a t rajetória dos povos e países capítulos de uma mesma história mundial,
que tinha na internacionalização da economia (criação de um mercado mundial) baseada na
grande indústria, seu pont o de partida. A história mundial se impôs com a expansão
internacional do capital.
Foi sob a influência de Hegel que M arx formulou sua ideia de história universal. Em Hegel, o
desenvolvim ento de uma Weltgeschicht e correspondia a um movimento do espírito universal
(Weltgeist ) no sentido de sua objetivação.50 M arx acolheu a reflexão hegeliana, mas distanciou-
se da sua identificação com o movim ento de objetivação do Weltgeist . A configuração da
história universal tinha fundamento, para ele, no desenvolviment o das forças produtivas sociais.
Na obra que dedicou, conjuntamente com Engels, ao ajuste de contas filosófico com o idealismo
hegeliano, ofereceu uma nova base para a compreensão do advento da história universal : “ A
transformação da história em história universal não é, sob qualquer aspecto, um simples ato
abstrato da parte da aut oconsciência do espírito universal ou de qualquer outro espectro
metafísico, mas um ato material, empiricament e verificável. Um ato comprovado por cada
indivíduo na medida em que est e vem e vai, com e, bebe e vest e a si mesmo” . 51 Também era a
base necessária para a existência do proletariado moderno e do comunismo como projeto
histórico real, não ut ópico, que só poderia triunfar no plano universal, pois a unificação
econômica do mundo amadurecia também as condições para uma revolução t ão universal
quanto a contradição da qual nascia.
A unificação do mundo concluída pelo proletariado vitorioso seria o fato mais important e da
história, o triunfo do progresso sobre a estreit eza pré-capitalista com seus particularismos
antiquados e seu isolamento nacional ou local. Com as relações universais estabelecidas pelo
capitalismo, o comunismo não era mais uma utopia, mas uma previsão fundada sobre a
tendência real do desenvolvimento histórico. O mercado mundial criara as bases materiais para
a história mundial, isto é, para a unificação da dinâmica histórica do gênero humano. Na sua
forma real, desenvolvida, esse mercado era produto da indústria capitalista, não da expansão
com ercial potenciada. O caráter mundial da economia capitalista não se constituiu pela soma
das economias nacionais. O traço marcante do desenvolvimento capitalista foi seu caráter
desigual segundo os países e regiões at ingidos por ele, nunca foi harmônico ou uniforme: houve
países que simplesment e foram varridos do mapa por crises avassaladoras ou pela perda
49
Karl M arx e Friedrich Engels. A Ideologia Alemã. São Paulo, M art ins Font es, 1998, p. 7.
50
M uniz Gonçalves Ferreir a. Engels, M arx e a Hist ória M undial de seu Tempo. Tese de Dout orado, São
Paulo, FFLCH-USP, 1996.
51
Karl M arx e Friederich Engels. Op. Cit .
28
histórica de competitividade.
Esta “ t em um carát er dual ou, melhor dizendo, é a fusão de duas leis intimament e relacionadas.
O seu primeiro aspect o se ref ere às distintas proporções no crescim ento da vida social. O
segundo, à correlação concreta desses fatores desigualm ent e desenvolvidos no processo
histórico. Os aspectos fundam entais da lei podem ser brevem ent e exemplificados da seguint e
maneira: o fato mais importante do progresso humano é o domínio do homem sobre as forças
de produção. Todo avanço histórico se produz por um crescim ent o mais rápido ou mais lento
das forças produtivas neste ou naquele segm ento da sociedade, devido às diferenças nas
condições naturais e nas conexões históricas. Essas disparidades dão um caráter de expansão
ou compressão a toda uma época histórica e conferem distintas proporções de desenvolvim ent o
aos diferent es povos, aos diferent es ramos da economia, às diferent es classes, instituições
sociais e setores da cultura. Essa é a essência da lei do desenvolvimento desigual. Essas variações
entre os múltiplos fatores da história dão a base para o surgimento de um fenôm eno
excepcional, no qual as características de uma etapa inferior de desenvolvim ento social se
misturam com as de outra, superior. Essas formações combinadas; têm um carát er altam ent e
contradit ório e exibem acentuadas peculiaridades. Elas podem desviar-se muito das regras e
ef etuar tal oscilação de modo a produzir um salto qualitativo na evolução social e capacitar
povos que eram atrasados a superar, durante certo t empo, os mais avançados. Est a é a essência
da lei do desenvolviment o combinado. É óbvio que estas duas leis, estes dois aspectos de uma
só lei, não atuam ao mesmo nível. A desigualdade do desenvolvim ent o precede qualquer
combinação de fatores desproporcionalment e desenvolvidos. A segunda lei cresce sobre a
primeira e depende desta. E, por sua vez, esta at ua sobre aquela, afet ando-a no seu posterior
funcionam ento” . 55
A lei se observava no “ desenvolvim ent o mais rápido ou mais lento das forças produtivas; no
caráter mais ou menos amplo ou reduzido de épocas históricas inteiras, por exemplo, na Idade
M édia do regime corporativo, do despotismo ilustrado, do parlamentarismo; na desigualdade
do desenvolvim ent o de distintas instituições sociais, de distintos aspectos da cult ura” . Neil
52
Apud Neil Smit h. Desenvolviment o Desigual . Rio de Janeiro, Bert r and, 1988, p. 150.
53
Baruch Knei-Paz. The Social and Polit ical Thought of Leon Trot sky. Oxford, Clarendon Pr ess, 1979, p. 99.
54
Leon Trot sky. Hist oire de la Révolut ion Russe, cit , p. 40.
55
George Novack. A Lei do Desenvolviment o Desigual e Combinado da Sociedade. Slp, Rabisco, 1988.
29
Smith estudou a dimensão espacial do desenvolvimento capitalista, 56 concluindo em que a
desigualdade espacial faz sentido como part e do desenvolvim ento desigual e contraditório do
próprio capitalismo. Desse modo, “ quando o capital inglês ou francês, quintessência da obra
histórica de séculos, é transportado para as estepes do Donetz, ele é absolut ament e incapaz de
manifestar suas forças sociais, as paixões, os valores relativos por ele absorvidos
progressivam ent e. Sobre um território novo, ele não pode repetir o desenvolvim ento que já
cumpriu. Ele retoma a sua obra do ponto onde a deixou em seu país. Em torno das máquinas
que trouxe consigo pelos mares e aduanas, ele reúne rapidament e, sem etapas int erm ediárias,
as massas proletárias e injeta nessa classe a energia revolucionária, que trazia congelada dentro
de si, das velhas gerações burguesas” .57
Trotsky criticava os socialistas e liberais que achavam que a Rússia estava fadada a reproduzir
tardiamente as et apas do desenvolvim ento capitalista europeu: “ Para eles, a história de uma
nação capitalista repet e, com divergências um pouco maiores ou m enores, a história de outra.
O que eles não veem é que o mundo hoje sofre um processo unificado de desenvolvim ento
capitalista que absorve t odos os países que encontra no seu caminho e cria neles um amálgam a
social combinando as condições locais e gerais do capitalismo cuja natureza não pode ser
definida por clichês históricos, mas apenas através de uma análise materialist a” . 59 O
desenvolvim ento da sociedade burguesa na Rússia levava essa marca desde seu nascedouro: a
intenção do Estado czarista era aproveit ar o desenvolvim ento econômico capitalista para seus
56
Neil Smit h. Op. Cit .
57
Leon Trot sky. Hist oire de la Révolut ion Russe, cit .
58
Jon Elst er. La t eoria del desarollo combinado y desigual: una cr ít ica. In: J. E. Roemer (org.). El M arxismo:
una Perspect iva Analít ica. M éxico, Fondo de Cult ura Económica, 1989, p. 70.
59
Leon Trot sky. Op. Cit .
30
próprios fins militares e financeiros; a dos grupos burgueses em ergent es era utilizar o Estado
para consolidar suas vantagens sob a forma de “ privilégios de Est ado” .
Isso não era especificam ent e “ russo” , mas a resultant e desse embat e na Rússia foi bem mais
favorável ao poder do Estado do que o foi na Europa ocidental, favorecendo o crescimento do
Estado e a manut enção das forças produtivas em um nível baixo, dif icultando a acumulação
capitalista e o crescimento da divisão do trabalho. Não havia na Rússia uma separação clara
entre agricultura e artesanato; este se encontrava tão disperso pelo campo quanto a produção
agrícola. Sem se separar da agricultura, o art esanato conservara seu caráter de pequena
indústria local e jamais chegara a formar, como no Ocident e m edieval, cidades comerciais
dedicadas ao art esanato. O comerciante nômade russo - interm ediário entre produtores e
consumidores igualment e dispersos - não realizava a concentração do capital comercial em
grandes centros e nunca ocupou um lugar análogo ao do com erciant e europeu ocidental. O
com ércio russo mal chegara a se desenvolver e já se encontrava sob a ação direta do capital
com ercial europeu, dando um carát er semicolonial a todo o movimento de negócios, no qual o
com ércio russo era intermediário entre as cidades do Ocidente e os vilarejos russos.
Do início do século XVIII até meados do século XIX, o Império Russo tinha 95% da sua população
no campo. Houve uma queda acentuada da população rural no período entre 1859 e 1897
(depois da abolição da servidão) quando o campo ainda abrigava 87,4% da população. A Rússia,
at é o final do século XIX – seu primeiro censo foi em 1897 – contava com 129 milhões de
habitantes. Em 1914, tinha mais de 160 milhões. A taxa de natalidade era de 48/ 1000: durante
tal período sua população aumentou em mais de dois milhões por ano. Dos 87 % dos russos que
viviam no campo, 81,5% era composto de agricultores. Quando a população aumentou, as
parcelas agrícolas ficaram cada vez m enores: em 1900 sua superfície m édia era inferior em 55%
à de 1861: “ A redistribuição periódica da terra fazia com que diminuísse o interesse das famílias
camponesas na melhoria da terra e na int ensificação da produção. O mir (comuna rural) fechou
a torneira da migração do campo. O resultado disso foi uma situação pouco propícia para
aumentar a produção e a produtividade da agricultura (sendo), portanto, escassas as inovações
em direção de uma agricultura int ensiva. O crescim ento da produtividade estava apenas por
31
cima daquele da população, a renda per capita permaneceu est agnada. A produção de batatas
e cereais era, em meados do século XIX, quase a mesma de quarenta anos antes... A libertação
dos servos de 1861 foi dominada pelos interesses da nobreza, o que impediu o aumento da
produtividade do setor agrário, necessária para abastecer a população, a importação de
tecnologia e o fortalecimento da demanda de produt os manufaturados. Isso acrescido do fato
da agricultura – não os proprietários nobres, isentos de taxações – se encontrar oprimida por
enormes impost os e prebendas” . 60
O Império Russo foi o primeiro a praticar o antissemitismo como política de Estado (foi a polícia
política czarista quem originou e divulgou os apócrifos Prot ocolos dos Sábios de Sião , uma peça
maior da literatura antissemita mundial). Na Europa, o antissemitismo afundava suas raízes na
histórica hostilidade cristã para com os judeus, hostilidade tornada política oficial de segregação
e de perseguição com a cristianização do Império Romano, que foi continuada pelos reinos
cristãos da Idade M édia. As revoluções democráticas dos séculos XVIII e XIX proclamaram, em
maior ou menor grau, a emancipação dos judeus na Europa ocidental, a abolição das políticas e
espaços segregacionistas (guetos) e da exclusão política e profissional dos judeus.
M as essas revoluções pouco t ocaram a Rússia e a Europa oriental, “ que haviam incorporado
enormes comunidades judias, com a característica muito pouco judaica de seu empobrecim ent o
em habilidades técnicas, em empreendimentos independent es, em capacidade profissional, em
sólidas organizações comunais, todas cosas normais da vida judia organizada. Elas existiam nas
comunidades da Europa oriental na época em que a maioria da população era compost a por
súditos dos reis da Polônia, mas um século de opressão czarista, o antissemitismo da Igreja
Ortodoxa e a ignorante hostilidade da burocracia russa se combinaram para socavar sua
vitalidade e destruir sua autonomia econômica e comunitária. Só lhes restou o respeito de si. Os
judeus que fugiram para o oeste, conseguindo uma vida livre nos EUA e nas democracias
ocidentais, demonstraram, assim como seus filhos, que as qualidades básicas judias
continuavam intactas” .61 Esses judeus não foram a base social do sionismo, nascido em finais do
século XIX na Europa ocidental; o sionismo encontrou sua base entre os judeus não emancipados
da Europa oriental e, sobretudo, da Rússia czarista. “ Nos países do leste europeu a m ensagem
do Judenst aat teve – na Galizia, na Rom ênia, na Rússia czarista – o efeito de uma tocha acessa
60
Toni Pier enkem per. La Indust rialización en el Siglo XIX. M adri, Siglo XXI, 2001, p. 140.
61
James Parkes. Ant isemit ismo. Buenos Aires, Paidós, 1965, p. 129.
32
lançada em um palheiro. Poucos tinham uma cópia [de O Estado Judeu de Theodor Herz], mas
sua fama se espalhou rapidament e de boca em boca e, justament e porque se falava tant o de
um texto desconhecido, criou raízes a ideia de que estava acontecendo algo grande e
maravilhoso. David Ben-Gurion [futuro chefe de Est ado em Israel] t inha dez anos de idade
quando Der Judenstaat foi publicado em Viena e vivia no pequeno shet l de Plonk [na Polônia].
M uito depois lembrou que se espalhara a ideia de que ‘havia chegado o M essias, um homem
alto e belo, muito instruído, nada menos do que um doutor, Theodor Herzl’” .62 No final do século
XIX, o antissemitismo racial, “ científico” e não religioso, reaparecera na Europa com a obra do
conde Arthur de Gobineau, que dividiu as raças humanas em três troncos principais (branco,
amarelo e negro) e fez nascer o “ mito ariano” , inspirador de movim entos nacionalistas e racistas
europeus.
As modernas cidades russas surgiram na segunda m et ade do século XIX, com a transformação
de seu papel econômico e de sua est rutura de classes, quando ainda nas aldeias rurais se
praticava o escambo nas feiras tradicionais, característica já superada na Europa ocident al, com
as “ transformações que vinham ocorrendo desde os séculos XI e XII. Não era mais o senhor quem
definia as normas que regulavam as relações da sociedade. Esse papel passou a ser
desempenhado pela realeza. A força econômica não era mais o feudo, mas a cidade, o comércio.
A grandes feiras do século XIII foram sendo substituídas pelos grandes centros comerciais,
aumentando ainda mais o poder das comunas e, por conseguint e, da realeza. É nas mudanças
que fizeram desaparecer o espírito de localidade que devemos buscar as origens da
centralização do poder no século XV, que assist iu ao nascimento de uma nova sociedade, a
sociedade moderna, da forma social onde não existia, como tendência dominant e, nenhum a
outra força que não a do governo e a do povo. O século XV foi um marco important e no processo
de desenvolvimento das duas forças (a comuna e a realeza) que nasceram das condições criadas
pelo feudalismo e que lutaram durant e séculos para se imporem como dominant es [na
Europa]” .63
Em cont rast e com isso, no início do século XVIII, a população urbana russa somava apenas de
3% do total. Com a crescent e import ação de capitais, no final do século XIX ela já somava
aproximadament e 13%. O recenseament o de 1897 mostrou que nos doze anos precedent es o
núm ero de habitant es das cidades havia aum entado em 33,8%; o dos vilarejos rurais, apenas
em 12,7%. Até o século XIX, as cidades russas tinham exercido o papel de centros administrativos
e militares sustentados pelo dinheiro público. Sem gerar recursos, a não ser uma escassa
concentração de capital comercial, a cidade russa se limitava a consumir aquilo que lhe era
fornecido pelo campo e pelo com ércio ext erno. Assim como as cidades, a indústria e as classes
capitalistas se formaram em apenas algumas décadas, passando por alto todas as etapas que
haviam caract erizado a formação do capitalismo europeu, como o surgimento do pequeno
empreendimento e o crescim ent o progressivo do “ Terceiro Estado” . Se na Europa a manufatura
havia crescido sobre a base do artesanato, com a participação deste em todo o processo, na
62
Amos Elon. La Rivolt a degli Ebrei . La st oria di Theodor Herzl e del rit orno degli ebrei in Palest ina. M ilão,
Rizzoli, 1979, p. 221: “ No século XIX eram muit os os judeus europeus assimilados que afirmavam sua
or igem sefardit a. Os poet as românt icos – sobret udo Byron e Heine – haviam pint ado com um ar de
esplêndida nobreza os orgulhosos judeus da Espanha m edieval. No período no qual os ricos [judeus]
emancipados f aziam t udo para se dissociar de seus cor religionários da Polônia e da Rússia, pobres e
marginalizados, a origem sefardit a provava de modo conclusivo que el es nada t inham em comum com os
primit ivos e incult os Ost juden das com unidades israelit as orient ais” (p. 25). Foram os “ at rasados” judeus
or ient ais os que forneceram a base social do projet o polít ico sionist a; seu fundador ficou surpr eso, pois
pensava que sua propost a acharia mais eco ent re os i nst ruídos judeus ocident ais, que lhe prest aram
pouca at enção.
63
Terezinha Oliveira. Guizot e as origens m edievais da sociedade burguesa. In: Ruy de Oliveira Andrade
Filho (Ed.). Relações de Poder, Educação e Cult ura na Ant iguidade e Idade M édia. Sant ana de Par naíba,
Solís, 2005, p. 508.
33
Rússia o artesanato rural cont inuou produzindo para o consumo imediato da população, não
para a indústria capitalista, enquanto a indústria era estabelecida utilizando-se da única mão de
obra disponível, a dos servos, para trabalhar para o Estado e, em parte, para as altas camadas
da sociedade.
Não foram, port anto, nem a classe dos artesões nem a dos comerciant es as que pressionaram
para se criar uma indústria capitalista, mas o Estado, que buscou a instalação de manufaturas a
serviço do exército e da frota. A introdução do capital, da técnica e do saber ocidentais conduziu
ao fortalecimento da autocracia czarista, mantendo a servidão com o forma de organização do
trabalho. A servidão, na medida em que excluía a modernização da produção, era a causa
principal do marasmo que persistia na indústria desde Pedro o Grande. Sua abolição se impunha
como necessidade econômica em meados do século XIX. Na medida em que a nobreza agrária
era contrária à abolição, a burguesia, ainda muito fraca para defendê-la, e os camponeses mal
organizados para impô-la, ficou para o próprio Estado (que tinha sido até esse momento o
perpetuador do regim e servil), apoiado pelos burocratas nobres e os proprietários industriais, a
tarefa de levar a cabo a reforma abolicionista, a emancipação dos servos. Simbolizando a
intenção renovadora, o Imperador Alexandre I, depois de se apoderar de um terço do hemisfério
norte, ordenou retirar o cetro e o orbe do brasão dos Románov e substituí-los por setas-
relâmpagos, coroa de louros e t ochas. O novo brasão prometia paz e modernidade para seus
súditos; aos inimigos os relâmpagos da retaliação.
64
Paul R. Gregory. Economic growt h and st ruct ur al change in Czarist Russia: a case of modern economic
grow t h? Soviet St udies vol. 23, n° 3, Londres, 1972.
34
concedidas, na esperança de reanimar a sociedade e criar uma economia dinâmica, sem alterar
a est rutura básica da autocracia” .
Em sequência à abolição da servidão, foi instit uída uma forma de representação política local,
os zemstvos, em 1864. Crimes e querelas passaram a ser objeto de tribunais de ofício, uma
medida que não se est endeu aos camponeses, que cont inuaram a ser julgados pelas leis
consuetudinárias locais. O autor cit ado (que considerou a Revolução de Outubro de 1917 com o
uma “ tragédia” ) suspirou: “ Tivesse o espírito liberal da década de 1860 cont inuado a soprar no
governo, a Rússia poderia ter se transformado numa sociedade ao estilo de Ocident e, baseada
na propriedade individual e na liberdade garant ida pelo domínio da lei. A revolução não teria
sido necessária” .65 Uma afirmação que faz a economia da estrutura de classes e da nat ureza do
Estado autocrata russo; face às iniciat ivas modernizantes do Estado czarista, a burguesia russa,
suposto sujeito da modernização capitalista (que deveria, Figes dixit , criar um Estado moderno
nos moldes ocidentais), inexpressiva social e politicament e, assist iu quase sem se m exer: “ A
partir desse mom ento abriu-se um novo período de desenvolvimento econômico do país,
caract erizado pela rápida formação de uma reserva de trabalho ‘livre’, pelo rápido alastrament o
do sistema ferroviário, construção de portos, afluxo incessant e de capitais europeus,
europeização da t écnica industrial, crescimento dos incentivos e do crédito, aparecimento do
ouro no mercado, um forte protecionismo e a inflação da dívida pública” 66 - tudo sob o forte
controle burocrático e policial do Estado.
A economia russa não só continuou sob a pressão da economia europeia, mas passou a sofrer
ainda mais essa influência. O caráter dela se alterava de acordo com o modo de produção
dominant e na Europa e, no caso do capit alismo, com a etapa em que ele se encontrasse. Na
época da produção artesanal e manufatureira no Ocident e, a Rússia havia t razido da Europa
técnicos, arquitetos, contramestres e art esãos experientes em geral. Quando a manufatura foi
substituída pela fábrica, a Rússia se concentrou principalment e em importar máquinas e
capitais. Os cereais, metade de cuja produção era de trigo, representavam, junto com os
produtos alimentícios, 50% de suas exportações, e a maior parte do resto, 36%, eram matérias
primas. As mesmas razões que fazem da Rússia um país de economia agrícola atrasada, a
submetiam a uma forte dependência do mercado mundial. No campo industrial, este fenôm eno
se apresentava com idêntica nitidez. A terça parte das importações russas estava composta por
produtos manufat urados que provinham da indústria ocidental.
Ao mesmo t empo em que crescia a influência da Europa sobre o país, os limites do poder do
“ Concert o Europeu” já eram perceptíveis. O sistema europeu de Estados mant eve, após 1871,
sua hierarquia e estratificação entre, de um lado, as cinco grandes pot ências (Alemanha, Franca,
Grã-Bretanha, Rússia e Áustria-Hungria) e, de outro, as potências de segunda e t erceira
categoria. Embora as grandes pot ências fossem as mesmas da primeira m etade do século XIX, a
balança de poder entre elas alt erou-se significativam ente. A Prússia, inicialment e a mais fraca
das cinco potências, catapult ou-se (com a criação do Império Alemão) para uma posição
hegemônica no continente. A França, ao contrário, perdeu em 1870-1871, na guerra franco-
prussiana, seu pot encial de hegemonia. A monarquia austríaca correu t ambém o perigo de
deixar o círculo das grandes pot ências, devido a problemas internos originados na
het erogeneidade nacional-étnica do Estado e no seu relativo atraso econômico. A Rússia
combinava sua força de país mais populoso da Europa com a fraqueza do seu atraso industrial.
Quando, sob a influência direta das necessidades do Estado, a servidão russa foi abolida dando
lugar ao t rabalho livre, a Rússia abriu as fronteiras para a ação direta do capital industrial e
financeiro europeu.
65
Orlando Figes. A Tragédia de um Povo. A Revolução Russa 1891-1924. Rio de Janeiro, Record, 1999, pp.
74-75.
66
Leon Trot sky. 1905, ed. cit , pp. 26-27.
35
A escassa qualificação profissional da população local levou a grandes migrações vindas do
ext erior, que fizeram com que os russos de origem alemã, por exemplo, se transformassem em
uma import ant e minoria do Império, com um papel destacado nas atividades industriais e nas
profissões liberais. Durante o século XIX, Rússia quase quadruplicou a sua população. De 36
milhões em 1796 passou para 129 milhões em 1897, sendo superada em rit mo de crescimento,
no mesmo período, apenas pelos EUA. A part ir de 1861, o crescimento populacional da Rússia
seguiu o mesmo padrão de cresciment o da população das economias capitalistas avançadas. O
avanço da Rússia rumo a possessões no Ocident e e no Extremo Orient e também mudou a
composição populacional do Império em relação ao seu território original. Se, no final do século
XVII, apenas 19% da população russa pertencia a territ órios conquistados, em 1897 a população
do territ ório original e a daquele conquistado perfaziam cada uma 50% de sua população t otal.
O crescim ento populacional, no ent anto, não se traduziu na transferência significativa da
população do campo para as cidades, mostrando apen as no final do século uma leve t endência
para a diminuição da população rural.
“ A nova Rússia tomou um carát er particular em consequência do fat o de que ela recebeu o
batismo capitalista, na segunda metade do século XIX, do capital europeu que se apresentou
sob sua forma mais concentrada e mais abstrat a, como capital financeiro” :67 a exportação de
capitais, o meio encont rado para sair da depressão econômica nas metrópoles capitalistas,
incorporou rápida e violentam ent e diversos países e regiões, Rússia incluída, à economia
mundial, introduzindo também de modo rápido as relações capitalistas de produção em suas
economias e sociedades. Os principais teatros da expansão mundial capitalista na segunda
metade do século XX foram a América do Norte (os EUA)68 e a Rússia. A partir da década de
1860, a taxa de cresciment o econômico da Rússia se situava entre as mais altas do continent e
europeu. Segundo M arx e Engels: “ Ambos os países (EUA e Rússia) proviam a Europa de
mat érias-primas sendo ao mesmo tempo m ercado para a venda de seus produtos industriais.
De uma maneira ou de outra, eram, portanto, pilares da ordem europeia vigent e” .
Isso mudou na segunda metade e, sobretudo, no último quart el do século XIX, quando a
export ação de capitais como fenômeno dominant e nos fluxos econômicos mundiais alterou
decisivam ente as relações entre as classes e as relações internacionais. As taxas de crescim ento
67
Idem .
68
O cresciment o econômico dos EUA f ez do país a maior pot ência indust rial mundial na década de 1890.
Em 1900, os EUA possuíam 223,5 mil milhas de est radas de ferro, das 491 mil milhas exist ent es no m undo
t odo (t oda a Europa t inha 176,2 mil milhas de vias férreas). Na mesma época, t oda a Am érica do Sul não
chegava às 26,5 mil milhas e t oda a África às 12,5 mil milhas. Em 1912 conclui-se o processo de formação
da União, com a incorporação do Arizona. M ais de 25 milhões de novos imigrant es inst alaram-se nos
Est ados Unidos ent re 1870 e 1916, causando grande cresciment o populacional - de 40 milhões de
habit ant es em 1870 para mais de 100 milhões em 1916.
36
econômico dos países recent ement e industrializados, Rússia incluída, igualaram ou superaram
às dos países de industrialização precedent e:
Crescimento decenal do PIB (em dólares de 1960)69
Qual era, nesse quadro mundial, a situação do Império Russo? A dependência econômica russa
se acentuou assim que o capit alismo indust rial e financeiro monopolista passou a predominar
na Europa. Durante os últimos anos do século XIX e os primeiros do século XX, para o pequeno
burguês francês, a Rússia era o paraíso dos capitais, “ os empréstimos russos” , garantidos pelo
poder do autocrata, pareciam inversões tão seguras para os pequenos poupadores como para
os bancos de negócios. A evolução industrial na Rússia, no seu conjunt o, “ saltou” os períodos
do artesanato corporativo e da manufatura, assim como vários de seus ramos industriais
também saltaram parcialment e certas etapas da técnica que no Ocident e haviam exigido
décadas. O resultado foi a concentração das forças produtivas do país na indústria de grande
porte.
Em 1902, 53,6% dos operários russos estavam alocados em indústrias com mais de 500
operários, enquanto na Bélgica apenas 28% deles estava nessa condição, percentagem que não
diferia muit o nas demais nações avançadas (nos EUA era de 31%); o percentual de operários
trabalhando em grandes fábricas (de mais de mil empregados) era de 38,5% na Rússia, em
comparação com apenas 10% na Alemanha. Isto produzia a ausência de uma hierarquia
intermediária entre os grandes dirigent es do capit al e as massas operárias. O desenvolvim ent o
combinado se manifestava com especial vigor; a agricultura russa permanecia praticam ent e
estagnada ao nível do século XVII, a indústria russa, pelo cont rário, por sua técnica e estrutura
se encontrava ao nível dos países avançados, e em alguns aspectos os ultrapassava: “ A
caract erística marcant e do processo de modernização da Rússia foi a incrível mistura e a
qualidade caleidoscópica do cenário econômico em m utação” . 70 Na Rússia coexistiam “ todos os
estágios da civilização; desde a selvageria primitiva das florestas setentrionais onde os
habitantes alimentavam-se de peixe cru e faziam suas preces diante de um pedaço de madeira,
at é as novas condições sociais da vida capitalista, onde o operário socialista se considera
participante ativo da política mundial e segue at entament e os debat es do Reichstag . A indústria
mais concentrada da Europa sobre a base da agricultura mais primitiva... O capitalismo não se
desenvolveu na Rússia a partir do sistema art esanal. Ele realizou a conquista da Rússia tendo
at rás de si o desenvolvim ento econômico de toda a Europa. Reduzindo à escravidão econômica
est e país atrasado, o capital europeu liberava os seus principais ramos da produção e os seus
69
Paul Kennedy. Ascensão e Queda das Grandes Pot ências. Transformação econômica e conflit o milit ar
de 1500 a 2000. Rio de Janeiro, Elsevier/ Campus, 1989.
70
Herber t J. Ellison. Economic m odernizat ion in Imperial Russia: purposes and achievement s. Journal of
Economic Hist ory, vol. 25, n° 4, Cambridge, 1965.
37
principais meios de comunicação de toda uma série de etapas t écnicas e econômicas
intermediárias, pelas quais eles tinham tido que passar nos seus países de origem ” . 71
Uma “ modernização” que t ivesse colocado a sociedade russa na mesma linha do modelo
ocidental teria exigido grandes decênios de diferenciação social no meio rural assim como a
criação de um amplo mercado interno que, para sua realização teria exigido quando menos a
desaparição das propriedades nobiliárias e a supressão das cargas que pesavam sobre os
camponeses; tal modernização t eria suposto, além disso, um rit mo de industrialização que a
própria debilidade do mercado int erior teria feito insustentável e que, de outro lado, não
interessava aos capitais estrangeiros predominant es. A pesar do exemplo prussiano, a
modernização da agricult ura parecia impossível se não fosse acompanhada da industrialização.
O crescimento econômico da Rússia foi um dos mais fortes no século XIX, perdendo só, na
Europa, para Alemanha e Inglaterra; na virada para o século XX, o PIB estimado russo era o maior
da Europa, e só perdia no mundo para o PIB dos EUA:
PIB dos países europeus no século XIX (em bilhões de dólares de 1960)
Alemanha Inglaterra Rússia Áustria França It ália
1830 7,235 8,245 10,550 7,210 8,582 5,570
1840 8,320 10,431 11,200 8,315 10,335 5,951
1850 10,395 12,591 12,700 9,190 11,870 6,666
1860 12,771 16,072 14,400 9,996 13,326 7,466
1870 16,697 19,628 22,920 11,380 16,800 8,273
1880 19.993 23,551 23,250 12,297 17,381 8,745
1890 26,454 29,441 21,180 15,380 19,758 9,435
1900 35,800 36,273 32,000 19,400 23,500 10,820
1910 45,523 40,623 43,830 23,970 26,869 12,598
1913 49,760 44,074 52,420 26,050 27,401 15,624
1830-
688% 535% 497% 361% 319% 281%
1913
Numa era de crises internacionais, vinte anos depois da Guerra da Crimeia, na Conferência de
Londres (1875), finalmente Rússia obteve o direito de livre trânsito nos estreitos de Bósforo e
de Dardanelos. Em 1877, iniciou nova guerra contra os ot omanos, invadindo os Bálcãs sob o
pret exto da repressão turca às revoltas de eslavos balcânicos. Diante da oposição das grandes
potências, os russos recuaram outra vez. O primeiro ministro britânico, Benjamin Disraeli, em
1876, proclamou à Rainha Vitória imperatriz da Índia e impediu simultaneam ent e que a Rússia
pudesse impor à Turquia um tratado humilhant e, brecando a expansão russa nos Bálcãs
“ eslavos” ; Disraeli foi recebido de modo triunfal no Congresso de Berlim de 1878, que consagrou
a independência dos Estados balcânicos e a perda otomana de Chipre para o Reino Unido; da
Armênia e de parte do seu t erritório asiático para a Rússia; e da Bósnia e Herzegovina para o
Império Austro-Húngaro.
71
Leon Trot sky. 1905, cit .
38
Bismarck definiu a Tríplice Aliança com a Áustria e a Itália, cujo objetivo era isolar a França e
cont er a Rússia, desenhando ainda a reconciliação nas relações austro-prussianas; e, em 1887,
sua atuação levou ao “ Tratado de Reasseguro” com a Rússia. Em 1895, o Reino Unido
apresentara um plano de partilha da Turquia, rechaçado pela Alemanha, que pret endia garantir
para si concessões ferroviárias em exclusividade no Império Otomano. Nos Bálcãs, o crescent e
nacionalismo eslavo cont ra a presença turca levaria a região às guerras balcânicas: a região se
transformou no calcanhar de Aquiles de todas as pot ências colonialist as. As derrotas e recuos
internacionais russos aceleraram sua crise social e política interna, que se processou em moldes
econômicos muito diferent es daqueles que tinham caracterizado o declínio do absolutismo
ocidental.
39
imperialista, nem a afirmação do próprio M arx a respeito, respondendo à indagação da milit ante
russa Vera Zasulitch, quanto à teoria que pret endia que todas as nações do mundo estavam
constrangidas a percorrer todas as fases da produção social, escrevendo que “ a fatalidade
histórica deste movim ento está expressam ent e restringida aos países da Europa ocidental” . As
generalizações abstratas sobre um suposto desenvolvimento capitalista mundial uniforme
baseavam-se na universalização do “ modelo europeu” . A concepção predominante entre os
marxist as finisseculares - a revolução ocorreria em primeiro lugar nos países capit alistas mais
avançados, através da união de condições objetivas e subjetivas que só estariam present es na
Europa ocidental - significava também que as categorias de “ revolução burguesa” ou
“ democrática” e “ revolução proletária” eram inconciliáveis e separadas por um muro histórico.
A revolução proletária só poderia ocorrer, para eles, em um país que tivesse passado por uma
revolução burguesa e preparado o terreno para a revolução posterior. Ela não poderia evoluir a
partir de uma revolução burguesa num processo revolucionário contínuo.
A atividade terrorista foi especialm ent e import ant e na Rússia. As M emórias de um Terrorist a,
de Boris Savinkov, compendiaram a apologia e também a desilusão do t errorismo. No prólogo
de sua publicação póstuma, o marxista catalão Andreu Nin explicou que, no autor, “ a devoção
pelo procedim ento, a fé cega na força todo-poderosa do terror, atingiram seu grau máximo” . O
livro concluía relatando, de modo detalhado, a descoberta de que o chefe da Organização de
Combate dos social-revolucionários russos (SRs), o “ partido” dos populistas - a maior
organização política russa de sua época - Azev, havia sido na verdade um agent e policial (que
entregara boa parte da organização à repressão da Okhrana, a polícia política secreta do Czar),
a partir de 1892 e por quase duas décadas! A penet ração da polícia acabou dizimando as
organizações populistas. Savinkov concluiu sua trajet ória como aliado das forças
contrarrevolucionárias,72 suicidando-se depois de preso e condenado por um tribunal da URSS
(que comutou sua inicial pena de mort e). Nin, dirigente da Internacional Comunista, relatou qu e
colaborara “ com os generais Kaledin, Kornilov, Koltchak e Wrangel; organizou a rebelião
antissoviética de Iaroslav, o grupo terrorista que preparou os atentados contra os líderes mais
eminent es da revolução proletária; as iniciativas que, subvencionadas pela Inglaterra, França,
Tchecoslováquia e Polônia, desenvolveram uma atividade criminosa no território da primeira
República Operária” . 73
72
Em agost o de 1917, como M inist ro de Guerra, Boris Savinkov int ermediou as conversas ent r e o líder do
gover no, Kerensky, e o general Kornilov, que t ent ou um golpe de est ado para esmagar a r evolução russa
iniciada em fevereiro desse ano. Em 1918, Savinkov pr opôs um vast o plano insurrecional cont ra o governo
soviét ico financiado pela em baixada f rancesa, propondo assassinar Lênin e Trot sky.
73
In: Boris Savinkov. M emorias de un Terrorist a. M éxico, Juan Pablos, 1973, p. 7. Nin ponderou: “ Sua vida
int eira consagrada à revolução e sacrificada por ela, não f oi t ot alment e inút il. O prolet ariado vit orioso na
Rússia, que derr ot ou a burguesia e est á edificando uma sociedade nova, em bora não segui ndo o caminho
t raçado por esses lut adores, conserva seus nom es pr ofundament e gravados em seu coração e educa as
novas gerações no respeit o pela lembrança daqueles que, por uma via errada, assest aram duros golpes à
aut ocracia, derramaram seu sangue e sacrif icaram sua vida pela causa da emanci pação” (p. 10).
74
René Cannac. Net chaïev, du Nihilisme au Terrorisme. Aux sources de la révolut ion russe. Paris, Payot ,
1961.
40
Londres, o Observatório de Greenw ich; ele o apresentava como um “ simples relato do século
XIX” . No grupo não faltava a presença do agent e policial infiltrado (da polícia política czarista
russa, a Okhrana), mas o atentado fracassava devido a uma atrapalhação dos próprios
executantes. O enredo era, para Conrad, uma parábola acerca da “ criminal inutilidade (do
terrorismo), da sua doutrina, ação e m entalidade, e sobre o desprezível aspecto de uma atitude
dem ent e, que explora as desgraças pat éticas e as apaixonadas credulidades de uma
humanidade sempre tão tragicam ent e disposta a se autodestruir” .
Serguei Netchaïev
75
Leon Trot sky. Terrorismo e Comunismo. Rio de Janeiro, Saga, 1969.
41
M ONOPÓLIOS, CAPITAL FINANCEIRO, IM PERIALISM O
A transformação capitalista da Rússia não foi um processo isolado, mas um aspect o da expansão
mundial do capital e suas contradições. No último quartel do século XIX elas provocaram sua
primeira crise de alcance geral. A depressão do comércio mundial a partir de 1875 foi, no
entanto, uma queda de seu crescim ent o, não um retrocesso absoluto. A simult aneidade na
aparição de dificuldades econômicas de um lado como de outro do Canal da M ancha e do
Atlântico ilustrava a crescente int egração comercial das economias industriais e o crescim ento
vertiginoso dos movimentos int ernacionais de capitais. Durante a “ Grande Depressão” , uma
onda conservadora substituiu na Europa os ares liberais até então dominant es, manifesta pela
adoção de polít icas protecionistas e pela volta de part idos antiliberais ao poder, excetuando-se
a Inglaterra e a Holanda. Áustria (1874-1875), Rússia (1877), Espanha (1877 e 1891), Itália
(1887), França (1892), adotaram alt as tarifas de importação, assim como a Alemanha de
Bismarck (1878) e os Estados Unidos do president e M acKinley. Na “ contrarrevolução
protecionista” Japão se fechou com ercialment e e Alemanha desenvolveu uma poderosa
indústria química. Foi, para o capitalismo mundial, uma mudança de época . A enorm e
quantidade de quebras e falências empresariais levou a uma inédita concentração de capit ais
nas metrópoles: “ Em 1876 concluiu na Europa Ocidental o desenvolvim ento capitalist a em sua
fase pré-monopolist a” . 76 A crise originou-se nos países que experim entavam um intenso
desenvolvim ento industrial devido, em parte, às indenizações pagas pela França em virtude da
sua derrota na guerra franco-prussiana, e se repercutiu nos centros da produção capitalista.
A prosperidade pós-1850 deu lugar, pela própria dinâmica do capital, a uma depressão
econômica de igual intensidade. Ela acelerou o processo de concentração e exportação de
capital, o que, por meio da exportação de capitais, conduziu ao imperialismo contemporâneo.
Pela concentração de capital, a economia experim entou um notável aumento de sua capacidade
de produção, resultant e das novas t ecnologias desenvolvidas a partir de novas font es de
energia, como o petróleo e seus derivados e a eletricidade: “ (No meio da “ grande depressão” )
a produção mundial, longe de estagnar, continuou a aumentar acentuadam ent e entr e 1870 e
1890, a produção de ferro dos cinco principais países produtores mais do que duplicou (de 11
para 23 milhões de toneladas); a produção de aço multiplicou-se por vinte (de 500 mil para onze
milhões de toneladas). O crescimento do com ércio internacional continuou a ser
impressionant e, embora a taxas reconhecidamente menos vertiginosas que antes” . 77 Entre
1848 e 1875, as exportações de mercadorias europeias tinham mais que quadruplicado, ao
passo que ent re 1875 e 1914, elas “ só” duplicaram. A expansão mundial do capital tinha também
um efeito destrutivo sobre o comércio entre os países capitalistas e as regiões periféricas com o
76
V. I. Lênin. Imperialismo, Et apa Superior do Capit alismo. Campinas, Navegando Publicações, 2011.
77
Eric J. Hobsbawm. A Era dos Impérios 1875-1914. Rio de Janeiro, Paz e Terr a, 1989, p. 58.
42
fator de estabilidade econômica e política da Europa. A prosperidade capitalista cobrava seu
preço: 78
1873 – Craque da bolsa de valores de Viena (Áust ria): queda súbit a na cot ação da bolsa
redução dos invest iment os produt ivos na Áust ria e na Alemanha;
1882 – Craque da bolsa de Lyon (França): redução da part icipação pública nos invest iment os
paralisa as obras nos set ores de const rução;
sociedades de const rução civil Queda nas ações ligadas aos valores f erroviários;
1884 – “ Pânico das est ardas de f erro” , nos Est ados Unidos. Redução do rit mo de cresciment o das
1889 – Nova crise na bolsa de Lyon: Especulação com o cobre Quebr a da empresa responsável
pela const rução de Canal no Panamá, em Paris;
1890 – O banco inglês Baring Brot hers suspende seus pagament os A crise at inge os Est ados
Unidos, a Argent ina, o Brasil e a Aust rália: redução do com ércio int ernacional;
1893 – Queda da rent abilidade, crise e falência das sociedades de const rução de est radas de
ferro, nos Est ados Unidos.
O liberalismo econômico sofreu um golpe rude. A taxa média de rendimento do capital, depois
de taxas e impostos, caiu de 5% para 1% anual real entre 1820 e 1913; a maior queda foi
registrada durant e o período depressivo e foi acompanhada de uma desaceleração do rit mo de
cresciment o. Na base do fenômeno, uma lógica aparente: os custos se elevavam (pela alta dos
salários, ou por aumento dos preços dos trilhos para as estradas de ferro norte-americanas), os
mercados de venda se reduziam (diminuição do poder de compra rural e dos trabalhadores de
outros setores, redução dos invest im entos públicos, dificuldades nos mercados est rangeiros),
os preços de venda baixavam (concorrência nos preços, guerra de tarifas nas estradas de ferro
norte-americanas); a rentabilidade declinava ou caia brut almente, a realização do valor
produzido por cada empresa se tornava mais difícil, a concorrência ficava mais acirrada, a
situação das empresas se t ornava cada vez mais precária. Tudo podia desencadear a crise: um
rumor na bolsa, um mercado perdido, uma empresa ou um banco que interrompia os
pagam ent os, bastava para deflagrar uma engrenagem incontrolável.
78
B. M arcel e J.Taïeb. Crises d’Hier, Crise d’Aujourd’ hui . Paris, Nat han, 1996.
79
John A. Hobson. A Evolução do Capit alismo M oderno. São Paulo, Abril Cult ural, 1983 [ 1894], p. 202.
80
Eric J. Hobsbawm. A Era do Capit al. Rio de Janeiro, Paz e Ter ra, 1988.
43
A depressão econômica provocou mudanças nas relações int ernacionais, que alicerçavam as
bases para uma nova era hist órica do capitalismo: “ Temos o objetivo de precisar o significado
de uma palavra que est á na boca de todos, usada para designar o mais importante movim ent o
existente na política do mundo ocidental cont emporâneo” , escrevia o economist a inglês John
Atkinson Hobson no primeiro parágrafo de O Imperialismo, obra seminal publicada em 1902. A
primeira metade do século XIX fora caracterizada pelo capitalismo liberal e pelo Iaissez-faire (a
liberdade de com ércio) internacional. Entre 1850 e 1875, o comércio mundial cresceu em rit mos
que só viriam a ser superados na década de 1990. A Inglaterra, pioneira da industrialização,
defendia a liberdade de vender seus produtos em qualquer país, sem barreiras alfandegárias,
bem como (seu) livre acesso ás font es de mat érias primas. A part ir de meados do século XIX, o
desenvolvim ento científico e tecnológico levou ao surgimento de novos m étodos de obtenção
do aço, além de novas fontes de energia, como o gás e a eletricidade - que subst ituíram
gradat ivament e o vapor - e do aperfeiçoam ento dos meios de transport e. Entre os principais
países protagonistas dessas mudanças produtivas não se encontrava, porém, a Inglaterra.
Economicament e, uma nova forma do capital levou a melhor sobre a hegemonia do capital
industrial.
O capital era superado como propriedade privada direta, pois a direção do processo produtivo
e a propriedade do capital se dissociavam. Com as sociedades anônimas de capital aberto, a
propriedade se disseminava entre os acionistas, que passavam a viver de juros, ou seja, de uma
parte alíquota da mais valia criada pelos operários. 81 Poderia se dizer que a classe burguesa
desapareceria? Não: ela se transmutava numa “ nova aristocracia financeira, uma nova espécie
de parasitas na figura de fazedores e diretores m erament e nominais; todo um sistema de
embust e e de fraude no tocant e à incorporação de sociedades, lançament os de ações e
com ércio de ações. É produção privada sem o controle da propriedade privada” . Igual método
aplicava-se às cooperativas. Formalm ent e, elas eram pontos de passagem ou invólucros de
transição para outro modo de produção, mas em sua organização real reproduziam o sistem a
existente. Os trabalhadores eliminavam, no interior da empresa, a luta de classes, e assumiam
a gestão da at ividade produtiva, mas exteriorm ente atuavam, no mercado, como um “ capitalista
coletivo” . M arx considerou as sociedades cooperativas, em seu papel de reguladoras da
produção, como uma manifestação da tendência objetiva para o planejamento econômico e o
comunism o.
81
Nikolai Bukhárin. La Economia Polít ica del Rent ist a. Barcelona, Laia, 1979,
82
Werner Som bart . El Apogeo del Capit alismo. M éxico, Fondo de Cult ura Económica, 1984.
83
Armand M at t elart . A Globalização da Com unicação. Bauru, Sagrado Coração, 2000.
44
tipo individual e familiar cederam seu lugar aos grandes complexos industriais. M ultiplicaram-
se as empresas de capit al abert o, dividido entre milhares de acionistas, o que facilitava as
associações e fusões entre empresas, além de alimentar o mito de um “ capitalismo popular” .
Nos bancos, o processo era semelhant e: um pequeno número deles foi substituindo o antes
grande núm ero de pequenas casas bancárias. Paralelament e a isso, ocorria também um a
aproximação das indústrias com os bancos, pela necessidade de créditos para investim ent os e
pela transformação das empresas em sociedades anônimas, cujas ações eram negociadas pelos
bancos. O capital indust rial, associado ao capital bancário, transformou-se em capit al financeiro,
controlado por poucas grandes organizações, que aos poucos passou a cont rolar a vida
econômica da maioria dos países.
O período compreendido entre o final do século XIX e 1914, conhecido na Europa como a belle
époque, assinalou outras mudanças significativas na organização e relações da economia. No
plano tecnológico, houve a chamada “ Segunda Revolução Industrial” , baseada no motor a
explosão, na telefonia, no rádio e na química. Na esfera econômica, houve o aparecimento das
grandes empresas múltiplas, em subst ituição daquelas que operavam num só ramo da
economia. No cenário internacional, a novidade foi a em ergência da Alemanha como um a
grande pot ência (ant eriorm ent e, a Inglaterra reinava praticament e sozinha no mercado
mundial) e, em seguida, os Estados Unidos surgiram como a maior pot ência industrial. Também
o Japão começava a despont ar com um poderio econômico e militar ponderável. Por fim, foi o
período de uma mudança drástica na forma de organização do trabalho, com a introdução de
“ métodos científicos de gerência” , do taylorismo e, depois, do fordismo (linha de montagem
usada inicialmente nos estabeleciment os Ford, de Detroit). Junt o ao surgiment o da empresa
múltipla de negócios, houve enorm e crescimento da população, aumento contínuo da renda per
capita média (nos EUA e na Europa) e integração dos mercados nacionais e internacionais pelas
ferrovias.
O novo ambiente tendia a eliminar as pequenas escalas de produção, a concorrência era feroz
e levava à centralização e concentração de capitais, os derrotados eram engolidos. A empresa
clássica, de propriedade individual ou familiar, cedeu lugar à empresa multidivisional, que
internalizou uma série de at ividades antes regidas pelo mercado, substituindo a “ mão invisível”
dest e pela mão visível do staff que comandava as grandes empresas. A concorrência clássica foi
substituída pela concorrência oligopolista, baseada na constant e diferenciação de produtos. Os
oligopólios conquistaram amplas fatias do mercado e a gestão ant es “ instintiva” passou a ser
planejada estrat egicam ent e. Países ant es afastados do convívio entre as nações que se
consideravam civilizadas foram obrigados a vincular suas economias a interesses ext ernos. Na
América, os Estados Unidos passaram a dominar economicam ent e t odo o continent e. Se fosse
preciso e possível, estabelecia protetorados de fat o, como na América Central (Haiti, Nicarágua).
A Europa retalhou o continent e africano e controlou diret a ou indiretam ent e vastas porções da
Ásia. O Japão conquistou territ órios à Rússia e à China.
A conquista colonial foi encarada nas metrópoles com o um antídoto contra a revolução social:
o motivo essencial do imperialismo capitalista encont rava-se no aguçamento das contradições
sociais, da luta de classes, nas met rópoles capitalistas. O imperialist a (ele não teria considerado
o qualificativo como um insulto) inglês Cecil Rhodes afirmou: " A ideia que mais me acode ao
espírito é a solução do problem a social, a saber: nós, os colonizadores, devemos, para salvar os
40 milhões de habit antes do Reino Unido de um a mortífera guerra civil, conquistar novas terras
a fim de aí instalarmos o excedente da nossa população, e aí encontrarmos novos mercados para
os produt os das nossas fábricas e das nossas minas. O Império, como sempre tenho dito, é um a
quest ão de est ômago. Se quereis evitar a guerra civil, é necessário que vos torneis imperialistas" .
O imperialismo inglês premiou Rhodes permitindo-lhe batizar com seu sobrenome uma inteira
colônia, a Rodésia. A enorme migração europeia em direção da periferia colonial desmont ou os
exércitos de potenciais revoltados das metrópoles. No período 1881-1910 o fluxo migratório a
45
partir de Europa para o restante do mundo chegou até 8,49 milhões de pessoas por década,
como consequência da crise e de sua sequela de desemprego industrial, declínio dos preços
agrários e ruína dos camponeses. 84
O monopólio capitalista fora objeto das observações de M arx sobre os empresários das
sociedades anônimas e sobre o novo papel das bolsas de valores e dos bancos. Engels também
tratou dessas tendências, caracterizando as sociedades anônimas como o ponto mais alto da
organização capitalista da produção e a antessala de um novo modo de produção. Em O Capit al ,
a concentração e centralização do capital como resultado inevitável da luta competitiva foram
relacionadas com as mudanças estruturais visíveis no capit alismo que estavam preparando o
caminho para o domínio do capital monopolista. O Capit al também analisava os benefícios
extraordinários obtidos pelo capital monopolista da exploração das nações atrasadas, baseada
nos desiguais níveis de desenvolvim ento das forças produtivas: “ Conforme a produção
capitalista se desenvolve em um país sua intensidade e a produtividade do trabalho vão
remont ando sobre o nível internacional. Por conseguinte, as diversas mercadorias da mesma
classe produzidas em países distintos durante o m esmo tempo de trabalho t êm valores
internacionais distintos expressos em preços distintos, quer dizer, em somas de dinheiro que
variam segundo os valores internacionais. De acordo com isto, o valor relativo do dinheiro será
menor nos países em que impere um regim e progressivo de produção capitalista do que
naqueles em que impere um regim e capitalista de produção mais atrasado. Daqui se segue
igualment e que o salário nominal, o equivalent e de força de trabalho expresso em dinheiro, tem
que ser também maior nos primeiros países que nos segundos: o que não quer dizer, de modo
algum, que este crit ério seja também aplicável ao salário real. M as ainda prescindindo destas
diferenças relativas que em relação ao valor relativo do dinheiro nos diferent es países,
encontram os com frequência que o salário diário ou semanal é maior nos primeiros países do
que nos segundos, enquant o que o preço relativo do trabalho, isto é, o preço do trabalho em
relação tanto com a mais-valia como com o valor do produto, é maior nos segundos países do
que nos primeiros” . 85
84
Em gr ande part e, pela “ concorrência dos pr odut os de subsist ência ult ramar inos” , como foi apont ado
por Karl Kaut sky em 1898, em t ext o pioneiro em que analisou as consequências da crise de sobr eprodução
do set or agrário, em consequência da penet ração das relações capit alist as de produção no cam po e da
expansão mundial do capit al (A Quest ão Agrária . São Paulo, Nova Cult ural, 1986).
85
Karl M arx. O Capit al . Livro III, Vol.1.
86
V. I. Lênin. Op. Cit .
46
ramos econômicos decisivos. Isto entrava cada vez mais em contradição com o modo de
apropriação, com a propriedade privada nas mãos de um número cada vez menor de
capitalistas. A exportação de capitais substituiu relativament e a exportação de mercadorias, o
fluxo econômico típico dos séculos XVIII e XIX, como saída necessária para a sobreprodução de
mercadorias e capitais resultant e da monopolização e sobreacumulação de capital nos principais
ramos industriais, nos países avançados. Ao investir nos países periféricos, o capital obtinha
taxas de lucro superiores, elevando a taxa de lucro geral devido à m enor composição orgânica
do capital nesses países, devida, por sua vez, ao menor custo das matérias primas e da mão de
obra e a outras vantagens. Os países centrais, desse modo, passaram a descarregar seu excesso
de capitais nos países atrasados, transformando-os crescent em ent e em colônias econômicas,
inclusive quando sua independência política foi preservada. A partilha do mundo se completara
incluindo as últimas regiões não ocupadas. Com eçou então a lut a pela sua redistribuição entre
as associações monopolistas e seus Estados, na procura de novos mercados e font es de matérias
primas.
A grande expansão econômica do século XIX viu surgirem, ao lado da Grã-Bret anha, novos
parceiros capitalistas que pret endiam uma nova partilha do mundo. Estados Unidos e Alemanha
foram os mais significativos. M as também a França e, em m enor medida, a Rússia e o Japão
tentaram fazer o m esmo. Nessa concorrência pelo m ercado mundial se preparavam as grandes
linhas dos conflit os militares interimperialistas do século XX. O “ novo capitalismo” se baseava
em sociedades por ações, forma mais plástica do capital; essa forma permit iu que a circulação
de capitais atingisse níveis até então desconhecidos, com a exportação de capitais para financiar
obras e o débito público da periferia capitalista do “ mundo desenvolvido” . A partilha colonial do
século XIX vinculou-se à exportação de capitais. Segundo Engels “ a Bolsa de Valores modifica a
distribuição no sentido da centralização, acelera enormem ent e a concentração de capitais e,
nesse sentido, é tão revolucionária quant o a máquina a vapor” . Ele sublinhou a necessidade d e
“ identificar na conquista colonial o interesse da especulação na Bolsa” ; a nova expansão do
capital tinha relação com a expansão dos int eresses financeiros. Com uma conclusão central: “ É
ainda a magnífica ironia da Hist ória: à produção capitalista só resta agora conquistar a China, e
quando finalmente o realizar, tornar-se impossível fazê-lo na sua própria pátria” .
Na década de 1890, o mesmo Engels, no prólogo aos póstumos volum es II e III de O Capit al ,
procurou situar esses fenôm enos no cont exto do desenvolvim ento geral do capitalismo: “ A
colonização é hoje uma efetiva filial da Bolsa, no interesse da qual as potencias europeias
partilharam a África, entregue diret am ente como botim às suas companhias” . Em 1843, quando
ainda era o único país exportador de capital, a Inglaterra possuía títulos da dívida pública dos
países da América Latina por valor de 120 milhões de libras esterlinas (vinte vezes mais que o
montante dos investim entos britânicos nas maiores 24 companhias mineiras além -mar). Em
1880, o montante desses m esmos títulos, da América Latina, dos EUA e do Orient e, de posse da
Inglaterra, já ascendia a 820 milhões de libras esterlinas. O “ novo imperialismo de investim ento”
era, de fato, novo , mas também continuidade de um processo precedente. Na primeira onda
colonizadora, à época da “ revolução com ercial” mercantilista, os colonizadores europeus
concentraram-se sobre o continent e am ericano. Já o imperialismo do século XIX concentrou-se
na Ásia e na África.
O “ neoim perialismo” não mais buscava enriquecer principalment e o Estado e seus exércitos pela
acumulação de ouro e prata; beneficiava diret am ente a alta burguesia metropolitana, a partir
do monopólio dos novos mercados, para onde era destinado o excedent e de capital
metropolitano. Outros tipos de mat érias primas eram priorizados na exploração colonial: ferro,
cobre, petróleo e manganês, produtos requisitados pela nova indústria. A Ásia, em pouco
tempo, transformou-se em zona abast ecedora de produtos primários para a Europa, e teve a
maior parte de sua indústria artesanal destruída. A Índia, depois de séculos de dominação, havia
se transformado num prot etorado inglês. A China foi pouco a pouco " dom esticada" ao com ércio
47
com os europeus. Conseguiu, diferentement e da Índia, sempre mant er-se como unidade política
independent e. No século XIX, no entanto, o poder imperial chinês prat icament e já não detinha
autoridade sobre seu t erritório; o comércio entre Europa e China foi tornando-se cada vez mais
desigual. A Inglaterra obteve grandes concessões territoriais, enclaves com direit o de
" extraterritorialidade" : as concessões (Hong Kong, Kow loon, Birmânia, Nepal) situavam-se,
assim como os próprios ingleses residentes na China, fora do alcance das leis locais.
A depressão mundial, por outro lado, foi base para crises políticas internacionais: “ Na velha
estrada do capital, o cartaz da livre concorrência, que queria evidenciar as forças
autorreguladoras do sistema, indicava uma via morta, enquanto outro cartaz indicava que os
tempos corriam em direção ao ‘monopólio’ e para um novo sist ema de privilégios. O termo
‘neocapitalismo’ assinalou, num primeiro momento, um complexo de fenômenos que os
conservadores chamavam e ainda chamam ‘pontos obscuros do industrialismo ou capitalismo’:
o surgiment o das crises de sobreprodução, sobret udo a fundamental, desse período, que se
est ende depois de 1870, e a de 1907, ou melhor, a evidência da existência de um ciclo
econômico; a concentração da produção industrial e o surgimento de coalizões monopólicas
dom ésticas e internacionais; a nova onda de protecionismo; o acirramento do colonialismo; a
ampliação do mercado financeiro internacional e da exportação de capitais; a perigosa expansão
do crédito mobiliário e a posição dominante assumida pelos bancos mistos em diversos setores
industriais, berço de graves crises financeiras para alguns países; a ampliação e endurecim ento
das associações operárias, o reforço dos part idos socialistas” . 87 O “ neocolonialismo” não era,
como o colonialismo mercantilista do passado, uma alavanca da acumulação originária de
capital, mas um instrumento de luta contra a crise de um capitalismo desenvolvido até o estágio
do monopólio nas met rópoles capitalist as.
O velho monopólio industrial da Inglaterra se enfraqueceu no último quartel do século XIX, pois
outros países metropolitanos, por meio de políticas alfandegárias prot ecionistas, tinham -se
transformado em Estados capitalistas independent es, que concorriam vant ajosam ente com
Inglaterra nos ramos de produção mais important es: o carvão, principal fonte de energia, tinha
um rendimento anual de 900 kg/ t rabalhador na França, de 1.100 na Inglat erra, de 1.200 na
Alemanha e... de 3.800 nos EUA. As exportações da periferia capitalista acompanharam a
tendência: em 1860, metade do total das exportações da Ásia, África e América Lat ina se dirigiu
a um só país, a Grã-Bret anha. Por volta de 1900, a part icipação britânica nas exportações desses
continent es caíra para um quarto do total, e as exportações periféricas para outros países da
Europa já superavam as destinadas à Grã-Bretanha (tot alizando 31%, contra 25% brit ânicos). Os
países industriais importavam crescent em ent e mat érias primas dos países atrasados: só
conseguiam fazer face ao seu próprio consumo via importação da Europa oriental, Ásia, África,
América e Oceania.
87
Giulio Piet ranera. Il Capit alismo M onopolist ico Finanziario. Napoles, La Cit t à del Sole, 1998.
48
finalment e, a partilha econômica e política do mundo se complet ou, incluindo as ultimas zonas
não ocupadas, começando a lut a pela sua redistribuição entre as associações monopolistas e
seus Estados.
DISTRIBUIÇÃO DOS CAPITAIS INVESTIDOS NO ESTRANGEIRO (1910: bilhões de marcos)
Europa 4 23 18 55
América 37 4 10 51
Tot al 70 35 35 140
“ Entre 1876 e 1915, cerca de um quarto da superfície continent al do globo foi distribuído ou
redistribuído, como colônia, entre m eia dúzia de Est ados. A Grã-Bretanha aument ou seus
territórios em cerca de dez milhões de quilôm etros quadrados, a França em cerca de nove, a
Alemanha conquistou mais de dois milhões e meio, a Bélgica e a Itália pouco menos que essa
ext ensão cada uma. Os EUA conquistaram cerca de 250 mil, principalment e da Espanha, o Japão
algo em t orno da mesma quantidade à custa da China, da Rússia e da Coreia. As ant igas colônias
africanas de Portugal se ampliaram em cerca de 750 mil quilômetros quadrados; a Espanha,
mesmo sendo uma perdedora líquida (para os EUA), ainda conseguiu t omar alguns territórios
pedregosos no M arrocos e no Saara ocidental. O crescimento da Rússia imperial é mais difícil de
avaliar, pois todo ele se deu em territórios adjacentes e constituiu o prosseguim ento de alguns
séculos de expansão t erritorial do Estado czarista; ademais, a Rússia perdeu algum território
para o Japão. Dentre os principais impérios coloniais, apenas o holandês não conseguiu, ou não
quis, adquirir novos territórios, salvo por meio da ext ensão de seu controle ef etivo às ilhas
indonésias, que há muito " possuía" formalmente. Dentre os m enores, a Suécia liquidou a única
colônia que lhe restava, uma ilha das Índias Ocidentais, vendendo-a à França, e a Dinamarca
estava prestes a fazer o mesmo, conservando apenas a Islândia e a Groenlândia como territórios
dependent es” . 88
Ao cabo do processo, 56% da superfície do planeta (75 milhões de km², para um total de 134
milhões) estavam colonizados por potências cujas superfícies territoriais (16,5 milhões de km²)
mal ultrapassavam 12% do total das t erras emergidas, isto em que pese às pot ências
imperialistas incluírem dois países de dimensões continentais (os EUA e a Rússia). Nos territórios
diret am ente colonizados habitava mais de 34% da população da Terra, esse percentual não
incluindo a população das semicolônias (China, Argentina, ou Brasil, por exemplo). Sobre a base
do enorm e desenvolvimento do comércio mundial, o movimento foi desigual e contraditório:
nos países avançados a indústria avançou, em especial a indústra pesada; os países se
urbanizaram, a renda nacional progrediu, assim como a percentagem dos trabalhadores
industriais na população total. Nos países periféricos houve também “ modernização” , mas em
ritmo mais lento, e aum entando a sua distancia econômica em relação aos países mais
desenvolvidos.
88
Eric J. Hobsbawm. Op.Cit .
49
qualquer lugar da costa da África que ainda não esteja sob a dominação de uma nação
europeia” . A corrida das potências europeias por colônias era uma busca por supremacia
mundial, mas era apresentada como uma busca por sobrevivência. Em 1800, os europeus
ocupavam ou cont rolavam 35% da superfície terrestre do mundo; em 1878, esse percentual
tinha aumentado para 67%, e em 1914, para 84%. Na virada para o século XX, mais da metade
da superfície terrest re, e mais de um t erço da população do planeta, se encont rava nas colônias
das pot ências europeias, Inglaterra em primeiro lugar.
Distribuição dos investimentos externos
Países investidores
50
para a periferia os setores m enos intensivos em capital: Europa só produzia 42% dos têxt eis que
consumia, importando o restante das colônias e sem icolônias. A indústria química progrediu
com a invenção do plástico, da nitroglicerina e das indúst rias sintéticas: seus centros eram os
EUA e a Alemanha. A metalúrgica era a indústria principal: 500 mil toneladas de aço foram
produzidas em 1875, 74 milhões em 1913; 13 toneladas foi a produção de alumínio em 1885, 65
mil em 1913. A agricultura se transformou em função do progresso indust rial, de modo desigual,
pois o rendimento era muito maior nos países em que ela se industrializou e se praticou a
especialização das terras. As comunicações terrestres experimentaram também uma explosão,
com 209 mil quilômetros de estradas de ferro em 1870, e mais de um milhão em 1913. As
carret eiras experimentaram cresciment o sem elhant e, especialment e nos EUA, com a produção
industrial do automóvel. A estrada ressuscit ou com o automóvel: 2 milhões em 1913 (63% nos
EUA). A navegação marítima explode com o barco em metal e o encurtam ento das distâncias
at ravés dos canais (Suez, Corinto, Panamá, Kiel). Começou a navegação aérea: Blériot atravessou
o Canal da M ancha em 1909; Roland Garros, o M editerrâneo em 1913. Surgiu também a aviação
militar.
CAPITAL INVESTIDO NO ESTRANGEIRO (Em bilhões de francos)
Anos Inglat erra França Alemanha
1862 3,6 -- --
1872 15 10 --
1882 22 15 ?
1893 42 20 ?
