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Cultura popular é bom para brincar, cultura popular é bom para fazer e cultura
popular é também bom para pensar. Aproveito assim essa alvissareira oportunidade para
trazer breves reflexões que, embasadas em experiências de atuação e de pesquisa nessa área,
buscam um posicionamento conceitual quiçá útil no balizamento das muitas questões
recorrentes ao tema. Não se trata exatamente um estado da arte do debate em torno das
culturas populares, mas antes de “duas ou três coisas sobre folclore e cultura popular”.
Políticas Públicas para as Culturas Populares. Sala Funarte. Brasília, 24 de fevereiro de 2005.
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Seminário Nacional de Políticas Públicas para as culturas populares.
Brasília: Ministério da Cultura, 2005. pps. 28-33.
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Seminário Nacional de Políticas Públicas para as culturas populares.
Brasília: Ministério da Cultura, 2005. pps. 28-33.
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Seminário Nacional de Políticas Públicas para as culturas populares.
Brasília: Ministério da Cultura, 2005. pps. 28-33.
popular brasileira demonstra inquestionável vitalidade. A atuação na área, portanto, não pede
mais a urgência salvacionista em nome da qual se constituíram, no século XX, as primeiras
iniciativas estatais. A cultura popular ingressa claramente na era do mercado e do consumo,
promovendo e administrando muitas vezes seus próprios produtos. Brincantes, artesãos,
mestres, associações civis, organizações não governamentais emergem muitas vezes sob o
novo aspecto de pequenos empresários e produtores. Esse desafio, nessa intensidade, é
novo.
A diversidade da cultura popular não se situa mais apenas no plano dos fatos e
processos vivos da cultura. Esse tipo de diversidade é fato posto no discurso público oficial
e aparentemente estabelecido para uma população que se concebe de modo cada vez mais
plural. Há uma nova diversidade no cenário contemporâneo: aquela interna aos
interlocutores e agentes que fazem cultura popular, que falam e atuam sobre a cultura
popular. São brincantes, músicos, compositores, palhaços, mestres, artesãos, pesquisadores,
organizações não governamentais, associações civis, secretarias, comissões, instituições
estatais, entre tantos outros. É bom que a “cultura popular” gere seus produtos, que esses
produtos circulem de modo cada vez mais amplo no mercado de bens culturais, que seus
circuitos de produção sejam compreendidos, aprimorados, que seus produtores tenham cada
vez melhores condições de produzi-los. Porém a gama de necessidades é muito diversa. É
preciso qualificar a que tipo de diversidade aludimos quando falamos na diversidade
da cultura popular. Não só as necessidades dos produtores da cultura popular são
diferentes entre si como diferem em natureza daquelas de um centro de pesquisa e
documentação, ou mesmo daquelas de uma pequena produtora ou de uma organização não
governamental atuante na área.
Há ainda um outro tipo de diferença em jogo. A noção de cultura traz consigo uma
vocação antropológica universalista: é a vasta trama de significados inerente à natureza
coletiva da experiência humana. Porém, os desníveis e desigualdades do mundo a atravessam
e a noção presta-se também a classificar, hierarquizar, distinguir entre si processos de
produção cultural. Mas a que diferença refere-se o adjetivo “popular”? Pois, eu insisto, a
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questão não se resolve pela simples flexão da expressão do singular para o plural - “culturas
populares” em vez de “cultura popular”.
Não se trata, afinal, de “culturas populares” internamente homogêneas e niveladas
entre si, opostas em bloco a outros tipos de cultura. Níveis e circuitos da produção cultural
de uma dada sociedade podem ser distinguidos como “cultura de massa”, “erudita”,
“popular”, ou ainda “folclórica”. Essas distinções podem ser úteis em alguns contextos, mas
notemos que, com muita freqüência, um mesmo processo cultural atravessa esses diferentes
circuitos de cultura. Um terno de folia vai da composição musical à festa tradicional, ao
comício político, ao museu ou centro de documentação local ou nacional, à emissora de
rádio regional e à industria fonográfica toda ela, por sua vez, também muito segmentada.
Essa é outra coisa a ser notada: os circuitos de um processo cultural que
denominamos de popular são heterogêneos. Pensemos numa brincadeira de bumba-
meu-boi, num carnaval ou numa festa do Divino. Entre seus atores centrais temos um sem
número de especialidades (bordadeiras, costureiras, artesãos, dramaturgos, compositores,
músicos, palhaços, líderes locais, patrões, empregados, etc.) e os caminhos de produção de
uma bela festa é também cheio de desníveis, tensões e conflitos. Um só processo cultural
popular abriga, portanto, diferentes circuitos de produção e circulação. Um mamulengo
“folclórico” é, lembremos, aquela apresentação mais curtinha contratada pelas prefeituras,
secretarias e orgãos de cultura em geral, muito distinto do mamulengo orgânico que vara
noite adentro em brincadeiras com outro tipo de inserção contratual. O mestre e brincantes
são os mesmos se movimentando por entre circuitos nos quais um mamulengo significa
coisas diferentes.
