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DADOS DE ODINRIGHT

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WOLFGANG SMITH
 

 
 
 
TRADUÇÃO DE PERCIVAL DE CARVALHO
 
 
 
 
 
Cosmos e transcendência: rompendo a barreira da crença cientificista
Wolfgang Smith
1ª edição — maio de 2019 — CEDET
Título original: Cosmos and Transcendence: Breaking Through the Barrier of
Scientistic Belief,
1ª edição, Sherwood Sudgen & Co., 1984 (2nd revised edition, Sophia Perennis,
2008). Copyright © by Wolfgang Smith
 
Os direitos desta edição pertencem ao
CEDET — Centro de Desenvolvimento Profissional e Tecnológico
Rua Armando Strazzacappa, 490
CEP: 13087-605 — Campinas, SP
Telefone: (19) 3249-0580
e-mail: livros@cedet.com.br
 
Editor:
Thomaz Perroni
 
Tradução:
Percival de Carvalho
 
Preparação do texto:
Francisco do Nascimento
 
Revisão ortográfica:
Carlos Cardoso Martins Moreira
 
Capa:
Otávio Augusto Zanella
 
Diagramação:
Virgínia Morais
 
Conselho editorial:
Adelice Godoy
César Kyn d’Ávila
Silvio Grimaldo de Camargo
 
FICHA CATALOGRÁFICA
Smith, Wolfgang.
Cosmos e transcendência: rompendo a barreira da crença cientificista /
Wolfgang Smith; tradução de Percival de Carvalho — Campinas, SP: VIDE
Editorial, 2019.
 
ISBN: 978-85-9507-059-2
 
1. Cosmologia. 2. Física
I. Autor II. Título
 
CDD —
113 / 530
ÍNDICES PARA CATÁLOGO SISTEMÁTICO
Cosmologia — 113
Física — 530
 
VIDE Editorial — www.videeditorial.com.br
 
Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução
desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica, mecânica,
fotocópia, gravação ou qualquer outro meio de reprodução, sem permissão
expressa do editor.
 
Contracapa
 
 
Wolfgang Smith, físico conceituado e filósofo da ciência,
demonstra neste livro que a concepção especificamente
moderna do mundo está baseada não em fatos científicos,
mas, em última instância, em nada mais substancial do que
uma coleção de mitos prometeicos. De modo muito
esclarecedor e através de uma escrita elegante, o Dr. Smith
conduz o leitor a uma abertura de perspectivas que lhe
permite recobrar, com renovada convicção, os
conhecimentos metafísicos de profundo alcance que nos
foram legados pelo cristianismo. Uma vez rompida a
barreira das crenças cientificistas modernas, torna-se
possível contemplar novamente as verdades universais que
há muito vinham sendo obscurecidas.
 
Orelhas
 
 
WOLFGANG SMITH nasceu em 1930 e se formou aos 18
anos em Física e Matemática na Cornell University. Suas
pesquisas e artigos em aerodinâmica e campos de difusão
forneceram a chave teórica para a solução de problemas de
reentrada na atmosfera em viagens espaciais. Depois de
receber o Ph.D. em Matemática pela Columbia University,
foi professor no M1T e na University of Califórnia. Além de
inúmeras publicações técnicas relacionadas à topologia
diferencial, Dr. Smith é autor de três livros e muitos artigos
sobre questões interdisciplinares e epistemológicas, nos
quais se preocupa em desmascarar algumas concepções
cosmológicas equivocadas porém amplamente admitidas
como verdades científicas. Desde que se aposentou da
carreira acadêmica, tem publicado muitos livros dedicados à
crítica e à interpretação da ciência desde um ponto de vista
metafísico. Este é o quarto livro de sua autoria publicado
pela VIDE Editorial — os outros são O enigma quântico,
Ciência e mito c A sabedoria da antiga cosmologia.
“Minha preocupação em Cosmos e transcendência foi
demonstrar, por um lado, que a subjetivação das qualidades
não é, como hoje se costuma acreditar, uma descoberta
científica, mas um infundado pressuposto filosófico
estipulado por René Descartes; e, por outro lado, que esta
premissa cartesiana contradiz a sabedoria perene da
humanidade”.
***
“Ao que tudo indica, deu-se mesmo uma ‘queda’ de
enormes proporções entre os séculos XIV e XV. Até a leitura
mais casual da história europeia revela os contornos de uma
transformação descomunal: ruía a velha ordem e nascia um
novo mundo. Por certo, essa é metamorfose cultural que
normalmente contemplamos sob as cores da evolução e do
progresso; apenas, passou-nos despercebido que na
barganha perdemos o nosso senso de transcendência. Ou
seja, tornamo-nos sofisticados, céticos e profanos. Por mais
iluminados que possamos almejar ser, a sabedoria das eras
ficou sendo para nós uma superstição, um mísero vestígio
dum passado supostamente primitivo; ou, na melhor das
hipóteses, é vista por nós como literatura ou poesia no
sentido exclusivamente horizontal que hoje ligamos a esses
termos. Goste-se ou não, achamo-nos num cosmos
dessacralizado e aplanado, um universo sem sentido que
atende sobretudo às nossas necessidades animais e à nossa
curiosidade científica”.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
A Thea, cujo bom juízo
tantas vezes salvou o dia.
 
SUMÁRIO
 
 
APRESENTAÇÃO
 
PREFÁCIO À SEGUNDA EDIÇÃO
 
CAPÍTULO I
A ideia do universo físico
 
CAPÍTULO II
O dilema cartesiano
 
CAPÍTULO III
Horizontes perdidos
 
CAPÍTULO IV
Evolução: fato e fantasia
 
CAPÍTULOV
O ego e a besta
 
CAPÍTULOVI
A deificação do inconsciente
 
CAPÍTULO VII
O “progresso” em retrospecto
 
APRESENTAÇÃO
 
 
COMO ESTE LIVRO não poderia deixar mais claro, a
Revolução Científica do século XVII proclamou o triunfo de
uma determinada cosmovisão científica (racionalista,
materialista), com sua epistemologia (o empirismo) e seus
procedimentos (o “método científico”). Ao contrário do que
supõe o vulgo, a ciência moderna não é tão-somente um
modo desinteressado, desapegado e não-valorativo de
investigar o mundo material: é um complexo de disciplinas
e técnicas que se ancora todo ele em pressupostos e
atitudes de base cultural, relativos à natureza da realidade e
às maneiras mais apropriadas de explorar os fenômenos
materiais, explicá-los e, talvez mais significativamente,
controlá-los. Com efeito, seria impossível separar dos
métodos da ciência moderna as suas teorias e as ideologias
que fornecem a sua força motriz — e é a esse novelo
emaranhado, ou, no dizer de Wolfgang Smith, aos
pressupostos inverificáveis assumidos pelas proposições
“verificáveis” da ciência, que o autor aplica o termo
cientificismo.
Como o livro deixa igualmente claro, a moderna
cosmovisão cientificista é incapaz de admitir Deus (seja lá
qual nome se Lhe dê): Deus é ora rechaçado como
“hipótese” obsoleta, ora solenemente ignorado — o que
afinal dá no mesmo. Outrossim inaceitável para o
cientificismo é todo senso do sagrado, cuja ausência
consiste em uma das características definidoras da
modernidade como um todo. Escusado dizer que são da
maior grandeza as questões debatidas, e tão mal
compreendidas, na querela entre “ciência” e “religião”, ou
“modernidade” e “tradição”: para mencionar só algumas
das mais salientes, a nossa concepção do que constitui
“realidade”, “natureza humana”, “vida” e “morte”,
transcendência e imanência, a relação entre o mundo
material e as realidades espirituais mais elevadas. Cosmos
e transcendência nos convoca para uma perquirição sobre
essas questões — uma indagação das ortodoxias da ciência
moderna à luz da sabedoria tradicional, norteada por
princípios e verdades imutáveis, nem novas nem velhas
mas atemporais.
Valendo-se de uma raríssima combinação de qualidades
e experiências, Wolfgang Smith transita com desenvoltura
entre os mundos um tanto arcanos da ciência
contemporânea e da metafísica tradicional. Às suas
imponentes qualificações em matemática, física e filosofia
se somou, durante décadas de estudo infatigável, um vasto
cabedal de platonismo, teologia cristã, cosmologias
tradicionais e metafísicas orientais. Os horizontes foram-lhe
ampliados tanto por diversas experiências profissionais na
academia e no mundo higb-tech da indústria aeroespacial,
como por pesquisas próprias empreendidas no curso da sua
desbravadora jornada intelectual e espiritual. Aí temos o
raro homem que se põe à vontade, por igual, com Eckhart e
com Einstein, com Heráclito e com Heisenberg! O dr. Smith
não é nenhum obscurantista a rejeitar fatos científicos
comprovados; não é nenhum reacionário a revocar os bons
velhos tempos. E um cientista de mente sóbria e um filósofo
que tem enfrentado alguns dos problemas mais
intimidadores da nossa era, recusando render-se aos
lugares-comuns e chavões da modernidade.
Nesta obra o dr. Smith escava os próprios fundamentos
do pensamento moderno a fim de explicar as rachaduras e
fissuras que vêm aparecendo por toda parte disto que se
pensava ser o sólido edifício da “ciência”. O autor rastreia a
linhagem de alguns dos preconceitos modernos mais
hipnotizadores (a crença no progresso, por exemplo) e
analisa o legado intelectual de figuras como Descartes,
Newton, Darwin, Freud e Jung, apresentando as ideias e
princípios mais cerebrinos em prosa lúcida e elegante,
inteligível a qualquer leitor receptivo. Cosmos e
transcendência, saído há um quarto de século, é fruto de
longos anos de exploração intelectual destemida, ruminação
profunda e discernimento maturado. A nossa era necessita,
com urgência, dos lumes lançados pela abrangente
investigação de Wolfgang Smith — e a editora Sophia
Perennis merece todo o louvor por trazer uma reedição
desta obra percuciente e estimulante a novas gerações de
leitores.
 
Harry Oldmeadow
Universidade La Trobe
Bendigo, Austrália
 
PREFÁCIO - À SEGUNDA EDIÇÃO
 
 
ESTE LIVRO tem propósito duplo. Primeiro, apresentar uma
crítica do mundo moderno e, com base nisso, expor uma
sabedoria metafísica atemporal. A segunda finalidade
pressupõe a primeira: mostrar que enquanto não chegarmos
a “romper a barreira da crença cientificista”, nas palavras
do subtítulo, essa sabedoria perene continuará inacessível a
nós.
Minha fundamental objeção à mundivisão cientificista é
que ela concebe o universo exterior como impercebido e
impercebível. O mundo concreto, composto de elementos
sensórios, tais como cor e som, e deveras de inúmeras
qualidades, é assim subjetivizado — quer dizer, relegado à
esfera da mente ou, se se preferir, da função cerebral.
Afinando-me com tendências filosóficas de vulto (a começar
por Husserl e Whitehead), eu julgo essa subjetivação
ilegítima e tremendamente falaz. Minha preocupação em
Cosmos e transcendência foi demonstrar, por um lado, que
a subjetivação das qualidades não é, como hoje se costuma
acreditar, uma descoberta científica, mas um infundado
pressuposto filosófico estipulado por René Descartes; e, por
outro lado, que esta premissa cartesiana contradiz a
sabedoria perene da humanidade.
Nessas duas bases eu pude proceder à realização do
intento duplo da obra, conforme definido acima.
O livro saiu e as coisas ficaram nesse pé, até que, alguns
anos depois, eu tomei interesse pelo chamado debate da
“realidade quântica”, que se vem travando desde 1927. O
que tem inquietado físicos e filósofos esses anos todos é o
profundo desencontro entre as descobertas da física
quântica e as nossas ideias costumeiras sobre a realidade
física, ao ponto de esses achados nos parecerem
paradoxais. Meu maior interesse era verificar se a filosofia
tradicional — eu tinha em mente sobretudo as escolas
platônicas — poderia dar alguma contribuição de valor para
o debate; e o que eu descobri, após um período de
considerável confusão, me apanhou de surpresa: a chave
para a compreensão da teoria quântica, eu agora percebia,
jaz precisamente no reconhecimento de que as qualidades
não são, afinal de contas, subjetivas, como todos tinham
presumido desde o início do debate. Eis que, uma vez
alijada a premissa cartesiana, tudo se encaixa no seu
devido lugar, e eu então pude escrever, n’0 enigma
quântico, que “o paradoxo quântico é o jeito da natureza de
refutar uma filosofia espúria”.
Deu-se, assim, que aquilo que em Cosmos e
transcendência havia servido de meio para desqualificar a
cosmovisão científica se tornou crucial para um
entendimento filosófico da física contemporânea. A física
pode, sim, ser interpretada em bases não-cartesianas, e
essa reinterpretação constitui a retificação necessária para
que possamos integrar as descobertas físicas comprovadas
em esferas mais altas do saber. A mesma ciência, portanto,
que desde os seus primórdios no século XVII se apresentava
como hostil à sabedoria tradicional agora vem de certo
modo apoiá-la.
Há no entanto mais por dizer; pois acontece que a
referida reinterpretação da física tem implicações decisivas
em quase todos os domínios fundamentais da ciência
contemporânea. Sob o risco de falar em termos
hipercondensados, e portanto de modo incompreensível,
cito aqui alguns exemplos: (1) O novo entendimento da
teoria quântica revela um princípio de “causalidade vertical”
— isto é, de causalidade instantânea, não determinada por
eventos antecedentes — que se prova atuante não só no
que os físicos denominam colapso do vetor de estado, como
ainda em todos os âmbitos a que se aplique a noção de
“projeto inteligente” — por exemplo, a arte humana.1 (2) A
distinção ontológica entre ambiente físico e o perceptível
acarreta uma distinção entre o cosmos terrestre e o sideral,
o que fundamentalmente desqualifica as asserções
reducionistas da cosmologia astrofísica contemporânea.2 (3)
Num universo dotado de qualidades reais, o que se costuma
chamar princípio antrópico assume um novo e insuspeito
significado.3 (4) A derrubada da premissa cartesiana tem
enorme repercussão no problema da percepção e respalda
os achados empíricos de James Gibson, o cientista da
Universidade Cornell que assombrou as comunidades
eruditas com a sua teoria “ecológica” da percepção visual.4
(5) A derrubada afeta igualmente o problema mente-corpo
no contexto da neurofisiologia — o chamado “problema da
ligação” [binding problem] — e permite uma integração das
descobertas neurofisiológicas nas antropologias
tradicionais.5

Tanto baste para indicar a extrema fecundidade de


abandonar a premissa cartesiana e, em consequência,
voltar à normalidade metafísica. O que eu quero transmitir
ao leitor neste prefácio atualizado é que o livro em suas
mãos não deve ser visto bem como o término de uma
investigação, mas sim como um recomeço, um novo ponto
de partida na busca da verdade.
 
Camarillo, Califórnia
Janeiro de 2008
Notas
 
PREFÁCIODA SEGUNDA EDIÇÃO
 
1. Ver A sabedoria da antiga cosmologia. Campinas: Vide Editorial, 2017, cap. x.
2. Ibid., cap. vii.
3. Ibid., cap. xi.
4. Ver “The Enigma of Visual Perception”. In: Sophia, v. 10, n. 1, 2004.
5. Ver “Neurons and Mind”. In: Sophia, v. 10, n. 2, 2004.
 
 
CAPÍTULO I - A IDEIA DO UNIVERSO FÍSICO
 
 
NADA PARECE MAIS CERTO do que o nosso conhecimento
científico do universo físico. Mas o que é, afinal, o universo
físico? Dizem-nos que ele se constitui de espaço, tempo e
matéria, ou de espaço-tempo e energia, ou de sabe-se lá
que coisa ainda mais abstrusa e menos imaginável; mas,
seja ele o que for, dizem-nos em termos inequívocos o que
ele exclui: o universo físico, segundo o que todos
aprendemos, exclui quase tudo quanto componha o mundo
na perspectiva humana comum. Exclui portanto o azul do
céu e o rugido das ondas a rebentar, a fragrância das flores
e todas as incontáveis qualidades — meio percebidas, meio
intuídas — que emprestam cor, encanto e significado ao
nosso meio ambiente terrestre e cósmico. Exclui, na
verdade, tudo o que se possa imaginar ou conceber, senão
em abstratos termos matemáticos.
Mas como fica, então, o nosso habitat — este mundo
comezinho e singelo, pintado pelos artistas e cantado pelos
poetas? Será concebível que haja dois mundos: um âmbito
visível, digamos assim, e, além desse, o universo físico, que
só a ciência pode desvendar? Se falássemos em nome da
teoria dominante, feríamos de responder: há só um mundo
real e objetivamente existente, que é, com efeito,
precisamente o universo físico e nada mais. Este uno e
único mundo, ademais, embora seja a causa da percepção,
não é percebido ele próprio, pois o que se apresenta no ato
da percepção (entendida no sentido de uma exposição
imediata — por exemplo, a percepção de vermelhidão) é
tido como particular e subjetivo — e, portanto, de certo
modo, ilusório. Sejam lá o que forem essas “imagens
mentais”, elas não têm lugar dentro do universo físico e, em
consequência, não têm existência real ou objetiva. A
humanidade, ao que tudo indica, vem sendo desde tempos
imemoriais engambelada pelos próprios sentidos, porquanto
tem atribuído ao mundo externo uma série de qualidades
que ele não possui. Nas palavras de Alfred North Whitehead:
 
A natureza leva o crédito por aquilo que em verdade
se deve a nós mesmos: a rosa pelo seu perfume; o
rouxinol pela sua canção; o sol pelo seu resplendor. Os
poetas estão redondamente enganados. Deviam eles
dirigir os seus versos a si próprios, e deviam torná-los
odes de autocongratulação pela excelência da mente
humana. A natureza, essa, é um negócio enfadonho, sem
som, sem cheiro, sem cor; nada mais que o precipitar
infindável e absurdo de matéria.1
 
Eis aí a hipótese familiar e no entanto perenemente
espantosa que está no coração da Weltanschauung
científica: o conceito de bifurcação (para usar o termo de
Whitehead). A saber, o que se bifurca, o que se parte em
dois, são as qualidades ditas primárias e secundárias: as
coisas que se podem descrever em termos matemáticos e
as que não. Falando logicamente, o postulado da bifurcação
equivale a identificar o chamado universo físico (o mundo
tal qual concebido pelo estudioso da física) com o mundo
real per se, mediante o artifício de relegar tudo o mais —
tudo o que não caiba nessa concepção — a um limbo
ontológico situado fora do mundo das coisas objetivamente
existentes. Com isso o postulado elimina, de um só golpe,
justo aqueles aspectos do mundo que se provam refratários
à descrição matemática — quer dizer, todos os elementos
irredutíveis a extensão e número. O que resta daí é um
universo inerentemente matemático — bem aquilo que uma
ciência baseada na medição e no cálculo poderia esperar
dominar. Resta, por outras palavras, isso que vimos
chamando universo físico, tomado não como mera
abstração ou modelo útil, mas como a própria realidade
objetiva. Certa ou errada, diga-se logo que essa redução do
mundo às categorias da física não é, como tantos
acreditam, uma descoberta científica, e sim um pressuposto
metafísico embutido na teoria desde o princípio.
Na verdade, a tese remonta a Galileu e Descartes —
como teremos ocasião de ver no capítulo II. Daí foi
transmitida a Newton, que se apropriou das concepções
metafísicas básicas de seus colegas europeus,
incorporando-as aos Principia, geralmente na forma de
escólios aos seus teoremas científicos. E daí, é claro, veio
penetrar no pensamento científico vigente.
Não deixemos contudo de observar que no decurso dessa
transmissão aconteceu à doutrina algo notável. Por um lado,
encontramos Newton apregoando a nova metafísica
bifurcacionista com todo o enorme peso da sua autoridade
científica, a ponto de se pôr com intrincadas discussões (na
Opticks) a fim de demonstrar como as “qualidades
secundárias” surgem dentro da alma, ou “substância
pensante”, a qual, segundo a sua concepção, se localiza no
interior de uma pequena câmara do cérebro (o chamado
sensório); por outro lado, em numerosas outras ocasiões,
“quando ele não se esquece do empirismo”, como observa
Edward A. Burtt, “Newton considera que o homem vive em
imediato contato perceptual e consciente com as próprias
coisas físicas — são elas mesmas que nós vemos, cheiramos
e tocamos”.2 E, mais surpreendente ainda, ele chega até a
extrapolar esse conhecimento sensorial ao nível atômico,
conforme lemos na seguinte passagem dos Principia:
 
Não conhecemos a extensão dos corpos senão por
meio dos nossos sentidos, e estes não alcançam a
extensão de todos os corpos; mas, por percebermos a de
todos os corpos sensíveis, atribuímo-la universalmente a
todos os mais. Aprendemos pela experiência que
muitíssimos corpos são duros; e, tendo em vista que a
dureza do todo resulta da dureza das partes, podemos
com justeza inferir a dureza das partículas indivisíveis
não somente dos corpos que sentimos, mas de quaisquer
outros. Que todos os corpos são impenetráveis,
chegamos a sabê-lo não pela razão, mas pela sensação.3
 
Para mais, o Newton empirista se entrega a incessantes
polêmicas contra o que chama “hipóteses”, que entende
como toda e qualquer afirmação não derivada de
fenômenos sensíveis e não sustentada por rigorosos
experimentos. Julga pertencerem suas próprias teorias à
“filosofia experimental”, disciplina que acredita inconciliável
com “hipóteses” de qualquer tipo. Isto vai enunciado com
clareza nos Principia.
 