1902 62 27-37 12,5
1914 75-100 60 44
Inglaterra mant eve a dianteira em mat éria de investimentos externos at é a Prim eira Guerra
M undial, mas seu volume total, assim como os da França, quadruplicou no período, enquanto
os invest imentos da Alemanha multiplicaram-se por 50, os dos EUA por 35 (os dos “ outros
países” , principalment e europeus, por 14). O declínio econ ômico relativo do Império Brit ânico
foi compensado pela manut enção de sua posição política. Devido à sua primazia polít ica
internacional, o capitalismo britânico pôde, durante longo tempo, ter uma balança comercial
deficitária; suas exportações de produtos industriais manufaturados eram cronicam ent e
inferiores às suas importações de mat érias-primas. Esse déficit com ercial era compensado pelos
ingressos " invisíveis" provenient es dos lucros dos capitais britânicos investidos no estrangeiro.
Alemanha, por sua vez, considerava impróprio que o seu poder industrial não encontrasse
51
reflexo nas possessões t erritoriais, muit o inferiores em relação às inglesas. O imperialismo
detinha maior importância na velha Inglaterra: sua hegem onia tinha como base à capacidade de
dominar os mercados internacionais e as fontes de mat érias primas, através da sua marinha
mercant e. Preservar seu acesso privilegiado ao espaço não europeu era a bandeira da política
econômica britânica.
Investimentos externos das grandes potências (em milhões de libras esterlinas)
Os invest im entos ext ernos quase sextuplicaram em pouco mais de três décadas; nesse marco,
os investiment os brit ânicos “ só” quadruplicaram. Os governantes da Inglat erra vitoriana
empreenderam uma cam panha de conquistas, conseguindo governar 25% da superfície do
globo terrestre (incluídas Canadá, Austrália, Nova Zelândia, Índia, Birmânia e África do Sul). A
chave para o sucesso britânico estava, em primeiro lugar, na exploração das possessões
anteriores, sobret udo da Índia, sua colônia mais important e e o pilar de t oda sua estratégia
global. A política imperial inglesa tinha em grande consideração a proteção das rotas para o
subcontinent e indiano. Para além do cont role absoluto do Oceano Índico (verdadeiro " lago"
inglês), os brit ânicos controlavam a antiga “ Rota do Cabo” (África do Sul; e parcelas da costa
oriental africana), bem como as rotas interoceânicas mais diretas (Egito - canal do Suez; M ar
Verm elho; Omã - Golfo Pérsico). A aquisição de novos territórios africanos pode ser vista com o
uma medida defensiva dos interesses orientais ingleses, que agora sofriam o ataque de outras
potências. A especificidade imperialista da Grã-Bret anha também se pode m edir pela sua
capacidade de continuar a mant er sua posição privilegiada de parceiro econômico único de
certas regiões independentes (Uruguai, Argentina, Brasil, Portugal).
52
multidirecional de capitais metropolitanos. Nessas condições econômicas mundiais, o
colonialismo jogava um novo papel histórico.
Colônias das pot ências imperialistas (comparativo entre 1870 e 1914)
53
mesmo modo, como pesarmos as presunçosas afirmações sobre os benefícios vitais do
transport e a vapor e dos modernos m ercados de grãos, quando tantos milhões, sobretudo na
Índia britânica, morreram ao lado dos trilhos das ferrovias ou nos degraus dos depósitos de
grãos? E como explicarmos, no caso da China, o drástico declínio na capacidade do Estado de
proporcionar assistência social popular, em especial no socorro à fome, que pareceu seguir a
passo t ravado a forçada " abertura" do império para a modernidade pela Grã-Bretanha e as
outras potencias... Não estamos tratando de "t erras de fome" paradas nas águas estagnadas da
história mundial, mas do destino da humanidade tropical no exat o momento (1870-1914) em
que sua mão de obra e seus produtos eram dinamicament e recrutados para uma economia
mundial centralizada em Londres. M ilhões morreram, não fora do " sistema mundial moderno" ,
mas exat ament e no processo de violenta incorporação nas estruturas econômicas e políticas
desse sistema. M orreram na idade de ouro do capitalismo liberal; na verdade, muitos foram
assassinados, como verem os, pela aplicação teológica dos princípios sagrados de Smith,
Bentham e M ill” .89
89
M ike Davis. Holocaust os Coloniais. Clima, fome e imper ialismo na formação do Terceiro M undo. Rio de
Janeiro, Record, 2002.
54
sobrevivência do mais capaz ditava a sorte das nações tal como nas espécies animais. As lutas
das grandes potências já não focavam apenas questões europeias, mas também m ercados e
territórios que se estendiam por todo o mundo. Os Estados aliment avam um sent im ent o
nacionalista que afetava não só a m entalidade coletiva dos povos subjugados a uma dominação
estrangeira, mas também os Estados com uma população homogênea. Nestes últimos, essa
ideologia traduzia-se pela vontade de afirmar o poder do Estado e de aumentar seu prest ígio e
influência no mundo. Os “ darw inistas sociais” eram a variante mais resoluta daqueles que, com
Herbert Spencer, transpunham para a sociedade as leis da evolução biológica. Por trás dessas
manifestações havia um processo econômico de consequências sociais e políticas que
marcavam uma virada de época.
Importa também assinalar a queda dos ant igos impérios pré-indust riais de Portugal e Espanha,
incapazes de resistir à máquina industrial moderna dos seus vizinhos europeus. Na Ásia, apesar
da sobrevivência de seus velhos impérios (China, Japão, Turquia, Sião), os europeus
consolidaram grandes áreas de influência (Índia, Birmânia, Tibete, Pérsia - Inglaterra; Indochina
- França; Indonésia - Holanda). M esmo os países tradicionalmente mais fechados, como China e
Japão, abriram a suas economias à influência e aos capitais estrangeiros. Perant e a investida
europeia, apenas a América se manteve “ intacta” na sua independência política; além do
nacionalismo provenient e das guerras de independência est ar ainda vivo nas Américas, os EUA
surgiram como pot ência industrial e iniciaram um processo de expansão da sua esfera de
influência no continent e. Os europeus compreenderam, pela observação ou pela força, que o
" Novo M undo" era inacessível em termos coloniais, devido à influência dos EUA, que já se
expressava na ideologia do panam ericanismo, herdeiro da “ Doutrina M onroe” proclamada em
1823. M as era acessível em t ermos com erciais e financeiros: Brasil e Argentina, principais países
da América do Sul, se transformaram em semicolônias do capit al britânico.
O marco cronológico de 1898, com a guerra hispano-am ericana, foi decisivo. Essa guerra
marcou, segundo Philip S. Foner, 90 o início do imperialismo norte-am ericano. A polít ica
continental dos EUA se desdobrou em política mundial, com sua participação na repressão à
revolta dos Boxers na China, sua arbitragem na guerra-russo japonesa e, finalment e, sua
intervenção na Prim eira Guerra M undial, at endendo às necessidades expansivas do capital
norte-americano. América Latina cont inuaria sendo a base histórica do imperialismo ianque,
que seria, junto com a onda expansiva da Revolução Russa de out ubro de 1917, uma das forças
mundiais determinantes da história do século XX. A hegemonia do capital financeiro criou as
bases econômicas do imperialismo capitalist a. Essa base conseguiu funcionar eficazm ent e
também graças aos novos meios técnicos a serviço do capital: as novas tecnologias permitiram
mudanças na estrutura do poder do Estado. O imperialismo inaugurado na segunda metade do
século XIX, com a partilha africana e a definição de domínios coloniais na Ásia, foi possível graças
aos novos meios de transport e e comunicação (ferrovias e telégrafo) que modificaram a
estrut ura das redes de comunicação em todos os níveis, propiciando uma est rutura
descentralizada de poder em diversas escalas, que passou a ser comum na art iculação das
organizações estatais e privadas. O imperialismo capit alista completou, desse modo, a
unificação econômica do mundo sob a égide do capit al financeiro.
A mudança não só afetou às formas dominant es do capital, mas também suas relações com a
força de trabaho. Foi durante a “ grande depressão” que desenvolveu sua atividade Frederick
Winslor Taylor (1856-1915), que propôs uma “ gerência científica do trabalho” a partir de suas
observações do trabalho nas minas de carvão, nos EUA. Ao abrirem-se novas frent es de
acumulação capitalista, o capit al se defrontava com os limites derivados de sua dependência do
trabalho vivo. A “ guerra de Taylor” foi pela dissociação dos processos de trabalho das
90
Philip S. Foner. La Guerra Hispano-Americana y el Surgimient o del Imperialismo Nort eamericano (1895-
1902). M adri, Akal, 1975.
55
habilidades do trabalhador, separando conceitual e praticam ent e a concepção do t rabalho de
sua execução. Taylor buscou, através da descrição, análise e controle dos movim entos do
processo de trabalho, a maneira de objetivar os fatores ainda subjetivos do trabalho. O fordismo,
com o uso pioneiro das linhas de montagem na indústria automobilística dos EUA, nasceu no
est eio do t aylorismo , que buscava administrar e simplificar a execução de cada trabalho
individual: Henry Ford realizou esse objetivo de forma social, ao submet er todas as etapas do
trabalho ao ritmo da esteira, tal como caricaturizado no filme de Charles Chaplin, Tempos
M odernos. Filho da depressão econômica mundial, o capitalismo monopolista inaugurava o
reino da subsunção real do trabalho ao capital.91
91
Benedit o Rodrigues de M oraes Net o. M arx, Taylor e Ford. As f orças produt ivas em discussão. São Paulo,
Br asiliense, 1991; Harry Braver man. Trabalho e Capit al M onopolist a. A degradação do t r abalho no século
XX. Rio de Janeiro, Guanabara, 1987.
56
M OVIM ENTO OPERÁRIO E SOCIALISM O
Não era só o grande capit al que se int ernacionalizava. Junto com ele, se desenvolvia e
internacionalizava também a classe operária: as últ imas décadas do século XIX se caract erizaram
pelo desenvolvimento de sua organização sindical e política, dos partidos socialistas e das
corrent es anarquistas. A concentração de capitais operada na segunda metade do século XIX
forjara os monopólios industriais e financeiros, mas também uma classe operária numerosa,
com elevado espírito de organização e de luta, nos principais países capitalistas. Nas fábricas
Krupp em Hessen (Alemanha) concentravam-se mais de 45 mil operários. Ao mesmo t empo
surgia uma “ aristocracia operária” (conceito mais amplo que o de “ burocracia sindical” ) nos
países imperialistas. Assim como o intercâmbio com ercial com as regiões periféricas tinha sido,
ao longo do século XIX, um pilar da ordem europeia (ao rebaixar os preços dos artigos de
consumo corrent e, importados das colônias e semicolônias), os benefícios extraordinários
monopolistas cumpriram um papel semelhant e, ao permitir à burguesia dos países imperialistas
a elevação do nível de vida de uma camada da classe operária m etropolit ana, pondo um
obstáculo ao seu desenvolviment o revolucionário.
“ O proletariado inglês - constatou Engels - está-se tornando cada vez mais burguês; de modo
que, ao que parece, esta nação mais burguesa que t odas as demais tende a ter, em última
instância, tanto uma aristocracia operária, como uma burguesia. Certament e, isto se explica até
certo ponto no caso de uma nação que explora o mundo inteiro” . No que se refere ao século XIX
britânico, o conceito de aristocracia operária apoiava-se sobre bases sólidas. Engels “ afirmava
que esta aristocracia operária se tornara possível graças ao monopólio industrial da Inglaterra e
que, portanto, desapareceria ou se confundiria com o resto do proletariado com o fim daquele
monopólio” . 92 Não foi o que aconteceu; com a expansão do imperialismo europeu e nort e-
americano o fenôm eno se generalizou. Na segunda década do século XX, Lênin constatava: “ Os
benefícios extraordinários que os capitalistas obtêm da exploração das colônias e semicolônias
lhes dão a possibilidade de corromper uma camada operária privilegiada, conquistada por cada
burguesia nacional para a batalha que livra pela partilha do mundo” .93
92
Eric J. Hobsbaw m. Trabalhadores. Est udos sobre a hist ór ia do operariado. Rio de Janeiro, Paz e Terra,
1981.
93
V. I. Lênin. Op. Cit .
94
Os “ Pioneiros de Rochdale” f oram um grupo de t rabalhadores ingleses que iniciaram o moviment o que
se conheceu depois como cooperat ivismo, lançado em 1844 com a const it uição da primeira cooperat iva
de consumo. Rapi dam ent e, o cooperat ivismo est endeu-se para a Eur opa cont i nent al. Os dirigent es
“ cart ist as” mais import ant es crit icaram-no de forma sever a, o que não im pediu que o cooperat ivismo
progredisse de maneira cada vez mais rápida e fosse post ulado como alt ernat iva à lut a de classes. Seus
inegáveis sucessos, no ent ant o, fizeram com que se afast asse do moviment o operário milit ant e e
ant icapit alist a um cont ingent e significat ivo de t rabalhador es.
57
algumas exceções, a produção de art igos de consumo para o mercado barato de massa (roupas
feitas, por exemplo) não começara.
Na segunda metade do século XIX, a industrialização avançou enorm em ente, nas metrópoles
europeias e também em áreas “ periféricas” (do pont o de vista capitalista). Desenvolveram-se
as indústrias de bens de capital, produzindo em larga escala equipamentos, máquinas, navios,
produtos químicos, empregando uma grande massa de trabalhadores. Segundo Anton
Pannekoek: “ A história do trabalho mostra-nos que há, na luta incessante da classe operária,
altos e baixos que correspondem na sua maioria às variações da prosperidade industrial. No
com eço do desenvolvimento industrial, cada crise trazia a miséria e movim entos de revolta; a
revolução de 1848 no cont inent e era a sequela de uma grande depressão econômica com binada
com as más colheitas. A depressão industrial dos anos 1867 originou uma renovação da agitação
política em Inglaterra, a grande crise dos anos 1880, o desemprego enorm e que se lhe seguiu,
suscitaram ações de massas, a ascensão da socialdemocracia no continent e e o novo
sindicalismo em Inglaterra. M as nos períodos de prosperidade indust rial, entre 1850 e 1870,
1895 e 1914, todo esse espírito de revolta desapareceu” .96
Nesse quadro, em 1883 o Estado alemão adotou o " sistema de seguro-doença mais complet o
do mundo" prevendo um seguro, garantido pelo Est ado, vigent e a partir do primeiro dia da
doença ou da invalidez temporária ou definitiva causada por acidente de trabalho. O seguro foi
depois est endido aos parent es (viúva ou filhos) dos trabalhadores: a patronal devia pagar um
terço do " fundo" (ou " caixa" ) e administrá-lo, mas, em caso de conflito, uma comissão de
arbit ragem, paritária (dois representant es dos trabalhadores e dois dos patrões, com um
representant e do Estado) intervinha: o seguro foi est endido ao tratam ento médico, ao período
de mat ernidade e ao seguro desemprego (quando causado por acidente ou doença),
supervisionado por um ent e est atal com represent ação dos trabalhadores: nada de sem elhant e
existia no mundo. Essas iniciativas foram um aspect o da luta contra a “ socialdemocracia
subversiva” alemã, o partido fundado em 1875 que liderava o processo de organização dos
95
Eric J. Hobsbawm. Tendências do moviment o t rabalhist a inglês desde 1850. In: Trabalhadores. Est udos
sobre a hist ória do operar iado. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1981, pp. 319-347.
96
Apud Serge Bricianer. Ant on Pannekoek y los Consejos Obreros. Buenos Aires, Schapire, 1975.
58
partidos operários na Europa. Bismarck estava decidido a oferecer aos trabalhadores m edidas
que, pensava, os levariam para a aceitação da ordem, melhorada pelo Estado.
Segundo um inform e hodierno do Banco M undial: "Em 1889 o chanceler alemão Ott o Von
Bismarck aproveitou a oportunidade política que se lhe oferecia para apaziguar os trabalhadores
industriais e distanciá-los dos socialistas e criou o primeiro plano nacional participativo de
seguridade econômica para a velhice, dando assim aos t rabalhadores um int eresse econômico
no governo central" . Ou seja, o princípio de fazer a revolução antes que o povo (o proletariado)
a fizesse; em finais do século XIX, Gumercindo de Azcárate (1840-1917), catedrático espanhol
de Direito, escrevia: " As leis chamadas operárias ou sociais são expressão da aspiração ou desejo
de resolver a antítese exist ent e entre o Direito privado e o público, de empreender o lento
caminho das reformas para evitar o violento das revoluções" . 97 A previdência social nasceu
como uma conquista dos operários alemães, no ent anto m ediada pelo Estado. Nos outros
países, os benefícios sociais foram arrancados pelo movimento operário ao longo de décadas de
luta. Na Inglaterra, sob a influência da Sociedade Fabiana e, finalment e, do Partido Trabalhist a,
a conquista da seguridade social se tornou um dos principais elem ent os da vida inglesa. Em
1897, o Workmen's Compensation Act introduziu o seguro para acidentes de trabalho, ao qual
se seguiu, na primeira década do século XX, uma série de leis ampliando a seguridade social às
doenças, invalidez, desem prego e velhice.
97
Gumer sindo de Azcárat e. Discurso sobre la cuest ión social leído el 10 de noviembre de 1893 en el At eneo
de M adrid . ht t p:/ / www.eum ed.net / cursecon/ t ext os/ 2005/ azcarat e.ht m: “ El Est ado, además de las
ant iguas f unciones de limit ación, integración y t ut ela, est á llamado a ejercit ar en el mundo moder no una
que es por complet o nueva, que suele denominarse función propiament e social, y cuyo objet o ha de ser la
resolución del conflict o en que hoy est án empeñados capit alist as y obreros; bien está que se llamen leyes
sociales t odas las dict adas en est os últ imos años sobre asunt os ínt imament e relacionados con la cuest ión
obrera ” .
98
A iniciat iva não vingou, pois os operários judeus na Inglat erra e na Eur opa ocident al cont inent al eram
muit o escassos, não assim na Rússia e na Europa orient al. Liberman (1844-1880) foi considerado, junt o
com M oses Hess, um dos primeiros “ socialist as judeus” . O manifest o da Associação de Trabalhador es
Judeus f oi publicado inicial e inusit adament e, em hebraico (língua “ cult a” , mas não falada popularment e)
e só depois t raduzi do para o iídische, língua consi derada dialect al pelos judeus ocident ais. Liberman
pert encia a uma ger ação de int elect uais judeus influenciados pela aufklãrung, cujo berço int elect ual for a
a escola rabínica de Viena. Liberman morreu jovem, suicidando-se nos EUA.
59
partido conseguiu seu primeiro deputado no parlamento espanhol, vaga ocupada por Iglesias; o
PSOE, depois, foi aumentando sua representação parlamentar.
Na Bélgica, país mais indust rializado da Europa continental, Bakunin e Blanqui acharam eco
entre os operários francófonos (valões); a socialdemocracia alemã tinha mais influência entre
os flamencos, de fala germânica. A unificação socialista aconteceu em 1889, dando nasciment o
ao Partido Socialista Belga, com Emil Vandervelde e Edouard Anseele na sua direção. O partido
com eçou a conquistar bancas no Parlam ento a partir de 1894, graças à ampliação do sufrágio
obtida depois de uma série de greves. Na Dinamarca se const ituiu em 1880 um Partido Socialista
sobre a base das organizações sindicais e políticas locais, que em 1889 agrupavam 20.000
filiados. Em 1889, sob a influência do partido dinamarquês, surgiu um part ido operário na
Suécia. Em Noruega, em 1883, surgiu a federação sindical e, em 1887, o Partido
Socialdemocrat a. Na Suíça, os sindicatos se uniram em 1873 formando a Federação Suíça de
Trabalhadores; em 1888, se fundou o Partido Socialdemocrata Suíço. Em 1883, como veremos,
os socialist as marxistas russos Guiorgi Plekhánov, Pável Axelrod, Vera Zassulich e Leo Deutsch
constituíram, na Suíça, o primeiro grupo socialista marxista russo. Finalment e, em 1892 se
formou na Polônia o Partido Socialdemocrata da Polônia Russa e de Lituânia, com Leo Jogiches, 99
e Adolf Warski como principais dirigentes. Em 1893, Rosa Luxemburgo representou o partido no
Congresso de Zurique da Segunda Internacional. O moviment o de organização sindical e política
da classe operária se estendeu com velocidade fulminant e na Europa Oriental, Central e do
Norte.
99
Leo Jogiches (1867-1919), chamado de Tychko , ou de Leon Tyszka, foi um dos fundadores da
socialdemocracia polaca e lit uana. Filho de rico comer ciant e, nasceu em Vilna. Em 1890, mudou-se para
Suíça, onde encont rou Rosa Luxem burgo, Alexandra Kollont aï, Georgi Plekhánov e Kar l Kaut sky. Em 1892
fundou o Part ido Socialdemocrat a da Polônia, publicando o jornal Spraw a Robot nicza (A Causa Operária)
em Paris, devido à ilegalidade do part ido em seu país. Depois da revolução de 1905, Jogiches e Rosa
Luxem burgo, em relação marit al, mudaram-se par a Varsóvia, onde f oram det idos, sendo obrigados a viver
na Alemanha. Opunham-se a Lênin, que apoiava a fração da socialdemocracia polonesa dirigida por Karl
Radek. Em 1914 Jogiches criou, dent ro do Par t ido Socialdemocrat a Alemão, junt o com Kar l Liebknecht ,
Franz M ehring, Rosa Luxem burgo, Paul Levi, Ernest M eyer, Franz M ehring, Clara Zet kin e out ros, a
Spart akusbund (Liga Spart acus), or ient ado por “ Princípios Diret ores” redigidos por Rosa Luxemburgo.
Devido à posição cont ra a Primeira Guerra M undial do Spart akusbund , Rosa Luxemburgo, Liebknecht e
out ros espart acist as foram det idos at é o final da guerra, quando o governo de M ax von Baden out orgo u
uma anist ia polít ica. O governo do socialdemocrat a Friedrich Ebert , em janeiro de 1919, passou a
perseguir, det er e eliminar os espart acist as, nessa alt ura já organizados no KPD (Part ido Comunist a da
Alemanha). Leo Jogiches foi assassinado na prisão em 10 de março de 1919, um mês após o assassinat o
de Rosa Luxem bur go e Karl Liebknecht , que ele invest igou e denunciou publicament e como obra do
conl uio ent r e a socialdemocracia e o Est ado M aior do exérci t o alemão.
60
Na França, o moviment o operário experim ent ou grandes dificuldades, pois sua organização
sofreu as consequências da violenta repressão da Comuna de Paris. Cent enas de dirigent es e
quadros socialistas tinham sido mortos; muitos foram encarcerados na “ Ilha do Diabo” (em
Cayenne, na Guiana francesa), onde não poucos morreram; outros ficaram longos anos no exílio,
em países tão longínquos quanto Argentina (onde participaram da organização dos primeiros
sindicatos), M éxico ou Brasil. A anistia de 1879 perm itiu o retorno de muitos exilados, como
Jules Dumas (exilado na Argentina), que virou deput ado socialist a na Segunda República. Ao
redor de Jules Guesde, 100 dirigente marxista, se formou a Federação de Trabalhadores
Socialistas, com um programa semelhant e ao de Erfurt dos socialdemocratas alemães. Os
guesdistas t entavam promover uma política que permit isse ao proletariado se pôr na frent e de
uma aliança com o campesinat o e a pequena burguesia urbana, e sublinhavam o papel
det erminante da luta de classes; ficaram sob o fogo cruzado de socialistas moderados e de
“ sindicalistas” , est es dirigidos por Fernand Pelloutier, pai do “ sindicalismo de ação direta” e das
Bolsas de Trabalho, correntes que rejeitavam as alianças com camadas não proletárias.
Em 1881, Paul Brousse ficou no Partido Operário Francês (POF) à cabeça dos opositores a Jules
Guesde. Brousse propunha lutar por reformas imediatas dentro do capitalismo, levando adiante
uma política que possibilitasse a conquista dos municípios, através de uma organização não
centralizada, com alt o grau de autonomia local. Brousse se contrapunha a Guesde, defensor de
um esquema político centralizado, sem elhante ao do Partido Socialdemocrata Alemão. A divisão
entre as duas corrent es se concretizou em 1882, no congresso socialista de St. Et ienne. Brousse,
dirigent e dos " possibilistas" , conquistou a maioria, e formou o Partido Operário Socialista
Revolucionário, mantendo o cont role da Federação de Trabalhadores Socialistas. Os guesdistas
se ret iraram e const ituíram o Partido Operário Francês. Em 1884, os guesdistas deram origem à
Federação Nacional de Sindicatos, inicialmente m uito bem sucedida. Em seu primeiro
congresso, em 1886, a Federação colocou um problema que fez polêmica: a questão da greve
geral como arma de luta. Os partidos dos outros países oscilaram durant e esta etapa entre a
férrea unidade socialista, defendida e praticada pelos alemães, e o constante fracionam ento dos
franceses.
100
Jules Bazile, dit o Jules Guesde, (1845-1922), foi um dirigent e socialist a francês, considerado, com Paul
Lafargue, repr esent ant e das ideias de M arx nos inícios do moviment o socialist a da Fr ança, por int ermédio
de seu jornal L'Égalit é (1877-1883). Dirigiu out ras revistas, como Prolét aire e a Revue Socialist e.
Deliberada a criação de um part ido de t rabalhador es (Part i Ouvrier ), na França, em 1879, no Congresso
Socialist a ocorrido em M arselha, seus dirigent es, encabeçados por Guesde, resolveram dirigir-se a M ar x
e Engels, at ravés de Paul Lafargue, com vist as a que ajudassem a elaborar um projet o de programa. M arx
e Engels declararam-se dispost os a colaborar. Em maio de 1880, Guesde dirigiu-se a Londr es, onde
junt am ent e com M arx, Engels e Laf ar gue, elaboraram o progr ama do Part i Ouvrier . O programa se
com punha de uma int rodução t eórica e de uma part e prát ica, denominada “ Programa M ínimo” . A
int rodução t eórica foi dit ada por M arx a Guesde, que a redigiu em língua francesa. Durant e a Primeira
Guerra M undial, Guesde assumiu uma posição socialpat riót ica.
61
organizado. Foi necessário esperar que se desenvolvesse o processo de industrialização do
Norte de It ália para que se pudesse constituir um partido socialista baseado na classe operária
industrial. Lançado o processo de organização operária e socialista, est e adquiriu um caráter
vertiginoso. Andrea Costa e Carlo Cafiero (que escreveu um divulgado resumo de O Capital )
fundaram a associação “ Il Fascio Operaio ” . Em 1880, Ermino Pescat ore fundou em M ilão os “ Figli
di Lavoro” ; em 1882, em M ilão, com Constantino Lazzari e Giuseppe Croce, surgiu o Part it o
Operaio Italiano . Em 1883, se celebrou em Varese o primeiro congresso nacional operário da
península. Em 1886, o governo italiano dissolveu os “ Figli di Lavoro ” e o Partito Operaio Italiano,
pondo na prisão seus dirigent es. M as, em 1891, se celebrou em M ilão o segundo congresso do
partido.
Em 1892 se fundou em Gênova o “ Partito dei Lavoratori Italiani ” , ao qual se somaram boa parte
dos membros do Partit o Operaio Italiano . Foram decisivos, nesse congresso, Filippo Turati,101
Anna Kulischoff e Enrico Ferri. Em 1895, no Congresso de Parma, o nome do partido mudou para
Partit o Socialista Italiano, PSI, que seria o definitivo. Em 1898, o Partido Socialista e a maior
parte das Câmaras de Trabalho foram objeto de outra medida de dissolução governam ental:
foram presos num erosos dirigent es do movimento operário e outros tiveram que fugir para o
estrangeiro. Em 1900, superada essa etapa, no Congresso de Roma, a ala reformista, sob a
liderança de Filippo Turati, se integrou ao renascido Partido Socialista. Em 1903, no congresso
de Bolonha, as alas de esquerda do partido obtiveram preponderância: reprovou-se a polít ica
de apoio ao governo liberal. Em 1906, em M ilão, se fundou a Confederação Geral de
Trabalhadores (CGL) e se estabeleceu uma íntima colaboração entre a CGL e o PSI. Em 1910,
Filippo Turat i sucedeu, no cargo, o falecido presidente do partido, Andrea Costa. Entre 1911 e
1912, a guerra de Itália contra Líbia e Turquia provocou intensas discrepâncias no int erior do
partido. A maioria do PSI se pronunciou cont ra a guerra e contra a anexação de Líbia. No mesm o
ano, no congresso de Reggio Emilia, o grupo formado ao redor de Bissolati, Bonomi e Cabrini,
que apoiava a a guerra, foi expulso do partido. Bissolat i fundou então um partido socialista
reformista. Benito M ussolini, pert encent e à ala esquerda do PSI, assumiu então a redação de
Avanti , jornal do partido, no lugar do afastado dirigent e reformist a Claudio Treves.
A maioria das organizações socialistas de Europa continental nasceu sob o influxo da teoria
marxist a, que se transformou numa espécie de programa oficial da socialdemocracia europeia.
Na Inglaterra, os sindicatos formados na expansão econômica do fim da década de 1880
recrutaram trabalhadores de todos os setores e adotaram num erosas formas de organização. O
" novo sindicalismo" foi associado com as grandes “ sociedades gerais” , os grandes corpos
organizados originados pelo movimento operário: estivadores, trabalhadores do gás, Sindicato
Trabalhista do Tyneside e out ros. M uitos destes sindicatos se fundiram para formar os sindicatos
dos Trabalhadores Gerais em Transportes e dos Trabalhadores Gerais e M unicipais, que
incluíram um quarto do total dos membros dos sindicatos ingleses. Sua força era grande, mas,
como muit os sindicatos do new unionism , eles entraram em colapso durant e a depressão da
década de 1890; não se recuperaram completam ent e até depois da expansão renovada de
1911-1914. 102 Foi no auge do imperialismo inglês que surgiu, antes do que na Europa
101
Filippo Turat i (1857-1932) foi um dos principais dirigent es do socialismo it aliano. Reformist a, levou
adiant e uma polít ica de colaboração de classes. Sua inspiração t eórica não era o marxismo, mas o
posit ivismo, dout rina que t inha dest aque no moviment o operário int ernacional, sobret udo no âm bit o da
socialdemocracia. Ent re os socialist as neoposit ivist as, se dest acaram os it alianos Enrico Ferri e Filipo
Turat i, que escreveu em 1884 que se alegrava pelo fat o de o socialismo tomar uma caract eríst ica " mais e
mais cient íf ica, mais e mais posit iva" . Durant e a Primeira Guerr a M undial (1914-1918) adot ou um a
posição cent rist a (ent re o pat riot ismo e o derrot ismo); seu part ido foi um dos poucos do socialismo
europeu que recusou a “ União Sagrada” .
102
Eric J. Hobsbawm . Os sindicat os t rabalhist as gerais na Inglat erra, 1889-1914. In: Trabalhadores.
Est udos sobre a hist ória do operariado. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1981, pp. 184-208.
62
continental, um movimento socialista reformista que se opunha à via revolucionária. A Fabian
Societ y, baseada no nome do cônsul reformador da antiga Roma, foi fundada em Londres em
1884, por um grupo de intelectuais entre os que se destacavam o escritor George Bernard Shaw
e o casal Sidney e Beatrice Webb. 103 O gradualismo reformista dos “ Fabianos” se contrapunha
explicitament e ao socialismo revolucionário marxista: discordava de M arx em relação à natureza
e ao papel do Estado, pois acreditava ser possível, numa democracia parlament ar baseada no
sufrágio universal, chegar à igualdade social e at é à supressão da propriedade privada. Os
Fabianos se engajaram em num erosas lutas pela melhora material e moral da classe operária.
M as fizeram isto apoiando a política imperialista da Inglaterra, que era, para eles, benéfica para
a economia inglesa no seu conjunto e, port anto, também para as camadas populares. Junto com
as trade-unions (sindicatos), a Fabian Society foi um ponto de apoio para a criação do Labour
Part y (Partido Trabalhist a) em 1906.
103
Em 1900, a Sociedade Fabiana ingressou no Part ido Trabalhist a.Cabe cit ar out ros nomes per t encent es
a ela : Clifford Allen, Edit h Nesbit , Clement At t lee (fut uro primeiro minist ro do Reino Unido), Sydney
Olivier, Clement i na Black, Edward Pease, G. D. H. Cole, Bertrand Russell, Walt er Crane, Richar d Haldane,
Harry Snell, St ewart Headlam, Olive Schreiner, Henry Havelock Ellis, Charles Tr evelyan, John M aynar d
Keynes, James Ram say M acDonald (t am bém fut ur o pr imeiro minist ro brit ânico), Geor ge Herbert G. Wells,
Kingsley M art in, Ellen Wilkinson. A import ância de alguns desses nomes é bem conhecida. A organização,
fundada em 1884, devia seu nome ao chefe milit ar romano Fábio M áximo (século III a. C), alcunhado
Cunct at or (o «Cont em porizador») pela sua t áct ica de expect at iva, evit ando os combat es decisivos na
guerra (vit oriosa) cont ra Aníbal. A Sociedade Fabiana compunha-se princi palment e de int elect uais;
negava a necessidade da lut a de classe do prolet ariado e da revolução socialist a, assegur ando que a
t ransição do capit alismo para o socialismo só era possível pela via das reformas e mudanças paulat inas
na sociedade. Lênin definiu a cor rent e f abiana como “ t endência de opor t unism o ext r emo” .
104
Eric J. Hobsbawm. Os Fabianos reconsider ados. In: Trabalhadores. Est udos sobr e a hist ória do
operariado. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 198, pp. 254-275.
63
reformista fosse impulsionada a partir das organizações políticas próprias da classe operária,
não como apêndice de um liberalismo declinante, que ainda venceu as eleições britânicas de
1906, nas quais o Part ido Trabalhista, em sua primeira cont enda eleitoral, obteve 29 deput ados.
A luta internacional dos trabalhadores se materializou numa grande manifest ação em Chicago
(EUA), em 1º de maio de 1886, em favor da jornada de trabalho de oito horas: durante a
manifestação pacífica, uma bomba estourou junto a um local onde forças policiais est avam
posicionadas, matando um policial e ferindo outros set e, que morreram mais tarde. A polícia
imediatam ente abriu fogo cont ra os manifestantes, ferindo dezenas e matando onze deles. O
núm ero de mortos nunca pôde ser apurado, muitos foram ent errados clandestinam ent e e
inúmeras prisões foram efetuadas. Oito organizadores da manifestação, militantes anarquistas,
foram presos e incriminados pelo acont ecimento, mesmo na ausência de evidências que os
conectassem com o lançament o da bomba. Líderes operários (e anarquistas), Albert Parsons,
Georg Engel, Adolph Fischer, Louis Lingg e August Spies, os Haymarket M art yrs, foram
condenados à morte e executados, outros foram condenados à prisão perpétua ou castigados
com penas de prisão por longos períodos.
Os mártires de Chicago
No mesm o ano do massacre de Chicago foi criada a American Federation of Labor , com Samuel
Gompers na sua direção, dirigente cuja trajet ória o transformaria em exemplo internacional de
sindicalista conservador e conciliador.105 Uma grande campanha foi organizada para salvar os
“ mártires de Chicago” . Finalmente, cinco deles foram executados, um com et eu suicídio antes
do enforcamento, e os três remanescent es receberam sent enças de prisão que foram revogadas
em 1893, quando o governador concluiu que todos os oito acusados eram inocentes. O episódio
dos Haymarket M art yrs deu origem ao 1° de M aio com o data comemorativa do s trabalhadores.
Em 1889, quando foi fundada a Internacional Socialista, pela primeira vez o proletariado
105
Bernar d M andel. Samuel Gompers: a Biography. Yellow Spr ings, Ant ioch Press, 1963. Gompers, nascido
no Reino Unido, emigrou para os EUA em 1863. Foi president e do Sindicat o dos Tr abalhador es nas
Fábricas de Cigarros (Cigarmakers' Union) e fundador da Federação Am ericana do Trabalho (American
Federat ion of Labor -AFL) em 1886, na cidade de Colum bo, Ohio, a qual presidi u at é sua mort e.
64
europeu com em orou essa data. Entre as resoluções práticas do Congresso fundador da
Internacional Socialista est ava o apoio à iniciativa da AFL, que pretendia realizar uma grande
manifestação no 1º de maio de 1890, para lembrar a morte dos operários de Chicago. A
Internacional Socialista aprovou a ideia e instituiu a data como Dia Internacional dos
Trabalhadores, adotando como programa a luta pela jornada de oito horas em t odos os países.
Deveria ser uma grande manif estação int ernacional de maneira que, em todos os países e em
todas as cidades, ao mesmo tempo, os trabalhadores se mobilizassem. No final, foi decidido que
os trabalhadores das diversas nações teriam que “ realizar est a manifestação nas condições que
lhes são impostas pela situação especial de cada país” . Nascia uma tradição secular. Engels,
impressionado com a gigant esca manifestação realizada pelos operários ingleses nesse 1° de
maio, escreveu: “ Até onde meus olhos viam um mar de cabeças, 250 mil ou 300 mil pessoas, das
quais três quartos eram operários. Foi a assembleia mais gigantesca de todas as que alguma vez
se realizaram aqui. O que eu não daria para que M arx tivesse vivido est e despertar” .
A repressão em Chicago foi o ponto alto de um processo de ataques aos trabalhadores nos
grandes centros industriais mundiais. Se, por um lado, inexistiam leis de proteção ao trabalho,
por outro, o capital cont ava com leis para impedir a organização dos trabalhadores. Em muitos
países, sindicatos e partidos eram proibidos ou fortem ente cont rolados, e quem t entasse
organizar os trabalhadores era considerado criminoso. Na Alemanha, o partido socialist a,
sindicatos e a imprensa operária foram proibidos. Nos EUA, os sindicatos sofreram um duro
golpe, que só foi superado no com eço do século seguint e. A fase monopolista do capitalismo
norte-americano foi atingida nas décadas finais do século XIX, a partir de uma enorm e
concentração de capital: os patrões com eçaram a procurar mecanismos que inibissem a
competição, através de associações, polít icas t arifárias e redução do poder dos artesãos. Era
necessária a reorganização do trabalho para resolver os problemas de produtividade que
minavam a competitividade internacional da indúst ria os EUA, mediant e uma reorganização
produtiva baseada na m ecanização, na maior supervisão direta dos trabalhadores e num a
menor ut ilização de t rabalhadores especializados. A luta de classes típica da sociedade
capitalista ganhava um lugar cent ral no cenário social da nova potência mundial. Assim surgiu o
Socialist Labour Party, liderado por Daniel de Leon. 106 O SLP foi o primeiro part ido político
socialista de caráter nacional no país, e sua atuação tentou inviabilizar o enquadramento do
movimento operário no " sindicalismo de negócios" , que caract erizava a atuação da AFL. O SLP
at uou dentro da AFL antes que se consolidasse a tendência predominant e do sindicalismo norte-
americano de luta apenas por conquistas mat eriais imediatas e de organização de sindicatos por
ofício, sem articulação com a luta política. O jornal dessa agremiação, The People, circulou desde
1891.
106
Daniel De Leon (1852-1914) f oi o primeiro American socialist leader . Nascido na ilha de Curaçao de pais
hispano-am ericanos f oi educado na Alemanha e na Holanda ant es de ir (1872) para Nova York, onde
edit ou um jor nal em espanhol, e est udou direit o na Columbia Universit y (1876). Excerceu a advocacia
alguns anos, volt ando a Colum bia (1883-89) para se especializar em diplomacia lat ino-amer icana.
Int eressado no socialismo uniu-se aos Knight s of Labor (1888), ao moviment o de Edward Bellamy (1889)
e, finalment e, ao Socialist Labor Part y (1890). Candidat ou-se pelo Socialist Labor ao governo de Nova Yor k
em 1891, e por muit o t em po edit ou o semanário The People. Adot ou clara e explicit ament e a t eoria
marxist a, o que o dist anciou das lideranças liberals. Liderou o grupo que f ormou a Socialist Trade and
Labor Alliance, mas ent rou em choque com dirigent es mais moderados (especialment e M orris Hillquit ,
que represent ou o socialismo nort e-americano na Segunda Int ernacional): est es saíram da Aliança em
1899 para formar o Socialist Part y of America (SPA). A audiência polít ica de De Leon cai u depois disso.
Ajudou, no ent ant o, a fundar o Indust rial Workers of t he World em 1905, mas, par t idário da ação política
(o IWW era anarco-sindicalist a) acabou sendo excluído. Formou ent ão a Workers' Int ernat ional Indust rial
Union , que não progr ediu. Escreveu muit os t ext os e t raduziu pioneirament e t ext os de Karl M arx para o
inglês.
65
Cont ra a repressão, ondas de at entados se produziram na Europa Ocidental e América do Nort e
depois de atrocidade com etidas pelo governo, como fuzilamentos de grevistas ou execuções de
opositores políticos. A fonte mais important e do t errorismo, que vingou em diversos países em
finais do século XIX, era o sentimento de vingança contra a repressão estatal. O anarco-
individualismo (diverso e contraposto ao anarco-sindicalismo), onde grassou a prática do
terrorismo individual, se transformou no principal adversário do socialismo marxista nas fileiras
operárias em diversos países. Ao lado disso, porém, houve um progresso espetacular da
socialdemocracia europeia, especialment e na Alemanha, onde o partido socialist a (SPD) se
sobrepôs à severa repressão do governo de Bismarck. Em 1871, nas primeiras eleições “ alemãs” ,
houve 102.000 votos socialdem ocrat as, obt endo 12 cadeiras no parlament o federal, incluída a
de seu dirigent e August Bebel, em que pese o fato do partido aparecer como adversário da
unidade nacional alemã recent em ent e conquistada, como consequência da guerra franco-
prussiana, e também de que a maioria de seus eleitores potenciais ainda se achava no exército
na França invadida pela Prússia. Os vot os socialdemocratas pularam, em 1874, três anos depois
da criação do Império Alemão, para 372.000; em 1877, para 493.000. O “ reconhecim ent o”
desses progressos pelo governo Bismarck foi a “ lei contra os socialistas” , dissolvendo as
organizações cent rais e locais do SPD, assim como proibindo a circulação de seus jornais. Os
socialdemocratas alemães foram postos na ilegalidade por decreto imperial quando Bismarck
dissolveu o parlamento. O partido foi momentaneamente destroçado.
Em 1881, concorrendo às eleições de modo mut ilado, seu núm ero de vot os desceu até 312.000.
M as o SPD se recuperou e, ainda sob o peso da “ Lei de Exceção” de Bismarck, sem imprensa,
sem organização legal, sem direito de associação e de reunião, recom eçou a difundir-se com
rapidez, obt endo novas vit órias eleit orais: em 1884, 550.000 vot os; em 1887, 763.000; em 1890,
1.427.000. A socialdemocracia se transformou no maior partido político da Alemanha, e em
exemplo mundial para o movim ento operário. Suportando a dupla ofensiva da repressão e da
legislação social promovida pelo governo para silenciar a classe operária milit ante, o SPD
sobreviveu e cresceu através de suas organizações sociais - esportivas, de lazer, culturais de todo
tipo -, de um jornal impresso no exterior e de congressos realizados fora da Alemanha. E emergiu
da ilegalidade, quando da revogação das leis repressivas, mais forte do que nunca, chegando a
18% do tot al de votantes. Nessas condições, as tendências para a “ institucionalização” da
socialdemocracia, sua transformação em partido do sistema político vigent e, não escaparam aos
observadores cont emporâneos. 107
107
Segundo o já cit ado Gum ercindo Azcárat e (Ibidem ): “ El socialismo alemán ha elaborado cinco
program as en t reint a años. Según Bebel, no es aquél t an sólo un part ido de revolución, sino que evoluciona
y avanza cont inuament e; un part ido que aprende sin cesar, que sin cesar hace nuevas experiencias.
Est amos en perpet ua formación int elect ual y no adopt amos ninguna fórmula como definit iva y et erna. Así,
los art ículos del program a de Got ha se inspiraban en las doct rinas de Lassalle, y en el Congreso de Erf urt
fueron sust it uidas por las de M arx. Liebknecht abandona en el Congreso de Halle la famosa ley de bronce,
y se acogen él y sus correligionarios a ot ro principio del célebre agit ador, el de la concent ración progresiva
del capit al. En los Congresos de Erf urt y Berlín, la democracia socialist a alem ana ha pasado de la t eoría a
la práct ica. «No es ya Hamlet, indeciso y soñador; es Faust o abandonando resuelt ament e la ciencia por la
acción.» ¿Cómo sorprenderse de que los liberales progresist as hayan creído que el socialismo alemán iba
a convert irse en un part ido reformist a, que admit iera la posi bilidad de una t ransformación social pacífica
dent ro de las inst it uciones exist ent es? Es más; los progr amas de esos Congresos t ienen t res part es
perf ect ament e dist int as: declaración de los principios colect ivist as, organización polít ica y reclamaciones
para la prot ección inmediat a del t rabajo. En cuant o a la primera, ya queda not ada la t endencia a la
modificación de la doct rina en un sent ido práct ico” .
66
maneira de mant er os privilégios das grandes burguesias nacionais e a condição para que se
mantivesse o nível de vida de parcelas privilegiadas do proletariado europeu. A ascensão social
do operariado, seu desenvolvim ento político e sindical, geraram também novos agrupam entos
políticos da burguesia. O mundo hierarquizado que começava a desmoronar a partir do último
quartel do século XIX, recuava com acumulação de ressentim entos por parte dos inconformados
com a " subversão dos valores" trazida pelas reformas eleitorais, pelas leis trabalhistas, pela
ext ensão da educação primária gratuita e, principalment e, pela perspectiva de revolução
social.108 Enquanto na Itália o Vaticano centralizava a reação conservadora, na França, após a
anistia dos communards (1879-1880), a legalização das associações operárias (1881) e a
instituição do ensino primário estat al (1882), a reação monárquico-clerical organizava-se nas
Ligas Patrióticas e na Action Française, criada em 1890; na Grã-Bretanha, com a ampliação do
direito de voto em 1883, a burguesia inglesa iniciava uma migração em direção do Partido
Conservador, que se acelerou após a fundação do Independent Labour Party, em 1893; no
rest ant e da Europa, movim entos reacionários foram t omando corpo sempre com caract erísticas
defensivas de velhas prerrogat ivas ameaçadas.
108
Pet er Laslet t . O M undo que Nós Perdemos. Lisboa, Cosm os, 1975.
67
Bebel, 109 Eduard Bernst ein, Jules Guesde, Clara Zetkin, Charles Longuet (genro de Karl M arx),
Paul Lafargue, Giorgui Plekhánov, Pablo Iglesias,110 entre outros. Engels, o principal expoent e do
movimento, não compareceu, mas garant iu a participação de uma folgada maioria de delegados
afinados com as teses marxistas no Congresso.
O primeiro ano de exist ência da nova Int ernacional test emunhou a abolição da lei antissocialista
na Alemanha e o surpreendent e êxito eleitoral da socialdemocracia alemã, que depois de doze
anos de perseguição conseguiu quase um milhão e m eio de votos nas eleições do Reich. Engels
ainda pôde test emunhar as eleições de 1893, nas quais a socialdemocracia conquistou cent enas
de milhares de votos suplementares. A socialdemocracia parecia crescer devido à “ progressão
automática de uma lei natural” . O governo imperial já não se atrevia, exceto por pequenas
extorsões, a proibir o partido dos trabalhadores. Engels afirmou que um governo que permitia,
dentro do âm bito da lei, a atividade de um movim ento inimigo que trabalha para derrubá-la,
estava condenado a desaparecer. A socialdemocracia internacional, a Segunda Internacional , se
consolidava, mas só em 1900 se dotou de órgãos dirigentes. Em alguns países, na Alemanha em
primeiro lugar, já era considerada, com seus parlam entares, sindicatos, e t oda uma rede de
associações culturais, teatros, clubes esportivos, associações juvenis e infantis, uma “ sociedade
dentro da sociedade” , uma sociedade paralela que prefigurava a sociedade socialista do futuro.
O principal teórico da socialdemocracia alemã e da Internacional era Karl Kautsky, considerado
o executor testamentário da obra de M arx e Engels.111
109
August Ferdinand Bebel (1840-1913) foi um dos principais dirigent es socialist as alemães. Foi fundador
do Sächsische Volkspart ei (Par t ido Popular da Saxônia) em 1867 junt o com Wilhelm Liebknecht , e do SDAP
(Sozialdemokrat ische Arbeit erpart ei , Part ido dos Trabalhadores Social Democrat as da Alemanha) em 1869,
que se fundiu com o ADAV (Allgemeiner Deut scher Arbeit erverein , Associação Geral dos Trabalhadores
Alemães) em 1875 para f ormar o SAPD (Sozialist ische Arbeit erpart ei Deut schlands, Part ido dos
Trabalhadores Socialist as da Alemanha), que renom eou-se Par t ido Socialdemocrat a da Alemanha (SPD)
em 1890. Em 1871 foi eleit o deput ado no Reichst ag, mandat o que renovou diversas vezes. Depois de viver
em Ber lim-Schöneberg por muit os anos, morreu no dia 18 de m arço de 1913 durant e uma int er nação em
um sanat ório na Suíça; foi ent err ado em Zurique.
110
Pablo Iglesias Posse (1850-1925) liderou o moviment o socialist a espanhol em suas primeir as décadas
de exist ência. Foi um dos fundadores do Part ido Socialista Operário Espanhol (PSOE), em 1879, e da União
Geral de Trabalhadores (UGT) em 1888. Iglesias nascera em uma família humilde, frequent ou a escola
ent r e os seis e os nove anos. Em 1886 publicou o primeiro núm ero da revist a El Socialist a, fundada por
ele. Em 1890 encabeçou a primeira manif est ação do 1º de maio na Espanha. Foi eleit o represent ant e do
PSOE junt o ao conselho muni cipal de M adri, depois foi seu primeir o deput ado no parlament o espanhol.
Em 1921 o Part ido Comunist a da Espanha sur giu como uma dissidência do PSOE. Pablo Iglesias faleceu a
9 de dezem bro de 1925, em M adri. Havia sido eleit o deput ado pela últ ima vez em 1923. Seu cadáver foi
expost o na capela da Casa do Povo de M adri; mais de 150 mil pessoas com par eceram ao seu funeral.
111
Nascido em Praga, Karl Kaut sky (1854-1938) foi uma import ant e f igura da hist ória do mar xismo, t endo
edit ado o “ quart o volume” do Das Kapit al , de Karl M arx, as Teorias de M ais-Valia . Est udou hist ória e
filosofia na Univer sidade de Viena em 1874, e se t ornou m em bro do Part ido Social Democrát ico da Áust ria
(SPÖ) em 1875. Em 1882, f undou a revist a Die Neue Zeit (" Tem po Novo" ), da qual f oi edit or at é 1917. De
1885 a 1890, ele viveu em Londres, onde se t ornou amigo de Friedrich Engels. Em 1891 redi giu o Programa
de Er fur t do Part ido Socialdemocrat a da Alemanha (SPD), considerado “ marxist a” e subst it ut o do prévio
programa lassalleano, com August Bebel e Eduard Bernst ein. Após a mort e de Engels em 1895, Kaut sky
se t ornou um dos m ais import ant es e inf luent es t eóricos do socialismo, líder da Int ernacional Socialist a e
chamado de “ papa vermelho” . M ais t arde, adot ou uma posição de cent ro no int erior da socialdemocraci a
alemã, quando a esquer da do par t ido rompeu em 1916 devido ao seu apoio à part icipação da Alemanha
na Primeira Guerra M undial. Por isso e pelas suas posições cont rárias à Revolução de Out ubro, Kaut sky
foi qualif icado de " renegado" por Lênin. Diferent em ent e da direit a do part ido, Kaut sky não sust ent ou a
posição pat riót ica at é o fim da guerra. Em 1917 deixou o SPD e se filiou ao Part ido Socialdemocrat a
Independent e da Alemanha (USPD). Em 1922, Kaut sky ret ornou ao SPD, part icipando do governo na
cart eira de Relações Ext ernas. Escr eveu várias crít icas ao bolchevismo, Comunismo e Terrorismo (que foi
respondida por Trot sky) e uma monografia em 1934, Bolchevismo: Democracia e Dit adura. Part icipou at é
68
Karl Kautsky, o “papa da Internacional Socialista”, que o papa verdadeiro temia
Na Federação Social Democrática, que agrupava a ala marxista do t rabalhismo inglês, militava
Edw ard Aveling (genro de Karl M arx), H. M . Hyndman, Ernest Belfort Bax, Eleanor M arx (filha de
Karl M arx), John Burns, Tom M ann (fundador do new unionism ), Henry Hyde Champion,
M argaret M cM illan, Charlotte Despard, William M orris, John Bruce Glasier, Henry Quelch. A
irrupção do Labour Part y mudou a cena política do país que detinha ainda um império em que
habitava um quarto da humanidade (400 milhões de pessoas). A Internacional Socialista era
politicament e het erogênea. A Sociedade Fabiana defendia não a mudança do regim e capitalista
pela força ou mesmo evolutivam ente, mas a implantação de uma " democracia industrial"
alcançada através de um " socialismo administrativo" . No caso dos possibilistas franceses, a
tendência de Paul Brousse, pret endia a " nacionalização dos diversos serviços públicos pela
Comuna" . Alguns sindicalistas tinham posições próximas às dos possibilistas que, além de
defenderem a ação sindical, davam primazia à luta econômica sobre a luta polít ica. Edouard
Vaillant, veterano da Comuna de París, era partidário da ação direta de tipo “ blanquista” . Outros
dirigent es eram a favor do " socialismo integral" , " síntese de todas as atividades progressivas da
humanidade, aspirante a se tornar um humanismo ético e social" , como post ulava o dirigent e
socialista francês Benoît M alon. Vários fat ores compunham as razões do comportamento de
cada part ido: seus anos de existência, o desenvolvimento industrial do país, o nível de
concentração operária, o caráter do regime polít ico, a delimit ação política e a vontade
revolucionária. Na virada para o século XX, o movimento operário, dividido em tendências
conflitantes, constituía uma força social e política incontornável em todos os centros mundiais
da produção capitalista.
o fim de seus dias da socialdemocracia aust ríaca, cuja direção se exilou após a anexação do país pela
Alemanha nazist a.
69
A INTERNACIONAL SOCIALISTA, A TRANSIÇÃO E O
PODER
Os socialistas estavam politicam ent e divididos sobre diversos aspectos, mas unificados contra o
anarquismo. Na década de 1890 a Internacional Socialista decidiu a exclusão dos anarquist as,
dadas as divergências em relação à ação polít ica, pois para aqueles o movimento operário não
deveria participar de eleições gerais nem ocupar qualquer cargo nos aparelhos estatais, nem
sequer para serem usados como tribuna política ou para se opor aos governos burgueses. No
Congresso mundial socialista de Zurique, em 1893, foi aprovada uma resolução que excluiu da
Internacional as organizações que não fossem partidárias da ação política visando à conquista
do poder político pelo proletariado. No congresso de Londres de 1896, por proposta de Wilhelm
Liebknecht, os anarquistas foram definitivam ent e expulsos da Internacional (na qual muitos
deles nunca tinham ingressado). O contencioso ent re marxismo e anarquismo foi um dos
elem ent os que reacenderam o debate sobre a aut onomia da classe operária e sobre a questão
do poder: “ O partido socialdemocrata alemão, como a maioria dos outros partidos da
Internacional, foi post o de uma questão política central: deveria participar das eleições
parlamentares (que incluía a questão subsequent e, a de part icipar de governos)? A grande
maioria dos partidos e milit antes respondeu ‘sim’. Seu raciocínio era simples: poderiam obter
benefícios imediatos dessa atitude. Com a extensão do sufrágio e educação política suficient e,
a maioria eleitoral poderia levá-los ao poder e, uma vez no governo, legislar em favor do fim do
capitalismo e a instalação de uma sociedade socialista. Existiam premissas para esse raciocínio.
Uma era uma visão iluminista da racionalidade humana: t odas as pessoas agem em favor de
seus interesses racionais na medida em que tenham essa possibilidade e a educação necessária
para percebê-la. A outra era a ideia da inevitabilidade do progresso e, em consequência, de que
a história estava do lado da causa socialista” .112
Eram também premissas de raíz positivista , enquanto elas se limitavam aos “ fenôm enos
observáveis” para as formulações programáticas e políticas. O positivismo de Auguste Comt e,
amplam ent e divulgado na segunda metade do século XIX, era um método consistent e na
“ observação” dos fenôm enos, opondo-se igualment e ao racionalismo e ao idealismo, por meio
da promoção do primado da experiência sensível, única capaz de produzir a partir dos dados
concretos (“ positivos” ) a verdadeira ciência, sem qualquer atributo “ t eológico” ou “ m etafísico” ,
subordinando a imaginação à observação e tomando como base apenas o mundo físico ou
mat erial. O positivismo com tiano negou à ciência qualquer possibilidade de investigar as causas
dos fenôm enos naturais e sociais, voltando-se para a descobert a e o estudo das “ leis” , isto é,
das relações constant es entre os fenôm enos observáveis. Formulou uma “ lei dos três estados”
do ent endim ento humano: 1) Teológico: o ser humano explica a realidade por m eio de entidades
supranaturais (os " deuses" ), buscando respost as às questões básicas da existência; 2) M etafísico:
no lugar dos deuses há entidades abstratas para explicar a realidade: " o Éter" , " o Povo" , etc.
Cont inuava-se a procurar responder a questões básicas procurando o absoluto, a busca da razão
e destino das coisas; 3) Posit ivo: etapa final e definitiva, não se busca mais o " porque" das coisas,
mas o " como" , por meio da descoberta e do estudo das leis naturais, ou seja, das relações
constant es de sucessão ou de coexist ência.
112
Immanuel Wallerst ein. Social science and t he comm unist int erlude or int erpret at ions of cont em porar y
hist ory. ISA Regional Colloquium " Building Open Societ y and Perspect ives of Sociology in East-Cent ral
Europe" . Cracóvia, set em bro de 1996.
70
do positivismo ocultava seu caráter ideológico. Karl M arx conheceu o Cours de Philosophie
Positive de Comt e trinta anos depois de sua publicação e, impelido “ pelo barulho que franceses
e ingleses fazem a respeit o” manifest ou que lhe m erecia “ como hom em de partido, uma atitude
plenament e hostil” e, “ como homem de ciência, uma péssima opinião” , rejeitando de chofre “ as
receitas de Comt e para a estalagem do futuro” . Isto se estendeu à vulgarização do “ comtismo”
realizada na Inglaterra por John Stuart M ill e Herbert Spencer, pelas mesmas razões: “ Auguste
Com te concebeu a missão do positivismo como o estabelecim ent o de uma Religião da
Humanidade que poderia temperar a divisão entre classes, desbaratando o mundo da Revolução
Industrial” . 113 O posit ivismo foi o berço da reação “ cientista” diante da evidenciação das
contradições sociais da era capitalista.
O positivismo exerceu sua influência nos mais variados estratos, inclusive nas lideranças
socialistas. Na época da Segunda Internacional, " pode-se observar a presença ideológica das
diferentes variantes do positivismo, não soment e nas corrent es chamadas revisionistas, mas
também no seio do próprio marxismo ortodoxo" .114 No final do século XIX, a agenda polít ica
operária e socialista estava centrada na polêmica entre socialistas marxistas e anarquist as,
principalment e os bakuninistas. Engels morrera em 1895, com 75 anos de idade: no final da sua
vida, polemizando com os anarquistas italianos, em seu text o Da Aut oridade, dissociou a
questão da propriedade coletiva dos meios de produção (axioma básico de um modo de
produção socialista ou comunista) da direção do processo de trabalho. Os operários deveriam
ser os legítimos donos das fábricas, mas não necessariament e comandá-las diretam ent e em
cada local, em assembleias democráticas e morosas. Argum ent ou que as condições da moderna
indústria exigiam autoridade e disciplina, o que punha no tapet e a questão do poder em
condições de uma sociedade socialista. Entre 1880 e 1914 várias respostas foram testadas.
Para os anarquistas, a questão era simples: o poder político deveria ser eliminado logo de cara,
sendo a gestão da produção entregue diretam ent e aos próprios trabalhadores em cada unidade
de produção; a cooperação desinteressada entre eles resolveria os problemas da distribuição e,
portanto, também os do consumo e da reprodução (o “ fundo de acumulação” ). Em 1904
surgiram, na Itália, as comissioni interne que transit aram da negociação contratual para a
formulação da gestão direta da produção. No campo socialdemocrata, a questão se apresentava
mais complexa e misturada com a experiência política recent e: a derrota da Comuna de Paris,
afogada em sangue, agia como um fator de moderação em alguns setores (em outros, ao
contrário, produzira uma tendência para a radicalização polít ica). Ao lado dos grupos marxistas
(claramente minoritários) que insistiam na via revolucionária para o socialismo, surgiu outra
tendência, que postulava que se poderia caminhar para o socialismo pela via parlament ar,
utilizando-se das instituições democráticas. Essa corrente moderada, que se posicionou também
contra as greves gerais e as revoluções violentas, ganhou apoio entre os trabalhadores melhor
posicionados no mercado de trabalho e na nova “ classe m édia” . Em inícios do século XX, M ax
Weber escrevia que os socialdemocratas alemães haviam mergulhado no aparelho de Estado a
113
Perry Anderson. La Pensée Tiède. Un regard crit ique sur la cult ure française. Paris, Seuil, 2005. “ Na
virada do século XIX para o século XX, a ordem do pensam ent o, do saber e das repr esent ações foi abalada
pela sociologia nascent e. A imagem do ‘ homem’, da exist ência humana, viu-se profundam ent e
t ransformada. Essa revolução sem mort os nem barricadas fez, no ent ant o, num erosas vít imas, a começar
pela filosof ia. Diant e da ideia da aut onomia e da singularidade irredut ível dos fat os sociais, concluindo o
desenvolviment o das aproximações obj et ivist as do espírit o humano, a filosofia foi acuada e obrigada a se
redefinir, abandonando à sociologia, pelo menos provisoriament e, o t er reno da moral e o das condições
e possibilidades do conhecim ent o” (M arc Joly. La Révolut ion Sociologique. De la naîssance d’ un regime de
pensée scient if ique à la crise de la philosophie [ XIXè-XXè siècle] . Paris, La Découvert e, 2017.) .
114
M ichael Löwy. M arxisme et Romant isme Révolut ionnaire. Paris, Le Sycomore, 1979.
71
pont o de se deixarem capturar por ele: a burguesia não precisava tem é-los; muito antes que
eles controlassem o Estado, seriam dom est icados por ele. 115
No Brasil foi significativo o papel dos imigrantes italianos e espanhóis, que traziam de seus países
de origem a experiência sindical anarquista. M uitas publicações operárias do começo do século
XX foram feitas em italiano e espanhol, contribuindo, entre outras coisas, para valorizar a
palavra " operário" que tinha, no Brasil, um sentido depreciativo. Os trabalhadores imigrant es
formaram clubes, círculos, uniões e associações com o objetivo de unir os operários. O
parlamento brasileiro aprovou a lei Adolfo Gordo, em janeiro de 1907, que propunha, entre
outras medidas, a expulsão de est rangeiros envolvidos em greves; com base nela, foram
expulsos 132 estrangeiros som ent e naquele ano (entre 1908 e 1921 houve 556 expulsões). A lei
visava especialment e reprimir milit antes anarquistas e anarco-sindicalistas. 116 Dirigentes
anarquistas europeus (com o os italianos Pietro Gori e Errico M alat esta, ou o catalão Pellicier
Paraire) se refugiaram temporariam ent e na Argentina fugindo da repressão em seus próprios
países de origem. 117
115
M ax Weber. Escrit os Polít icos. São Paulo, Folha de S. Paulo, 2015.
116
Claudio Bat alha. O M oviment o Operário na Primeira República. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2000. A lei,
“ providência sobr e a expulsão de est rangeiros do t errit ório nacional” , rezava: “ Art . 1º O est rangeiro que,
por qualquer mot ivo, comprom et t er a segurança nacional ou a t ranquillidade pública, pode ser expulso
de part e ou de t odo o t errit ório nacional; Art . 2º São t ambem causas bast ant es para a expulsão: 1ª, a
condenação ou pr ocesso pelos t ribunais est rangeiros por crimes ou delit os de nat ur eza comum; 2ª, duas
condenações, pelo menos, pelos t ribunais brasileiros, por crimes ou delit os de nat ur eza comm um ; 3ª, a
vagabundagem, a mendi cidade e o lenocínio compet ent ement e verificados” .
117
Iaacov Oved. El Anarquismo y el M ovimient o Obrero Argent ino. M éxico, Siglo XXI, 1980.
72
declarou que " nós proclamamos não apenas ação em e para si mesma, mas também ação com o
propaganda" . Por volta dos anos 1880, a frase " propaganda pelo ato" tinha com eçado e ser
utilizada tanto dentro quanto fora do movimento anarquista para se referir a bombardeios
individuais, regicídios e t iranicídios. Entretanto, em 1887, figuras important es no moviment o
anarquista distanciaram-se dos at os terroristas individuais. Piotr Kropotkin escreveu em Le
Révolté que " uma estrutura baseada em séculos de história não pode ser destruída com alguns
quilos de dinamite" . A repressão do Estado (incluindo as lois scélérates francesas de 1894) contra
o operariado também contribuiu, forçosamente, para o abandono da prática.
Uma corrent e important e de militantes anarquist as advogou o abandono dessa t ática em favor
de uma ação revolucionária coletiva através do moviment o sindical. O líder anarco-sindicalista
francês Fernand Pelloutier defendeu em 1895 o envol vim ento dos anarquistas no movimento
operário através do “ sindicalismo de ação direta” . 118 Pelloutier criticou a estrat égia terrorista de
Ravachol e seus partidários, e se dedicou a desenvolviment o de “ Bolsas de Trabalho” a partir
dos sindicatos. Sob sua inspiração, as Bolsas passaram de 33 em 1894 para 81 en 1901; elas
com eçaram a ser mais bem sucedidas que os “ sindicatos de ofício” então existent es, pois
at endiam também aos operários pouco ou não qualificados, dotando-se de escritórios de
colocação em empregos, caixas de solidariedade, fundos para desempregados, para doent es, e
at é para financiamento de ent erros. Pelloutier chamou sua criação de “ sindicalismo integral” ,
organizando também bibliotecas e cursos de formação; retomou, reformulando-as, as ideias de
Proudhon e Bakunin, pelo que foi considerado com o um atualizador do anarquismo e um
inspirador do anarco-sindicalismo, mas morreu prematuram ent e na miséria em 1901, não sem
deixar montado uma est rutura que t eve enorm e import ância na organização da classe operária
francesa nas décadas sucessivas.