A vida social teima em desfazer muitas das distinções conceituais correntes nesse
campo de debates. Outro exemplo: Todos sabemos que a transmissão do conhecimento em
diferentes circuitos culturais pode se dar de forma oral ou escrita. Essa distinção é
importante, mas nosso mundo contemporâneo tem fronteiras cambiantes. Podemos hoje,
em sã consciência, opor cultura oral a cultura escrita? As duas formas de transmissão de
conhecimentos podem funcionar, e funcionam o mais das vezes, de modo absolutamente
complementar. Certamente não é por saber ler e escrever, nem por transitar com
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desenvoltura por ambientes sociais e políticos os mais diversos, que uma dupla de repentistas
desaprenderá a memorizar as inúmeras e complexas regras nem sempre explícitas que
comandam a composição de seus desafios.
O adjetivo “popular” ou “folclórico” deve estar sempre a serviço da expansão e do
favorecimento e nunca de restrições, censuras, limites previamente estabelecidos entre o que
se deve ou não fazer ou como se deve ou não fazer alguma coisa. A tarefa de apoiar as artes
e as culturas populares, já dizia a poeta Cecília Meirelles num Congresso Nacional de
Folclore nos idos de 1950, é extremamente delicada. Por quê? Por muitas razões, entre elas o
fato de que uma “genuína” e “autêntica” forma folclórica pode estar associada a condições
de extrema dificuldade e pobreza. Pode estar associada às formas tradicionais de dominação
política que pululam Brasil afora: o velho clientelismo ganha novas vestes.
Um músico erudito, que compõe para a maravilhosa rabeca, e um rabequista
popular, lavrador que toca junto com toda a família as suas composições, podem ter suas
músicas gravadas num CD de divulgação nacional e mesmo internacional. Esses dois artistas
têm muito a dizer um para o outro, mas o apoio de que necessitam é muito diferenciado.
Certamente, e esse é um ponto central da discussão, muitos produtores diretos da
cultura popular carecem de apoio e amparo de modo muito mais agudo do que os
produtores de cultura inscritos em outros circuitos da produção cultural. Precisam da
valorização de sua cultura, sim. Porém, vale notar que não necessariamente da valorização de
sua cultura como “a” mais genuína. A questão crítica é o acesso aos direitos básicos de
cidadania – moradia, educação, saúde - em recantos onde a presença do Estado é, muitas
vezes, ainda precária. A inclusão social é um desafio para nossa democracia. O mais é, muitas
vezes, a liberdade de criação e os acertos entre a criatividade pessoal e a memória e a
aceitação coletiva. Há nessa área importantes experiências de apoio cultural efetivo, com
melhoria das condições de vida, que merecem ser consideradas e aprimoradas como o
Programa de Apoio às comunidades artesanais desenvolvido pelo CNFCP.
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Concluindo
Distinções podem ajudar desde que não nos enrijeçam, desde que possamos
transitar entre elas buscando qualificá-las e ponderá-las. Não nos realizamos e alcançamos
uma dimensão mais ampla da existência justamente através de obras que nos transcendem?
Não compartilhamos sempre de processos cujos rumos são, em alguma medida,
imprevisíveis? Quanto mais qualificarmos os interlocutores e os diferentes processos
culturais de que falamos nesse campo de atuação menos usaremos a noção de cultura
popular como rótulo genérico e tipificador.
A noção de cultura popular é uma noção de compromisso, cheia de tensões e
imprecisões. Uma cultura é sempre do mundo e o melhor uso da expressão “cultura
popular” corresponde ao desejo de transpassar fronteiras, de estabelecer comunicações. Em
suas melhores expressões, esse esforço busca apreender diferenças, não para enrijecer limites
(porque esse enrijecimento pode atingir formas virulentas, como ocorre nos nacionalismos
exacerbados), mas para ampliar nosso leque de possibilidades.
Valorizar a cultura popular como aquela parte da produção cultural que seria a mais
autenticamente nossa traz algumas armadilhas indesejadas. Por quê? Porque esse “nosso” é
muito heterogêneo e torna-se “nosso” por caminhos muito diferentes. A liberdade de
escolha é preciosa. Traçar cercas na cultura é tarefa inglória e ingrata. Tipificar a cultura,
opor tipos de cultura rigidamente diferenciados é falsear um universo sempre mais rico,
porque heterogêneo e dinâmico. Diferenças não são apenas externas, são também internas a
qualquer forma da cultura. Quando recusamos essa alteridade interna, tendemos a projetá-la
de modo defensivo para o exterior. Brigamos com fantasmas de nós mesmos. Tornar
alguma coisa o penhor da identidade de uma nação é uma sobrecarga imensa e o melhor a
fazer é afirmar a pluralidade interna e externa aos vários segmentos da cultura. Todos eles
são “nossos”. Das bandas de pífano às orquestras sinfônicas. Homo ludens. Parlendas e bossa
nova. Repente e Luís de Camões. Bumba-meu-boi, Reggae e Hip-Hop. Talvez possamos
fazer dessas diferenças um estímulo. Um ponto de apoio de reconhecimentos e
solidariedades a favorecer a inventividade de todas as nossas tradições.
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