O que quer que não se deduza de fenômenos
chamemo-lo hipótese; e hipóteses, sejam elas
metafísicas ou físicas, possuam elas qualidades ocultas
ou mecânicas, não têm lugar na filosofia experimental.
Na filosofia experimental, determinadas proposições se
inferem de fenômenos e, depois, se generalizam por
indução. Assim foi que se descobriu a impenetrabilidade,
a mobilidade e a força motriz dos corpos, bem como as
leis do movimento e da gravitação.4
 
Em suma, a herança newtoniana revela-se multifacetada
e curiosamente equívoca. Além da mecânica, da óptica e
dos teoremas gravitacionais, contém os elementos da
metafísica cartesiana e um positivismo inflexível, tudo
ajuntado num magnum opus de influência incalculável. Não
há dúvida de que o dogma da bifurcação lucrou imenso com
essas associações. Como observa Burtt, “feitos esplêndidos
e inquestionáveis deram a Newton autoridade sobre o
mundo moderno, que, sentindo-se libertado da metafísica
tradicional pelo Newton positivista, se sentiu agrilhoado e
subjugado a uma metafísica exatíssima pelo Newton
metafísico”.5 Para dar só uma ideia das enormes
implicações dessa “metafísica exatíssima” que veio impor-
se ao mundo moderno, gostaríamos de citar uma última
passagem do tratado de Burtt:
 
Onde se inculcasse a fórmula da gravitação universal,
ali se insinuava, como um envolvente nimbo de crença,
que o homem não passa de um insignificante espectador
local, mísero subproduto de um mecanismo automovente
perpétuo, o qual já existia infinitamente antes dele e aí
continuará para sempre depois dele, sagrando o rigor
das relações matemáticas e condenando à impotência
toda imaginação ideal — um mecanismo que se constitui
de massas brutas largadas por aí a pervagar sem
propósito um indesvendável espaço e tempo, e
desprovidas de quaisquer qualidades satisfatórias aos
interesses da natureza humana, salvo o objetivo central
do físico matemático.6
 
EM FINAIS do século XIX, quando parecia já praticamente
certa a vitória da física newtoniana (acompanhada do seu
“envolvente nimbo de crença”), começaram a sobrevir-lhe
algumas dificuldades imprevistas. O formidável progresso
da física, combinado com o desenvolvimento da tecnologia
moderna e a evolução dos instrumentos científicos,
preparou o terreno para certos experimentos melindrosos,
cujos resultados pareciam não se enquadrar na teoria
aceita. Tentativas de modificar a teoria por meio de
hipóteses ad hoc invariavelmente deram em resultados
insatisfatórios, e a física newtoniana, como se sabe, por
força acabou abandonada como teoria fundamental ou
primária, posto que tenha sobrevivido com capacidade
limitada (como a teoria apropriada a investigar certo
domínio intermediário, ou “mesocósmico”, da realidade
física). Curiosamente, a própria pujança da teoria — aquelas
incríveis precisões que por pouco não converteram o mundo
à doutrina newtoniana — foi justo aquilo que precipitou a
sua derrocada.
As dificuldades em questão impeliram alguns dos
cientistas mais destacados a reexaminar com todo cuidado
os fundamentos da física newtoniana. Sob influência do
positivismo lógico e escolas filosóficas afins, buscou-se tirar
a limpo a relação entre os conceitos físicos fundamentais e
os fatos observáveis. Após séculos de domínio newtoniano,
começavam os espíritos mais audaciosos a dar-se conta de
que a física não lida com entidades absolutas a
permanecerem ad aeternum sob o véu da observada e
observável natureza, mas sim que, bem ao contrário, ela
lida precisamente com o que é ou pode ser observado
mediante procedimentos físicos especificados. Passados
mais de duzentos anos, voltavam os físicos a travar a luta
contra as “hipóteses”, vindo a descobrir que a física
newtoniana não era afinal a pura “filosofia experimental”
que alegava ser. Como nota Eddington, “a teoria da
relatividade foi a primeira tentativa séria de lidar
imprescindivelmente com os fatos em si mesmos. Antes
disso os cientistas professavam profundo respeito aos ‘fatos
crus da observação’, mas jamais lhes ocorreu averiguar o
que eram eles”.7
O que seja “fato cru da observação”, é claro, está muito
condicionado ao domínio de magnitudes físicas com que o
cientista se ocupe e à sensibilidade dos instrumentos de
medição que ele use. Num sentido, também a física clássica
trabalhava com fatos crus, como todo o mundo sabe: a
precisão dela era perfeitamente adequada ao campo de
aplicações que mais lhe concernia. Onde residia a estranha
deficiência da física clássica (e é isto, com certeza, o que
Eddington tem em mente) era na compreensão dos seus
próprios métodos, conforme evidenciado pela sua
incapacidade para dar uma explicação clara e coerente do
seu real modus operandi. Para piorar, não se tinha
praticamente nenhuma consciência dessa falta. No
transcorrer de toda a era newtoniana, um nimbo de noções
confusas camuflava o problema, e uma mística de
infalibilidade por sua vez sustentava o nimbo. Até o fim a
física clássica se enxergou a si mesma como uma estrutura
coerente e racional, solidamente assentada sobre o
fundamento inabalável do fato empírico.
Como sabemos, tal autoimagem da ciência veio a mudar
por efeito de uma análise crítica (uma espécie de
epistemologia científica) que começou a ser empreendida a
sério nas primeiras décadas do século XX. E não só essa
análise trouxe à tona a já referida incapacidade da física
clássica para dar uma explicação coerente e racional de si
mesma, mas também, o que é ainda mais importante, levou
à conclusão espantosa de que é pura e simplesmente
impossível dar semelhante explicação. Ora, esta
impossibilidade deve-se a existirem no esquema clássico
certas grandezas que se revelam em princípio imensuráveis,
ou melhor, mensuráveis apenas com um limitado grau de
precisão. Como seria de esperar, o domínio “mesocósmico”
da realidade física no qual a física clássica tinha provado o
seu valor coincide exatamente com o domínio de grandezas
físicas no qual esse “limitado grau de precisão” é suficiente
para evitar discrepâncias observáveis. Fora do domínio
mesocósmico a física clássica desmorona. O avançar para
além desses limites exige uma teoria em que pelo menos
um dos “inobserváveis” clássicos seja eliminado com a
criação de um novo formalismo matemático.
Para indicar de forma mais concreta o que vimos
expondo em termos bastante gerais, consideremos o trivial
conceito de “simultaneidade”. Normalmente não temos
nenhuma dúvida de que a simultaneidade se define em
escala global (como se só o proferir a palavra agora já
bastasse para determinar um instante de tempo particular
em todo o comprimento e largura do universo!). Se, todavia,
nos pusermos a indagar que espécie de observação nos
permitiria determinar se dois eventos distantemente
separados são ou não “simultâneos”, vamos descobrir que a
coisa é um pouco mais complicada. Assim, se por acaso um
raio atinge a ponta dianteira de um trem em movimento e
outro lhe atinge a traseira, pode dar-se que esses dois
eventos sejam simultâneos quando observados do trem e
não simultâneos quando observados do solo. E, o que é
mais, a ordem de precedência (se A precede B ou se B
precede A) também dependerá em geral do quadro
referencial adotado. Naturalmente, desde que se tomem
dois eventos não separados por vastas distâncias
astronômicas e dois quadros referenciais que tenham
pequena diferença de velocidade entre si em comparação à
velocidade da luz, as discrepâncias não serão observáveis.
Por outras palavras, sob condições ordinárias de medição o
conceito de simultaneidade detém significação absoluta. Já
fora desse domínio restrito, aí entra em jogo a relatividade
do conceito — ou seja, a sua “inobservabilidade” em termos
absolutos. É quando a física clássica cai por terra.
Pois bem, como demonstrou Einstein com a sua “teoria
da relatividade especial”, a dificuldade básica pode ser
resolvida pela fusão entre o espaço físico e o tempo físico
num só espaço-tempo tetradimensional, o que com efeito
alija a noção de simultaneidade absoluta. A teoria, como
todos sabem, produziu resultados brilhantes e
estarrecedores (incluindo a fatídica fórmula E = mc ). Veio a
2

ser confirmada por incontáveis medições e observações, e


ocasionou diversos avanços tecnológicos extraordinários.
Além disso, constitui o ponto de partida de uma linha
teórica ainda mais sofisticada — as teorias do campo
gravitacional e do campo unificado —, que podemos
descrever como a fusão entre o espaço-tempo e a matéria
num só, como se chama, espaço-tempo curvo, onde a
matéria e até mesmo os campos eletromagnéticos passam
a meras propriedades “geométricas” do continuum
subjacente.
Cumpre notar que essas teorias relativísticas se reduzem
à física clássica no domínio mesocósmico — ou, em termos
mais formais, elas se reduzem à teoria clássica enquanto a
velocidade da luz tenda ao infinito, sendo tal o caso-limite
em que a simultaneidade distante tem significado físico. A
teoria da relatividade é portanto um refinamento da física
clássica, baseado na eliminação de um “inobservável”
particular. O seu domínio, ademais, vai muito além das
fronteiras mesocósmicas para abarcar as dimensões
astronômicas: o macrocosmo físico. Por outro lado, também
este domínio não é ilimitado, na medida em que a física
relativística se apropria de outros inobserváveis clássicos,
quais sejam, grandezas que se tornam inobserváveis na
outra extremidade da escala: no mundo dos átomos e
partículas fundamentais.
A título de ilustração, consideremos a “posição-e-
velocidade” de uma partícula. De acordo com a descrição
clássica, toda partícula, ou ponto de massa, tem uma
posição e uma velocidade bem definidas a cada instante de
tempo. No tocante a um sistema de coordenadas locais, a
localização consiste, portanto, no par formado por
coordenada de posição q e coordenada de velocidade v. Pois
bem, veio a revelar-se que o par q e v é um inobservável
microcósmico. Porque, de fato, segundo reza o famoso
princípio da incerteza enunciado por Heisenberg, quanto
maior for a exatidão com que se consiga determinar uma
das duas coordenadas, menos se conseguirá saber a
respeito da outra. Falando mais precisamente, se
substituímos a velocidade v pela correspondente
coordenada de momento linear p = mv (onde m designa a
massa), o princípio estabelece que o produto das
respectivas incertezas de q e de p não pode ser inferior à
chamada constante de Planck h. Uma vez que h é uma
quantidade ínfima (aproximadamente 6,626 x 10-27 erg.s), a
inobservabilidade do par q e p não se manifesta sob
condições ordinárias de medição. Quando se passa à
observação de átomos e partículas fundamentais, por outro
lado, aí sim ela aparece e, realmente, desempenha papel
crucial. É por esta razão que tanto Heisenberg como
Schrödinger engendraram um novo formalismo matemático
(os de ambos se equivalem, como mais tarde se descobriu)
capaz de eliminar o par q e p, assim como uma série de
inobserváveis similares. A teoria resultante, de mais a mais,
veio trazer ordem ao caos da precedente teorização
quântica, e tem tido enorme êxito em explicar uma
amplíssima gama de fenômenos microscópicos. Ao menos
no primeiro nível, por assim dizer, do domínio microfísico,
essa bem pode ser a teoria “certa”. Como seria de esperar,
a mecânica quântica reduz-se à teoria clássica enquanto b
tenda a zero, sendo tal o caso-limite em que a “posição-e-
momento” é observável.
NUM SENTIDO, a teoria da relatividade e a mecânica
quântica ambas “dessolidificaram” o universo físico. Mais
precisamente, elas demonstraram a insuficiência daquelas
vulgares noções a respeito da “matéria” derivadas em parte
do senso comum, em parte da física clássica. Ainda que
essas concepções tenham um viso de verdade e alto grau
de utilidade dentro do domínio mesocósmico, a validade
delas restringe-se a esse âmbito. O próprio mesocosmo,
assim, foi destituído da sua realidade aparentemente
absoluta e rebaixado à condição de fenômeno: tornou-se um
aspecto do universo físico em relação ao homem.
Estritamente falando, nós caímos em ilusão no momento em
que esquecemos essa relatividade e atribuímos a tal
“cosmos” uma espécie de realidade independente que ele
não possui.
E quanto às novas teorias físicas, poderão elas
proporcionar um conhecimento mais que fenomênico do
universo? No caso da relatividade — que é, com efeito, uma
teoria de invariantes, quer dizer, de grandezas não
dependentes de observações particulares —, fica até certo
ponto a critério de cada um atribuir ou não uma realidade
mais que formal à estrutura invariante, seja esta um
espaço-tempo curvo ou outra. A questão divide a opinião
dos especialistas — ao passo que o próprio Einstein se
inclinava à interpretação realista da teoria, parece que a
maioria dos físicos proeminentes tomam o partido contrário.
A resposta em grande parte dependerá do quanto se leva a
sério a mecânica quântica. Pois, de fato, esta teoria nos
obriga a admitir que o conhecimento científico é
irremediavelmente fenomênico — um conhecimento não de
coisas em si mesmas, mas de coisas em relação ao
observador. Conforme o exprimiu Heisenberg, “se se pode
falar em uma cosmovisão [Naturbild] das ciências exatas na
nossa época, ela refere-se já não a uma visão do cosmos,
mas a uma visão das nossas relações com o cosmos”.8
No caso da mecânica quântica, essa sua subjetividade
reflete-se no seu próprio formalismo. Na formulação de
Schrödinger, o sistema físico é representado formalmente
por uma chamada função de onda, a qual entretanto não se
presta a descrever o sistema físico em si, mas antes a
incorporar o nosso conhecimento dele. Já muito se debateu
se esse conhecimento seria inerentemente estatístico, de
modo que a função de onda serviria como um “catálogo de
expectativas”, para usar a expressão de Schrödinger. Em
todo caso ela é, de uma certa maneira, um “catálogo de
informações” (expressão esta de Pauli), de onde se extraem
informações pela aplicação de operadores matemáticos que
representam formalmente grandezas mensuráveis. Por
exemplo, existe um operador a representar a coordenada de
posição q de uma partícula e outro a representar a
correspondente coordenada de momento linear p. Só que
não existe nenhum operador a representar o par
inobservável q e p\ Além disso, em geral um operador não
pode extrair do “catálogo” um valor preciso, já que essa
operação obviamente resultaria na determinação exata dos
inobserváveis (como o par q e p, por exemplo). Ademais, o
próprio formalismo matemático garante que a precisão das
informações sobre, digamos, a variável q contidas numa
dada função de onda seja inversamente proporcional à
precisão das informações sobre a variável dita conjugada p.
Por aí se nota que o princípio da incerteza de Heisenberg
pode ser derivado do formalismo como teorema
matemático.
Quer dizer, a função de onda é um “catálogo de
informações” que não nos informa tudo o que queiramos
saber a respeito de um dado sistema físico. A questão,
porém, é que ele nos informa tudo o que podemos saber.
Isto torna-se razoavelmente plausível quando se considera
que qualquer medição implica uma interação física entre
dois sistemas: o sistema a ser medido e o sistema por meio
do qual se realizará a medição (composto por instrumentos,
mais raios de luz e outras “partículas-teste”). Já se vê que a
medição ela própria perturba o primeiro sistema. Ora bem,
a teoria quântica afirma que a transferência de energia
entre os dois sistemas não é um processo inerentemente
contínuo, mas sim envolve unidades discretas, ou quanta,
que têm um valor pequeno mas fixo. Essa afirmação
implica, em especial, que a perturbação no primeiro sistema
só pode ser reduzida até certo ponto, caso a medição
chegue a efetuar-se. Seria admissível, pois, dar ao princípio
da incerteza a seguinte interpretação: uma medição de,
digamos, q perturba a partícula de tal forma que afeta uma
subsequente medição de p. Quanto mais certeira for a
medição de q, maior será a perturbação na partícula
observada e a resultante incerteza de p.
Em contrapartida, não se deve levar a interpretação
longe demais, visto conter ela o tácito pressuposto de que
uma partícula tem em si mesma posição e momento
definidos, não obstante a possibilidade de a medição de
uma coordenada causar alguma perturbação incontrolável à
outra — e está claro que tal pressuposto é injustificado e
inverificável. É uma dessas coisas que a física vem já há
sete ou oito décadas desdobrando-se para eliminar. Dir-se-ia
uma dessas hipóteses com a cabeça a prêmio. Readotá-la a
esta altura, quando ela já não atende a nenhuma
necessidade e não acrescenta absolutamente nada, seria
passar batido pelo propósito da física.
Mas há um motivo ainda mais contundente para
abandonar a hipótese em causa: a presumida posição e o
presumido momento não existem, porque, para começar, a
rigor não existem “partículas”. E que, em virtude do
chamado dualismo onda-partícula, só tem cabimento falar
em partícula com relação a certos gêneros de experimentos
e com o entendimento de que em outros gêneros de
experimentos a mesma realidade física fundamental se
manifestará já aí como onda, a distribuir-se continuamente.
Dado que os conceitos de partícula e de onda se excluem
por definição, impõe-se concluir que a realidade física em si
não é nem partícula nem onda. Tudo o que se pode afirmar
é que a certos respeitos ela se comporta como se fosse
partícula e a outros respeitos como se fosse onda. Conste-se
que este dualismo onda-partícula vale para todas as formas
de matéria ou energia, sejam “ondas” eletromagnéticas
(v.g. a luz), sejam “partículas” fundamentais (v.g. elétrons).
Obviamente, este fato notável põe em nova perspectiva
o princípio da incerteza. Com efeito, exige tal princípio.
Pode-se dizer que a incerteza quântica dá a justa medida
suficiente para impedir-nos de detectar a chamada partícula
com precisão tal que lhe eliminasse a característica de
onda. Proporciona, assim, a devida margem de manobra
necessária para que o dualismo onda-partícula exista.
Aquilo que a um olhar mais ou menos clássico se afigura
uma lacuna em nosso conhecimento é só, afinal de contas,
uma dose de falsas expectativas. A teoria quântica não
atende a nenhum pedido da física clássica, jamais lhe
cedendo o mais ínfimo conhecimento: é fiel ao princípio da
incerteza e justa com ambos os lados do dualismo onda-
partícula. Não é a teoria quântica, portanto, que frustra
nossas expectativas clássicas, mas a natureza mesma: a
realidade não se conforma ao sonho.
PARECE QUE A DESCRIÇÃO CLÁSSICA do universo físico
foi erodindo até dela sobrar pouco, se tanto. Com toda a sua
exatidão e as suas pretensões quase absolutas, o quadro
provou-se “humano, demasiado humano”.
A isto alguém poderá responder que a descrição
newtoniana teve o mérito de ser o primeiro tiro ao alvo,
uma tentativa inicial de construir um modelo adequado da
realidade física, e que, com o progresso da ciência pelos
séculos afora, a humanidade naturalmente pode esperar
alcançar modelos cada vez melhores a oferecerem um
quadro mais e mais exato de como as coisas são.
Segundo se constata, porém, essa avaliação otimista
fundamentalmente labora em erro. Fenômeno curioso, à
medida que o quadro vai entrando em foco, por assim dizer,
a imagem se decompõe e por fim se apaga. Inevitavelmente
chega um ponto em que o próprio quadro se dissolve,
deixando apenas um conjunto de equações de campo e um
cálculo operacional como uma espécie de esqueleto formal
daquilo que foi um dia uma visão física do mundo. Parece
que a caça misteriosamente se evadiu da rede bem no
instante de ser apanhada por ela. Porque, como observou
Schrödinger, foi justo quando conseguimos rastrear
individualmente átomos ou partículas fundamentais que nos
vimos obrigados a rejeitar a ideia de serem tais corpúsculos
“entidades fundamentais”.9 Assim, o que quer que a rede
tenha chegado a apanhar (e as especulações a este respeito
vão nas mais variadas direções), com toda a evidência não
é a caça original: as coisas-em-si newtonianas, que se dizia
povoarem o universo físico.
O que foi feito, então, do próprio universo físico? Qual o
status desta ideia à luz do conhecimento contemporâneo?
Do ponto de vista puramente técnico, vê-se numa olhada
rápida que o conceito não desempenha nenhum papel que
seja na economia do pensamento científico exato, nem
jamais o fez no passado. E todavia a ideia permanece no
fundo do nosso pensar como uma pressuposição implícita
que serve para moldar e definir a visão científica do todo.
Se hoje se deve admitir que o objeto imediato da
investigação científica é o que Heisenberg chama “as
nossas relações com o cosmos”, então para todos os
cientistas, excetuando-se, em todo caso, os mais sagazes,
esse cosmos é ainda o que tem sido desde os tempos de
Newton: numa palavra, o universo físico.
Que esta ideia — ou, equivalentemente, o postulado da
bifurcação — se tenha provado carente de aval científico
não a torna inválida como conceito ou postulado: apenas a
torna opcional, num sentido, e curiosamente alheia à
atividade científica. Enquanto isso a premissa continua a ser
o que sempre foi: um pressuposto metafísico, que se
sustenta ou se derruba em bases estritamente filosóficas.
Será de interesse, portanto, voltar mais uma vez até os seus
primórdios a fim de relatar a origem e as subsequentes
fortunas filosóficas desta ideia crucial.
 