Dentro da Int ernacional Socialista expurgada de anarquistas, a part ir de 1896 ganhou corpo a
partir da Alemanha a corrent e liderada por Eduard Bernst ein,119 que propunha uma revisão dos
pont os básicos do marxismo. Defendendo uma “ volt a a Kant" , em Die Voraussezungen des
Sozialismus (1899), Bernst ein afirmou, sobre o m étodo dialético: “ Constitui o que há de traidor
na doutrina marxista, a cilada que se coloca à frent e de toda observação consequent e das coisas"
(grifo nosso, o que revelava uma aproximação de caráter positivista). Segundo Bernst ein, o
avanço do capit alismo não estava levando a um aprofundam ento das diferenças entre as classes;
o sistema capitalista não iria ent rar nas crises sucessivas que o destruiriam e abririam caminho
ao socialismo, previstas por M arx; a democracia política permitiria que os partidos operários
conseguissem todas as reformas necessárias para assegurar o bem-estar dos trabalhadores, sem
118
Jacques Julliard. Fernand Pellout ier et les Origines du Syndicalisme d'Act ion Direct e. Paris, Seuil, 1971.
119
Eduard Ber nst ein (1850-1932), polít ico e t eórico socialist a alemão, foi o primeiro revisionist a da t eoria
marxist a, pondo em causa diversas t eses: a dout rina do mat erialismo hist órico, ao considerar que haveria
out ros fat ores par a além dos econômicos que det erminariam os fenôm enos sociais; at acou a dialét ica por
não conseguir explicar as mudanças em organismos com plexos, como as sociedades humanas; a t eoria
do valor, ao considerar que aquele vem da ut ilidade das mercadorias, t eoria defendida paralelament e
pelos economist as dit os “ neoclássicos” . Pôs t ambém em causa a inevit abilidade da concent ração
capit alist a e o em pobreciment o crescent e do prolet ariado. Port ant o, at acou a ideia da inevit abilidade
hist órica do socialismo por mot ivos econômi cos: o socialismo chegaria mais t arde ou mais cedo, mas por
mot ivos morais, por ser o sist ema polít ico mais just o e solidário. E at acou a ideia da exist ência de apenas
duas classes sociais, uma opr essora e uma oprimida, reivindi cando a exist ência de várias classes
int erm ediárias int er ligadas e de um int eresse nacional superior a t odas elas. Em alt ernat iva às t eses que
crit icava, Bernst ein def endia a melhora gradual e const ant e das condições de vida dos t rabalhadores (dar-
lhes os meios para ascender at é a classe média), t inha dúvidas quant o à necessidade de nacionalizações
de em presas e recusava a violência revolucionária. Obras princi pais de Bernst ein: Sozialismus und
Demokrat ie in der grossen englischen Revolut ion, 1895; Die Voraussezungen des Sozialismus und die
Aufgaben der Soziaildemokrat ie (As premissas do socialismo e as t aref as da socialdemocracia), 1899; Zur
Theorie and Geschicht e des Sozialismus, 1901.
73
necessidade de uma “ ditadura do proletariado” . A conquista de uma legislação social avançada
para a época, e de um nível considerável de liberdades políticas, fizeram progredir no SPD os
chamados “ revisionistas” , que argum entavam que os operários haviam-se tornado cidadãos
plenos: at ravés do voto eles conquistariam a maioria do parlamento, e através de uma nova
legislação reformariam e superariam, gradual e pacificament e, o capitalismo.
As opiniões de Bernst ein, apresentadas com detalham ento em Socialismo Teórico e Socialismo
Prático , 120 porém, não iam muito além da constatação da melhora da situação econômica da
classe operária metropolit ana e do caráter mais complexo da dominação política burguesa
at ravés de métodos democrát icos. Essas ideias eram fortes no interior do partido, sobretudo
entre as lideranças sindicais. Em Reforma ou Revol ução Social , publicado em 1900, Rosa
Luxemburgo constatou: “ Se as diversas corrent es do oportunismo prático são um fenôm eno
naturalíssimo, explicável pelas condições da nossa luta e pelo crescim ent o do nosso movimento,
a t eoria de Bernst ein é, por outro lado, uma tentativa não menos nat ural para reunir essas
corrent es numa expressão teórica que lhe seja própria e entre em guerra com o socialismo
científico” . 121
Eduard Bernstein
Vejamos algumas opiniões de Bernst ein sobre as questões políticas e históricas centrais do seu
tempo. Sobre liberalismo e socialismo: “ Em relação ao liberalismo, como grande movim ent o
histórico, o socialismo é seu legítimo herdeiro, não só por lhe suceder no t empo, mas também
pelas qualidades de seu espírito, como o demonst ra t oda questão de princípios acerca da qual
tenha que adotar uma atitude a socialdemocracia” . Sobre o evolucionismo histórico: " O
feudalismo, com suas organizações e corporações inflexíveis, teve que ser destruído quase em
toda parte mediant e a violência. As organizações liberais da sociedade moderna se diferenciam
daquelas do feudalismo precisam ent e por serem flexíveis e, portanto, capazes de mudança e
desenvolvim ento. Não precisam ser destruídas, mas som ent e serem desenvolvidas" . Acerca do
nacionalismo alemão: " Da mesma maneira que não é desejável que nenhuma outra das grandes
nações civilizadas perca sua independência, também não pode ser indiferente para a
socialdemocracia alemã que Alemanha, que tomou e toma parte honrosa na obra de civilização
do mundo, não seja aceita como igual no concílio das nações" . E, finalmente, sobre o
colonialismo: " Tem justificativa, quando foram adquiridas colônias, que se examine
cuidadosament e seu valor e seu porvir, e que se controle a situação e o trato dado aos indígenas,
como também outras questões de sua administração; mas isso não é razão para pensar, a priori ,
que essa aquisição seja censurável" . Da constatação da melhora da situação da classe operária
metropolitana passava-se para a apologia de sua base de sustentação, a expansão imperialista.
120
Eduard Bernst ein. Socialismo Evolucionário. Rio de Janeiro, Zahar, 1964.
121
Rosa Luxem burgo. Reforma ou Revolução Social . São Paulo, Expressão Popular, 2003.
74
As conclusões políticas de Bernstein foram consideradas mais precupant es do que suas bases
teóricas, embora Plekhánov refutasse seu ecletismo filosófico neokantiano (na revista socialista
russa Zariá , em 1901),122 e, sobretudo, Kautsky atacasse suas bases econômicas, em especial sua
teoria acerca do crescimento das classes m édias e sua crítica à teoria marxista da pauperização
do proletariado, da concentração progressiva de riqueza e pobreza nos polos sociais
fundam entais da sociedade burguesa. Kautsky most rou que a t endência à concentração e
centralização do capital confirmava os prognósticos de M arx e, sobretudo, seu m étodo de
análise, incluido o crescimento da pobreza relativa dos assalariados, se comparada sua renda
com o enriquecimento dos capitalist as, ou seja, sua apropriação cada vez menor da massa de
valor criado na produção, ou a distribuição cada vez mais desigual da riqueza produzida. A
tendência da produção capitalista não era em favor do crescim ento das camadas sociais
intermediárias, mas da concentração nas mãos do grande capital de um percentual cada vez
maio da riqueza social produzida: “ As grandes fábricas, que em 1882 não forneciam mais da
metade da produção nacional, produziram t reze anos depois os dois terços, se não os três
quartos, da mesma, uma rápida concentração de capit al, uma evolução que marcha a passos de
gigant e em direção da produção socialist a e coletivista... Enquanto o aumento total das
empresas foi de 4,6%, as pequenas empresas só aumentaram 1,8% e as grandes 100%. O
núm ero absoluto das primeiras aumentou, mas seu número relativo diminuiu” .123
Kautsky defenedu a t eoria marxist a das crises e a marcha do capitalismo para um colapso, com
óbvias implicações políticas, que eram as centrais no debat e, embora o terreno revisionista
tivesse sido previam ente pavim entado por desenvolvimentos filosóficos: “ A reação desfechada
por Kautsky, o teórico oficial do SPD, ao sentido das análises e propostas de Bernst ein se deu
muito mais em função do rebatim ent o político que poderiam ter na ação da socialdemocracia
na Alemanha e mesmo em toda a Europa; (o) conjunto de escritos bernsteinianos foi resultado
dos problemas que já se colocavam diante do pensament o marxista em relação ao avanço da
sociedade capitalista e suas transformações. Entretant o, não se pode negar que a iniciativa de
Bernst ein aprofundou e acirrou os debates... Na grande maioria dos pensadores da
socialdemocracia mundial havia uma tendência a procurar os fundamentos epistemológicos e
filosóficos para o marxismo no pensamento positivista das ciências naturais, primordialment e
no materialismo francês; ou, em contrapartida, como reação a essa visão ‘nat uralista-
mat erialista’, em Kant” .124
Bernst ein, porém, não colocava apenas problemas teóricos e políticos, mas traduzia também
um espírito de relat iva satisfação com o desenvolvimento do capitalismo e do colonialismo
europeu, sem análise de suas contradições, embora pusesse o dedo na questão dos novos
métodos de organização e dominação do capitalismo nas metrópoles. A resposta “ ortodoxa” de
Kautsky a Bernst ein explorou suas fraquezas mais evident es. Rosa Luxemburgo (em Reforma ou
Revolução Social?) explorou também certa pobreza intelectual e o espírito pequeno burguês e
burocrático, dando expressão a uma indignação moral diante da aut ossuficiência intelectual
bernst einiana. Bernst ein lançara seus golpes contra a “ ortodoxia marxista” em uma série de
artigos publicados na revista teórica do Partido, Die Neue Zeit , ent re 1896 e 1897. Embora est es
artigos causassem indignação na ala esquerda do Part ido, não houve nenhuma réplica séria e
Kautsky, o “ esquerdista” que editava Neue Zeit, chegou a agradecer a Bernst ein por sua
“ contribuição” ao debat e. Em consequência, a ala direita ficou encorajada e uma t endência
122
G. V. Plejánov. Cant cont ra Kant . Valencia, Alejandria Prolet aria, 2017.
123
Bernst ein und das Sozialdem okrat ische Programm: Eine Ant ikrit ik (Karl Kaut sky. La Doct rina Socialist a.
Réplica al libro de Ber nst ein “ Socialismo Teóorico y Socialismo Práct ico” . Buenos Aires, Claridad, 1966, pp.
80-81).
124
Ant onio Robert o Ber t elli. M arxismo e Transf ormações Capit alist as. Do Bernst ein-Debat t e à República
de Weimar , 1899-1933. São Paulo, IAP-IPSO, 2000, pp. 46 e 64.
75
revisionista foi organizada em torno do jornal Sozialistische M onatshefte (lançado em janeiro de
1897).
M as as águas não ficaram calmas: em 1899, o SPD foi palco da acirrada controvérsia suscit ada
pelo revisionismo alemão. Bernst ein apregoava que o desenvolvimento do capit alismo levava a
dem ocratização da sociedade capitalista, através do aumento do número de proprietários,
graças à introdução das sociedades por ações. Os revisionistas apresentaram uma nova t ática,
que privilegiava a luta parlament ar e sindical. A luta por melhores condições de trabalho e
salários seria o instrumento privilegiado para conduzir a sociedade capitalista, através das
reformas econômicas, para o socialismo. Na verdade estas reformas já seriam a realização
molecular da nova sociedade socialista: “ O moviment o é tudo e o fim nada significa” .125 As teses
revisionistas foram criticadas e condenadas nos congressos da socialdemocracia alemã de
Hannover (1899), de Lübeck (1901) e de Dresden (1903). O principal crítico foi August Bebel, o
principal expoent e do socialismo alemão: “ O congresso - afirmou a resolução proposta por Bebel
- condena de maneira mais decidida o intento revisionista de alt erar a nossa tática, posta a prova
várias vezes e vitoriosa, baseada na luta de classes. Se adot armos a política revisionista nos
constituiríamos em um partido que se conformaria apenas com a reforma da sociedade
burguesa. Condenamos qualquer t entativa de converter o nosso partido em um satélit e dos
partidos burgueses” .
Paralelam ent e, na Europa continental, onde a influência marxista era decisiva na Internacional
Socialista, sendo impensável o abandono puro e simples da doutrina e do programa marxist as,
procurou-se fazer de M arx e, sobretudo, de Engels, um antecedent e de conclusões políticas
reformistas já largament e encaminhadas na prática pelos partidos socialistas. Foi por conta da
influência exercida, pessoalment e e através dos seus text os, por Engels, na camada dirigent e
dos partidos operários que conformavam a Segunda Internacional, que diversos autores
responsabilizaram-no posteriorment e por ter sentado as bases de seu ulterior reformismo. O
extrem o foi atingido pelos dirigentes socialdemocratas alemães, que exibiram textos de Engels
em apoio à Alemanha no início da guerra franco-prussiana de 1870, para justificar seu apoio aos
créditos de guerra solicitados pelo Kaiser nas vésperas da guerra de 1914-1918. Não som ent e
omitiram o apoio dado por Engels à França a partir do surgimento da Comuna de Paris, com o
chegaram a destruir, nos papéis deixados por Engels à sua morte, um plano militar por ele
mesmo elaborado de defesa de Paris contra o iminent e ataque do exército prussiano. A
operação destinada a fazer de Engels um “ pai do reformismo gradual” antirrevolucionário
baseou-se numa omissão, mutilação ou destruição de text os.
125
Sobre a publicação da correspondência ent re M ar x e Engels, Lênin escreveu no Pravda de 28 de
novem bro de 1920: “ A correspondência de M arx e de Engels apareceu há algumas semanas, em St ut t gart ,
da casa edit ora Diet z, em quat ro grandes volumes. Compreendem um t ot al de 1386 cart as, escrit as no
int ervalo de t em po com preendido ent re 1844 e 1883. O trabalho de redação, ist o é, a preparação de
pref ácios aos grupos de cart as dos difer ent es per íodos, foi realizado por Eduar d Bernst ein. Como era de
esperar, seu t rabalho não é sat isfat ório, nem do pont o de vist a t écnico, nem do pont o de vist a ideológico.
Ber nst ein não se deveria t er encarregado — depois de sua evolução t rist ement e celebr e para as
concepções do ext remo-oport unismo — da organização de publicar cart as como essas, profundament e
penet radas de espírit o revolucionário. Os prefácios de Ber nst ein são, em part e, desprovidos de cont eúdo,
e, em part e, simpl esm ent e falsos, quando, por exem plo, em lugar de definição diret a, clara e precisa, dos
erros oport unist as de Lassalle e de Schw eizer, denunciados por M arx e Engels, se encont ram frases
eclét icas e at aques t ais como ‘ M arx e Engels nem sem pre t iveram razão cont ra Lassalle’, ou, nout ro trecho,
que eles est iveram ‘mais pert o’, do pont o de vist a t át ico, de Schw eizer do que de Liebknecht . Nenhum
out ro cont eúdo t êm esses at aques a não ser o de camuflar e dourar o opor t unismo. Inf elizment e, a at it ude
eclét ica, em relação à lut a ideológica de M ar x cont ra muit os de seus adversários, cada vez mais se
generaliza no seio da socialdemocracia alemã” .
76
Guerra Civil na França de M arx foi publicada com mutilações para apresentar Engels apoiando
uma via não revolucionária, parlamentar, de transição ao socialismo. Engels protestou
vivam ente contra a mutilação do texto, e exigiu a sua publicação por inteiro. Nesse prefácio
Engels elogiava a utilização do sufrágio universal pelo partido operário alemão, que “ aum ent a,
pela ascensão regularment e verificada e rápida do número de votos, a cert eza dos operários na
vitória... fornece-nos um critério superior a qualquer outro para calcular o alcance de nossa
at uação” , permit e ao partido operário levar sua propaganda a todas das camadas dos
explorados, oferece-lhe uma tribuna de alcance nacional e int ernacional, etc, mas nada de que
o sufrágio universal t ivesse mudado a natureza social do Est ado e do regime político (os
“ fundam entos sociais” - burgueses - do regime, ou seja, a raiz de classe do Estado). O sufrágio
universal mostrava que “ as inst ituições est atais, nas quais se organiza o domínio político da
burguesia, ainda oferecem possibilidades novas de utilização que permit em à classe operária
combatê-las” .
Não era no legado teórico de Engels, portanto, que se encontravam as bases do reformism o
socialdemocrata. No ano seguint e à sua morte, 1896, realizou-se em Londres um congresso da
Internacional Socialista que consolidou, como vimos, a expulsão dos anarquistas: a resolução
acentuava o que se vinha esboçando desde o Congresso de Zurique, realizado três anos ant es,
que havia det erminado uma tát ica que exigisse aos seus aderent es uma posição clara diante da
luta política, inclusive parlamentar, que ia radicalment e contra os princípios anarquist as.
Também foi reconhecido programat icam ent e o direito das nações à autodeterminação,
criticando os socialdemocratas das grandes pot ências colonizadoras que não defendiam esse
direito das colônias oprimidas pelos seus países. Na Inglaterra, porém, os socialistas agiam de
outro modo. Em 1902 explodiu, na África do Sul, a “ guerra dos bôers” , opondo o colonialismo
britânico aos colonos holandeses: quando estalou a guerra, apareceu um manifest o “ fabiano”
em que se declarava que o conflito era uma questão “ que o socialismo não poderia resolver e
que não lhe dizia respeito” . George Bernard Shaw publicou uma brochura, Fabianism and the
Empire, na qual justificava o imperialismo inglês, apoiando-se no argum ento de que as nações
“ adiant adas” tinham o direito a conquistar os povos atrasados em nome do progresso dest es.
77
feita por H. G. Wells para que a sociedade abrangesse âmbito nacional, com um grande núm ero
de m embros) conseguiu impor seus crit érios e ideias a um set or cada vez mais important e do
Partido Trabalhista. Em 1906, o secretário do partido, Ramsay M acDonald, expôs os princípios
do Labour Party em termos que refletiam a influência dos fabianos: o partido deveria opor-se a
qualquer tentativa de apresentá-lo como um m ovim ento só dos trabalhadores, dado que os
princípios nos quais se baseava não eram resultado “ de um processo de raciocínios econômicos
ou de experiências da classe trabalhadora” .
126
Vladimir I. Lêni n. Obras Escolhidas. São Paulo, Alfa Ômega, 1986.
78
mom ento em que Bernst ein formulou a t eoria revisionista. As guerras internacionais do início
do século XX e a revolução russa de 1905 anunciaram uma nova fase revolucionária, aparecendo
lideranças mais radicais na Alemanha (Karl Liebknecht, Rosa Luxemburgo), 127 na Holanda (Anton
Pannekoek), na Rússia (Vladimir Lênin e Leon Trotsky) e os anarco-sindicalistas na França e Itália.
A diversidade não era só política, era também social e sexual. A milit ante sufragista francesa
Hubertine Auclert usou, em 1880, o termo “ feminismo” no jornal La Citoyenne. O termo se
est endeu para Inglat erra e outros países europeus e, no século XX, para os EUA, conclamando
às mulheres a se organizar e lutar para obt er o direito ao sufrágio. A Int ernacional Socialista
abriu-se para o movimento das mulheres, que deixou de t er o conteúdo de revolt as individuais
para transformar-se em um movimento coletivo e de classe: foi da II Int ernacional que surgiu a
iniciativa de declarar o dia 8 de março como “ dia internacional da mulher trabalhadora” . O
movimento e a própria data teriam, como veremos, uma importância decisiva na eclosão da
revolução russa.
Em 1893, a Nova Zelândia se tornou o primeiro país a garantir o sufrágio feminino, graças ao
movimento liderado por Kat e Sheppard. As suffragettes iniciaram um movim ento no Reino
Unido a favor da concessão do direito ao voto em 1897, com a fundação da União Nacional pelo
Sufrágio Feminino por M illicent Faw cet t (1847-1929), uma educadora. As leis do Reino Unido,
argum entavam, eram aplicáveis às mulheres, mas elas não eram consultadas ou convidadas a
participar de seu processo de elaboração. Obtiveram um limitado sucesso em sua empreitada -
a conversão de alguns membros do Partido Trabalhista Britânico para a causa dos direitos das
mulheres. Filósofos iluministas britânicos como John Locke e David Hume t inham escrito que as
mulheres eram incapazes de compreender o funcionamento do Parlamento Britânico, portant o
de gozar de direitos políticos. O movim ento feminino ganhou as ruas com a Women's Social and
Political Union – WSPU, fundada por Emmeline Pankhurst (1858-1928). 128 Após ser detida
repetidas vezes inspirou membros do grupo a fazer greves de fom e. Ao ficarem doent es, as
at ivistas chamaram a atenção da opinião pública pela brutalidade do sistema legal, com
situações de confront o entre sufragistas e policiais e com a mort e de uma manifestant e, Emily
Wilding Davison (1872-1913), que se atirou à frente do cavalo do rei da Inglaterra. As ações de
Rosa Luxemburgo, em polaco Róża Luksemburg (1871-1919), milit ant e marxist a revolucionária, nasceu
127
num vilarejo de Zamość, perto de Lublin, na Polónia. Desde muito jovem já possuía um espírito libre e
libert ário. Aos t reze anos ent rou na escola secundária para mul heres em Varsóvia, onde concluiu seus
est udos e iniciou sua milit ância polít ica. Em 1889 fugiu para a Suíça, evit ando uma det enção iminent e.
Permaneceu ali por nove anos e frequent ou a Univer sidade de Zurique junt ament e com out ros milit ant es
socialist as como Anat oli Lunacharsky e Leo Jogiches (seu marido por mais de 15 anos). Part icipou da
fundação do Part ido Socialist a Polaco (PSP) em 1892. Dois anos depois, rompeu com o PSP e com Leo
Jogiches e Julian M archlewski fundou a Socialdemocracia do Reino da Polónia como reação ao
nacionalismo do part ido, dirigido por Pilsudski. Rosa def endia que a independência da Polónia só seria
possível através de uma revolução nos impérios da Alemanha, Áust ria e Rússia, e que o com bat e ao
capit alismo era priorit ário em relação à independência nacional. Rosa casou-se, em abril de 1897, com
Gust av Lueck, f ilho de um amigo alemão, a fim de conquist ar a cidadania alemã. O falso casament o durou
cinco anos, t em po mínimo est abelecido pela legislação do país. Após fixar-se em Berlim, Rosa t ornou-se
uma figura-chave ent re os socialist as europeus, milit ando no Part ido Social Democrat a Alemão. Escreveu
obras polêmicas e defendeu uma posição volt ada para a defesa da espont aneidade revolucionária do
prolet ar iado, que se manif est ava, segundo ela, at ravés das greves de massas, bem como dos conselhos
operários, e t ent ando f ixar o papel do part ido revolucionário, em polêmica com a burocr acia
socialdemocrat a e, por moment os, t am bém com o bolchevismo. Com a guerra mundial, Rosa criou, junt o
com Karl Liebknecht , a Liga Spárt acus (Spart akusbund ) que convergiu com uma f ração do Par t ido
Socialdemocrat a Independent e (USPD) na criação do KPD (Par t ido Comunist a da Alemanha). Rosa foi
assassinada pelos Cor pos Francos (Freikorps) do exércit o, a mando do minist ro socialdemocrat a Noske,
em janeiro de 1919.
128
Sylvia Pankhurst . The Suffraget t e. The hist ory of t he women’ s milit ant suffrage movement , 1905-1910.
Nova York, St urgis & Walt on Co, 1911.
79
protesto em preendidas pelas sufragistas, contudo, apenas obtiveram um parcial sucesso com a
aprovação do Represent ation of t he People Act de 1918, que estabeleceu o vot o feminino no
Reino Unido.
2) O socialismo francês era composto de linhas diversificadas. Suas origens vinham das corrent es
revolucionárias do século XIX, das corrent es “ utópicas” , de uma superficial herança marxista,
todas elas conflitantes entre si. Os revisionistas estavam ligados à ideia de contínua progressão
eleitoral e da ascensão “ ministerialista” , como se deu com o caso M illerand (socialista que
participou de um gabinet e “ radical” francês), em 1899. O anarco-sindicalismo representava
também uma important e força política no país;
3) O socialismo inglês est ava ligado a movim entos amplos e a uma tradição de luta operária; o
marxismo era defendido por algumas de suas corrent es, mas encont rava a oposição dos
129
Edgar Carone. A II Int ernacional . São Paulo, Edusp - Anit a Garibaldi, 1993.
80
fabianos, e era minorit ário politicament e: ao lado da corrent e sindicalista tradicional -
tradeunionista -, surgira no país um movimento operário de carát er político - o Partido
Trabalhista - que unia a ação reivindicatória tradicional, por salários e melhores condições de
trabalho, com medidas nacionalizant es. O gabinet e liberal, com Herbert Asquit e Lloyd George,
iniciou, sob a pressão trabalhista, uma política de reforma social (especialment e de
aposentadorias universais e de organização de um sistema público de saúde), reduziu o poder
da Câmara Alta ou “ dos Lordes” (antirreformista) e inaugurou a primazia da Câmara dos
Comuns, pelo Parliament Act de 1911. Isso não impediu a decadência do liberalismo inglês e
mudou a estrutura de poder do principal Est ado imperialist a, com a consolidação do Partido
Trabalhista.
4) Na Rússia, país onde era ainda diminuta a classe operária, e no qual a classe camponesa era
maioria, o operariado estava inicialment e ligado ao populismo, que defendia a ideia de que na
Rússia o movimento revolucionário seria de origem camponesa e percorreria vias diversas e at é
opostas às vias ocidentais. Contra esse pensamento levantou-se o nascente marxismo russo:
Plekhánov, com o destaque que deu ao inevit ável desenvolviment o capitalista à nascente classe
operária; e Lênin, que deu base a esses conceitos (em sua obra O Desenvolviment o do
Capitalismo na Rússia ) e colocou a necessidade de um part ido operário centralizado, forte e
estrut urado, nas condições de repressão e de ausência de liberdades democráticas do império
dos czares.
Leon Trotsky relatou o choque produzido pela sua descoberta dos principais dirigentes da
socialdemocracia aust ríaca, Ot to Bauer, Karl Renner, M ax Adler e Victor Adler, quando os
frequentou durante seu exílio vienense: “ Eram pessoas extraordinariamente cultas, que sabiam
bastante mais do que eu de muitas coisas” : na primeira reunião em que participou com eles no
Café Central de Viena, sua sensação foi de deslumbramento. Acompanhou a conversa com
devoção. M as, depois, o interesse foi superado pelo assombro. Percebeu que aqueles talentosos
intelectuais não eram revolucionários: encarnavam o tipo de homem que é precisam ente o
opost o do revolucionário. Os austromarxist as eram “ narcisos que se cont emplavam com
orgulho” ; vibravam com o esf orço t eórico produzido. Conhecedores profundos das obras de
M arx e Engels, exegetas de O Capital, os marxistas vienenses eram “ completam ent e incapazes
de aplicar o método de M arx aos grandes problemas políticos e, sobretudo, ao seu aspect o
revolucionário” .
81
Os marxistas austríacos escreviam magníficos artigos, reveladores da sua erudição, mas não iam
além da assimilação passiva do sistema marxista: “ Estes austromarxistas não passavam em geral
de uns bons senhores burgueses que se dedicavam a estudar est a ou aquela parcela da teoria
marxist a como podiam est udar a carreira do Direito, vivendo agradavelm ent e dos juros de O
Capital ” . Nos anos que precederam a guerra começaram a sentir-se mal quando a possibilidade
de rupt ura da velha ordem que com bat iam com palavras deixou de ser encarada como utopia.
“ Que diferença, com entou Trotsky, entre aqueles senhores, aristocratas do pensament o, que
gostavam de ser trat ados pelos operários por “ camarada Herr Doktor” e a simplicidade
revolucionaria de M arx e Engels, que sentiam um sereno desprezo por tudo o que fosse brilho
aparent e, pelos títulos, pelas hierarquias” . Em Berlim, Trotsky registrou que a socialdemocracia
alemã diferia da austríaca, pois nela fazia-se ainda sentir o peso de personalidades como Rosa
Luxemburgo, Karl Liebknecht e mesmo o velho August Bebel. Karl Kautsky, no entanto,
acomodara-se: “ Tratava de vulgarizar o marxismo como um mestre-escola, impondo-se já como
única missão conciliar o reformismo com a revolução. Não escondia sua aversão orgânica a tudo
o que significasse transplantar métodos revolucionários para o solo alemão” . 130
A partir do começo do século XX, os filósofos austromarxistas reuniam -se no Círculo Zukunft
(“ futuro” ), publicando a série M arx-Studien (desde 1904) e a revista Der Kampf desde 1907:
“ Seus represent ant es foram os primeiros a promover o marxismo como uma ciência social
crítica, como uma disciplina de pesquisa social simultaneam ente empírica e teórica, e a fazê-lo
à altura das questões de sua época... em debat e abert o com as principais corrent es da filosofia
e das ciências sociais de sua época” . 131 José Aricó ponderou que “ unicam ent e na relação com as
questões da alta cultura contemporânea o marxismo poderia dar respost as aos interrogant es
colocados pela crise provocada por Bernst ein. No cent ro da iniciativa austromarxista dos M arx-
St udien , assim como no projeto mais vasto de Der Kampf estava o propósito de encontrar uma
saída ao debate art ificial ent re ortodoxia e revisionismo, e de estabelecer uma confrontação
política não só com Bernst ein, mas também com Kaut sky” ; 132 se essa foi a tent ativa, ela não se
130
Leon Trot sky. M a Vie. Paris, Gallimard, 1973.
131
M ichael R. Krat ke. Ret our sur une t radit ion m éconnue: aust romarxisme et économie polit ique. Act uel
M arx nº 60, Paris, 2016.
132
José Aricó. Nueve Lecciones sobre Economía y Polít ica en el M arxismo. M éxico, Fondo de Cult ura
Económica, 2011.
82
concretizou: a socialdemocracia austríaca não conseguiu elaborar uma alternativa política ao
reformismo da socialdemocracia alemã, em que pese t entar sit uar-se à sua esquerda.
Em sínt ese, na Internacional Socialista havia só três tendências políticas básicas: à direita o grupo
revisionista de Bernst ein, no centro os “ marxistas m oderados” de Kautsky e à esquerda os
marxist as revolucionários, com Rosa Luxemburgo, Lênin, Trot sky e outros dirigentes. A
tendência revisionista se desenvolveu principalment e nos grandes partidos; na Alemanha sob
uma forma t eórica, na França e Itália pelo “ ministerialismo” (participação ou apoio crítico aos
governos liberais), na Rússia através do “ marxismo legal” e do “ economicismo” . A variedade de
posições estratégicas e ideológicas se evidenciava em todos os eventos e congressos, assim
como nos organismos da Int ernacional Socialista. A Internacional Socialista era bem organizada,
com órgãos dirigent es com o o “ Bureau Socialista Internacional” e a “ Comissão Socialista
Interparlam entar” . Seu “ part ido-guia” , o SPD, cresceu sistematicam ent e até 1914, junt o com o
capitalismo alemão. Na t ransição do século XIX para o século XX, a Internacional exercia uma
grande autoridade política sobre o moviment o operário mundial, tendo por principal adversária
nesse campo as corrent es anarquistas e anarco-sindicalistas.
133
Norbert Leser. Teoria e Prassi dell’Aust romarxismo. Roma, M ondo Operaio, 1979, pp. 5-6
83
RÚSSIA: DO POPULISM O AO SOCIALISM O M ARXISTA
“ Se o objetivo da História é descrever o moviment o da humanidade e dos povos, a primeira
pergunta que, se ficar sem resposta, torna todo o resto incompreensível, é a seguinte: qual é a
força que move os povos? Se outra força ocupou o lugar do poder divino, é preciso explicar em
que consiste essa força nova, pois é precisamente nela que reside todo o interesse da História” ,
escrevia Leon Tolstói em Guerra e Paz, numa Rússia que ost entava a calma de um vulcão prest es
a se ativar. O relativo fracasso de duas décadas de agit ação populista entre os cam poneses e de
at entados terroristas que só conseguiram, m esmo obt endo alguns sucessos ressonant es,
endurecer ainda mais o regime autocrático sem suscit arem uma rebelião popular, levou alguns
militantes dessa corrent e (Georgui Plekhánov, Vera Zassulich, Pável Axelrod, Leon Deutsch) a
questionarem a dout rina e a atividade narodniki e o terrorismo, aderir à doutrina marxista e dar
os primeiros passos na organização de um part ido operário e socialista “ nos moldes europeus” ,
organizando o grupo “ Emancipação do Trabalho” , em 1883. Georgui Valentinovit ch Plekhánov
(1856-1918), antigo dirigente do movim ento populist a (da organização “ Terra e Liberdade” ) o
liderava; enfrentando perseguição política na Rússia, ele emigrou para a Suíça em 1880.
No império dos czares, chegado o último quartel do século XIX, o socialismo proletário ou
marxist a ainda inexist ia: “ Plekhánov criou o movim ento: seus livros e brochuras circularam
profusam ent e nos círculos clandestinos t ransformando-se em manuais para os homens que
fariam a Revolução de Out ubro de 1917... Como outros dirigentes revolucionários russos,
combinava a qualidades do homem de ação e revolucionário profissional com a capacidade de
reflexão intelectual do filósofo. Antes dele, os esforços da intelectualidade revolucionária
utópica haviam se dirigido principalment e em direção do campesinato. Plekhánov reconhecia
que o operário industrial da cidade, inclusive em um país t ão subdesenvolvido quanto a Rússia,
constituía a vanguarda de qualquer insurreição revolucionária... Sua presença física era tão
impressionant e quanto brilhant e era seu discurso. Parecia mais um aristocrata russo do que um
revolucionário, não era soment e um mestre da lógica, um polemista brilhante, mas também
uma pessoa sumam ente culta, com o senso est ético de um artist a” .134
Em Nossas Divergências, texto publicado em 1895, Plekhánov defendia que a comuna rural russa
estava em desagregação devido à penetração capitalista no campo: “ Deverá a Rússia atravessar
a escola do capitalismo? Devemos responder sem hesit ação: por que não deveria ela terminar
a escola que começou? Todas as mais novas e, portanto, as mais influentes t endências da vida
social, t odos os fatos mais marcantes nos campos da produção e troca têm apenas um
significado que não pode ser nem duvidado nem quest ionado: estão não apenas limpando a via
para o socialismo, eles são em si mesmos mom entos necessários e altamente important es no
134
Angélica Balabanova. M i Vida de Rebelde. Barcelona, M art inez Roca, 1974, pp. 41-42.
84
seu desenvolviment o. O capitalismo é favorecido por toda a dinâmica da nossa vida social, todas
as forças que desenvolvem com o movim ento da máquina social e por sua vez deter minam a
direção e a velocidade do movim ento. Contra o capitalismo estão apenas os interesses mais ou
menos duvidosos de uma parcela do campesinato e também aquela força da inércia que
ocasionalment e é sentida de maneira tão dolorosa pelas pessoas cultas de todo país agrário e
at rasado” .135
Em 1898 (tardiam ent e em relação à Europa ocidental e central) houve a primeira tent ativa de
se fundar um partido socialista em solo russo, criando o POSDR (Partido Operário
Socialdemocrat a da Rússia) num pequeno congresso com nove delegados, dos quais seis
representavam o Bund (“ união” ), União Judaica Trabalhista de Rússia, Polônia e Lituânia, em
iídiche Algemeyner Yidisher Arbet er Bund in Lite, Poyln un Rusland . 137 Os intelectuais e operários
judeus foram pioneiros do moderno socialismo russo: obrigados a viver em provincias e regiões
periféricas (pale) pelo regim en czarista, com escassos direitos trabalhistas e educacionais,
confinado em pequenas aldeias ( shetl ), desempenhavam tarefas, sobretudo, como artesãos,
vendedores ambulant es, domésticos e outras, de mera sobrevivência. Sete milhões de judeus
de Europa do Leste, que falavam iíddische, viviam sua pobreza em situação de isolament o
cultural. Dessa situação surgiu o “ socialismo judeu” , a partir de uma vasta classe trabalhadora e
de uma intelligentsia aculturada, mas não necessáriament e assimilada, influenciada pelo
socialismo russo, e depois também pelo nacionalismo judeu. A esquerda sionista se desenvolveu
na virada do século, propugnando a migração para a Palestina, com grupos como Hashomer
Hatzair , constituido por jovens de classe média “ semiassimilados” , destacando-se os nomes de
M eir Yaari e David Horovitz.
135
Apud Samuel H. Baron. Plekhánov. The fat her of russian marxism. Los Angeles, St anford Universit y
Press, 1963.
136
Rosa Luxem burgo. A Revolução Russa . Pet rópolis, Vozes, 1991, p. 38.
137
O Bund f ora organizado em 1897 no congr esso const it uint e dos grupos socialdemocrat as judeus em
Vilna, na Lit uânia, chamada de “ Jer usalem do Lest e” ; agrupava principalm ent e os elem ent os
semiprolet ários dos art esãos judeus das regiões oci dent ais da Rússia. Os seus principais líderes eram
Arkadi Kramer e Vladimir M edem. No I Congresso do POSDR (1898), o Bund passou a fazer part e do POSDR
como “ uma organização aut ónoma, independent e nas quest ões ref er ent es especificament e ao
prolet ar iado judeu” .
85
A repressão czarista impediu que o POSDR se desenvolvesse no lustro seguint e à sua fundação.
O movim ento operário russo refluiu e o partido operário socialdemocrata ficou inicialment e no
papel, desarticulado pela repressão. Seus principais dirigent es e alguns organizadores buscaram
refúgio no estrangeiro, onde continuaram sua atividade propagandística em direção da Rússia,
publicando notadament e o jornal Iskra (“ A Faísca” ), introduzido e distribuído clandestinament e
na Rússia em algumas centenas de exemplares. No congresso de fundação da Internacional
Socialista, em 1889, se registrou a presença de seis delegados russos, número que caiu para zero
e um nos congressos de 1891 e 1893, elevando-se depois para 7, 24, 37, 63, 39 e 36 nos
congressos de 1896, 1900, 1904, 1907, 1910 e 1912, crescim ent o e oscilação que refletiam com
bastante exatidão o crescimento vertiginoso, inicialmente, e os altos e baixos, depois, do partido
operário na Rússia. No prefácio de 1895 a As Lutas de Classes na França de Karl M arx, Engels
escrevia “ até na Rússia, quando se reúna o célebre Zemski Sobor , essa Assembleia Nacional
contra a qual o jovem Nicolau resiste tão sem êxito, até aí podemos t er a cert eza de que viremos
a est ar representados” . 138
Em 1895, Lênin foi preso e passou um ano na Sibéria, onde seu longo texto O Desenvolviment o
do Capit alismo na Rússia foi concluído; com análises estatísticas extremam ent e detalhadas,
Lênin resumiu a hist ória econômica do país e compendiou a polêmica do marxismo russo contra
o populismo, que negava o desenvolvimento do capitalismo russo, polemizando também contra
o “ marxismo liberal” (ou “ legal” ), que propunha favorecê-lo através de uma aliança política com
a fantasmagórica burguesia liberal russa: “ O papel histórico progressivo do capitalismo se
resum e em duas breves teses: o aumento da força produtiva do trabalho social e sua
138
Publicado (com cort es) em Die Neue Zeit (órgão da socialdemocracia alemã) nº 27, e no livro de Karl
M ar x Die Klassenkämpfe in Frankreich 1848 bis 1850, edição de 1895.
86
socialização. M as elas aparecem em processos muito diversos nos diversos terrenos da
economia nacional. O desenvolviment o da força produtiva do trabalho social se observa co m
pleno relevo unicament e na era da grande indústria mecanizada. At é essa fase superior do
capitalismo se conservam ainda a produção manual e a técnica primitiva, que progride por uma
via espontânea e com extraordinária lentidão. A época post erior à reforma [a abolição da
servidão, NDA] se distingue profundament e nesse sent ido das eras anteriores da história russa.
A Rússia do arado de madeira, do moinho de água e do tear manual começou a se transformar
rapidament e na Rússia do arado de ferro e a colhedeira, do moinho e do tear movidos a vapor.
“ Não existe um ramo da economia nacional submetido à produção capitalista no qual não se
tenha observado uma plena transformação da t écnica. Devido à própria natureza do
capitalismo, essa transformação só pode se realizar através de uma série de desigualdades e
ausência de proporção; os períodos de florescimento são subst ituídos por períodos de crise, o
desenvolvim ento de um setor da indústria conduz à decadência de outro, o progresso da
agricultura atinge em uma zona um de seus setores, em outra zona, atinge outro; o auge do
com ércio e da indústria leva vantagem sobre o auge da agricultura, etc. Numerosos erros dos
escritores populist as provêm de suas tentativas de dem onstrar que esse desenvolvim ent o
carente de proporções, realizado por saltos, frenético, não é desenvolvim ento” .139 O capitalismo
russo, por outro lado, não se desenvolveria apenas com base no mercado interno (escasso)
como o supunham os populistas, mas também com base no mercado mundial: “ O mercado
ext erno é necessário porque a produção capitalista implica a tendência para sua ampliação
ilimitada, contrariament e a todos os modos de produção antigos, confinados nos limites da
comunidade, da t ribu, do feudo, do distrito territorial e do estado. Enquanto nos antigos regimes
econômicos a produção se renovava cada vez sob a mesma forma e nas mesmas proporções em
que se desenvolvia previam ente, essa renovação no regime capitalista é impossível, a ampliação
é ilimitada, o eterno avanço se transforma na lei da produção” . 140
139
Vladimir I. Lêni n. El Desarrollo del Capit alismo en Rusia. Barcelona, Ariel, 1974. P. 552.
140
V. I. Lênin. Sobre el Problema de los M ercados. M adri, Siglo XXI, 1974, p. 95.
87
proletários assalariados: o capitalismo criava para si o mercado interno. O regim e de posse de
terras russo ainda tinha caract erísticas feudais — apesar do avanço lento, mas consistente, do
capitalismo no campo russo desde meados do século ant erior. Essa base feudal no campo —
latifúndios que obtinham rendimentos a part ir da exploração de trabalho em moldes medievais
— estava intimament e ligada à superestrutura polít ica czarista, igualmente perm eada por
elem ent os feudais ou “ asiáticos” . Varrer o czarismo era condição para o desenvolviment o
econômico russo, não só para conquistar a liberdade política.
Cont ra os populistas, Lênin sintetizou as duas teorias da crise exist entes no campo socialista,
caract erizando a raiz sismondiana e romântica das concepções econômicas dos “ amigos do
povo” : “ A primeira teoria a explica como a contradição entre a produção e o consumo da classe
operária, a segunda como a contradição entre o carát er social da produção e o caráter privado
da apropriação. A primeira vê a raiz do fenômeno fora da produção (por exemplo, Sismondi,
quem censurava aos clássicos se ocupar só da produção, ignorando o consumo); a segunda vê
as raízes do fenôm eno nas próprias condições produtivas. A primeira explica a crise pelo
subconsumo (Unterkonsumation), e segunda, pela análise da produção. As duas explicam a crise
por uma contradição da própria estrutura da economia, mas diferem ao individualizar essa
contradição. M as a segunda nega a existência de uma cont radição entre produção e consumo,
do subconsumo? Nat uralmente não. Reconhece plenament e que ele existe, mas o põe num
plano subordinado, que diz respeito só a um setor da tot alidade da produção capitalista. E
explica que o subconsumo não pode explicar as crises, que são provocadas por outra profunda
e fundam ental contradição do sistema econômico contemporâneo, entre o carát er social da
produção e o caráter privado da apropriação” .141
141
Idem .
88
granjeiro capitalista. A Rússia ainda estava diante das duas possibilidades. Lênin pretendia
combater os programas agrários das diversas forças políticas russas que, ainda que não
defendessem abertament e os grandes interesses latifundiários, propunham soluções como a
partilha de terras, o controle das terras por instituições comunais da velha Rússia ou a
municipalização. A primeira proposta cristalizaria relações de dependência feudais.142 A segunda
congelaria formas sociais e instituições de velha Rússia. A terceira depositaria a resolução do
problema agrário russo nas instit uições vigent es e não colocaria em quest ão a tomada do poder.
Cont ra essas “ reformas dentro do sistema semifeudal e autocrático vigente” , Lênin argument ou
que a Rússia caminhava de conjunt o para o capitalismo: “ Com respeit o à lentidão ou a rapidez
do desenvolvimento do capitalismo na Rússia, tudo depende com que comparamos est e
desenvolvim ento. Se compararmos com a época pré-capitalista deveremos reconhecer que o
desenvolvim ento da economia nacional é extraordinariament e rápido com o capitalismo. Se, em
troca, compararm os a rapidez do desenvolvimento com o que entendemos ser o nível moderno
da técnica e da cultura em geral, devem os admitir que o desenvolvimento do capitalismo na
Rússia é, com efeit o lento. E não poderia ser de outro modo, pois em nenhum país capitalista
sobreviveram com t anta abundância instit uições do passado, incompatíveis com o capitalismo,
e que freiam o seu desenvolvimento e dificultam a situação dos produtores, os quais sofrem do
capitalismo e do insuficient e desenvolvim ento do capitalismo” .143 A proposta de basear a futura
sociedade socialista em torno da comuna aldeã e no trabalho artesanal dos kustari , por sua vez,
era puro passadismo, um ranço de romantismo conservador no mnovim ento revolucionário. No
entanto, em O Program a Agrário da Social democracia , Lênin afirmava: “ O erro de certos
marxist as consiste em que, ao criticar a teoria dos populistas, perdem de vista seu cont eúdo
historicamente real e historicament e legítimo na luta contra o feudalismo. Criticam, e com
razão, o ‘princípio do trabalho’ e o ‘igualit arismo’ como socialismo atrasado, reacionário,
pequeno-burguês e esquecem-se de que essas teorias exprimem o democratismo pequeno-
burguês avançado, revolucionário, e de que essas teorias servem de bandeira à mais decidida
das lutas cont ra a velha Rússia, a Rússia feudal. A ideia de igualdade é a ideia mais revolucionária
na luta contra a velha ordem de coisas do absolutismo em geral e contra o velho regim e feudal
e latifundiário de posse da terra em particular. A ideia de igualdade é legítima e progressista no
pequeno-burguês camponês, porque expressa a aspiração à repartição da terra” .
A “ modernização” russa não reduzia, mas agravava os conflitos no campo e na sociedade t oda:
“ M uito antes de 1914, a reforma agrária do primeiro minist ro Stolypin havia afirmado que
precisaria de pelo m enos vinte anos para modificar o país; mesmo se tivesse continuado a agir,
seria necessário quase um século para que o regime criasse a burguesia agrária forte sobre a
qual esperava se apoiar no futuro. O processo de cercamento da terra, como t odas as reformas
do regim e czarista, veio tarde demais. Parte do problema era a falta de uma estrutura
burocrática adequada á implementação das novidades; um dos maiores entraves à reform a
agrária foram os postergam entos infindáveis. O governo t entava mudar o modo de vida
camponês sem fazer uso de qualquer instrumento político efetivo no meio rural. A maioria dos
nobres, dos governadores de província até os capit ães de t erra locais, eram contrários às
iniciativas e fizeram o que podiam para detê-las; não havia nenhuma ingerência do governo na
142
“ O que é nossa “ grande” reforma cam ponesa, o arrebat am ent o da t erra dos cam poneses, o
est abelecim ent o dos camponeses em t erras medíocres, a implant ação do novo regim e agrário mediant e
a força milit ar, os fuzilament os e cast i gos cor porais? É a violência exercida pela primeira vez em massa
cont ra os cam poneses, em f avor do capit alismo nascent e na agricult ura. É a ‘limpeza das t erras’ pelos
lat ifundiários para o capit alismo” , afirmava Lênin, em Duas Tát icas da Socialdemocracia na Revolução
Democrát ica.
143
V. I. Lênin. El Desarrollo del Capit alismo en Rusia, cit .
89
administração da aldeia” . 144 Esse era o drama do absolutismo russo: embora mantivesse a
nobreza na sua dependência, ele próprio era refém dessa mesma nobreza para governar.
Esse “ problema” se agravava com o avanço geral do capitalismo, que não só era irreversível
como também criava a classe operária na Rússia. Existiam no país quase quatro mil fábricas e
num erosos trabalhadores industriais em finais do século XIX, concent rados em torno de
M oscou, na província de Vladimir e em São Pet ersburgo. A industrialização ocorreu basicament e
em duas cidades, São Pet ersburgo e M oscou, que se encontravam na part e ocidental do Império.
Com a rápida modernização (urbanização e industrialização) implant ada na segunda metade do
século XIX e com a abolição da servidão acontecera uma migração para as cidades, muitos
camponeses foram trabalhar como operários nas indústrias. Com a recuperação econômica
mundial da última década do século XIX e o increment o dos investim ent os ext ernos, a indústria
russa e o proletariado cresceram a passos cada vez mais largos. O proletário russo era, ainda
assim, um “ anfíbio econômico” , pois não perdera seus laços com a vida rural, à qual voltava nos
períodos de desemprego, ou da qual não se afastava quando desempenhava t arefas industriais
de caráter sazonal (temporárias): 145 “ Na Rússia, o caráter progressista do capit alismo se
manifesta com vigor especial pois a dependência pessoal do produtor existia (e, em part e,
continua existindo) não só na agricultura, mas também na indústria de transformação, nas
‘fábricas’ com t rabalho de servos, na indústria mineiro-fabril, na indústria da pesca e em
outras” .146 No final do século XIX, o proletariado industrial russo perfazia aproximadament e 2%
da população total, contra 82% de camponeses:
Ao lado disso, no lugar da quase inexistente m édia burguesia russa surgia uma “ nova classe
média” , os chamados “ profissionais da inteligência” , advogados, jornalist as, médicos,
engenheiros, professores e m estres de escola: “ No início do século XIX, o sistema universitário
foi criado para suprir o Estado com uma classe dirigent e especializada conform e a ciência
europeia. Em 1809, a legislação tornou obrigatórios exames de nível universitário para fins de
promoção na hierarquia da burocracia civil criada por Pedro, o Grande, em 1720. O decreto de
1834 classificou os oficiais do Estado conforme os três níveis educacionais europeus. Depois de
1864, os zemstva competiam com a burocracia do Estado (aumentada em part e para
supervisionar os zemstva ) por médicos, advogados, professores e cientistas graduados das
universidades em expansão” . 147 Essa camada social, relativament e pouco num erosa e sem
144
Orlando Figes. Op. Cit ., p. 315.
145
Oskar Anw eiler. Los Soviet s en Rusia 1905-1921 . M adri, Zero, 1977.
146
V. I. Lênin. Op. Cit , p. 553.
147
Pat r ick L. Alst on. The dynami cs of educat ional expansion in Russia. In: The Transformat ion of Higher
Learning 1860-1930 . St ut t gart , Klet t -Cot t a, 1982.
90
independência econômica pois se encontrava apoiada sobre o Estado, era incapaz de uma
oposição política real à autocracia e encontrava seu aliado social não na burguesia, mas nos
grandes proprietários fundiários, aos quais estava est reitam ent e vinculada através do serviço
do Estado: “ Na Rússia, os filhos dos proprietários nobres procuraram cargos na burocracia civil
e militar, para compensar a deterioração de suas fort unas agrárias. Após a abolição da servidão
em 1861, houve um influxo de fidalgos decadent es para o serviço do Estado” .148
A fraca sociedade burguesa russa nunca fora capaz de impor suas reivindicações políticas, e
quando ela começou a sentir necessidade de instit uições análogas às da Europa ocident al, o
Estado czarista já havia assumido a forma de um grande empresário capitalista, apoiado sobre
um aparelho burocrático fortem ent e centralizado. O czarismo, ao se tornar o instrument o da
capitalização da Rússia, fortalecia antes de tudo a si mesmo. A incapacidade política da
burguesia estava também diretament e det erminada pelo carát er de suas relações com o
proletariado e os camponeses. Por um lado, ela não podia conquistar o apoio dos operários que
se encont ravam em oposição direta a ela na vida cotidiana; por outro, ela era incapaz de
conquistar o apoio da classe camponesa, já que, assim como os proprietários fundiários,
rejeitava a transformação (expropriação) da propriedade privada, qualquer que fosse a forma
pela qual ela se apresentasse.
Nas palavras de Witte: “ O orçament o do Estado francês é de 1,26 bilhão de rublos para uma
população de 38 milhões; o orçamento austríaco é de 1,1 bilhão de rublos para uma população
de 43 milhões. Se os nossos contribuintes fossem tão prósperos como os franceses, nosso
orçam ento seria de 4,2 bilhões de rublos ao invés do atual 1,4 bilhão, e se alcançássemos os
austríacos, nosso orçamento seria de 3,3 bilhões de rublos. Por que não podemos o alcançar? A
principal razão é a pobre condição de nosso campesinato” . Com a adoção do padrão ouro pela
Rússia, os investim entos estrangeiros nas companhias privadas do país passaram de 750 milhões
de rublos, entre 1881 e 1897, para 1,85 bilhão, entre 1898 e 1913 (aumentaram 2,5 vezes). A
participação do capital est rangeiro no governo e municípios passou de 1,05 bilhão de rublos no
primeiro período, para 2,38 bilhões (aumentou 2,3 vezes). Do início ao final do ciclo do padrão
ouro, que foi abolido em 1914, a participação do capital estrangeiro nas companhias russas de
capital aberto passou de 25% para 43%. O ritmo de construção de estradas de ferro contribuiu
não apenas na instalação de uma indústria pesada no Império como também para uma maior
dinamização de seus mercados interno e ext erno. Entre 1850 e 1910, a malha ferroviária russa
saltou de 488 para... 54.752 quilômetros, crescendo em ritmo “ norte-am ericano” e superando
todos os países europeus em ext ensão.
148
Arno M ayer . A Força da Tradição. A persist ência do Ant igo Regim e. São Paulo, Companhia das Let ras,
1987, p. 183.
91
Extensão das ferrovias europeias, em quilômetros
Ora, “ devido às dívidas contraídas pelo Estado, uma parte considerável do produto nacional era
enviado t odos os anos ao ext erior, enriquecendo e consolidando a burguesia financeira
europeia. A aristocracia da bolsa que, nos países europeus, detinha a hegemonia e não tinha o
menor escrúpulo em transformar o governo do Czar em um vassalo no plano financeiro, não
podia e não queria se aliar à oposição burguesa russa, pela boa razão de que nenhum outro
governo nacional jamais havia lhe concedido tamanhos benefícios usurários como era o caso do
czarismo. Assim como o capital financeiro, o capital industrial estrangeiro, explorando as
riquezas e mão de obra russas, realizava à força a sua política fora das fronteiras russas, nos
parlamentos franceses, ingleses ou belgas” . 149 O capital industrial que na Europa ocidental havia
erguido a bandeira do liberalismo, na Rússia preocupava-se apenas com a sorte seus
investiment os, que lhe parecia melhor assegurada pelo governo absolutista. Nos invest idores
ext ernos, a França se destacava, e uma aliança militar franco-russa acabou se impondo: a 27 de
agosto de 1891 foi assinado um acordo polít ico e depois, a 17 de agost o de 1892, foi assinada
uma convenção milit ar.
149
Leon Trot sky. 1905, cit ., p. 48.
92
A situação geral tinha consequências fatais para as ambições polít icas da burguesia russa. O
liberalismo russo (expresso a partir de 1905 pelo Partido Cadet e, KDT, composto por intelectuais
urbanos e os membros dos zemstvos, representações municipais de poder limitado) sustentava
que a prodigiosa preponderância do Estado russo eliminava qualquer possibilidade de revolução
dem ocrática, devido à força militar e financeira do absolutismo. Em contrast e com isso, “ o
proletariado deu seus primeiros passos nas condições políticas de um Estado despótico. Greves
interdit adas pela lei, círculos clandestinos, proclamações ilegais, manifestações de rua, choques
com a polícia: foi essa a escola criada pela combinação de um capitalismo em rápido
desenvolvim ento e um absolut ismo que cedia lentamente as suas posições. A concentração dos
operários em empresas gigant escas, o caráter igualment e concentrado da opressão exercida
pelo Estado, enfim, toda a força impulsiva de um prolet ariado jovem e de plein fraîcheur , fizeram
da greve política, tão rara no Ocidente, o método essencial de luta na Rússia” . Os números das
greves operárias desde o início do século eram os indícios mais inst rutivos da história política da
Rússia; num país at rasado onde o proletariado era pouco num eroso “ o movim ento de greve
assumiu uma amplitude que jamais t eve em nenhum lugar do mundo” . 150 Em 1899, Lênin
escrevia: “ Nos últimos anos, as greves operárias são extraordinariament e frequent es na Rússia.
Não existe nenhuma província industrial onde não tenha havido várias greves. Quant o às
grandes cidades, as greves não cessam. Compreende-se, pois, que os operários conscient es e os
socialistas se coloquem cada vez mais amiúde a questão do significado das greves, das maneiras
de realizá-las e das tarefas que os socialistas se propõem ao participarem nelas” .
A virada do século testemunhou uma fort e crise econômica e social na Rússia: “ O grande surto
industrial dos anos 1890 terminou com a depressão de 1900. A crise tem sido amplament e
reportada com o uma crise de superprodução, como um crash financeiro ou como resultado de
condições desfavoráveis fora da Rússia... Qualquer uma dessas explicações estaria incompleta e
seria de fato bastante superficial sem se levar em consideração a exaustão da capacidade de
pagam ent o de tributos dos camponeses. Pela primeira vez desde os dias da emancipação, a
agitação camponesa assumiu maiores proporções” . 151 As condições para uma aliança
revolucionária operário-camponesa se preparavam. No campo socialista, depois da dispersão
dos grupos que haviam se unificado no congresso de fundação do POSDR, em 1898, uma espécie
de “ unidade” existia através da referência comum aos socialist as russos exilados, liderados por
Plekhánov: “ Até ent ão o grupo de Plekhánov havia se preocupado principalment e do problem a
de orient ação t eórica, pelo motivo de não existir nenhum partido político que se identificasse
com a t eoria de M arx e que procurasse difundir essa doutrina entre as massas populares” . 152 Em
Nossa Tarefa Imediat a , de 1900, Lênin defendia: “ O partido não deixou de existir; apenas se
recolheu em si mesmo, para reunir forças e encarar a tarefa de unificar a todos os
socialdemocratas russos em um terreno firme. Realizar essa unificação, elaborar as formas
convenient es, deixar de lado definitivament e o fracionado trabalho local: tais são as mais
imediatas e essenciais t arefas dos socialdemocratas russos” .
Em Que Fazer?, texto de 1902, Lênin expunha a situação do movimento operário e socialista
russo (a tendência revolucionária e combativa do proletariado, a dispersão dos núcleos
socialistas) e propunha a criação de uma organização de revolucionários profissionais,
conspirativa e centralizada, que fosse ao mesm o tempo uma organização operária, com ampla
margem para o debate int erno, mas com plena unidade de ação, uma organização baseada no
centralismo dem ocrático: um partido operário, profissional e revolucionário. Se o primeiro dos
aspect os mencionados (o “ conspirativismo” centralizado) foi enfatizado, foi por ele entrar em
choque com os partidários de um partido “ laxo” , que Lênin considerava não adaptado às
150
Leon Trot sky. Hist oire de la Révolut ion Russe, cit , p. 72.
151
Alexander Ger schenkron. Economic Backw ardness in Hist orical Perspect i ve. Washingt on, Frederick
Praeger Publisher, 1962.
152
Christ opher Hill. Lênin. Buenos Aires, CEAL, 1987, p. 8.
93
condições políticas russas. A tarefa urgia: a tendência revolucionária existente no proletariado
já se manifestava na explosão da greve geral, em 1904, em Baku, no Cáucaso, precedida por
outras grandes greves no sul da Rússia, que tiveram como ant ecessora a grande greve de 1902
em Batum. O início dessa série de greves se encontrava naquela que fora empreendida pelos
operários têxt eis de São Pet ersburgo entre 1896 e 1897. Em apenas uma década, o proletariado
russo tinha despertado para a luta social e política com m ét odos radicais que já pareciam
superados ou abandonados na Europa ocidental: o revolucionário russo não devia “ ter por ideal
o secretário do sindicato, mas o tribuno popular , que sabe reagir contra toda manifestação de
arbit rariedade e de opressão, onde quer que se produza, qualquer que seja a classe ou camada
social atingida, que sabe generalizar todos os fatos para compor um quadro complet o da
violência policial e da exploração capitalista, que sabe aproveitar a menor ocasião para expor
diante de t odos suas convicções socialistas e suas reivindicações democráticas, para explicar a
todos e a cada um o alcance histórico da luta emancipadora do proletariado” .153
O programa aprovado pelo POSDR era detalhado no que concernia às reivindicações agrárias e
camponesas: 1. Abolição dos pagamentos nobiliários e dos juros fundiários, bem como de todos
os deveres que oneram, atualment e, o campesinato, enquanto estamento tributável; 2.
Supressão de todas as leis que restrinjam a utilização pelos camponeses de sua terra; 3.
Restituição dos valores pecuniários aos camponeses que lhes foram subt raídos na forma de
pagam ent os nobiliários e juros fundiários. Confiscação da propriedade e da posse dos most eiros
e da Igreja, como também dos bens dos senhores feudais e das pessoas pertencent es à família
do Czar e ao seu gabinete e, ao mesmo tempo, a ocupação dos latifúndios da nobreza que se
valeram de empréstimos nobiliários, com base na instituição de impostos sobre a terra.
Transferência das somas obtidas dessa forma para um fundo nacional especial destinado à
satisfação das necessidades culturais e beneficent es das comunidades dos vilarejos; 4.
Constituição de comit ês de camponeses: a. visando à devolução à comunidade do vilarejo
(mediant e expropriação ou – caso a t erra t enha sido transmitida de mão em mão – mediante a
recompra pelo Estado, à custa do proprietário fundiário nobre) das parcelas de t erra que, na
supressão da servidão, foram destacadas da terra do camponês e servem, nas mãos dos
153
V. I. Lênin. Que fazer? Obras Escolhidas, São Paulo, Alfa Ômega, 1986.
154
Pierre Broué. Le Part i Bolchevique. Paris, M inuit , 1971, p. 31.
94
proprietários fundiários como meio de sua submissão; b. visando à transmissão daquele solo à
propriedade dos camponeses no Cáucaso que o utilizam enquanto obrigação transitória,
khisanen , etc.; c. visando à supressão dos resquícios das relações de servidão que,
permaneceram mantidas nos Urais, no Altai, na região ocidental e em outras regiões do Estado;
5. a aut orização para os tribunais reduzirem valores excessivam ent e elevados de arrendament o
e declararem nulos os contrat os com carát er de vassalagem.
155
Ot t o Bauer. La Cuest ión de las Nacionalidades y la Socialdemocracia. M éxico, Siglo XXI, 1979. Ot t o
Bauer (1882-1938) foi um dos dirigent es da socialdemocracía aust r íaca e da Segunda Int ernacional e um
dos ideólogos do “ aust romar xismo” , aut or da t eoria da “ aut onomia cult ural nacional” . Em 1918-1919, foi
minist ro dos Negócios Est r angeiros da República da Áust ria. Seu livro A Quest ão das Nacionalidades e a
Socialdem ocracia, de 1907, foi um dos t ext os mais influent es no debat e sobre a quest ão nacional
desenvolvido na Int ernacional. Definia a nação como o produt o nunca consumado de um processo
hist órico const ant ement e em curso, r ejeit ando a fet ichização do “ fat o nacional” , e os mit os reacionários
da “ nação et erna” . O seu progr ama de aut onomia nacional e cult ural levava, porém, a um beco sem saída
ao direit o democrát ico de cada nação a se separar e const it uir como um Est ado independent e.
95
A DIVISÃO DA SOCIALDEM OCRACIA RUSSA
Aprovado seu programa, o congresso socialdemocrata de 1903 dividiu-se politicament e, o que
fez surgir frações identificadas como bolchevismo (“ m aioria” ) e menchevismo (“ minoria” ), uma
terminologia que perm earia o pensam ento político mundial no século XX. Na base dessa divisão
houve a divergência ent re Lênin e M artov no Congresso a respeito do prim eiro artigo do est atuto
partidário. M artov (líder dos mencheviques) propunha: “ É membro do POSDR quem aceita o seu
programa e sust enta o partido, mat erialment e ou mediant e uma cooperação regular
desenvolvida sob a direção de um de seus organismos” . Ao que Lênin respondeu propondo: “ É
membro do partido quem aceita seu programa e sustenta o partido, materialment e ou através
da sua participação pessoal na atividade de um de seus organismos” .
Como Lênin obt eve sua circunstancial “ maioria” ? “ Depois que set e anti-iskristas abandonaram
o Congresso, ficaram 44 delegados com direito a voto. Os delegados do Bund se ret iraram do
congresso porque viram fracassar sua posição de serem os representantes exclusivos dos
trabalhadores judeus (que Plekhánov designava como o setor “ mais explorado e militante” dos
trabalhadores da Rússia) no partido socialdemocrata, que o Bund abandonou temporariam ent e.
O Bund permaneceu influent e, tendo mais peso entre os trabalhadores judeus da Rússia do que
o “ sionismo marxista” (cujo principal teórico era Dov Ber Borochov) - o Bund repudiava o
sionismo, teorizado nas décadas precedent es pelo jornalista austráico Theodor Herzl, e
proclamava que os trabalhadores judeus não se emancipariam em “ Israel” , mas no país onde
residissem e junto aos seus irmãos de classe de qualquer nacionalidade, embora também
ent endesse que os judeus precisavam de uma representação política separada, 156 o que foi
qualificado de divisionista pelas principais frações do socialismo russo.
Alguns dias antes da reirada dos delegados do Bund, Lênin havia ficado em inferioridade de
votos no debat e sobre a det erminação da qualidade de membro do partido. A formulação mais
elást ica de M artov, que, em oposição a Lênin, não considerava que a ‘colaboração’ devesse
constituir um requisito em uma organização do Partido, fora aceita por 28 votos contra 23. Após
156
No congr esso, foi Leon Trot sky, ele próprio de or igem judaica, quem f alou cont ra a pr et ensão do Bund
de at ribuir-se a represent ação exclusiva do prolet ariado judeu separ ado do rest ant e do prolet ariado russo.