Notas
 
CAPÍTULO I - A IDÉIA DO UNIVERSO FÍSICO
 
1. Science and Modem World. Nova York: Macmillan, 1953, p. 54.
2. The Metaphysical Foundations of Modem Physical Science. Nova York:
Humanities Press, 1951, p. 230.
3. The Mathematical Principies of Natural Philosophy. Londres: 1803, II, 161.
Apud: Burtt (nota 2), p. 229.
4. Principles, n, 314. Apud: Burtt (nota 2), p. 214.
5. The Metaphysical Foundations of Modem Physical Science, p. 227.
6. Ibid., p. 299.
7. Sir Arthur Eddington, The Philosophy of Physical Science. Ann Arbor:
University of Michigan Press, 1958, p. 52.
8. Werner Heisenberg, Das Naturbild der heutigen Ptrysik. Hamburgo: Rowohlt,
1955, p. 21.
9. Erwin Schrõdinger, Science and Humanism. Cambridge: Cambridge Unversity
Press, 1951, p. 17.
 
 
CAPÍTULO II - O DILEMA CARTESIANO
 
 
COMO JÁ NOTAMOS, a ideia da bifurcação começou a tomar
forma nos séculos XVI e XVII, e desde o princípio esteve
associada com a formação da nova física. Dentre os vários
fatores que concorreram para essa formação, o mais
importante, ao que parece, foi o ressurgimento do
platonismo, encabeçado por homens como Marsílio Ficino
(1433-99) e Pico delia Mirandola (1463-94). Mais uma vez
vinham as ideias de número e harmonia exercer o seu
perene poder de deslumbramento. Nicolau Copérnico (1473-
1543) recebeu influência direta dessa escola quando
estudante em Bolonha, e o posterior triunfo da sua teoria
decerto contribuiu, por sua vez, para fortalecer um já
crescente entusiasmo pelas ciências matemáticas. Com um
ardor extraordinário, os homens começavam a ver a
matemática como o protótipo e pré-requisito do verdadeiro
conhecimento e, muito possivelmente, a única fonte de
certeza. Parece que Kepler (1571-1630) falava por toda a
era quando declarou: “Assim como o olho foi feito para ver
as cores e o ouvido para ouvir os sons, assim também a
mente humana foi feita para entender, não o que quer que
seja, mas as quantidades”.1 *
Aí está em pleno curso a transição do pensar medieval
para o moderno; vai-se montando o cenário para as
descobertas newtonianas — e no entanto o próprio Kepler
continua imbuído das inclinações transcendentais do
platonismo, não havendo de ser por acaso que o seu
interesse científico se mantém fixo no sol e nos planetas.
Fica-se com a sensação de que o verdadeiro objeto da sua
busca não eram as correlações e leis empíricas, e sim as
harmonias eternas.
Com Galileu (1564-1642) o olhar científico começa a
desviar-se manifestamente — do céu para a terra, pode-se
dizer. O cientista toscano ainda louva as excelsas virtudes
da matemática e vez por outra chega até a deblaterar
contra a natureza volátil e ilusória do conhecimento
sensorial. Mas, enquanto se apropria desses temas
platônicos, volta suas energias para uma tarefa muito pouco
platônica: a explicação matemática de coisas mundanas tais
como uma pedra caindo. Ao mesmo tempo, vai-se deixando
impregnar de outra ideia que vinha tomando conta da
mente europeia: a ideia de mecanismo. Como observam
historiadores da ciência, ainda à altura do século XIV essa
concepção já começava a expressar-se na febre da época
pela construção de relógios astronômicos gigantescos.
“Nenhuma comunidade europeia podia manter a cabeça
erguida a menos que no seu núcleo urbano girassem
planetas em ciclos e epiciclos, enquanto trombeteavam
anjos, cantavam galos e saíam marchando e
contramarchando apóstolos, reis e profetas ao badalar das
horas”.2 É bem possível que esses prodígios da arte
mecânica sugerissem a ideia de que os movimentos
celestiais e outros fenômenos naturais são de algum modo
explicáveis em termos mecânicos. Como quer que seja, por
alturas do século XVII o conceito de clockwork universe3 já
corria os meios intelectuais europeus e exercia considerável
influência científica. Caberá notar de passagem que a força
dessa analogia entre o mecanismo da física e o mecanismo
do relógio foi ilustrada ainda pela circunstância de haverem
as descobertas mecânicas de Galileu vindo a ser logo em
seguida incorporadas à construção dum relógio de pêndulo,
inventado por Huygens em 1656. Mas, seja qual tenha sido
a origem da ideia, é evidente que o conceito de mecanismo
caía como uma luva no generalizado privilegiamento da
matemática, passando assim a constituir um dos
ingredientes essenciais da nova Weltanschauung. Ainda
faltava algo mais, e era o postulado da bifurcação. Galileu,
sem chamar atenção e, é de supor, sem perceber ele
mesmo a enormidade do passo, precipita-se a suprir a
lacuna enunciando uma interpretação subjetiva das
chamadas qualidades secundárias.
Foi porém René Descartes (1596-1650), com sua
poderosa veia metafísica, quem deu à nova visão uma
forma plenamente articulada. O matemático, físico e filósofo
francês, contagiado pelas mesmas influências e sonhos do
seu par italiano, também considera a matemática o
instrumento essencial do conhecimento humano e se
entrega com ardor à causa da mecânica universal. Dedica-
se a lançar os fundamentos teóricos de uma ciência
mecânica rigorosa, que se basearia em princípios
matemáticos capazes de explicar as operações da natureza,
desde as órbitas planetárias até os sutis movimentos dos
corpos animais. Mas, além disso, ele entende muitíssimo
bem que só um universo mecânico pode ser compreendido
em termos mecânicos. Defende a tese com contundência na
seguinte passagem:
 
Compreendemos sem nenhuma dificuldade como o
tamanho, o formato e o movimento de um corpo podem
causar alterações nos de outro, mas somos de todo
incapazes de conceber como tamanho, formato e
movimento podem produzir algo de natureza
inteiramente diferente da deles, tal como aquelas formas
substanciais e qualidades reais que muitos filósofos
supõem estarem dentro dos corpos.4
 
Daí, com notável acuidade, ele observa que “aquelas
formas substanciais e qualidades reais que muitos filósofos
supõem estarem dentro dos corpos” não podem ser
explicadas em termos mecânicos. Por outras palavras, está
claro para ele que a possibilidade da mecânica universal
depende da bifurcação. Faz-se necessário por algum meio
eliminar do mundo objetivo as qualidades secundárias
(como cor e som), e Descartes presume consegui-lo
mediante o que hoje se denomina dualismo cartesiano
mente-corpo.
Não precisamos acompanhar Descartes nas suas
solitárias meditações, em que ele procurou chegar ao
fundamento último do conhecimento humano. Basta dizer
que o filósofo saiu do seu bucólico retiro plenamente
convicto de que o universo é exatamente o que deve ser se
submetido à descrição mecânica. Em suma, é um universo
mecânico, constituído de res extensa (a posterior “matéria”
newtoniana) a mover-se no espaço de acordo com leis
mecânicas. Todo o resto fica relegado a res cogitans, ou
substância pensante, que existe por si só como uma espécie
de entidade espiritual. É digno de nota que a res cogitans
surge a Descartes logo no início das suas meditações como
a uniquíssima certeza imediata — o famoso cogito ergo sum
—, ao passo que a existência do universo mecânico, âmbito
externo à res cogitans, é alcançada só depois por meio de
um argumento lógico construído sobre a ideia de Deus e
Sua veracidade. É mesmo uma ironia assinalável que a
premissa básica do materialismo moderno se tenha fundado
sobre a teologia!
De um modo geral, Descartes advertia nas enormes
dificuldades filosóficas trazidas pela dicotomia res extensa e
res cogitans. Em primeiro lugar, se a res cogitans não tem
extensão, como pode a res extensa agir sobre ela, conforme
se supõe que faça na percepção sensorial? E como podem
movimentos presumidamente ocorridos dentro do cérebro
humano gerar concepções inextensas de um universo
extenso? Ou, em sentido inverso, como pode a res cogitans
influenciar o movimento da res extensa no caso da ação
volitiva? Se nós somos “de todo incapazes de conceber”
como causas mecânicas produzem “aquelas formas
substanciais e qualidades reais que muitos filósofos supõem
estarem dentro dos corpos”, como é que se concebe a
interação entre res cogitans e res extensa? Às vezes, como
Galileu e outros contemporâneos, Descartes está disposto a
resolver dificuldades filosóficas com o recurso à Divindade,
e, então, por meio de argumentos pseudoteológicos
(singularmente inconvincentes tanto para o materialista
como para o crente) detém-se a procurar uma solução para
o impasse filosófico criado pelos seus próprios postulados.
Outras vezes, porém, parece esquecer-se do problema, e
segue em frente como se ele não existisse. O trecho
seguinte, por exemplo, é um desses arrojos:
 
Ora, sabemos ser a natureza da nossa alma tal que
diversos movimentos de um corpo bastam para produzir
todas as suas sensações, e sabemos por experiência que
muitas dessas sensações são de fato causadas por esses
movimentos; todavia não sabemos se algo além de tais
movimentos chega a passar pelos nossos órgãos
sensoriais até o cérebro. Sendo assim, temos razão para
concluir que aquilo que dos objetos exteriores chamamos
luz, cor, cheiro, gosto, temperatura e as demais
qualidades tácteis, ou enfim aquilo que chamamos suas
qualidades substanciais, não é percebido por nós senão
como as variadas disposições desses objetos aptas a
acionar nossos nervos de maneiras diversas.5
 
Mas como é possível que causas mecânicas (“as variadas
disposições” dos objetos percebidos) suscitem sensações
como a de vermelhidão? Não será isso afirmar, uma vez
mais, que coisas como tamanho, formato e movimento
podem “produzir algo dotado de natureza inteiramente
diferente da delas”?
Para o bem ou para o mal, eis aí o legado filosófico que
Descartes passou adiante a Newton e este, por seu turno,
transmitiu ao mundo científico. Note-se que dentro em
pouco os cientistas aceitavam a ideia de res extensa como
verdade evangélica, enquanto rejeitavam os argumentos
em que Descartes buscou sustentá-la. Nas mãos da escola
britânica, para completar, a res cogitans — originalmente
concebida como substância inextensa — foi aprisionada
dentro dum ventrículo cerebral (o chamado sensório
newtoniano) e por fim eliminada in toto. Por uma curiosa
reversão da lógica cartesiana, a res extensa ganhou
precedência sobre a res cogitans, ou, como quase se
poderia dizer, a conjectura engoliu o sonho.
NO ENCERRAR DO SÉCULO XVII a ideia de um universo
mecânico ia ganhando terreno velozmente como a doutrina
oficial da ciência. Parece que para todos, afora uns
pouquíssimos seletos — na maior parte filósofos —, cada
novo triunfo da física contava como mais uma confirmação
indiscutível da mundivisão newtoniana. Por sua parte, os
homens da ciência — bem mais interessados em estender
as fronteiras da análise vitoriosa do que em perquirir-lhe os
fundamentos — andavam indispostos para questionar o
argumento. No geral, foi uma era de incrível otimismo.
Mas também havia alguns intelectuais de personalidade
firme que não se curvavam ao modismo. Em 1710, por
exemplo, George Berkeley, irlandês enérgico e eloquente,
apresentou uma argumentação de grande força contra o
conceito cartesiano de um universo impercebido e
impercebível:
 
Digo que esta mesa em que escrevo existe porque a
vejo e sinto; e se estivesse fora do meu gabinete havia
ainda de dizer que ela existe, querendo com isto dizer
que se estivesse no meu gabinete eu a poderia perceber,
ou que algum outro espírito talvez de fato a percebesse
naquele mesmo instante. [...] Quanto à afirmação de que
as coisas não-pensantes existem em sentido absoluto,
sem nenhuma dependência de serem percebidas, isto
para mim é perfeitamente ininteligível. O esse delas é
percepi; não podem elas ter existência fora da mente ou
da coisa pensante que as percebe.6
 
Não é fácil rebater tais argumentos. Eles atacam o
cartesianismo no seu ponto mais vulnerável, e com a
própria arma dele, pode-se acrescentar. Porque “algumas
verdades há tão próximas e patentes à mente”, escreve
Berkeley em estilo indisfarçavelmente cartesiano, “que um
homem só precisa abrir os olhos para vê-las”. No entanto,
eis que o que os dois homens veem é de todo em todo
diferente! Em lugar de um universo mecanicista, existindo
por si só num eterno isolamento que nenhum olhar jamais
penetrou, o bispo irlandês contempla um mundo de cor,
som e fragrância, cuja essência se dá a perceber. Também
ele se pôs a meditar sobre o fundamento do conhecimento
humano, para sair convencido de que “o coro do céu e o
sortimento da terra, numa palavra, todos os corpos que
compõem a possante estrutura do mundo, não têm
subsistência alguma sem uma mente”; e, enfim, que “não
há outra substância além do Espírito, ou aquilo que
percebe”.7
Setenta e um anos após a primeira publicação dos
Princípios de Berkeley o centro do debate se deslocou de
súbito para a cidade alemã de Königsberg, onde um
professor universitário pacato e meticuloso assombrou o
mundo com uma pesadíssima dissertação: a Kritik der
reinen Vernurift. Assim como Descartes, Kant estava
preocupado em apoiar a ciência da mecânica sobre uma
firme base teológica. Escutara atento a corrente
controvérsia filosófica e entendera com clareza que o busílis
da questão se encontrava num abismo intransponível entre
o cientista e seus objetos. A solução kantiana para o
problema resumia-se em puxar os objetos para o lado de cá
do abismo. Estabelecendo sua posição com argúcia, o
filósofo prussiano começa observando que “por meio do
sentido externo, propriedade da nossa mente, temos a
representação dos objetos como exteriores a nós, situados
todos no espaço”.8 Com lógica implacável, passa a
desdobrar o conteúdo da sua premissa:
 
O espaço não é um conceito empírico, derivado de
experiências externas. Efetivamente, para que eu possa
referir determinadas sensações a algo externo a mim
(quer dizer, a algo situado em outro lugar do espaço que
o ocupado por mim), e igualmente para que eu possa
representá-las como estando fora de mim e ao lado umas
das outras, e portanto não só como se fossem diferentes,
mas ainda posicionadas em lugares diferentes, é
necessário que a representação do espaço seja um
pressuposto. A representação do espaço, por
conseguinte, não pode ser empiricamente obtida das
relações dos fenômenos exteriores. Ao contrário, a
experiência externa é que só é possível mediante essa
representação.9
 
Sem se deixar abalar pela natureza espantosa de suas
cogitações, Kant avança à inevitável conclusão do
argumento: “O espaço não representa nenhuma
propriedade das coisas-em-si, nem tampouco as representa
em relação umas às outras”.10 O espaço pertence ao mundo
das aparições, dos fenômenos. É uma forma sobreposta,
digamos assim, pela nossa intuição (Anscbauung).
À investigação kantiana do espaço segue-se a do tempo.
Se se descobriu que o espaço é “a forma pura da intuição
externa”, o tempo revela-se “a forma pura da intuição
interna”, e, com efeito, “a condição apriorística formal para
qualquer fenômeno que seja”. A posição é sintetizada nos
seguintes termos:
 
Temos tentado demonstrar que nossas intuições nada
mais são que representações de fenômenos; que as
coisas intuídas por nós não são em si como se nos
afiguram; e que, se for suprimido o sujeito, ou mesmo
somente a constituição subjetiva dos sentidos em geral,
então desaparecerão também todas as propriedades,
todas as relações dos objetos no espaço e tempo, e
mesmo o próprio espaço e tempo. Porque, como
fenômenos, eles não existem em si, mas somente em
nós. Permanece-nos completamente desconhecido o que
sejam os objetos em si, apartados de toda esta
receptividade das nossas sensações. Dos objetos só
conhecemos o nosso modo de percebê-los [...].11
 
Não é preciso seguirmos adiante no argumento de Kant.
Destemido e provocativo, ele põe tudo em uma novíssima
perspectiva. À sua maneira, resolve o impasse da
bifurcação, e proporciona uma base concebível para uma
justificação rigorosa do conhecimento científico. É de notar,
ademais, a especial pertinência do pensamento kantiano à
situação atual da física — isto é, à ideia de uma ciência cujo
verdadeiro objeto são “as nossas relações com o cosmos”.
Embora haja pouca razão para supor que a comunidade
científica como um todo já tenha chegado a prestar alguma
atenção ao filósofo de Königsberg, por certo a física do
século XX deve muito à crítica de Kant aos fundamentos
newtonianos. O fato é que a filosofia europeia nunca mais
foi a mesma. Se Hume havia despertado Kant do seu “sono
dogmático” (segundo admissão do próprio), o mesmo Kant
veio a exercer semelhante efeito sobre gerações de
pensadores a seguir.
AINDA ASSIM não se quebrara o encanto do
cartesianismo. Em retrospecto, parece que até o início do
século XX as maiores escolas da filosofia ocidental
continuaram a labutar sob o fardo de certo preconceito
cartesiano. Berkeley, Kant e ainda outros, posto que tenham
criticado Descartes com veemência, involuntariamente
adotaram a premissa central do sábio francês. Durante mais
de dois séculos, essa autêntica idée fixe manteve a filosofia
europeia numa espécie de camisa-de-força que poucos
pensadores, se tantos, conseguiram romper.
Reduz-se a premissa cartesiana, basicamente, à crença
de que o verdadeiro objeto da percepção sensorial se
confina de alguma maneira na mente humana. Mais
exatamente, afirma ela que a percepção não chega a
transcender o que se apresenta de imediato na forma de
dados sensoriais ou imagens mentalmente construídas daí
derivadas. E este o pressuposto que torna o chamado
mundo exterior impercebido e impercebível. Logo, se tal
universo sequer existe, ele é, em todo caso, conjectural. Por
outras palavras, ele vira uma coisa-em-si, cuja existência se
pode questionar à la Descartes ou negar à la Berkeley. Ao
mesmo tempo, o mundo comum, tal como se mostra a nós
na experiência humana de todos os dias, torna-se subjetivo
e, em certo sentido, irreal — na essência, um fantasma
particular, o tipo de coisa cujo esse é percepi, como
Berkeley bem observou. Temos de concordar com ele que
seria “totalmente repugnante” supor a possibilidade de tais
entidades existirem “fora da mente ou da coisa pensante
que as percebe”.
Uma vez adotada a premissa cartesiana — e não antes!
—, a bifurcação passa a ser uma possibilidade conceptual. A
partir daí se tem liberdade para conceber um universo
exterior desprovido de tudo exceto propriedades mecânicas:
a singela objeção de que o mundo obviamente não
corresponde a essa descrição perde, aí, toda a força. De um
golpe, o mundo objetivo se torna uma entidade
desconhecida, a ser de algum modo desvendada pelas
cogitações do filósofo ou pelas investigações científicas do
físico. Mas esta própria possibilidade se torna dúbia. Com
quanto mais cuidado se examina, mais intransponível
parece ser de fato o abismo entre o âmbito externo e suas
representações subjetivas. Não deixava de ter razão,
portanto, o bispo Berkeley ao negar a existência do mundo
exterior. Note-se porém que toda a sua argumentação
assenta na premissa cartesiana. Efetivamente, o filósofo
irlandês demonstrou sem margem para dúvidas que, se a
percepção termina numa imagem mental, daí resulta ser
inerentemente autocontraditória a noção de um universo
exterior. Acrescente-se a isso que nem mesmo a revolução
filosófica encetada por Kant conseguiu resolver o problema
fundamental. O abismo continua lá — e delineado em traços
ainda mais nítidos pela precisão da análise kantiana. Já não
basta dizer que o universo exterior é impercebido e
impercebível: na forma da Ding an sich kantiana, ele perdeu
não só os seus atributos “secundários” como também os
“primários”. Fantasmático, permanece como o supremo X
incognoscível em torno do qual a mente humana fabrica o
mundo conhecido e cognoscível.
Foi só nos inícios do século XX que a premissa cartesiana
virou alvo de sérias críticas filosóficas, e desde então se
vem generalizando entre os filósofos o reconhecimento de
que o real objeto da percepção não se reduz a uma imagem
mental. Há aquilo que recebemos passivamente (o dado) e
há aquilo que apreendemos por um ato de inteligência:
chamemo-lo objeto de intencionalidade. Sem dúvida o ato
intencional acarreta um processo complexo, que envolve
representações mentais intermediárias; contudo, o que se
percebe de fato não é o dado sensorial, nem nenhuma
representação ou imagem subjetiva, mas tão-somente o
objeto intencional. Agora, afirmar que este objeto, como
término do ato intencional, deve ser de novo uma aparição
ou alguma representação subjetiva — isto é decerto uma
pressuposição. É, com efeito, justamente a premissa
cartesiana! Premissa essa que, diga-se, parece bastante
plausível desde que implicitamente se atenda à sua
exigência. Vista, porém, desde terreno neutro, no mesmo
instante se torna suspeita. Assim, no caso da percepção
visual, por exemplo, o objeto intencional evidentemente
tem três dimensões, circunstância que por si só já suscita a
fortíssima sugestão de que o objeto em questão não é uma
mera imagem visual. Ora, sustentar que ele ainda assim
tem de ser uma representação subjetiva — uma coisa cujo
esse equivale a percepi — é dar um passo totalmente
injustificado. É partir do princípio de que “a alma não tem
janelas”. E talvez, em última análise, postular a
impossibilidade do conhecimento objetivo enquanto tal.
ESTAS OBSERVAÇÕES sobre a natureza da percepção, e
da intencionalidade era geral, não se prestara a encerrar um
argumento, mas antes a apresentar a questão básica. O
problema, não negamos, é dificílimo, e muito mais
ponderoso do que pode parecer à primeira vista. Requer a
mais cuidadosa consideração, e tem sido objeto de
laboriosa investigação por filósofos de primeiro plano, a
começar por Edmund Husserl, cujos estudos da questão se
iniciaram mais ou menos no princípio do século XX.
Matemático de formação, Husserl começou suas
investigações filosóficas por uma aguçada análise de
concepções puramente lógicas, relativas aos fundamentos
da matemática. Com notável sagacidade, defendeu a
objetividade desses objetos lógicos contra dúvidas
subjetivistas e, no processo, ao que tudo indica, conseguiu
estabelecer a transcendência de certos atos intencionais.
Depois, Husserl estendeu o escopo dessas investigações a
outros modos de intencionalidade e forjou um método
filosófico geral para empreender tal análise. Quanto ao
princípio da bifurcação, afirma ter estabelecido o caráter
objetivo de numerosos tipos de objeto intencional, inclusive
das entidades corriqueiras da percepção sensorial. O certo é
que, no mínimo, a poderosa lente da “análise
fenomenológica” de Husserl trouxe à tona a insuficiência
das concepções cartesianas.
Em breve, mais uma figura proeminente entraria na briga
contra o cartesianismo residual. Outro matemático tornado
filósofo, Alfred North Whitehead também se ocupara no
início da carreira com questões matemáticas basilares, ao
ponto de se fazer um dos fundadores da lógica matemática.
Dotado de larga instrução científica e profunda assimilação
da nova física, mais tarde voltou sua atenção para os
fundamentos da ciência física e com excepcional clareza
observou o gravíssimo desarranjo filosófico em que eles
haviam caído. Aqui vai uma passagem típica das suas
numerosas preleções, em que ele sintetiza a situação
contemporânea:
 
O estado do pensamento moderno é o seguinte: nega-
se cada item particular da doutrina newtoniana, mas
retêm-se tenazmente as suas conclusões gerais. O
resultado é uma completa barafunda no pensamento
científico, na cosmologia filosófica e na epistemologia.
Mas qualquer doutrina que não pressuponha
implicitamente este ponto de vista é acoimada de
ininteligível.12
 
Ao mesmo tempo, compreende ele muito bem as causas
que levaram a esse impasse. Como mostra a citação
seguinte, Whitehead percebe os méritos do esquema
newtoniano e os obstáculos à sua substituição, mas não é
menos cônscio das suas irremediáveis limitações:
 
Antes de mais nada, é preciso notar a sua formidável
eficiência como sistema conceptual para a organização
da pesquisa científica. A este propósito, a doutrina faz jus
ao gênio do século que a produziu. Tem-se mantido firme
como princípio orientador dos estudos científicos desde
então. Ainda impera. Por ela se pautam todas as
universidades do mundo, e até agora não se propôs
nenhum sistema alternativo para organizar a busca da
verdade científica. Não só ainda impera, como segue
sem rival. E contudo é sobremodo inacreditável. Esta
concepção do universo sem dúvida se constitui de altas
abstrações, e o paradoxo só surge porque viemos a
tomar nossas abstrações por realidades concretas.13
 
Tocamos aqui num dos pontos mais caros a Whitehead: a
falácia da concretude descabida.14 Repetidamente ele
expende a ideia de que a ciência física vive confundindo
suas “altas abstrações” com a realidade primária. Começa-
se por fazer abstrações da existência concreta e termina-se
por atribuir concretude à abstração. Ou, por outra, corta-se
em dois o que na verdade é uno e então atribui-se realidade
independente a um dos fragmentos resultantes. Mas é claro
que o erro não afeta a realidade: somente cria cegueira. A
cosmovisão da ciência, assim, acarreta certa
incompreensão, a que nos habituamos através de um
extenso processo de doutrinação:
 
A ciência não pode achar comprazimento na natureza;
a ciência não pode achar finalidade na natureza; a
ciência não pode achar criatividade na natureza: acha
nela meras regras de sucessão. Estas negações são
válidas para a ciência natural. São inerentes à
metodologia dela. A razão de tal cegueira da ciência
física é que ela só lida com metade da evidência
fornecida pela experiência humana. [...] Deve-se a
cegueira à perniciosa separação de corpo e mente que
Descartes inoculou no pensamento europeu.15
 
Resumindo, pode-se dizer que Husserl e Whitehead são
as figuras de maior destaque na refutação filosófica
contemporânea da premissa cartesiana. Parece que
finalmente foi dado o veredicto no julgamento filosófico da
cosmovisão “científica”: o pressuposto básico dela provou-
se insustentável.
Num sentido, esse veredicto marca um retorno às
concepções naturais e impervertidas da humanidade. A
despeito dos debates eruditos, a premissa cartesiana
sempre se manteve de fato inacreditável, e porventura será
justamente o princípio oposto a ela — o singelo juízo de que
o nosso olhar nos descortina, sim, o mundo real e objetivo
— aquele que constitui uma verdade “tão próxima e patente
à mente”. Mas, seja como for, não se vá supor que o enigma
epistemológico está solucionado, ou que o problema talvez
nunca tenha existido a sério. Pois, deveras, reconhecer —
como Husserl e outros reconhecem — que a percepção
transcende o domínio subjetivo não é explicar como este
prodígio se opera. Permanece o mistério — se temos olhos
para vê-lo! —, e deve-se acrescentar que, justiça seja feita a
Descartes e seus sucessores, quando eles erraram, não foi
por ninharia.
NO GERAL, o desenvolvimento filosófico posterior a
Newton, esboçado nas últimas páginas, teve pouco impacto
direto sobre a mentalidade científica do nosso tempo. Não
obstante a derrocada da física clássica, a metafísica
newtoniana segue em vigor, e assim também o positivismo
newtoniano. Pode-se dizer que os homens da ciência, hoje
como ontem, continuam aprendendo sua filosofia com os
Principia. E têm aprendido tão bem, com efeito, que esses
modos de pensamento se arraigaram ao ponto de as
premissas filosóficas newtonianas adquirirem um status de
auto evidência — explicando-se aí por que “qualquer
doutrina que não pressuponha implicitamente este ponto de
vista é acoimada de ininteligível”. Tem havido exceções
notáveis, como já assinalamos; mas, no todo, a mentalidade
científica tem-se conservado impermeável à influência
filosófica pós-newtoniana. É patente que nem Kant nem
Whitehead conseguiram despertar a comunidade científica
em geral do seu “sono dogmático”. Como observou o
próprio Whitehead, “retêm-se tenazmente” as conclusões
gerais da doutrina newtoniana, e, no que diz respeito à
“completa barafunda” daí resultante, parece que poucos
cientistas têm feito grande caso.
Por outro lado, nós todos nos tornamos imensamente
mais sofisticados, e a certos respeitos as nossas concepções
básicas da ciência mudaram. Por exemplo, começamos a
sentir que o cientista é mais do que mero espectador.
Passamos a admitir a contribuição criativa dele para o
processo e o conhecimento científico. Até certo ponto, hoje
vemos a física como a interação entre a natureza exterior e
os aparelhos, métodos e estratégias do cientista. Em
conformidade com esta tendência, a ideia de “modelos”
virou moeda corrente na comunidade científica. Vai-se
firmando o reconhecimento de que a ciência trata não
apenas do mundo físico por si mesmo, mas de teorias
várias, cada uma a cobrir um determinado campo de
aspectos da realidade. Olhando em retrospecto para a física
newtoniana, agora percebemos que, com todo o seu
brilhante sucesso, ela era só uma teoria específica, e não
quase absoluta, como outrora se acreditava. E um modelo
dentre muitos outros, cada qual com sua utilidade e suas
inerentes limitações. Dificilmente ainda se tem por
sacrossanto qualquer tópico da teorização física. A
mentalidade cientifica ficou bem mais pragmática e um
tanto menos inclinada do que antigamente a idolatrar as
suas criações. O conceito mesmo de “modelo” implica
alguma consciência das próprias limitações, uma míngua de
conhecimento absoluto ou completo, se não um elemento
de relatividade e a probabilidade de vir a ser superado.
Ainda assim, esta recém-adquirida sofisticação, em si
mesma, não oferece nenhuma elucidação sobre questões
fundamentais, nem desfaz a “completa barafunda no
pensamento científico, na cosmologia filosófica e na
epistemologia” a que já aludimos. Num sentido, ela serve
para promover um clima de superficialidade — um
pluralismo leviano — que evita e escamoteia o problema
básico em vez de resolvê-lo. “É claro,” diz Whitehead,
“sempre podemos entregar-nos a um estado de pleno
contentamento com irracionalidades atrozes”.16Tal atitude
anda de mãos dadas com o pragmatismo, ou com o que
Whitehead denomina “a popularizada filosofia positivista”,
porque, para todos os efeitos, a perspectiva pragmática
substitui a verdade pela noção de utilidade (em regra,
concebida em termos estreitos e um bocado primitivos).
Pode-se até conjecturar que essa perspectiva tem em mira
precisamente aquele “estado de pleno contentamento”, seja
com irracionalidades atrozes ou com o que for.
Este assunto, evidentemente, pertence mais à psicologia
da ciência do que ao seu conteúdo lógico, nosso interesse
primário. Importa-nos porém deixar claro que a ciência, de
fato, propala uma doutrina. Faz asserções sobre a natureza
do universo físico com profundas repercussões em outras
esferas do pensamento. Direta ou indiretamente, inculca-
nos certas crenças metafísicas e indispõe-nos contra outras.
Ademais, dirige-se não só a cientistas, mas à humanidade
como um todo. Tem coisas bem gerais para dizer sobre o
mundo e o nosso lugar nele. Tem, enfim, uma verdade para
proclamar, uma verdade que, de acordo com a crença
oficial, se funda em descobertas sólidas e incontroversas.
Assim era na era clássica ou newtoniana, assim é hoje.
Nossa sofisticação contemporânea e nossa propensão ao
pragmatismo não mudam esse fato: somente o obscurecem
em algum grau. Fizeram-se asserções tremendas, que
precisam ser averiguadas com cuidado, e ao fim e ao cabo
julgadas.
Basicamente, nossa cosmovisão científica continua
sendo a mesma que tem sido desde o princípio: não
sofreram mudanças os alicerces, apenas a superestrutura. É
certo que a física passou por um desenvolvimento
estupendo a partir do rudimentar conteúdo da mecânica
newtoniana: foi-se enriquecendo, passo a passo, com o
acréscimo de novas disciplinas (tais como a magnífica teoria
dos campos magnéticos); após atravessar uma série de
reviravoltas drásticas, veio a penetrar, por um lado, o
misterioso mundo das partículas fundamentais e, por outro,
as abissais lonjuras do universo galáctico; além do mais, em
décadas recentes até mesmo deu à luz uma nova
cosmologia científica que pretende abranger todo o espaço,
tempo e matéria. E no entanto, como visão de mundo, esse
imenso corpo de teorização física continua a repousar sobre
as velhas fundações newtonianas. Quanto ao seu conteúdo
mais essencial — que talvez seja também a mais ingente de
todas as suas asserções —, reduz-se, agora como outrora, à
vetusta doutrina cartesiana. Portanto, apesar de tudo o que
se desenrolou no transcurso dos últimos três séculos e
meio, essa contestadíssima hipótese ainda constitui o
alicerce metafísico da ciência moderna, implicado, como já
vimos, pelo próprio conceito do universo físico.
Por outra parte, também é possível argumentar que este
conceito se prova, no fim das contas, alheio à física num
plano técnico e, assim, pouco passa de um capricho
pessoal, uma tineta (teimosia) desprovida de aval científico.
Nesta perspectiva, a física não tem fundação metafísica
nenhuma, nem demanda quaisquer premissas do gênero.
Porque, quando se trata do efetivo modus operandi da
física, estamos às voltas não com o universo físico, mas sim
com coisas definidas em termos de procedimentos
concretos que absolutamente nada têm a ver com
especulações metafísicas. E isso o que sempre defendeu o
positivismo ou operacionismo — encontramos a mesma
posição já nos Principia — e, em certo sentido, é a pura
verdade. Apenas, deve-se reparar que, rigorosamente
falando, esse modo de olhar a matéria não é em absoluto
uma visão de mundo: é, sim, um programa de ação, ou, se
se preferir, é a Weltanscbauung de um computador.
Tampouco parece provável que alguém algum dia possa vir
a tornar-se tão sofisticado — ou desumanizado — a ponto de
manter um olhar estritamente positivista, sem mistura com
nenhuma noção de natureza metafísica. Contudo, seja como
for, no tocante ao amplo e disseminado complexo de
crenças a que nos temos referido coletivamente como
Weltanscbauung ou cosmovisão científica, é bastante
evidente que ideias positivistas não podem representar
nada além de uma particular faixa ou nível do pensamento.
Já deixa isto claro a simples constatação de que definições
genuinamente operacionais são acessíveis apenas aos
especialistas da área, o que implica que, se fosse a
cosmovisão científica formulada em tais termos, não
poderia jamais popularizar-se, ou difundir-se por grupos
maiores. E, o mais importante de tudo, não poderia jamais
ser aquilo que pretende ser: isto é, uma visão geral do
mundo real, ou, mais precisamente, uma doutrina sobre a
natureza do universo físico. Assim, com toda a devida
consideração às justas reivindicações do positivismo, temos
de conceder que, no que se refere à cosmovisão científica, o
conceito do universo físico não foi de maneira alguma
removido por noções operacionais.
Bem verdade, o cartesianismo residual, que se prova até
hoje o ingrediente fundamental da nossa cosmovisão
científica, vem recebendo severas críticas desde o início do
século XX e foi duramente condenado por pensadores de
relevo. Mais que isso, têm-se feito frequentes tentativas de
construir uma nova fundação teórica em substituição ao
esquema clássico. Whitehead, por exemplo, engendrou uma
doutrina metafísica que se propõe não só resolver o
impasse cartesiano, como ainda proporcionar uma nova
base para que as descobertas científicas comprovadas se
integrem numa visão de mundo coerente. Porém, tenham
quaisquer desses empreendimentos teóricos alcançado
êxito ou não, permanece o fato de serem todos eles
compreendidos e apreciados somente dentro de círculos
hiper-restritos. Invariavelmente, tais especulações são
técnicas em extremo, complicadas demais para se
destinarem a um público mais amplo. Não nos esqueçamos,
ademais, que a comunidade científica, vista em conjunto,
até agora deu poucos sinais de sentir qualquer insatisfação
com o status quo metafísico, e ainda nem sequer tomou
consciência de que, para começar, existe realmente um
problema. Como já notamos, uma variedade de fatores
conspirou para promover um tipo de mentalidade que como
por instinto se furta a questões de maior profundidade. Em
tal clima intelectual, a confusão cartesiana tem tudo para
sobreviver: aí passa despercebida, sem ser molestada por
investigações rigorosas.
Isso nos leva, enfim, à conclusão aparentemente
paradoxal de que a cosmovisão associada à mais exata das
ciências está inçada de equívocos fundamentais. Segue
fugindo ao entendimento convencional que a
Weltanscbauung pretensamente científica se baseia não em
legítimas descobertas da ciência, mas em pressupostos
filosóficos ocultos que se revelam em última análise
autocontraditórios. Em nome da física, a civilização
sucumbiu à fantasia.
 
Notas
 
CAPÍTULO II - DILEMA CARTESIANO
 
1. Joannis Kepleri Astronomi Opera Omitia. Frankfurt e Erlangen: 1958, i, 31.
Apud: Burtt (nota 2 do cap. 1), p. 57.
2. Lynn White, Medieval Technology and Social Change. Oxford: Oxford
University Press, 1962, p. 124.
3. Universo mecânico, ou, literalmente, universo análogo ao mecanismo de um
relógio. — NT.
4. Principia philosophiae, in Oenvres (Paris, 1824), IV, 198. Apud: Burtt (nota 2
do cap. 1), p. 112.
5. Principia, IV, 198. Apud: Burtt (nota 2 do cap. 1), p. 112.
6. Principies of Human Knowledge, i, 3.
7. Ibid., i, 6, 7.
8. Critique of Pure Reason. Nova York: Random House, 1958, p. 43.
9. Ibid., p. 43.
10. Ibid., p. 46.
11. Ibid., p. 54
12. Nature and Life. Nova York: Greenwood, 1968, p. 6.
13. Science and the Modem World. Nova York: Macmillan, 1953, pp. 54-5.
14. Em inglês, fallacy of misplaced concreteness — expressão cunhada por
Whitehead. — NT
15. Nature and Life, p. 30.
16. Ibid., p. 23.
 