96
a retirada dos set e delegados, Lênin passou a constituir uma maioria de 24 cont ra 20, de modo
que conseguiu a admissão de sua própria lista candidatos ao Comit ê Central... A vitória durou
pouco, pois o resultado foi a divisão da direção do Partido em duas frações. Os postos dirigentes
da Iskra retornaram a homens que se convert eram em adversários ideológicos de Lênin, e que
logo se uniram a Plekhánov. Lênin preparou a fundação de seu próprio periódico, Vperiod
(Avante), que foi lançado no final de 1904” .157
As propostas políticas do Que Fazer? de Lênin foram identificadas com o “ bolchevismo” , embora
est e nascesse como corrent e política depois da publicação desse texto. Contra a interpretação
não histórica do “ leninismo” , foi apontado que “ são três as organizações habitualm ent e
designadas como ‘partido bolchevique’: 1) o Partido Operário Socialdemocrata Russo (POSDR),
entre 1903 e 1911, no qual muitas frações disputavam a direção; 2) a fração bolchevique no
interior desse m esmo partido; 3) o POSDR (bolchevique) finalment e fundado em 1912 e que
receberia importantes reforços, especialm ent e aquele da ‘Organização Interdistrit al’ de
Petrogrado, com Trotsky, antes de ser o partido bolchevique vit orioso em Outubro” . 158 O
bolchevismo não foi sempre idêntico a si mesmo: foi uma corrent e polít ica surgida de disput as,
de cisões e de fusões. Existiu, porém, uma singularidade (e uma continuidade) nessa história. Ela
não se limitou à implementação do cont eúdo do Que Fazer?, suposta quintessência do
“ leninismo” . Foi o próprio Lênin, em polêmica com a socialista polonesa ativa na Alemanha Rosa
Luxemburgo, quem relativizou os princípios políticos e organizativos desse texto como sendo os
de um “ novo tipo” de organização ou partido. 159 O termo “ bolchevique” , por outro lado, teve,
no início, apenas um significado limit ado, o de maioria do II Congresso do POSDR, de 1903.
O jovem Leon Trotsky, que já se destacava como polemista sem papas na língua, rompeu
politicament e com Lênin no Congresso de 1903. Ret rospectivam ente, apresentou a ruptura
como sendo “ subjetiva” e “ moral” , vinculada com um assunto que não implicava nenhum
princípio de linha política ou de organização. Lênin propôs reduzir o número de redat ores
principais (editores) da Iskra de seis a três. Estes deviam ser Plekhánov, M artov e ele próprio.
Os “ velhos” , Pável Axelrod, Vera Zasulich e Aleksandr Potresov, deveriam ser excluídos. O que
tratava de conseguir era que o t rabalho editorial da Iskra fosse mais eficaz do que havia sido nos
últimos tempos. Para Trotsky, “ essa tentativa de eliminar Axelrod e Zasulich, dois de seus
157
Leonard Shapiro. Bolcheviques, in: C. D. Kernig. M arxismo y Democracia. Hist oria 2, M adri, Rioduero,
1975, p. 2-3.
158
Pier re Broué. Observaciones sobre la hist or ia del part ido bolchevique, in: M aximilien Rubel et al.
Part ido y Revolución. Buenos Aires, Rodolfo Alonso, 1971, p. 84.
159
V. I. Lênin e Rosa Luxem burgo. Part ido de M assas ou Part ido de Vanguarda? São Paulo, Ched, 1980.
160
Georges Haupt . Part i-guide: le rayonnement de la socialdémocrat ie allemande. L’ Hist orien et le
M ouvement Social . Paris, François M aspéro, 1980, p. 152.
97
fundadores, parecia-lhe sacrilégio. A dureza de Lênin suscitou sua repugnância” . 161 No
congresso do POSDR de 1903, Trotsky falou contra Lênin em relação a dois pontos da ordem do
dia: o parágrafo 1 dos estatutos do partido e eleição dos órgãos centrais do partido; não se
contrapôs a nenhuma das t eses do programa do partido preparado por Lênin. 162 Logo depois de
lançar seu próprio jornal, o Vperiod , os bolcheviques constituíram formalment e sua fração e
convocaram o “ III Congresso do POSDR” (a ser celebrado em Londres, 1905).
Partindo dessa base, Lênin percorreu o caminho político que o levaria a ser “ o homem com o
maior impacto individual na história do século XX” . 163 Em que pese toda essa complexa origem
política, o “ leninismo” foi definido como “ a interpret ação teórica e prát ica do marxismo, em
clave revolucionária, elaborada por Lênin num e para um país atrasado industrialment e, como
a Rússia, onde os camponeses representavam a enorme maioria da população” , atribuindo à
“ teoria do partido” de Lênin “ claras raízes populistas” e situando-a simult aneam ent e como uma
variante “ esquerdista” do revisionismo bernsteiniano da virada do século. 164 Para outros autores
existiu uma vinculação direta entre o Que Fazer? e o ulterior “ sectarism o” ou “ burocratismo”
bolcheviques: “ O sectarismo pot encial que Rosa Luxemburgo havia notado nas concepções de
Lênin, manifestou-se claram ent e desde a revolução de 1905” . 165 Para Ernest M andel “ é evident e
que Lênin subestimou no decurso do debat e de 1902-1903 os perigos para o movim ent o
operário que podiam surgir do fato de se constit uir uma burocracia no seu seio” .166 Exemplos de
análises semelhant es poderiam se m ultiplicar.
161
Isaac Deut scher. Trot sky. El Profet a Armado. M éxico, ERA, 1976, p. 83.
162
A. V. Pant sov. Voprossy Ist orii . M oscou, 1989, 7/ 10; Brian Pearce (org.). M inut es of t he Second Ordinay
Congress of t he RSDLP (1903). Londres, New Park, 1978.
163
Er ic J. Hobsbawm. A Era dos Impérios 1875-1914 . Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988, p. 289.
164
Domenico Set t em brini. Leninismo. In: Norbert o Bobbio et al. Dicionário de Polít ica. Brasília, UnB, 1986,
pp. 680-686. A t ese da origem t er rorist a-populist a (inspir ada em Net chaiev) da concepção leninist a de
part ido é amplam ent e difundida: Alain Besançon. Los Origenes Int elect uales del Leninismo. M adri, RIALP,
1980.
165
Paul Le Blanc. Léni ne et Rosa Luxem burg sur l’ organisat ion révolut ionnaire. Cahiers d’ Ét ude et de
Recherche n o 14, Paris, 1990, p. 11.
166
Er nest M andel. A Teoria Leninist a da Organização. São Paulo, Apart e, 1984, p. 148.
167
Angélica Balabanova. Op. Cit , p. 92.
98
nenhuma ditadura sobre si mesmo. A classe operária terá indubitavelment e nas suas fileiras
alguns punhados de inválidos políticos e muito lastro de ideias envelhecidas do qual terá que se
desfazer. Na época da sua ditadura, assim como hoje, terá que limpar a sua mente de falsas
teorias e experiências burguesas, e purgar as suas fileiras dos charlatões políticos e
revolucionários que só sabem olhar para trás. M as essa intrincada tarefa não pode ser resolvida
colocando por cima do proletariado um punhado de pessoas escolhidas ou uma única pessoa
investida do poder de liquidar e degradar” .168
168
Leon Trot sky. Nos Tâches Polit iques. Paris, Denöel-Gont hier , 1970.
169
Isaac Deut scher. Op. Cit , p. 96.
170
Edward Hallet Carr. A Revolução Russa de Lênin a St alin. Rio de Janeiro, Zahar, 1979, p. 132.
99
caminho de um ao outro” . 171 Trotsky acusava ambos, espont aneístas-economicistas e
substitucionist as-centralistas, como formas diferent es de tentar “ falsificar a história” em
condições de “ fraca cultura política do proletariado” , isto é, de uma considerável distância entre
o fator objetivo e o subjetivo. O papel do partido de acordo com o jovem Trotsky, era ser o
acelerador e o mediador no caminho que vai do objetivo ao subjetivo. O que ele não mencionava
e Lênin enfatizava é que essa transição era uma ruptura com o gradualismo, um salto dialético,
necessitando em cada ponto da transição do papel ativo da vanguarda revolucionária para
romper todos os vínculos que espontânea ou conscientem ent e continuament e entrelaçam as
classes, incluindo a própria vanguarda, com a sociedade burguesa.
Pierre Broué criticou posteriorm ent e o “ pedantismo” de Nossas Tarefas, suas invectivas contra
“ M aximilien Lênin” , afirmando que Trotsky considerou, mais tarde, o trabalho como “ um
docum ento terrivelment e molest o acerca do qual observou a maior discrição” , e se perguntou
o porquê de nas circunstâncias da sua publicação (ruptura de Trotsky com o menchevismo) ele
“ não renunciara à sua publicação” . 172 Trot sky, embora nunca abjurasse explicitam ent e desse
text o (e chegasse a resgatá-lo parcialmente) se pronunciou, no final da sua vida, sobre seu
trabalho “ maldito” sem nenhum arrependim ent o por t ê-lo publicado: “ Em uma brochura
intitulada Nossas Tarefas Políticas, escrita em 1904 e cujas críticas contra Lênin careciam
frequent ement e de maturidade e just eza, há, no ent anto, páginas que fornecem uma ideia bem
fiel do modo de pensar dos komitet chiki dessa época (...) A batalha que Lênin sustentou um ano
depois, no congresso [III Congresso, abril de 1905], contra os komitetchiki arrogantes confirm a
plenament e essa crítica” . 173 Existem historiadores que afirmaram que “ (em 1903) Lênin já
estava convencido de que era o revolucionário profissional, e não as massas, as que t inham a
chave para a vitória do socialismo” ,174 uma afirmação simpllista e simplificadora que passa por
alto, entre out ros, o fato de que, em 1917, em plena revolução, Lênin mandou literalment e às
favas os “ profissionais do partido” em nome das massas insurretas.
Na brochura de Trotsky, a crítica mais forte se ref eria ao fato de Lênin (seguindo, na verdade,
Kautsky) ter sustentado que a intelectualidade revolucionária desempenhava um papel especial
no movim ento revolucionário, dotando-o da perspectiva marxista que os operários não
poderiam alcançar por si mesmos. Trotsky via nisso uma negação das capacidades
revolucionárias da classe operária e uma aspiração da intelectualidade, cujo porta-voz seria o
próprio Lênin, para manter o movim ento operário sob a sua t utela. Na mesma época, o socialista
polonês M akhaivski sustent ava opinião semelhante sobre o “ socialismo russo” . 175 Trotsky
sustent ou que, no II Congresso do POSDR, “ todo meu ser prot estava contra a impiedosa
supressão dos vet eranos (Axelrod e Zasulich). Da indignação que senti provém a minha ruptura
com Lênin (que) t eve lugar de cert o modo sobre um t erreno moral. M as isso era só aparência.
No fundo, nossas divergências tinham um caráter político que se manifestou na questão da
organização” . 176 A brochura Nossas Tarefas Políticas estava “ dedicada a Pável Axelrod” ,
dirigent e da primeira geração socialdemocrata russa (depois líder menchevique). Foi afirmado
que “ tanto Trotsky como Luxemburgo foram injustos com Lênin quando retiravam as posições
do Que Fazer? de seu cont exto histórico concreto e atribuíam a elas um caráter universal” .177 As
divergências organizativas de Trotsky (e de Rosa Luxemburgo) com o bolchevismo tinham uma
171
Leon Trot sky. Nôs Tâches Polit iques, ed. cit .
172
Pierre Broué. Trot sky. Paris, Fayard, 1988, pp. 85-91.
173
Leon Trot sky. St alin . São Paulo, Edit oria Livraria da Física, 2012.
174
Adam B. Ulam. Os Bolcheviques. Rio de Janeir o, Nova Front eira, 1976, p. 194.
175
Jan Waclav M akhaïski. Le Socialisme des Int ellect uels. Crit ique des capit alist es du savoir. Paris,
Spart acus, 2014.
176
Leon Trot sky. M a Vie, ed. cit , pp. 199-200.
177
Er nest M andel. Trot sky Com o Alt ernat iva. São Paulo, Xamã, 1995, p. 109.
100
base inseparável das divergências políticas e program áticas: “ Só a compreensão da revolução
burguesa de 1905 nos permit e aproximar-nos, através das concepções econômicas de Lênin, às
raízes do centralismo democrático como tipo de partido” .178
A esse respeito deve-se lembrar que, inicialment e, todas as frações da socialdemocracia russa
estavam de acordo sobre a natureza burguesa da revolução. Lênin, como vimos, começara a sua
carreira no POSDR combat endo no populismo a sua pret endida via específica para o socialismo,
baseada na sobrevivência da comunidade agrária. Era equivocado sustentar a possibilidade de
realizar um socialismo russo baseado na comunidade rural já que o desenvolvim ent o capitalista
havia criado uma diferenciação social dentro das comunidades rurais. A comuna rural est ava em
pleno processo de dissolução, dando lugar, por um lado, à propriedade agrária capitalista e, do
outro, aos assalariados agrícolas. As peculiaridades históricas da sociedade russa est avam
refletidas e ao m esmo t empo distorcidas e tornadas absolutas, unilateralment e, nas ilusões
eslavófilas desenvolvidas pelos narodniks. Plekhánov rejeitara o particularismo narodniki
tornando absoluta a via histórica seguida pelo capit alismo ocidental, e identificando-o como o
caminho a ser seguido pela Rússia.
Aderindo a essa concepção os mencheviques viam a revolução russa como uma repetição tardia
das revoluções burguesas da Europa Ocident al, concebidas sob a liderança da burguesia liberal
e levando ao estabelecim ento do poder daquela. A perspectiva de Lênin da “ ditadura
dem ocrática do proletariado e do campesinato” para a realização da revolução democrática era
uma negação do marxismo ossificado de Plekhánov. Lênin enfatizou que a atrasada burguesia
russa era incapaz de liderar sua própria revolução at é o fim: devido a isso, o papel de sujeito
dirigent e da revolução seria transferido para o proletariado e para o campesinato. A ditadura
dem ocrático-burguesa exercida por essas duas forças “ tiraria o país do medievalismo” ,
desenvolveria rapidament e o capitalismo russo, fort aleceria as posições do proletariado e
abriria enorm es possibilidades para a luta pelo socialismo. Para Lênin “ essa dit adura não haveria
de ser socialista, mas democrática. Não estaria em condições (sem toda uma série de etapas de
desenvolvim ento revolucionário) de derrubar os fundamentos do capitalismo” . Seria também
um poderoso fator de impulsão da revolução socialista no Ocidente capit alista, o que evitaria
uma restauração contrarrevolucionária e permitiria ao proletariado russo chegar ao poder num
curto intervalo hist órico.
O diagnóstico de Lênin sobre a dissolução da antiga comunidade rural 179 seguia a trilha da luta
de Plekhánov contra os populistas em Nossas Divergências, mas acrescentava ao combat e dos
primeiros marxistas russos uma visão dialética, isto é, concreta e não ideológica, do movim ent o
dos camponeses, resgatando, como vimos, a progressividade de sua aspiração ao igualitarismo
agrário, o que significava resgat ar parcialment e o programa populista. Isso contribuiu a edificar
o ponto nodal da estratégia da revolução russa (a aliança operário-camponesa). Para Lênin, “ a
questão agrária constituía a base da revolução burguesa na Rússia e determinava a
particularidade nacional dessa revolução” . 180 Os objetivos que Lênin punha para a revolução
burguesa eram: a república democrática, a Assembleia Constituinte e o governo revolucionário
provisório num regim e da dit adura democrática dos operários e camponeses. O meio para
realizar tais objet ivos era a insurreição popular armada. Descart ando um possível salto da
comunidade agrária para a propriedade socialist a, Lênin evoluiu da concepção de uma revolução
burguesa para uma “ revolução combinada” : “ Desde a sua obra escrita no exílio siberiano [ O
Desenvolvimento do Capit alismo na Rússia ], Lênin tinha a tendência para ver capitalismo atrás
178
Rudi Dut schke. Lênin. Tent at ivas de poner a Lêni n sobre los pies. Barcelona, Icaria, 1976, p. 143.
179
Analisada hist oricament e em: Dorot hy At kinson. The End of t he Russian Land Comm une. St anf ord,
St anf ord Universit y Press, 1983.
180
Luciano Gruppi. O Pensament o de Lênin. Rio de Janeiro, Graal, 1979, p. 86.
101
de cada carreta russa. M as a revolução de 1905 o levou a matizar suas ideias: o capitalismo
estava ainda fracament e desenvolvido, as forças liberais eram embrionárias e tímidas” .181
De outro lado: “ Lênin formulava o problema de modo inteirament e diverso. A libertação das
forças produtivas da sociedade burguesa do jugo da servidão significava antes de tudo, para ele,
a solução radical do problema agrário, no sentido de uma liquidação definitiva da classe dos
grandes proprietários fundiários e de uma transformação revolucionária no domínio da
propriedade fundiária. Tudo isso est ava indissoluvelment e ligado à abolição da monarquia.
Lênin colocara o problema agrário, que tocava nos interesses vitais da enorme maioria da
população e que constituía, ao mesm o tempo, a base do problema do mercado capit alista, com
uma audácia verdadeiram ent e revolucionária. Uma vez que a burguesia liberal, que se opunha
aos operários, estava ligada à grande propriedade fundiária por laços numerosos, a libertação
verdadeiram ente dem ocrática da classe camponesa só podia realizar-se pela cooperação
revolucionária dos operários e camponeses. Em caso de vit ória, essa revolta comum contra o
antigo regim e devia acarretar, segundo Lênin, a instauração da ‘ditadura democrática do
proletariado e dos camponeses’” .182
Segundo Lênin a revolução seria “ burguesa no sentido de seu cont eúdo econômico-social. O que
significava: as tarefas da revolução que está ocorrendo na Rússia não ultrapassam o âmbito da
sociedade burguesa. Nem mesmo a mais plena vitória da atual revolução, isto é, a conquista da
república mais democrática e a confiscação de toda a terra dos propriet ários pelos camponeses,
abalará os fundamentos da ordem social burguesa” . M as dessa t ese, comum a mencheviques e
bolcheviques, “ não derivava absolutament e a conclusão segundo a qual o motor principal ou
guia da revolução seria a burguesia” como queriam os mencheviques. E isto porque a revolução
ocorreria no mom ent o em que “ o proletariado já com eçou a tomar consciência de si como uma
classe particular e a se unir numa organização de classe autônoma” . No O Que Fazer? cujo título
“ expropriava” o título do célebre romance social de Tchernichevski,183 Lênin afirmava que “ o
desenvolvim ento espontâneo do movimento operário marcha precisament e para sua
subordinação à ideologia burguesa. Porque o movim ento operário espontâneo é trade-unionista
(sindicalista). Tudo o que inclinar-se perant e a espontaneidade do movim ento operário, tudo o
que seja diminuir o papel do ‘elem ento conscient e’, o papel da socialdemocracia, significa -
independent em ent e da vont ade de quem o faz - fortalecer a influência da ideologia burguesa
sobre os operários” .
M as, ao mesmo tempo, “ o elemento espontâneo não mais do que a forma embrionária do
consciente. Os motins operários primitivos refletiam já um certo despertar conscient e” : “ A
classe operária tende espontaneam ent e para o socialismo, mas a ideologia burguesa, a mais
181
M oshe Lewin. Illusion comm unist e ou réalit é soviét ique? Le M onde Diplomat ique. Paris, dezem bro
1996.
182
Leon Trot sky. A Revolução Permanent e, cit .
183
Nikolai Tchernichevski. O Que Fazer? Rio de Janeiro, Prismas, 2016.
102
difundida (e constantem ent e ressuscit ada sob as formas mais diversas) é contudo aquela que
mais se impõe espontaneam ent e aos operários” . Essas ideias básicas foram mantidas, inclusive
nas mudanças de programa, que incluíram, como veremos, a evocação de uma possível tomada
do poder pelos camponeses revolucionários. A partir delas, combinadas com circunstâncias
históricas específicas, o bolchevismo se perfilou como uma corrent e hist órica e polít ica
diferenciada das correntes socialistas internacionais, além das intenções iniciais dos seus
fundadores. Lênin mudou várias vezes sua apreciação acerca da nat ureza da revolução russa,
mas nunca a ideia de que seu protagonista central seria o proletariado. É para e com essa classe
operária que o bolchevismo se propôs construir um partido. Foi em virtude de sua eficácia nisso
que o bolchevismo constit uiu-se como corrent e diferenciada.
184
Grigorii Zinoviev. Hist ory of t he Bolshevik Part y. From t he beginnings t o Februar y 1917. Londr es, New
Park, 1973, p. 96.
103
comit ês parciais do partido e, por conseguint e, também o de det erminar a composição pessoal
de cada uma das organizações locais russas” .185
Lênin respondeu às críticas de Rosa polidamente, 186 afirmando que “ o que o artigo de Rosa
Luxemburgo, publicado em Die Neue Zeit , dá a conhecer ao leitor, não é m eu livro, mas outra
coisa distinta” , e dizendo que “ o que defendo ao longo de todo o livro, desde a primeira página
at é a última, são os princípios elem entares de qualquer organização de partido que se possa
imaginar; (não) um sistema de organização contra qualquer outro” . 187 Anos depois, Lênin
ironizou seus crít icos: “ Afirmar que a Iskra (de 1901 e 1902!) exagerou na ideia de uma
organização de revolucionários profissionais é como dizer, depois da guerra russo-japonesa, que
os japoneses se faziam uma ideia exagerada das forças militares russas, e que se preocuparam
demais, antes da guerra, em lutar contra essas forças” .188 Lênin havia sustentado (com Kautsky)
que, historicament e, a intelectualidade revolucionária desempenhava um papel especial no
movimento revolucionário, dotando-o da perspectiva marxista que os operários não haviam
alcançado, nem poderiam alcançar por si mesmos.
185
Rosa Luxem bur go. Cuest iones de organización de la socialdemocracia. Obras Escogidas. Bogot á, Pluma,
1979.
186
Em ar tigo enviado a Kaut sky para ser publicado no Die Neue Zeit , órgão da socialdemocracia alemã,
sendo recusado, e só dado a conhecer em 1930.
187
V. I. Lênin e Rosa Luxem burgo. Op. Cit .
188
V. I. Lênin. Prefazione alla racolt a “ Na 12 Let ” . In: Che Fare? Torino, Einaudi, 1971, p. 468.
189
Rosa Luxem burgo. Op. Cit , p. 18. Sobre o “ jacobinismo” leninist a, Jean P. Joubert . Lénine et le
jacobi nism e. Cahiers Leon Trot sky n o 30, Saint M art in d’Hères, junho de 1987.
190
Expost a inicialment e por M ar x na Circular à Liga dos Comunist as de 1850: “ Os nossos int er esses e as
nossas t arefas consist em em t ornar a revolução permanent e at é que seja eliminada a dom inação das
classes mais ou menos possuidoras, at é que o prolet ariado conquist e o poder do Est ado, at é que a
associação dos prolet ários se desenvolva, não só num país, mas em t odos os países pr edominant es do
mundo... e at é que pelo m enos as forças produt ivas decisivas est ejam concent radas nas mãos do
prolet ar iado (...) Seu grit o de guerra há de ser: a revolução em per manência” .
104
proteger a Rússia da restauração burguesa, dando-lhe segurança para completar implantação
do socialismo” .
Trotsky possuía uma divergência est rat égica com o bolchevismo (e com o menchevismo): “ O
bolchevismo não estava contagiado pela crença no poder e na força de uma dem ocracia
burguesa revolucionária na Rússia. Desde o princípio reconheceu a significação decisiva da luta
da classe operária na revolução vindoura, mas o seu programa se limitava, na primeira época,
aos interesses das grandes massas camponesas, sem a qual - e cont ra a qual - a revolução não
teria podido ser levada a cabo pelo proletariado. Daí o reconhecimento provisório do caráter
dem ocrático burguês da revolução e de suas perspectivas. Por isso, o aut or não pertencia,
naquele período, a nenhuma das duas principais correntes do movimento operário russo” . Para
Trotsky, ao contrário, “ o proletariado, chegado ao poder, não deve limitar-se ao marco da
dem ocracia burguesa senão que deve empregar a tática da revolução permanente, ou seja,
anular os limites entre o programa mínimo e o máximo da socialdemocracia, passando a
reformas sociais cada vez mais profundas e buscando um apoio direto e imediato na revolução
do Oest e europeu” . 191
Trotsky ficou relativam ent e isolado das tendências principais da socialdemocracia russa e de
seus embat es políticos. Como vimos acima, depois do II Congresso do POSDR, os postos
dirigent es da Iskra retornaram a homens que eram adversários ideológicos de Lênin, novam ent e
posto em minoria. Também vimos que, pela estrat égia proposta por Lênin, o partido deveria
promover uma revolução de operários e camponeses, e esta, ao realizar uma revolução
191
Leon Trot sky. Tres concepciones de la revolución r usa. In: Result ados y Perspect ivas. Buenos Aires, El
Yunque, 1974. A revolução permanent e, em M arx, t inha sido f ormulada como uma polít ica dest inada a
superar a ambiguidade com que, no M anifest o Comunist a, t inha sido post a a quest ão da dinâmica da
revolução em países onde exist iam t arefas democrát icas pendent es, mas onde ao m esmo t em po já exist ia
um prolet ariado const it uído e at uant e (“ A Alemanha se encont ra às vésperas de uma r evolução burguesa
e... realizar á essa revolução nas condições mais avançadas da civilização europeia e com um prolet ariado
infinit ament e mais desenvolvido que o da Inglat erra do século XVII e da França do século XVIII... a
revolução bur guesa alemã só poderá ser, port ant o, o prelúdio imediat o de uma revolução prolet ária” ).
Na Circular à Liga dos Comunist as de 1850, M arx definiu um a polít ica para efet uar essa passagem, dando-
lhe a defini ção genérica de “ r evolução permanent e” . M arx não ret omou post eriorment e a quest ão,
devido às condições de desenvolviment o relat ivament e pacífico que foram as de Europa pós-1848. Em
1905, Trot sky ret omou a quest ão nas condições russas e à luz da r evolução iniciada em janeiro desse ano.
105
burguesa, ainda que preparando o terreno para a revolução socialista, não poderia escapar, pelo
menos por algum tempo, ao seu destino de revolução basicament e democrático-burguesa.
Trotsky, pelo cont rário, entendia que o proletariado não poderia deixar de buscar o apoio dos
camponeses, mas sem ficar só nisso: ao completar a revolução burguesa, o proletariado seria
inevitavelment e induzido a realizar a sua própria revolução sem solução de continuidade. E
Rússia estava mudando nesse sentido (revolucionário); a nova onda de greves operárias
marcava um novo despertar social e político no país.
Trotsky “ concordava com os bolcheviques em que a burguesia russa era incapaz de liderança
revolucionária e que a classe trabalhadora industrial era talhada para o papel. Foi então mais
longe ainda e argumentou que a classe trabalhadora seria obrigada, pela sua supremacia polít ica
na revolução, a levar esse movim ento da fase burguesa para a socialista antes mesmo que a
comoção social tivesse com eçado no Ocident e. Seria esse um dos aspectos da ‘permanência’ da
revolução - seria impossível confinar a comoção aos limites burgueses” .192 Para Trotsky, apenas
o " proletariado podia dar aos camponeses um programa, uma bandeira e uma direção" .
Argumentava que se deveria levar em conta: a dispersão t erritorial dos camponeses, sua
192
Isaac Deut scher. Trot sky. El profet a armado. M éxico, ERA, 1974.
106
dificuldade de autoorganização em organismos independent es dos camponeses ricos, sua
dependência em relação às cidades e também as relações dos camponeses com a propriedade
privada. Destacou que part ido camponês, o dos socialistas revolucionários - SRs era dirigido
pelos camponeses ricos e int electuais pequeno-burgueses. O fato dos camponeses não se
organizarem de modo independent e obrigava-os a seguir as classes que sim o faziam . Assim,
necessariam ent e, o campesinato pobre seguiria a burguesia ou o proletariado. Os kulaks
(camponeses ricos) defendiam sua aliança com a burguesia liberal, enquanto os camponeses
pobres poderiam se aliar ao proletariado urbano.
193
Leon Trot sky. Result ados y Perspect ivas, cit , p. 104.
194
Leon Trot sky. Hist oire de la Révolut ion Russe, cit , p. 88.
107
medida em que o campesinato encontrasse sua direção política no operariado, a democracia
não poderia ser instaurada senão por meio de uma ditadura do proletariado . Este prognóstico
det erminou a singularidade de Trotsky no cenário do marxismo russo: “ Plekhánov, o brilhante
fundador do marxismo russo, considerava louca a ideia da possibilidade de uma ditadura
proletária na Rússia contemporânea. Est e ponto de vista era compartilhado não soment e pelos
mencheviques, mas também pela esmagadora maioria dos dirigent es bolcheviques” . 195
Isaac Deutscher chamou Trotsky de “ profeta da revolução” por afirmar que uma nação atrasada,
como a Rússia, estava obrigada a incorporar as conquistas técnicas das nações avançadas para
poder se mant er como força autônoma, e não ser incorporada sob a forma de colônia de uma
potência vizinha. M esmo que sobre bases distintas, as colônias também passariam por um
processo de incorporação da técnica avançada de seus dominadores. A técnica incorporada, por
sua vez, exigiria a criação de relações de produção que lhe correspondessem, o que significava
a instauração brusca, acelerada, de formas de organização social condizentes. O processo todo
ocorreria por m eio de “ saltos históricos” ,196 eliminando-se as etapas que haviam caract erizado
a evolução econômica e social dos países pioneiros no processo capitalista: a nova est rutura
socioeconômica apresentada pela nação atrasada não reproduziria simplesment e uma et apa
histórica precedent e do país avançado. A técnica e as relações de produção capitalistas
incorporadas sobre uma base arcaica semifeudal, no caso da Rússia, criavam um quadro novo
que não podia ser comparado ao de uma nação capit alista “ antiga” . Trotsky ressaltou o carát er
particular e diferenciado do desenvolvimento das nações, mesmo que governadas pelo processo
comum e universal do capitalismo, e ext raiu desses pressupostos as tarefas imediatas e
estrat égicas da revolução na Rússia. Os teóricos democrát ico-burgueses (Pável M iliukov, o
principal dentre eles), os mencheviques (M artov, Plekhánov, em especial), os bolcheviques
(Lênin, Bukhárin) representavam variantes diferenciadas. Os debat es sobre a estrat égia
revolucionária na socialdemocracia russa não t iveram paralelo nem equivalent e, em qualidade,
virulência e profundidade, no restante do socialismo internacional, nos primeiros anos do século
XX.
A teoria da revolução permanent e poderia ser considerada como “ a expressão de uma nova
compreensão da teoria das etapas, entendida como o processo hist órico geral da
humanidade” . 197 A etapa democrática burguesa já se realizara a nível mundial, fazendo
necessário que se abrisse, a partir da Rússia, uma nova via revolucionária. O atraso era uma
noção que exigia parâmetros: se Rússia estava atrasada em relação à Europa ocident al, a Europa
como um t odo, Rússia incluída, estava historicam ent e avançada em relação às demais regiões
do globo, o que significava que a revolução, de fato, partiria do setor capitalist a mundial mais
avançado, embora na sua porção mais “ atrasada” . O desenvolvim ento combinado e a
195
Leon Trot sky. A Revolução Permanent e, cit .
196
M ichael Löw y (Revolução permanent e e revolução bur guesa em M ar x e Engels. Discurso nº 9, São
Paulo, FFLCH-USP, novem bro 1978) caract erizou no pensament o de M arx e Engels t ant o “ elem ent os,
ideias e hi pót eses que preparavam o t erreno para a t eoria da revolução permanent e (t al como Trot sky a
formulou)” quant o “ uma perspect iva ‘ et apist a’, onde se pressupõe uma ordem rígida de sucessão de
et apas hist óricas” . A fundam ent ação apr esent ada por M ar x e Engels “ sit uava-se no plano exclusivo das
forças pr odut ivas e fazia do esgot ament o das possibilidades de desenvolviment o do capit alismo um a
condição indispensável para colocar na ordem do dia sua abolição” (“ Nenhuma formação social
desaparece ant es que se desenvolvam t odas as forças produt ivas que ela cont ém ” ). Trot sky int erpret ava
essa afirmação como relacionada aos grandes sist emas produt ivos em escala hist ór ico-m undial
(feudalismo, capit alismo) e não a nações isoladas: “ A t eoria do desenvolviment o desigual e com binado é
int eressant e não apenas por sua cont ribuição à reflexão sobre o imperialismo, mas também como um a
das t ent at ivas mais signif icat ivas de romper com o evolucionismo, a ideologia do progresso linear e o
eurocent rismo” (M ichael Löwy. A t eoria do desenvolviment o desigual e com binado. Out ubro nº 1, São
Paulo, 1998).
197
Denise Avenas. Teoria e Polít ica no Pensament o de Trot sky. Lisboa, Delfos, 1973.
108
possibilidade do salto histórico est avam det erminados tanto pela persistência do atraso quanto
pela introdução de elementos de avanço histórico. Chegando a essas conclusões através da
polêmica t eórica e da luta política, a vanguarda socialista russa se elevou acima das
peculiaridades de seu m eio nacional para formular propostas teóricas e estrat égias políticas de
alcance universal, pois o peculiar e o singular nada mais eram do que expressão particular das
tendências universais que deviam ser compreendidas a fundo para dar conta da “ singularidade”
russa.198 Parafraseando Leon Tolstói (“ Se queres ser universal, começa por pintar tua aldeia” ),199
os marxistas russos “ pintando sua aldeia, se tornaram universais” : a t int a por eles usada, porém,
provinha do desenvolvim ent o universal da crítica da ciência econômica, social e política
precedent e.
A questão agrária era uma das pernas da revolução russa; a questão nacional era a outra. No
meio do embat e da socialdemocracia internacional acerca da matéria, Stalin, membro da fração
bolchevique, foi encarregado por Lênin de elaborar “ um t exto que exporia, de modo sistemát ico,
a posição de seu partido, fiel à resolução de 1903 do POSDR. Cont rariament e a uma lenda tenaz
– para a qual o próprio Trótski contribuiu, ao redigir a biografia de Stalin –, a brochura do
georgiano em questão não foi escrita sob a inspiração direta de Lênin. Este parece ter ficado um
pouco decepcionado com o resultado, pois, nos seus numerosos textos sobre a questão
nacional, só a cita uma única vez, en passant , e entre parênt eses, num artigo de 28 de dezembro
de 1913. Sem dúvida, a brochura de Stalin defendia a t ese central dos bolcheviques: o direito à
separação das nações do Império Russo. M as, sobre um núm ero de questões important es,
estava em contradição direta com as ideias de Lênin, tais como serão desenvolvidas ao longo
dos anos seguint es: 1) Stalin só reconhecia como nações os povos com uma comunidade de
língua, de território, de vida econômica e de ‘formação psíquica’. É inútil procurar tal visão a-
histórica, dogmática, rígida e petrificada da nação em Lênin – que, aliás, rejeit ava explicitam ent e
o conceito de ‘carát er nacional’ ou ‘particularidade psicológica’ das nações, emprestado de Ott o
Bauer por Stalin; 2) Stalin não fazia distinção entre nacionalismo de opressores e de oprimidos,
isto é, entre o nacionalismo grão-russo do Estado tsarista e o dos povos oprimidos – poloneses,
judeus, tártaros, georgianos, etc. Os dois caminham lado a lado, como manifestações de um
‘chauvinismo grosseiro’ ...
198
“ O part ido revolucionário da Rússia, que colocar ia o seu selo sobre t oda uma época, procurou uma
fórmula para os problemas da revolução não na Bíblia, como os ingleses do século XVII que
em preenderam uma revolução burguesa sob a roupagem de uma refor ma religiosa, nem no crist ianismo
secular izado de uma democracia ‘ pura’ (como a Revolução Francesa), mas nas relações mat eriais
exist ent es ent re as classes” (Leon Trot sky. Hist oire da Révolut ion Russe, cit ).
199
Liev Nikoláievich Tolst ói (1828-1910) foi o principal escrit or russo do século XIX. Depois de t er sondado
na sua obra os episódios cent rais da moderna hist ória russa e da psicologia de suas diversas classes sociais,
t ornou-se, na sua velhice, pacifist a ne “ ecologist a” , pregando uma vida simples em proximidade à
nat ureza. Junt o a Dost oiévski, Turgueniev, Gorki e Tchecov, Tolst ói foi um dos grandes m est r es da
lit erat ura russa. Suas obras mais famosas foram Guerra e Paz, sobre as cam panhas de Napoleão na Rússia,
e Anna Karenina, onde denunciou o ambient e hipócrit a da época e realizou um dos r et rat os femininos
mais profundos e sugest ivos da lit erat ura. M orreu aos 82 anos, de pneumonia, durant e uma fuga de sua
casa.
109
eliminar o ódio e a desconfiança dos oprimidos e unir os proletários das duas nações num
combate comum contra a burguesia. A insistência de Lênin no direit o à separação não significa
de modo algum que ele fosse favorável ao separatismo e à divisão infinita dos Estados conform e
as linhas de fratura nacional. Ao contrário, esperava que, graças à livre disposição que os povos
têm de seu destino, os Estados multinacionais se mant ivessem” . 200 Stalin escrevera que uma
nação era “ uma comunidade que compartilhe língua, território, vida econômica e formação
psíquica” : 201 considerando-se a língua e a psique (um conceito de ressonâncias
idealist as/ aust romarxistas) como essenciais para caracterizar uma nação, não haveria nenhuma
nação no mundo contemporâneo, a começar pelos EUA. As duas questões, a agrária e a nacional,
permaneciam, portanto, em aberto quant o aos meios e modos de sua resolução. A perspectiva
e at é iminência da revolução (qual?) era, porém, uma unanimidade.
200
M ichael Löwy. Uma livre federação socialist a? A Revolução de Out ubro e a quest ão nacional. 1917. O
ano que abalou o mundo. São Paulo, Sesc-Boit em po, 2017.
201
Joseph St alin. A Quest ão Nacional . São Paulo, Ciências Hum anas, 1979.
110
A EXPANSÃO DA INTERNACIONAL SOCIALISTA
O quadro em baixo revela a composição das delegações aos congressos da Internacional
Socialista (entre 1889 e 1912), o que dá uma ideia aproximada de sua extensão e influência
(alguns países não enviavam ou enviavam poucos delegados devido às distâncias, à repressão
estatal ou à falta de meios econômicos):
NÚM ERO DE DELEGADOS POR PAÍS QUE PARTICIPARAM EM CONGRESSOS DA SEGUNDA INTERNACIONAL
111
O crescim ento da participação russa na Internacional era perceptível. A Internacional Socialista
era basicament e europeia, com as exceções do Japão, de quatro países americanos (EUA,
Canadá, Brasil e Argentina), e da excepcional participação de represent ant es de um enclave
europeu na África (África do Sul). 202 Por outro lado, nos países americanos present es nos
congressos, e t ambém em outros (M éxico), no início da implantação do socialismo sua
representação na Internacional se compunha basicament e de trabalhadores europeus
imigrantes ou de ativistas fugidos da repressão antioperária na Europa. Isso, que chegou a ser
apresentado como a prova do caráter purament e europeu do socialismo, refletia na verdade a
composição da classe operária nesses países nas primeiras fases de sua indust rialização. Na fase
seguint e, os partidos socialistas deitaram lentam ent e raízes no operariado e na int electualidade
locais. No Brasil, por exemplo, num ambient e urbano em constant e transformação, surgiram
ambient es comuns de t rabalho entre trabalhadores escravos e livres, afroamericanos nativos e
operários europeus, prot estos coletivos, formas associativas compartilhadas, um processo
gradual de formação da classe trabalhadora a partir das lutas e organizações que surgiram em
meados do século XIX e perduraram at é as primeiras décadas do século XX. Em 1910, a “ Revolta
da Chibata” , movimento encabeçado por um marinheiro negro (João Cândido) que cont est ou a
aplicação de castigos e punições aos marinheiros como instrument o de controle e coerção,
evidenciou uma sit uação nas relações e trabalho que passou a pautar a agenda das entidades
de represent ação de todos trabalhadores, sindicat os e partidos.
O socialismo, porém, não era para a Igreja Católica uma solução para a miséria social, pois
at acava à propriedade, “ um direito natural” , e à família, “ substituindo a providência paterna
pela providência do Estado” . No esteio da mudança política da Igreja se constituíram correntes
“ católicas sociais” em diversos países e os primeiros partidos políticos com essa orientação,
como o “ partido católico” de M ontalembert na França.203 Fora do âmbito do catolicismo, na
Inglaterra principalment e , surgiam instituições destinadas exclusivam ent e ao combate contra
o movim ent o operário, como o Free Labour Exchanges de William Collison, fundado em 1893,
que propunha “ fornecer homens dispostos a trabalhar no lugar dos grevistas” . Em 1884, uma
enquet e oficial inglesa demonstrou que uma família operária (composta, na média, por 4,61
pessoas) da Inglaterra ou de Gales, precisava de 74 libras esterlinas anuais para comprar os
gêneros de primeira necessidade: as maiores companhias ferroviárias, que empregavam 367 mil
202
Eugène Varga. Les Part is Socialdémocrat es. Paris, Bureau d’ Édit ions, sdp.
203
Jean-M arie M ayeur. Des Part is Cat holiques à la Démocrat ie Chrét ienne. Paris, Armand Colin, 1980.
112
pessoas, pagavam 59 libras est erlinas anuais aos maquinistas, 55 aos t rabalhadores das vias, 52
aos sinalizadores, 48 aos trabalhadores braçais e 39 aos carregadores... 204
Em que pesem as dificuldades, com o avanço mundial do capit alismo, a autoridade conquistada
pelos seus congressos e a ressonância de suas deliberações, a Internacional Socialista afirmou-
se como uma organização mundial reconhecida. O perfil de suas divergências internas ficou mais
claramente definido em 1899, quando o socialista francês Alexandre M illerand ingressou no
gabinet e do governo liberal encabeçado por Pierre Waldeck-Rousseau, dividindo o partido
socialista francês entre reformistas (os defensores desse ingresso) encabeçados por Jean Jaurès,
chamados de “ ministerialistas” , e a “ linha dura” encabeçada por Jules Guesde. O debate francês
dividiu o socialismo internacional, com alinhamentos nem sempre mecânicos ou óbvios (Rosa
Luxemburgo, da esquerda do SPD alemão, por exemplo, alinhou-se com os defensores de
M illerand, pois o convite para int egrar o governo feit o pelo governo radical à SFIO – Section
Française de l’Internationale Ouvrière, o nome do partido socialista francês – era um desafio
político que não podia ser simplesment e ignorado). Na Inglat erra, surgiu o trabalhismo ( Labour
Part y) baseado nos sindicatos, mudando completam ente o cenário político do país, encorajado
pela terceira lei de reforma do Parlam ent o (ant ecedida por uma manifestação de 45 mil pessoas
no Hyde Park) que ampliou o colégio eleitoral com dois milhões de novos eleitores. M etade das
reivindicações contidas no pioneiro movim ent o operário da “ Carta” (o “ cartismo” ) de 1837 já
havia sido realizada (mas não a proposta de “ parlamentos anuais” ).
No Congresso Int ernacional de Paris (1900), foi decidida a criação da Organização Socialista
Internacional, órgão permanent e composto por dois delegados por país, com sede em Bruxelas,
dispondo de um secretariado, enquanto a delegação belga - Vandervelde,205 Servy - funcionava
como Comit ê Executivo da Internacional. A nomeação de Camille Huysmans para o cargo de
secretário, em 1905, garantiu a continuidade das atividades nos intervalos dos congressos; nas
suas reuniões anuais participaram os principais dirigent es do socialismo na época: Jaurès,
Vaillant, Guesde, pela França; Kautsky, Singer, Haase (Alemanha); Plekhánov, 206 Lênin, pelos
socialdemocratas russos, Rubanovitch, pelos socialistas revolucionários (SRs), continuadores do
populismo, da Rússia; Rosa Luxemburgo (Polônia); Branting (Suécia); Rakovsky (Romênia); Keir-
Hardie, Hyndman (Inglaterra); Sen Katayama (Japão); Victor Adler (Áustria); Knudsen, Stauning
(Dinamarca); Turati, M orgari (Itália); Hillquit (EUA). A composição da Internacional era
socialment e het erogênea, chegando a atrair “ homens de consciência dolorida, pertencent es às
classes altas, como o americano Robert Hunter, casado com uma filha do banqueiro e filantropo
Anson Phelps Stokes. Como outros membros de sua classe, Hunter ficara estarrecido com os
204
Apud Yvonne Kapp. Eleanor M arx. Turim, Einaudi, 1980, vol. II, p. 37.
205
Emile Vander velde (1866-1938) foi um dos dirigent es do Part ido Operário Belga e president e do
Bureau Socialist a Int ernacional (BSI) da II Int ernacional; foi mem bro do parlament o em seu país desde
1894. “ Social-chauvinist a” durant e a Primeira Guerr a M undial, fez part e do governo belga em 1918-1921,
como minist r o da Just iça, ent re 1925 e 1927, como minist ro das Relações Ext er nas, e em 1935-1937, como
vice primeiro-minist ro e minist ro de Saúde. Renunciou quando o gabinet e, encabeçado por Paul van
Zeeland, reconheceu o governo de Franco durant e a guerra civil espanhola. Teve sucesso lit erário
int er nacional com um livro sobr e “ o mat rimônio perfeit o” ...
206
Georgui Valent inovit ch Plekhánov (1856-1918) per t enceu à primeira geração de marxist as r ussos.
Aliado dos mencheviques, a part ir do II Congresso do POSDR. Foi o principal propagandist a do
mat erialismo hist órico de sua geração, e seus t ext os t iveram grande inf luência junt o aos socialist as do
século XX. Sua obra O Papel do Indivíduo na Hist ória foi publicada em 1898: para Lênin, " a melhor
exposição da filosof ia do marxismo e do mat erialism o hist órico é a feit a por Plekhánov" : " Penso que não
é demais observar aos jovens m em br os do part ido que não é possível t ornar-se um verdadeir o comunist a,
dot ado de consciência de classe, sem est udar - friso est udar - t udo o que Plekhánov escreveu sobr e
filosofia, pois é o que há de melhor na lit er at ura int ernacional do marxismo". M ant endo independência
em relaçãoàs diversas fr ações do POSDR, condenou a Revolução de Out ubro de 1917, vindo a f alecer
pouco depois.
113
artigos sobre a corrupção e se dispôs a procurar um rem édio para a injustiça social” . 207 M as
est es casos eram exceções.
Na Alemanha, onde o partido havia combinado na liderança seus chefes políticos e seus teóricos,
seus principais dirigent es pert enciam às profissões liberais e às universidades, com a exceção
important e de August Bebel (1840-1913), que era operário e de uma geração ant erior, e outra
exceção surpreendent e, o empregado bancário filho de um maquinista ferroviário judeu, Eduard
Bernst ein. O tcheco-germânico Karl Kautsky estudara história, filosofia e economia. Entre os
mais jovens, que nasceram depois de 1870, para os quais a Comuna de Paris já era história, Rosa
Luxemburgo (1871-1919) iniciara seus est udos em mat emática e ciências naturais antes de
obter seu doutorado em economia polít ica na Suíça. Na Áustria, onde a socialdemocracia teve
os maiores intelectuais socialistas do período, seus líderes est avam (ou tendiam a estar) bem
estabelecidos no partido ou em sólidas carreiras. Rudolf Hilferding (1877-1941) era m édico em
Viena, antes de se t ornar economista. Karl Renner (1870-1950), M ax Adler (1873-1937) e Otto
Bauer (1881-1938) eram advogados. Anton Pannekoek (1873-1960), dirigente socialista
holandês, era um astrônomo que se tornou professor da Universidade de Amst erdã.
Outros dirigent es socialist as eram relativament e “ marginais” , como o poet a holandês Herman
Gorter (1864-1927) e o agitador e escrit or judeu-alemão Erich M uhsam (1878-1934). Gustav
Landauer (1870-1919) era um romancista judeu que havia enveredado pelos est udos da
linguagem e da mística judaica, embora fosse at eu. Alguns, como o médico polonês Jan Waclav
M akhaiski (1866-1926) eram críticos acerbos da interferência dos intelectuais no movim ent o
operário, numa estrutura partidária e sindical onde eles costumavam se tornar burocratas. Na
Rússia, onde a intelligentsia era mais radicalizada, vários dirigent es eram militantes
(precariam ent e) profissionais; vários dirigent es socialistas russos exilados do regime czarista na
Europa ocidental sobreviviam de pequenos expedient es: Pável Axelrod, um dos veteranos da
fundação do POSDR, fabricava leite para consumo e seus derivados. Outros, como Leon Trotsky,
trabalhavam como jornalist as no exílio, na função de correspondent es de jornais russos e de
outros países. Alguns, entre os “ militant es profissionais” , provinham de famílias abastadas e
viviam graças às rendas ou ao patrimônio familiar (o que era, em parte, o caso de Lênin e de
Zinoviev). Uma fonte não desprezível de proventos partidários era o legado de heranças, não
raro vultosas, recebidas por militantes do partido: uma herança doada por um jovem militante
russo, que a deixara em testamento para o POSDR, foi objeto de rude disputa entre as diferentes
frações partidárias, obrigando à intervenção dos órgãos dirigent es da Internacional Socialista (já
que est ava excluída a intervenção na matéria dos tribunais da autocracia russa; a dos tribunais
dos países “ democráticos” da Europa ocidental, no entanto, chegou a ser cogitada). M as a base
fundam ental da atividade era outra: em carta a M aurice Paz, em 1939, Trot sky escreveu: “ Sobre
a trajet ória do partido russo na época do trabalho ilegal: a pessoa que estava no movimento
colocava à disposição deste seus m eios materiais, pertencia a ele de corpo e alma, ident ificava-
se abertament e com a causa a que servia. Foi esse processo educativo que nos permitiu formar
os combat ent es que depois foram os ‘eixos’ da revolução proletária” .208
A concorrência mais importante dos socialist as no movimento operário era a representada pelos
anarquistas, que criticavam todas as maneiras pacíficas ou eleitorais de se fazer “ política” (ou
antipolítica, numa definição anarquista ortodoxa). O anarquismo europeu ficou circunscrito a
algumas regiões da Itália, França e Portugal, na Ucrânia e, em menor escala, em outras áreas da
Rússia czarista. O caso sueco também foi expressivo, na mesma proporção em que foi efêm ero:
os anarquistas dirigiram grande part e dos 290 mil trabalhadores na greve geral de 1909, mas
depois que eles romperam com a central sindical, formando uma central anarquist a, sua
influência declinou (em 1924, sua central tinha só 37 mil membros). Caso diferente aconteceu
207
Barbara W. Tuchman. La Torre del Orgullo 1890-1914 . Barcelona, Península, 2007, p. 416.
208
La Verit é nº 4, Paris, abril de 1939.
114
na Espanha, onde o socialismo “ libertário” teve vida longa. A Internacional Socialista, do seu
lado, entrava, no alvorecer do novo século, no segundo período da sua história: reunia grandes
partidos nacionais, politicament e influentes, numericament e poderosos, progresso que foi a
origem de um otimismo generalizado: na prática, det erminou mudanças profundas na
implantação, estrutura institucional e orientação política. Além disso, o socialismo saia do Velho
Cont inent e; acentuou-se sua penet ração nas Américas, na Austrália e mesm o na Ásia.
No país economicam ent e mais dinâmico, os EUA, houve uma espetacular expansão do
capitalismo: entre 1870 e 1929, o produto industrial dos EUA quadruplicou: massas enormes de
capitais e tecnologia avançada explicam parte desse sucesso; também o explica a excepcional
disposição de força de trabalho, primeiro de origem rural (devido às crescent es dificuldades da
pequena produção agrícola que provocou a migração para as cidades); depois graças à imigração
ext erna. A chegada de imigrant es estrangeiros foi de 700 mil (1820-1840); 4,2 milhões (1840-
1860); 2,81 milhões (1870-1880, na década depois da “ guerra de secessão” ); 5,43 milhões (1880-
1890) e 3,69 milhões (1890-1900). O movim ento migratório atingiu seu ápice com a chegada do
século XX: 8,8 milhões (1900-1910); 5,74 milhões (1910-1920). A crise econômica mundial,
porém, também chegou aos EUA: em maio de 1893, um grande truste financeiro dedicado à
com ercialização de títulos e ações, a National Cordage Company, faliu, provocando uma reação
em cadeia: 600 bancos e mais de onze mil empresas foram à falência. 209 Era a maior crise
econômica que os EUA tinham conhecido. A greve da metalúrgica Homestead em 1892, levada
à derrota pelo poderoso lobby do aço que buscava destruir os sindicatos, tinha criado
consciência ent re os trabalhadores acerca do poder dos trustes e da necessidade de const ruir
organizações sindicais fortes.
209
M arianne Debouzy. Le “ Capit alisme Sauvage” aux Ét at s-Unis. Paris, Seuil, 1976, p. 110.
210
Eugene V. Debs (1855-1926) nasceu em Terre Haut e, Índiana. Foi fundador e por cinco vezes candidat o
(1900, 1904, 1908, 1912 e 1920) a president e dos EUA pelo Socialist Part y of America (SPA). Em um
discurso de cam panha, disse: " As long as t here is a low er class, I am in it . As long as t here is a criminal
element , I am of it . As long as t here is a soul in prison, I am not free" . Em out r o: “ É melhor vot ar pelo que
quer e não conseguir do que vot ar pelo que não quer e conseguir. A t erra é para t odo o mundo. Essa é a
exigência. A propriedade e o cont role colet ivo da indúst ria e sua gest ão democr át ica para o int eresse de
t odo o povo. Essa é a exigência. O fim da lut a de classes e da dominação de classe, do amo e do escravo,
da pobr eza e da vergonha - o nasciment o da liber dade, o amanhecer da frat ernidade, essa é a exigência” .
Num discurso durant e Primeira Guerra M undial: " A classe dos amos sem pr e começou as guerras. A classe
t rabalhadora sempr e lut ou nas guerras" . Foi t ambém fundador dos IWW (Indust rial Workers of t he
World ). Em junho de 1918 foi det ido por pr onunciar discursos que “ obst aculizavam o recrut ament o” para
a guerr a, segundo a lei federal de 1917, chamada de Espionage Act . Foi condenado a dez anos de prisão,
o que não lhe impediu se candidat ar novament e à pr esidência do país, ainda que pr eso no cárcere de
At lant a, obt endo 913.664 vot os (3,4% do t ot al). Em que pesem suas precárias condições de saúde, o
presi dent e Woodrow Wilson recusou seu indult o (graça), que só veio a ser acordado pelo president e
Warr en G. Harding em 1921, cinco anos ant es da mort e de Debs.
115
As repercussões da depressão econômica mundial de finais do século XIX levaram a um
reordenament o rápido dos negócios dos EUA, levando à ruína inúmeras empresas e
possibilitando o surgimento de outras, algumas das quais se transformaram, com velocidade
alucinante, em autênticos monopólios. As turbulências sociais e econômicas mexeram com o
sistema polít ico, ameaçando o bipart idarismo tradicional com o surgiment o do Partido do Povo
(os “ populistas” ). O Partido Republicano era o partido da burguesia industrial vencedora da
Guerra Civil, apoiado pelos negros sulistas que haviam sido libertos. O Partido Democrata, por
sua vez, representava ao homem com um do Norte, aos brancos do Sul, e recebia o voto em geral
dos trabalhadores urbanos em reação aos seus patronos republicanos. O novo Partido do Povo
também representava interesses burgueses, mas fazendo concessões às necessidades e
ideologia do estrato plebeu da população branca, que integrava em grande número a massa dos
pequenos produtores rurais. 211 A batalha dos agricultores e dos pequenos empresários
concluiu, no entanto, numa derrota, levando à falência política o populismo norte-am ericano.
A “ estrangeirização” da classe operária nort e-americana afundava suas raízes nas peculiaridades
do capitalismo no país: “A mão de obra norte-americana formou uma das classes trabalhadoras
mais het erogêneas que existem: nos aspectos étnico, linguístico, religioso e cultural. Com uma
classe trabalhadora de semelhant e composição, fazer do socialismo e do comunismo o ‘ismo’
oficial do movimento significaria - ainda que as demais condições o permitissem - expulsar
deliberadam ente do movim ento operário os católicos, que talvez fossem a maioria na Federação
Americana do Trabalho (AFL, American Federation of Labor ), já que sua composição
irreconciliável com o socialismo é uma questão religiosa de princípio. Consequent ement e, a
única ‘consciência’ aceitável para os trabalhadores norte-am ericanos em seu conjunt o era um a
‘consciência do emprego’ com um objetivo limitado de ‘controle de salários e empregos’” . 213 O
sociólogo alemão Werner Sombart se exprimiu em t ermos bastant e semelhant es a respeito. 214
Por outro lado, na contracorrent e da interpretação cultural-sociológica do fenôm eno, deve-se
notar que foram muitos os meios empregados pelo Estado contra o sindicalismo e o socialismo.
A cumplicidade bastante aberta dos tribunais de justiça com o capital brindava a possibilidade
211
A caract erização das f orças polít icas é de Friedrich Sorge, correspondent e da Int ernacional Socialist a e
amigo pessoal de Fr iedr ich Engels. Apud Daniel Gaido. The populist int erpret at ion of American hist ory: a
mat erialist revision. Science and Societ y, Vol. 65, out ono de 2001.
212
Luiz Bernar do Pericás. Sobr e o moviment o operário nos EUA (1870-1914). Ent re Passado & Fut uro nº
3, São Paulo, Universidade de São Paulo, 2002; Daniel Guérin. Est ados Unidos 1880-1950. M ovimient o
obrero y campesino. Buenos Aires, CEAL, 1972.
213
Selig Perlman. A Theory of t he Labor M ouvement . Nova York, s/ p, 1928.
214
Werner Som bar t . Why is There no Socialism in t he Unit ed Stat es? Londr es, M acmillan, 1976.
116
de uma int erpretação distorcida das leis. Aplicavam-se leis contra os operários com o a “ Lei
Sherman” , originalment e sancionada para evitar as práticas monopolistas. O método não era
novo, mas a frequência com que foi usado fez com que praticamente não houvesse greves que
fossem legais, e nas quais os dirigentes que as liderassem não corressem perigo de ser presos.
A falta de legislação trabalhista também permitia a política de open shop (oficina aberta), pela
qual cada fábrica tinha o direito de contratar operários não pertencent es a sindicat os, e a prática
dos cont ratos de não filiação (yellow dogs contract s), que impediam legalm ent e a seus
assinant es a filiação aos sindicatos. As uniões de ofícios também atuavam de modo
discriminatório, e a AFL aprovava tal atit ude. Desde 1890 havia-se negado a condenar as práticas
racistas de seus grêmios e, além disso, tratava de organizar os negros separadam ent e, em fracos
sindicatos por cidade, dependent es da mesma federação e sem conexão com os grêmios locais.
Foi a atitude racista da AFL a que empurrou os negros a se afastar majoritariament e do
movimento operário organizado. As uniões de ofícios atuavam de modo discriminatório; a AFL
aprovava tal atit ude. Desde 1890 havia-se negado a condenar as práticas racistas de seus
sindicatos e, além disso, tratava de organizar os negros separadam ent e, em sindicatos por
cidade, dependentes da federação de seu ofício e sem conexão com os sindicatos locais,
dominados por uma burocracia sindical branca. Os negros não se sentiam representados pelos
sindicatos, dos quais permaneceram marginalizados por longos anos, pelo menos at é a década
de 1930, quando foi fundado o Congress of Industrial Organizations (CIO).215
A tendência corporativa (e xenófoba) no movimento operário nort e-am ericano coexistiu com e
combateu a tendência dos IWW ( Industrial Workers of the World ) que organizava t odos os
trabalhadores que a AFL rejeitava: negros e imigrant es judeus, italianos, poloneses, húngaros,
escandinavos (um trabalhador braçal sueco, loiro até a raiz dos cabelos, era considerado, pela
AFL, como “ não branco” ...). A IWW defendia-os abert ament e: “ Deixem-nos entrar na América,
nós vamos organizá-los” . Os trabalhadores est rangeiros (e a IWW) foram a vanguarda das
primeiras greves de massa do século XX: Law rence (1912) e Patt erson (1913). Bryan, Debs e
Hayw ood, líderes do IWW, no entanto, eram norte-americanos, de família norte-americana. O
SPA (Socialist Part y of América ) obteve 6% dos votos nas eleições presidenciais dos EUA, em
1912. O IWW, com forte composição anarco-sindicalista e maior influência que o SPA na classe
operária, organizava principalmente as lutas do operariado de imigração recent e. Esse processo
de organização operária foi cortado abruptamente pela Primeira Guerra M undial e a repressão
contra o movim ento operário.
215
Daniel Guérin. La Descolonización del Negro Americano. M adri, Tecnos, 1968.
117
Na Argentina, era ativo o Partido Socialista, fundado em 1896 por Juan B. Justo (primeiro
tradutor para o espanhol de O Capital ), com José Ingenieros e out ros important es nom es
políticos e intelect uais locais, associados a operários estrangeiros (foi especialm ent e influent e a
imigração socialista alemã, agrupada em t orno do periódico Vörw arts). 216 As lutas sindicais
operárias, características da recent e urbanização capitalista, teriam sido vítimas de uma
miragem, posto que “ os proletários e intelectuais europeus que formaram o primeiro
contingent e do socialismo argentino (com predomínio de alemães e franceses sobre italianos e
espanhóis, que eram bem mais anarquist as) acreditaram que Buenos Aires, com os seus
at ributos de cidade europeia, era o país inteiro, e que a estrat égia de luta revolucionária
repetiria o aprendido na realidade europeia” .217 A questão era, porém, mais complexa. As lutas
sindicais na Argentina cresceram espet acularm ent e durante a prim eira década do século XX, at é
chegarem às grandes demonstrações operárias de 1910 (por ocasião das festas oficiais do
centenário da independência argentina), década que t ambém t est em unhou o desenvolvim ent o
das primeiras lutas populares urbanas, como a greve dos aluguéis, de 1907.
Em 1904 o Part ido Socialista argentino conseguiu eleger, como representant e de Buenos Aires
pelo bairro da Boca, o “ primeiro deputado socialista das Américas” , o advogado t rabalhista
Alfredo L. Palacios.218 O Partido Socialista Argentino constituiu uma important e força eleitoral,
com uma bancada parlamentar atuant e (onde se destacou, além de Palacios, impulsionador de
important es leis t rabalhistas, o médico Juan B. Justo, cujos funerais, em 1928, levaram uma
multidão às ruas de Buenos Aires), no entanto restrit a a Buenos Aires e a algumas cidades do
lit oral argentino. As vitórias eleitorais do socialismo argentino eram limitadas e com uma base
social em grande parte oriunda das classes médias. O operariado, majoritariament e estrangeiro,
era ainda numericam ente fraco, com maioria anarquista nos seus setores milit antes. Os
dirigent es do socialismo argentino tentaram contornar o problema de sua fraca base social
promovendo o “ capit alismo sadio” (incluindo o capit al estrangeiro) contra o “ capitalismo
espúrio” , ou seja, o capitalismo realment e existent e. Entendiam assim promover o bem-estar e
progresso da classe operária e seu desenvolvimento, que daria chances ao socialismo argentino
de contar com uma força social semelhant e à de seus pares da Europa. O teórico e dirigente do
216
Levando-se em cont a sua sit uação “ periférica” , foi precocement e que surgiu o socialismo argent ino.
Em 1882 nasceu o clube Vorw ärt s, onde se encont ravam exilados socialdemocr at as alemães que
escaparam à r epressão bismarckiana. Seus milit ant es t omaram a iniciat iva de convocar o at o do Primeiro
de M aio de 1890, r espondendo ao chamado do Congresso Operário Int er nacional r ealizado em Paris, em
1889. Os socialist as, principais prot agonist as da maioria dos int ent os para criar organismos feder at ivos
do moviment o operário durant e a década de 1890, pret endiam dot ar o moviment o de definições polít icas
programát icas, organizações sindicais e direit os polít icos, inclusive para os operários est rangeiros
(promoveram a ent rega de abaixo-assinados). Os anarquist as rechaçaram est as post uras e boicot aram
sist emat icam ent e as iniciat ivas políticas eleit orais dos socialist as.
217
Jorge Enea Spilimber go. El Socialismo en Argent ina. Buenos Aires, Oct ubr e, 1974, p. 27.
218
Alfredo Palacios (1880-1965) foi o mais popular líder socialist a argent ino. Est udou direit o na
Universidade de Buenos Air es, exer cendo a advocacia e chegando a t ornar-se “ decano” (diret or) da
Faculdade de Direit o da UBA. Em 1902 foi eleit o para a Legislat ura de Buenos Aires, e em 1904, para a
Câmara de Deput ados, pelo dist rit o operário de La Boca, sendo o prim eiro deput ado socialist a da
Argent ina e das Américas. Sua at uação legislat iva foi int ensa, incluindo a " Ley Palacios" cont ra a
exploração sexual, e out ras cont ra a exploração de crianças e mulheres, pela r edução da jornada de
t rabalho e o descanso dominical. Foi expulso t em porariament e do Par t ido Socialist a pelo seu hábit o de
duelar cont ra seus adversários, prát ica condenada pelo partido. Foi eleit o senador por Buenos Aires em
1932, cargo que exerceu at é 1943, quando houve um golpe milit ar. Com a ascensão do peronismo, exilou-
se em M ont evidéu. Apoiou a “ Revolução Libert adora” (1955), golpe milit ar cont ra o governo de Perón,
sendo premiado pelo governo com a embaixada argent ina no Uruguai. Em 1963, Palacios f oi novament e
eleit o senador, com base numa cam panha em defesa da Revolução Cubana, cargo que exer ceu at é a sua
mor t e.
118
socialismo argentino, Juan B. Justo,219 qualificou como “ idiotices” as teorias de Lênin acerca do
imperialismo.