 
CAPÍTULO III - HORIZONTES PERDIDOS
 
 
TENDO CONSIDERADO OS embaraços em que se enredou o
pensamento ocidental sob a influência da filosofia
cartesiana, cumpre-nos reexaminar a posição medieval em
suas implicações cosmológicas. Quais são as ideias
fundamentais, devemos perguntar, que distinguem a
cosmovisão cristã da cartesiana e pós-cartesiana?
Primeiro de tudo, importa notar que a concepção
moderna de um universo autônomo e autossuficiente
decerto não quadra com os ensinamentos metafísicos do
cristianismo. Não basta dizer que o cosmos foi criado por
Deus e sustentar que daí em diante existe por si só,
movendo-se por suas próprias energias e de acordo com
suas próprias leis: com certeza a relação entre Deus e o
mundo é muitíssimo mais sutil que isso! Dito a modo de
enunciação, Deus não é só transcendente, como também
imanente. Assim, Deus transcende o cosmos: Ele mora para
lá dos confins do espaço, “em luz inacessível”, como declara
São Paulo; e todavia, ao mesmo tempo, Ele reside em todos
os lugares e penetra os mais íntimos recônditos de tudo
quanto existe. Se Deus não habitasse o cosmos, ademais,
ato contínuo o cosmos deixaria de existir. Como observa São
Tomás de Aquino, “visto que Deus é a causa universal de
todo ser, onde quer que se ache ser, lá há de haver
presença divina”.1
Eis justamente o que escapou aos fundadores da ciência
moderna. Não é que eles fossem ateístas. Acaso Descartes
não chegou até a fundar sobre a presumida veracidade de
Deus a sua crença no mundo exterior? E Newton não
dedicou os seus últimos anos de vida à especulação
teológica? Apesar de acreditarem na existência de Deus,
esses homens estavam rompidos com a ideia da imanência
divina: o Deus deles era puramente transcendente, um
mero Criador que já não tinha nenhuma função a cumprir e
não era preciso para mais nada.
Talvez, devido ao racionalismo avultante no seu tempo,
esses pensadores achassem difícil resolver a aparente
antinomia entre o conceito de transcendência e o de
imanência. No tradicional dito inglês, eles foram apanhados
entre os chifres de um dilema teológico: por um lado, caso
se aceite a imanência mas rejeite a transcendência, cai-se
na heresia do panteísmo; por outro, caso se aceite a
transcendência mas rejeite a imanência, cai-se vítima do
deísmo. Ora bem, o caminho da ortodoxia cristã não vai
nem pela direita nem pela esquerda, mas passa bem no
meio, “entre os chifres”. Por outras palavras, está em
compreender que a antinomia é só aparente — nada mais
que um reflexo da incapacidade humana, pode-se dizer. E,
de fato, todas as verdades teológicas básicas assumem uma
aparência de antinomia quando formuladas em termos
dogmáticos, a começar pela doutrina trinitária. Se até um
elétron pode ser tanto partícula como onda, por que deveria
o próprio Deus ser constrangido pelo que nos parece uma
oposição inconciliável? O cristianismo, assim, aconselha que
não nos deixemos abalar diante da aparente contradição
entre os conceitos de transcendência e de imanência.
Afirma que cada um tem algo a dizer sobre a natureza ou
ação de Deus e que são ambos indispensáveis para um
entendimento correto da verdade integral.
Com os primeiros sinais do Renascimento, porém, essa
verdade começou a dissipar-se do horizonte intelectual do
Ocidente. Como já notamos, a era vinha caindo sob o feitiço
da metáfora mecanicista, que evidentemente exclui a ideia
da imanência divina. Em conformidade com o conceito em
voga, os fundadores da nova ciência propendiam para a
suposição de haver sido o mundo criado mais ou menos à
maneira de um relógio, que, uma vez construído e posto em
movimento, funciona sozinho e não precisa mais do seu
criador. A bem da verdade, o próprio Newton tinha lá os
seus escrúpulos a esse respeito: entendia ser necessário
que o Criador do relógio cósmico interviesse no mecanismo
de quando em quando para um ou outro ajuste — noção
admitidamente desarrazoada, que valeu ao grande cientista
severa caçoada de Huygens. Mas pela altura em que
Laplace demonstrou a estabilidade dinâmica do sistema
solar, se é que não antes, parece que essas prolongadas
dúvidas tiveram uma resolução a contento de todos.
Já então estavam os homens plenamente familiarizados
com a ideia de que o universo consiste em nada além de
diminutas partículas, e que toda ação, desde os movimentos
estelares e planetários até os sutis processos da vida, é
rigidamente determinada por leis mecânicas. Sob tais
auspícios, o conceito mesmo de divindade não pode senão
parecer estranho e suspeito, para não dizer inútil; daí não
admirar que dentro em breve se viesse a rejeitar também a
ideia de um Deus puramente transcendente — o Deus de
Descartes e Newton —, pelo menos enquanto tema de
pensamento sério. Como disse Laplace a Napoleão, ao ser
indagado pelo imperador se acreditava em Deus: “Não
tenho necessidade de tal hipótese”.
Cabe acrescentar que nessa posição não havia nada de
muito novo. Desde tempos recuados surgem materialistas
da mesma linha, assim como filósofos bastante sábios para
entender a falha na posição deles. Nas palavras de Plotino,
“aqueles para quem a existência se dá por acaso e de modo
automático, mantendo-se coesa tão-somente por forças
materiais [poderia haver descrição mais sucinta do
esquema newtoniano?], foram parar longe de Deus e do
conceito de unidade”.2 Agora, o que é este “conceito de
unidade” do qual se afastam os materialistas? Como
teremos ocasião de ver com mais clareza a seguir, o
conceito equivale à imanência de Deus, ao fato metafísico
de que “onde quer que se ache ser, lá há de haver presença
divina”.
DEUS NÃO SÓ MORA em todos os lugares, como se revela
em todos os seres. “Os céus publicam a glória de Deus e o
firmamento anuncia a obra de Suas mãos”. Engana-se
quem pensar que isto é só poesia, no sentido
contemporâneo. Tempo houve quando os homens de fato
acreditavam que a criação traz em si a marca do Criador e
que o cosmos misteriosamente reflete a Face de Deus. Por
muito estranho que nos pareça, eles achavam que, não
somente as estrelas e os planetas, mas ainda todas as
coisas naturais da terra por algum modo falam de Deus
como de um mistério, um segredo insinuado ou semi-
revelado. Numa palavra, supunham que o cosmos é uma
teofania, uma manifestação de Deus.
Embora sem dúvida essa concepção se encontre nas
principais tradições da Antiguidade, ela diz respeito em
especial ao cristianismo: basta lembrar que o ensinamento
cristão se baseia na doutrina do Logos, a Palavra de Deus,
termo que já de si sugere claramente a ideia de teofania.
Ademais, o que se subentende no famoso Prólogo de São
João é explicitado por São Paulo, quando declara: “Desde a
criação do mundo, as coisas invisíveis de Deus, discernindo-
se nas coisas criadas, se tornaram visíveis: assim o Seu
poder eterno e a Sua divindade'’'' (Rm 1, 20). Poderia a
noção de teofania — a ideia de que a criação manifesta
Deus — ser expressa com maior clareza? E não volta o
Apóstolo a aludir à mesma visão quando nos diz: “Agora
enxergamos Dele vislumbres, como por um espelho baço”
(ICo 13, 12)? Ou, na elucidativa analogia de São
Boaventura, “o mundo inteiro é como que um espelho pleno
de luminosos reflexos da sabedoria divina”.3 Enfim, o
indiscutível é que o cristianismo, no seu nível mais
profundo, vê o cosmos como uma autorrevelação de Deus.
E verdade que, no desenvolvimento da teologia, a
maioria das implicações cosmológicas do legado cristão
acabou sendo relegada a segundo plano em decorrência de
uma fortíssima preocupação com o conteúdo soteriológico
do ensinamento. Na visão cristã, o fato decisivo para a
salvação do homem não é a teofania cósmica, mas a
autorrevelação divina que começou nos tempos do Velho
Testamento e se consumou quando a palavra se fez carne e
habitou entre nos. Contudo, apesar da compreensível
prioridade a tudo o que pertence mais diretamente aos
interesses do homem, as implicações cosmológicas da
revelação cristã não passaram em brancas nuvens. Assim
como outros aspectos do ensinamento integral, também
este achou o seu lugar no desenrolar do pensamento
teológico.
Mas isso não é tudo. Muito além de ser apenas matéria
de especulação para teólogos, a noção de teofania cósmica
estava implícita em uma Weltanscbauung cristã comum, de
que em alguma medida podiam todos participar, desde
doutores eruditos até o mais humilde camponês. A ideia foi,
num sentido bem real, parte integrante da nossa viva
herança cultural até os inícios da era moderna. Segundo
Sherwood Taylor, “anteriormente à separação da ciência e à
aceitação dela como o único modo válido de apreender a
natureza, a visão de Deus na natureza parece ter sido o
modo normal de ver o mundo, não se podendo caracterizá-
la como experiência excepcional”.4 Seja como for, com o
declínio da Idade Média essa “visão de Deus na natureza”
foi-se tornando de fato cada vez mais excepcional, até o
ponto de sumir quase por completo da sociedade ocidental.
O mundo depressa ia ficando opaco, por assim dizer, e
dessacralizado. Por toda parte e em cada esfera cultural se
evidenciava uma profunda transformação da consciência
coletiva. E, diga-se o que se disser a favor ou contra essa
metamorfose, ninguém contestará que ela representa uma
apostasia por atacado da mundivisão cristã.
Ainda no século XIV a cultura espiritual da Europa ia
começando a entrar em declínio. Por exemplo, já então se
instaurara nas escolas teológicas uma acentuada tendência
formalista, uma forte inclinação para substituir a visão
intelectual ou a contemplação espiritual pelas operações
dum aparato metodológico formal. Talvez já aí se delineasse
a concepção baconiana do método científico — uma
“máquina para a mente”. Seja como for, o frutífero
equilíbrio entre visão e pensamento abstrato — o espírito e
a letra —, que havia conduzido o cristianismo latino à era
dourada da escolástica, acabou-se revelando precário e
efêmero. Mal tinham saído de cena os grandes mestres, as
escolas passaram a manifestar propensões antimetafísicas,
junto com certos sinais de decadência. A Europa parece que
ia perdendo a vista espiritual. E, à medida que definhava a
visão metafísica, começava a tomar forma a
Weltanscbauung científica. Com rapidez incrível a nova
mundivisão se cristalizou na mente dos pioneiros e daí se
impôs à sociedade. À altura do Iluminismo, pelo menos, ao
que tudo indica, o homem ocidental já se achava num
cosmos quase de todo dessacralizado, espiritualmente
apagado. Em lugar de um mundo “pleno de luminosos
reflexos da sabedoria divina”, ele agora enxergava “o
precipitar infindável e absurdo de matéria”. Na imaginação
coletiva o cosmos se transformara, de uma teofania, nessa
entidade opaca e problemática: o universo físico.
HÁ NO VELHO TESTAMENTO um texto célebre que desde
tempos imemoriais serve de sustentáculo à reflexão
metafísica judaico-cristã: é o versículo 14 do capítulo 3 de
Êxodo. Vamos relembrar a cena. Moisés está apascentando
seu gado nas vertentes do monte Horeb, quando de repente
ouve, vinda do meio de uma sarça ardente, a voz de Deus.
Reverencioso, chega-se ao local, e Deus lhe fala. E a dado
momento, Moisés faz uma pergunta extraordinária: ele
pergunta, efetivamente, qual a natureza, característica ou
“nome” de Deus. E recebe pronta resposta: EHEIEH ASHER
EHEIEH — palavras hebraicas que a Vulgata verte por ego
sum qui sum. Segue o versículo em tradução para o
vernáculo:
 
Deus disse a Moisés: EU SOU AQUELE QUE SOU. E
ajuntou: assim dirás aos filhos de Israel: AQUELE QUE É
me enviou a vós.
 
Ora, o que significa essa resposta? Em primeiro lugar, ela
afirma, obviamente, que Deus existe. Ele existe, ademais,
como pessoa, como um “eu” único em relação a todos os
outros seres; pois Ele se declara uma pessoa, alguém que
pode dizer EU SOU. Mas há mais. Há uma implicação, e é
inequívoca: em verdade, não existe nenhum “outro ser” —
só eu sou.
Deve ser esse, sem dúvida, o cerne da questão: só Deus
É. Mas como havemos de entender isso? “Parece-me”,
escreve São Gregório de Nissa, “que o grande Moisés, ao
ser instruído na teofania, veio a saber que, em realidade,
não subsiste nenhuma das coisas apreendidas pela
percepção sensorial e contempladas pelo entendimento,
mas sim apenas a essência transcendente e a causa do
universo, de que tudo depende”.5 Mas por quê? O mundo
não está aí? Não há miríades de estrelas e galáxias e grãos
de poeira, cada qual existindo por si só? Como, então,
subsiste apenas a essência transcendente? “É que, mesmo
quando o entendimento contempla quaisquer outras coisas
existentes,” prossegue o grande teólogo,
 
em absolutamente nenhuma delas discerne a razão a
autossuficiência com que pudessem existir sem
participar no verdadeiro Ser. Em contraste, aquele que é
sempre o mesmo, nunca crescendo nem decrescendo,
insuscetível a qualquer mudança para melhor ou para
pior (pois que está afastado do inferior e não tem
superior), desnecessitado de tudo o mais, unicamente
desejável, tendo a participação de todos mas não sendo
diminuído por nenhum participante — tal é o Ser
realmente verdadeiro.
 
Vamos começando a sentir a importância metafísica do
ensinamento sinaítico; mas quem pode dizer que captou a
mensagem? Não nos esqueçamos que “o grande Moisés, ao
ser instruído na teofania”, alcançara os cimos do Horeb, a
montanha de Deus (Ex 3, 1), e, como São Gregório observa
alhures, “o conhecimento de Deus é escarpa de montanha
dificílima de galgar — os mais dos homens mal lhe
alcançam a base”.6
Parece perturbar-nos em particular o conceito do ser, ou
do que é “o Ser realmente verdadeiro”, na expressão de
Gregório. Noção platônica, dirão alguns; e bem pode ser que
sim. Mas é, acima de tudo, um nomen Dei, o próprio nome
que foi revelado a Moisés. Ora, o nome deve ter alguma
ligação — alguma afinidade — com o objeto que designa.
Não admira, pois, que o conceito do “verdadeiro Ser” — um
dos “nomes de Deus” — se prove dificílimo, ao ponto de nos
fugir à compreensão. De fato, até hoje nenhum filósofo, seja
cristão ou grego, seja antigo ou moderno, conseguiu
explicar o que é o Ser. “Que fazer, então?”, exclama Santo
Agostinho. “O que é o Ser, diga-o Ele ao coração, conte-o cá
dentro; ouça-o o homem interior, capte a mente essa vera
existência”.7 E outro mestre cristão, Mestre Eckhart,
escreve: “Não tenho a menor dúvida de que, tivesse a alma
a mais remota ideia do que significa o Ser, não hesitaria um
só instante em comungar nele”.8
POR CERTO, nós percebemos o traço do Ser em tudo que
existe: daí que dizemos, em referência a qualquer coisa
particular, que ela é. Contudo essa existência, ou esse ser
contingente, não é um ser absoluto: não é o ser pertencente
somente a Deus. E por que não? A resposta mais eloquente
talvez seja que as coisas deste mundo são mutáveis:
surgem não sabemos de onde, crescem, seguem mudando,
decaem e por fim desaparecem, para nunca mais darem
sinal de si. O próprio cosmos físico, dizem-nos, é um bom
exemplo: também ele fez sua aparição, talvez alguns
bilhões de anos atrás, e cedo ou tarde vai deixar de existir.
Aliás, agora mesmo, neste exato momento, todas as coisas
se estão acabando. “Morto é o homem de ontem,” escreveu
Plutarco, “pois ele morreu ao virar o homem de hoje; e o
homem de hoje vai morrer ao virar o homem de amanhã”.9
Realmente, encontrar-se no tempo e no espaço é sintoma
infalível de mortalidade. É indício não de ser, mas de devir,
de fluxo incessante; porque, já observava Platão, “como
pode o que nunca fica no mesmo estado ser algo?”.10
Tal reconhecimento implica que o Ser é imutável e, de
fato, que a Imutabilidade é mais um nome de Deus. Falamos
sempre, é claro, de imutabilidade, bem como de ser, em
referência a existências mundanas. Mas a contradita prova-
se injustificada. Tomemos a chamada imutabilidade, ou
identidade própria, de existências físicas. Desde o tempo de
Newton — ou, se se preferir, desde o tempo de Leucipo e
Demócrito — conjecturava-se que essa presumida
imutabilidade se deriva da constituição atômica da matéria.
Supostamente os átomos são tão pequenos ao ponto de
serem indivisíveis, e, sendo indivisíveis, eram havidos por
constantes e indestrutíveis. Eram considerados, em suma,
os blocos de construção de que se compõem as coisas
físicas. Já estas coisas em larga escala possuem somente
uma realidade mais ou menos transitória e fenomênica, na
medida em que sua constituição atômica, assim como sua
geometria interna, está em constante mutação. O que
existe para valer, o que exclusivamente retém a própria
identidade e imutabilidade, são os átomos. Mas esta
concepção, como já vimos no capítulo I, acabou por se
provar errônea. Veio à tona que nem o antigo átomo nem as
partículas fundamentais em que ele se pode decompor têm
identidade própria. Nas palavras de Schrödinger,
 
vimo-nos obrigados a refugar a ideia de ser a tal
partícula uma entidade individual que retém sua
“identidade própria” para sempre. Bem ao contrário,
agora somos compelidos a asseverar que os constituintes
últimos da matéria não têm “identidade própria”
alguma.11
 
Obviamente a constatação é momentosa, e feita por
Schrödinger nos termos mais enfáticos:
 
Deixem-me frisar bem este ponto, e podem acreditar:
não se trata de podermos averiguar a identidade em
alguns casos e não podermos fazê-lo em outros. Está
acima de qualquer dúvida que a questão da identidade,
da imutabilidade, franca e verdadeiramente não tem
sentido.12
 
De fato, a identidade não tem sentido enquanto conceito
físico. Porque, como já dissemos, a identidade é um
conceito inescapavelmente metafísico e, com efeito, um
nome de Deus.
Isso, de resto, já foi admitido universalmente pelos
mestres da sabedoria tradicional. No dizer de São Gregório,
“aquele que é sempre o mesmo, nunca crescendo nem
decrescendo, insuscetível a qualquer mudança [...] — tal é o
Ser realmente verdadeiro”. Quanto às “coisas existentes”,
por outro lado, o ensinamento implica que essas entidades
estão sempre em mutação, em incessante estado de fluxo,
de maneira que a existência delas se encontra num
constante devir, em que porém nada de fato se produz. O
mesmo já se disse vezes sem conta, a começar por
Heráclito e os filósofos budistas. E pouca dúvida pode haver
de que assim é: até a física moderna, como podemos ver,
aponta para a mesmíssima conclusão. Apenas, há o outro
lado da moeda, este nem sempre reconhecido: as coisas
existentes — o fluxo ele próprio — pressupõem o que
Gregório e os platonistas denominavam “uma participação
no Ser”. A questão é que as existências relativas ou
contingentes não se bastam em si: não têm existência
independente, não têm um ser próprio. Nele vivemos, nos
movemos e somos, diz São Paulo aos luminares atenienses.
E Santo Agostinho, após refletir sobre a natureza das coisas
criadas, declara, dirigindo-se ao Autor delas:
 
Quando olhei bem estoutras coisas abaixo de Ti, vi
que elas não existem por completo, nem por completo
deixam de existir. Existem, pois provêm de Ti; ao mesmo
tempo não existem, pois não são aquilo que És. Só existe
realmente aquilo que permanece imutável.13
 
Deveras, o cosmos por si, na sua totalidade, não tem
uma existência independente de Deus: não é outro ser, ou
uma entidade separada, a manter-se apartada Dele e a
confrontá-Lo, digamos assim. Só Deus É: aí reside a
significação da revelação sinaítica.
AINDA OUTRO nomen Dei é implicado pela fórmula de
Êxodo 3,14: o da Unidade ou Unicidade. Porque AQUELE QUE É
só pode ser um. Ele deve mesmo ser “um-sem-segundo”,
como reza a expressão vedantina. Pois Ele é em Si “um”,
conforme indicado pelo pronome singular eu, e “sem-
segundo” em virtude de só Ele ser.
Ora bem, a unidade de Deus, não menos do que o Seu
ser, está além da compreensão humana, na medida em que
ultrapassa todos os casos de unidade encontrados no
mundo. Dizemos, por exemplo, que uma nação tem um
governante; só que este é apenas um dentre muitos
homens. Ou falamos de uma coisa composta como se fosse
um todo; só que este todo admite numerosas partes. Mas
Deus não é um dentre muitos, nem admite partes.
Nenhuma analogia, portanto, pode realizar a verdadeira
unidade de Deus. Ainda assim, porém, todo caso particular
de unidade vem exemplificar, mesmo que
inadequadamente, aquela unidade absoluta que é protótipo
e fonte de tudo a que chamemos unidade ou unicidade
dentro da ordem da criação.
E tal unicidade relativa ou partícipe, encontramo-la em
todo lugar. Pois a unicidade é, de fato, o concomitante
inalienável do ser, como costumavam dizer os escolásticos
— ens et unum convertuntur. De modo que ser e unidade
são inseparáveis; e isto vale, ademais, não só in divinis, mas
ainda com relação às coisas existentes. Logo, afirmar que
uma coisa existe é dizer que ela é uma coisa só; e, se for
admissível falar em graus de existência, pode-se mesmo
dizer que uma coisa existe na proporção em que seja una.
Um artefato, por exemplo, existe em grau mais alto que
uma nuvem ou um amontoado de pedras, coisas um tanto
ou quanto mal definidas e não nitidamente discerníveis
como entidades individuais; e, na mesma ordem de ideias, é
evidente que um organismo vivo, pela sua unidade
estupenda, existe em sentido preeminente. Contudo
encontramos em toda parte a multiplicidade junto com a
unidade, ou, mais precisamente, a multiplicidade
participando da unidade em alguma medida. Se a
multiplicidade não participasse da unidade, aliás, nós não a
poderíamos encontrar de maneira nenhuma, o que em
última análise equivale a dizer que ela não poderia existir.
Numa palavra, as coisas existem e são conhecidas graças à
sua unidade. E no entanto a multiplicidade permanece: não
é de modo algum anulada pela unidade manifesta. Por
conseguinte, o organismo vivo, com toda a sua notável
unicidade, ainda assim se compõe de muitos membros e de
incontáveis células, cada uma existindo em virtude da sua
própria unidade manifesta. Mas para além dessas unidades
parciais e manifestas há uma unidade absoluta e imanifesta
de que todas elas se derivam e dão testemunho: tal é a
unicidade suprema D’AQUELE QUE É.
Deus é, ademais, a causa última não só de toda unidade,
como também de toda multiplicidade. Pois a multiplicidade
não pode em hipótese alguma existir à parte da unidade:
ela é a sombra de uma unidade parcial ou partícipe, pode-se
dizer. Assim, por paradoxal que pareça, “o supremamente
uno é o princípio universal de toda multiplicidade”, como
observa São Boaventura.14 Não quer isto dizer, porém, que a
unidade e a multiplicidade decorram do supremamente uno
no mesmo sentido: a primeira se deriva dele por
participação — ou como uma imagem se origina do seu
protótipo —, ao passo que a segunda ocorre, não por
participação, mas por falta ou incapacidade. Portanto, é
sempre a unidade, e não a multiplicidade, que constitui uma
Ímago Dei dentro do mundo: um reflexo, por mais distante e
fugaz que seja, da Sua unicidade suprema e transcendente.
Já foi esta ideia expressa, duma ou doutra forma, por
todos os metafísicos sérios. É, com efeito, o mesmo
“conceito de unidade” a que se refere Plotino, a verdade da
qual os materialistas “foram parar longe”. E ninguém
discorreu sobre o tema com maior acuidade e eloquência do
que Dionísio, o renomado autor cristão e autoridade em
assuntos elevados, cuja identidade histórica virou objeto de
discussão em tempos recentes.15 Será elucidativo citar uma
passagem característica deste mestre antigo, onde ele fala
da unidade como epíteto da divindade suprema e explica o
significado cosmológico deste particular nomen Dei:
 
O título Uno implica que Ele é unitariamente todas as
coisas, segundo a transcendência da Sua única Unidade,
e é a causa de todas as coisas sem se desfazer da
Unidade. Pois nada no mundo deixa de ser partícipe do
Uno; e, assim como todo número participa da Unidade, e
podemos falar em um par, uma dúzia, uma metade, um
terço ou um décimo, assim todas as coisas e cada parte
de cada uma das coisas participam do Uno, e por existir
o Uno é que existem todos os outros seres. E a causa
única das coisas não é uma única das coisas: ela precede
toda unidade e toda pluralidade, e dá à unidade e à
pluralidade os seus limites definidos. Pois não pode haver
nenhuma pluralidade senão por alguma participação no
Uno: o que é plural nas partes é uno no todo; o que é
plural no acidente é uno na substância; o que é plural no
número ou nas faculdades é uno na espécie; o que é
plural na espécie é uno no gênero; o que é plural nas
emanações é uno na essência. Não há no mundo nada
que não tenha alguma participação no Uno, O qual, em
Sua Unidade oniabrangente, contém de antemão todas
as coisas, e todas em conjunto, conciliando até os
opostos sob a forma da unicidade.16
 
Por fim, não deixemos de salientar aquilo que, de
qualquer maneira, ficou implícito em tudo o que dissemos
até aqui: que o verdadeiro objetivo ou função da ciência não
é senão descobrir a unidade nos fenômenos naturais. Cai
uma maçã de uma árvore, e alguém reconhece neste
evento aparentemente isolado a manifestação de uma lei
universal. Mas que é uma lei da natureza senão um certo
modo de unidade? O objetivo da ciência, portanto, consiste
em reduzir a multiplicidade dos fenômenos a uma unidade
de princípios, e idealmente, se possível, à unidade de um
único princípio. Certos avanços recentes, porém, sobretudo
no domínio da física, sugerem que esta unidade ideal — à
qual nos inclinamos como que por instinto, ou por um
“imperativo categórico” do intelecto — talvez não seja
realizável num plano científico. Ao que parece, existem leis
de complementaridade — até agora só em parte
compreendidas — a impossibilitarem essa espécie de teoria
unificada que tinha sido o sonho dos físicos desde os
tempos de Descartes. O fato é que a ciência, mesmo com
todas as suas façanhas efetivas e potenciais, sempre deve
contentar-se com vislumbres mais ou menos fragmentários.
O conhecimento perfeito está simplesmente fora do seu
escopo. Isso porque a unidade suprema, cujos reflexos nós
discernimos em todas as leis da natureza, está ela mesma
além de toda lei — pois que pertence, não à criação, mas ao
próprio Deus.
CURIOSAMENTE, O universo existe não somente pelo que
é, mas também pelo que não é. Mesmo uma esfera, por
exemplo, existe não só pelo que ela inclui, mas ainda pelo
imensurável volume de espaço que ela excluí. Não por
acaso, então, está o cosmos sujeito a limites — pois na
ausência de limites ele não poderia de forma alguma existir.
Tal como a esfera geométrica, as coisas deste mundo
existem em virtude do que lhes restringe ou encerra a
existência.
Levando adiante a analogia geométrica, observemos
como se procede para determinar uma figura no plano —
digamos, um círculo. A fim de efetuar esta construção,
primeiro precisamos determinar no plano um ponto a ser o
centro do nosso círculo, e a seguir um segundo ponto de
maneira a definir o raio. Tendo feito isso, teremos
determinado um círculo particular como lócus de pontos
cuja distância do dado centro é igual ao comprimento do
dado raio. Antes da construção estava tudo, pode-se dizer,
em estado de potência — não havia círculo, e nem sequer
um único ponto determinado. Na verdade, o primeiro ponto
determinado — geralmente referido como “a origem”, no
linguajar matemático — irrompe de súbito, por assim dizer,
mediante a própria construção, ao primeiro passo dela. E,
bem se vê, este é um passo sobremaneira extraordinário, se
se leva em conta que nada no conceito de plano
matemático (ou euclidiano) nos permite escolher ou
distinguir tal elemento. A determinação do ponto inicial é
portanto um ato que logicamente implica um geômetra, se
assim se pode usar o termo. Ou seja, é o geômetra ele
próprio quem impõe, como por decreto, as determinações
básicas por meio das quais a figura em questão é definida
ou construída, a começar pela primeira determinação, ou,
como é chamada, a origem do espaço.
Ora, já há muito se percebeu como considerações
geométricas desse teor têm um singular poder sugestivo e
admitem, de fato, uma transposição metafísica exata, na
medida em que o cosmos — e tudo quanto ele contém — é,
como dissemos, igualmente determinado por certos limites.
Acarreta esta concepção três ideias fundamentais: primeiro,
um princípio determinador, ou aquilo que impõe limites;
segundo, um recipiente de limites, ou aquilo que está
sujeito a delimitações; e, por fim, a delimitação ela própria,
ou seja, a determinação que é imposta e recebida. O
primeiro, ou princípio ativo da cosmogênese, não é senão
Deus, concebido como Criador, Legislador ou Arquiteto do
mundo — é Ele que cria, ou determina, por Seu decreto
divino, de acordo com o versículo: “Ele disse, e fez-se; Ele
mandou, e criou-se” (Sl 32, 9). O segundo, ou princípio
passivo, atende ao conceito de matéria — não, por certo, no
sentido científico contemporâneo, mas na acepção
escolástica de “matéria prima”, que é pura potência, e não
coisa existente. E, por último, a noção de limite equivale
grosso modo ao conceito aristotélico e escolástico de forma.
Voltando às prévias considerações geométricas, agora
fica evidente que o plano enquanto tal corresponde à
matéria, ou pura potência; a figura construída, à forma; e o
geômetra em pessoa, ao princípio ativo, ou criador. Essas
correspondências, ademais, não são de modo algum
adventícias: elas brotam de uma analogia profunda e
objetiva que há entre a construção geométrica e a
cosmogênese — e que elas, por sua vez, trazem à luz.
Acrescente-se a isso que esta analogia era já bem
conhecida de muitas escolas antigas, e efetivamente
constitui chave essencial para uma correta compreensão do
ensinamento cosmológico tradicional. É sem dúvida o que
Platão tinha em mente ao dizer, no Timeu, que “Deus
geometriza sem parar”; e não deve de ser por outra razão
que, segundo reza a lenda, havia afixada na entrada da
Academia Platônica uma placa com o aviso: “Não se admite
a entrada de ignorantes em geometria”. O conceito básico
todavia não é de modo algum peculiar a Platão, nem
tampouco ao legado pitagórico. Encontra-se, de fato, nas
maiores tradições metafísicas da humanidade, a começar
por textos védicos primevos. Assim, por exemplo, o Rig
Veda declara em linguagem inequivocamente geométrica, e
muito antes de Pitágoras: “Com o Seu raio mediu Ele o céu
e a terra”.17 E não nos esqueçamos que também o Velho
Testamento, no Livro de Provérbios, fala de Deus por uma
imagem similar na célebre passagem do Dominus possedit
me, onde se lê que Ele traçou a linha do horizonte na
superfície do abismo. No mais, nenhum motivo razoável há
para supor que essas impressionantes coincidências — e os
exemplos poderiam multiplicar-se até a exaustão — se
devam a meras influências ou apropriações histórico-
culturais. O fenômeno explica-se perfeitamente bem, ao que
tudo indica, pela universalidade da verdade e pela inata
objetividade do intelecto humano.
RETORNANDO MAIS UMA VEZ à nossa construção
geométrica, observemos agora que o círculo resultante — o
círculo traçado, que pode ter sido puxado por um compasso
— pressupõe um outro: um círculo ideal, que serve de
modelo ou protótipo à figura construída. Não há escapatória
desta dualidade fundamental: o particular pressupõe o
universal por força de necessidade lógica. É verdade,
obviamente, que o círculo ideal não existe no mesmo
sentido que a figura determinada. Mas existe mesmo assim,
à sua própria maneira, na mente ou intelecto do geômetra.
É o modelo que ele contempla, por assim dizer, no ato da
construção geométrica, de tal maneira que a construção
exterioriza, e ao mesmo tempo particulariza, o que já existe
em outro modo. Entre os dois círculos há uma diferença
categorial, e há também certa continuidade — pois a figura
construída, afinal, exemplifica o seu arquétipo.
Isso nos leva à próxima questão: sob a transposição
metafísica — que identifica o plano matemático com a
matéria, a figura construída com a forma e o geômetra com
o princípio ativo da cosmogênese —, será que existe uma
realidade metafísica correspondente ao arquétipo ideal da
construção geométrica? Bem, pelo menos uma coisa é
evidente logo de partida: essa realidade — se em todo caso
existe — deve pertencer à ordem supraformal. E isto implica
que o paradigma geométrico, caso tenha alguma
correspondência analógica com o que quer que seja, deve
significar uma realidade transcendente ou acósmica.
Existirá tal realidade? Haverá na natureza de Deus algo
que desempenhe o papel de arquétipo frente às formas
criadas? Chegará mesmo tão longe a analogia geométrica?
Aí está a grande questão. E é, ademais, um problema que
precisa ser encarado: nenhuma doutrina metafísica digna
de ser chamada assim pode esquivar-se ao assunto. Porque,
em última análise, depende deste ponto a própria
inteligibilidade do cosmos e a possibilidade mesma do
pensamento metafísico.
Diga-se de passagem que as grandes tradições
metafísicas não só trataram da questão, como responderam
pela afirmativa. Duma maneira ou de outra, todas elas —
sem exceção, acreditamos — afirmam uma transcendente
realidade metafísica que se reflete no cosmos e constitui o
conteúdo essencial das formas, tal como uma figura
geométrica construída reflete ou manifesta o seu protótipo.
Era isso sem dúvida alguma o que pretendia expressar, por
exemplo, a chamada doutrina platônica das Ideias. Apenas,
deve-se acrescentar que expoentes do racionalismo e
críticos congêneres vieram lançar a questão numa confusão
irremediável por lhes escapar que a doutrina platônica é
necessariamente analógica. Dito de outro modo, esses
intérpretes incorreram no engano de identificar as Ideias
platônicas com coisas como o círculo ideal, despercebendo
que tais entidades matemáticas não passam de imagens ou
análogos das realidades verdadeiramente transcendentes a
que o autêntico ensinamento se refere. É a velha falácia de
confundir a lua com o dedo, como diz a expressão chinesa.
MAS COMO SE POSICIONA a doutrina cristã nessa
questão? Ora, conforme já dissemos, o cristianismo vê o
cosmos como uma teofania — e aí está a resposta à
pergunta. Porque a doutrina cristã afirma não só que existe
de fato uma realidade paradigmática transcendente, mas
ainda que é o próprio Deus o Arquétipo supremo, do qual o
cosmos — e tudo quanto está contido nele — não é senão
um símile parcial e imperfeito. A natureza inteira “é como
que um espelho” a refletir a Face de Deus.
Para lançar um pouco mais de luz sobre este ponto e
apreender a base escriturística do ensinamento, vamos
meditar no conhecido Prólogo de São João, que trata do
Logos, ou Palavra de Deus. Notemos, em primeiro lugar, que
o Verbo divino corresponde por analogia, não ao mundo
exterior nem a palavras proferidas audivelmente, mas antes
de tudo à “palavra do coração significada pela palavra da
voz”, como explica São Tomás.18 Onde quer que se fale com
entendimento, e onde quer que se ouça com compreensão,
aí estará “a palavra do coração”. Assim, na fala a palavra
exterior é mera expressão da interior, enquanto na audição
o estímulo externo é que provoca a palavra inaudível a soar
no coração (é “o martelo que percute o meu sino”, conforme
o exprime Jacob Böhme). Na verdade, tanto a tradição cristã
como a oriental discriminam vários níveis da palavra
interior, indo desde a mais periférica até a verdadeira
palavra do coração, está sempre inseparável do próprio
intelecto. Devemos acrescentar ainda que essas coisas
podem ser compreendidas em plenitude, e com imenso
proveito, mediante uma espécie de introspecção intelectual.
Pois, como nos conta Santo Agostinho:
 
Quem consegue entender a palavra não só antes de
ela ser pronunciada, mas ainda antes de se formarem no
pensamento os sons imaginários dela, já vislumbra uma
semelhança daquele Verbo a respeito do qual se diz: No
princípio era o Verbo.19
 
Pois bem, a criação em si compara-se à palavra, porque,
segundo observa Mestre Eckhart, “num sentido muito geral,
o que se apresenta de alguém é a sua palavra: ela declara,
indica e manifesta aquilo de que provém”.20 Está bem
entendido que o cosmos corresponde à palavra exterior — a
palavra da voz por oposição à palavra do coração. Afinal, o
mundo não tem a natureza de Deus e, portanto, existe não
em Ser, mas em devir: todas as coisas estão em estado de
fluxo, já dizia Heráclito. Daí que o mundo não é
“consubstanciai ao Pai”: é “criado, e não gerado”, ao passo
que o Verbo divino é “gerado, e não criado”. Contudo, o
cosmos é feito à semelhança desse Verbo que no princípio
era, assim como, na linguagem humana, a palavra falada
semelha a palavra concebida pelo intelecto. De modo que a
criação é uma teofania, onde todas as coisas falam de Deus,
“pois toda criatura é pela própria natureza uma espécie de
efígie da Sabedoria eterna”, como declara São
Boaventura. 21

Pode-se ainda entender o ato da criação por analogia


com a produção artística. O artista produz a coisa exterior
segundo uma visão interior da ideia ou modelo, que
preexiste nele como “a arte no artista”, para usar uma
expressão escolástica. Portanto, o artefato é produzido à
imagem e semelhança do seu modelo intelectivo, que
enquanto tal permanece no artista, ou melhor, na sua arte.
Como diz São Tomás: “O conhecimento de Deus é a causa
das coisas. Pois que o conhecimento de Deus está para
todas as criaturas assim como o conhecimento do artífice
está para as coisas artificiadas”.22 Vale assinalar que “o
conhecimento de Deus” é o próprio Verbo a respeito do qual
São João declara: “Tudo foi feito por Ele, e sem Ele nada se
fez”. Ademais, como sustenta a Suma teológica:
 
Uma vez que o mundo não foi feito por acaso, mas por
Deus agindo segundo a Sua inteligência, [...] é forçoso
que exista na mente divina uma forma à semelhança da
qual o mundo foi feito. E nisto consiste a noção de
ideia.23
 
Por conseguinte, assim como a existência de uma coisa
se deriva do ser absoluto de Deus, assim também a sua
peculiaridade ou singularidade se deriva de um modelo
divino: “Daí que todas as coisas preexistem em Deus, não
só quanto ao que é comum a todas, mas ainda quanto ao
que as distingue umas das outras”.24 Não se deve supor
todavia que as ideias ou modelos divinos coexistam em
Deus como uma profusão de entidades separadas.
Conforme explica Aquino, “uma ideia não indica a essência
divina enquanto essência, mas enquanto semelhança ou
razão desta ou daquela coisa. Por isso, se forem muitas as
razões depreendidas de uma só essência, serão muitas as
ideias”.25 Ou seja, a multiplicidade diz respeito somente às
coisas criadas, e não ao modelo delas, que, segundo São
Tomás, não é senão a essência divina mesma. Nos termos
da analogia geométrica referida nas seções precedentes,
pode-se dizer que o limite é uno em si mesmo mas múltiplo
nas suas participações: a “medida” é uma só, mas são
muitas as coisas medidas. Será por isso que o Rig Veda fala
do “raio” (com que “mediu Ele o céu e a terra”) na forma
singular? Seja como for, o argumento não poderia ficar mais
claro do que na Suma sob a questão “Se a causa exemplar é
algo diverso de Deus”, onde São Tomás diz: “As ideias, ainda
que multiplicadas pelas suas referências às coisas, não se
distinguem realmente da essência divina, na medida em
que a semelhança desta essência pode ser compartilhada
por muitas coisas de muitas maneiras. Assim, pois, Deus é o
exemplo primeiro de todas as coisas”.26
Mas isto implica que os limites da natureza — as próprias
medidas por que o cosmos se estabeleceu — anunciam, no
dizer do Apóstolo, as coisas invisíveis de Deus [...]: o Seu
poder eterno e a Sua divindade.
ENTRE OS LIMITES da natureza — ou as medidas por que
o cosmos é trazido à existência —, o mais fundamental,
decerto, é o momento temporal. Aqui é preciso entender,
antes de mais nada, que o momento não é uma duração,
por breve que seja, mas a delimitação da duração — pois
toda duração é delimitada pelo seu início e pelo seu fim.
Cumpre notar também que a duração em si não tem
existência à parte das coisas que duram, assim como o
comprimento não existe apartado das coisas extensas. Além
disso, todas as coisas ou processos existentes têm uma
duração: existir no mundo é durar. Daí se segue que o
momento temporal constitui um limite cósmico universal.
Aqui mais uma vez fica evidente a analogia com a
construção geométrica. Percebemos que também a
existência temporal se concretiza mediante delimitações —
quer dizer, mediante as próprias delimitações que a
encerram.
Esta intuição básica e perene veio a ser toldada, nos
nossos dias, pela doutrina newtoniana do tempo, uma teoria
que depende de duas noções malparidas: primeiro, a ideia
de que o tempo é “um continuum homogêneo e absoluto”;
segundo, a crença de que o momento faz parte do tempo. O
tempo homogêneo é tido por uma espécie de receptáculo
de eventos, tal como, na teoria newtoniana, o espaço é
considerado um contêiner de existências corpóreas. E,
assim como se julga que o espaço é composto por um
número infinito de pontos — equívoco metafísico para o
qual a “geometria analítica” de Descartes preparou o
terreno —, assim se concebe o tempo como uma multidão
infinita de “agoras” instantâneos.
Em certo sentido, surpreende que uma civilização de
orientação empírica, orgulhosa que é da sua devoção aos
“fatos crus”, se comprometa com uma posição de todo em
todo quimérica: porque, realmente, onde é que se encontra
esse tempo homogêneo, para não falarmos naquele sem-
fim de átomos temporais? A moral da história, talvez, é que
cada um deve ter a sua metafísica, assim como cada um
deve ter a sua religião: a nossa única efetiva escolha fica
entre a verdade e o erro. Note-se ainda que em choque com
a moderna metafísica do tempo entrou a física novecentista.
Esta ciência freudiano. Parece que aí ficou representado
cada matiz de juízo sobre o assunto. Havia, por exemplo, os
que elogiavam a argúcia teórica de Freud mas sentiam que
a psicanálise “manifestamente fracassa em produzir
resultados benéficos”. Havia aqueles de opinião que “a
doutrina da sexualidade infantil é toda ela contrária aos
fatos”, bem como aqueles persuadidos de que ela em
grande medida pode ser substanciada com objetividade.
Havia os absolutamente convictos de ser a psicanálise a
panaceia para todos os males, e os que asseguravam que
menos de 5% dos seus pacientes poderiam ser beneficiados
pelos métodos freudianos. Havia psiquiatras do parecer de
que 60% das vezes a psicanálise faz mais mal do que bem e
que quatro dentre cinco análises “não são indicáveis”. Havia
aqueles que louvavam Freud como o profeta da nossa era, e
aqueloutros que consideravam seus pronunciamentos “uma
das mais estranhas anomalias e fantásticas extravagâncias
do começo do século XX”. “Quando lemos,” diz Myerson,
“em O mal-estar na civilização, de Freud, que a mulher se
tornou a guardiã da lareira doméstica porque sua
constituição anatômica lhe impossibilita apagar o fogo com
um jorro de urina, ficamos matutando em como é que pôde
haver a mínima aceitação de tais doutrinas”. Ficamos
matutando, deveras! Nesse meio-tempo, seja lá o que mais
se possa respigar dessas sortidas observações, basta uma
tão fenomenal falta de concordância entre os especialistas
para provar que não estamos lidando nem com uma ciência
autêntica nem com um sistema medicinal bem-sucedido.
Embora não tenhamos notícia de nenhum levantamento
similar feito em data mais recente, parece que o prestígio
da psicanálise freudiana nos círculos profissionais diminuiu
consideravelmente desde o tempo de Myerson. “Exceto na
clama, por assim dizer, contra essas ideias arraigadas, e
não obstante elas “retêm-se tenazmente”, como se
houvessem sido emitidas por uma autoridade infalível.
Assim, o nosso estranhamento intuitivo às declarações da
teoria da relatividade se origina justamente dessa nossa
crença em um tempo absoluto e homogêneo, feito de
“agoras” instantâneos. Daí nos espantarmos ao ouvir que a
“simultaneidade absoluta” não tem sentido físico. Porque
contanto que falemos de durações concretas não há
paradoxo algum, nem nenhum mistério em especial. Na
verdade, a teoria da relatividade pode ser considerada um
retorno, pelo menos parcial, das ideias de espaço absoluto e
tempo absoluto para o espaço e o tempo entendidos como
concretizados por um processo de medição. De modo lento,
parece, mas inevitável, a física moderna vai-se dando conta
de que o que existe é “o medido”. E isto, em princípio, é o
mais longe que a ciência pode jamais chegar — pois como
poderia ela captar Aquilo que concede a medida primária a
todas as coisas: o Uno, que com Seu “raio” ou “traçado”
estabeleceu o cosmos?
Voltando ao assunto do tempo, observemos como o
tempo homogêneo, tal qual o espaço vazio, é uma mera
abstração. O tempo em si mesmo é, pode-se dizer, uma
potencialidade: é, na verdade, a potencialidade a ser
efetivada pela duração. E, sendo assim, o momento não é
parte integrante do tempo, mas aquilo que efetiva o tempo,
à força de dividi-lo, digamos, e com isso destruir-lhe a
homogeneidade. Porque, como sempre, não pode existir
nenhuma entidade perfeitamente indiferenciada — seja o
espaço, o tempo, a prima matéria ou o outrora debatido
éter.
Aqui surge outra questão: terá o momento temporal,
como limite constitutivo de toda a existência cósmica,
significação teofânica? Por outras palavras, será que o
momento de tempo aponta para um paradigma
transcendente a ele? E, em caso positivo, o que é isto que
se revela dentro do cosmos sob a forma deste misterioso
ponto a separar passado e futuro — o “agora” que aparenta
mover-se? Eis que a resposta já se conhece desde a
Antiguidade: o “agora” que aparenta mover-se é uma
imagem — “uma imagem movente”, como Platão diz no
Timeu — do “agora” que se mantém imóvel, e que é a
eternidade.
Esta doutrina perene, havemos de convir, não se ajusta
bem ao nosso pensar habitual. Mas acontece que a
vulgarizada ideia de eternidade é ela própria
irremediavelmente confusa, porquanto se resume no
conceito de “duração infinita” — uma contradição de
termos, visto que a duração se define pelos seus pontos
terminais. Ora, a eternidade é infinita, por certo; mas não é
uma duração. Tampouco podemos concebê-la como um
limite aventando uma sequência de durações “a aproximar-
se do infinito” — porque, por longo que seja, isso não será
uma duração, e sim o momento instantâneo que espelha a
eternidade.
O que é, então, a eternidade? E um estado, ou uma
plenitude do ser, como observaram tanto Santo Agostinho
como Plotino, onde “foi” e “será” não encontram lugar. Ali
tudo se concentra em um único ponto, por assim dizer: a
eternidade se pertence plenamente a si mesma, sem
nenhum espalhamento ou dispersão. E contudo não é
homogênea, mas estruturada, se aí cabe o termo; não
vazia, mas perfeitamente cheia.
O MOMENTO, NA SUA CONCRETUDE, manifesta~se como
o presente, o “agora”. Mas, por óbvio que seja este fato
quando se para para pensar a respeito, ele perde-se por
completo no modo científico abstratizante de olhar as
coisas. Porque esta perspectiva, com efeito, reduz o
momento a um determinado valor da coordenada temporal
— um valor que, enquanto tal, em nada se distingue de
outro qualquer. No jargão do teórico, as equações da física
são invariantes sob traduções temporais, e o assunto se
encerra por aí. Só que na realidade não: porque está claro
que o presente — pelo simples fato de ser presente — se
diferencia categoricamente de todos os outros momentos
concebíveis. E não se trata de uma distinção insignificante
nem meramente “acadêmica”: a diferença é tão grande
quanto aquela que separa o existente do inexistente.
Já se disse muita vez que todas as coisas existem no
presente. E assim é — pois o que jaz no passado está morto
e o que pertence ao futuro ainda está por nascer. De
maneira que o presente — esse aparente “ponto” destituído
de toda e qualquer magnitude — curiosamente parece
conter em si tudo que já foi e que há de ser. Aqui não nos
pode deixar de vir à lembrança a parábola evangélica que
compara o Reino dos Céus a um grão de mostarda: a que é
“a menor de todas as sementes” contém em si “a maior de
todas as hortaliças”. Assim também o momento presente:
na perspectiva quantitativa ele aparenta ser o menor, e na
realidade é o maior, porque abarca tudo o que existe.
A esta posição alguém poderá objetar que a realidade
cósmica é abarcada não por um presente único e singular, e
sim por uma infinitude de momentos distintos, cada qual
assumindo o status de presença, ou de “agoridade”, uma
vez só — por um único instante! Mas pensar nesses termos
é voltar a cair na falácia newtoniana: é conceber o momento
como “parte do tempo”. A esta altura não precisamos entrar
numa crítica pormenorizada dessa tese, uma concepção que
tem sido tema de discussão filosófica desde a Antiguidade.
Basta-nos dizer que a posição newtoniana pode ser refutada
com contundente rigor mediante argumentos conhecidos já
por Aristóteles — basicamente demonstrando como ela
conduz a um dos “paradoxos do infinito”.27 Assim a objeção
mencionada, que pressupõe ser o mundo composto de
momentos, perde toda a força.
Como já assinalamos, a doutrina tradicional sustenta que
o momento, longe de “estar no tempo” ou “fazer parte do
tempo”, é aquilo que concretiza o tempo; por curtíssimo que
seja, não é uma duração, mas a delimitação da duração.
Portanto, o momento é tanto um átimo de segundo quanto
um dia ou um ano. A delimitação distingue-se da coisa
delimitada; e, como sempre, a multiplicidade pertence às
coisas delimitadas — no caso, às durações —, e não à
própria delimitação.
O mundo se move, enquanto o “agora” fica parado: eis aí
o fato estupendo, tão difícil de entender e muito mais
complicado ainda de constatar por meio de experimentos.
Parece que o cosmos é como uma roda a girar: move-se
todo ele em torno do centro, o único ponto que permanece
fixo. Este é o sempre presente “agora”, o nunc stans, aquele
maravilhoso “eixo em volta do qual gira a primeira roda”
(“punta dello stelo a cui la prima ruota va dintorno”), nas
palavras de Dante. “No centro de todo onde e todo quando
[...], desse ponto depende o céu e toda a natureza”.28
POR ESPANTOSO QUE PAREÇA, a eternidade se encontra,
não em algum futuro longínquo e sempiterno, mas neste
perpetuamente presente “agora”: tal como o Reino dos
Céus, ela fica “dentro”.29 E, portanto, também a eternidade
há de ser “adentrada” por via do momento temporal, que é,
com efeito, “o fundo da agulha” pelo qual é difícil passar.
Escusado dizer, nós vivemos distraídos desta “porta
estreita” — pode-se dizer desta dimensão oculta — que tem
a ver com o caminho do místico e com a escatologia.
Habitualmente estamos na condição do “rico”; como Marta,
andamos “preocupados com muita coisa”. Alheamo-nos
daquela “pobreza de espírito” enaltecida no Evangelho. E
contudo a porta está lá, bem ao centro do nosso ser. É o
“coração” de que fala o místico, a “alcova” em que o Cristo
nos instiga a entrar (Mt 6, 6), o lugar secreto onde os santos
comungam com Deus. Está lá, em meio às vicissitudes e à
dissipação da nossa vida, assim como está lá nos momentos
de calma e de recordação. Não flutua, não se move; à
diferença das coisas e criaturas deste mundo, é
perfeitamente estável. Porque, em verdade, ali dentro se
encerra aquele ponto imóvel, aquele “eixo em volta do qual
gira a primeira roda”: o transcendental “centro de todo
onde e todo quando”. Relembremos: “Desse ponto depende
o céu e toda a natureza”.
 