Problemas semelhant es enfrentava o socialismo no Brasil. Um dos seus primeiros dir igent es, o
italiano Antonio Piccarollo, chegou a escrever: " Sendo o movim ent o atual da economia agrícola
dirigido para a pequena propriedade, os socialist as favorecerão e propugnarão t udo o que sirva
para aumentar o número destes trabalhadores independent es (...) Olhando com simpatia o
desenvolvim ento industrial que carrega nas suas entranhas o proletariado socialista, esforçar-
se-ão para dar aos operários uma consciência clara e exata o que eles serão amanhã... Tudo isso
não é rigorosam ente socialismo, mas é tudo o que de bom e prático podem fazer aqui os
socialistas, se não querem perder seu tempo em discussões teóricas, prematuras e de nenhum
valor" . O Partido Operário dirigiu-se em 1890 à Internacional Socialista, mostrando a intenção
de vincular o proletariado brasileiro ao processo que percorria então o movim ent o operário
europeu. Na medida em que os diversos " part idos socialistas" estaduais criados no país na virada
do século se propunham uma progressão no plano eleitoral como via para a sua implantação,
não podiam superar por si sós a fragmentação geográfica da vida política brasileira. As tentativas
de se criar um Partido Socialista aumentaram nos primeiros anos da República.
No Chile, o socialismo deu seus primeiros passos sob o nome de “ Partido Democrata” , sob a
impulsão de Luis Emilio Recabarren (um dos fundadores do Partido Comunista Chileno). 220 No
Uruguai, t ambém obt eve sucessos eleit orais o Partido Socialista, transformando seu dirigent e,
Emilio Frugoni, em dest acado parlament ar e dirigent e polít ico. A tese do exotismo da ideologia
socialista “ europeia” na fase inicial de formação da classe operária latino-americana insistiu no
caráter " europeu" ou “ europeísta” do velho socialismo: " O problema não é tanto a origem
europeia dos precursores (alemães, italianos, espanhóis), mas sim o espelhismo, a assimilação
mim ét ica da experiência europeia pelos primeiros dirigent es socialistas autóctones, que não
perceberam as particularidades próprias das formações sociais do continent e, enquant o países
dependent es, explorados e dominados pelo imperialismo (...) Foi bem compreensível que - com
a exceção da Argentina, o país mais " europeu" da América Latina - esse tipo de corrent e
socialdemocrata t enha tido pouca penetração ao sul do Rio Grande, onde muito cedo a
reivindicação nacional, em sua dimensão anti-imperialist a, tem sido um eixo essencial das lutas
populares" . 221
Há opiniões diversas: “ Não concordamos com os que enxergam nos programas e manifestos
socialistas reivindicações estranhas à realidade brasileira, como se fossem meras traduções ou
ecos das exigências alienígenas. Inspirados, embora, nas doutrinas e nas teorias que se haviam
formado nos países europeus com maior ou menor ênfase, jamais deixaram esses partidos de
levar em conta as necessidades do trabalhador nacional. M ergulhados até o pescoço no dia-a-
219
Juan Baut ist a Just o (1865-1928) foi médico, jornalist a, polít ico, parlament ar e escrit or, fundador do
Part ido Socialist a de Argent ina em 1896, part ido que pr esi diu at é sua mor t e, do jornal La Vanguar dia e
da Cooperat iva El Hogar Obrero. Foi deput ado e senador nacional e aut or de num erosas leis sociais.
220
Luís Emilio Recabarren Serrano (1876-1924) foi dirigent e oper ário e f undador do Part ido Comunist a do
Chile. Nasceu em Valparaíso. Em 1894 int egrou o Part ido Dem ocrát ico do Chile, única organização polít ica
popular daquele t em po. Nesse part ido, Recabarren represent ava o set or socialist a. Recabarren, aos 49
anos, suicidou-se.
221
M ichael Löwy. O M arxismo na América Lat ina. São Paulo, Perseu Abramo, 2000. Vict or Alba, t ent ando
est abelecer uma t eoria sobre o conjunt o da hist ória do moviment o oper ário latino-americano, dist ingui u
quat ro et apas na formação das " ideologias operárias" na América Lat ina: a) A import ação (socialist as
ut ópicos), b) A imigração (exilados das revoluções eur opeias), c) A nat uralização (" las distint as
organizaciones obreras, aunque emplean la ret órica import ada por los exilados europeos aprendida en las
obras de algunos liberales, adapt an esas ideas, en sus programas y en su acción, para ut ilizarlas en la
realidad lat ino americana" ), d) a formação de uma dout rina pr ópria (" surge la necesidad de una
int erpret ación propia de la realidad lat inoamericana" ).
119
dia da vida miserável que levava o operário brasileiro, faziam-se porta-vozes das suas angúst ias
e anseios. Reformistas em sua maioria, esperando que a conquista do poder se viesse a dar
indiretam ent e, pela conquista do Congresso, pelo voto, pelas leis, pelas mudanças institucionais,
pela pressão popular; nem por isso deixavam outros de chegar a apelos revolucionários ou à
própria ação direta, pela greve e demais instrument os de fato correlatos” . 222 O “ M anifesto” do
Partido Socialista Brasileiro, de 1902, reclamava: " O Conselho Geral do Partido faz um apelo às
duas diferent es classes, a dos possident es e a dos despossuídos, em que a população dest e país
se acha dividida, como em toda parte, para que se compenetrem da urgent e e indeclinável
necessidade de atender ao que se passa nos outros países civilizados com referência à questão
social (...) Aos dirigent es, aos que compõem a classe possidente e opressora, neste país, cumpre
não cerrar os olhos à miséria, que t ransparece por toda parte, nem obturar os ouvidos ao
clamor, que a toda parte se levanta". A diferenciação de classe ainda era escassa, e o socialismo
brasileiro não podia elevar-se por cima dessa realidade. Não é de se estranhar que a insistência
no caráter europeu e não adaptado à " realidade nacional" do socialismo da Internacional fosse
maior no caso de Brasil.
Nesse país, a base imigratória do operariado estendeu-se mais no tempo do que nos outros
países da América Latina, o que se refletiu na imprensa operária em língua estrangeira vigent e
durante um período maior no tempo. Essa imprensa, e inclusive as organizações operárias
baseadas em minorias nacionais, cumpriam no entanto uma função necessária: a de unir e
defender uma comunidade que sofria uma dupla exploração: a " normal" do trabalho
assalariado, e a exclusão dos direitos políticos e sociais devido a sua condição de estrangeiros -
uma legislação especificament e discriminatória contra os estrangeiros foi usada no início do
século cont ra os socialistas e os anarquistas, principalment e na Argentina e no Brasil. Na
Argentina, as sociedades operárias organizaram sua propaganda e agitação em cast elhano e
também no idioma das principais nacionalidades presentes no país. Os anarquistas foram os que
mais folhas em idiomas diversos publicaram, e seu principal jornal tinha colunas em italiano e
em iídiche. Os socialistas argentinos mantiveram, até 1914, grupos e jornais de propaganda
idiomática específica para as comunidades italianas, alemã e judía-russa. A Internacional
Socialista se expandia mundialment e, mas a base fundamental de seu recrutam ento continuava
sendo europeia, inclusive nos países situados fora da Europa.
O socialismo sentia-se fort e o suficient e para empreender greves gerais políticas, ainda que os
objetivos fossem o de alargar a legalidade. Uma greve geral acont eceu em 1893 pelo direito de
voto universal na Bélgica. Às vésperas da Primeira Guerra M undial, em 1911-1913, houve 3.165
greves na Inglat erra, mas o número de hom ens-dia perdidos multiplicou-se por seis vezes. E
ainda que de forma limitada, o objetivo primordial dos trabalhadores, que era a redução da
jornada de trabalho, foi relativamente alcançado naquele período. Entre 1890 e 1913, as horas
trabalhadas por pessoa ao ano na Alemanha, França, Inglaterra e Holanda diminuíram de um
núm ero que variava entre 2.770 a 2.807 para 2.584 e 2.624. A Inglaterra era o país que tinha as
maiores jornadas de trabalho entre aqueles países, superiores até m esmo a países não europeus
como Japão e Estados Unidos. O movim ent o operário se transformava num fator objetivo e ativo
da política mundial.
222
Evarist o de M oraes Filho. O Problema do Sindicat o Único no Brasil . Seus f undament os sociológicos. São
Paulo, Alfa-Ômega, 1978.
120
UM A NOVA ERA POLÍTICA M UNDIAL
A expansão do socialismo também “ contagiava” a periferia das metrópoles capitalistas. No
mundo árabe e no Extremo Orient e o início da industrialização capitalist a foi mais tardio (com a
parcial exceção do Japão) do que no Ocident e. Esses países foram submetidos a uma ofensiva
colonizadora na segunda metade do século XIX, que det erminou sua história ulterior dando um
peso decisivo à questão da libertação nacional. Isso se refletiu tanto na organização operária
quanto na penetração da Internacional Socialista. As guerras do ópio na China, a dominação
colonial na Birmânia, as expedições coloniais contra o Sudão ou a Cirenaica reavivaram a
consciência nacional, e também as esperanças populares de justiça, devido à brutalidade dos
abalos impostos às sociedades orientais tanto quanto à sobrevivência nelas dos regimes
autocratas. Os intelect uais “ coloniais” queriam romper com uma sociedade fundada na rotina,
e procuravam no Ocident e a solução para os problemas de seus países. M odernistas e
“ ocidentalistas” foram numerosos no Orient e, a partir do final do século XIX. Auxiliares
subalternos da administ ração nos países coloniais, escritores, docent es e estudantes das
universidades modernas, médicos, engenheiros, jornalistas, essa nova intelligentsia fornecia às
ideias socialistas vindas do Ocidente uma zona de influência favorável.
Entre 1898 e 1900 houve duas importantes crises na China. A primeira durante o denominado
período dos “ Cem Dias de Reforma” , liderada por Kiang Yu-Wei, considerado o " Confúcio
moderno," cujo programa, adotado pelo Imperador, procurava abrir caminho à modernização
da China. O novo chefe de governo promulgou set ent a decretos que compreendiam a reform a
do ensino, com a criação de uma Universidade em Pequim e de escolas superiores para a difusão
da ciência e da t écnica europeia, a criação de um exército nacional, a reforma da agricultura e o
amparo ao comércio e a indústria, a criação de um departam ent o oficial de traduções, para a
divulgação de obras estrangeiras. A reação dos conservadores, apoiados pela regent e Tseu-Hi,
culminou com a prisão do Imperador, a fuga de Kiang Yu-w ei e a revogação dos decretos
reformistas. Fracassada a tentativa moderada, os nacionalistas passaram à ação violenta com a
“ Guerra dos Boxers” , membros de uma sociedade secreta (a “ Sociedade dos Punhos
Harmoniosos” ) que praticava o boxe sagrado, que iniciaram uma revolta nacional contra os
estrangeiros (ou melhor, contra seus privilégios). Os nacionalistas deram inicio a uma série de
at entados, que acabaram gerando uma guerra. Os revoltosos mataram missionários cristãos,
com erciant es e autoridades ocidentais e atacaram as sedes das companhias estrangeiras que
operavam na China. Um exército int ernacional composto por tropas europeias, norte-
americanas e japonesas sufocou a rebelião. Os chineses foram condenados a pagar uma
121
indenização e a permitir a presença de tropas estrangeiras no país. Nesse quadro se sujeição
nacional, as reformas que Tseu-Hi, reconciliado com Kiang Yu-w ei, promoveu depois de 1901,
não satisfizeram os reclamos da burguesia local, mantendo aberta a crise política.
Tropas estrangeiras na Cidade Proibida de Pequim durante a repressão da revolta dos Boxers
No ent anto, o centro da Internacional Socialista continuava sendo, largam ent e, a Europa
ocidental. Na primeira década do século XX, na Europa, os dirigent es socialistas afirmavam que,
no plano institucional, o socialismo ultrapassara o “ est ado declarativo” , o mero discurso.
Escrevia Jean Jaurès, 223 em 1902: “ Quando o socialismo est ava, sobretudo, preocupado em
223
Jean Léon Jaurès (1859-1914) foi um dos principais lideres socialist as franceses e europeus. Filho de
um negociant e frust rado, Jaurès nasceu no depart ament o do Tarn, e f oi educado no liceu Louis-le-Grand
e na École Normale Supérieure (ENS), em Paris, escolas da elite int elect ual francesa. Ingressou nest a últ ima
em 1876 (como segundo classificado no concurso de admissão) e obt eve sua agrégat ion em f ilosofia em
1881. Depois de ensi nar filosofia por dois anos no liceu de Albi, t ornou-se conferencist a na Universidade
de Toulouse. Foi eleit o deput ado republicano pelo depart am ent o de Tarn em 1885. Seguiu para Toulouse
em 1889, onde ajudou a fundar a faculdade de medicina. Preparou duas t eses de dout orado em filosofia:
De primis socialismi germanici lineament is apud Lut herum, Kant , Ficht e et Hegel (1891), e De la réalit é du
monde sensible. Em 1902 deu apoio enérgico aos mineiros de Car maux, que ent rar am em greve com o
consequência da demissão de um operário socialist a, Calvignac; e no ano segui nt e f oi reeleit o para a
cadeir a de deput ado por Albi. Apesar de t er sido derrot ado na eleição de 1898 e t er ficado quat ro anos
sem mandat o, seus discursos eloquent es fizer am de Jaurès a figura simbólica do socialism o em t oda
122
preparar as suas formas gerais, pôde ser útil fazer em qualquer congresso internacional uma
revisão dos princípios. Porém, o socialismo já ultrapassou est e período. É necessário que ele
proceda, para cada problema, à sua análise exata e minuciosa, à crít ica precisa das ideias, à
procura conscienciosa de soluções” . Durante a Belle Époque, entre os est ertores do século XIX e
os anos que ant ecederam à Primeira Guerra M undial, o otimismo da classe operária num
progresso que a levaria a um novo mundo, traduziu-se no desenvolvimento de formas
alternativas de organização e de atividade política, que seriam para seus protagonistas os
embriões de uma sociedade socialista. A autoconfiança da classe operária era visível nas suas
manifestações de massa, ent re as quais o 1º de M aio assumiu a primazia no mundo inteiro; nas
suas associações e sindicatos muito mais organizados e inst itucionalizados; nos seus partidos
políticos, chamados de socialistas nos países europeus de língua lat ina, de socialdemocratas na
Alemanha, na Rússia e outros países, ou ainda de “ trabalhistas” nos países de língua inglesa.
As iniciativas de greve aum entaram. Nos dois últimos decênios do século XIX estabeleceu-se na
Dinamarca uma verdadeira rede sindical nacional promovendo uma luta de classes sem par, que
só arrefeceu depois do grande lock out de 1899 e do pacto social que se seguiu. Nos anos 1889-
1890 houve, na Inglaterra, 2.400 greves. Às vésperas da guerra, em 1911-1913, houve 3.165
movimentos paredistas, mas o número de homens-dia perdidos multiplicou-se por seis vezes. O
objetivo primordial dos trabalhadores, a redução da jornada de trabalho para oit o horas, foi
at ingido em vários países. Entre 1890 e 1913, as horas trabalhadas por pessoa ao ano na
Alemanha, França, Inglaterra e Holanda diminuíram de um número que variava de 2.770 a 2.807
para algo entre 2.584 e 2.624. A Inglaterra era o país que tinha as maiores jornadas de trabalho
naqueles países, superiores at é m esm o a países não europeus como Japão e Estados Unidos.
Nessa fase o movimento socialista sentia-se já forte o suficient e para empreender greves gerais
políticas, ainda que seus objetivos fossem o de alargar a legalidade, como o tentou fazer a
grande greve de 1893 pelo direito universal de vot o na Bélgica.
Europa. Edit ou o jornal Pet it e République. Em 1898 defendeu energicam ent e Alfred Dreyfus. Jaurès
ret ornou à Assem bleia Nacional como deput ado por Albi em 1902, e durant e a administ ração de Combes
sua influência parlament ar assegurou a coerência da coalizão radical-socialist a conhecida como “ o bloco” .
Em 1904 fundou o jornal L'Humanit é. Os socialist as promoveram um congresso em Rouen no m ês de
março de 1905; o novo part ido, liderado por Jaurès e Guesde, parou de cooperar com os radicais e com
os radicais-socialist as, seus m em bros t ornaram-se conhecidos como “ socialist as unif icados” . Nas eleições
de 1906 Jaurès foi novament e eleit o deput ado. Sua popularidade já era not ória, mas a força do part ido
socialist a ainda necessit ava ser avaliada, frent e à popularidade de Georges Clemenceau. Jaurès publicou
t ambém Les Preuves (1900), Affaire Dreyfus (1900), Act ion Socialist e (1899), Et udes Socialist es (1902), e,
com colaborador es, a m onum ent al Hist oire Socialist e de la Révolut ion Française (1901), em vários
volumes. Em inícios da década de 1910, Jaurès viajou pela América do Sul, vindo a fazer conf erências em
Buenos Aires. Com o assassinat o de Jaurès em 1914, morreu a pr incipal voz que, na Europa, se opunha
pública e aber t am ent e à Primeira Guerra M undial.
224
Simon Kuznet s. Cresciment o Econômico M oderno. São Paul o, Abril Cult ural, 1986.
123
França, EUA) o número de sindicalizados passou de 2,2 milhões em 1893, para 5,6 milhões em
1905, 9,6 milhões em 1913, e 22 milhões em 1920: os efetivos sindicais decuplicaram em menos
de três décadas, um ritmo de crescim ento bem superior ao da própria classe operária.
Jean Jaurès (1859-1914), dirigente socialista francês e principal porta-voz do socialismo europeu
Na Inglat erra, entre 1893 e 1920, o número de sindicalizados passou de 1,6 milhões para 8,3
milhões. Na França, mais lenta, de 0,2 milhões para 1,8 milhões. Nos EUA, em que a
industrialização bateu todos os recordes de velocidade, de 0,2 milhões para 4,1 milhões. M as o
cresciment o mais rápido foi na Alemanha, onde os sindicalizados eram 0,2 milhões em 1893,
para situar-se na casa dos 7,8 milhões em 1920, um cresciment o de 4.000%. Nos manuais
acadêmicos de economia, o sindicalismo operário com eçou a aparecer como uma “ força
econômica” , ao lado dos conceitos tradicionalmente considerados (técnica e ciência,
cresciment o demográfico, movim entos migratórios, mão de obra, estruturas políticas, crédito,
relações entre indústria e agricultura, distribuição do produto e da renda, etc.). A luta de classes,
não admitida no pensam ento acadêmico ou “ oficial” , ingressava no cenário político como força
econômica a ser considerada. As cooperativas, por sua vez, experiment aram um grande
increm ento na Inglaterra. O número de seus m embros subiu de meio milhão, em 1880, para três
milhões, em 1914. Em 1900, no V Congresso Internacional Socialista, Paul Lafargue, 225 propôs
que as cooperativas fossem um m eio de recrutam ento e educação socialistas. Condenou as
225
Paul Lafargue (1842-1911) nasceu em Sant iago de Cuba, filho de uma família francesa de ant igos
plant adores. Com nove anos chegou à França. Aos 18 anos se declarava r epublicano, socialist a,
mat erialist a e at eu. Sua ideologia polít ica inicial era uma mist ura de posit ivismo e proudhonismo. Depois
de visit ar Londres, onde conheceu M arx, aderiu à Pr imeira Int ernacional, int egrando seu Conselho Geral
a part ir de 1866. Enviado à Espanha, lut ou cont ra a influência de Bakunin no moviment o operário da
península ibérica. Em 1868 casou-se com Laura, filha de Karl M arx. Est e r esist ir a inicialment e a esse
mat rimônio, desconf iando da falt a de r esponsabilidade do pot encial genro (Frierdich Engels, já
aposent ado, t eve que arcar com boa part e dos gast os do casal Lafargue). Em 1872, na Espanha, fundo u
com M esa, M ora e Pablo Iglesias o jornal La Emancipación, órgão da Primeira Int ernacional. Lafargue
part icipou da Comuna de Paris, refugiando-se em Londres depois da sua derr ot a. Anist iado em 1882,
regressou à Fr ança, onde junt o com Jules Guesde liderou o Part ido Operário Francês (POF), opondo-se ao
anarquismo e ao revisionismo. Eleit o parlament ar em 1891, lut ou pela unidade do socialismo francês.
Escr eveu diversos t ext os de dif usão do socialismo marxist a, o mais célebre foi um opúsculo edit ado e
reedit ado nas mais diversas línguas, O Direit o à Preguiça, com o qual a memória póst uma de Lafargue
seria ident if icada, par a o melhor e para o pior. A 26 de novem bro de 1911, Paul Lafargue, e sua esposa
Laura, se suicidaram incinerando-se e deixando uma not a relat iva à “ implacável velhice” e à decisão do
casal de não “ t ransf ormar-se em carga para si e para os out ros” . A not a concluía com uma afirmação da
vit ória fut ura do socialismo.
124
cooperativas de produção e defendeu as de consumo, porque aquelas seguiriam os princípios
da concorrência capitalista: suas propostas foram derrotadas.
A Segunda Internacional passou a recrutar intelect uais profissionais, cient istas, filósofos e
advogados: as universidades eram ainda bastante imperm eáveis ao marxismo. Os partidos
socialistas estavam cada vez mais envolvidos nas instituições de Estado, gerando uma vast a
burocracia. As oportunidades de carreira política atraíam muitos intelectuais, quando não
transformavam t rabalhadores em administradores ou parlamentares. Na Inglaterra, onde a
votação do Partido Trabalhista aumentara de 500 mil votos para quatro milhões, líderes sindicais
se projetavam na carreira parlamentar. Na Itália, onde os socialistas somavam cinquent a
parlamentares no início da guerra (1914) e já eram 150 em 1920, também cresceu a influência
sindical: a CGIL, central sindical dominada pelos socialistas, passou de 500 mil para dois milhões
de filiados no mesmo período. A esquerda da Internacional alarmou-se com o crescent e
burocratismo dos partidos e dos sindicatos. Novas experiências de intervenção operária na
produção pareciam indicar a superação do sindicalismo, restrito à negociação do valor da força
de trabalho, e o cooperativismo, limitado a um horizonte de concorrência dentro do m ercado
capitalista. Em 1904 surgiram, na Itália, as comissioni interne que transitaram da negociação
contratual para o programa da gestão direta da produção.
A atitude dos part idos socialistas em relação ao parlamentarismo, por sua vez, consistia
originariament e em utilizar os parlament os para a agitação política. Considerava-se a
participação da ação parlamentar do ponto de vista do desenvolviment o da consciência de
classe, ist o é, da possibilidade e da oportunidade de despertar a hostilidade das classes
proletárias contra as classes dirigent es. Essa atitude se modificou, não sob a influência de uma
teoria, mas da prática. A adaptação da tát ica parlamentar à ação legislativa dos parlament os e
a importância sempre crescent e da lut a pela introdução de reformas nos limites do capitalismo,
a predominância do programa mínimo, a transformação do programa máxim o numa plataform a
destinada às discussões sobre um " objetivo final" distanciado, configuraram a base sobre a qual
se desenvolveram o oportunismo parlament ar e at é a corrupção. No congresso da Internacional
Socialista realizado em Amsterdã, em 1904, a polêmica revisionista “ alemã” t eve ainda
centralidade nos debat es. Desta vez, o “ revisionism o” bernst einiano foi condenado por um
tribunal internacional. M as Bernst ein e os revisionistas permaneceram nos partidos e na
Internacional Socialista, inclusive na sua direção. O congresso aprovou, por unanimidade, a
proposta de que em todos os países deveria ser buscada a unidade dos partidos operários e
socialistas em uma única organização “ visto que existia apenas um prolet ariado” , mas
aconselhava que esta unidade deveria realizar-se “ sob as bases dos princípios estabelecidos pelo
congresso da Internacional e nos interesses do proletariado mundial” .
226
Sun Yat-sen (1866-1925), fundou em 1894 em Hong Kong a “ Sociedade para a Regeneração da China” ,
para promover o renascim ent o polít ico do país, foment ar a revolt a cont ra a dinast ia Qing e inst alar um
gover no democrát ico no país. Part icipou em um levant e em Guangzhou em set embro de 1895, uma
t ent at iva fracassada de golpe de est ado pela qual t eve que se exilar no Japão. Passou vários anos no exílio
naquel e país e t am bém na Europa, Est ados Unidos e Canadá. Em Londres foi sequest rado em 11 de
out ubro de 1896 por membros da embaixada imperial chinesa. Ao conseguir libert ar-se, passou a ser
reconhecido no Reino Unido como líder revolucionário chinês. Em 1905, durant e o período japonês de
seu exílio, fundou em Tóquio a Sociedade da Aliança Unida, a Liga Jurada. Est a sociedade f oi o embr ião
do Kuomint ang. Em 12 de março de 1925, Sun Yat-sen, aos 60 anos de idade e enf ermo de câncer, morreu
125
duplo jugo representado pela dinastia Qing (manchú) e pelas potências imperialistas, que
haviam retalhado a China com concessões territoriais, alfandegárias, comerciais, de transporte,
financeiras, e enclaves de extrat erritorialidade. A Liga Jurada transformou-se depois em partido
político, o Kuomint ang (KM T). A regência reacionária do príncipe Chun agravou a crise; quando
o governo imperial anunciou o propósit o de desnacionalizar as ferrovias criadas com capit ais
chineses a burguesia e a pequena burguesia local reagiram, pois viram na medida o prenúncio
de novas concessões aos estrangeiros.
Diante de suas iniciativas antidemocráticas, em 1913, Sun-yat Sen tent ou afast ar Iuã do poder,
sem êxit o, o que o levou novamente a exilar-se no Japão. Várias províncias chinesas
reivindicavam autonomia política, e vastos territ órios foram retalhados em “ feudos”
independent es. Os chefes militares locais (os “ senhores da guerra” ) lutavam constant em ent e
entre si e impunham todo tipo de arbitrariedades ao povo, como impostos e paralisação de
colheitas e trabalhos públicos. O desmembramento da China favorecia a manutenção do poder
das pot ências estrangeiras. O país mergulhou no caos. O fracasso da primeira república chinesa
deveu-se à tentat iva de unificar e democratizar o país sem afetar os interesses sociais das classes
possuidoras associadas às potências estrangeiras. As mudanças políticas não resolveram o
problema da unidade nacional. A partir de então, a quest ão da unidade chinesa est eve
indissoluvelmente ligada aos problemas sociais. A reconstituição da nação não poderia ser feita
em viagem a Beijing (Pequim), para onde se dir igia a fim de ent abular negociações com os dirigent es do
Nort e da China em uma t ent at iva de reunif icação nacional. Como principal pioneiro da China republicana,
Sun é referido at é hoje no país como “ Pai da Nação” .
126
sem luta frontal contra os “ senhores da guerra” e os grandes propriet ários, e contra as potências
estrangeiras e seus associados nat ivos.
Os processos revolucionários do século XX na Am érica Latina, por sua vez, se iniciaram através
da substituição da burguesia no comando da nação e na direção das massas revoltadas contra a
dominação imperialista ext erna. A revolução social na América Latina teve seu primeiro grand e
episódio na Revolução M exicana de 1910-1919. Liderados por Emiliano Zapata, os camponeses
do estado de M orelos levantaram-se contra os latifundiários da região e t oda a exploração que
est es representavam. Logo o exército do país foi chamado para cont er a revolta, que não
dem orou a espalhar-se para t odo o território mexicano. Em combates sangrent os, com
num erosas mort es em ambos os lados, o exército de camponeses comandado por Emiliano
Zapat a e por seu aliado Pancho Villa foi conquistando os principais estados e cidades do país,
minando o poder da grande propriedade agrícola mexicana e a própria força política do ditador
Porfirio Díaz, a “ tirania latifundiária” . No final de 1910, Díaz foi derrubado para permit ir a
ascensão de Francisco M adero ao governo. Este, apesar de ter a confiança de Emiliano Zapat a,
representava os interesses da nascent e burguesia mexicana: pouco lhe importava tocar na
estrut ura agrária latifundiária do país.
Nos países europeus, a burguesia via-se obrigada a ensaiar novos agrupament os políticos em
virtude da ascensão dos partidos operários (socialist as), que se estrut uravam como verdadeiras
“ sociedades dentro da sociedade” , com um im enso sistema de clubes esportivos, associações
culturais e outras organizações colaterais: na Alemanha, o SPD tinha 4 milhões de eleitores, 111
deputados, uma rede de sindicatos, cooperativas, escolas, assim como também as tinham o
“ trabalhismo” (Labour Part y) na Inglaterra ou a SFIO (partido socialista, Section Française de
l’Internat ionale Ouvrière) na França. O socialismo começava a se desenvolver fora da Europa: na
Rússia, nos EUA, no Japão. Nos países periféricos, em t roca, reforçava-se a concentração agrária
e o atraso rural, que se com binava em alguns deles com uma fort e concentração industrial,
dominada pelo capital estrangeiro, provocando um aguçam ento cada vez maior das
contradições sociais.
A perspectiva de uma guerra de alcance mundial abriu-se passo lentament e. O primeiro plano
da política internacional t endia a ser ocupado pelas contradições interimperialistas, em especial
entre as velhas potências (França e Inglaterra, Rússia, Holanda e Bélgica em menor medida) e as
novas pot ências em expansão (Alemanha e EUA). A rivalidade anglo-russa tinha sido uma
constant e na questão relativa ao Império Otomano. Essa rivalidade se refletiu na Ásia devido à
decisão russa de expandir-se na Ásia Central (Turquest ão) na década de 1880, aproximando-se
assim das fronteiras da Índia, principal colônia inglesa. Em reação, Inglat erra impôs um quase
protetorado ao Afeganistão, que se constituiu assim num Estado-tampão entre as duas
potências. A tensão levou à iminência de uma guerra anglo-russa, provisoriament e sufocada. A
rivalidade russo-japonesa pela supremacia na bacia do Pacífico eclodiria na guerra russo-
japonesa de 1905. Na Europa, cont ra Alemanha, França agitava a questão da Alsácia-Lorena,
cedida à Alemanha pelo acordo que deu fim à guerra franco-prussiana, para preparar sua
opinião pública para uma guerra (que era, no fundo, uma disputa franco-germânica pelo Norte
da África). A Inglaterra, principal pot ência colonial, pret endia mant er o stat u quo, aparecendo
como defensor da paz (britânica). A Rússia advogava em seu favor a questão nacional nos Bálcãs,
de olho no iminente desmembramento do obsoleto Império Otomano.
Durante a década de 1890, o Império Otomano sofreu, em vários pontos do seu território,
rebeliões de várias nacionalidades, que reprimiu com força e atrocidades de todo tipo. A Grã-
Bretanha apoiou os povos revoltosos e admitiu a ideia da divisão do Império. Quando t udo fazia
crer que Rússia se empenharia na causa para favorecer o ambicionado desmembramento do
Império Otomano, que a levaria ao M edit errâneo cont rolando os estreitos, e possibilit ando sua
expansão territorial para a península balcânica, o império czarista se mostrou favorável à
manut enção do stat u quo : o que levou os russos a tornarem-se defensores da integridade da
127
Turquia foi a vontade de t erem as mãos livres no Extremo-Orient e. Rússia agiu pela manut enção
do st atu quo no Império Otomano para não ter que intervir militarment e nos Bálcãs. A
dominação financeira na região se materializava no endividamento crescent e: a dívida otomana
se elevava em fins do século XIX a 200 milhões de libras est erlinas. Em inícios do século XX
constituiu-se o “ Conselho de Administração da Dívida Pública Otomana” , dominado pelos
credores europeus, que com seus nove mil funcionários (em 1912) se arrogou praticam ente o
arrendam ento dos ingressos fiscais do Império Otomano. Esse Império era, nas palavras do Czar
da Rússia, “ o gigant e doent e da Europa” , e as potências tentavam repartir seus potenciais
despojos. Porém, contra os apetites da França e Rússia, a Grã Bretanha se opôs, considerando
que um débil Império Otomano ainda supunha a melhor garantia para preservar a ordem e a
estabilidade da região. Todo o interesse se centrava nessa parte do mundo onde outro “ gigant e
doent e” , o império chinês, t ambém despertava as cobiças europeias.
A formação de um império colonial por parte de um país era vista como instrumento de força e
prestígio que podia romper o equilíbrio entre as potências. Um exemplo foi a disputa pelo Egito
entre Grã-Bretanha e França. Os Estados, levados a uma concorrência polít ica crescente com os
vizinhos, estabeleceram alianças para evitar o isolamento. A primeira aliança internacional foi a
austro-alemã de 1879, que se transformou em Tríplice Aliança em 1882, com o ingresso da Itália.
A França, isolada, buscou seus próprios aliados: primeiro a Rússia, com a qual firmou uma aliança
em 1894, e em seguida, em 1904, a Grã-Bretanha. Finalment e, o acordo anglo-russo de 1907 fez
surgir a Entente Cordiale. Os blocos beligerantes da Primeira Guerra M undial estavam já
formados. As potências econômicas chegadas tardiament e na corrida colonial enfat izavam a
ideia de sua superioridade nacional. Em 1894 criou-se a Liga Pangermânica ( AII-Deutscher
Verband). Começou por reivindicar os territ órios em que se falava alemão, ou um dialeto
germânico, a teoria da M uttersprache (língua materna) e, depois, os territórios que no passado
tinham sido “ alemães” (teoria da “ Grande Alemanha” ), mas já se manifestava também outra
teoria: “ Somos o povo mais capaz em t odos os domínios do saber e das belas artes. Somos os
melhores colonos, os melhores marinheiros, e mesm o os melhores comerciant es; e, todavia,
não conseguimos alcançar a nossa parcela na herança do mundo, porque não queremos
aprender a ir buscar à história as lições salutares. Que o Império Alemão seja, não o fim, mas o
início da nosso desenvolviment o nacional!” , escrevia Fritz Sely, em Die Welt st ellung des
Deut schtums (“ A Situação M undial do Poder Alemão” ), panfleto popular de 1897. O “ povo
superior” não era ainda a “ raça superior” , mas a distância entre ambos os conceit os era pequena
e, até cert o ponto, lógica. Em 1900, uma nova lei naval do Império dobrava o poderio marítimo
alemão.
Os conflitos entre metrópoles capitalistas não aconteciam apenas entre potências capitalistas
“ antigas” e “ novas” ; também se evidenciaram contradições entre as antigas pot ências coloniais.
A principal rivalidade anglo-francesa ocorreu na Indochina. Os ingleses, procurando garant ir seu
império indiano, avançaram para o leste (Birmânia), e na M alásia para o norte. Os franceses,
tentando chegar à China, ocuparam sucessivamente o Camboja, a Cochinchina, o Annan, o
128
Tonquim e o Laos; à medida que se instalavam, seus interesses fixaram-se na exploração dos
recursos naturais: minerais, carvão, seda, arroz, etc. Os rivais defrontaram-se no Sião (Tailândia),
sendo a disputa resolvida pelos acordos de 1896 e 1907, que estabeleceram áreas de influência
na região. O Império Britânico, no seu auge final, que precedeu em algumas décadas sua queda,
dominava 458 milhões de pessoas, mais de um quart o da população do mundo à época, e
abrangia mais de 33,7 milhões de km², quase um quarto da área total da Terra, e era invejado
pelos imperialismos rivais.
Itália, potência menor, reivindicava t erritórios do decadent e império austríaco dos Habsburgo,
e alguns despojos do próprio Império Otomano (a Entente lhe ofereceu o Trentino, Trieste e a
Valônia, para garantir sua participação na coalizão). A perspectiva de uma guerra europeia (que,
pela ext ensão dos int eresses coloniais das potências, seria provavelment e mundial) era já visível
em finais do século XIX, sendo denunciada em março de 1897 no parlament o francês pelo
deputado republicano-socialista Jean Jaurès: “ Por toda parte os orçamentos da guerra
expandem-se e crescem de ano para ano; e a guerra, por todos amaldiçoada, por todos temida,
por todos condenada, pode rebentar sobre todos de um mom ent o para o outro” . Embora
potent e, a voz de Jaurès era quase isolada e foi silenciada pela bala de um nacionalista francês
em 1914.227 A belle époque que precedera a eclosão do conflito se revelava como uma fuite en
avant diant e das perspectivas sombrias que se desenhavam no horizont e int ernacional.
O apelo à identidade nacional, ao nacionalismo, foi um elem ento central para transformar a
política em “ psicose de massa” . Nacionalismo não significava apenas a manipulação da
consciência das massas, com o propósito de desviar as contradições sociais internas e a
“ am eaça” dos trabalhadores para imagens xenófobas de supostos inimigos externos. O
nacionalismo do final do século XIX, num sentido amplo, refletia a tentativa de encontrar novas
identidades e novos pontos de referência para os mais diversos grupos sociais e classes. As
principais correntes do nacionalismo na Europa alt eraram o seu carát er: na primeira metade do
século XIX, o nacionalismo associava-se à autodet erminação democrática dos povos e dos
indivíduos, assim como à luta contra o domínio aristocrático. O novo nacionalismo era
imperialista e “ elitista” . Na Itália, o nacionalismo do risorgimento, liberal e libertário, cedeu lugar
a um nacionalismo integrista, militante, expansionista e chauvinista. A partir da década de 1880,
a direita metropolit ana reivindicou o monopólio de um patriotism o expurgado de ideais
dem ocráticos. Como fenôm eno de massas, o nacionalismo direit ista caract erizou especialment e
países como a Alemanha, com a ofert a compensatória de grandeza nacional. A emergência de
um nacionalismo integrist a foi um fenôm eno geral na Europa, e chegou também aos Estados
Unidos. Na Franca, assumiu a forma do chauvinismo francês, na Grã-Bret anha a do jingoísmo e,
nos Estados Unidos, a do chamado “ novo imperialismo” . Tais ideologias, que colocavam suas
próprias nações acima de tudo o mais, se tornaram forças políticas efetivas na virada para o
século XX. O nacionalismo integrista francês, por exemplo, foi politicament e periférico durant e
muito t empo, não representava qualquer movim ent o de massa. Ele se popularizou após a
segunda crise marroquina, em 1911, unindo duas corrent es - a do revanchismo antialemão e a
do imperialismo colonial.
Com o avanço do nacionalismo, o pensam ento socialdarw inista influenciou a percepção das
relações internacionais de modo cada vez mais forte: os Estados estariam em posições opost as,
permanent em ent e, numa luta pela sobrevivência, e o crescimento do poder de um Estado
ocorreria à custa da perda de poder de outro. Contemporaneam ente à emergência dos
nacionalismos integristas nos principais Estados europeus continuaram os nacionalismos
separatistas na parte europeia do Império Otomano e no Estado multiétnico da Áustria-Hungria.
Nos Bálcãs, esses nacionalismos produziram grandes tensões, com os nacionalismos sérvio e
227
O “ pacifismo” inglês era a defesa do st at u quo ant e, e era purament e verbal (pois a Inglat erra, t ant o
quant o as out ras pot ências europeias, armava-se at é os dent es).
129
bósnio, e no cont exto int ernacional um conflito iminent e e agudo entre Rússia e Áustria-
Hungria. O planejament o militar ganhou uma dinâmica própria e demarcou os limites das
decisões políticas. A “ ordem mundial” estava ameaçada o seu próprio centro: “ O coração da
Europa estava ocupado por um país que, em poucas décadas, tornou-se o mais industrializado,
cuja velocidade de desenvolvim ento industrial e comercial ultrapassa à dos países industriais
mais antigos, que apareceu nos m ercados mundiais no mom ento em que os t erritórios antes
livres da dominação europeia já est avam todos ocupados, como colônias ou semicolônias dos
Estados indust riais mais antigos” .228
228
Frit z St er nberg. El Imperialismo . M éxico, Siglo XXI, 1979.
229
Karl Kaut sky. O Caminho do Poder . São Paulo, Hucit ec, 1979, p. 107.
130
O DEBATE SOBRE O IM PERIALISM O
As diversas t eorias acerca do imperialismo capitalista se originaram e inseriram no quadro de
um debat e com a participação de autores marxistas e não marxistas e também da discussão no
interior do movimento operário e socialista, tendo como eixos interpretativos o papel decisivo
do monopólio, o surgimento do capital financeiro com o produto da fusão do capital bancário e
industrial e sua hegemonia sobre as outras formas do capital, 230 o predomínio crescent e da
export ação do capital sobre a export ação de mercadorias, a divisão do mercado mundial entre
monopólios capitalistas competidores e a conclusão da divisão territorial do mundo pelas
grandes (e não tão grandes) pot ências. O debat e afunilou na busca de uma interpretação global,
que vinculasse em um todo coerent e depressão econômica mundial, expansão colonial,
export ação de capital, disputas geopolíticas, nacionalismo xenófobo, racismo, e, finalment e,
guerra mundial. As diversas teorias acerca do imperialismo foram a pedra de toque de
estrat égias políticas diferenciadas e contrapostas.
John A. Hobson, economist a liberal “ het erodoxo” , escrevia em seu livro escrito em finais do
século XIX: “ Nação atrás de nação entra na máquina econômica e adota métodos avançados
industriais e, com isso, se torna mais e mais difícil para seus produtores e mercadores venderem
com lucro seus produtos. Aumenta a tentação de que pressionem seus governos para lhes
conseguir a dominação de algum Estado subdesenvolvido distante. Em toda part e, há excesso
de produção, excesso de capital à procura de invest iment o lucrativo. Todos os homens de
negócios reconhecem que a produtividade em seus países excede a capacidade de absorção do
consumidor nacional, assim como há capital sobrando que precisa encontrar invest im ent o
remunerativo além-front eiras. São essas condições econômicas que geram o imperialismo” .231
As bases econômicas do imperialismo residiam, para ele, no “ excesso de capital em busca de
investiment o” e nos “ recorrentes est rangulam entos do mercado” . O imperialismo europeu
transformara a Europa em uma área dominada por “ um pequeno grupo de aristocratas ricos,
que tiram suas rendas e dividendos do Extremo Oriente, junto com um grupo um pouco mais
num eroso de funcionários e comerciant es, e um grupo maior ainda de criados, trabalhadores
de transport es e operários das indústrias manufatureiras. Desaparecem então os mais
important es ramos industriais, e os alimentos e semielaborados chegam como tributo da Ásia e
África” . Ele considerava que a perspectiva de uma federação europeia “ não apenas não faria
230
Ant evist a por M arx na forma D-D’, “ inversão e mat erialização das r elações de produção elevadas à
pot ência máxima” , “ mist ificação capit alist a em sua for ma mais brut al” .
231
John A. Hobson. L’Imperialismo. Roma, Newt on & Compt on, 1996[1902] .
131
avançar a obra da civilização mundial, como apresentaria o gravíssimo risco de um parasitismo
ocidental, sob o controle de uma nova aristocracia financeira” .
Hobson também se referiu ao novo imperialismo japonês. Em inícios do século XX já era clara a
percepção de que o crescimento da potência imperialista do Japão iria incidir profundament e
no curso da história, muito além das convencionais considerações milit aristas ou ideológicas:
“ Est e novo capít ulo da história mundial muito depende da capacidade japonesa de manter sua
própria independência financeira” . Superada uma primeira fase de dependência, “ a grande
potência industrial do Extremo Oriente pode rapidam ent e lançar -se sobre o m ercado mundial
como o maior e mais válido competidor na grande indústria mecânica, conquistando prim eiro o
mercado asiático e pacífico e logo invadindo os mercados ocidentais - empurrando assim estas
nações a um prot ecionismo mais rígido, como corolário de uma proteção diminuída” . Rússia
czarista, provavelm ent e bem menos informada do que Hobson, iria sofrer as consequências do
novo papel de protagonista internacional do Japão.
“ Pode parecer que o amplo predomínio da concentração do capit al nos pools, trustes e várias
associações, cuja existência se comprovou nas diversas áreas da indústria, seja contraditório
com o grande volum e de provas quanto à sobrevivência de pequenas empresas. A incoerência
é, contudo, apenas aparente. Em toda a área da indústria, nem o núm ero agregado de pequenas
empresas, nem o percentual de operários nelas empregados estão em declínio; mas a
independência econômica de muitos tipos de pequena empresa é violada pelo capitalismo
organizado, que se implanta nos pontos estrat égicos de quase todo fluxo produtivo, a fim de
impor tributos sobre o tráfego em direção ao consumidor” . O “ capitalismo organizado”
(conceito que será tomado emprestado pelo marxista Rudolf Hilferding, na sua análise do capital
financeiro), por sua vez, era dominado por uma fração específica, pequena e concentrada a
classe capitalist a: “ A estrutura do capitalismo moderno tende a lançar um poder cada vez maior
nas mãos dos homens que manejam o mecanismo monetário das comunidades indust riais, a
classe dos financist as” .232
Para Hobson, a partir de David Ricardo e John Stuart M ill a economia política centrara suas
at enções na produção e acumulação de riquezas, negligenciando o consumo e a utilização das
riquezas já acumuladas. Hobson rechaçava a essência econômica do imperialismo; via como a
sua força mot ora o patriotismo, a avent ura, o espírito militar, a ambição política; mas não
concebia o imperialismo como um negócio rentável para nenhuma nação, a não ser para os
grupos financeiros, especuladores de bolsas de valores e investidores, que chamou de " parasitas
econômicos do imperialismo" , por colocarem no exterior o excedent e ocioso de capital que não
podiam investir mais lucrativamente em seu país, obtendo com isso inúmeras vantagens. Para
232
John A. Hobson. A Evolução do Capit alismo M oderno, ed. cit , pp. 158 e 175.
132
combater isso, Hobson propunha uma reforma social, com elevação dos salários e aument o dos
impostos e gastos públicos. Ele considerava o “ fenômeno imperialista” como um desajust e
temporal e uma doença curável do capitalismo da época, associando a expansão colonial e o
desenvolvim ento capitalista das metrópoles ao excesso de poupança e ao subconsumo, em
conjunto com os aspectos políticos, ideológicos e morais da época. Para Hobson, as anexações
novas da Grã-Bretanha tinham sido de alto custo e só capazes de proporcionar mercados
“ pobres e inseguros” . Também classificava como im perialismo a submissão das colônias ao
poder absoluto das metrópoles. Funcionários, mercadores e industriais exerciam seu poder
econômico sobre " as raças inferiores" , consideradas como incapazes de autogoverno. A única
vantagem real do imperialismo, segundo Hobson, era o escoamento da sobrepopulação
industrial da Inglaterra; o movimento migratório para as colônias poupava a grande potência de
“ uma revolução social” .
Nesse último ponto, não havia diferenças entre o liberal Hobson e o imperialista Cecil Rhodes.
Hobson explicou as “ contradições do imperialismo” a part ir das “ recorrentes crises do
capitalismo, quando a superprodução se manifesta nas principais indúst rias” . Hobson não
escondeu que o novo imperialismo capitalista, apesar de ser um “ mau negócio para a nação” ,
era um bom negócio para certas classes, cujos “ bem organizados interesses de negócios são
capazes de sufocar o débil e difuso interesse da comunidade” e de “ usar os recursos nacionais
para seus lucros privados” . Por outro lado, assinalava que “ os t ermos credor e devedor , aplicados
aos países, mascaram a principal característica deste imperialismo. Já que, se as dívidas são
‘públicas’, o crédito é quase sempre privado” . Dentro da classe dos capitalistas tendia a
predominar a figura do rentier desvinculado da produção; 233 o capital financeiro passava a
comportar-se como um prestamist a e, finalment e, como um agiota int ernacional, criando um
sistema internacional de dividas cada vez maior. Por trás dessas classes estava o grande “ capit al
cosmopolita” , em primeiro lugar a indústria pesada, direta e indiretam ent e int eressada nos
gastos de arm amento : “ O imperialismo agressivo, que cust a caro ao contribuint e, é fonte d e
grandes lucros para o invest idor que não encontra no interior um emprego lucrativo para o seu
capital” . O desenvolviment o armam entista tinha, para ele, razões econômicas e consequências
políticas. Levava a que “ malvados demagogos políticos controlem a imprensa, as escolas e se
necessário as igrejas, para impor o capitalismo às massas” . Para Hobson, “ a essência do
imperialismo consiste no desenvolvimento dos mercados para o investim ento e não para o
com ércio” , e não em “ missões de civilização” (no estilo ideológico europeu) ou “ manifestações
de destino” (no estilo norte-am ericano).
Os aut ores marxistas privilegiaram as relações econôm icas internacionais e suas consequências
políticas na sua análise do imperialismo: “A teoria do imperialismo trata da forma fenomênica
especial que adot a o processo (capitalista) em uma etapa particular do desenvolvim ento do
modo de produção capitalista” .234 A mudança hist órica propiciada por essa “ etapa particular” se
contrapunha à perspectiva inicialment e t raçada por M arx (“ O país mais desenvolvido
industrialment e - escrevera M arx no prefácio da primeira edição de O Capital - não faz mais do
que representar a imagem futura do menos desenvolvido” ): “ Soment e uma minoria de países
realizou completam ent e a evolução sistemática e lógica desde a mão de obra, através da
manufatura dom éstica até a fábrica, que M arx submet eu à uma análise detalhada. O capital
com ercial, indust rial e financeiro invadiu, desde o ext erior, os países atrasados, destruindo em
parte as formas primitivas da economia nativa e, em parte, sujeit ando-os ao sist ema industrial
e banqueiro do Oest e. Sob a imensa pressão do imperialismo, as colônias e semicolônias se
viram obrigadas a abrir mão das et apas intermediárias, apoiando-se ao mesmo t empo
233
Nikolai Bukhárin. Economia Polít ica del Rent ist a. Barcelona, Laia, 1974. Nesse t ext o, Bukhárin se
ocupou pioneirament e da “ revolução m arginalist a” na t eoria econômi ca como expressão t eórica do
parasit ismo f inanceiro do capit al monopolist a.
234
Tom Kem p. Teorie dell’Imperialismo. De M arx a oggi. Turim, Einaudi, 1969, p. 29.
133
artificialmente em um nível ou em outro. O desenvolvim ento da Índia não duplicou o
desenvolvim ento da Inglaterra; não foi para ela mais que um complemento ” .235
Na ausência de uma t eoria marxista geral sobre a época imperialista, que não falt ava a autores
liberais como Hobson, coube a Rudolf Hilferding formulá-la no seu Capit al Financeiro , de 1910,
onde analisou de modo pioneiro a nova figura do capit al, resultante da fusão entre o capital
bancário e o capital industrial. No que diz respeito à crise evidenciada pela depressão mundial,
Hilferding sust ent ou que, se se produzisse nas proporções corretas, a produção poderia se
ampliar infinitamente sem conduzir à sobreprodução de m ercadorias. As crises não poderiam
ser explicadas pelo consumo escasso. Hilferding atribuiu muita importância tant o aos
movimentos acumulativos com o aos efeitos dos desequilíbrios parciais das diferent es trocas de
preços, dos momentos de at raso e dos fatores institucionais. Observou, por exem plo, o efeito
de aumentos irregulares da oferta, os quais devem ser atribuídos a longos prazos de maturação
dos investim entos, e que multiplicam, por sua vez, o perigo de investim entos exagerados quant o
mais o desequilíbrio entre oferta e demanda durar. Já havia, na obra de M arx (nas Teorias sobre
a M ais-Valia) fragm entos claros que vinculavam a sobreprodução ao consumo (“ A
sobreprodução deriva precisam ent e do fato, que a média da população não pode consumir mais
que a quantidade média dos meios de subsistência; que o seu consumo não cresce
proporcionalment e à produtividade do trabalho” ). A procura de um “ equilíbrio dinâmico” do
capitalismo a part ir dos esquemas de reprodução de M arx não se justificava teoricament e, no
entanto, a partir dele.
Para Ott o Bauer, a anarquia da produção (a ausência de plano) seria responsável pelas crises
econômicas capit alistas. Em Kapit alismus und Sozialismus nach dem Weltkrieg colocou:
“ Nenhum aperfeiçoam ent o das investigações sobre a conjunt ura, das análises de mercado, da
planificação no quadro de cada fábrica, pode estancar semelhant e font e, de onde emana uma
enorme quantidade de elem entos antieconômicos; pelo menos enquanto a própria sociedad e
não dirigir seus aparelhos produt ivos, e não regular sua renovação e ampliação com base num
235
Leon Trot sky. Nat uraleza y Dinámica del Capit alismo y la Economía de Transición. Buenos Aires, Ceip,
1999.
236
Frit z St er nberg. Op. Cit .
237
M ikhail Tugan-Baranow sky. Les Crises Indust rielles en Anglet erre. Paris, Giard, 1913.
134
plano social, uniformem ent e repartido por cada ano e proporcionalment e redistribuído por
cada um dos ramos da produção” . Anos mais t arde (1936), em Zw ischen zw ei Weltkriege?,
vinculou a queda da taxa de lucro à t axa de mais-valia: “ Quando a taxa de mais-valia já não
aumenta, ou não aumenta o suficient ement e rápido como para compensar o aum ent o da
composição orgânica do capital, começa a descender a taxa de lucro social. Tão logo os
capitalistas descobrem que a taxa de lucro desce, que os dividendos das sociedades por ações
com eçam a baixar, se apresenta o desatre financeiro. A crise é verificada apenas quando começa
a descer a t axa de lucro, tão logo ela tem que descer devido a que o aumento da composição
orgânica do capit al não pode ser já compensado pelo aumento de mais-valia” .
Nos artigos de Die Neue Zeit de 1901-1902, Karl Kautsky, máximo ideólogo da Internacional
Socialista depois da morte de Engels, atacou as t eorias de Tugan-Baranow sky, sem atacar,
porém, a “ teoria da desproporcionalidade” como causa fundamental das crises,238 assinalando
que toda produção t em por objetivo final a produção de bens de consumo. O equilíbrio, em si,
careceria de significado prático, pois “ os capitalistas, e os trabalhadores que eles exploram,
proporcionam, com o crescim ent o da riqueza dos primeiros e do núm ero dos segundos, o que
constitui certam ent e um m ercado para os m eios de consumo produzidos pela indústria
capitalista; o mercado cresce, porém, menos rapídament e do que a acumulação de capital e o
aumento da produtividade do trabalho. A indústria capitalista deve, portanto, procurar um
mercado adicional fora de seu domínio nas nações não capitalistas e nas camadas da população
em situação idêntica. Encontra tal m ercado e se expande cada vez mais, porém não com a
necessária velocidade... Dessa forma, cada período de prosperidade, que se segue a uma
significativa ampliação do mercado, está destinado a uma vida breve, e a crise se t orna seu fim
necessário” .
Chegaria, então, uma época em que “ a superprodução será crônica para todas as nações
industriais. M esmo então, os altos e baixos da vida econômica são possíveis e prováveis; uma
série de revoluções técnicas, que desvalorizam a massa dos meios de produção exist ent es
exigem a criação em larga escala de novos m eios de produção, a descoberta de no vos campos
auríferos ricos, etc, podem mesmo então, durante cert o tempo, estimular o ritmo dos negócios.
M as a produção capit alista exige uma expansão ininterrupta, rápida, para que o desemprego e
a pobreza dos operários, de um lado, e a insegurança do pequeno capitalista, de outro, não
at injam a uma tensão extrema. A existência continuada da produção capitalista perdura mesm o
nesse estado de depressão crônica, mas se torna completam ente intolerável para a massa da
população; esta é forçada a procurar uma saída da miséria geral, e só pode encont rá-la no
socialismo” . Esboçada esta teoria de uma “ depressão crônica” como futuro do capit al, Kautsky
238
A “ desproporcionalidade” do invest iment o nos diversos ramos da produção é consubst ancial a t odo
sist ema econômico (inclusive a um sist ema imaginariament e socialist a), pois não exist e possi bilidade de
t ransmissão inst ant ânea das respost as da “ demanda ef et iva” e, mesmo que exist isse, não exist iria a
possi bilidade da r ealocação inst ant ânea dos f at ores de produção. Em regime capit alist a isso se agrava
porque os invest iment os são realizados por cada capit alist a individual, de acordo com seus int eresses
part iculares e imediat os, apost ando no r amo de produção que mais lhe assegure uma mais elevada t axa
de lucro. Invest em sem que uma demanda ef et iva seja assegurada para as mercador ias produzidas. Se a
venda das m ercadorias pelo seu valor não se verifica, ou apenas o faz em part e, os capit alist as não
poderão recom eçar imediat ament e o processo de produção em escala ampliada. A reprodução do capit al
é mom ent aneam ent e int errompida, possibilit ando a er upção da crise. Para que a produção ampliada se
efet ue sem int errupção, é preciso que sejam const ant em ent e reproduzidas cert as condições de equilíbrio;
é preciso que a ofert a e a demanda r ecíproca de mercador ias sejam iguais ent re os dois set ores da
produção capit alist a (bens de consumo e bens de produção). Est a condição de equilíbrio, cont udo, jamais
se verifica na prát ica por esbarrar na cont radição ent re o carát er social da produção e o f at o de que as
decisões de invest ir são t omadas individualm ent e, sem que haja coordenação ou planejam ent o ent r e
produção e demanda ef et iva.
135
não foi muito além: “ Kautsky foi pouco além da repretição dos conceit os de M arx sobre a
dependência geral em que a produção está do mercado para os bens de consumo” . 239
Uma nova geração de teóricos marxistas enfrentou a questão na década de 1910. A definição
mais breve do imperialismo era, segundo Lênin, “ a fase monopolista do capitalismo” . 240 A
relação entre a Bolsa (as companhias capit alistas), a partilha colonial, e o desenvolvimento do
capital bancário, foi o eixo da interpretação feita por Lênin, que associou as noções de capital
monopolista, capit al financeiro e imperialismo: “ Os bancos se transformam e, de modestos
intermediários, viram poderosos monopólios, que dispõem da quase totalidade do capital-
dinheiro do conjunto dos capit alistas e dos pequenos proprietários, assim como da maior parte
dos meios de produção, e das fontes de matérias primas de um dado país, ou de vários países” .
Lênin se opôs a ideia de Kautsky, para quem o imperialismo consist ia, basicament e, na
colonização dos países agrários pelos países industriais, um processo inexorável do “ progresso” ;
o imperialismo não era uma política internacional opcional; era o produto da monopolização e
contradições do capitalismo nas metrópoles. Considerar o imperialismo como um fenôm eno
econômico vinculado à fase monopolista do capital não significava afirmar que não fosse,
também, um fenômeno político internacional, vinculado: 1) ao entrelaçam ento inédito entre o
capital e o Est ado; 2) à desigual força dos Est ados a escala mundial, que chegava ao seu extrem o
as relações entre as m etrópoles e as colônias. M as isto se traduzia sempre em resultados
econômicos.
Nikolai Bukhárin
239
Paul Sweezy. Teoria do Desenvolviment o Capit alist a. Rio de Janeiro, Zahar, 1976,
240
A concepção sobre o imperialismo mais clarament e ant it ét ica à de Lênin foi post a por Joseph A.
Schum pet er, para quem o imperialismo não era um component e orgânico do capit alismo, mas o frut o de
sobrevivências pré-capit alist as: sit uadas em diversas esferas (polít ica, cult ural, econômica) essas
sobrevivências se cont rapunham à lógica do capit al, mas seriam capazes de se impor polit icament e,
ger ando a polít ica imperialist a (Joseph A. Schum pet er. Imperialismo e Classes Sociais. Rio de Janeiro,
Zahar, 1961).
136
governo” , 241 t razendo mudanças decisivas à estrut ura do Estado e à vida política e social. Junto
com o domínio do capital monopolista mudavam as relações entre o interesse privado e o
Estado, suposto representant e do interesse público, subordinando o segundo ao primeiro, e
transformando qualitativam ente sua função. A “ estatização da vida social” , com o Estado
absorvendo novas funções disciplinadoras da sociedade, foi est udada por Nikolai Bukhárin em
O Imperialismo e a Economia M undial (obra de 1916 em que usou a imagem do “ novo Leviatã”
para referir-se ao Est ado imperialist a), prefaciada por Lênin. O fortalecimento do Estado era
ditado pela nova fase mundial do desenvolvim ento do capital: “ As etapas de repartição pacificas
são sucedidas pelo impasse em que nada rest a para distribuir. Os monopólios e seus Estados
procedem então a uma repartição pela força. As guerras mundiais interimperialistas se
transformam em um component e orgânico do imperialismo” .242 O recurso às guerras, regionais
ou internacionais, era ditado pela magnitude dos interesses econômicos em jogo.
Lênin, de modo semelhant e, caract erizou o imperialismo pela hegem onia do capital financeiro
(fruto da fusão do capital bancário e do capital industrial, como já analisara Rudolf Hilferding em
1910); 244 pela nova função dos bancos e pela export ação de capit ais. Isso gerava a necessidade
de uma nova partilha do mundo entre os grupos capitalistas, tendo à testa seus respectivos
Estados Nacionais: “ O imperialismo, como fase superior do capitalismo na América do Norte e
na Europa, e depois na Ásia, formou-se plenament e no período 1898-1914. As guerras hispano-
americana (1898), anglo-bôer (1899-1902) e russo-japonesa (1904-1905), e a crise econômica
de Europa em 1900, são os principais marcos históricos dessa nova época de historia
mundial” . 245 Lênin definia a base econômica do novo imperialismo, e suas consequências
241
V. I. Lênin. Imperialismo, Et apa Superior do Capit alismo. Campinas, Navegando Publicações, 2011 .
242
Idem.
243
Nikolai Bukhárin. A Economia M undial e o Imperialismo. São Paulo, Nova Cult ural, 1986.
244
Rudolf Hilferding. O Capit al Financeiro. São Paulo, Abril Cult ural, 1983.
245
V. I. Lênin. El imperialismo y la escisión del socialismo. Obras Complet as, vol. 30, M oscou, 1963.
137
históricas: “ O imperialismo capitalista foi o resultado do processo de concent ração-
centralização dos capitais nos países de capitalismo mais avançado, onde o monopólio t endeu
a substit uir à livre concorrência, assim como a exportação de capit ais a exportação de
mercadorias, inclusive em direção ao mundo atrasado, mudança que deu lugar ao imperialismo
como fase superior do desenvolvim ento do capit alismo. Nos países avançados o capit al
ultrapassou o marco dos Estados Nacionais, substituiu a concorrência pelo monopólio, criando
todas as premissas objetivas para a realização do socialismo” .246
O que se fechava, para Lênin, era o ciclo histórico do capitalismo de livre concorrência e
definit iva passagem para uma nova época marcada por cinco traços fundamentais: 1) a
concentração da produção e do capital levada a um grau tão elevado de desenvolvim ent o que
criava os monopólios, os quais desempenhavam um papel decisivo na vida econômica; 2) a fusão
do capital bancário com o capital industrial e a criação, baseada nesse “ capital financeiro” da
oligarquia financeira; 3) a exportação de capitais, diferent ement e da export ação de
mercadorias, adquiria uma importância particularmente grande; 4) a formação de associações
internacionais monopolistas de capitalistas, que partilhavam o mundo entre si, e 5) o termo da
partilha territorial do mundo entre as potências capitalistas mais import antes. Uma nova
partilha levava necessariam ente ao confronto bélico, agravando as condições de exist ência do
operariado e das massas pobres do mundo colonial: o imperialismo era uma era de guerras e
revoluções.
Bukhárin caract erizou o imperialismo como “ a reprodução ampliada da concorrência capit alista”
e concluiu que “ não é pelo fat o de constituir a época do capit alismo financeiro um fenôm eno
historicamente limitado que se pode, entret anto, concluir que ela tenha surgido como um deus
ex machina . Na realidade, ela é a sequência histórica da época do capital industrial, da mesma
forma que esta última representa a cont inuidade da fase com ercial capitalista. Esta é a razão
pela qual as contradições fundamentais do capitalismo - que, com seu desenvolvimento, se
reproduzem em ritmo crescent e - encontram, em nossa época, expressão particularment e
violenta” . 248 Para Lênin: “ A exportação de capital influi sobre o desenvolvimento do capitalismo
nos paises onde o capital é aplicado, acelerando-o ext raordinariament e. Se por esta razão, t al
export ação pode ocasionar, até certo ponto, uma determinada estagnação do desenvolviment o
dos paises exportadores, isto só pode ser produzido à custa da ampliação e do aprofundament o
do desenvolvim ento do capitalismo no mundo todo” . 249
246
V. I. Lênin. Imperialismo, Et apa Superior do Capit alismo, ed. cit .
247
Nikolai Bukhárin. A Economia M undial e o Imperialismo, ed. cit .
248
Idem.
249
V. I. Lênin. Op. Cit.
138
Para Rosa Luxemburgo, diversam ente, o imperialismo era uma necessidade inelutável do
capital, de qualquer capital e não necessariam ent e do capital monopolista ou financeiro, não
sendo específico de uma fase diferenciada do desenvolvim ento capitalista; era a forma concret a
que adotava o capit al para poder continuar sua expansão, iniciada nos seus próprios países de
origem e levada, por sua própria dinâmica, ao plano internacional, no qual se criavam as bases
de seu próprio desmoronamento: “ Dest e modo o capital prepara duplament e sua derrubada:
por um lado, ao estender-se à custa das formas de produção não capitalist as, aproxima-se o
mom ento em que toda a humanidade se comporá efetivament e de operários e capitalist as,
situação em que a expansão ult erior e, portanto, a acumulação, se farão impossíveis. Por outro
lado, na medida em que avança, exaspera os antagonismos de classe e a anarquia econômica e
política internacional a tal ponto que provocará uma rebelião do prolet ariado mundial contra
seu domínio muito ant es que a evolução econômica tenha chegado at é suas últimas
consequências: a dominação absoluta e exclusiva do capitalismo no mundo” .250
A teoria do “ super (ou ultra) imperialismo” de Karl Kautsky, 252 por sua vez, afirmava que o
imperialismo não era necessariam ent e a " fase final do capitalismo". Kautsky formulava a
hipótese de que depois da fase imperialista poderia existir uma nova fase capitalista baseada no
ent endim ento entre grupos e Est ados capitalist as, à qual dava o nom e de " ultraimperialismo" .
Chegara a essas conclusões examinando os efeitos do armamentism o e das guerras sobre a
indústria: as indúst rias milit ares eram favorecidas, as outras desfavorecidas e contrárias às
guerras. O capital financeiro teria conquistado a hegemonia sobre o capital industrial; definia o
capital financeiro como a "forma mais brutal e violenta do capit al" . Para analisar o
" ultraimperialismo" como uma espécie de “ cart el mundial dos capitalistas” , Kautsky examinava
seus objetivos: cada um buscava impor seu próprio monopólio derrotando seus concorrent es.
Quando estes, finalmente, eram poucos e fortes, preferiam não se combater e encontravam um
acordo na forma do cartel ou do t ruste. Se essa tendência se verificava entre empresas
capitalistas, cabia supor que também fosse possível entre Estados. Kautsky esperava que o
250
Rosa Luxem burgo. La Acum ulación del Capit al . Havana, Ciencias Sociales, 1968, p. 430.
251
Henryk Grossman. Las Leyes de la Acumulación y el Derrumbe del Sist ema Capit alist a. M éxico, Siglo
XXI, 1977.
252
Karl Kaut sky. Der Imperialismus. In: Die Neue Zeit , Berlim, 32 (1914), vol. 2
139
ultraimperialismo evit asse a explosão de uma guerra mundial que, no entanto, via como
iminent e.
A era da ilusão liberal do livre entrelaçamento econômico dos indivíduos foi substituída pela era
das relações ent re monopólios. O imperialismo começava a se caract erizar pela produção
multinacional . A mistificação capitalista da livre concorrência entre indivíduos independent es
cedia seu lugar à produção em larga escala e à concent ração e centralização de capitais. A
absorção dos indivíduos às leis do modo de produção capitalista poderia (e deveria) agora
exprimir-se diretam ent e com o subordinação de uma classe a outra, não mais aparecendo com o
relação entre indivíduos singulares. A alteração sofrida pelo conceito de Estado acompanhou o
fim do capitalismo da livre concorrência. No capitalismo monopolista a ideologia prevalecent e
passou a ser a que assegurava à própria nação o domínio internacional, “ ambição tão ilimit ada
quanto a própria ambição do capital por conquistar o lucro” .254 Ao mesmo tempo, o capital
monopolista dissolvia as velhas relações produtivas e acelerava o desenvolvim ento capitalista
nos países atrasados, sob a forma do monopólio econômico, ou seja, sem deixar àqueles
conhecer as vantagens juvenis do capitalismo de livre concorrência: os países atrasados
conheciam do capitalismo só as desvantagens da sua maturidade, sem chegar a conhecer as
virtudes da sua juvent ude. O proletariado industrial que surgia dessa penetração capitalista teve
um desenvolvimento forte, que não guardava relação com o raquitismo da burguesia nacional
dos países ret rasados, o que det erminaria as formas políticas autoritárias adotadas por estes no
século XX.
Com o frequent e uso da tecnologia de produção na composição de novos produtos com novos
mat eriais, as possibilidades do uso de component es ainda não desenvolvidos evidenciaram a
necessidade de reservas t errit oriais. Em função disso, o capital financeiro não restringia seus
interesses apenas às fontes de mat érias primas já conhecidas, passando a interessar-se
igualment e por font es possivelm ente existent es em regiões aleatoriament e diversas. A
expansão dos domínios do capital financeiro se deu não apenas pela necessidade de
manut enção de excedentes crescent es e influência sobre font es de produção de m ercadorias
de baixo valor agregado (mat érias primas), mas, principalment e, pela garantia estrat égica da
possibilidade constant e de exploração de novos recursos: “ Donde a inevitável tendência do
capital financeiro para alargar o seu território econômico” . 255 A “ receptividade” das regiões
subdesenvolvidas relacionou-se com a formação política e econômica do t erritório ou país
“ hospedeiro” ; a maneira como se processava a expansão de capit al variava de acordo com o
253
Nikolai Bukhárin. Op. Cit , p. 106.
254
Rudolf Hilferding. Op. Cit , p. 314.
255
Idem.
140
nível de desenvolvim ento do capitalismo dessas regiões. Os Estados “ independent es” da
periferia estavam fadados à subordinação ao capit al financeiro, assim como os países
semicoloniais e coloniais.
A expansão mundial do capital foi justificada ideologicamente pelo novo conceito de nação,
onde uma poderia sobrepujar outras por considerar-se “ eleita” entre as demais, fundamentada
na afirmação da sua superioridade: “ Para manter e ampliar sua superioridade, [o capital
monopolista] precisa do Estado que lhe assegure o mercado interno m ediant e a polít ica
aduaneira e de tarifa, que deve facilitar a conquista de mercados est rangeiros. Precisa de um
Estado politicamente poderoso que, na sua política comercial, não tenha necessidade de
respeitar os interesses opost os de outros Estados. Necessita, em definitivo, de um Estado fort e
que faça valer seus int eresses financeiros no exterior, que entregue seu poder político para
extorquir dos Estados menores vantajosos contratos de fornecimento e tratados com erciais. Um
Estado que possa intervir em toda part e do m undo para convert er o mundo int eiro em área de
investiment o para seu capital financeiro” . 256 O conceito de Estado modificou-se para
acrescentar o papel de “ agregador” de sociedades inferiores ou atrasadas, para “ ajudá-las em
seu desenvolvim ent o” .
256
Idem .
257
V. I. Lênin. Imperialismo, Et apa Superior do Capit alismo, ed. cit .
141
que a diferença, o excedent e, seja embolsado por uma det erminada classe, como ocorre em
geral com o intercâmbio ent e capital e trabalho” .
No extrem o oposto, a teoria do “ capital t ransnacional” sustentou que a exploração das nações
at rasadas pelas potências capit alistas seria ilusória, em função da emancipação das empresas
multinacionais de toda base nacional: “ Os dados simplesm ente não mant êm as teses de Lênin.
O capital não corre avassaladorament e dos países capit alist as maduros para os países em
desenvolvim ento. Pelo contrário, os investimentos est rangeiros são crescent em ent e realizados
entre os próprios países desenvolvidos. Isto se passa de acordo com a lógica, pois se nos
recordarmos das razões que Lênin apresenta para a exportação de capital, veremos que elas
não se mantêm... Por mais que fossem important es os países atrasados para absorver a
expansão descont rolada e desproporcional deste ou daquele ramo ou setor da economia, no
ápice da supremacia industrial britânica e do laissez faire clássico, o seu papel é secundário [na
era cont em porânea]” .258
Trata-se da cont raposição de uma análise conjuntural a uma caract erização estrutural: os
benefícios extraordinários monopólicos não anulam - podem até acent uar - a exploração dos
trabalhadores metropolitanos, mas o crescimento do fluxo de capitais entre países imperialistas
não elimina, mas acentua, a exploração das regiões atrasadas. A industrialização das regiões
at rasadas não diminuiu a dependência delas em relação às metrópoles, aumentando também
sua exploração, devido à crescent e dependência tecnológica (industrial) e financeira, o que é
comprovável através do aum ento das remessas de lucros e da dívida externa. A
internacionalização crescent e do capital nos países metropolitanos teve por base uma
acumulação sem precedent es de benefícios monopólicos originados na exploração das nações
at rasadas, que criaram a miragem de “ trust es do Estado monopolista (que) deram lugar não só
a cartéis internacionais como a negócios multinacionais (transnacionais) que, no que diz respeito
aos recursos da produção e, em menor grau, à propriedade, não estão mais ligados aos países
de origem e est ão fora de cont role dos Est ados imperialistas mais poderosos” . 259
258
M ichael Kidron. Capit alismo e Teoria. Lisboa, Iniciat ivas, 1976.
259
Er nest M andel. Trot sky como Alt ernat iva. São Paulo, Xamã, 1996, p. 36.
260
V. I. Lênin. The Taylor syst em - man’s enslavem ent by t he m achi ne. Collect ed Works. Vol. 20, M oscou,
Progress, 1972. Ant onio Gramsci apont ou que a “ racionalização t aylorist a” apont ava para prof undas
mudanças psicofísicas do t rabal hador além dos m uros da f ábrica, “ um fenôm eno mórbido a ser
com bat ido” , per gunt ando-se se seria possível “ fazer com que os operár ios como massa sofressem t odo o
142
trabalho nas fábricas era contraditória e incompatível com a anarquia do regim e de produção
capitalista.
John Hobson, Rudolf Hilferding e Karl Kautsky consideraram o imperialismo como uma distorsão
do aut êntico capit alismo, devida ao domínio polít ico da component e mais reacionária da classe
dominant e burguesa. Suas análises e propostas buscavam influenciar o segm ento esclarecido
da classe dirigent e no sentido de descartar o imperialismo em favor de um desenvolvim ent o
econômico (capitalista) sadio e pacífico. A Índia, segundo calculou Hobson em finais do século
XIX, fora o destino de 20% dos investim ent os ext ernos britânicos em todo o mundo. A expansão
do investimento fez com que, no último quart el do século XIX, a frent e int ernacional das guerras
coloniais inglesas se estendesse. Em 1879, Inglaterra empreendeu a segunda guerra afegã. Na
China, os ingleses estabeleceram-se em Xangai. Na África, graças às iniciativas de Cecil Rhodes,
alimentou-se cada vez mais o sonho de construir um império inglês inint errupt o entre El Cairo,
no Egito, e a Cidade do Cabo, na África do Sul, o que foi parcialment e conseguido depois da
Conferência de Berlim (1884-1885), que legitimou a anexação inglesa de todos os t erritórios ao
processo de t ransformação psicof ísica capaz de t ransformar o t ipo médio do operário Ford no t ipo m édio
do operário moder no, ou se ist o seria impóssível, já que levaria à degeneração física e à det erioração da
espécie” .
261
Norbert o Bobbio realçou a ligação ent r e a “ concepção m arxist a do Est ado” e a t eoria leninist a do
imperialismo: “ Com efeit o há um vínculo muit o est r eit o ent re a t eor ia do Est ado, como inst rum ent o do
domínio de classe nas r elações int er nas e a t eoria econômica do imperialismo nas r elações int er nacionais.
As duas t eorias est ão associadas posit ivament e, pois ambas se baseiam na t ese cent ral do primado do
econômico. M as est ão ligadas t am bém, e ainda mais num sent ido negat ivo, no que concerne à crít ica da
sociedade exist ent e. Para as duas os aspect os negat ivos do Est ado (dit adura int ernam ent e; imperialismo
ext er nam ent e) depender iam de uma só causa det erminant e - a divisão da sociedade em classes
ant agônicas, os propriet ár ios dos meios de produção e os que só dispõem de força de t rabalho. Não
import a se est amos considerando a sociedade nacional ou int ernacional” . O reducionismo se refere mais
à ideia de Bobbio do que as ideias do pr óprio Lênin.
143
longo desse corredor (Egito, Sudão, Quênia, Rhodesia - que tomou seu nome do paladino do
Império Brit ânico na África - e Transvaal). A expansão colonial-militar inglesa, porém, já suscitava
reações negativas na metrópole, incluídas as dos set ores burgueses que preferiam uma form a
menos custosa, em todos os sentidos, e mais segura de garant ir os lucros advindos dos
investiment os ext ernos e do com ércio internacional: Hobson (membro do partido liberal inglês)
propôs, em finais do século XIX, aos círculos dirigent es ingleses, a retirada do país da Índia.
Para Lênin, ao contrário, o imperialismo era uma fasse necessária do desenvolvim ent o
capitalista uma vez que este atingira sua fase monopolista. A síntese das caract erísticas do
imperialismo (exploração das ações atrasadas, t endência para as guerras mundiais e para a
militarização do Estado, aliança dos monopólios com o Estado, tendência geral à dominação e à
subordinação da liberdade) levou-o a definir a nova et apa histórica como época de “ reação em
toda a linha e exacerbação da opressão nacional” . O enorme desenvolvim ento das forças
produtivas, a concentração da produção e a acumulação sem precedent es de capitais tornavam
a produção cada vez mais social nos ramos econômicos decisivos. Isso entrava cada vez mais em
contradição com a propriedade privada dos meios de produção nas mãos de um número cada
vez menor de capitalistas, o que marcava o sintoma da t ransição para um novo regim e social de
produção, o socialismo. A tendência para a guerra mundial não era, portanto, mais aleatória do
que a própria crise econômica. A contradição entre o desenvolvim ento mundial das forças
produtivas capitalistas e o est reito marco dos Estados nacionais era a forma em que a crise
capitalista assumia dimensões mundiais.
O caráter mundial das forças produtivas capit alistas, e o caráter nacional da organização de suas
relações de produção (o Estado Nacional) constituíam a contradição incontornável do modo de
produção capitalista, posta em primeiro plano na era de seu declínio histórico: “ Os t rês móveis
da política de conquista dos Estados capitalistas contemporâneos são o agravamento da
concorrência pela posse dos mercados de bens manufaturados, dos mercados de mat érias
primas e das esferas de investim entos de capital — eis a que chegou o novo desenvolviment o
do capitalismo e sua transformação em capitalismo financeiro. Ora, essas três raízes da polít ica
do capitalismo financeiro constituem, no fundo, nada mais que três aspectos do m esm o
fenômeno: o conflito entre o desenvolvimento [mundial] das forças produtivas e a limitação
nacional da organização produtiva ” . 262 A cont radição não dizia respeito apenas aos “ pequenos
Estados” (Kleinstaaterei ), mas, sobretudo, aos grandes: a guerra “ europeia” seria, por isso, a
primeira guerra mundial . A tendência básica da crise do capital (a sobreprodução de
mercadorias e capit ais) tendia a ser contrabalançada pela exportação de capitais: com o
entrelaçam ento crescent e entre monopólios e Estado, a concorrência capit alista, no plano
mundial, se transformava numa concorrência entre Est ados e na sua decorrência, a guerra.
Na síntese de Trotsky: “ A guerra explodiu, seguida pelo seu cortejo de violentas convulsões,
crises, catástrofes, epidemias e ret ornos à barbárie. A vida econômica encontrou-se num beco
sem saída. Os antagonismos de classe agravaram-se e apareceram a nu. Um após outro, viram-
se explodir os mecanismos de segurança da democracia. As regras elem entares da moral
revelaram-se ainda mais frágeis do que as instituições democráticas e as ilusões do reformismo.
A mentira, a calúnia, a corrupção, a venalidade, a violência, a coerção, o assassinato, assumiram
proporções nunca vistas. Os espíritos simples, confundidos, acharam que se tratava de
consequências momentâneas da guerra. Na realidade, esta manifestação era, e continua sendo,
a manifestação do declínio do imperialismo. A decadência do capitalismo t raz consigo a da
sociedade moderna, com suas leis e sua moral” .263
262
Nikolai Bukhárin. A Economia M undial e o Imperialismo, cit.
263
Leon Tr ot sky. M oral e Revolução. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978 (1º ed. 1938).
144
traço de progressividade hist órica, com consequências nefastas para os países atrasados:
“ Enquanto destrói a democracia, nas velhas metrópoles do capital, o imperialismo impede, ao
mesmo t empo, a ascensão da democracia nos países atrasados. O fato de que, em nossa época,
nem uma só das colônias ou semicolônias haja realizado uma revolução democrát ica -sobretudo
no campo das relações agrárias- se deve por complet o ao imperialismo, que se convert eu no
principal obstáculo para o progresso econômico e político. Expoliando a riqueza natural dos
países atrasados e restringindo deliberadam ent e seu desenvolvim ento industrial independent e,
os magnatas monopolistas e seus governos concedem, simultaneament e, seu apoio financeiro,
político e militar aos grupos semifeudais reacionários e parasitas dos exploradores nativos. A
barbárie agrária, artificialmente conservada, é hoje em dia a praga mais sinistra da economia
mundial contemporânea. A luta dos povos coloniais por sua libertação, passando por cima das
et apas interm ediárias, se transforma na necessidade da luta contra o imperialismo e, desse
modo, se põe de acordo com a lut a do proletariado nas metrópoles. Os levant es e as guerras
coloniais fazem oscilar, por sua vez, as bases fundamentais do mundo capitalista mais do que
nunca, e fazem m enos possível do que nunca o milagre de sua regeneração” . 264
264
Leon Tr ot sky. O M arxismo de Nosso Tempo. São Paulo, Outubro, 1988 (1º ed. 1939).
145
A GUERRA RUSSO-JAPONESA
Na virada para o século XX o Império Russo passava por uma crise política. Desde a emancipação
dos servos em 1861 o país vivia uma rápida t ransição para o capitalismo. Os servos passaram a
ter o direit o de comprar as terras onde trabalhavam; entret anto, o ressarcim ento devido aos
seus senhores, como compensação pelos direit os recém-adquiridos, levaram-nos a permanecer
na mesma situação de miséria, ou em situação ainda pior. O capitalismo russo progredia: a
construção da ferrovia transiberiana e as mudanças econômicas levadas adiant e pelo ministro
Sergei Witt e atraíram o capital estrangeiro e estimularam uma rápida indust rialização nas
regiões de M oscou, São Pet ersburgo, Baku, bem como na Ucrânia, suscitando a formação de um
operariado urbano e o cresciment o da classe média. A nobreza mais abastada e o próprio Czar
procuravam manter intactos o absolutismo russo e sua autocracia: Nicolau II reintroduziu uma
série de caracerísticas anacrônicas e obsoletas nos rituais de palácio e do próprio Estado, até em
mat éria caligráfica, retrocedendo em diversos aspect os em relação à “ modernização”
precedent e. O Czar não reunia seu Conselho de M inistros, mas despachava com cada um deles
em separado, acentuando seu controle sobre o conjunt o. Até o poderoso ministro das Finanças,
o conde Witt e, devia esperar para obter uma audiência com o autocrata: o aparelho político não
era composto por funcionários do Estado , mas por servidores pessoais do monarca, 265 uma
caract erística prevalecent e na Europa três séculos atrás, que fora abandonada e enterrada antes
inclusive da Revolução Francesa.
Diante da crise, o regime czarista buscou uma saída através de uma iniciativa bélica externa.
Impedida de continuar sua expansão territ orial através dos Bálcãs (principalment e pela pressão
da Alemanha, que possuía interesses expansionistas na mesma região) Rússia tinha concluído a
conquista da Sibéria (iniciada no século XVI) e ocupado a região da M anchúria, dirigindo também
sua atenção para a Coreia. Para o ministro da guerra do Czar, Aleksei Kuropatkin, o “ grande
vizinho oriental” , a China, causava pesadelos: os milhões de chineses poderiam ser uma
“ torrent e irresistível amarela” (sic) que poderia engolir os poucos milhões de russos brancos que
viviam na Sibéria russa. Dessa antiga preocupação derivava o pot encial envolvim ento russo em
conflitos territoriais do Extremo Orient e. Para Kuropatkin, dois soldados russos seriam o
bastante para dar conta de três soldados japoneses, tamanha a superioridade civilizacional dos
eslavos sobre os asiát icos. O Japão, por sua vez, depois da bem sucedida modernização
econômica empreendida com a “ Restauração M eiji” (1868), pretendia consolidar sua
hegemonia no Extremo Orient e, e entrou em conflito com Rússia pela região da M anchúria, um
at rito que levaria à guerra entre os dois países.
“ Um espírito patriótico com tons racistas tomou conta da sociedade liberal. O príncipe S. N.
Trubetskoi, célebre professor de filosofia na Universidade de M oscou, 266 argumentou que a
Rússia estava defendendo toda a civilização europeia contra ‘o perigo amarelo, as novas hordas
de mongóis armados pela tecnologia moderna’. Os líderes acadêmicos da Universidade de Kiev
descreveram a guerra como uma cruzada cristã contra os ‘mongóis insolentes’ . M esmo o
marxist a legal Struve sent iu-se compelido a ceder ao espírito patriótico, incit ando seus
seguidores a se reunirem em prol da nação e suas forças armadas ao mesmo t empo em que
continuava a se opor à aut ocracia. Os zemstvos regionais foram ainda muito mais longe em seus
esforços pat riót icos” . 267 O liberalismo russo mostrava suas limitações decisivas. O
265
No que aut ores como Orlando Figes e Adam B. Ulam vir am uma causa principal da revolução russa,
reduzindo est a apenas à sua dimensão polít ica.
266
Sergei Trubet skoi era um linguist a do “ Círculo de Praga” ; um dos criadores, junt o com o t ambém russo
Roman Jakobson, da linguíst ica est r ut ural.
267
Orlando Figes. Op. Cit ., p. 227.
146
socialpatriotismo, do seu lado, antecipou atitude semelhante de seus pares ocidentais em 1914,
uma lição que os marxistas russos incluíram em seu acervo político.
A lição da história foi amarga e decisiva. Transcorrida entre 1904 e 1905, a guerra russo-japonesa
foi um dos conflitos mais sangrentos do século XX, com 300 mil mortos (só a batalha terrestr e
de M ukden fez mais de cem mil mort os, havendo estimativas ainda maiores), e teve
consequências decisivas no fortaleciment o do imperialismo nipônico, assim como na eclosão da
revolução russa, iniciando a conta regressiva do plurissecular regim e czarista. A guerra russo-
japonesa foi também o primeiro conflito relatado nos jornais diários de todo o mundo, que
recebiam informações via Austrália e Rússia pelo telégrafo, transmitidas pelos novos cabos
submarinos. No plano informat ivo, doravante decisivo na formação da “ opinião pública” , a
rebelião dos boxers na China, a guerra dos boers em África do Sul e, sobretudo, a guerra russo-
japonesa, constit uíram o palco que tornou famosos os correspondent es de guerra e deu um
novo papel à produção da informação.
Depois da vitoriosa guerra contra a China de 1898, o imperialismo japonês continuou a crescer
aceleradam ent e. Lênin o qualificou de “ imperialismo militar-feudal” , pois nele o capitalismo
monopolista se inseria numa rede de relações feudais pré-capitalistas. O mercado consumidor
nacional era exíguo, obrigando o país a lançar-se na luta por novos mercados no exterior. Os
interesses japoneses na Ásia esbarravam na presença russa na M anchúria e na Coreia. O Japão
com eçou a se preparar para a guerra contra o império czarista. Em 1900, part icipou do
esmagam ento da revolta dos boxers na China. Em 1902, fez uma aliança com a Inglaterra, com
uma cláusula expressa de que numa event ual guerra contra a Rússia, o Japão seria auxiliado
pelos ingleses, caso out ra potência europeia se imiscuísse. A Rússia já estava present e na China
(M anchúria) e na Coreia desde o fim da guerra sino japonesa. O que estava em jogo no
cont encioso russo com a Inglaterra eram " as Índias" , a joia da coroa britânica cobiçada pela
Rússia imperial. A disputa durara um século e acabou em 1907, quando Inglaterra e a Rússia,
enfraquecida pela guerra russo-japonesa e a revolução de 1905, entenderam-se sobre a divisão
de suas zonas de influência, com a criação de um Estado amortecedor entre elas: o Afeganistão.
Na convenção de São Pet ersburgo em 1907 a Rússia concordou com que o Afeganist ão ficasse
fora de sua esfera de influência. No mesmo ano, Grã-Bretanha e Rússia dividiram a Pérsia entre
si. Os britânicos ficaram com o sul e os russos com o norte. Uma faixa entre as duas áreas foi
declarada de autonomia iraniana, limit ada pelos interesses estrangeiros.
147
O Japão fora obrigado pela pressão ocidental a abdicar de suas conquistas na China da guerra
de 1895. As regiões da China com presença russa pareciam o ponto ideal para continuar a
expansão imperial. A M anchúria, com seus vastos recursos minerais inexplorados, se tornou o
foco da rivalidade russo-japonesa. Em 1903, o Japão já tinha uma important e força naval, tendo
acrescentado à sua marinha de guerra quatro novos couraçados, 16 cruzadores, 23
contratorpedeiros, além de numerosas unidades pequenas. Queria obter o domínio da Coreia e
conquistar a península de Kw uantung com a cidade fortaleza de Port Arthur que lhe tinha sido
retirada pelo Tratado de Shimonoseki, no fim da guerra sino-japonesa. Loshun, chamada de Port
Arthur pelos russos, ao contrário de Vladivostok, mais a Norte e a oriente da península coreana,
era um porto aberto todo o ano; o único de águas quentes, com saída oceânica, para o imenso
império cont inental da Rússia.268
Os russos tinham em Port Arthur e Vladivost ok set e couraçados, quatro cruzadores couraçados,
catorze cruzadores pesados e ligeiros, duas canhoneiras couraçadas e 27 contratorpedeiros e
torpedeiros de alto mar. A guarnição de Port Art hur era de 38 mil homens e mais de 90 mil
militares russos se encontravam na fronteira com a M anchúria. M as lhes faltava quase t udo:
espingardas, munições e comida. A estrada de ferro transiberiana tinha ainda uma só via e um
intervalo de 100 milhas no lago Baikal, que tinha de ser atravessado de barco. Um batalhão
completo levava mais de um m ês para chegar ao Extrem o Orient e russo. Uma empresa russa
iniciara a exploração e corte de árvores a sul do rio Yalu, dentro da zona que os japoneses
consideravam de sua influência. O próprio Czar Nicolau II era um import ante acionista da
companhia. Pouco ant es do início da guerra, o governo japonês t entou negociar com a Rússia
uma delimitação de zonas de influência no Extremo Orient e. A M anchúria, com a Península de
Kw uantung e Port Arthur, ficariam sob a influência russa, enquanto a Cor eia, ao sul do rio Yalu,
passaria para a esfera japonesa. A propost a não foi aceita.
Em 1904, antes que os russos terminassem o ramal da estrada de ferro transiberiana que
chegaria até Port Arthur, os japoneses atacaram a posição russa. A 6 de janeiro, um pequeno
vapor japonês atracou em um dos canais de Port Art hur, para embarcar o pessoal consular e
informar-se das posições dos navios russos. A 13 de janeiro, o Japão exigiu da Rússia o
reconhecim ento da integridade da M anchúria, recebendo como resposta o silêncio de São
Pet ersburgo. O embaixador japonês na Rússia entregou um ultimato e declarou cortadas as
relações diplomáticas entre os dois países, enquanto a esquadra japonesa já estava no mar. O
almirante russo St ark t inha pedido ao governador para enviar alguns cruzadores em exploração
para verificar se havia movimentos de navios de guerra japoneses. O general-almirante Alexeiev
limitou-se a autorizar a saída de dois torpedeiros para vigiarem ao largo, mas sem fazerem um a
verdadeira exploração. Para restaurar a moral do regime e tentar acalmar as crescentes revoltas,
o Czar Nicolau II resolveu disputar militarmente a região. A posse japonesa da península de
Liaotung (incluído Port Arthur) era um golpe para as aspirações da Rússia na M anchúria. M as
não era só a Rússia que estava preocupada com o domínio crescent e dos japoneses na China. A
chancelaria de São Petersburgo foi capaz de convencer a França e a Alemanha acerca do “ perigo
japonês” na região (invocando, claro, os próprios interesses imperialistas das duas nações
ocidentais). O Japão, ao contrário, não tinha aliados externos e, com a ameaça de uma
intervenção militar estrangeira, foi convencido a fazer concessões: em troca de um aum ent o da
indenização chinesa obtida em 1895, devolveu a península de Liaotung.
268
A Rússia de 1904 t inha mais de 145 milhões de habit ant es, e est endia-se desde a Polônia ao Est reit o
de Behr ing, incluindo a Finlândia, os países bált icos, a Ucrânia, Bielorrússia, M oldávia e vários out ros
países orient ais. Os japoneses, por sua vez, não eram mais de t rint a milhões, seu t errit ório er a uma ínfima
part e do russo.
148
usada contra aquele. Pela incapacidade de pagá-la, a China aceitou a “ colaboração” russa. Em
troca, a Rússia poderia construir a est rada de ferro transiberiana pela M anchúria, bem com o
proceder à instalação de um exército de prot eção na região. Estavam criadas as condições para
o domínio russo da China do Norte. O Japão ficou ressentido com a intervenção ext erna das
potências em “ sua área” . Grã-Bretanha não part icipou da pressão feit a ao Japão para devolver
suas conquistas territoriais, pois começava a ver que o Japão podia ser seu aliado contra a Rússia
no Extremo Orient e. Grã-Bretanha observava o avanço da Rússia em direção do Sul, através da
Ásia Central, e via com receio sua aproximação ao subcontinent e indiano. Ao longo das
fronteiras afegã e persa, os ingleses viam ameaçados seus interesses. A aliança anglo-japonesa
mat erializou o fim do isolamento ext erno da Grã-Bretanha e do Japão.
O tratado defensivo entre ambos os países fora assinado a 30 de janeiro de 1902 em Londres, e
publicado dez dias mais t arde. Surgia assim uma política para o Extremo Orient e em que os
concorrent es imperialistas da Europa – os Estados Unidos e o Japão, apoiando-se na Grã-
Bretanha, manifestavam a sua vontade de part ilhar os mercados com erciais mundiais e as
vantagens econômicas com as potências do velho continent e. As atividades da Rússia na
M anchúria ameaçavam também a posição predominante que Inglaterra detinha no comércio da
China. A abstenção inglesa no conflito russo-japonês foi determinant e na opção do Japão em
escolher a via militar para travar o expansionismo russo na M anchúria, deflagrando a guerra,
que não só influiria no equilíbrio de poderes entre as potências internacionais dominant es,
como serviria de ensaio para um t ipo de conflito milit ar que, dotado de novas tecnologias,
eclodiria mais tarde na Europa com combates que produziram milhões de mortes. A aliança
anglo-japonesa significou também uma estreita parceria técnica e táctica. No domínio técnico,
nas transmissões sem fios, a tecnologia fornecida pelos britânicos constituiu o equipamento
standard introduzido no exército japonês ant es da guerra, com permanente at enção de
observadores navais britânicos a bordo dos navios de guerra japoneses.
Na noite de 8 para 9 de fevereiro, sem qualquer declaração de guerra, o Japão at acou a esquadra
russa em Port Arthur. No dia seguinte afundou dois navios russos em Inchon, na Coreia. Apesar
das elevadas perdas russas, a frota russa continuava a constituir uma ameaça para o Japão, que
a bloqueou inicialment e para que os japoneses pudessem transportar seus exércitos para a
península coreana. Est e desembarque foi o início de uma operação ofensiva terrestre em
direção a Norte que foi obrigando os russos a sucessivas retiradas. As doutrinas propostas pelo
Almirante Fisher para derrotar a frota russa do M ar Negro com torpedeiros foram usadas pelos
japoneses no ataque surpresa a Port Arthur. No início do conflito com o Japão, Rússia t inha o
maior exército em armas do mundo - 1.350.000 homens - mas a maior parte do efetivo militar
estava na Europa. No Extremo Orient e, ao contrário, só t inha 98.000 homens mais 24.000 tropas
locais, e 198 peças de artilharia.
O Japão, muito mais próximo do teatro de operações bélicas, tinha um exército de 375.000
hom ens com 1.140 peças de artilharia e 147 metralhadoras. A marinha de guerra da Rússia era
muito maior do que a do Japão, mas estava dividida entre o M ar Báltico, o M ar Negro e o Oceano
Pacífico, enquanto a frota naval do Japão estava concentrada nas suas águas territoriais. O
tempo que cada uma dedicava ao treino viria a ser det erminante nos result ados. Os navios
russos passavam pouco tempo no mar e dedicavam poucas munições ao treino das peças de
bordo. A marinha japonesa, sob a instrução britânica, passava muito mais tempo no mar e
treinava com mais intensidade. Os marinheiros japoneses t inham nascido na cost a ou perto
dela, muit os eram pescadores de baleias e at é mesmo piratas experim ent ados.
O ataque nipônico foi feito por vários torpedeiros na noite escura. O couraçado russo Tsarevitch,
um navio de const rução francesa que deslocava 12.915 toneladas, armado com quatro peças de
305 m m, 12 de 152 mm e 40 outros canhões de artilharia secundária, além de quatro tubos
lança-torpedos, foi atingido por um torpedo na zona do leme, fazendo entrar muita água que
fez o navio inclinar-se para bombordo. Só depois do cruzador Retw isan ser torpedeado é que os
149
treze navios da esquadra russa começaram a abrir fogo em resposta ao ataque surpresa. No dia
seguint e surgiu no horizonte o grosso da moderna esquadra japonesa do almirante Heihachiro
Togo. As peças de 305 mm dos novos couraçados M ikasa, Shikishima e Hatsuse, no entanto,
tinham um alcance inferior ao da artilharia de costa da fortaleza de Port Arthur.
Após os primeiros ataques, a esquadra japonesa passou a bloquear Port Arthur, sem se
aproximar muito por causa das minas russas. O novo comandant e da M arinha russa, almirante
M akarov, encontrou uma esquadra com bons navios, mas com uma tripulação desqualificada e
sem domínio das evoluções t ácticas. A 10 de março travou-se o combat e mais violento, os
torpedeiros russos atacaram a primeira divisão de cont ratorpedeiros japoneses. A chegada da
segunda divisão japonesa proporcionou uma forte superioridade ao Japão. O seu navio
Steregutchi, de 220 toneladas, estava armado com dois tubos lança-torpedos e art ilharia ligeira.
A esquadra do almirante japonês Deva tinha entretanto chegado à distância de tiro, os russos
retiraram-se então para a zona de abrigo das suas poderosas baterias de costa, para neutralizar
navios como o poderoso couraçado Fuji, um dos orgulhos da nova marinha de guerra do Império
do Sol Nascent e. Construído nos estaleiros brit ânicos, o Fuji deslocava 12.320 toneladas, armado
com quatro peças de 254 milímetros, além de 34 outros canhões.
Houve mais confrontos bélicos, mas sem grandes resultados de parte a part e, pelo que os
japoneses com eçaram também a minar as águas ao largo de Port Arthur. Em maio, o navio-
almirante russo Petropavlosk, armado com quatro peças de 305 milímetros, chocou-se com uma
mina e afundou rapidamente, levando para o fundo do mar o almirante M akarov com 32 oficiais
e 600 hom ens da guarnição. O couraçado Probieda tam bém bat eu numa mina: os russos ficaram
reduzidos a três couraçados em estado de combat er e dois em reparação. O Czar Nicolau II
tomou nesse momento a decisão de enviar ao Orient e a esquadra do M ar Báltico, para derrotar
de vez o almirante Togo. Era uma viagem de mais de vint e mil milhas sem portos de apoio,
obrigando à frota a se abastecer no alto-mar. A ordem do Czar foi tornada pública com uma
antecedência de meses à chegada da esquadra do Bált ico ao M ar Amarelo, ficando os japoneses
avisados dos planos russos.
Pois, se para os japoneses eram claros os propósit os da guerra, para os russos não era o mesm o,
sendo o t erritório em disputa bem longínquo de seu t erritório nacional. Se para os comandant es
japoneses o dia a dia era o continuar de um espírito empreendedor dirigido por forte iniciativa
individual, começado décadas ant es e consolidado em combat e na guerra sino-japonesa, para
os russos era o arrastar de um espírito burocrático e de muito pouco arrojo. No início de
150
set em bro de 1904 os russos já tinham seu exército da M anchúria com um efetivo de 214.000
hom ens contra 170.000 japoneses, e 758 peças de artilharia contra 648. M as a contraofensiva
lançada em Shah-ho não foi decisiva e deu lugar a uma batalha de posições que se est endeu por
uma frente de sessenta quilômetros. Os japoneses decidiram então tomar Port Arthur, que
est ava bloqueado desde o início do conflito. Os russos ainda tentaram por duas vezes furar, por
mar, o bloqueio, sem sucesso. E ainda havia o risco de uma intervenção direta da Inglaterra
junto ao Japão.
Um incidente, ou m elhor, uma trapalhada, levara ao afundam ento de navios de pesca brit ânicos
pela frota russa do Báltico, na noite de 21 para 22 de outubro de 1904. Tomados por torpedeiros
japoneses, a frota russa alvejou-os, afundando-os no M ar do Nort e. O sentimento antirrusso na
Grã-Bretanha foi de tal dimensão que quase a arrastou para a participação no conflito militar
oriental. A diplomacia britânica exigiu que os russos assumissem a culpa e compensassem os
proprietários dos navios e as famílias das vítimas. Relutant es em aceitar estas imposições, só a
vigilância por perto da frota russa pela Royal Navy, e uma pressão diplomát ica constant e,
levaram os russos a aceit ar um tribunal internacional para resolver o problema. A 2 de janeiro
de 1905, finalment e, a guarnição russa de Port Art hur rendia-se, sem deixar de reivindicar para
sua glória a responsabilidade de 60.000 baixas do lado japonês. Uma semana depois, a 9 de
janeiro, explodiria a “ primeira revolução russa” .
151
era a frota do Báltico. O exército czarista no Orient e, composto por soldados mal treinados e
desm otivados, somava 80 mil homens no início de 1904, sendo reforçado lentament e at é um
máximo de 250 mil em dezem bro de 1904.
No mar, a questão das minas era o grande problema para ambas as esquadras. Num dia de
nevoeiro, a 14 de maio, a terceira divisão japonesa perdeu os cruzadores Kasuga e Yoshimo por
abalroament o, enquanto o pequeno cruzador M ikayo foi pelos ares ao chocar numa mina. O
Hastsuse explodiu como se fosse todo ele um paiol de dinamite, enquanto o Yashima ficou tão
avariado que afundou em águas pouco profundas. Finalment e, depois de uma longa viagem de
set e meses, a frota russa do Báltico chegou, em maio de 1905, às águas japonesas. Com falta de
carvão, Rojdest vensky decidiu ir a Vladivostock, passando pelo estreit o da Coreia. Lá o esperava
a frota do almirante Togo. A 27 de maio, deu-se a batalha, perto das ilhas Tsu-Shima. A frota
russa era composta de 8 couraçados, 8 cruzadores, 9 destróieres e 13 navios auxiliares,
comandada pelo Almirante Rojest vensky. O Japão contava com 4 couraçados, 8 cruzadores, 16
cruzadores leves e 21 destróieres. Com navios menores, mas com grande mobilidade e poder
de fogo, muito superiores aos pesados e antigos navios russos, a marinha japonesa impôs uma
derrota humilhante à Rússia. A frota russa, esgotada devido à longa viagem e equipada com um
armam ento m enos moderno, foi completam ent e esm agada; de 37 navios, 19 foram afundados
e cinco capturados. Também afundaram, com isso, as últimas esperanças políticas do czar.269
Das 38 belonaves russas que entraram no Estreito de Tsushima, na manhã de 27 de maio de
1905, um total de vinte e set e haviam sido afundadas ou capturadas pelos japoneses, no
entardecer do dia 28, com muitas perdas humanas: os russos tiveram 4380 mortos, 1862 feridos
e 5917 prisioneiros.
As perdas do Japão foram insignificantes: alguns navios pequenos afundados ou avariados, 117
mortos e 583 feridos. Pela primeira vez na hist ória moderna uma força militar asiática derrotava
o exército e a marinha de uma potência imperial ocidental. Para os japoneses as vitórias de 1904,
especialment e a batalha naval de Tsu-Shima, fizeram daquele um ano de milagres. O vencedor
de Tsushima, o almirante Togo, retornou a Tóquio no aniversário da vitória inglesa em Trafalgar.
M as, se a batalha de Tsu-Shima foi decisiva no mar, o mesmo não se pode dizer de nenhum a
das batalhas travadas em terra. O Japão foi o vit orioso em todas elas, mas o preço de cada uma,
em recursos humanos, financeiros e mat eriais, o aproximava a passos largos para o esgotament o
dos recursos bélicos disponíveis. No entanto, os recursos do adversário russo se esgotaram mais
rápido, sobretudo os recursos políticos. A enorm e distância do centro do império czarist a do
foco do conflito inviabilizou o envio de tropas t errestres e supriment os para o Extremo Orient e.
Ao contrário, o Japão entrou em cena pronto para uma guerra longa.
A infantaria japonesa penetrou pela Coreia e obt eve uma ressonant e vitória em Liao-Yang. A sua
marinha venceu a frota russa de Vladivostok em agosto de 1904. M al preparado e mal
comandado, o exército russo estava em grande part e composto por recrutas provenient es das
regiões orientais do Império Czarista. Os russos subestimaram os japoneses (os ocidentais em
geral subestimavam os orientais), e ficaram surpresos ao vê-los chegarem rapidament e à
península de Liautum, e fazerem o cerco a Port Arthur, por mar e t erra. O forte de Port Arthur
resistiu por onze meses, e antes que chegasse o reforço da frota russa do Báltico, o general
alemão St oessel (um mercenário que comandava as tropas russas) ent regou a base russa aos
japoneses em janeiro de 1905. A Batalha de Yalu pôs 40 mil japoneses frent e a set e mil russos,
que prot egiam o sul da M anchúria. Por terra, como vim os acima, o exército russo fora derrotado
em M ukden pela infantaria japonesa em março de 1905. Na guerra em terra, 80 mil soldados
russos mal equipados enfrentaram cerca de 270 mil japoneses, bem treinados e motivados. O
269
Denis e Peggy Warner. The Tide at Sunrise. A hist ory of t he Russo-Japanese war 1904-05. Nova York,
Chart er house, 1974.
152
Japão possuía a vantagem de um exército profissional moderno de 300 mil soldados, treinado
por instrutores alemães, com uma reserva de 400 mil recrutas.
No meio tempo, o visconde e embaixador plenipotenciário do Japão, Kaneko Kentaro, tinha ido
aos Estados Unidos com o objetivo de persuadir o president e Theodore Roosevelt para servir de
mediador do conflito. Depois da queda de Port Arthur em janeiro de 1905 e da batalha de
M ukden em março, o mom ent o da mediação chegou. A 20 de março Kaneko voltou a encontrar-
se com o president e Roosevelt e est e lhe transmitiu o seu desejo de at uar como m ediador no
processo de paz, que consolidaria relativamente a vitória militar do Japão. O tratado de paz foi
finalment e assinado a 5 de setembro de 1905, em Portsmout h, New Hampshire, nos EUA. Foi
reconhecido o papel principal do Japão na Coreia, a evacuação de ambos os países da M anchúria
e a devolução de Port Arthur e da península de Liaotung para o Japão. Não menos import ant e
foi a renovação da aliança anglo-japonesa por um período de dez anos. A Grã-Bretanha deu,
explicitament e, “ rédea larga” para o Japão na Coreia, salvaguardando soment e, para todas as
nações imperialistas, a possibilidade de com ércio no país. A aliança ant erior era meram ent e
defensiva; a nova aliança foi além, pois requeria a cooperação militar de ambos os países.
A solução foi de compromisso no t ocante às ilhas Sakhalin, que perfazem um arco marítimo
entre Sibéria e Japão, e que est e pret endia controlar integralm ent e. O tratado de paz também
estabeleceu o não pagamento de indenização da Rússia ao Japão. Derrotados nos campos de
batalha, os russos tiveram assim razões para est arem satisfeitos com seu desempenho na paz.
Os japoneses receberam, incrédulos e com o sentimento de terem sido traídos, os resultados
dos acordos de paz: o Japão tinha atacado vitoriosament e a frot a russa do Pacífico; os russos
sofreram uma série ininterrupta de derrotas que levaram à desocupação da M anchúria; não
havia razões para que não se estabelecesse sua condição de derrotados. Nos dez anos
sucessivos, porém, os japoneses transformaram a M anchúria meridional num país de 25 milhões
de habitant es, aos quais se juntaram 50 mil colonos japoneses. Além das vantagens conseguidas
com o t ratado de Portsmout h, ratificadas alguns meses mais tarde pelo governo chinês, o Japão
conseguiu, entre 1907 e 1913, novas concessões que lhe permitiram alargar a sua ação a zonas
situadas fora do território da “ zona da via férrea” de Port Arthur.
A consequência mais importante da guerra e da vit ória japonesa foi que, depois de séculos, pela
primeira vez um país asiático derrotara uma potência “ ocident al” em uma guerra, o que foi
considerado como o início de uma nova atitude política e da rebelião asiática cont ra o
imperialismo ocidental. O Barão do Rio Branco, embaixador brasileiro nos EUA, observou em
despacho: " A verdade é que só havia grandes pot ências na Europa, e hoje elas são as primeiras
a reconhecer que há no Novo M undo uma grande e poderosa nação com que devem contar" .
Os EUA inauguraram, com a m ediação de Theodore Roosevelt na ocasião, sua ascensão como
potência com aspirações mundiais. A guerra mudou definitivam ent e a história dos dois países
153
envolvidos: a vitória sobre a Rússia permitiu ao Japão ascender à categoria de potência mundial.
O governo japonês investiu na indústria militar; o imperialismo japonês se desenvolveu ainda
mais. O prestígio e as finanças das suas forças armadas aumentaram, mas desta vez não havia
indenizações para cust ear as despesas.
O aumento das despesas militares e dos pesados im postos decorrent es tomou impopular o
Tratado de Portsmouth no Japão; surgiram revoltas quando seu conteúdo se tomou conhecido.
A crise financeira de pós-guerra fez explodir violentas greves nas indústrias de armamentos e
nas minas. A tent ativa do Japão de conquistar o estatuto de nação poderosa, pelo contrário, foi
bem sucedida. O imperador encontrava-se agora próximo do estatuto de divindade e a sua
fotografia, de uniform e, aparecia pendurada at é nos lares mais humildes. Com as armadas
chinesa e russa ao largo no Pacífico, a marinha não teria inimigos à vista enquanto durasse a
aliança com a Inglaterra. Ao mesm o t empo, a vit ória japonesa fortaleceu as aspirações
dem ocráticas e anti-imperialist as) na Ásia, incluído o Oriente M édio; ela marcou uma virada
histórica no maior continent e do planeta. 270 Ver como o único poder constitucional asiático
derrotava à única grande pot ência europeia não constitucional criou uma nova imagem da Ásia,
o Japão vencendo o aparent em ente onipot ent e Ocidente, fazendo surgir na Ásia, o conceito de
constituição com o “ segredo da força” .
270
K. M . Panikkar.A Dominação Ocident al na Ásia. Rio de Janeir o, Saga, 1965.
154
iraniana, por sua vez, começou em dezembro de 1905, diretament e influenciada pela guerra e
pela revolução na Rússia: os opositores ao regime imperial persa sabiam que, em ouras
circunstâncias, Rússia interviria contra qualquer tentativa de derrubar ou ameaçar o governo,
mas agora a autocracia russa estava ocupada com graves problemas int ernos e ext ernos. E, na
Rússia, apesar de suas tropas terem matado 84 mil japoneses e ferido 143 mil, a derrota final foi
um humilhante desastre, ressaltando a fraqueza e decomposição int erna e internacional do
regime czarista; a guerra tinha sido apenas um parêntese da luta de classes interna, em especial
no sul do país: “ Foi de lá, de Rostov, de Odessa, da bacia do Donetz, que irromperam, desde
1902 e at é 1904, as primeiras torrent es de lava da revolução, que fizeram de todo o sul da Rússia
um mar de chamas, preparando assim a explosão de 1905” , lembrava Rosa Luxemburgo num
text o de 1917. E a revolução, finalmente, acont eceu.
155
A REVOLUÇÃO DE 1905 E SUAS CONSEQUÊNCIAS
A crise social e política russa se agravou depois da derrota na guerra russo-japonesa. A curva das
greves foi ascendent e de 1904 a 1905, período em que passaram a predominar as greves
políticas sobre as econômicas (resolvendo, de passagem, o debate sobre o “ economicismo” no
interior do POSDR). O fracasso da Rússia na guerra evidenciara a completa incompet ência militar
do governo czarista e o estado deplorável de seu exército, reflexos do total anacronismo de seu
regime social e político em todas as ordens e esferas. A revolta de 1905 da frota do M ar Negro,
em Odessa, simbolizou, evidenciando a decrepitude e as condições revoltant es da M arinha
russa, a decrepitude de um regime: os marinheiros se revoltaram contra as condições
espantosas de vida a bordo dos navios e contra o autoritarismo dos oficiais de origem nobre. A
revolta foi momentaneam ent e vitoriosa e recebeu o apoio dos habit antes de Odessa, até ser
esmagada pelo exército de terra: o episódio, símbolo do início da revolução contra a autocracia
russa, foi celebrizado pelo filme de Serguei Eisenst ein, O Encouraçado Potemkin, marco do
cinema contemporâneo.
Sergei Alexandrovitch, o grão-duque que chefiava a Corte, ordenou à guarda do Czar que não
permitisse que os trabalhadores e suas famílias se aproximassem do palácio real e que se
dispersasse a manifestação. Entret anto, a massa trabalhadora não recuou. A guarda disparou
contra a multidão. A manifestação rapidament e se dispersou, a repressão violenta t erminou
num massacre que custou cent enas de mort es, incluídas mulheres, velhos e crianças: “ Uma
época da história russa havia concluído abruptament e e uma revolução começara... As camadas
menos preparadas e mais atrasadas da classe operária, que acreditavam ingenuament e no Czar
e desejavam com sinceridade entregar pacificam ent e “ ao próprio czar” as reivindicações do
martirizado povo, t odas elas receberam uma lição da força militar dirigida pelo Czar ou pelo seu
tio, o grão-duque” .271 A população indignou-se com a atitude do Czar que, até então, era visto
271
V. I. Lênin. 1905 . Jornadas revolucionárias. São Paulo, Edit ora Hist ória, 1980.
156
como alheio e desinformado em relação ao sofrimento da população. O episódio, conhecido
como o " Domingo Sangrento", foi o estopim para o início da revolução.
As classes sociais descontent es, várias e variadas, se mobilizaram para protestar. Cada setor
social tinha seus próprios objetivos, e mesmo dentro de uma mesma classe, não havia direção
política unificada. Os principais grupos descont ent es eram os camponeses; os trabalhadores
urbanos; os intelect uais liberais, que reivindicavam direitos civis; e m embros do exército e das
nacionalidades minoritárias, que reivindicavam liberdade e autonomia cultural e política. A
revolução se est endeu por todo o ano, atingindo picos de agitação no início do verão e no
outono, em m eados do ano, culminando em outubro com a greve geral. Arrendatários queriam
aluguéis mais baixos; trabalhadores cont ratados exigiam melhores salários; camponeses
queriam t erras; pequenos proprietários agrários queriam mais terras. As ações no campo
variaram desde ocupações de t erra, algumas vezes seguidas de violência e incêndio, pilhagem
das grandes propriedades, caça e desmatamento em áreas proibidas. Na região de Samara os
camponeses criaram sua própria república, que foi sufocada rapidament e por tropas do
governo. A questão do poder estava em jogo, sinal inequívoco de uma situação revolucionária.
O nível de animosidade de cada região era diretament e proporcional às condições dos
camponeses. Os camponeses de Livland e Kurland atacaram e queimaram as propriedades dos
senhores, enquanto outros, que viviam nos distúrbios de Grodno, Kovno e M insk, com melhores
condições de vida, foram menos violent os. No t otal, 3.228 rebeliões agrárias necessitaram de
intervenção militar para restaurar a “ ordem” , e os proprietários sofreram prejuízos alegados de
aproximadament e 29 milhões de rublos. M as o epicent ro da revolução localizou-se nas cidades.
Os trabalhadores urbanos usaram sistemat icam ent e a greve como instrum ento de luta. Houve
imensas greves em São Pet ersburgo, imediatam ent e após o Domingo Sangrento. M ais de
400.000 trabalhadores est avam parados na cidade no final de janeiro de 1905.
157
mortos em 13 de janeiro de 1905 e alguns dias depois, em Varsóvia, cem grevistas foram
alvejados nas ruas. Em fevereiro havia greves no Cáucaso e, em abril, nos Urais e mesmo além.
Em março todas as instituições acadêmicas foram obrigadas a fechar as portas pelo restante do
ano, fazendo com que muitos estudant es radicais se juntassem aos trabalhadores grevist as.
Uma greve dos ferroviários, no dia 8 de outubro, rapidament e se transformou em greve geral,
em São Petersburgo e em M oscou. A 13 de outubro, mais de dois milhões de trabalhadores
estavam em greve e praticament e não havia mais estradas de ferro em funcionam ento.
O POSDR já t inha treze mil membros na Rússia. No Congresso de Londres de set embro de 1905,
diante da situação revolucionária, Lênin empreendeu a batalha pelo recrutam ent o para de
operários que não eram - nem podiam ser - “ revolucionários profissionais” , mas apenas
militantes operários revolucionários, e para que eles ocupassem postos dirigentes no partido.
Os komitetchiki , dirigentes clandest inos do partido na Rússia, se opunham explicitament e a isso.
Nadeshda Krupskaïa, esposa de Lênin, relatou em suas memórias a batalha entre Lênin e Rykov,
porta-voz dos “ militantes clandestinos” : “ O komitetchiki era um homem cheio de segurança...
não admitia nenhuma democracia no interior do partido... não gostava de inovações” . 272 Lênin
mal conseguiu se conter ouvindo dizer que não havia operários capazes de formar part e dos
comit ês do POSDR: propôs incluir obrigatoriamente neles uma maioria de operários (a propost a
foi derrotada no Congresso). E, a par dos komitetchiki , existia o que Pierre Broué chamou de “ o
espírito de seita que deixou os bolcheviques longe dos primeiros soviets, nos quais muitos deles
receiavam uma organização adversária” .
Pois a revolução de 1905 exprimiu sua originalidade e seu carát er de classe pela formação dos
soviets ou conselhos operários, organismos eleitos pelos trabalhadores nos próprios locais de
trabalho. Seus delegados eram em todo mom ento revogáveis pelos seus eleitores. Sua base
política objetiva era que, dada a amplitude da luta e a substituição das greves econômicas pelas
políticas, surgira a necessidade de se criar uma organização operária capaz de centralizar e dar
voz a todas as reivindicações populares: a ideia de se criar conselhos operários como forma de
coordenar as várias greves nasceu durante as reuniões de t rabalhadores, inicialmente no centro
têxtil de Ekaterinoslav. Pouco tempo depois nasceu o soviet de São Petersburgo, cujo primeiro
presidente foi Khrustalyov-Nossar (1877-1918), um advogado de ideologia liberal.273 Durante a
greve geral, o conselho passou a ser conhecido como o “ Soviet de Representant es Operários” .
Sua reunião constituinte acont eceu no prédio do Instituto Tecnológico de São Pet ersburgo e
contou com quarenta representantes. O soviet da cidade chegou a ter de 400 a 500 membros,
eleitos por aproximadamente 200 mil trabalhadores, represent ando cinco sindicatos e 96
fábricas da região. Surgido no âmbito de uma nação atrasada, como uma organização
revolucionária especial, com a capacidade de englobar as massas populares e de lhes t ornar
capazes de uma ação revolucionária sob a direção dos operários, o soviet era o primeiro exemplo
do desenvolvimento político combinado da Rússia.
Entrem ent es, Leon Trotsky, 274 formulador dessa ideia, volt ara do exílio europeu, acompanhado
de Helphand-Parvus, militante russo estabelecido na Alemanha, que comprou (suas habilidades
272
Nadeshda Krupskaya. M i Vida con Lênin. Barcelona, M andrágora, 1976.
273
Oskar Anweiler. Los Soviet s en Rusia 1905-1921 . M adri, Zero, 1977.
274
Leon Trot sky (1879-1940) foi, desde os inícios da sua carreira polít ica, uma figura polêmica. Nascido
Lev Davidovich Bronst ein em novem bro de 1879 em Ianovka (sul da Ucrânia), em família judaica (não
prat icant e) dedicada à agricult ura, vinculou-se ao moviment o revolucionário clandest ino da Rússia
czarist a ainda m uit o jovem. Em 1898, Trot sky foi encarcerado e, no final do ano seguint e, condenado a
quat ro anos de exílio. No cárcere de Odessa aderiu ao marxismo, mas leu pela primeira vez M arx só no
post erior exílio siberiano. Fugido da Sibéria, exilou-se em Londres, onde, a part ir de finais de 1902,
colaborou diret am ent e com o órgão da socialdemocracia, o Iskra (“ f aísca” ). Apesar da sua proximidade
com Lênin, afast ou-se dele no II Congresso do POSDR em 1903, quando ficou conf igurada a fração
bolchevique encabeçada pelo próprio Lêni n. Sua pr oximidade com a out ra f ração, a menchevique,
158
financeiras eram lendárias, e o levaram a ser moralm ent e desqualificado anos mais tarde no
socialismo internacional, quando se dedicou ao com ércio internacional de armas durant e a
guerra mundial) um jornal falido, Aurora , que se transformou num veículo de massas das ideias
e propostas revolucionárias, chegando a atingir a fantást ica tiragem, para a época, de 500 mil
exemplares diários. Essas ideias, até esse momento propriedade de círculos políticos limitados,
passaram a ser testadas na prática, que as modificou em muitos aspectos: “ A primeira revolução
russa irrompeu pouco mais de meio século após a época das revoluções burguesas na Europa e
trinta e cinco anos depois da insurreição da Comuna de Paris. A Europa já havia perdido o hábito
das revoluções. A Rússia as desconhecia completam ente. Todos os problemas da revolução se
formulavam em novos t ermos. É fácil compreender que a revolução que se aproximava
representava para nós uma massa de elem entos desconhecidos ou duvidosos. As fórmulas de
todos os grupos não passavam de hipóteses de trabalho” .275
encabeçada por Julius M art ov, foi efêmera. Em 1905, volt ou à Rússia, onde t omou part e at iva na
revolução; foi o últ imo pr esi dent e do soviet dos t rabalhadores de São Pet ersburgo. Em 1906, foi
deport ado pela segunda vez para a Sibéria; escapou novament e e, ent re 1907 e 1914, viveu com sua
segunda esposa, Nat alia Sedova, em Viena onde, de 1908 a 1912, edit ou o Pravda . Depois de desenvolver
a t eoria da revolução permanent e, aproximou-se ideologicament e dos bol cheviques, aos quais se uniria
em 1917, para ser, com Lêni n, um dos principais dirigent es da Revolução de Out ubro. Responsável pel a
sua defesa m ilitar, como organizador e chefe do Exér cit o Vermelho, em 1923 passou a organizar a
Oposição de Esquerda cont ra a nascent e burocracia st alinista. Depois de dur a bat alha polít ica foi expulso
do Part ido Com unist a, dest errado para o int erior da URSS e finalment e expulso do país (1927-1929), que
o privaria mais t arde da pr ópria cidadania. No ext erior cont inuou organizando os “ bolchevi que-leninist as”
em fração da Int er nacional Comunist a; em 1933 (depois da vit ória sem bat al ha do nazismo na Alemanha)
chamou a fundar a IV Int ernacional, declarando à Int ernacional Com unist a “ mort a para a revolução” : a
nova Int ernacional foi fundada em 1938, em Paris. Escreveu no exílio e sob perseguição suas principais
obras (Hist ória da Revolução Russa, A Revolução Traída, A Revolução Permanent e, A III Int ernacional
depois de Lênin). Encont rou finalment e (1936) t em porário ref úgio no M éxico de Lázar o Cárdenas, onde
foi assassinado por um agent e st alinist a inf ilt rado em seu ent orno, Ramón M ercader del Rio, a 21 de
agost o de 1940.
275
Leon Trot sky. A Revolução Permanent e, cit .
159
Através do jornal Aurora , seu principal redator, Leon Trotsky, ganhou, com seus artigos e seus
discursos no soviet de São Pet ersburgo, dimensões de dirigente revolucionário de massas.276
Devido a isso, quando Khrust alyov-Nossar foi preso pela polícia, Trotsky assumiu seu lugar na
presidência do Soviet de São Petersburgo, e rapidament e alterou a agenda política da
organização, transformando-a num cent ro de organização e agit ação política, do qual
participavam tam bém os partidos políticos revolucionários com represent ações designadas
pelos próprios partidos, além dos representantes dos trabalhadores e de outros grupos e
camadas sociais: ainda assim, “ mesmo quando do segundo congresso (dos soviets), a 28 de
outubro, nenhum membro dessa assembleia sabia muito bem a sua função, se eles constituíam
um comit ê central de greve ou um novo tipo de organização, semelhant e a um organismo de
autoadministração revolucionária” . 277 Foi depois da revolução que Trotsky afirmou que “ o
conselho de deputados operários nasceu para a realização de um objetivo: no curso dos
acont ecim ent os criar uma organização que represent asse a autoridade, livre da tradição, uma
organização que pudesse abarcar de uma vez por todas as massas desagregadas sem a
imposição de demasiados obstáculos organizativos, uma organização que pudesse unir as
corrent es revolucionárias no interior do proletariado e controlar por si própria uma iniciativa de
maneira capaz e automática e, o que é mais fundamental, uma organização à qual se pudesse
dar vida em 24 horas” .
Os soviets eram organism os eleitos pelos trabalhadores nos próprios locais de trabalho. O
socialista holandês Anton Pannekoek descreveu os conselhos operários na revolução de 1905:
“ Os soviets, essencialm ent e, eram simples comit ês de greve, t ais quais aqueles que aparecem
em greves selvagens. Nas oficinas, os trabalhadores se juntavam e discutiam regularm ent e no
final da jornada de trabalho, ou continuament e, o dia inteiro, em mom entos de t ensão. Eles
enviavam seus delegados a outras fábricas e aos comitês centrais, onde a informação era
trocada, dificuldades discutidas, decisões tomadas, e novas tarefas consideradas. M as aqui as
tarefas se mostraram mais abrangent es do que em greves comuns. Os trabalhadores precisavam
se livrar da pesada opressão czarista; eles sentiram que, por sua ação, a sociedade russa estava
transformando suas bases. Eles tiveram que discutir não só salários e condições de trabalho,
mas todas as questões relativas à sociedade em geral. Eles tiveram que achar seu próprio rumo
nesse campo e tomar decisões sobre questões políticas. Quando a greve se alastrou, se estendeu
por todo o país, parou toda a indústria e tráfego e paralisou as funções do governo, os soviet s
foram confrontados com novos problemas. Eles tiveram que regular a vida pública, tiveram que
cuidar da ordem e da segurança públicas, eles tiveram que providenciar os serviços públicos
essenciais. Eles tiveram que desempenhar funções de governo ; o que eles decidiram era
executado pelos trabalhadores, enquanto o governo e a polícia ficavam de lado, conscientes de
sua impotência contra as massas rebeldes. Então os delegados de outros grupos, de intelectuais,
camponeses, soldados, que vieram para se juntar aos soviets centrais, tomaram part e nas
discussões e decisões. M as todo esse poder foi semelhant e a um clarão de raio, como um
met eoro passando. Quando finalmente o governo czarista reuniu sua força militar e golpeou o
movimento, os soviets desapareceram” (grifo nosso). 278 M as, em outras condições políticas,
volt ariam, com a mem ória de 1905.
Os delegados aos soviet s eram em todo mom ento revogáveis pelos seus eleitores. Sindicalizados
ou não, politicamente organizados ou desorganizados, os proletários de Pet ersburgo, M oscou,
Kiev, Kharkov, Tula, Odessa e de outras aglomerações industriais do império criaram uma nova
forma de organização de massa. Os soviets apareceram como o contrário das assembleias
276
Pierre Broué. Trot sky. Paris, Fayard, 1994.
277
Avraham Yassour. Leçons de 1905: Part i ou Soviet ? Le M ouvement Social n o 62, Paris, janeiro-março
de 1968.
278
Ant on Pannekoek. A organização dos conselhos operários. A Revolução dos Trabalhadores. Lisboa,
Barba Ruiva, 2007.
160
parlamentares at ravés das quais a burguesia exercia a sua dominação de classe. O trabalho do
soviet consistia basicamente na impulsão das greves e na organização da vida social e polít ica
nos bairros operários, incluído o fornecim ento de suprimentos para os trabalhadores, chegando
a substituir os órgãos administrativos da autocracia czarista em bairros e cidades inteiras; fez
um apelo aos trabalhadores para que se recusassem a pagar impostos e que sacassem seu
dinheiro dos bancos. A greve geral de outubro de 1905, no entanto, ocorreu espontaneam ent e,
sem a decretação do soviet , que t entou sim organizá-la; sua tentativa de convocar uma nova
greve geral em novembro falhou.
Em 1905, o bolchevism o ult rapassou seu caráter de organização basicamente composta por
intelectuais, para passar a ser de fato um partido da vanguarda operária (o que era a proposta
e a intenção de Lênin), como o demonstrava a sua composição: quase 62% de operários (e 5%
de camponeses). O problema da atitude a ser adotada perant e os soviets afetou não só os
bolcheviques, mas todas as frações do POSDR: “ Sem atender à cooperação de muitos operários
bolcheviques nos conselhos, a posição de princípio dos órgãos dirigent es bolcheviques variava
entre uma rejeição radical e uma aceitação meio desgostosa desses ‘corpos alheios’ à revolução.
A posição dos bolcheviques com respeito aos soviets da primeira revolução era diferent e
segundo os locais e estava sofrendo t ransformações; o próprio Lênin não chegou a um juízo
definit ivo sobre seu papel e importância, apesar de ter sido o único que, entre os bolcheviques,
se esforçou para examinar a fundo esse novo fenômeno revolucionário e agregá-lo a sua teoria
e tática revolucionárias. Durante a greve de outubro os operários bolcheviques part iciparam na
formação do Conselho de Deputados Operários de Pet ersburgo, assim como os outros partidos
operários. O comitê do partido que, no início, diferenciando-se dos mencheviques, não havia
chamado à eleição de deputados, enviou seus representant es ao comit ê executivo do soviet” . 279
279
Oskar Anweiler. Op. Cit . p. 83
161
sentido de um órgão de direção política da classe operária da capital. A partir daí a maior parte
dos bolcheviques pet ersburguenses fixou abertament e a sua oposição ao soviet. Os
bolcheviques conseguiram elaborar, nos comitês federat ivos formados por representant es de
ambas as frações do POSDR uma resolução na qual se recomendava a aceitação oficial do
programa da socialdemocracia, já que organizações independent es não poderiam guiar um a
orientação política clara e, port anto, seriam perniciosas” . 280 A questão da relação entre o
partido e os órgãos das massas em luta não estava clara para os socialdemocratas russos (para
os anarquistas russos, por sua vez, a questão do part ido, da direção política unificada da classe
operária e das massas exploradas, sequer se colocava), e a experiência da socialdemocracia
ocidental, centrada já exclusivam ent e na ação parlament ar e sindical, alheia à revolução, não os
ajudava para esclarecer a questão. A própria teoria sobre a natureza da revolução russa, iniciada
como revolução política e rapidament e desdobrada em revolução social , sofreu abalos devido à
ação revolucionária do proletariado e ao nascimento dos soviets.
No Congresso do POSDR de 1905, fortem ent e influenciado pela revolução, Lênin afirmou que
“ da revolução democrática com eçaremos logo a passar, na medida mesmo das nossas forças,
das forças do proletariado conscient e e organizado, à revolução socialista. Somos pela revolução
ininterrupt a. Não nos deterem os a meio caminho” . Uma afirmação que punha Lênin pert o da
teoria da “ revolução permanent e” . M as, apesar disso, Lênin limit ava o alcançe social da
revolução. De acordo com Trotsky, ele “ queria dar a entender que, para manter a unidade com
o campesinato, o proletariado se veria obrigado a prescindir da colocação imediata das tarefas
socialistas durante a próxima revolução. M as aquilo significava para o proletariado renunciar à
sua própria dit adura. Consequentem ent e, a ditadura era, em essência, do campesinat o, m esm o
que dela participassem os operários” (grifo nosso). Citemos as palavras confirmatórias de Lênin,
pronunciadas no Congresso de Estocolmo do POSDR (de 1906) ao replicar a Plekhánov: “ De que
programa estamos falando? De um programa agrário. Quem se supõe que tomará o poder com
esse programa? Os camponeses revolucionários” . Confundia Lênin o governo do proletariado
com o governo dos camponeses? “ Não” - respondia, referindo-se a si próprio - “ Lênin
diferenciava marcadam ent e governo socialista do proletariado de governo democrático-
burguês dos camponeses” .