Notas
 
CAPÍTULO III - HORIZONTES PERDIDOS
 
1. Suma contra os gentios, III, 68.
2. The Enneads, trad. S. MacKenna. Londres: Faher & Faber, 1930, vi, 9, 5.
3. Collationes in Hexaemeron, 11, 27.
4. The Fourfold Vision. Londres: Chapman Sc Hall, 1945, p. 91. Apud: S.H. Nasr,
Man and Nature. Londres: Allen & Unwin, 1976, p. 41.
5. The Life of Moses. Nova York: Paulist Press, 1978, p. 60.
6. Ibid., p. 93.
7. In Joannis Evangelium, XXXVIII, 10. Ver The Nicene and Post-Nicene Fathers.
Grand Rapids: Eardmans, 1974, v. VII.
8. Meister Eckhart, trad. C. de B. Evans. Londres: Watkins, 1924, vol. I, p. 206.
9. Moralia, 329D.
10. Crátilo, 439E.
11. Science and Humanism. Cambridge: Cambridge University Press, 1951, p.
17.
12. Ibid., p. 18.
13. Confissões, VII, 11.
14. The Soul's Journey into God, v. 7. Nova York: Paulist Press, 1978.
15. Autor de Os nomes divinos, A teologia mística e A hierarquia celeste,
Dionísio foi durante longo tempo identificado com o ateniense homônimo
convertido ao cristianismo por São Paulo no Areópago, conforme relatado em
Atos 17,34. Seus escritos (mencionados pela primeira vez em 533 d.C., num
conselho realizado em Constantinopla) exerceram enorme influência sobre o
pensamento teológico cristão. São Tomás de Aquino cita Dionísio a mancheias, e
Ricardo de São Vítor refere-se a ele como a primeiríssima autoridade na
interpretação metafísica da Escritura. Recentemente pôs-se em questão a sua
presumida identidade e passou-se a chamar-lhe Pseudo-Areopagita ou Pseudo-
Dionísio. Seja lá como for, continua o autor dos supraditos tratados a figurar
entre os mestres incontestáveis da sabedoria cristã.
16. The Divine Names, trad. C.E. Rolt. Londres: Society for Promoting Christian
Knowledge, 1972, XIII, 2.
17. Rig Veda, VIII, 25,18.
18. Suma teológica, I, 27, 1.
19. De Trinitate, XV, 10.
20. Expositio s. Evangelii sec. lokannem, i, 4. Ver Meister Eckhart: Die deutschen
and lateinischen Werke. Stuttgart: Kohlhammer, 1936, vol. III.
21. Itinerário da mente para Deus, II, 12.
22. Suma teológica, I, 14, 8.
23. Ibid., I, 15,1-2.
24. Ibid., I, 14, 6.
25. Ibid., I, 15,2.
26. Ibid., I, 44, 3.
27. A ideia da infinidade numérica é em si mesma paradoxal. Por exemplo, se
devéssemos falar na “totalidade dos números inteiros”, feríamos de concluir
(conforme Leibniz foi talvez o primeiro a observar) que os inteiros pares são
tantos quantos são os inteiros pares somados aos ímpares — conclusão absurda
por qualquer conta. A questão é que números infinitos — ou, se se preferir,
conjuntos infinitos — não existem. Ora, como se sabe, a matemática moderna
postulou tais entidades, e continua a fazê-lo, muito embora a lógica desse
procedimento se tenha revelado bem mais precária do que o esperado até
poucas décadas atrás, e ainda que um contingente cada vez maior de
matemáticos venha abandonando essas abstrações em favor de conceitos ditos
construtivos. Agora, mesmo admitindo a possibilidade de operar com conjuntos
infinitos formais de algum modo logicamente coerente, isso em hipótese alguma
mitiga o absurdo de supor os inteiros pares tão numerosos quanto os inteiros. A
contradição permanece enquanto o conceito de número não houver sido tão
formalizado ao ponto de perder todo o seu teor intuitivo. E, quando tal ponto é
atingido, já não estamos dizendo o que dizíamos antes: refugiamo-nos num
universo feito de discurso, puramente convencional — um formalismo vazio que,
quando muito, só pode ter alguma ligação com a realidade por meios
operacionais. Do outro lado, a doutrina newtoniana, quando fala em número
infinito de momentos, não está emitindo uma declaração puramente formal,
muito menos propondo uma definição operacional. Com toda a evidência, o que
ela está fazendo aí é uma asserção metafísica, que deve ser julgada em suas
próprias bases: e é justamente por isso que os “paradoxos do infinito” entram
em jogo agora (assim como dois milênios atrás) e que a posição se mostra de
fato logicamente insustentável.
28. Paraíso, XIII, 11; XXIX 12; e XXVIII, 41.
29. Deve-se notar que essa doutrina do tempo e da eternidade não é simples
especulação pessoal nem mera “poesia”. Como demonstrou Ananda
Coomaraswamy em um estudo de primeira importância (Time and Eternity.
Ascona: Artibus Asiae, 1947), ela é essencial às tradições grega e cristã, além de
discernível nos ensinamentos do hinduísmo, do budismo e do islamismo.
Pertence, sem dúvida, à sabedoria perene da humanidade.
 
 
CAPÍTULO IV - EVOLUÇÃO: FATO E FANTASIA
 
 
A TESE CENTRAL DO DARWINISMO é a hipótese
transformista: a proposição de que uma espécie pode
transformar-se em outra. Como a transformação se daria —
por que causas ou mecanismos biológicos —, isso é outro
problema; a questão principal é se as espécies superiores
evoluíram de ancestrais primitivos e, afinal, se já chegou a
acontecer alguma vez a genuína transformação de uma
espécie.
Assim como é impossível dois organismos quaisquer da
mesma espécie serem idênticos, assim também, sem
dúvida, há certa variabilidade — uma elasticidade, digamos
— dentro da própria espécie. É decerto admissível, pois, que
uma espécie se adapte a mudanças no meio ambiente, ou
que desenvolva determinados traços benéficos. Agora, se
tais transformações podem ou não acabar resultando na
formação de uma nova espécie, isso depende, é claro, do
que exatamente se entende pelo termo espécie; e não se
trata de questão simples. Já muito se debateu o assunto, e
ainda não está claro se existe um único critério natural (por
exemplo, a capacidade de hibridar-se) para se obter uma
definição plenamente satisfatória. Em todo caso está fora de
dúvida que se processam na natureza transformações
microevolutivas, qualquer que seja a extensão delas
conforme mensuradas na escala taxonômica convencional.
A verdadeira questão, portanto, não é se o que definimos
como espécie é ou não invariável, mas sim se uma
transformação evolutiva pode chegar a produzir o que
reconheceríamos inequivocamente como um novo tipo de
planta ou animal. Por outras palavras, há uma zona cinzenta
em que se opera a microevolução; o que a hipótese
transformista afirma é que ocorrem também transformações
macroevolutivas.
Como teoria científica, a afirmação transformista há de
ser julgada com base em fatos observáveis. Quais são,
então, devemos perguntar, as principais fontes de
comprovação empírica em jogo, e quais as descobertas
pertinentes?
Em primeiro lugar é preciso considerar os fatos da
paleontologia; porque, com relação a formas de vida
antigas, o registro fóssil evidentemente constitui o nosso
único meio de observação direta. Este é o telescópio, por
assim dizer, que torna em alguma medida visível o
panorama da vida primordial e, assim, proporciona uma
base concebível para a verificação de hipóteses
evolucionistas. Aqui, gravados em rocha, estão os fatos nus
e crus com que a teoria tem de condizer.
Bem se vê que o que o evolucionista gostaria de achar
no registro paleontológico são conjuntos de fósseis em
ordem cronológica portando todas as marcas típicas de uma
sequência evolutiva — cadeias graduadas a exibirem
variações morfológicas filogenéticas conforme avançam dos
primeiros espécimes para os últimos. No entanto, mesmo
que encontre tais cadeias em abundância, ele ainda precisa
estabelecer-lhes a origem evolucionária; e é óbvio que a
própria paleontologia não pode oferecer nenhuma
justificação para esse passo.
Como observou o biólogo francês Louis Bounoure, “ver
prova de descendência na concordância entre a disposição
de tipos morfológicos e sua posição cronológica significa
apender a esta concordância, que é o único fato líquido e
certo, a hipótese da filiação, cuja verificação é impossível e
probabilidade sempre discutível”.1 Dito de outro modo, a
hipótese transformista não é diretamente verificável em
termos de descobertas paleontológicas.
Bem se vê também, em contrapartida, que uma
considerável escassez de sequências fósseis evolutivas
seria fatal à teoria. Porque, se supomos haver sido a Terra
ao longo de vastas eras povoada por formas transitórias de
espécies vegetais e animais, e se podemos demonstrar
haver funcionado durante esses períodos um mecanismo
geológico responsável pela formação dos fósseis, então é
razoável esperar que aquelas formas transitórias estejam
representadas no registro paleontológico.
Mas, em termos gerais, não estão; e desde o início este
se tem provado um enorme empecilho para os expoentes
da evolução. Ao que indicava o status quaestionis em 1859
— e mais ainda no presente —, os fósseis não depõem a
favor do evolucionista. O próprio Darwin, aliás, percebia isso
com bastante clareza. Assim, n’A origem das espécies, ele
declara ser esta objeção “talvez a mais óbvia e séria que se
pode levantar contra a teoria”. Reiteradamente toca ele na
questão crucial: “Por que, então, não está cada formação
geológica e cada estrato repleto desses elos
intermediários?”. Sua resposta é a seguinte: “A explicação,
acredito, jaz na extrema imperfeição do registro geológico”.2
E este, com toda a evidência, hoje tanto como então, o
ponto crítico que o evolucionista precisa estabelecer. “Quem
rejeitar a explicação da imperfeição do registro geológico”,
escreve Darwin, “vai rejeitar, com razão, a teoria inteira”.3
Um caso especialmente perturbador da dificuldade geral
é a completa ausência (ou, pelo menos, a extrema penúria)
de fósseis orgânicos no estrato pré-cambriano. Eis o nó, nas
próprias palavras de Darwin:
 
Há um problema análogo, só que bem mais grave.
Refiro-me à repentinidade com que espécies
pertencentes a várias das principais divisões do reino
animal aparecem nas rochas fossilíferas mais baixas que
conhecemos. A maioria dos argumentos que me
convenceram de que todas as espécies subsistentes do
mesmo grupo descendem de um ancestral comum
aplicam-se por igual às espécies mais antigas conhecidas
por nós. A título de exemplo, não pode haver dúvida de
que os trilobitas cambrianos e silurianos descendem
todos de um único crustáceo, que deve ter vivido muito
antes da era cambriana e provavelmente diferia imenso
de qualquer outro animal conhecido. [...] Por
conseguinte, caso a teoria esteja certa, é indiscutível que
antes de se formarem os estratos cambrianos inferiores
transcorreu tempo longuíssimo, plausivelmente bem
maior do que o intervalo entre a época cambriana e a
atual; e que durante esses vastos períodos o mundo
pululava de criaturas vivas. [...] Por que então não
encontramos fartos depósitos fossilíferos datados desses
admitidos períodos primitivos anteriores ao sistema
cambriano? A essa pergunta eu não posso dar nenhuma
resposta satisfatória. [...] A questão há de permanecer
inconclusiva; e de fato pode ser aduzida como
argumento válido contra as teses aqui sustentadas.4
 
À luz do conhecimento geológico atual, pode-se
acrescentar que o estrato pré-cambriano monta a
aproximadamente quatro quintos da crosta terrestre e
corresponde a um período de uns 900 milhões de anos de
história geológica, com início estimado em 1.500 milhões de
anos atrás. Estava correta, portanto, a suposição de Darwin
quanto à enorme duração da era pré-cambriana: mais ou
menos uma vez e meia maior que o tempo decorrido desde
a era cambriana até o presente. Mas isso só acentua o
problema maior. Porque veio a provar-se praticamente nulo
o registro fóssil desses gigantescos estratos pré-cambrianos
— camadas que em algumas localidades chegam a mais de
1.500 metros de rocha sedimentar intacta, ideal para a
impressão de fósseis. Têm havido, admita-se, esporádicos
relatos de achados pré-cambrianos alegadamente derivados
de algas, bactérias ou até buracos escavados por vermes;
mas, de novo, esses informes foram contestados e, em
alguns casos, desqualificados em definitivo. Agora note-se o
contraste entre isso e os bem mais de mil gêneros
cambrianos a somarem para lá de 5 mil espécies!
Mais abundantes que os fósseis pré-cambrianos, pelo
visto, são as teorias formuladas para explicar a ausência
deles. Num breve compêndio publicado em 1957 (sem
dúvida longe de completo), Dewar discute nada menos de
doze teorias dessas e conclui que nenhuma é assim muito
convincente.3 Em todo caso, a própria copiosidade de
teorias ocasionadas pela dificuldade em questão já atesta a
gravidade do problema e a carência de qualquer solução
definitiva. 5 O PROBLEMA BÁSICO, isto é, a falta de formas
intermediárias, persiste através dos estratos sedimentados
do cambriano em diante — todos eles riquíssimos em
fósseis orgânicos —, como já foi apontado inúmeras vezes, a
começar por Darwin. O fato é que, “até onde vai a pesquisa
paleontológica, a grande maioria dos tipos fundamentais do
reino animal se nos apresenta sem antecedentes”, declarou
Deperet em 1907;6 e meio século mais tarde Simpson
reitera: “Como qualquer paleontólogo sabe, continua a
verificar-se que a maioria das novas espécies, gêneros e
famílias, bem como quase todas as categorias acima do
nível das famílias, aparecem nos registros de modo súbito, e
não em graduais e contínuas sequências transicionais”.7
Naturalmente, o evolucionista se vê obrigado a prestar
conta desta circunstância de uma maneira que salvaguarde
a sua teoria, e, como já notamos no caso pré-cambriano,
essa necessidade desencadeou uma profusão de teorias
especiais. Para complicar ainda mais, o embaraço agravou-
se durante o presente século, à medida que, com os
notáveis avanços da paleontologia e de campos
relacionados, se foi descartando uma série de soluções
simplistas. Acima de tudo, ficou muito mais difícil apelar
para “a extrema imperfeição dos registros geológicos”. Por
exemplo, segundo interessante estudo de Dewar e Levett-
Yeats saído em 1932, eis que está representada no registro
fóssil uma porcentagem surpreendentemente alta dos
gêneros subsistentes dentro de dois grupos de amostragem
(i.e., mamíferos e moluscos).8 No caso, digamos, dos
mamíferos terrestres, as porcentagens vão desde 100 entre
os gêneros europeus até 56 entre os australianos; e, como
seria de esperar, os números são ainda melhores no caso
dos mamíferos marinhos. Mas mesmo entre os gêneros
voadores pesquisados (i.e., morcegos), em que seria
estimável a mais baixa probabilidade de fossilização, se
encontrou registro fóssil de 26 % dos 215 gêneros
subsistentes. Visto que os gêneros constituem uma
gradação tenuíssima na escala taxonômica, esses dados
põem em xeque o princípio da extrema imperfeição.
No cenário científico atual, a única saída da evidência
negativa apresentada pela paleontologia parece achar-se
em alguma factível concepção de criptogênese, ou
“evolução oculta”, da qual já se propôs uma porção de
variantes. Uma abordagem possível (e isto vale sobretudo
para os estágios mais avançados da evolução,
correspondentes aos estratos fossilíferos) é postular fases
evolutivas especiais durante as quais a transformação das
espécies se dá com velocidade tal que escapa à detecção
via registro fóssil. Em conformidade com esta ideia geral
encontramos conceitos como a “aromorfose” de Severtzoff,
a “evolução explosiva” de Schindewolf, os “episódios de
evolução intensa” de Zeuner e o “taquitelo” [tachytely] de
Simpson. Também já se consideraram criptogêneses algo
diferentes, como a “evolução clandestina” de De Beer.9
Contudo, essas teorias todas parecem ressentir-se da
mesma desvantagem fundamental, que é a simples falta de
evidência positiva. O máximo que se pode esperar neste
domínio, segundo parece, é evitar conflitos muito óbvios
com os fatos conhecidos.10
A mesma observação se aplica a diversas árvores
genealógicas que têm sido postuladas de tempos em
tempos, começando pelo famoso espécime de Haeckel.
Quanto aos ramos mais finos, não raro se tem afirmado que
eles podem ser certificados por uma efetiva sequência
fóssil; mas, para muito além do problema lógico a que já
aludimos (a total impossibilidade de uma dessas sequências
atestar afiliação), há aí outras dificuldades, com frequência
negligenciadas. Por exemplo, já foi demonstrado que,
partindo-se de um determinado conjunto de fósseis
pertencentes a dado grupo, há a possibilidade de extrair-se
daí uma variedade de pretensas sequências evolutivas
completamente díspares, conforme se escolha como fator
significativo a estrutura dos dentes, digamos, ou das patas.
Uma vez que essas sequências não batem com nenhuma
das genealogias postuladas, resta concluir que no mínimo
algumas delas são artificiais. Por qual concebível critério,
então, distinguir entre sequências artificiais e genuínas? A
este propósito, Bounoure nota:
 