280
Idem .
281
Vit t orio Strada. A polêmica ent re bolcheviques e mencheviques sobr e a r evolução de 1905. In: E. J.
Hobsbawm (org.). Hist ória do M arxismo. Vol. 3, Rio de Janeiro, Paz e Terr a, 1984, p. 164.
162
dos Cadet es) se deram por satisfeitos com as promessas do Czar, deixando os operários isolados.
Terminada a guerra contra o Japão, o governo russo mobilizou as suas tropas especiais
(cossacos) para reprimir os principais focos de revolta dos trabalhadores. Assumindo o comando
da situação, Nicolau II deixou de lado as promessas liberais que tinha feito no “ M anifesto de
Outubro” . Apenas a Duma, a assembleia parlamentar de poderes ultralimitados concedida pelo
Czar, continuou funcionando, mas com poderes limitados e sob a intimidação policial do
governo.
Postos os dirigent es do Soviet em julgamento público, a defesa realizada por Trotsky das
at ividades do Soviet contra as acusações dos procuradores do Czar foi transcrita pelos jornais
russos (e do exterior), transformando Trotsky numa celebridade revolucionária cuja fama
transcendeu as fronteiras da Rússia. A revolução est ava mom entaneament e suspensa, mas
projetara uma liderança revolucionária de estatura nacional e potencialm ent e internacional.
Para cont er os ânimos ainda aquecidos, inclusive dentro da burguesia, em inícios de 1906 o
governo czarista resolveu atender (deturpando-a) uma das reivindicações que a revolução havia
posto na ordem do dia: a criação de um parlam ent o, a Duma , com uma função muito limit ada
pela sobrevivência da autocracia, que mant eve um regime totalm ent e centralizado e aut orit ário.
O POSDR, ainda assim, participou diversas vezes as eleições parlamentares da Duma para usá-
las como tribuna de agitação política, enquanto os principais líderes do part ido e de suas
diversas frações (Lênin, M artov, Plekhánov e Trotsky, fugido da prisão siberiana para a que fora
novam ent e condenado) voltavam para o exílio.
Trotsky fugiu para a Europa ocident al, onde escreveu um balanço dos acontecimentos a partir
da sua privilegiada posição de ator, contendo uma verdadeira teoria da revolução russa e da
revolução int ernacional. Trotsky comparou os três principais processos revolucionários da
Europa no último século (1789-1848-1905): “ O gigant esco esforço que necessita a sociedad e
burguesa para acertar contas radicalment e com os senhores do passado só pode ser conseguido
com a poderosa unidade da nação inteira, sublevada contra o despotismo feudal, ou com uma
evolução acelerada da luta das classes dentro da nação que se emancipa” . Em 1789 a primeira
possibilidade tinha se realizado “ na sua forma clássica: a luta mundial da ordem social burguesa
pelo domínio, o poder e a vitória indivisível dentro do marco nacional” . Em 1848, a burguesia já
era incapaz de jogar um papel compará¬vel - preferia compor com a velha ordem - e não podia
ser subst ituída nessa tarefa pela pequena burguesia ou pelo campesinato, incapazes de uma
iniciativa histórica independente. Trot sky concluía que: “ Já em meados do século XIX não se
podia resolver a tarefa da emancipação nacional pela pressão homogênea e unânime da nação
inteira. Só a tát ica independent e do proletariado, t irando forças para a luta da sua situação de
classe e som ent e dela, podia garantir a vitória da revolução” .
M as o proletariado de 1848 “ era demasiado fraco, não tinha ainda organização, experiência e
conhecim entos, O desenvolvim ento capitalista tinha ido longe o suficiente para tornar
necessária a abolição dos entraves feudais, mas não tão longe para permitir que a classe
operária - produto das novas condições de produção - se destacasse como força política
decisiva” . A revolução de 1848 fracassou, pois “ de um lado chegou cedo demais, do outro, t arde
demais” . A revolução de 1905, por sua vez, superando as limitações da de 1848, foi exatam ent e
o oposto da de 1789: “ A milícia (guarda nacional) foi a primeira palavra de ordem e conquista
de todas as revoluções, em 1789 e 1848 [mas] na Rússia, essa reivindicação não tem o menor
apoio dos partidos burgueses [pois] no coração de nossos democratas, o medo aos soldados da
autocracia foi vencido pelo medo ao proletariado em armas. A tarefa de armar a revolução recai
inteirament e sobre o prolet ariado. A milícia civil, reivindicação classist a da burguesia de 1848,
se apresenta na Rússia desde o início como exigência de armar o povo, sobretudo o proletariado.
Com isso, se desnuda todo o dest ino da revolução russa” . 282
282
Leon Trot sky. 1789-1848-1905. In: Result ados y Perspect ivas, ed. cit .
163
Para descrever essa dinâmica - uma revolução que começava como democrática e se
transformava em proletária pela ação das forças sociais em presença - Trotsky usou, como já
vimos, a fórmula de “ revolução permanent e” . Se em M arx essa fórmula descrevia a dinâmica
interna da revolução na Alemanha, após o fracasso de 1848, em Trotsky também descrevia a
dinâmica da revolução internacional, que poderia com eçar na atrasada Rússia, contrariament e
ao que pensava a maioria dos socialistas, para estender-se ao Ocident e desenvolvido: “ Pela
tarefa direta e im ediat a que ela se coloca, a revolução russa é propriamente burguesa, porque
seu objetivo é liberar a sociedade burguesa dos grilhões do absolutismo e da propriedade feudal.
M as a principal força motriz desta revolução é constituída pelo proletariado, razão pela qual,
por seu mét odo, a revolução é proletária” . Uma vez no poder, “ o proletariado no poder mostrar-
se-á ao campesinat o como a classe libertadora” , mas, “ desde o início da sua dominação, o
proletariado deverá procurar apoio no confront o entre as camadas pobres e ricas do
campesinato com a burguesia agrícola” . O destino dessa equação - a dominação política de um
proletariado minorit árío em meio a um mar de cam poneses, mas majorit ário nas cidades -
dependeria do “ entrosam ento dessa dominação política, ou seja, do destino de toda revolução
russa, com o da revolução socialista na Europa” . 283 A revolução permanente, portanto,
informava tanto a dinâmica interna como a dinâmica internacional da revolução.
Lênin sublinhou o caráter hist órico da experiência de 1905: “ Sem os três anos de formidáveis
batalhas de classe e a energia revolucionária do proletariado russo, em 1905-1907, seria
impossível uma segunda revolução tão rápida, no sentido de ter concluído a sua etapa inicial em
poucos dias. A primeira revolução (1905) resolveu profundam ent e o terreno, arrancou pela raiz
preconceitos seculares, despertou para a vida política e para a luta política milhões de operários
e dezenas de milhões de cam poneses, revelou umas às outras, e ao mundo inteiro, todas as
classes (e todos os partidos principais) da sociedade russa na sua verdadeira natureza, na
verdadeira correlação dos seus interesses, das suas forças, das suas formas de ação, dos seus
objetivos imediatos e futuros. A primeira revolução, e a época contrarrevolucionária que se lhe
seguiu (1907-1914), revelaram toda a essência da monarquia tzarista, levaram-na até o último
limite, puseram a nu toda a podridão e infâmia, todo o cinismo e corrupção da corja czarista
com esse monstro, Rasputin, à frent e, toda a brutalidade da família Románov” . 285
As polêmicas de Trotsky com Lênin se tornaram ainda mais ásperas: elas atingiram seu cume em
1912, quando Trotsky propiciou a formação do “ Bloco de Agosto” procurando reunir novam ent e
todas as frações do POSDR, ou a maioria delas, provocando a violenta reação de Lênin e os
bolcheviques, para os quais a cisão ent re revolucionários e oportunistas já tinha sido
consumada. Durant e a reação posterior à revolução de 1905, bolcheviques e m encheviques
dividiram-se em três corrent es de cada fração: os “ liquidadores” (Potressov, Zassulich), o
283
Leon Trot sky. 1905, cit .
284
Leon Trot sky. Tres concepciones de la revolución rusa. In: Result ados y Perspect iva , ed. cit .
285
V. I. Lênin. Cart as de longe. Obras Escolhidas, cit .
164
“ centro” (M artov, Dan) e os “ mencheviques de partido” (Plekhánov) entre os segundos; os
“ vperiodistas” (Bogdanov), os “ leninistas” , e os “ conciliadores” ou “ bolcheviques de partido”
(Rykov, Nogin), entre os prim eiros. Em 1906 Lênin declarou que até a revolução social, a
socialdemocracia apresentaria inevitavelm ent e uma ala oportunist a e uma ala revolucionária. A
historiografia soviét ica pós-Gorbachev t eve t endência a minimizar os desacordos Lênin-Trotsky
pré-revolução (assim como o stalinismo os exagerou até a mentira deslavada): “ Esses
desacordos, na minha opinião, não possuem muito significado quando os consideramos sob um a
perspectiva histórica. Isso compreende a quest ão da revolução permanent e que sempre foi
levada a proporções exageradas, após a mort e de Lênin. De fat o, depois de 1916, Lênin nunca
mais destacou esta questão” . O mesmo autor destacou que “ artigos de Trotsky foram
publicados em revistas dirigidas por Lênin” .286
Dois aut ores franceses afirmaram que “ at é 1914, faltava à teoria do partido de Lênin o mesm o
que à teoria da revolução permanente de Trotsky: a análise do imperialismo, época de guerras
e revoluções, era da revolução mundial do proletariado” .287 Ora, em 1914 já existiam estudos
sobre o imperialismo ( O Capital Financeiro de Hilferding, entre outros) e, logo depois, explodiu
a guerra interimperialista, os livros de Bukhárin e Lênin a respeito do imperialismo foram
publicados, mas as divergências na socialdemocracia russa continuaram. Elas haviam se acirrado
depois do “ Bloco de Agosto” (bloco “ pela unidade do POSDR” encabeçado por Trot sky, com
participação menchevique) de 1912, quando os bolcheviques se engajavam na via da construção
de um partido independente. Durant e quinze anos, Lênin e Trotsky se dispensaram, por escrito,
insultos variados (“ medíocre” , “ advogado de segunda” , disse Trotsky sobre Lênin; “ caluniador
barato” , “ tocador de balalaika” , “ amante da pose” , “ ambicioso” , revidou est e), o que Trotsky,
retroativam ente, atribuiu à imaturidade a ao “ calor” da luta de frações.
O desenvolvimento capit alista do campo russo se acelerou após 1906, quando se promulgou
uma lei possibilitando que um pequeno número de camponeses, contra a vontade da maioria,
estabelecesse, através da compra, lotes independent es nas terras comunais. A medida
significou, por um lado, a ascensão da categoria superior dos camponeses ao status de
fazendeiros capitalistas e, por outro, a proletarização de grandes massas camponesas. O efeito
dessa medida, que, ao criar uma nova camada pequeno-burguesa, visava fortalecer a camada
mais antiga de proprietários, fugiu em grande medida do esperado. Os novos proprietários,
longe de servirem de apoio aos antigos, ganhando a adesão das massas camponesas que lhe
estavam, ou deveriam estar, mais próximas, encont raram-se desde o início em estado de
hostilidade declarada em relação àqueles. As massas camponesas proletarizadas, por sua vez,
aumentaram consideravelment e a reserva revolucionária.
286
Vladimir I. Billik. In: Komsomolskaia Pravda n o 33, M oscou, agost o 1989.
287
Pierre Foulan (Pierre Fougeyrollas e Denis Collin). Int roduct ion à l’Ét ude du M arxisme. Paris, SELIO, sdp,
p. 96.
165
A questão agrária se esboçava como o fator determinante do rumo que deveria tomar a
revolução russa. Que a situação de atraso econômico do campo tivesse persistido após o
nascimento da indústria significava, não que a revolução deveria consolidar a burguesia no
poder para liquidar com os restos feudais na Rússia, mas que a revolução seria provavelm ent e
proletária, porque apenas o proletariado estava em condições de realizar a t arefa de varrer os
rest os feudais pertencent es a um período anterior ao da existência da própria burguesia. Trotsky
at ribuía à questão agrária a chave da revolução russa, enquanto produt o de um
desenvolvim ento combinado, uma combinação original de elementos atrasados com os fatores
modernos: “ A aproximação e a penetração mútua de dois fatores de natureza histórica
completam ente diferent e: uma guerra cam ponesa, isto é, um movim ento que caract eriza o auge
do desenvolvimento burguês, e uma insurreição proletária, isto é, um moviment o que assinala
o declínio da sociedade burguesa” .288 O espetacular crescimento indust rial e urbano abonava
essa perspectiva.
Rússia: indicadores econômicos 1890-1913
1890 1913 Variação
População 117.787.000 161.723.000 37,30%
População Urbana 11.774.000 18.604.000 58,01%
Produção per capita de grãos 20,60 27,88 35,34%
(rublos de 1913)
Produção industrial bruta per capita 19,16 42,91 123,96%
(rublos de 1913)
Volume de comércio per capita 34,24 72,68 112,27%
(rublos corr ent es)
Exportações per capita 5,84 9,06 55,14%
(rublos corr ent es)
Preços por atacado 76,70 100,00 30,38%
(1913=100)
Empregos na manufatura, 1.682.100 3.844.000 128,52%
mineração e ferrovias
Extensão da malha ferroviária (KM ) 30.596 70.990 132,02%
M oeda em circulação per capita 7,88 13,88 76,14%
(rublos)
Gasto orçamentário per capita 8,97 20,92 133,22%
(rublos)
Dívida pública per capita 50,14 77,18 53,93%
(rublos)
Para Trot sky, a revolução na Rússia deveria ser prolet ária , por seus métodos, ao mesmo t empo
em que burguesa , por suas tarefas diretas e imediat as – a expressão mais extrema da lei do
desenvolviment o com binado : “ Começando pela derrubada do edifício medieval podre, a
revolução levará ao poder, em apenas alguns meses, ao proletariado” . Para aqueles que só
conseguiam ent ender o papel do proletariado russo através de analogias formais, a fusão de
tarefas históricas diversas e opostas em uma única revolução era inaceitável. Para eles, apenas
a burguesia poderia realizar o caráter burguês da revolução. A combinação é um dos fatores que
explicavam a não repet ição das revoluções na sociedade burguesa, revoluções que traziam
novas etapas da sociedade burguesa e novos aspectos da consciência de suas classes, sentidos
inclusive nas regiões mais remotament e tocadas pelo capit al. O caminho percorrido pelo capital
na Europa ocidental não guardava sem elhança com o desenvolvim ento russo. Não havia
analogia possível ent re o desenvolviment o hist órico de um país capitalista de primeira linha e o
das colônias ou das nações que, sem serem colônias, recebiam do capital ext erno sua influência
det erminante.
288
Leon Trot sky. Hist oire de la Révolut ion Russe, cit ., pp. 88-89.
166
A ideia de que o destino da revolução proletária, num país atrasado, estava diretam ent e
influenciado pela revolução mundial, revelou-se o eixo da estrat égia revolucionária. Trotsky se
libertou das amarras do fat alismo econômico, ou seja, da afirmação da total dependência do
político em relação ao econômico, e da ideia de que a dominação econômica da burguesia
deveria ser seguida pela sua dominação política ant es que ambas pudessem ser superadas,
graças à percepção das implicações internacionais da expansão mundial do capital financeiro. O
caminho percorrido pelo capitalismo desde a morte de M arx exigia uma reinterpret ação das
possibilidades revolucionárias do proletariado, e da relação entre política nacional e economia
internacional. A transformação econômica da Rússia tinha sido impressionante nos anos
precedent es, com um crescimento econômico centrado principalment e na indústria, nos meios
de transport e modernos (estradas de ferro) e no emprego industrial como percentual do
emprego total. A produção industrial, o comércio em dinheiro, o emprego indust rial e os meios
de transporte e comunicação cresceram, na transição do século XIX para o XX, em ritmos que
quadruplicavam o crescim ento demográfico e duplicavam o crescim ento da população urbana.
Taxa M édia Anual de Crescimento da Produção da Agricultura, Indúst ria e Serviços na Rússia (%)
289
Leon Trot sky. Result ados y Perspect ivas, ed. cit .
167
A agricultura russa, mesmo que ainda majoritária em term os sociais, não possuía a importância
econômica ou o peso da indústria russa. A essa alt ura, a ant iga hegemonia do campo já havia
cedido lugar ao domínio econômico da indúst ria e da cidade, responsável pelo espant oso
cresciment o produtivo russo no século XIX (quase 500%, uma taxa quase equivalente à inglesa,
e muit o superior à francesa, austríaca ou italiana). As taxas de crescim ent o da agricultura e da
indústria russas, entre 1860 e 1913, estavam na média ou acima da média do padrão europeu
no mesmo período, mesmo entre os países mais avançados da Europa Ocidental. No
cresciment o econômico do país, no entanto, fazia-se sentir o peso do setor agrícola, que ainda
respondia por mais de 74% da produção total. A baixa produt ividade deste setor indicava que o
cresciment o econômico da agricultura no período não se deu por mais eficiência no trabalho,
mas preponderant ement e pela incorporação de novos trabalhadores. O atraso também se fazia
sentir na indústria russa, embora cada vez menos. Em 1887, 82,4% da produção industrial russa
era composta por produt os básicos e de baixo valor agregado; em 1900, esse valor tinha caído
para 73,4 %, e em 1908 para 71,6 %. Na virada do século XIX, a Rússia era ainda conhecida como
“ o celeiro da Europa” ; socialmente, continuava existindo um predomínio do trabalho rural sobre
o urbano.
Estrut ura Industrial Russa e Produtividade Setorial
1860
Part icipação na Força de Tr abalho 91 9 ***
1880
Part icipação na For ça de Tr abalho 74 13 13
Part icipação na Produção 66-71 14-15 20-14
Produção por Trabalhador 0.89-0.96 1.27-1.34 1.00-1.41
1900
Part icipação na For ça de Tr abalho 71 18 11
Part icipação na Produção 60-63 24-26 16-11
Produção por Trabalhador 0.85-0.89 1.33-1.44 1.00-1.41
1913
Part icipação na For ça de Tr abalho 72 18 10
Part icipação na Produção 58-60 28-30 14-10
Produção por Trabalhador 0.81-0.83 1.56-1.67 1.00-1.41
Trotsky reconhecia que a consciência socialista do prolet ariado russo estava longe de estar
“ plenam ent e desenvolvida” ; que o proletariado não estava composto int egralm ent e por
“ socialistas conscient es” , mas também rejeitava a ideia de que fosse preciso que a maioria dos
operários fosse socialista, bastava que houvesse um núcleo conscient e (com o já tinha defendido
Lênin). Trotsky alertava para o fato de que a ausência de um proletariado socialist a conscient e
também era uma caract erística das sociedades capitalistas desenvolvidas: “ De fato, não poderia
ser de outro modo, já que a própria existência do capitalismo infect a e distorce a consciência
das massas. Uma ‘regeneração moral’ completa, objetivo do socialismo, era impossível no
interior de uma sociedade não socialista; aqueles que pregavam que a natureza humana tem
que ser transformada ant es que o socialismo possa ser alcançado, faziam apenas prorrogar o
socialismo por vários séculos” . 290
290
Baruch Knei-Paz. The Social and Polit ical Thought of Leon Trot sky. Oxford, Clar edon Press, 1979, p. 126.
168
dem ocracias da Europa ocidental: “ Os textos políticos de Bernst ein acrca das convulsões que
abalavamm a Rússia foram escrit os num tom de cautela que visava fixar, no primeiro plano, uma
suposta falta de paralelo entre o ambient e revolucionário de São Pet ersburgo e a at mosfera
social alemã. No seu entender, a classe trabalhadora do seu país era incomparavelm ente mais
organizada e esclarecida do que os operários russos. De modo que em uma situação
revolucionária o proletariado alemão alcançaroa uma envergadura política ‘provavelment e
irresistível’ ” . 291 Até então desconhecidos na Europa, term os como mencheviki (minoria) e
bolcheviki (maioria) ganharam projeção, devido ao relevo internacional que a revolução
concedeu à socialdemocracia russa.
Na Europa ocidental teve ampla influência a análise de Karl Kautsky no seu livro O Caminho do
Poder , de 1907. A especificidade da revolução russa já tinha sido colocada, no entanto, pelo
socialdemocrata russo residente na Alemanha, “ Parvus” (codinome de Aleksandr Helphand). A
revolução na Rússia czarista reacendeu o debat e sobre reformismo e revolução no movim ent o
socialista internacional. A revolução russa de 1905 foi o sinal de que a era do desenvolvim ento
pacífico do capitalismo estava chegando ao fim e se fazia necessário preparar o proletariado
para os novos tempos – que exigiam uma nova tática. Começou a se constituir lentamente um a
ala esquerda da Internacional que foi encabeçada pelos bolcheviques e pela esquerda da social
dem ocracia alemã, dirigida por Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht. Durant e o período de
“ radicalização de Kautsky” , 292 o ideólogo da Internacional Socialista esteve entre os primeiros
socialdemocratas europeus a alertar acerca da significação revolucionária internacional dos
acont ecim ent os russos, a partir da guerra russo-japonesa de 1904, assim como acerca do papel
de vanguarda que caberia ao proletariado na revolução russa.
Para Kautsky: “ Uma revolução não poderia estabelecer imediatament e na Rússia um regim e
socialista, pois as condições estão ali demasiado atrasadas. Não poderia est abelecer, portanto,
mais do que um regim e democrático; este, porém, estaria submetido ao impulso de um
proletariado enérgico e impet uoso que arrancaria por sua própria conta concessões
291
Luiz Enrique Vieira de Souza. Espelho Convexo. Os escrit os deM ax Weber, Rosa Luxem burg, Karl
Kaut sky e Eduar d Ber nst ein sobre a Revolução Russa de 1905. São Paulo, Alameda, 2017, p. 283.
292
M assimo L. Salvadori. Kaut sky e la Rivoluzione Socialist a. M ilão, Felt rinelli, 1978.
169
important es. Uma constituição sem elhant e não deixaria de influir poderosam ent e nos países
vizinhos: desde logo estimularia e at içaria nelas o movimento operário, que receberia assim um
impulso vigoroso que lhe permitiria entregar-se ao assalto às instit uições políticas que se opõem
ao advento de uma verdadeira democracia - antes de mais nada, na Prússia, o sufrágio das três
classes. Logo desencadearia as múltiplas questões nacionais da Europa Oriental” . 293 Kautsky
limitava o horizonte revolucionário russo a uma “ verdadeira democracia” . Trot sky, no entanto,
levou em consideração a posição à esquerda que o vet erano dirigente socialista ocupava nesse
mom ento na Internacional Socialista.
Assim, Trotsky reivindicou as análises de Kautsky com o confirmatórias do seu próprio balanço
da revolução de 1905: “ Segundo Kautsky, a Rússia está caract erizada no terreno econômico por
um nível relativam ente baixo de desenvolvimento capitalista, e na esfera política pela falta de
importância da burguesia capitalista e pelo poder do proletariado revolucionário. Est a análise
conduz a que a ‘luta pelos interesses de toda Rússia corresponda à única classe forte at ualmente
existente, o proletariado industrial’. Tudo isto, não nos dá o direito de concluir que o ‘servo’
russo pode chegar ao poder ant es de seus ‘amos’?” .294 Karl Kaut sky agiu como catalisador do
impacto da revolução russa no socialismo ocident al: “ Intervindo repetidament e sobre a
‘natureza’ da revolução russa, ele traçou uma análise das tarefas da socialdemocracia russa que
lhe valeu a admiração e o aplauso de Lênin. Revendo as conclusões a que chegara em Die Soziale
Revolution , sob a influência das ‘lições’ da insurreição armada de M oscou (dezembro de 1905) -
chegou a afirmar que não era de excluir que, também no Ocident e, a luta armada readquirisse
um papel na fase do choque frontal entre o proletariado e o Estado capit alista” . 295
Outros militant es int ervinham nesse debate, como Parvus, cuja influência sobre Trotsky não
oferece dúvidas e foi sublinhada pelo próprio, tanto do ponto de vista ideológico (Parvus, doze
anos mais velho que Trotsky, pert encia a uma geração política anterior, e tinha ideias mais
consolidadas acerca da dinâmica revolucionária mundial) quanto por ter sido, ao menos
parcialment e, financiador da atividade política de Trotsky, na Rússia em 1905 (adquirindo um
jornal liberal falido, que se transformaria na grande t ribuna política de ambos, e um dos mais
important es jornais revolucionários de Rússia). Já antes de 1905, “ intervindo no debate sobre a
greve geral, Parvus teorizou - bem antes do desencadeamento da revolução na Rússia e,
portanto, das ‘lições’ fornecidas pelos grandes movim entos de massa russos - que a greve geral
representava a forma específica na qual estava destinada a ter início o processo revolucionário
293
Karl Kaut sky. O Caminho do Poder. São Paulo, Hucit ec, 1979, pp. 12-13.
294
Leon Trot sky. Op. Cit .
295
M assimo L. Salvadori. Kaut sky ent re ort odoxia e revisionism o. In: E.J. Hobsbawm. Hist ória do M arxismo .
Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982, vol. 2, p. 324.
170
proletário... A revolução russa era vista por Parvus no interior desse processo internacional,
dessa dialética entre imperialismo e revolução em escala mundial. Ela se apresentava com o
aspect o particular de um fenôm eno geral” . 296
M as, embora Parvus afirmasse que “ a revolução russa abala o mundo capitalista em seus
fundam entos políticos, e o proletariado russo pode adquirir o papel de vanguarda da revolução
social” , ele limitava a projeção dessa revolução: “ Não se t rata ainda da ditadura do proletariado,
cuja tarefa é mudar pela raiz as relações de produção no país; t odavia, já dá um passo além da
dem ocracia burguesa. Não podemos considerar ainda como nossa tarefa a transformação da
revolução burguesa em socialista. M as consideramos ainda menos necessário nos submet ermos
à revolução burguesa. Nossa t arefa consiste em ampliar os limites da revolução burguesa, no
interior dessa impulsionarmos os interesses do proletariado, e no âmbito da constituição
burguesa criar a base mais ampla possível para a transformação revolucionária da sociedade” . 297
Parvus foi o autor do prefácio do folheto Antes de 9 de Janeiro de Trotsky, publicado em 1905
em Genebra, onde est e expôs pela primeira vez a tese da “ revolução permanent e” . Embora
Parvus adiantasse alguns dos temas da análise do desenvolvim ento histórico da Rússia que
Trotsky expôs depois (especialm ent e o caráter “ asiático” e não “ europeu” do desenvolvim ent o
urbano russo, tema que Parvus retom ou da obra do historiador e político liberal Pável M iliukov)
politicament e ele chegou só a formular que “ o conceito de um governo revolucionário provisório
e uma república democrát ica, até agora ut ópicos, adquirem (na Rússia) um carát er de realidade
política” .298
O jovem Trotsky (então com 26 anos) sofreu a influência dos dois “ eminent es marxistas”
(Kautsky e Parvus), mas formulou uma perspectiva que extrapolava o horizonte da “ verdadeira
dem ocracia” ou do “ além da democracia burguesa” , para formular a ideia de uma revolução
proletária (socialista) para a Rússia. Para Trotsky, o comport am ento das classes sociais e de seus
partidos durante a revolução de 1905 confirmava a perspectiva da revolução permanent e, isto
é, da revolução democrática que se transformava em proletária em um processo ininterrupto:
“ Sob a dominação polít ica do proletariado, a introdução do dia de trabalho de oito horas teria
que conduzir a consequências muito diferent es. O fecham ento de fábricas e empresas pelos
capitalistas naturalment e não pode ser motivo para prolongar a jornada de trabalho por part e
296
M assimo L. Salvadori. A socialdemocracia alemã e a revolução russa de 1905. In: E.J. Hobsbawm.
Hist ória do M arxismo. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1984, vol. 3, pp. 278-279.
297
Die Neue Zeit , XXIV, 1905-1906, vol. I.
298
Piot r Zveret emich. Il Grande Parvus. M ilão, Garzant i, 1988, pp. 88-89.
171
de um governo que se quer apoiar no prolet ariado e não no capital - como o liberalismo - e que
não quer desempenhar o papel de interm ediário ‘imparcial’ da democracia burguesa. Para um
governo operário só há uma saída: a expropriação das fábricas e empresas fechadas e a
organização de sua produção sobre a base da gestão coletiva” .
Assim, em 1905 e logo depois, com a revolução russa, se assistiu a uma mudança de
repercussões mundiais. O ambiente histórico e as diversas fases políticas haviam caracterizado
as fases políticas da Segunda Int ernacional: 1) De 1889 até 1895, período de crescimento da
burguesia europeia, com a consequent e ampliação num érica e organizativa do operariado,
dominava a ideia de que a mudança gradativa, " nat ural" , da sociedade, levaria à extinção do
regime social da burguesia; 2) A crise de 1893 já estava superada em 1895, a prosperidade
econômica e a alt a dos preços faziam pensar que a classe burguesa teria condições de sobreviver
durante muit o tempo; foi o moment o em que Bernstein formulou a teoria revisionista; 3) A
revolução russa de 1905 anunciou uma nova fase revolucionária, com lideranças mais radicais
na Alemanha (Karl Liebknecht, Rosa Luxemburgo), na Holanda (Anton Pannekoek), na Rússia
(Vladimir Lênin e Leon Trotsky) e os anarco-sindicalistas na França e Itália. Além disso, em 1906,
de acordo com a resolução do IV Congresso (de unificação) do partido socialdemocrata russo, o
Bund judeu voltou a fazer parte do POSDR. O ecleticismo do Bund era seu drama: defendia que
os trabalhadores judeus pert encessem à terra onde haviam nascido e vivido, mas exigia
“ autonomía nacional e cultural” para os judeus, uma “ autonomia” em que o iíddische sería o
idioma nacional. Baseavam-se nas t eorias do aust romarxista Otto Bauer a respeito da
“ autonomia cultural” , mas o próprio Bauer, na sua principal obra (A Questão Nacional e a
Socialdemocracia) negava qualquer carát er nacional ao judaísmo.301
O processo revolucionário russo era, na verdade, o mais “ europeu” (ou o mais vizinho à Europa)
de uma série de revoluções que, nas primeiras décadas do século XX, afetaram a periferia
capitalista como um t odo. No entant o, foi o único realm ent e discutido na Internacional
Socialista. O caráter proletário da revolução russa colocava questões que incidiam diretament e
sobre a polít ica e a sorte do proletariado europeu. Em Greve de M assas, Partido e Sindicat os,
299
Leon Trot sky. Result ados y Perspect ivas, ed. cit .
300
Enzo Bet t iza. El M ist erio de Lênin. Barcelona, Argos-Vergara, 1984, pp. 83 e 85.
301
Henri M inczel es. Hist oire Générale du Bund. Um mouvement r évolut ionnaire juif. Paris, Denöel, 1999.
172
brochura publicada em 1906, Rosa Luxemburgo valeu-se do exemplo das greves revolucionárias
russas de 1905 para atacar a polít ica conciliadora da socialdemocracia alemã e, sobretudo, para
fust igar a conduta da burocracia sindical associada ao SPD. Ainda não se dava à revolta da
periferia colonial e semicolonial o nome de “ revolução colonial” e, na Segunda Internacional, os
debat es sobre a questão nacional tiveram um caráter marcadam ent e europeu. Ora, t ambém no
Orient e, as coisas começaram a mudar com a revolução russa de 1905, o que se acentuou com
a queda da monarquia chinesa em 1911. Se Sun Yat-Sen, o líder chinês que fundara a “ Liga
Jurada” , depois transformada no partido nacionalista Kuomintang (KM T), gravitava em torno
das ideias do reformador nort e-americano Henry George (que preconizava a “ igualação dos
direitos sobre a terra” ), seus discípulos (Hu Han-M in, Liao Zhong-Kai) tenderam para o M anifesto
Comunista e a Segunda Internacional. No operariado asiático começou a se fazer present e o
anarquismo. Uma extrema esquerda surgiu também entre os socialistas do Japão (o Kotuku ).
De modo geral, anarquismo, socialismo e republicanismo ainda formavam uma tendência única
no Oriente; o desenrolar da revolução precipitou sua diferenciação. No Irã haviam começado a
at uar sociedades secret as que distribuíam panfletos, motivando uma onda de repressão. Surgiu
no país uma nova coalizão polít ica com dirigent es religiosos, membros da corte e progressistas
laicos, que lutava para derrubar o Xá, acusado de vender o Irã aos russos; dentro dela ganhou
peso político Ahmed Sultan Zadeh (Sultanzadé), agitador que havia vivido na Rússia e era
membro do POSDR. O grupo Hemmat (“ Ambição” ), formado por exilados iranianos em 1904,
coordenados com a socialdemocracia russa, passou a atuar no país. O movim ento operário no
Irã praticament e começou na Rússia, nos campos petroleiros de Baku. O regim e czarista
empregava milhares de trabalhadores imigrant es iranianos, que trabalhavam junto aos russos,
azeris e armênios, entrando em cont ato com a propaganda e agitação socialdemocrata. Quase
50% dos t rabalhadores dos campos de Bakú eram iranianos; os bolcheviques eram ativos nos
sindicatos dos petroleiros. Através dos operários iranianos de Baku chegou ao Irã a conclusão
do M anifesto Comunist a : kargaran-e-Jahan M ottahad Shaw eed (Proletários do mundo, uni-
vos).
173
CONTRARREVOLUÇÃO E GUERRA M UNDIAL
Com o fim da revolução de 1905, o movim ento operário russo se debilitou paulatinament e; em
1905 havia mais de 2.750.000 grevistas, em 1906, 1.750.000, em 1907, apenas 750.000, em
1908, 174.000, em 1909, 64.000 e em 1910, 50.000. Em contrast e, desde 1905 até a Primeira
Guerra M undial a indústria russa quase dobrou de tamanho. Em 1907, o governo de St olypin
tomou a decisão de acabar com o m ovimento operário e socialista. A conjuntura era favorável
para isso: as repercussões da crise mundial na Rússia, o desemprego e a miséria, permitiam ao
czarismo utilizar o ret rocesso para liquidar a organização operária, pensavam os círculos
dirigent es do país. Com a repressão e as det enções, a moral combativa dos operários caiu,
muitos militantes socialistas abandonaram a atividade. Em M oscou, em 1907, eles eram vários
milhares, até o final de 1908 só ficavam 500 e apenas 150 ao final de 1909: em 1910 a
organização já não existia. No conjunto do país os efet ivos passaram de quase 100.000 a m enos
de dez mil. A repressão aproximou circunstancialmente os bolcheviques dos m encheviques.
Ambos continuavam a acreditar na necessidade de uma et apa “ democrático burguesa” na
revolução russa. No entanto, a polêmica revelou progressivament e que enquanto os
mencheviques acreditavam que a burguesia poderia e deveria conduzir e concluir essa etapa, os
bolcheviques, principalment e Lênin, afirmavam que apenas o proletariado e os camponeses
poderiam levar adiante sua realização.
É contrária à verdade a afirmação de Stalin de que os bolcheviques agiram, desde 1903, em prol
da cisão com os reformistas na Int ernacional Socialista. 303 Foi com luta política que Lênin
conseguiu ser reconhecido desde 1905 como representant e russo (junto com Plekhánov) no
Bureau Socialista Internacional (BSI) cargo que mant eve at é a explosão da Prim eira Guerra
M undial. Nesse marco se produziu o “ Congresso de Unidade” do POSDR, em 1906. Em 1907, no
Congresso Socialista Internacional de Stuttgart, a moção sobre a atitude e o dever dos socialistas
em caso de guerra (“ utilizar a crise provocada pela guerra para precipitar a queda da
burguesia” ), foi apresentada conjunt am ent e por Lênin, Rosa Luxemburgo e o menchevique
M artov. Quando em janeiro de 1912 a conferência (bolchevique) de Praga consumou a cisão
com os m encheviques, Lênin não a apresentou como a ruptura entre reformistas e
revolucionários, mas a dos defensores do “ verdadeiro partido operário” contra os “liquidadores”
(partidários de um part ido “ legal” ), e defendendo “ o único part ido existente, o partido ilegal” ,
at ravés de Kamenev, representant e de Lênin, no BSI de novembro de 1913. Em 1912, os
302
David Lane. Las Raíces del Comunismo Ruso. Un est udio social e hist órico de la socialdemocr acia rusa
1898-1907. M éxico, Siglo XXI, 1977, p. 38.
303
Joseph St alin. Sobre os Fundament os do Leninismo. Rio de Janeiro, Calvino, 1945.
174
bolcheviques lutaram para se impor como únicos representant es do POSDR no Congresso
Socialista de Basileia.
Em 1914, devido ao isolament o int ernacional dos bolcheviques (inclusive em relação à ala
esquerda da Internacional Socialista, cuja dirigente Rosa Luxemburgo se aliara aos
mencheviques “ internacionalistas” de M artov e ao “ Bloco de Agost o” liderado por Trotsky), os
bolcheviques admitiram uma nova e nunca realizada “ conferência de unificação” do socialismo
russo. Lênin já era, no ent anto, conscient e da projeção internacional da “ cisão russa” . Os anos
de 1908 a 1911 corresponderam, na Rússia, a um período de cont rarrevolução. O crescim ent o
industrial começou a se reaquecer a partir de 1910, dando novo ímpeto ao movimento operário.
Duas décadas depois, em 1932, Trotsky recapitulou o processo partidário de conjunto: “ Em 1903
teve lugar a cisão entre mencheviques e bolcheviques. Em 1912 a fração bolchevique t ornou-se
definit ivam ent e um partido independent e. Ensinou-nos durante doze anos (1905-1917)
reconhecer a mecânica de classe da sociedade nas lutas e nos grandiosos acontecimentos.
Educou quadros capazes, quer de iniciativa quer de disciplina. A disciplina da ação revolucionária
apoiava-se na unidade da doutrina, nas tradições de lutas comuns e na confiança numa direção
experimentada” .
Até 1914 o SPD crescera enorm em ente, tanto em influência e número de filiados como no plano
eleitoral: nas eleições de 1912, alcançou cerca de 4,3 milhões de votos, 34,8% do tot al - 49,3%
nas grandes cidades -, e elegeu a bancada mais numerosa no parlamento (110 deputados). Às
vésperas da guerra, o SPD tinha pouco mais de um milhão de filiados, trinta mil quadros
profissionalizados, dez mil funcionários, 203 jornais com 1,5 milhão de assinantes, dezenas de
associações esportivas e culturais, movim ent os de juventude e a principal central sindical. A
confederação geral dos trabalhadores alemães, sob a sua direção, tinha três milhões de filiados.
M as esta força impressionante não foi posta na balança política para evit ar a guerra mundial,
contrariando as decisões prévias da Internacional Socialista. Para a campeã da luta contra o
belicismo, Rosa Luxemburgo, “ as guerras entre Estados capitalistas são em geral consequências
de sua concorrência sobre o mercado mundial, pois cada Estado não tende unicam ent e a
assegurar m ercados, mas a adquirir novos, principalmente pela servidão dos povos estrangeiros
e a conquista de suas terras. As guerras são favorecidas pelos preconceitos nacionalistas, que se
cultivam sistematicam ent e no interesse das classes dominant es, a fim de afastar a massa
proletária de seus deveres de solidariedade internacional. Elas são, pois, da essência do
capitalismo, e não cessarão senão pela supressão do sistema capitalista” .
A situação ambígua da Internacional Socialista, seu precário equilíbrio interno entre reformistas,
centristas e revolucionários, ficou “ difícil de sustentar, e passou a sofrer cada vez mais ataques
da ‘direita’ reformista dentro do partido [socialdemocrata], que promovia agitação para que se
abandonasse completam ent e a revolução, e t am bém de uma esquerda radical, que acreditava
que a socialdemocracia estava sofrendo um debilit ante processo de aburguesamento. A partir
da década de 1890, embora o marxismo parecesse estar no auge de seu poder na Europa
Ocidental, mostrava-se cada vez mais dividido, tanto entre a elite do part ido como entre a massa
175
de seus m embros... O equilíbrio entre a esquerda e a direita ficou muito difícil de ser
mantido” . 304 Em agosto de 1907, reuniu-se o congresso de Stutt gart da Internacional Socialista,
no qual a frágil maioria interna antirreformista e antirrevisionista começou a se desfazer. O
problema da guerra começou a tomar o centro da agenda internacional do movim ento operário
e socialista.
No mesmo ano de 1907, a Conferência de Paz de Haia, organizada por diversos governos
europeus, havia fracassado por completo. O governo imperial alemão havia recusado as
propostas de limitação da produção de armamentos feitas pela “ democrática” Inglat erra. O
imperialismo inglês, dominante no mundo, defendia at ravés dessas propost as o st at u quo ante:
o “ pacifismo” burguês era a arma dos exploradores do mundo para manter sua dominação. O
fracasso de Haia desatou furiosas campanhas na Inglaterra em favor da construção de navios de
guerra, que não tardou em ser levada adiante. Rússia, depois de sua derrot a para o Japão, estava
fora de combate, mas França e Inglat erra apoiaram Rússia, com meios financeiros, para facilitar
o programa de reformas econômicas do ministro Stolypin; se configurava uma antecipação do
futuro enfrentament o entre a Tríplice Aliança e a Tríplice Ent ente.
No Congresso de Stut tgart da Internacional Socialista o debate sobre a questão colonial foi
revelador. Um set or da socialdemocracia alemã (Vollmar e David) não vacilava em designar-se
como “ social-imperialista” . O pensam ento dessa corrente se reflet iu na intervenção do dirigent e
holandês Van Kol, quem afirmou que o anticolonialismo dos congressos socialistas precedent es
não havia servido para nada, que os socialdemocratas deveriam reconhecer a existência
indiscutível dos impérios coloniais e apresent ar propostas concretas para m elhorar o
tratam ent o aos indígenas, o desenvolvimento de seus recursos naturais e seu aproveitament o
em beneficio de t oda a raça humana. Perguntou aos opositores ao colonialismo se seus países
estavam realm ent e preparados para prescindir dos recursos das colônias. Recordou que Bebel
havia dito que nada era “ mau” no desenvolvim ent o colonial como tal, e se referiu aos sucessos
dos socialistas holandeses ao conseguirem m elhoras nas condições dos indígenas das colônias
de sua metrópole. A comissão do Congresso encarregada da questão colonial apresentou a
seguint e posição: “ O Congresso não rechaça por princípio em toda ocasião uma polít ica colonial,
que sob um regim e socialista possa oferecer uma influência civilizadora” . Lênin qualificou de
“ monstruosa” a posição e, com Rosa Luxemburgo, apresentou uma moção anticolonialista. O
resultado da votação foi uma amostra da divisão exist ent e: a posição colonialista foi rejeitada
por 128 votos contra 108: "Neste caso marcou-se a presença de traço negativo do movim ent o
operário europeu, traço que pode ocasionar não poucos danos à causa do proletariado. A vasta
política colonial levou, em part e, ao proletariado europeu a uma situação pela qual não é seu
trabalho o que mant ém toda a sociedade, mas o trabalho dos indígenas quase totalment e
subjugados das colônias. A burguesia inglesa, por exem plo, obtém mais ingressos da exploração
de cent enas de milhões de habitant es da Índia e de outras colônias, do que dos operários
ingleses. Tais condições criam em certos países uma base mat erial, uma base econômica, para
contaminar o chauvinismo colonial ao proletariado desses países” . 305
As divergências manifestadas na Internacional Socialista faziam parte dos motivos que levaram
seus part idos mais important es a adotar uma posição socialpatriótica (de fato pró-imperialista)
em 1914. As divergências sobre a questão colonial eram um aspecto do desacordo mais geral
sobre a atitude que deveria adotar-se perante uma guerra ent re as potências: “ A guerra, quando
estalasse, devia ser ut ilizada como uma oportunidade para a destruição total do capitalismo por
meio da revolução mundial. Esta insist ência correspondia ao que se havia estabelecido no
conhecido parágrafo final da resolução de Stuttgart adotada em 1907 pela Segunda
Internacional, ante a insistência de Lênin e Rosa Luxemburgo, e contra a oposição inicial dos
304
David Priest land. A Bandeira Vermelha . A hist ória do com unismo. São Paulo, Leya, 2012, p. 84.
305
V. I. Lênin. Los Socialist as y la Guerra. M éxico, Edit or ial América, 1939.
176
socialdemocratas alemães, que soment e a haviam aceito sob pressão. M as a política aceita
nominalment e nunca havia sido, na realidade, a polít ica dos part idos constituintes da
Internacional, e o deslanche da Internacional em 1914 lhe poria fim, efetivament e, no que se
refere às maiorias dos principais partidos dos países beligerantes” . 306
Vaillant e Jaurès defenderam o recurso à greve geral, e incluso a resistência armada, em caso de
guerra, mas também manifest aram a legitimidade da defesa de um país em caso de agressão
por out ro. Guesde se opunha a qualquer tipo de campanha antimilitarist a que afastasse à classe
operária de seu objetivo fundament al: apoderar-se do poder político para expropriar os
capitalistas e socializar a propriedade dos meios de produção. Este abst encionismo tinha
306
G. D. H. Cole. Hist oria del Pensamient o Socialist a. M éxico, Fondo de Cult ura Económica, 1976, vol. VII.
177
precedent es: Guesde já t inha se proclamado neutral no recent e affaire Dreyfus. August Bebel,
principal dirigent e do SPD alemão, depois de uma declaração t eórica sobre as raízes da guerra,
considerou que era dever dos trabalhadores e de seus represent ant es parlamentares lutar
contra os armamentos navais e de terra, e negar apoio financeiro às políticas de armamento.
Declarou-se também em favor de uma organização democrática do sistema de defesa nacional.
Disse finalment e que diant e da am eaça de guerra se devia fazer o possível para evitá-la, usando
os meios mais eficazes e, em caso de conflito em andamento, lutar para lhe dar o fim mais
rápido. M as não disse como. Significativament e, Bebel disse que o governo alemão não desejava
a guerra, e que todo apelo à deserção deflagraria, da parte do governo, uma repressão que
provocaria o aniquilamento do partido socialdemocrata alemão. A ambiguidade pairava sobre
os posicionamentos dos socialistas.
A resolução final sobre a guerra teve como base a moção apresentada por August Bebel;
afirmava que “ as guerras eram próprias da essência do capitalismo e só cessariam com o seu
fim” e que “ os trabalhadores era as principais vítimas do conflito, portanto seus inimigos
naturais” . A resolução contra a guerra propost a por Lênin, Rosa Luxemburgo e o menchevique
de esquerda M art ov, afirmava: " Se a guerra eclodir, os socialistas têm o dever de intervir para
sustá-la prontament e, e de utilizar a crise econômica com todas suas forças, assim como a
política gerada pela guerra, para agitar os estrat os populares mais profundos e precipitar a
queda do capitalismo" . No Congresso de 1907, esse t exto passou como um compromisso entre
as posições irredutíveis dos delegados franceses Jaurès e Vaillant, que propunham a greve geral
como m eio de luta contra a guerra, e os delegados alemães, que se opunham a essa propost a.
M as, como alertava Lênin, present e no congresso, as resoluções “ não continham qualquer
indicação concreta sobre quais deveriam ser as t arefas da luta do proletariado” . Já se podia
sentir que eram poucos aqueles que est avam realment e dispostos a levar at é as últimas
consequências a resolução aprovada.
O cenário europeu e mundial era explosivo. Se na Europa Central e nos Bálcãs o problema
derivava do expansionismo imperialista à cust a de países e povos vizinhos, na Europa Ocident al
a raiz do antagonismo se alimentava da competição por colônias e mercados. No centro do
conflito europeu estava a quest ão das nacionalidades oprimidas no Império Austro-Húngaro:
sérvios, croatas, eslovenos, tchecos, eslovacos, búlgaros. As causas geopolíticas europeias da
guerra eram claras: – Com a população estagnada, França não esperava reconquist ar as
províncias da Alsácia e Lorena, que perdera para a Alemanha em 1870 – nem vencer qualquer
guerra futura. Da paridade populacional existent e em meados do século XIX, havia se evoluído
para uma situação em que, em 1914, a população alemã já era 1,5 vezes maior que a da França;
– A Alemanha não poderia concentrar seu exército num ataque esmagador contra a França, se
esperasse até Rússia ter construído sua rede ferroviária interna, o que já estava acontecendo; –
O Império Aust ro-Húngaro não conseguiria mant er as etnias fracionadas em seu interior, sem
castigar a Sérvia. Não poderia garantir direitos iguais aos sérvios, sem provocar os húngaros, que
tinham posição privilegiada; só lhe restava, portanto, suprimir os primeiros; – A Rússia não
poderia mant er o controle sobre a parte Oest e industrializada do seu império – Polônia, Ucrânia,
os estados do Báltico e a Finlândia – se a Áustria humilhasse seu aliado sérvio, e a Rússia
dependia dessas províncias para o grosso dos impostos que arrecadava; – A Inglaterra não
poderia mant er o equilíbrio de poder na Europa, se a Alemanha esmagasse a França.
Nenhuma dessas potências conseguia prosseguir no stat u quo sem encarar risco para sua
própria existência: no caso da França, uma posição enfraquecida, sem esperanças, diant e da
Alemanha; no caso da Alemanha, uma eventual ameaça por uma Rússia indust rializada; no caso
da Áustria, o esfacelamento do Império Austro-Húngaro, por efeito da agit ação eslavófila; no
caso da Rússia, a perda das províncias do Oest e, que cairiam na órbita teutônica; e no caso da
178
Inglat erra, a irrelevância no continent e, com desafio inevitável contra seu poderio nos mares. 307
Na Europa Central o " pequeno imperialismo" se amparava no fato de ser o Império Austro-
Húngaro uma entidade multinacional com alguns dos seus grupos étnicos tendo um país fora do
império, como os romenos e sérvios, outros com seu país sit uado dentro das fronteiras do
império, como os croatas e os tchecos. Os inimigos locais do império, contudo, não formavam
um bloco sólido. Croatas e sérvios competiam entre si para reunir os “ eslavos do Sul” sob seu
próprio domínio.
O marco geral era a corrida pelas colônias no mundo t odo, ou pela manut enção e expansão dos
impérios na Europa, ou ambas as coisas simultaneam ente. Nessa situação, os países da Europa
investiam crescent em ente em armas e t ecnologia de guerra, engrossando as verbas e os
equipam entos dos exércitos. Além disso, foram assinados acordos militares que dividiram os
países europeus em dois blocos, de um lado a Alemanha, a Itália e o Império Austro-Húngaro,
que formavam a Tríplice Aliança, e do outro a Rússia, França e Inglaterra, compondo a Tríplice
Ent ent e. Não podemos esquecer o revanchismo que existia entre a França e a Alemanha em
relação à guerra franco-prussiana e à questão da posse da região da Alsácia-Lorena, ocupada
pela Alemanha nessa guerra. A corrida armamentist a entre o Reino Unido e a Alemanha,
ampliada ao resto da Europa, com todas as grandes potências dedicando boa parte da sua base
industrial para produzir o equipamento e as armas necessárias para um conflito europeu,
det erminou que, entre 1908 e 1913, os gast os militares das potências europeias aument assem
em 50%.
Karl Liebknecht
307
Christ opher Clark. Les Somnabules. Et é 1914: comment l’Eur ope a marché vers la guerre. Par is,
Flammarion, 2014.
179
Internacional, ao contrário, deixou-se dominar, em quase todos os países, por um isolament o
no qual a ideologia profissional dos operários e o pacifismo constituíam posições destinadas a
serem derrotadas. O congresso da Internacional, realizado em Copenhague em 1910,
manifestou-se com indignação contra os socialistas tchecos, alinhados em favor da política de
defesa de sua nacionalidade. Porém, a história deu razão aos separatistas tchecos” . 308
308
Art hur Rosenberg. Democracia e Socialismo. Hist ória polít ica dos últ imos 150 anos. São Paulo, Global,
1986.
180
guerra mundial foi deflagrada, o principal dirigente público da Internacional Socialista era Jean
Jaurès, desde a morte de August Bebel em 1913. Preservar a paz, que ele sabia ameaçada pelas
rivalidades internacionais intercapitalistas, já era há muito sua maior preocupação. Em 1895, na
Câmara dos Deputados, ele tinha pronunciado um célebre discurso, com uma frase que correu
o mundo: “ O capitalismo traz em si a guerra, como as nuvens silenciosas trazem a tempest ade” .
Jaurès tinha a convicção de que a união do proletariado internacional seria capaz de afastar
“ esse horrível pesadelo” . Dois dias antes de seu assassinato, em 29 de julho de 1914, no ato
internacional contra a guerra realizado no Cirque Royal de Bruxelas, declarou: “ Sabem o que é
o proletariado? São massas de homens que t êm, coletivam ent e, amor à paz e horror à guerra” .
No dia 28 de junho de 1914 foi assassinado o arquiduque Francisco Fernando, príncipe herdeiro
do trono aust ro-húngaro, em Sarajevo, na Bósnia-Herzegovina. Seus executores eram dois
nacionalistas sérvios, entre os quais Gavrilo Princip, um jovem que pert encia ao grupo
nacionalista sérvio “ M ão Negra” , cont rário à int ervenção da Áustria-Hungria na região dos
Bálcãs. Declarando-se insatisfeita com sua reação ao magnicídio, Áustria-Hungria declarou
guerra a Sérvia em 28 de julho de 1914. Nesse m esmo dia, Rússia entrou no conflito em defesa
da Sérvia “ ameaçada” . O Império Russo, não disposto a permitir que a Áustria-Hungria
eliminasse a sua influência nos Bálcãs, e em apoio aos “ seus” sérvios protegidos de longa dat a,
ordenou uma mobilização parcial. Na França, Jean Jaurès foi assassinado em um café de Paris,
no dia 31 de julho de 1914, por Raoul Villain, um jovem nacionalista francês que desejava a
guerra com a Alemanha. No dia seguinte iniciaram-se as mobilizações de guerra no país. O
Império Alemão, por sua vez, mobilizou-se já em 30 de julho, pronto para aplicar o " Plano
Schlieffen" , elaborado em 1905, prevendo que Alemanha deveria derrotar a França antes que a
mobilização russa se completasse. Assim, após a provocação de incident es fronteiriços, a
declaração germânica de guerra chegou a Paris. Simultaneam ent e, a Alemanha declarou
considerar também a Bélgica território de operações militares. O desrespeito da neutralidade
belga significava que a guerra não se limitaria ao continent e.
O Reino Unido declarou guerra à Alemanha e à Áustria-Hungria a 4 de agosto de 1914, após uma
" resposta insatisfatória" para o ultimato britânico de que a Bélgica deveria ser mantida neut ra.
Todos os integrantes dos blocos europeus em disputa declararam a guerra. No início das
operações, a coalizão liderada pela Alemanha contava com um contingent e armado de quatro
milhões de soldados contra seis milhões de soldados da Entent e Cordiale (Grã-Bretanha, França,
e aliados). A Alemanha combateu a guerra sob o estandarte da Kultur . Em 1915, 93 dos principais
intelectuais e artist as alemães (incluído Thomas M ann, seu mais célebre escritor) assinaram um
manifesto em que justificavam o clamor da Alemanha por guerra, em nome da superioridade
cultural. Os exércitos de ambos os lados t inham à disposição todas as conquist as tecnológicas
modernas no armamento, no transporte e na comunicação. O esforço bélico se apoderava de
toda a capacidade produtiva do país e todos os seus recursos humanos e naturais.
Quando a guerra explodiu não era sobre terreno virgem que Lênin caminhava para afirmar: “ A
guerra europeia, preparada durante dezenas de anos pelos governos e partidos burgueses de
181
todos os países, rebentou. O crescim ento dos armamentos; a exacerbação da luta pelos
mercados, no atual estágio imperialista de desenvolvimento dos países capitalistas avançados,
os interesses dinásticos das monarquias mais atrasadas - as da Europa Oriental - tinham de,
inevitavelment e, conduzir à guerra, e conduziram. Apoderar-se de territórios, e subjugar nações
estrangeiras, arruinar a nação concorrent e, pilhar as suas riquezas, desviar a atenção das massas
laboriosas das crises políticas internas da Rússia, da Alemanha, da Inglat erra e de outros países,
dividir e iludir os operários com a mentira nacionalista, dizimar a sua vanguarda para
enfraquecer o moviment o revolucionário do prolet ariado; tal é o único cont eúdo real, o
verdadeiro significado da guerra atual. A burguesia alemã encontra-se à cabeça de um dos
grupos de nações beligerant es. Engana à classe operária e às massas trabalhadoras, garantindo
que faz a guerra para defender a pátria, a liberdade e a cultura, para libertar os povos oprimidos
pelo czarismo, para destruir o czarismo reacionário” .309
O congresso da Internacional Socialista foi finalmente adiado para 28-29 de agosto de 1914, e
na prática nunca se realizou: em 31 de julho, Jean Jaurès foi assassinado; em 3 de agosto
estourou a guerra. No dia 4 de agost o, para surpresa de muit os socialistas, inclusive de Lênin, os
deputados socialistas alemães do Reichstag votaram a favor da liberação dos créditos de guerra.
309
V. I. Lênin. Op. Cit.
182
Karl Liebknecht , 310 foi o único a votar contra, na nova votação do dia 3 de dezem bro de 1914.
Otto Rühle também votou contra, juntando-se a Liebknecht, na votação do dia 20 de março de
1915. A maioria dos socialistas alemães punha uma pedra sobre seu passado internacionalista.
Em 1914, a socialdemocracia alemã era poderosa. Com um orçam ento de dois milhões de
marcos, contava com mais de um milhão de filiados, depois de se recuperar da fort e repressão
do regim e imperial alemão. Era a vitória do pragmatismo socialista de direita e do oportunismo,
quer tinha se manifestando nos anos precedent es: “ Desde 4 de agosto - afirmou Rosa
Luxemburgo - a socialdemocracia alemã é um cadáver putrefat o” . E completou afirmando qu e
a verdadeira bandeira da Internacional falida devia ser: “ Proletários do mundo, uni-vos em
tempos de paz, e assassinai-vos em tempos de guerra” .
Os socialistas franceses, por sua vez, uniram-se à burguesia francesa em defesa da “ pátria
ameaçada” , assim como os socialistas austro-húngaros, os belgas e os ingleses. Até Plekhánov,
pai do marxismo russo, aderiu às teses chamadas de socialpatrióticas. Em diversos países os
socialistas formaram alianças políticas e blocos governam entais com suas respectivas
burguesias na política de “ união sagrada” . A guerra revelou para amplos setores do proletariado
os limites das suas antigas direções. “ A II Internacional está morta, vencida pelos oportunistas” ,
afirmou Lênin: não apenas não fora desencadeada a prometida greve geral, mas a classe
operária, petrificada e desguarnecida, viu seus dirigentes se alinharem à política de guerra e
propugnarem a “ união nacional” . Na França, o principal fundador do socialismo marxist a, Jules
Guesde, tornou-se membro do governo de união nacional, e Leon Jouhaux, dirigente da
Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT), anunciou sua adesão à guerra no seu discurso no
ent erro de Jaurès, à beira do túmulo do grande inimigo da guerra...
Guesde juntava-se assim aos deputados socialdemocratas alemães que votaram no parlament o
os créditos de guerra, alinhando-se à polít ica belicista de Guilherm e II. A verve de Lênin se
descarregou com t oda força contra seus ant igos companheiros da Internacional Socialista. Em
text o de finais de setembro de 1914, A Guerra e a Socialdemocracia Russa, afirmou: “ Os
oportunistas prepararam de longa data esta falência, repudiando a revolução socialista e
substituindo-a pelo reformism o burguês; repudiando a lut a de classes e a necessidade de
transformá-la, se necessário, em guerra civil, fazendo-se os apóstolos da conciliação de classes;
preconizando o chauvinismo burguês sob o nome de patriotismo e de defesa da pátria,
desconhecendo ou negando a verdade fundamental do socialismo, já exposta no M anifest o
Comunista , a saber, que os operários não têm pátria; se limitando, na luta contra o militarismo,
a um ponto de vista sentim ental pequeno-burguês; fazendo um fetiche da legalidade e do
parlamentarismo burguês, esquecendo que nas épocas de crise as formas ilegais de organização
e de agitação se tornam indispensáveis” .311
O conflito desenvolveu-se com a invasão austro-húngara da Sérvia, seguida pela invasão alemã
da Bélgica, Luxemburgo e França, e um ataque russo contra a Alemanha. Após invadir o território
310
Karl Liebknecht (1871-1919), filho de Wilhelm Liebknecht , com panheiro de lut as e amigo pessoal de
M ar x e Engels, est udou direit o nas Universidades de Leipzig e Berlim, concluindo seu dout orado na
Universidade de W ürzbur g, em 1897. Abriu um escrit ór io de advocacia e passou a def ender causas
t rabalhist as. Em 1900 aderiu ao Part ido Socialdemocrat a da Alemanha. Passou a t er int ensa milit ância
polít ica e fundou em 1915, junt am ent e com Rosa Luxem bur go e out ros milit ant es int er nacionalist as, a
Liga Spárt acus, sendo expulso do SPD em 1916. A Liga, junt o com uma f ração socialist a de esquerda,
acabou fundando o Part ido Comunist a da Alemanha em 1918. Em 15 de janeiro de 1919, após o governo
socialdemocrat a alemão t er colocado as cabeças dos “ ext remist as da esquer da” a prêmio, Kar l Liebknecht
e Rosa Luxem burgo foram assassinados em Ber lim por Freikorps de oficiais desmobilizados e enquadrados
pela ext rema direit a, mas sob as ordens do minist ro socialist a Gust av Noske. A 13 de janeiro de 2008, cem
anos depois de seu assassinat o, uma passeat a com set ent a mil pessoas dirigiu-se ao cemit ério de
Friedrichsfelde, em Berlim, para homenagear Karl Liebknecht e Rosa Luxem burgo.
311
V. I. Lênin. Los Socialist as y la Guerra. M éxico, Edit or ial América, 1939.
183
belga, o exército alemão encontrou resistência na fortificada cidade de Liège. Apesar de ter
continuado sua rápida marcha rumo à França, a invasão germânica tinha provocado a decisão
britânica de intervir em ajuda a Tríplice Ent ent e. Como signatário do Tratado de Londres, o
Império Britânico estava comprom et ido a preservar a soberania belga. Segundo M ax Hastings:
“ A Alemanha t inha a capacidade de evitar que o conflito se espalhasse. Em julho de 1914, se os
alemães tivessem dito aos austríacos ‘parem, est e conflito está ficando grave demais, vocês
precisam parar a invasão da Sérvia e se retirar do país’, não teria havido guerra. Não digo que
não houvesse um conflit o europeu, mas a crise de julho eles poderiam ter evitado. Por que não
evitaram? Porque os estadistas germânicos, principalment e os generais e o Kaiser, acredit avam
que a guerra aconteceria cedo ou tarde – e preferiam que fosse cedo, enquanto tinham um
poder econômico inigualável” . Para a Grã-Bretanha os portos de Antuérpia e Oostende eram
important es demais para cair nas mãos de uma pot ência continental hostil ao país: enviou um
exército para a Bélgica, atrasando o avanço alemão.
Depois da marcha alemã em direção de Paris ter chegado a um impasse, a frente ocident al
estabeleceu-se em uma batalha de atrito estático, com uma linha de trincheiras que pouco
mudou at é 1917. Na frent e oriental, o exército russo lutou com sucesso contra as forças austro-
húngaras, mas foi forçado a recuar da Prússia Orient al e da Polônia pelo exército alemão. Frentes
de batalha adicionais se abriram depois que o Império Otomano entrou na guerra junto aos
impérios centrais, em 1914; It ália e Bulgária em 1915, e Romênia em 1916, entraram na guerra:
em virt ude disso, a Tríplice Aliança ganhou dois aliados, a Bulgária e a Turquia; e a Tríplice
Ent ent e a adesão da Rom ênia, de Portugal e do Japão. Na China, o presidente Iuã, em agosto de
1914 dissolveu o parlamento recém-eleito e implantou uma ditadura, tent ando transformar-se
em um novo Imperador; morreu, no entanto, no ano seguint e, e um golpe militar em Cantão
chamou novament e Sun Yat-sen para exercer a presidência. No ano seguinte, o Japão lembrou
à China sua verdadeira situação, apresentando “ 21 exigências” que, apoiadas numa chantagem
militar, transformavam o país numa espécie de semicolônia japonesa.
A primeira fase da guerra ficou conhecida como “ guerra de movim ento” . A capital e o governo
francês foram transferidos para Bordeaux; os franceses e ingleses conseguiram cont er os
at aques dos alemães, que brecaram seu avanço em t erritório francês em set embro de 1914:
“ Durant e quatro anos, os dois exércitos, que eram de milhões de hom ens, cavaram t rincheiras
e buracos no chão a 800 m et ros uns dos outros e mataram-se uns aos outros com espingardas,
metralhadoras e art ilharia que, à medida que o tempo passava, se tornava cada vez mais
assustadora... A guerra tornou-se uma máquina terrível para desfazer seres humanos em
pedaços de carne depredada. As batalhas mais famosas duraram m eses, não horas ou dias, e as
baixas não foram aos milhares, mas aos milhões” .312 A situação se manteve até o fim da guerra,
312
Charles Van Doren. Op. Cit , pp. 331-332.
184
em novembro de 1918. Era um novo tipo de guerra, muito mais mort ífera do que as
precedent es, em uma nova fase histórica. Guillaume Apollinaire, poeta e oficial de artilharia da
França, qualificou a nova espantosa “ realidade” de sur-realité, impossível de ser assimilada pelos
padrões intelectuais existent es (o termo deu lugar ao surgim ento do surrealismo no pós-guerra).
Outros episódios bélicos acont eceram no continent e africano e no Oceano Pacífico, onde havia
num erosas colônias e t erritórios ocupados pelos países europeus envolvidos no conflito. A África
do Sul foi atacada pelas forças alemãs em 10 de agosto, pois pertencia ao Império Brit ânico. A
Nova Zelândia invadiu Samoa, que pertencia à Alemanha, e a força naval expedicionária
australiana desembarcou na ilha de New Pommem, que na época fazia parte da chamada Nova
Guiné Alemã, e que viria a se tornar a “ Nova Bretanha” . Coube ao Japão invadir as colônias
micronésias e o porto alemão de Qingdao, que abastecia carvão à Tríplice Aliança, na península
chinesa de Shandog. Todos esses ataques fizeram com que em pouco tempo a Tríplice Entent e
tivesse dominado todos os territórios alemães no Pacífico.
A segunda fase da guerra se iniciou em novembro de 1914 e ficou conhecida como “ guerra d e
posições” ; foi a fase em que ocorreram os maiores estragos humanos (os avanços dos exércitos
custavam milhares de vidas cotidianam ent e). Nesse mom ento, t eve início a guerra de
trincheiras, com os exércitos cavando e se prot egendo em valas com a finalidade de dar
proteção às posições defendidas. A ofensiva alemã contra a França foi, inicialment e, como
vimos, bem-sucedida. As tropas alemãs chegaram at é 50 quilômetros de distância de Paris, mas
foram detidas, frustrando os planos de uma rápida vitória na França. Em solo francês, a frent e
se detivera em trincheiras. Os austro-húngaros foram obrigados a aliviar a frente sérvia para
enfrent ar as tropas russas na Galícia. Deter o avanço dos russos à custa de grandes perdas
territoriais foi a única coisa que as pot ências centrais de fat o conseguiram no primeiro ano do
conflito. Na Sérvia, na Prússia Oriental e na Galícia, até o final do ano, as forças combat ent es
registraram um t otal de três milhões de baixas (mortos, feridos ou prisioneiros). Em 1915 as
potências centrais conseguiram algum sucesso. Entretanto, a Itália passou para o lado da
Ent ent e ao receber promessas de ganhos territoriais, obrigando os austro-húngaros a lutar em
mais uma frente, desta vez em t erritório it aliano. A Sérvia colapsou diant e dos alemães, austro-
húngaros e búlgaros. A Romênia, traindo seus aliados, passou para o lado da Entent e, em troca
de prom essas de ganhos t erritoriais. Na batalha de Verdun, onde a Alemanha tent ou romper a
barreira do acesso à Paris, a Grã-Bretanha dirigiu suas forças para tent ar impedir o avanço das
tropas alemãs, o que envolveu cerca de dois milhões de hom ens nest a batalha.
O saldo final da batalha foi de aproximadament e um milhão de baixas para ambos os exércitos.
A França perdeu mais de 20% dos seus homens em idade de capacidade militar, além dos que
retornaram inválidos, feridos e deformados. A probabilidade de sofrer algum ferimento de
guerra era tão grande que ir para o campo de batalha já era considerado uma baixa. Grande
parte dos que retornavam da guerra possuíam graves ferim entos e deformações por causa das
batalhas; a maioria destes ferim ent os eram faciais, pois na guerra de trincheiras as granadas
eram utilizadas como arma principal para neut ralizar os inimigos entrincheirados. Estes feridos
passaram a ser ícones da guerra, eram conhecidos como gueules cassés, ou caras quebradas,
devido as deformações faciais. Os episódios de horror na frente ocidental do exército alemão
foram construindo uma nova sensibilidade que modificou a maneira de reger a política. A
Alemanha com seu poder bélico submarino iniciou o ataque a todas embarcações que seguiam
rumo a Grã-Bretanha. O objetivo desta investida era cortar todos os m eios de transport es de
supriment os; todos os suprimentos eram transportados por via marítima. Como reação aos
at aques às embarcações de suprimentos, desenvolveram-se t ecnologias que ajudavam a det er
os submarinos, as cargas explosivas de profundidade acionadas por um detonador que reagia a
pressão da água. A campanha submarina alemã atraiu os EUA para a guerra, para proteger seu
capital investido na Grã-Bretanha. M as, mesmo com o impasse da frente ocidental, a Alemanha
se encontrava vitoriosa na frente lest e, contra a Rússia.
185
A entrada dos Estados Unidos na guerra revert eu t oda a situação, fornecendo para seus aliados
todo o suprimento que necessitavam além de seu exército e reforços. O exército alemão já se
encontra extremam ente fragilizado devido a anos de guerras de trincheiras e diversas investidas
não bem sucedidas. Invadir Paris fora a última investida tentada. Assim, depois de três anos de
combates sangrentos na Europa e de impasse militar, finalment e, os Est ados Unidos entraram
na guerra, depois de quebrar a resistência da maioria parlamentar e forçar a aprovação dessa
at itude através do “ telegrama Zimmermann” , a revelação pública de uma comunicação do
governo alemão ao seu embaixador no M éxico, informando-lhe o início de uma guerra marítima
por todos os meios, inclusive submarinos, contra a Entent e, e propondo ao M éxico uma aliança
contra os EUA (caso estes não permanecessem neutros), oferecendo em troca a devolução ao
M éxico dos t erritórios conquistados pelos EUA em 1848. 313
Na campanha eleitoral de 1916, o president e eleit o Woodrow Wilson tinha jurado e perjurado
que os EUA nunca entrariam na “ guerra europeia” . Os EUA se posicionaram belicament e ao lado
da Tríplice Ent ent e; tinham acordos com erciais milionários com países que faziam parte dela,
como Inglaterra e França, mas também tinham uma importante minoria étnica alemã na sua
população (na verdade, a sua “ segunda minoria étnica” , depois da inglesa), oposta à guerra
contra o Império do Kaiser e possuidora de fort es meios e apoios políticos: o “ golpe
Zimmermann” foi, por isso, necessário para derrotá-la. O governo não possuía os meios políticos
para a aprovação parlamentar da quebra da histórica posição isolacionista dos EUA. Durante os
primeiros anos da guerra, não diretament e implicados no conflito, divididos em função da
origem nacional da sua população, impedidos de com erciar com os impérios centrais devido ao
bloqueio britânico, os EUA triplicaram seu comércio exterior entre 1914 e 1917, com o
abastecedores não só de alimentos, mas também de m anufat uras, armas e munição aos futuros
aliados bélicos. A banca americana tinha sido autorizada a realizar empréstimos à Entent e desde
outubro de 1914: em 1917 a dívida da Entente com os EUA já atingia 2,7 bilhões de dólares. A
entrada dos EUA na guerra, e o próprio fim da guerra, não alt eraram essa situação: os EUA
sairiam da guerra como o grande credor do mundo capitalista.
Na guerra, Alemanha viu-se obrigada a lutar em duas frent es: a rápida derrota da França, como
previa o plano de guerra dos alemães, não t eve lugar; depois da derrota alemã na batalha do
M arne, a luta estagnou. Uma guerra de trincheiras culminou em batalhas sem sentido, no oest e,
com enormes perdas de material e de vidas. Desde o começo da guerra, o imperador e os
primeiros-ministros passaram ao segundo plano, com os milit ares (o marechal Paul von
Hindenburg e o general Erich Luddendorf, sobretudo) dando as cartas. E foi durante a guerra
mundial que teve início a descontrolada emissão monetária na Alemanha, que concluiu na
hiperinflação de inícios da década de 1920: “ Os primeiros passos da hiperinflação tiveram lugar
313
Supost o t elegrama codif icado despachado pelo minist ro do ext erior do Império Alemão, Art hur
Zimmermann, em 16 de janeiro de 1917, para o embaixador alemão no M éxico, Heinrich von Eckardt , que
inst ruía o em baixador para se aproximar com o governo m exicano com a propost a de formar uma aliança
milit ar cont ra os Est ados Uni dos. O t elegrama foi int ercept ado e decodificado pelos br it ânicos, e dizia
assim: " No começo de fever eiro nós planejamos com eçar uma irr est rit a guerra submarina. A despeit o
disso, é nossa int enção nos em penharmos em mant er os Est ados Unidos da Am ér ica neut ros. No caso
disso não ser bem sucedido, nós propomos uma aliança com as seguint es bases ao M éxico: Que nós
façamos guerra junt os e façamos paz junt os. Nós fornecer emos um generoso suport e financeiro, e no
nosso ent endiment o o M éxico virá a reconquist ar os t errit órios perdidos do Novo M éxico, Texas e Arizona.
Os det alhes do assent ament o são deixados para você. Você est á inst r uído a inf ormar o President e [do
M éxi co] sobr e acima na maior confidência assim que for cert o que irá haver uma def lagração de guerra
nos Est ados Unidos e sugerir ao President e, em sua própr ia iniciat iva, o convit e ao Japão para
imediat am ent e aderir a esse plano; ao m esmo t em po, oferecer-se par a m ediar as conversas ent re Japão
e nós mesmos. Por f avor cham e a at enção do President e que o empr ego im placável de nossos submarinos
agora oferecem a perspect iva de forçar a Inglat erra a declarar paz em alguns meses" (Barbara W. Tuchman.
O Telegrama Zimmermann . Rio de Janeiro, José Olympio, 1982).
186
sob os auspícios de KarI Helfferich, secret ario de Estado para as Finanças de 1915 a 1917” . 314
Até 1914, a polít ica de crédito do Reichsbank fora regida pela lei bancária de 1875, que obrigava
a que não menos de um terço das notas emitidas estivesse respaldado por ouro, e o rest ant e
por promissórias emitidas para três meses, adequadament e garantidas.
Em agosto de 1914, na Alemanha foram t omadas medidas para financiar a guerra e evitar a
perda das reservas de ouro: suprimiu-se a conversibilidade em ouro das notas emitidas pelo
Banco Central (e conclamou-se à população a entregar todo o ouro que possuísse – jóias,
enfeites, etc. – ao Banco Central). Para financiar a guerra, Alemanha recorreu a empréstimos
bancários, cujos fundos eram fornecidos pelo sistema de fazer funcionar a máquina de imprimir
notas. Os bancos podiam emprestar às empresas, aos estados federados, às prefeituras e às
novas corporações de guerra, e podiam até antecipar dinheiro, alavancado em futuras emissões
de bônus de guerra. No período da crise bélica, o Reichsbank , banco central alemão, como todos
os outros bancos centrais, suspendeu o lastro do marco alemão em ouro com o intuito de
impedir a pulverização de suas reservas. O governo alemão preferiu pedir emprestadas as
quantias necessárias para seu funcionamento ao Reichsbank, que simplesment e passou a
comprar a maior parte dos títulos do Tesouro, ao invés de t er de aum entar substancialm ent e os
impostos. Só depois de 1916 os impostos começaram a ser usados para o esforço bélico.
A balança do equilíbrio bélico decidiu-se com a entrada na guerra dos Estados Unidos.
Luddendorf, comandante militar alemão, contudo, ignorou que o país estava completam ent e
exaurido, insistindo, até set embro de 1918, numa " paz vitoriosa" . O sentido profundo da guerra
aparecia em fatos e processos situados fora da dimensão purament e militar ou geopolítica: nas
ilusões nacionalistas de combatent es e populações, t ransformadas, depois de quatro anos de
sofriment o inédit os, em desejo de vingança. O fim da guerra foi precipitado pelo “ grande m edo”
provocado, nos dois lados do conflito, pela explosão da revolução russa e, sobretudo, pelo início
da revolução na Alemanha, com sua capital e suas principais cidades governadas por conselhos
operários, e com motins nas próprias t ropas do front. A entrada dos EUA na guerra mundial foi,
junto com a revolução russa, que retirou o império czarista da guerra e da Entente, o fator
fundam ental de mudança e desfecho do conflito bélico, e das relações econômicas e políticas
mundiais que dele em ergiram.
A intervenção norte-am ericana foi decisiva para o resultado final da guerra, seu primeiro
resultado foi a realização (atuando sobre as nações neut ras) do bloqueio da Alemanha, que a
partir desse mom ento viu-se condenada à asfixia econômica. Os motivos alegados para a
entrada dos EUA no conflito foram a promessa de apoio aos países europeus que compravam
mercadorias das indústrias norte-americanas, e os ataques dos submarinos alemães à marinha
mercant e dos EUA. A guerra submarina alemã, que ameaçava os parceiros comerciais dos EUA,
decidira a intervenção nort e-am ericana. A 6 de abril de 1917, os EUA declararam guerra à
Alemanha: a situação bélica começou a alterar-se, quer com a entrada em cena de novos meios,
como o carro de combate e a aviação militar, quer com a chegada ao t eatro de operações
europeu das forças norte-americanas, ou com a substituição de alguns comandant es por outros
com uma nova visão da guerra e das tácticas e estratégias mais adequadas; lançaram-se, de um
lado e de outro, grandes ofensivas terrestres e navais. Grécia declarou guerra às potencias
centrais. Na frente oriental os soldados húngaros e russos, de origem operária e camponesa,
com eçaram a se confraternizar nas trincheiras. Ocorreram grandes greves na Hungria.
Chegaram os primeiros soldados americanos à França. No Extremo Oriente, Sun-yat Sen voltou
à China de seu exílio japonês, estabelecendo-se em Guangzhou, onde foi nomeado president e
do “ Governo Nacional” ; o governo de Sun, porém, não controlava mais do que uma porção
reduzida do território nacional. O controle das out ras regiões deslocou-se para as t radicionais
elites rurais, que se agrupavam em torno de chefes m ilitares. Sun-yat Sen fundou a Academia
314
Adam Ferguson. Cuando M uere el Dinero . M adri, Alianza, 1976.
187
M ilit ar de Whampoa, dirigida por Chiang Kai-shek, tentando organizar um exército para
conquistar o norte da China. A guerra mundial começava a desdobrar-se em guerra civil.
As ofensivas de 1918 foram a t erceira fase da guerra. Novas armas foram utilizadas no conflito,
incluídos os letais gases binários, além do uso de t anques e aviões para bombardeios, e também
a chegada à Europa do contingente militar norte-americano (aproximadament e 1,2 milhão de
soldados). A ent rada dos EUA reforçou a capacidade bélica da Entent e, que conseguiu vitórias
fundam entais sobre a Tríplice Aliança em territórios franceses. Com a presença norte-am ericana
na Europa, a vitória da Entent e passou a ser um fato previsível. Também o era a transformação
dos EUA em principal potência econômica do planeta no pós-guerra: entre 1914 e 1918, o PIB
dos EUA aumentou 15%, a produção mineira 30%, a produção industrial em geral 35%. Para
at ingir esses resultados, os EUA perderam “ só” 50 mil soldados (28 vezes menos do que a
França): a intervenção americana na guerra foi “ uma empresa colonial em grande escala levada
adiante em t erritório estrangeiro” . 315
A guerra iniciada em 1914 assinalou o fim da Pax Britannica , que dominara o mundo durante
um século (1815-1914) e fora o berço do imperialismo cont emporâneo. O palco histórico do
novo conflito bélico europeu era novo. Na “ Grande Guerra” , “ os confrontos que tiveram lugar
no front durante as primeiras jornadas t iveram com o protagonistas heróis anacrônicos” que,
colhendo resultados desastrados e mort ais, “ não haviam tido tempo de compreender que nos
campos da Grande Guerra estava morrendo não só certo estilo guerreiro, mas também um a
visão do mundo, uma época inteira” . 316 Os vinte milhões de mortos (civis e militares) na Europa
em guerra não só foram um preço inédito para um conflito internacional, mas também um
horror inesperado por todos seus protagonistas. Desde os primeiros conflitos armados coloniais
entre as pot ências europeias, na virada do século XIX para o século XX, um confront o armado
mundial era pressentido e t emido na Europa: “ Se os civis podiam imaginar que a guerra fosse
uma espécie de edificant e avent ura de cavalheiros, os militares percebiam que o increm ent e
espetacular da potência de fogo era a garantia de um aumento correspondent e do núm ero d e
vítimas. Esperavam um conflito terrível, mas, como o restant e da população, acredit avam que
seria de curta duração e o concebiam como uma prova de caráter” . 317
A guerra adiou, mas não suprimiu, o aprofundament o da luta de classes em cada país. Nos EUA,
ela forneceu o álibi que as classes dominantes ianques esperavam para “ limpar” o movim ent o
operário norte-am ericano, com dois alvos fundamentais: o cada vez mais influente SPA ( Socialist
Part y of America) e os IWW (Industrial Workers of the World ), que organizavam as lutas do
operariado de imigração recent e. O chauvinismo nacionalista foi o pretexto para a ofensiva
antioperária: um senador democrata chamou os IWW de “ Imperial Wilhelm’s Warriors”
(“ Guerreiros do Imperador Guilherm e [da Alemanha]” ). Leis “ contra a espionagem ” foram
aprovadas e usadas em larga escala cont ra os ativistas operários estrangeiros. Os IWW, porém,
não organizaram movimentos cont ra a guerra: a green corn rebellion de Oklahoma (agosto
1917), por exemplo, não foi obra deles. Em set embro, no entant o, 165 dirigent es dos IWW (o
lendário w obblie Bill Hayw ood, ent re outros) foram inculpados por “ conspiração para a
insubordinação militar” : em 1918, quinze deles foram condenados a 20 anos de prisão e a 30
mil dólares de multa, 33 a dez anos de cárcere, 35 a cinco anos. Paralelament e, aconteceram
linchament os e assassinatos de ativist as operários, como os de Frank Lit tle e Joe Hill, realizados
por agent es provocadores, como os operadores da agência privada de det etives Continental,
que costumava fornecer fura-greves às pat ronais. O SPA fez campanha contra a guerra, e obteve
espetaculares sucessos eleit orais graças a isso (21% dos votos em Nova York, 34% em Chicago):
os raids da direita militante destroçaram 1.500 das suas cinco mil sedes partidárias, o boicot e
315
Frit z St er nberg. El Imperialismo. M éxico, Siglo XXI, 1979.
316
Piet ro M elograni. St oria Polit ica della Grande Guerra. M ilão, Arnoldo M ondadori, 1998, p. 36.
317
St uart Robson. La Prima Guerra M ondiale. Bolonha, Il M ulino, 2002, p. 10.
188
oficial e o fim das franquias postais asfixiou seus jornais, seu dirigente Eugene Debs (candidat o
presidencial em 1912, com 6% dos votos) foi condenado em setembro de 1918 a dez anos de
prisão. Paralelamente, o president e nort e-am ericano Woodrow Wilson, reeleito em novembro
de 1916, formulou seus “ 14 pont os” para a paz: fim da diplomacia secreta, liberdade
internacional de navegação, fim das barreiras comerciais, desarmam ento geral, aut onomia para
as nacionalidades do Império Austro-Húngaro. A guerra, na sua ótica, era uma luta “ pela
dem ocracia” e “ contra a guerra” , por uma “ paz sem vit ória” .
Depois da ofensiva alemã de 1918 ao longo da frent e ocidental, a Entent e forçou o recuo dos
exércitos alemães em uma série de ofensivas de sucesso, e as forças dos Estados Unidos
com eçaram a entrar nas trincheiras germânicas. A Alemanha concordou com um cessar-fogo
em 11 de novembro de 1918, episódio mais tarde conhecido como “ Dia do Armist ício” . No final
de 1918, a Alemanha não tinha mais possibilidade de vencer a guerra, o que forçou o imperador
Guilherme II a abdicar do trono para facilitar a rendição imperial. O sentido profundo do
desfecho da guerra apareceu em fatos e processos situados fora da dimensão puramente militar
ou geopolítica: nas ilusões nacionalistas frustradas de combat ent es e populações,
transformadas, depois de quatro anos de sofrim ent o inédito, em simples desejo de vingança.
No primeiro Natal da guerra, houve cenas de confraternização entre soldados dos exércitos
inimigos, há relatos de soldados de ambos os lados cessarem as host ilidades, saírem das
trincheiras e cumprimentarem-se na “ trégua de Natal” . Isto ocorreu, claro, sem o
consentim ento do comando militar dos dois exércitos; no final da guerra, os massacres cruéis e
sem piedade nem utilidade militar se transformaram na norma geral.
M ortes durante a Primeira Guerra M undial (em milhões, M , arredondados)
M ORTES CIVIS 6M 4M
M ORTES M ILITARES 5M 4M
TOTAL 11M 8M
E houve o “ grande medo” provocado, nos dois lados do conflito, pela explosão da revolução
russa e pelo início da revolução na Alemanha, a “ revolução dos marinheiros” seguida pela
criação na capit al do país e em suas principais cidades de conselhos operários ( räte) sem elhantes
aos soviets russos, além de motins nas tropas alemãs do front . Foi esse o fator que precipitou e
forçou uma “ paz” não inteiramente lógica em termos militares ou diplomáticos, que consagrava
a derrota alemã (e dos Impérios Centrais), que ainda não era clara no campo de batalha. E uma
vitória mesquinha dos “ aliados” (a Tríplice Ent ent e mais os EUA), que alguns dos seus generais,
como o comandante das tropas norte-americanas na Europa, o general Pershing, pret endiam
transformar em vitória total. Ao contrário, foi evitada a rendição incondicional do Reich e a
ocupação militar da Alemanha, em especial de sua capital, Berlim, como pret endia Pershing,
para evitar uma humilhação alemã.
189
durante o período em que os acontecimentos políticos precipit aram um rápido e inesperado
desfecho ao conflito que açoitava à humanidade durante os últ imos quatro anos. M as é bem
provável que o fantasma da Comuna de Paris (1871) passasse pelo cérebro do comandant e
supremo alemão, o marechal Hindenburg, ele que a tinha testemunhado como jovem oficial
prussiano na guerra contra a França (1870-1871). Um Adolf Hitler, ainda anônimo, ferido no leito
de um hospital militar, mas muito mais “ ferido” interiorment e pela notícia da capit ulação do
Estado M aior alemão, tomava a decisão de se dedicar à política para mudar esse desenlace. Os
“ judeus” já apareciam, na cabeça de Hitler e de outros, como o bode expiatório de uma derrota
alemã que, aparent ement e, carecia de lógica militar.
318
Giogio Agamben. Homo Sacer. Il pot ere sovrano e la nuda vit a. Turim, Einaudi, 2005, p. 146.
190
cidadãos de “ origem inimiga” . Vint e anos depois, o recurso seria usado na Alemanha numa
escala bem maior, por um regime chefiado por um ex cabo mensageiro alemão (austríaco, na
verdade), ainda anônimo, ferido em 1918 no leito de um hospital militar, mas muito mais
“ ferido” interiorm ent e pela notícia da capitulação do Estado M aior alemão, e que tomava nesse
mom ento a decisão de se dedicar à política para mudar o desenlace da guerra. Os “ políticos
judeus” já apareciam na cabeça do anônimo cabo austríaco Adolf Hitler (e na de outros soldados
e oficiais alemães) como o bode expiatório ideal para uma derrot a que, aparent ement e, carecia
de lógica política e, sobretudo, militar: a Tríplice Ent ente sofrera mais baixas civis ou militares
do que a Tríplice Aliança.
319
Er ic J. Hobsbawm. Era dos Ext remos. O curt o século XX. São Paulo, Companhia das Let ras, 1995.
191
A CISÃO INTERNACIONAL DO SOCIALISM O
O que acont ecia, entrem ent es, no movim ent o operário europeu e na Internacional Socialist a?
A orientação dos dirigentes da Internacional Socialista, em todos os congressos mundiais
realizados a partir de 1907, havia sido a de que os trabalhadores tentassem ao máximo em seus
países evitar a deflagração do conflito. Caso isso não fosse possível, como vimos, deveriam
aproveitar o moment o bélico para precipitar a queda do capitalismo. Entretanto, quando em
1914 t eve início a Primeira Guerra M undial, os principais partidos filiados à Segunda
Internacional apoiaram seus respectivos governos e, em nom e do nacionalismo, apoiaram a
ofensiva bélica de cada país, provocando o colapso da Internacional. Somente os partidos
socialdemocratas russo, sérvio e húngaro, além do Partido Socialist a Italiano - junt amente com
pequenos grupos dentro de outros partidos socialistas – haviam permanecido fiéis aos princípios
internacionalistas proletários repetidam ente enalt ecidos pela Internacional no passado.
M ostrando a dimensão real do inimigo, Rosa Luxem burgo sublinhara o caráter “ popular” da
guerra mundial: os líderes políticos mobilizaram as massas através da demagogia nacionalista e
da demonização de seus inimigos. Lênin, depois da capitulação dos principais partidos da
Internacional Socialista, e diante da explosão da guerra em agosto de 1914, proclamou desde
finais desse ano a luta por uma nova Internacional Operária. 321 Diante da carnificina
generalizada, só uma minoria socialist a não se curvou ao nacionalismo e mant eve erguida,
apesar da repressão, a bandeira do internacionalismo proletário: na França, um punhado de
militantes sindicalistas em torno de Alfred Rosmer; uns poucos na Alemanha, com o deputado
Karl Liebknecht defendendo a palavra de ordem: “ o inimigo está dent ro do nosso país” . A
submissão de cada partido ao governo de sua própria burguesia acarretara o desaparecim ent o
prático da Internacional Socialista. Lênin procurou explicar e ent ender as razões dessa falência,
e precisar as posições dos marxistas sobre a guerra:322 - O capitalismo entrara, nos primeiros
320
Georges Haupt . Socialism and t he Great War . The collapse of t he Second Int ernat ional. Londr es, Oxford
Universit y Press, 1973.
321
Georges Haupt . Léni ne, les bolchéviques et la IIè Int ernat ionale. L’Hist orien et le M ouvement Social .
Paris, François M aspéro, 1980, pp. 108-150.
322
Lênin, codinome de Vladímir Ilit ch Ulianov (1870-1924) foi o principal líder da Revolução de Out ubro
de 1917 e do bolchevismo, t ransfor mado em Part ido Comunist a, e prim eiro president e do Conselho dos
Comissár ios do Povo da Rússia Soviét ica. Seu codinom e provinha de seu exílio para uma t erra das margens
do Rio Lena. Seu pai, Ilya Ulianov, era um funcionário público de ideias liberaius. Er a inspect or das escolas
da província de Sim birsk; um homem ext remament e religioso que apoiava as refor mas do Czar Alexandr e
II e aconselhava os jovens a não cairem no radicalismo. M aria Alexandrovna, mãe de Lênin, era filha de
192
anos do século XX, num novo período histórico; sua evolução para o imperialismo abrira “ a
época das guerras e revoluções” ; - Ret omando a ideia do M anifest o do Partido Com unista - “ os
proletários não têm pátria” - afirmou que a guerra não dizia respeito à classe operária
internacional; ela não tinha nenhum interesse em comum com as burguesias no conflito; - Fez
um alerta para combat er a confiança, que poderia se desenvolver, na possibilidade de evitar os
conflitos graças a arbit ragens internacionais; - Só a eliminação da causa profunda da guerra
poderia conduzir à paz, e essa causa era clara e conhecida: o próprio capitalismo; só a revolução
social era uma alternativa à guerra mundial.
Em 1915, na prisão real da Prússia onde estava presa por suas atividades antimilitarist as, Rosa
Luxemburgo também estigmatizou a capitulação do socialismo alemão ao votar os créditos de
guerra, e defendeu uma posição semelhante à de Lênin, em seu panfleto A Crise da Social
Democracia : " Os interesses nacionais não passam de uma mistificação que tem por objetivo
colocar as massas populares e trabalhadoras a serviço de seu inimigo mortal: o imperialismo. A
paz mundial não pode ser preservada por planos utópicos ou francament e reacionários, tais
como tribunais internacionais de diplomatas capitalistas, por convenções diplomáticas sobre
“ desarmam ento” , “ liberdade marítima” , supressão do direit o de captura marítima, por “ alianças
políticas europeias” , por “ uniões aduaneiras na Europa Central” , por Estados-tampões
nacionais, et c. O proletariado socialist a não pode renunciar à luta de classe e à solidariedade
internacional, nem em t empos de paz, nem em t empos de guerra: isso equivaleria a um suicídio.
(...) O objetivo final do socialismo só será atingido pelo proletariado internacional se est e
enfrent ar em toda a linha o imperialismo, e fizer da palavra de ordem “ guerra à guerra” a regra
de condut a de sua prática política, empenhando aí toda a sua energia e toda a sua coragem " . 323
No entanto, o moviment o operário estava de fato atrasado em relação aos prazos históricos,
não conseguindo impedir a eclosão da guerra. Lênin, retomando o grito de Karl Liebknecht - “ o
inimigo está dentro do nosso país” - pronunciou-se pela derrota do próprio governo na guerra
imperialista, explicando que a fraqueza da burguesia vencida oferecia, para o proletariado,
melhores possibilidades revolucionárias.
Alexánder Blank, um judeu converso, médico e dono de t erras em Kazan. Alexánder era f ilho de M oiche
Blank, um com erciant e judeu de Volhinia, que casou com uma cidadã sueca chamada Anna Ost edt . O
irmão mais velho de Lênin, Alexandre Ulianov, est udant e em São Pet ersburgo, com 21 anos envolveu-se
no gr upo Pervomart ovt si e foi um dos part icipant es de uma das t ent at ivas de assassi nar Alexandre II.
Preso, foi condenado à mort e em 1887 e execut ado. Ist o t eve grandes consequências para o irmão, muito
afet ado por essa mort e. Em 1887, Lênin, com 17 anos de idade, f oi est udar direit o em Kazan, onde t omou
cont act o com um grupo de revolucionários socialdemocrat as. Ainda nesse ano, foi preso numa
manifest ação de est udant es movida por reivindicações de cunho acadêmico. Como consequência, foi-lhe
proibida a cont inuação dos est udos. Em 1890 foi readmit ido na Univer sidade, porém apenas com o
est udant e " ext er no" aut orizado a prest ar exames anuais, mas não a frequent ar a univer sidade. Tornou-
se assim advogado, prof issão que exerceu por um breve período de t em po, per dendo quase t odos os
lit ígios judiciais que enfrent ou. Foi nesses anos que Lênin se t or nou marxist a. Sua primeir a grande paixão
int elect ual-revolucionár ia, no ent ant o, foi Tchernichevski e sua obra Que Fazer? Preso em 1895, foi
confi nado na Sibéria, junt o com sua esposa, Nadezha Krupskaya. Em liber dade, Lênin se a Plekhánov
associou no seu primeiro exílio, no início do século XX, como redat or do jornal da emigração
socialdemocrat a russa no exílio, o Iskra . Líder da socialdemocracia russa (POSDR) e da sua fração
bolchevique, o rest ant e da sua vida, como líder da Revolução de Out ubr o, at é sua mor t e em janeiro de
1924, já pert ence ao domínio público e à hist ória.
323
Rosa Luxem bourg. La Crise de la Socialdémocrat ie. Bruxelas, La Taupe, 1970.
193
numa nova Internacional, a Internacional Comunista. Os povos se chacinavam nos campos de
batalha europeus e coloniais. A linha divisória previament e estabelecida pela Internacional
Socialista, baseada na luta de classes, fora deslocada e posta à mercê dos interesses dos
imperialismos em luta. A Segunda Internacional desmoronarea, sem sequer t entar lutar. O
nacionalismo e o revisionismo que a infestavam haviam-na ligado intimam ent e ao regim e
existente, e a atrelaram ao carro do capitalismo com o qual ela foi arrastada para a guerra.
Part e da Bélgica havia sido ocupada pelos exércitos alemães no m ês de agost o de 1914 e, por
isso, o Bureau Socialista Internacional não podia continuar a funcionar em Bruxelas. Seu
secretário, Huysmans, partiu para Haia e reorganizou o Bureau com os dirigent es do Partido
Socialista Holandês. A Internacional Socialista entrava em letargia vegetativa. Parecia um reflexo
político da constatação de um artigo da Rivista Internazionale di Scienze Sociali de 1916, que
afirmava que a guerra “ estava revelando uma humanidade capaz de sobreviver à destrução de
seus m elhores elem ent os e de se reconstruir com reservas humanas e materiais inesgotáveis:
as raízes da vida social não soment e não tinham sido erodidas em meio a tanta destruição, mas
também haviam feito germinar novos organismos dot ados de maior resist ência... nas camadas
mais humildes da sociedade se havia formado uma mentalidade relat ivista, que fazia parecer
324
V. I. Lênin. O Imperialismo, Fase Superior do Capit alismo, ed. cit .
194
tot alment e naturais as consequências mais desagradáveis da guerra” 325 . De fato, as primeiras
reações antibélicas na Europa não foram sociais, mas políticas.
A guerra já dura mais de um ano. Há milhares de corpos sobr e os campos de bat alha; milhares de homens
mut ilados para t oda a vida. A Europa t ornou-se um gigant esco mat adouro hum ano. Toda a ciência, o
t rabalho de várias gerações, est á volt ada para a dest ruição. A barbárie mais selvagem est á celebr ando o
seu t riunfo sobre t udo que era ant eriorment e o orgulho da humanidade.
Seja qual for a verdade sobre a responsabilidade imediat a pelo início da guerra, uma coisa é cert a: a guerra
que ocasionou est e caos é result ado do im perialismo, dos feit os das classes capit alist as de t oda nação
para sat isfazer sua sede de lucro at ravés da exploração do trabalho humano e dos tesouros da nat ureza.
As nações economicament e at r asadas ou polit icament e fracas são ameaçadas e subjugadas pelas grandes
pot ências, que com ferro e fogo t ent am mudar o mapa do mundo de acordo com os seus int eresses de
exploração. Países e povos int eiros, como Bélgica, Polônia, os Est ados balcânicos, Armênia, est ão sob a
ameaça de serem anexados como espólio de guerra na barganha por com pensações.
À medida que a guerra avança, suas verdadeiras forças mot rizes se revelam em t oda a sua baixeza. Est á
caindo, peça por peça, o véu que escondia o sent ido dest a cat ást rofe mundial da compreensão dos povos.
Os capit alist as de t odos os países, que ext raem os lucros da guerra do sangue do povo, est ão declarando
que a guerra é pela defesa nacional, democracia, e libert ação das nacionalidades oprimidas. ELES
M ENTEM . Na realidade, eles est ão ent errando nos campos da devast ação as liberdades dos seus próprios
325
Piet ro M elograni. Op. Cit , p. 152.
326
R. Craig Nation. War on War. Lênin, t he Zimmerwald left ad t he origins of comm unist int ernat ionalism.
Durham, Duke Univesrsit y Pr ess, 1989.
327
Grigorii Zinoviev. Hist ory of t he Bolshevik Part y. From t he beginnings t o Februar y 1917. Londr es, New
Park, 1973.
195
povos, junt o com a independência de out ras nações. Novos sofriment os, novas corrent es, novas cargas
est ão sendo criadas, e os t rabalhadores de t odos os países, dos vencedores assim como dos vencidos, t erão
de port á-las. O objet ivo anunciado ao início da guerra era elevar a civilização a um nível mais alt o: miséria
e privação, desemprego e carência, fome e doenças são os verdadeiros result ados. Os cust os da guerra
irão, por décadas e décadas, consumir as energias dos povos, ameaçar o t rabalho pela reforma social e
esmagar cada passo no caminho do progresso.
O desolament o moral e int elect ual, o desast re econôm ico, a reação polít ica - t ais são as bênçãos dest a
bat alha horrenda ent re as nações. Assim, a guerra revela a crueza do capit alismo moderno, que se t ornou
irreconciliável não apenas com os int eresses das massas t rabalhadoras, não apenas com as circunst âncias
do desenvolviment o hist órico, mas inclusive com as condições básicas da exist ência humana comunit ária.
As forças reinant es da sociedade capit alist a, em cujas mãos se encont ra o dest ino das nações, os governos
monárquicos e republicanos, a diplomacia secret a, as grandes organizações pat ronais, os part idos da
classe média, a imprensa capit alist a, a Igreja - t odas est as forças devem arcar com t odo o peso da
responsabilidade por est a guerra, produzida pela ordem social que os aliment a e os prot ege e que est á
sendo conduzida de acordo com os seus int eresses.
Trabalhadores! Explorados, privados de seus direit os, desprezados - vocês eram irmãos e com panheiros
no início da guerra, ant es de serem recrut ados para marchar para a mort e. Agora, depois que o milit arismo
os mut ilou, dilacerou, degradou, e dest ruiu, os governant es lhes exigem o abandono de seus int eresses,
objet ivos, e ideais - em uma palavra, a submissão complet a ao " jugo nacional" . Vocês não podem
expressar os seus pont os de vist a, seus sent iment os, sua dor; vocês não podem avançar suas demandas e
lut ar por elas. A imprensa est á calada, são pisot eados os direit os polít icos e liberdades - est a é a dit adura
milit ar que hoje reina com mão de f erro.
Não podemos, não nos at revemos, a permanecer inat ivos diant e de um est ado de coisas que ameaça o
fut uro de t oda a Europa e a humanidade. A classe operária socialist a conduziu a lut a cont ra o milit arismo
por várias décadas. Com ansiedade crescent e, os seus r epresent ant es nas conferências nacionais e
int ernacionais se devot aram à ameaça de guerra, o result ado de um imperialismo que se t ornava cada
vez mais ameaçador. Em St ut t gart , Copenhague e Basle, o Congresso Socialist a Int ernacional indicou o
caminho que os t rabalhadores deveriam seguir. M as desde o início da guerra os part idos socialist as e
organizações da classe operária que t omam os part e na det erminação dest e passo, nos esquecemos das
obrigações que dele derivavam. Os seus represent ant es chamaram pela suspensão da lut a de classe, o
único meio possível e eficaz para a emancipação da classe operária, e vot aram os crédit os de guerra para
a classe governant e. Colocaram-se à disposição de seus governant es para os mais diversos serviços.
At ravés da sua imprensa e represent ant es, t ent aram conquist ar o apoio dos set ores neut r os para a polít ica
governament al de seus respect ivos países. Ent regaram os minist ros socialist as aos seus respect ivos
governos, como reféns no cum priment o do jugo nacional, assumindo assim a responsabilidade por est a
guerra, seus objet ivos, seus mét odos. Os part idos socialist as falharam separadament e, assim como falhou
o maior represent ant e e responsável dos socialist as de t odos os países, o Bureau Socialist a Int ernacional.
Est es fat os const it uem um dos mot ivos pelos quais o moviment o operário int ernacional, falhou, inclusive
ali onde suas seções não sucumbiram ao pânico nacional do primeiro período da guerra ou onde se
ergueram acima dele, e mesmo agora durant e o segundo ano do massacre das nações, a se erguer
simult aneament e em t odos os países num a lut a at iva pela paz.
Reunimos-nos agora nest a sit uação int olerável, nós represent ant es de part idos socialist as e sindicat os, ou
minorias deles, nós alemães, franceses, it alianos, russos, poloneses, letões, romenos, búlgaros, suecos,
noruegueses, holandeses e suíços, nós que pisam os o t erreno não da solidariedade nacional com a classe
exploradora, mas da solidariedade int ernacional da lut a dos t rabalhadores e da classe operária.
Reunimos-nos para reat ar os laços rompidos das relações int ernacionais e convocar a classe operária para
se reorganizar e começar a lut a pela paz. Est a lut a t ambém é pela liberdade, pela irmandade das nações,
pelo socialismo. A t arefa é empreender est a lut a pela paz, por uma paz sem anexações ou com pensações
de guerra. Est a paz só é possível se for condenada t oda violação dos direit os e liberdades das nações. Não
deve haver anexação f orçada de t errit órios ocupados parcial ou t ot alment e. Sem anexações abert as ou
acobert adas, sem uniões econômicas forçadas, t ornadas ainda mais int oleráveis pela supressão de direit os
polít icos. O direit o das nações de selecionar os seus próprios governos deve ser o princípio fundament al
inalt erável das relações int ernacionais.
196
Trabalhadores Organizem-se! Desde o início da guerra vocês ent regaram suas ener gias, coragem e
det erm inação ao serviço da classe governant e. Agora a t arefa é ingressar nas list as por sua própria causa,
pelos objet ivos sagrados do socialismo, pela salvação das nações oprimidas e classes escravizadas, at ravés
da inconciliável lut a de classes.É t arefa e dever dos socialist as dos países beligerant es começar est a lut a
com t odo o seu poder. É t arefa e dever dos socialist as dos países neut ros apoiar seus irmãos at ravés de
t odos os meios concret os possíveis nest a lut a cont r a a barbárie sangrent a. Nunca na hist ória do mundo
houve t arefa mais urgent e, mais nobre e mais sublime, por cujo cumpriment o devem os t rabalhar em
conj unt o. Nenhum sacrifício é grande demais, nenhuma car ga é pesada demais para at ingir est e f im: o
est abeleciment o da paz ent re as nações.
Homens e mulheres t rabalhador as! M ães e pais! Viúvas e órfãos! Feridos e mut ilados! Para t odos que
sofrem por consequencia diret a ou indiret a da guerra, grit amos sobre as front eiras, sobre os campos de
bat alha arrasados, sobre as cidades e vilarejos devast ados: Uni-vos t rabalhadores do mundo!
A outra emenda, assinada pelo grupo que redigiu a resolução, com Henriet t e Roland Host e Leon
Trotsky, afirmava: "Na medida em que a adoção da nossa emenda (ao M anifesto) exigindo o
voto contra as apropriações de guerra pode de algum a forma colocar em perigo o sucesso da
conferência retiramos, sob protesto, nossa em enda e aceitamos a declaração de Ledebour na
comissão, na medida em que o M anifesto cont ém t udo o que implica a nossa proposição" .
197
Ledebour lançou um ultimato exigindo a rejeição da emenda, caso contrário se recusaria a
assinar o manifesto. Foi atendido. Do seu lado, de modo independent e, as Sete Teses sobre a
Guerra de Lênin sintetizaram os seguint es conceitos: a guerra tem um carát er burguês,
imperialista, reacionário e dinástico; a postura pat riótica da Internacional Socialista é uma
traição ao socialismo, que marca o colapso político e ideológico da Int ernacional; a luta contra
a autocracia czarista continua sendo o primeiro dever do socialista russo; todos os aut ênticos
socialistas devem romper com o oportunismo pequeno burguês da Internacional Socialista, e
desenvolver um trabalho entre as massas para acabar com a guerra através da revolução, e
devia se lutar por uma nova Internacional operária.
O bolchevismo participou na fração da " Esquerda de Zimm erw ald" , apesar das divergências com
seus outros component es (os mencheviques internacionalistas de M artov, Karl Radek, Rosa
Luxemburgo, Leon Trotsky). O vértice político das divergencias entre os bolcheviques e os outros
militantes internacionalist as se sit uava na palavra de orden leninista de " transformar a guerra
imperialista em guerra civil" , e sua consequência lógica, o "derrotismo revolucionário" ,
considerada com o uma " provocação" pela ala " moderada" de Zimm erw ald (que incluía alguns
futuros ministros burgueses). E também na questão da necessidade de uma IIIª Internacional,
defendida só pelos bolcheviques. O socialismo russo foi o fer de lance da luta contra a guerra, e
pela revolução internacional, nas condições criadas pela própria guerra. Dentro da emigração
russa havia múltiplas posições, situadas entre o defensismo patrót ico de Plekhánov e o
derrotism o de Lênin. M artov e outros mencheviques se negavam a admitir que a vitória dos
Habsburgos ou dos Hohenzollern constit uisse um fat or favorável para a causa do socialismo.
Denunciaram o caráter imperialist a da guerra, o séquito de atrozes sofrimentos que significava
para os trabalhadores de todos os países, e afirmaram que os socialist as deviam acabar com a
guerra mediant e a luta por uma paz democrática e sem anexações; sobre esta base se podia
reconstruir a unidade dos socialistas de todos os países, cuja condição prévia seria a negativa a
apoiar os créditos de guerra nos países beligerantes. E paravam por ai.
Lênin, do seu lado, em plena guerra criticou Trotsky, apesar de ambos pertencerem à “ esquerda
de Zim m erw ald” , a ultraminoritária fração internacionalista do socialismo internacional: “ A
teoria original de Trotsky toma emprestado aos bolcheviques o apelo à luta revolucionária
decisiva e à conquista do poder político pelo prolet ariado e, aos mencheviques, a negação do
papel do campesinato. Este, parece, dividiu-se, diferenciou-se, e seria cada vez menos apt o para
ter um papel revolucionário. Na Rússia, uma revolução ‘nacional’ seria impossível, ‘vivemos a
época do imperialismo’ , e ‘o imperialismo não opõe a nação burguesa ao antigo regim e, mas o
proletariado à nação burguesa’. Eis um exemplo divertido das brincadeiras que podem ser feitas
com a palavra ‘imperialismo’. Se, na Rússia, o proletariado já se opõe à ‘nação burguesa’, então
ela está na véspera de uma revolução socialista. Nesse caso, a ‘confiscação dos latifúndios’
(colocada por Trotsky em 1915) é falsa e não se trata de falar de ‘operariado revolucionário’,
mas de ‘governo operário socialista’. O grau de confusão de Trotsky se vê na sua afirmação de
que o proletariado encabeçará as massas populares não proletárias. Trotsky nem pensa que se
o proletariado consegue levar as massas não proletárias para a confiscação dos latifúndios e a
derrubada da monarquia, isso será a realização da ‘revolução nacional burguesa’, a ditadura
dem ocrático-revolucionária do proletariado e do campesinato” .
Lênin concluía que “ Trotsky ajuda de fat o os políticos operários liberais, os quais, negando o
papel do campesinato, recusam levar os camponeses para a revolução” . A crítica de Lênin se
apoiava em elem ent os da formulação da “ revolução permanente” que Trotsky precisou em
trabalhos posteriores (sem falar do fato de que a Rússia se encontrava “ na véspera de uma
revolução socialista” ). A guerra fez nascer outras divergências: sobre o “ derrotism o
revolucionário” (que Trot sky, junto a vários bolcheviques, não aceitava), sobre os “ Estados
Unidos da Europa” ... M as o trabalho internacionalist a comum, na “ esquerda de Zimm erw ald” ,
não deixou de criar os elementos da unidade polít ica fut ura. Trotsky, que est ava politicament e
198
próximo de M artov, em 1914 atacou violentamente os socialdemocratas patróticos alemães e
franceses em um folhet o chamado A Internacional e a Guerra: “ Nas atuais condições históricas,
o proletariado não tem interesse algum em defender uma pátria nacional anacrônica que se
convert eu no principal obstáculo ao desenvolvim ento econômico. Ao contrario, deseja criar uma
nova pátria mais poderosa e estável, os Estados Unidos republicanos da Europa, como base dos
Estados Unidos do mundo. Na prática, ao beco sem saída imperialist a do capitalismo, o
proletariado só pode opor, como programa do m omento, a reorganização socialista da
economia mundial” .328 Os mencheviques int ernacionalistas de M artov e os amigos de Trotsky se
uniram, junto com alguns antigos bolcheviques, em Nashe Slovo , jornal russo que se edit ava em
Paris sob a direção de Antónov-Ovseenko. As posturas das diversas corrent es antibélicas se
definiram através das polêmicas.
Desde novembro de 1914, Trotsky afirmava: “ O socialismo reformista não t em nenhum futuro
porque se convert eu em parte integrant e da antiga ordem e no cúmplice de seus crimes.
Aqueles que esperam reconstruir a antiga Internacional, supondo que seus dirigent es poderão
fazer esquecer sua traição ao internacionalismo com uma mútua anist ia, estão obstaculizando
de fato o ressurgim ent o do movim ento operário” . Em sua opinião, a tarefa imediata era “ reunir
as forças da III Internacional” . Rosa Luxemburgo adotou uma postura análoga. M artov, ao
contrário, não acreditava que uma nova Int ernacional pudesse aspirar a um papel que não o de
seita impotent e. Em fevereiro de 1915, Trotsky externou, em Nashe Slovo, seus desacordos com
os mencheviques. Nashe Slovo se convert eu no principal núcleo port a-voz do int ernacionalismo
socialista, situado na encruzilhada de todas as corrent es int ernacionalistas russas: antigos
bolcheviques como M anuilsky, antigos conciliadores como Sokólnikov, ex mencheviques com o
Chicherin e Alexandra Kollontaï, Abraham Ioffe, internacionalistas como o búlgaro-rom eno
Christian Rakovsky, Sobelsön, codinome Karl Rádek, meio polaco e meio alemão, e também a
italo-russa Angélica Balabanova. Trotsky sofreu repetidas desilusões quanto ao menchevismo -
ao qual pertencera – quando antigos quadros como Vera Zasulich, Potressov e Plekhánov se
pronunciaram a favor da defesa da Rússia na “ Grande Guerra” .
Trotsky pressionava M artov para que rompesse com os “ social-chauvinistas” . Lênin acusava
Trotsky de querer preservar os vínculos que o uniam a eles. Trotsky admitiu que os bolcheviques
constituiam o núcleo do internacionalismo russo. M artov rompeu ent ão com ele. Na reunião de
Zimmerw ald, Lênin defendeu a t ese derrot ista: a transformação da guerra imperialista em
guerra civil e a constituição de uma nova Internacional. A maioria do movimento, que era mais
pacifista que revolucionária, não o acompanhou; adotou, por unanimidade, o M anifesto
redigido por Trotsky, em que se chamava a todos os trabalhadores para por fim à guerra. Em
1915, quando os deputados bolcheviques russos se encontravam encarcerados, os
mencheviques aceitaram finalment e apoiar à Entente, ou seja, participar na “ Santa Aliança” em
torno do governo do czar; o líder m enchevique Chjeidze retratou-se dos acordos realizados em
Zimmerw ald. Vera Zassulich e Potréssov, os velhos chefes mencheviques, apoiaram essa
política, comandada por Plekhánov.
328
Leon Trot sky. La Guerre et la Révolut ion. Le naufrage de la IIè Int ernat ionale et les debut s de la IIè
Int ernat ionale. Paris, Têt e de Feuilles, 1974.
199
o bolchevique Nikolai Bukhárin e o revolucionário russo-am ericano Volodarsky, era, a princípios
de 1917, um expoent e da fusão de todos os internacionalistas russos - incluídos os bolcheviques
-, que Bukhárin, em oposição a Lênin dent ro do bolchevismo, queria transformar na prim eira
pedra para a edificação de uma nova Internacional.
No meio da guerra mundial, livrou-se em paralelo uma batalha interna feroz nos partidos da
Segunda Internacional. Lênin descrevia assim a situação: “ Vejamos dez Estados europeos:
Alemanha, Inglaterra, Rússia, Itália, Holanda, Suécia, Bulgária, Suíça, Bélgica e França. Nos oito
primeiros países a divisão entre t endência oportunist a e tendência revolucionária coincide com
a divisão entre social-chauvinistas e internacionalistas. Na Alemanha, os pontos de apoyio do
social-chauvinismo são os Sozialistische M onatshefte e Legien e companhia;329 na Inglaterra, os
Fabianos e o Partido Trabalhista (o ILP, Partido Trabalhista Independient e sempre formou bloco
com eles, apoiando sua imprensa, mas sendo sempre, neste bloco, mais fraco que os social-
chauvinist as, enquanto no BSP, Partido Socialista Britânico, os internacionalistas constituem 3/ 7
partes); na Rússia representam essa corrent e [socialpatriota] Nasha Zãria (agora Nashe Dielo ),
o Comitê de Organização e a minoria da Duma sob a direção de Chjeídze; na Itália, os reformistas
com Bissolat i na cabeça; na Holanda, o partido de Troelstra; na Suécia, a maioria do partido,
dirigida por Branting; na Bulgária, o part ido dos " amplos" , 330 e na Suíça, Greülich e companhia.
Em todos estes países já se deixaram ouvir protestos mais ou menos consequent es contra o
social-chauvimsmo, procedent es do campo oposto, o campo radical. Na França e na Bélgica, o
internacionalismo é ainda muito débil” . Lênin mapeava detalhadament e o campo político da
Internacional, e preparava m eticulosament e sua cisão.
O desfecho da crise polít ica e social desencadeada pela guerra mundial assumiu contornos
revolucionários na Europa. Não só as mobilizações civis pela paz, os mot ins militares e as
votações massivas na esquerda nas eleições de 1917-1918 indicavam isso. O número de greves
era assustador para qualquer “ homem de negócios” nas democracias europeias, na Inglaterra
inclusive. Era necessário se adaptar à nova situação: “ [A democracia] pode t er, no mom ento da
revolução, importância como a mais extrema tendência da burguesia, forma sob a qual já se
apresentou na Assembleia de Frankfurt [em 1848-1849] e que possa convert er-se na últ ima
tábua de salvação de t oda a economia burguesa e ainda a feudal. Nesse momento, toda a massa
reacionária se coloca por trás dela e a fortalece. Tudo o que é reacionário comporta-se então
como democrático. Nosso único inimigo, no dia da crise e no dia seguinte, é essa reação t otal,
que se agrupa em torno da democracia pura” , tinha escrito Friedrich Engels em 1884.
Três décadas e m eia depois, esse prognóstico se realizava. Onde os trabalhadores viviam sob
regimes polít icos restritivos e violadores das liberdades democráticas, a t endência para a
radicalização foi ainda maior. Isto também ocorreu nos países onde uma parcela grande da
classe operária estava destit uída legalment e de quaisquer direitos por ser estrangeira, como em
algumas cidades dos EUA. Na América do Sul, esse foi o caso de São Paulo, onde se concentrava
uma classe operária majorit ariamente italiana, portuguesa e espanhola, e onde a influência do
anarquismo era predominante: a greve geral paulista de 1917 marcou a primeira grande jornada
329
Karl Legien (1861-1920), milit ant e de origem operária, foi líder sindical e socialdemocrat a na Alemanha,
chef e hist órico da “ direit a” do SPD, alinhando-se com os revisionist as na crise do part ido na década de
1890. Ent re 1893 e 1920, de modo quase inint errupt o, foi deput ado no Reichst ag . Foi um símbolo
int er nacional da ala socialpat riot a da Segunda Int er nacional na guerra 1914-1918, mas encabeçou, em
1920, a greve geral cont ra o put sch direit ist a de Kapp, propondo um “ governo operár io” , fórmula que
impressionou o bolchevismo e a Int er nacional Comunist a, que a adot aram.
330
Os socialist as “ amplos” da Bulgária (obsfedelet si ), em 1903, com a cisão da socialdemocracia búlgara
no seu X Congresso, f ormaram o “ PSB dos socialist as amplos” . Socialpat riot as em 1914, a eles se opunham
os t esnjaki (lit eralment e “ est reit os” , “ est rit os” ou “ rigorosos” ), que conquist aram maioria no moviment o
operário búlgaro e seriam , depois da revolução russa de 1917, a base do Par t ido Com unist a da Bulgária.
200
da classe operária no imenso país sul-americano. 331 Em Buenos Aires, uma nutrida classe
operária majoritariament e estrangeira, de imigração recent e, realizava greves e lutas
sistemáticas, embora dividida em três centrais sindicais (anarquista, anarco-sindicalista e
socialista) chegando a provocar declarações de estado de sítio pelo governo. M esmo na pacífica
e ordeira Suíça surgiu durante a guerra um efêm ero “ partido comunista” de tendência
antiparlamentar, próximo do anarco-sindicalismo: em Genebra ocorreu uma greve geral em
1918. Esta cidade era marcada pela presença de uma numerosa população estrangeira: eles
eram 70 mil para uma população total de 170 mil habitantes no ano de 1913.
Em março de 1917, seu antigo secret ário executivo Huysmans convocou à Segunda Internacional
para se reunir em uma conferência em Estocolm o. Os governos francês e inglês não forneceram
passaportes aos delegados de seus países; a conferência, por esse mot ivo, não se realizou. As
corrent es socialistas oposicionist as, no entanto, ref orçavam-se cada vez mais nos países
beligerantes. Na Alemanha, os deputados socialistas Karl Liebknecht e Otto Rühle tinham sido
os primeiros a se pronunciarem em parlamento contra a “ União Sagrada” e a se erguerem contra
a política guerreira do partido socialdemocrata. Eram apoiados por Rosa Luxemburgo, Leo
Jogiches e Franz M ehring, que, em março de 1915 fundaram a revista A Internacional e, pouco
depois, a Liga Espártaco (Spart akusbund). Um ano decorrido, o Partido Socialdemocrata Alemão
(SPD) cindiu-se. Dezoito deputados da fração parlamentar, dirigidos por Haase, fundaram a
Comunidade de Trabalho Socialista, que em abril de 1917 deu origem ao Part ido Socialista
Independent e (USPD). Este, em colaboração com a Liga Espártaco, trabalhou para mobilizar as
massas cont ra a política de guerra do velho partido. Entret ant o, o líder da Internacional
Socialista Émile Vandervelde (m édico de profissão, que qualificara Lênin de “ energúm eno sem
domicílio fixo” ) entrava no governo belga. Na conferência da Segunda Int ernacional, que se
reuniu finalment e em finais de 1917, em Copenhague, só compareceram representant es dos
países neutros, que dirigiram aos países beligerant es um apelo em favor da paz, e voltaram para
casa.
O ano de 1917 foi chamado de “ o ano t errível” pelo presidente francês Poincaré, o terceiro da
guerra mundial depois de um inverno espantoso. Para milhões de hom ens, foi o fim das ilusões
patrióticas de 1914, esmagadas pela realidade: massacres de combat ent es em “ ofensivas” que
custavam cent enas de milhares de vidas; dificuldades de abasteciment o, com aum ent os de
preços não compensados pelos reajust es dos salários, o que atingia moralment e o operariado.
A política de “ paz civil” , defendida durante a guerra mundial por sindicatos e partidos operários
dos países beligerant es, resultara em um questionam ento de todas as conquistas do movimento
operário (rit mos de produção, horários, condições de trabalho, direitos reivindicativos); o
desgaste do material, das máquinas, do próprio aparelho econômico, provocou uma crise
econômica generalizada. Nos sindicat os e partidos socialistas europeus, a pequena minoria
internacionalista, isolada em 1914, com eçava a ser ouvida com atenção, e vários dirigent es
operários partidários da “ união sagrada” se viam pressionados pela base para adotar posições
revolucionárias ou, ao menos, pacifistas.
No aspect o econômico da guerra, o fator fundamental foi o novo papel mundial dos EUA. Em
1917, a entrada dos EUA na guerra mundial foi o fator fundamental de mudança das relações
econômicas e políticas mundiais. Não diretam ent e implicados no conflito, divididos em função
da origem nacional da sua população, impedidos de comerciar com os impérios centrais devido
ao bloqueio brit ânico, os EUA, no entanto, t riplicaram seu com ércio ext erior de 1914 a 1917,
como abast ecedores não só de alimentos, mas também de manufat uras, armas e munição aos
331
Em 1917, a onda de greves f oi iniciada em São Paulo, em duas f ábricas t êxt eis do Cot onif ício Rodolfo
Cr espi e, obt endo a adesão dos servidores públicos, rapidament e se espalhou por t oda a cidade, e depois
por quase t odo o país. Logo se est endeu ao Rio de Janeiro e a out ros est ados, principalment e Rio Gr ande
do Sul. Foi liderada principalm ent e por milit ant es anarquist as, ent re eles imigrant es it alianos. A greve
deflagrada em São Paulo foi uma das mais abrangent es e longas da hist ória do Br asil.
201
futuros aliados (a banca americana tinha sido autorizada a realizar empréstimos à Entent e desd e
outubro de 1914: em 1917 a dívida com os EUA já atingia 2,7 bilhões de dólares, cifra enorm e
para a época). A guerra submarina alemã, que ameaçava os fornecedores dos EUA, decidiu a
intervenção dest es na Primeira Guerra M undial. A intervenção nort e-am ericana foi decisiva,
pois o primeiro resultado da intervenção dos EUA foi a realização (atuando sobre as nações
neutras) do bloqueio da Alemanha, que a partir desse momento viu-se condenada à asfixia
econômica.
A vitória da Ent ent e passou então a ser um fato previsível, mas também o era a transformação
dos EUA em principal potência do planeta: entre 1914 e 1918, o PIB dos EUA aument ou 15%, a
produção mineira 30%, a produção industrial em geral 35%. Para atingir esses resultados, os
EUA perderam “ só” 50 mil soldados (28 vezes menos do que a França). Para Frit z Sternberg a
intervenção am ericana na guerra foi “ uma empresa colonial em grande escala levada adiant e
em t erritório estrangeiro” .332 Na Rússia, por sua vez, entre 1912 e 1914, sobre bases industriais
mais desenvolvidas e um proletariado mais concentrado e numeroso, o movim ento das greves
crescera novam ent e, uma onda brutalment e interrompida pela Primeira Guerra M undial. A
liderança operária estava desorientada e muitos de seus líderes presos, com o agravante de que
nesse período ocorreu um fluxo de uma mão de obra pouco qualificada e politicament e
inexperient e para dentro das fábricas, que substituiu os operários enviados para o front bélico.
A guerra teve o efeito imediato de desorientar politicament e as massas e fornecer aos diretores
de fábricas a oportunidade de falar uma linguagem pat riótica em nom e de suas empresas. A
guerra mudou a composição da classe operária russa: em Petrogrado, principal centro
econômico do país, os efetivos da mão de obra industrial foram renovados com a guerra e com
o recrutamento de operários para o front em quase 40%. M as, já em 1915, o aumento do custo
de vida e o agravam ento das condições de trabalho, com o ressurgimento dos traços da
exploração mais gritante, fez com que surgissem novas greves econômicas que, não obstant e,
possuíam um limitado alcance político.
332
Frit z St er nberg. El Imperialismo. M éxico, Siglo XXI, 1979.
202
Rússia sofrera as piores consequências humanas da guerra, que tornavam mais agudas suas
contradições históricas:
1) Um imenso império multinacional com 125 milhões de habitantes, com uma sociedade
caract erizada pelo declínio da Igreja e da arist ocracia rural, base do oficialato militar, e pela
debilidade das classes médias, o que provocava um vazio entre os grandes propriet ários e a
massa operária e camponesa. A indústria, principalment e estrangeira, instalada em algumas
cidades e muito concentrada, agrupava três milhões de operários. O problema central era a
terra: só 5% dos camponeses eram proprietários da sua terra e, no máximo, 12% eram
“ abast ados” , os kulaki; 40% não tinha meios suficientes para sobreviver;
3) A guerra agira como o catalisador da crise social russa, pois o Estado czarista não conseguia
armar nem alimentar seus dezesseis milhões de soldados/ camponeses mobilizados, o que o
punha no centro da mira da revolta social. A tática militar russa das “ ondas humanas”
multiplicava as baixas, que se elevaram até quatro milhões de soldados em três anos, uma perda
humana sem comparação absoluta nem percentual com a dos outros países beligerant es. No
outono de 1916 com eçaram as deserções em grande escala no exérrcxito imperial. Os pequenos
camponeses eram golpeados pela mobilização militar e a requisição do gado, os salários dos
trabalhadores indust riais pelo arrocho e pela queda do poder aquisitivo. O sistema econômico
ficara bloqueado;
203
REVOLUÇÃO NA RÚSSIA
Os efeitos catastróficos da guerra para os trabalhadores urbanos e agrários russos, e até para a
pequena burguesia urbana do país, mudaram bastante rapidament e a situação de retrocesso
em que se encontrava a luta contra a autocracia czarista desde o início da Primeira Guerra
M undial. Se o efeito im ediato da guerra fora dest rutivo para a tendência combativa do
operariado dos anos que a precederam, a partir de 1916 a guerra passou a se constituir em um
fator de radicalização e aceleração social e política. Os pat rões industriais se recusavam a fazer
concessões aos trabalhadores, e o governo continuava a responder a cada greve com fort e
repressão, o que fazia renascer no proletariado a ideia de uma greve geral para dar cabo de uma
situação cada dia mais insuportável. A radicalização política das massas trabalhadoras se
exprimia na estatística das greves e na sua natureza crescentem ent e política. No meio da guerra,
Rússia voltava a ser o centro europeu da luta e do ativismo operário, da luta de classes. Em
condições de conflagração mundial, a maior tormenta revolucionária da era do capitalismo se
anunciava. Para os marxistas russos, a guerra mundial não era um episódio de natureza
conjuntural: só poderia ser ent endida como uma expressão histórica da revolta das forças
produtivas sociais contra o quadro estreito das relações capitalistas de produção, abrindo a era
histórica da revolução socialista. No final de 1914, Lênin declarara a falência da Segunda
Internacional social-patriota e chamara a construir a “ Terceira Internacional” , convocando os
revolucionários a “ transformar a guerra imperialista em guerra civil” através do “ derrotism o
revolucionário” : lutando pela derrota da sua própria burguesia em cada país seria possível
reconstituir a unidade int ernacional do proletariado.
Em 1915, a situação russa piorou drasticament e quando a Alemanha tomou a iniciativa contra
as forças militares russas. As forças alemãs, muito melhor armadas com m etralhadoras e
artilharia pesada, foram t errivelm ent e eficazes cont ra as forças mal equipadas da Rússia. Ao
final de 1916, a Rússia havia perdido entre 1,6 e 1,8 milhões de soldados em batalha, com um
adicional de dois milhões de soldados feitos prisioneiros e um milhão de desaparecidos, o que
teve um efeito devastador sobre o moral do exército. M otins começaram a ocorrer, e em 1916
com eçaram a surgir informações sobre fraternização com o inimigo. Os soldados estavam
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famintos e careciam de sapatos, munições, e mesmo de armas. Confrontado com essa situação,
Nicolau decidiu tomar pessoalment e o comando do exército em 1915, deixando a administração
pública nas mãos de sua esposa, a Czarina Alexandra, e dos ministros de Estado. Notícias sobre
corrupção e incompet ência no governo imperial, e a influência cada vez mais intensa do místico
monge Grigori Rasputin nos negócios do governo, intensificaram ainda mais a insatisfação
popular. Em novem bro de 1916, a Duma advertiu o Czar de que um desastre se abateria sobre
o país caso alguma forma constitucional de governo não fosse instituída.
205
operários invadiram Petrogrado, os soldados se revoltaram, o Palácio de Inverno do Czar foi
sitiado pelos manifestantes.
Tem endo uma repetição do “ Domingo Sangrent o” de 1905, o grão-duque M ikhail ordenou que
as tropas leais baseadas no Palácio de Inverno não se opusessem à insurreição e se retirassem.
A 28 de fevereiro, a cidade toda era dos amotinados. Na manhã do mesm o dia Nicolau recebeu
um telegrama anunciando que apenas um punhado de suas tropas permanecia leal. O estado
de sítio foi proclamado, mas inutilment e, pois não havia tropas leais para colocá-lo em prática.
Embarcado em um trem que rumava em direção ao Palácio de Alexandre, o Czar foi obrigado a
retroceder 90 milhas, já que a estação seguint e estava em poder dos rebeldes. O trem parou na
Estação de Pskov, onde em 2 de março, Nicolau assinou sua abdicação: os centros do poder
estavam todos cercados por soldados amotinados. Ele resolveu abdicar em favor do seu irmão,
o grão-duque M ikhail Alexandrovich Románov, mas este, apavorado pela revolução, recusou a
coroa.