Pode-se perfeitamente, no estudo dos mamíferos
terciários, digamos, estabelecer certas comparações e
certas relações ideais entre membros de tais grupos; é
esta outrossim a tarefa por excelência da anatomia
comparativa. Mas, na maioria dos casos, vai-se além dos
fatos quando se enxerga nessas relações um indício de
real filiação, de genuína descendência. Abel é de opinião
que no reino animal inteiro não há mais de cinco ou seis
séries de formas autenticamente evolutivas — isso
admitindo-se a hipótese de uma efetiva linhagem em
transformação gradual.11
 
Já quanto aos ramos principais, a questão fica ainda mais
melindrosa. Pois é aí, sobretudo, que o aspecto descontínuo
do registro fóssil entra em jogo; é aí que, em lugar de uma
sequência transicional concebível, por mais incerta, nós
quase sempre nos deparamos com um vazio. Como é então
que se imagina preencher essas lacunas? Levando em conta
ser virtualmente impossível fazê-lo com um mínimo de rigor
científico, não surpreende que as teses nesse sentido gerem
considerável controvérsia e que, em todo caso, algumas
autoridades se mantenham céticas com relação a elas.
Bounoure, para dar um exemplo, assim se pronuncia a
respeito:
 
Seria subestimar a imaginação dos especialistas
acreditar que, defrontados com a origem críptica dos
grandes filos, eles se veriam desprovidos de recursos.
Haeckel já indicou o caminho ao inventar formas
ancestrais teóricas — os protovertebrados, os proto-
selachianos, os proto-amniotas e os protomamíferos, que
teriam desaparecido no curso das eras e, quem sabe?,
com o avançar da paleontologia talvez sejam
descobertos um dia. Haeckel nunca se envergonhou de
“povoar de figurinhas os mares e continentes antigos”
[Koken]. Cabe ainda observar que as árvores
filogenéticas brotam da mesma imaginação fértil: as
folhas de fato representam grupos de seres reais, mas o
tronco e os ramos maiores não passam de ilusão ou
subterfúgio, porquanto estabelecem entre os grupos uma
continuidade inexistente; são apenas uma hipótese
enxertada aí para apoiar outra hipótese, e no geral não
valem, mais que uma petição de princípio.12
 
Ao CONTRÁRIO DE OUTRAS TEORIAS CIENTÍFICAS, que nos
possibilitam predizer fatos até então desconhecidos e que,
assim, podem ser postas à prova de maneira mais ou menos
concludente, a doutrina da evolução é praticamente vazia
de conteúdo preditivo. Advogar a causa evolucionista
consiste basicamente em aduzir fatos conhecidos que a
teoria pretende explicar — muitas vezes, como já vimos,
com o auxílio de outras hipóteses nela introduzidas
especificamente para este fim. Ora, o argumento pró-
evolução extrai qualquer força persuasiva que possa ter da
premissa auxiliar de que tais ou quais fenômenos não se
podem explicar igualmente bem em qualquer outra base
razoável. Mas isto, é óbvio, suscita um problema
fundamental: como decidir se uma alternativa concebível é
ou não é razoável? Será razoável, por exemplo, postular
alguma forma de causalidade teológica? Ou será razoável
examinar a questão em uma perspectiva teológica ou
metafísica? Na prática, para ter cabimento aos olhos da
comunidade científica, uma alternativa deve enquadrar-se
na cosmovisão predominante. Mais uma vez, portanto, nos
encontramos numa situação onde predominam
pressupostos ocultos, e onde “qualquer doutrina que não
pressuponha implicitamente este ponto de vista é acoimada
de ininteligível”.
Porém, mesmo que aquiesçamos em manter-nos
confinados aos limites da cosmovisão científica, a
supramencionada premissa auxiliar ainda aí se prova
suspeita; porque, no que diz respeito ao campo da biologia,
especialmente, o nosso conhecimento é em geral
insuficiente para rejeitar de antemão todas menos uma
única explicação científica de um dado fenômeno.
Considere-se, por exemplo, o seguinte argumento:
 
As evidências indiretas da evolução baseiam-se
mormente na significação das similaridades encontradas
em organismos diferentes. A única explicação possível aí
é estes organismos diversos terem derivado de um
ancestral comum aquelas semelhantes características
estruturais ou funcionais através de uma mesma
linhagem em mutação — pois as leis da probabilidade
determinam que as similaridades fundamentais
remontam a uma só origem. 13

 
Só que as leis da probabilidade não fazem nada disso. O
que se sabe é que dois organismos quaisquer do mesmo
grupo exibem toda uma série de homologias anatômicas,
fisiológicas e outras. O autor está dizendo, efetivamente,
que a probabilidade de encontrar similaridades tão
numerosas seria ínfima caso se tratasse de mero acaso. E
isso sem sombra de dúvida é verdade; aliás, é decorrência
lógica da própria definição de probabilidade. Mas concluir
que as referidas correlações não se devem ao acaso não é
de maneira alguma dizer que elas se devem a uma origem
comum. Obviamente há outras possibilidades concebíveis.
Por exemplo, é bastante concebível que todos os
organismos de determinado grupo por força exibam tantas
características em comum simplesmente porque não daria
certo nenhum outro esquema orgânico, ou não tão bem. Por
outras palavras, tudo considerado, talvez as homologias em
apreço se devam a exigências naturais. Agora, se tal é
mesmo o caso não é a questão aqui. Afirmamos apenas ser
essa uma explicação possível, e nem um pouco conflitante
com as chamadas leis da probabilidade, ou com quaisquer
outros princípios conhecidos. E nada mais precisamos dizer:
pois isso já prova conclusivamente que, em si mesma, a
verificação da forte correlação não acarreta a hipótese da
origem comum.
Os FATOS DA EMBRIOLOGIA, tão logo enunciados, vieram
fornecer um dos principais argumentos em defesa da
doutrina transformista. O próprio Darwin já aventara a
hipótese de que se poderia “olhar o embrião como um
retrato mais ou menos esmaecido do progenitor (seja em
estado adulto ou larval) de todos os membros da mesma
classe”.14 E alguns anos depois Haeckel formalizou essa
ideia na sua famosa lei biogenética, também conhecida
como lei da recapitulação. Afirma ela que o embrião, em
seus sucessivos estágios de desenvolvimento, recapitula a
filogenia da sua espécie; ou, em termos mais imagéticos, o
embrião percorre aquela hipotética árvore da vida a que já
fizemos referência. Mas, ainda que a teoria, ao menos por
algum tempo, tenha encontrado boa acolhida entre grande
parte das autoridades biológicas, desde o princípio se
erguem vozes discordantes — e até mesmo alguns notórios
propugnadores da evolução terminaram por rejeitar a lei
biogenética. Por exemplo, em 1909, Sedgwick15 lançou
contra a recapitulação argumentos que a seu ver
desqualificam a teoria. Alguns embriólogos, por sua vez
(inclusive De Beer, o proponente da “evolução
clandestina”), chegaram à conclusão de que a coisa se dá
no sentido inverso: a filogenia é baseada na ontogenia, e
não o contrário. Na verdade, De Beer e Swinton vão mesmo
ao ponto de dizer que, “não obstante já se haver refutado a
teoria da recapitulação, os seus efeitos perduram nos
cantos e recantos da zoologia”.16
Seja como for, terá interesse relembrar pelo menos
alguns dos argumentos já levantados contra a lei
biogenética. Aqui valemo-nos de um estudo de Dewar (ele
próprio aluno, quando jovem, de Sedgwick em
Cambridge). (1) É ponto pacífico que inexiste recapitulação
17

no desenvolvimento embriônico das plantas. “Isso não faz


sentido caso a recapitulação seja uma lei da natureza e se,
como querem os transformistas, as plantas e os animais
descendem de um ancestral comum”. (2) “Na visão
transformista as aves derivam-se de ancestrais dentados;
porém não se acha sinal de dentição no embrião aviário”.
(3) “A cabeça do feto humano vai diminuindo em tamanho
relativo conforme se desenvolve, ao invés de aumentar
cada vez mais, como exige a teoria evolucionista”. (4)
“Embora o crescimento do embrião apresente todos os
supostos estágios ancestrais no desenvolvimento do
aparelho urinário, não apresenta nenhum dos presumidos
estágios na transição, sofrida pelo sistema respiratório, de
brânquias a pulmões”. (5) Segundo um dos pilares da
doutrina evolucionista, o cavalo moderno descende de um
ancestral de cinco dedos, mas a embriologia eqüina não
exibe nenhuma recapitulação de um ancestral pentadáctilo.
A este propósito, Dewar assinala que “isso não impede os
transformistas de asseverar que a presença duma cauda no
embrião humano desde a quinta até a oitava semana de
existência constitui a recapitulação do estágio de algum
ancestral rabudo. Este, supõem eles que é recapitulado; o
estágio pentadáctilo do ancestral equino, aí já não”. E,
quanto à própria cauda embrionária, faz uma interessante
observação:
 
Vem ao caso lembrar que numa fase inicial, i.e., antes
do segundo mês de desenvolvimento, o embrião humano
(e com efeito o de todos os vertebrados) exibe uma
porção do intestino atrás do ânus. Quem afirma ser a
cauda embrionária humana resquício dum ancestral
caudado deve, se pretende obedecer à lógica, afirmar ser
a tripa pós-anal resquício dum ancestral que seguia vida
afora com tão esquisito órgão. Os autores que se
estendem sobre a cauda embrionária humana em geral
calam a respeito da tripa pós-anal.
 
Para rematar este brevíssimo exame do
recapitulacionismo, selecionamos do imenso arsenal
informativo com que Dewar critica a teoria um último
exemplo, relacionado ao presumido “estágio de peixe” no
desenvolvimento dos embriões vertebrados — “etapa
infalivelmente aduzida pelos transformistas” como uma das
provas mais conclusivas a seu favor. “A verdade”, escreve
Dewar, “é que o embrião deve atravessar o dito estágio de
peixe pelo mesmo motivo por que, durante uma construção,
um prédio de quatro andares deve atravessar um estágio de
dois andares”. Ele troca a questão em miúdos numa
elucidativa passagem que vale a pena citar na íntegra:
 
O chamado coração de peixe e os arcos branquiais
têm de formar-se porque a região cefálica do embrião, a
partir de tenríssimo estágio, necessita copioso
fornecimento de sangue, o que requer desde bem cedo a
formação de um primitivo coração ou órgão bombeador e
de um sistema arterial simples. Estes precisam estar
prontos antes de transcorrer o tempo em que se
desenvolve o coração de quatro câmaras necessário ao
animal já mais crescido. Para tal, há de se recorrer a um
de dois expedientes: ou se forma um coração simples
para funcionar em caráter provisório enquanto se vai
desenvolvendo um outro complicado coração de quatro
câmaras, ou se constrói o coração simples de tal maneira
que ele possa transformar-se, sem interromper o trabalho
cardíaco, num coração complexo. Neste caso é adotado o
segundo curso de ação, e por um arranjo engenhosíssimo
o coração simples, enquanto trabalha sem cessar,
converte-se num coração de quatro câmaras. Em alguns
outros órgãos, como o rim, é empregado o primeiro
recurso.
 
OUTRO REPISADO ARGUMENTO em prol da teoria
transformista se baseia nos chamados órgãos rudimentares
ou vestigiais. Essas estruturas, encontradas em espécies
vivas, parecem ser-lhes supérfluas. “Órgãos ou partes nesta
estranha condição,” escreve Darwin, “portando o autêntico
selo da inutilidade, são encontradiças em toda a natureza.
Impossível nomear um animal superior em que não se
observe nenhuma parte em condição rudimentar”.18 Aqui
mais uma vez o transformista enxerga evidência a favor da
sua posição. A bem da verdade, o caso afigura-se
particularmente nítido e convincente. “O que pode ser mais
curioso que a presença de dentes no feto da baleia, a qual
quando crescida não tem um só dente na cabeça; ou de
dentes, que nunca chegam a perfurar as gengivas, no
maxilar superior do bezerro em gestação?”19 A pretendida
ilação, já se vê, é que esses fatos curiosos admitam como
única e exclusiva explicação a hipótese transformista. Mas
aqui de novo o caso se provou bem mais complexo do que
havia imaginado Darwin, e com um conhecimento científico
mais apurado o quadro veio a mudar. Como apontou
Vialleton:
 
Merecem esses supostos órgãos vestigiais especial
atenção, porquanto cumprem uma função que escapou a
Darwin. Ao denominar de órgãos vestigiais os germes
dentais no feto da baleia desprovida de dentição quando
adulta e os germes dos incisivos superiores em certos
ruminantes cujas gengivas nunca perfuram, esqueceu-se
ele que tais estruturas nos mamíferos, onde são muito
grandes relativamente aos espaços em que se instalam,
desempenham papel fundamental para a formação dos
ossos maxilares, a que proporcionam um ponto de apoio
sobre o qual esses ossos se moldam. Logo, os germes em
apreço têm utilidade.20
 
E, a título de corroboração, o eminente anatomista
francês passa daí a assinalar: “A configuração — formato,
disposição, quantidade — dos dentes fetais nas baleias
polares, um tanto diferente da observada em outros
cetáceos, mostra que, longe de serem mero resquício de
algum ancestral extinto, esses dentes têm uma
individualidade e uma causalidade peculiares, visto que se
multiplicam e se adaptam ao comprimento do maxilar”.
Mesmo assim, vale acrescentar, o mito dos dentes inúteis
da baleia polar sobrevive, citado até hoje por autoridades da
biologia evolutiva como uma espécie de verdade
evangélica.
Falando de um modo geral, a principal dificuldade com os
órgãos “inúteis” é que eles podem acabar provando-se
úteis. Como no caso dos dentes fetais, o presumido vestígio
bem pode ter uma utilidade oculta, porventura somente em
algum determinado estágio do desenvolvimento
embrionário, ou talvez seja de alguma forma necessário a
esse desenvolvimento. Não existe tal coisa como “autêntico
selo da inutilidade”. Houve tempo, por exemplo, e não tão
distante, em que praticamente se desconhecia a função do
sistema endócrino, e órgãos como as glândulas pituitária e
pineal eram impunemente expostos na vitrine dos
vestigiais. Mas com o avanço do conhecimento científico a
longa lista de candidatos à exibição foi encolhendo até se
reduzir, hoje, a minguados itens. Já foram descreditadas, ou
no mínimo andam sob séria suspeita, peças tradicionais
desse mostruário, como os ossos estiloides do cavalo, os
dedos laterais dos artiodátilos, os olhos dos animais
cavernícolas e as asas dos insetos cegos.21 Mesmo o
apêndice vermiforme virou objeto de controvérsia: segundo
admite uma autoridade, “em vista do seu rico suprimento
sanguíneo, com certeza quase absoluta se trata de
estrutura especializada, e não degenerada”.22
Também é interessante notar como, enquanto tanto se
alardeiam os chamados órgãos vestigiais, raramente se
chama a atenção para o assunto dos órgãos nascentes.
Contudo, conforme bem lembrou Dewar, a teoria da
evolução exige órgãos, não vestigiais, senão nascentes:
estruturas rudimentares, isto é, que, embora ainda sem uso,
se tornarão úteis em seu estado desenvolvido. Mas, até
onde se tem notícia, jamais foi identificado um só órgão do
tipo, quer nos registros fósseis, quer nas espécies vivas.
“Pelo que me consta,” escreve Dewar, “nenhum fóssil exibe
qualquer órgão nascente: as mais primevas barbatanas
conhecidas já aparecem plenamente desenvolvidas, e assim
também as mais primevas pernas e asas, seja de insetos,
pássaros, morcegos ou pterossauros”. E, com relação às
espécies vivas, ele observa que, “se de fato estivessem
evoluindo, a maioria havia de exibir estruturas nascentes
em várias fases de formação, desde excrescências
irreconhecíveis até estruturas quase prontas para uso. Ao
que parece, não existe uma sequer!”23
JÁ SE DEFENDEU que o grau de afinidade genealógica entre
membros de espécies diferentes se reflete nas afinidades
sanguíneas. Pois bem, é bastante fácil estabelecer relações
entre vários tipos de sangue. Para dar um exemplo, se uma
pequena dose de sangue de um animal for injetada em
outro, em geral decorrerá daí uma reação, resultando na
formação de um antissoro. E, ao ser misturado com outro
sangue, este antissoro causa a precipitação de proteínas
sanguíneas — precipitação que pode ser mensurada
(digamos, numa escala percentual). Assim, caso se comece
pelo animal X, o soro anti-X causará tal precipitação em
alguma determinada medida, a qual se pode tomar como
medida do grau de afinidade sanguínea com o tipo
sanguíneo X. O soro anti-humano, por exemplo, causa
precipitação de 100% no homem, 64% nos gorilas, 42% nos
orangotangos, 29% nos babuínos, 10% nos bois, 7% nos
cervos, 2% nos cavalos e 0% nos cangurus. A questão ainda
por resolver, está claro, é se tais porcentagens têm
qualquer coisa a ver com relações genealógicas. No entanto
os expoentes da evolução se sentem terrivelmente tentados
a concluir desses dados que, dentre as dadas espécies, o
nosso parente mais próximo deve ser o gorila, seguido do
orangotango, do babuíno, do boi e assim por diante. Na
verdade, este entendimento já foi, por algum tempo, a
interpretação oficial dos dados relativos à precipitação
sanguínea. Como explicou um dos pioneiros da área em
1909: “Aí temos a prova não só de existir um literal vínculo
de sangue entre o homem e o macaco, mas também de ser
possível determinar, sem a menor chance de erro, o nosso
grau de parentesco com os principais grupos de símios”.24
Exposições mais recentes, em contraste, tendem a ser
bem menos dogmáticas neste ponto. O artigo da
enciclopédia Britannica, por exemplo, de onde foram tirados
os dados acima, afirma somente que esses números
correspondem a “measures of Chemical resemblance and
affinity”. Mas qual tipo de afinidade: química ou
genealógica? O autor não diz. E porém, visto que os
resultados em questão vão sob o título “Evidências da
evolução”, a implicação é óbvia. No mínimo, o material
apresentado serve de isca.
Terá interesse notar que o entusiasmo de primeira hora
por esse tema surgiu com os amplos dados sobre
precipitação sanguínea publicados por Nuttall em 1904,
envolvendo cerca de 16 mil experimentos. A um olhar
retrospectivo parece que, na empolgação com a descoberta
das afinidades sanguíneas entre o homem e os bugios, os
cientistas passaram por cima de outros aspectos dos
resultados. Há pessoas, por exemplo, mais estreitamente
ligadas a certos macacos do que a seus semelhantes
humanos, e há outras “que têm parentesco tão próximo
com roedores, carnívoros e ungulados do que com os de sua
própria espécie”.25 De acordo com algumas pesquisas, um
dos nossos consanguíneos mais próximos é a baleia!... Não
é de surpreender que muitos tratados contemporâneos
tenham abandonado silenciosamente a interpretação
genealógica dos experimentos com precipitação sanguínea.
NÃO DEVE FICAR DE FORA deste apanhado uma outra
tradicional fonte de evidência: os experimentos reprodutivos
e genéticos, que lançam luz sobre o grau de variabilidade
das formas vivas. O próprio Darwin ficara grandemente
impressionado ao constatar que novas variedades de dada
espécie podem produzir-se por meio de reprodução seletiva,
e num sentido esta observação forma o ponto de partida da
sua teoria. Por outras palavras, a reprodução seletiva era
para Darwin o modelo perfeito do processo evolutivo. O que
a reprodução faz em miniatura, a natureza realiza em
grande escala mediante o mecanismo da seleção natural:
essa é a linha mestra da sua concepção. Assim, A origem
das espécies abre com um capítulo intitulado “Variação no
estado doméstico”, e todo o argumento a seguir gira em
torno do conceito de variabilidade, que esse corpo de
observações pretende exemplificar. Agora, ao avaliarmos
essas ideias, devemos ter presente — tanto por justiça a
Darwin como em abono da verdade — que em 1859 a
biologia moderna ainda dava os primeiros passos. Na
ausência de qualquer informação sobre genes, mutações, a
herança mendeliana, o sistema endócrino e outros fatores
cruciais para a variabilidade das formas vivas, encontrava-
se em posição precária aquele que se aventurasse em
vastas explorações a partir dos fatos observáveis.
Examinando a questão à luz do conhecimento atual,
consideremos agora quais são os fatos e para que
conclusões eles apontam.
Decerto deve-se admitir, antes de mais nada, que a
reprodução doméstica não ultrapassa os limites da espécie.
Após milhares de gerações de procriação, um cão ainda é
um cão, e, malgrado consideráveis variações em tamanho,
proporções, coloração, etc., cada variedade exibe o cunho
característico da forma básica. Além disso, é sabido que,
conforme o avançar das gerações, a produção de novas
variedades vai-se dificultando cada vez mais: o potencial
para novas formas, ao que parece, não é ilimitado. E o
quadro mantém-se substancialmente o mesmo quando
passamos aos experimentos reprodutivos, tais como os
famosos estudos envolvendo a mosca-da-fruta (Drosophila
melanogaster). Embora esses experimentos — feitos com
milhões de espécimes e milhares de gerações — tenham
produzido monstrengos em abundância, ao que tudo indica
não se formou nenhuma nova espécie. E este fato não foi
alterado nem mesmo pela aplicação de raios X, que
aumenta a taxa mutacional por volta de 15 mil vezes.
Também com outras espécies se obteve o mesmo resultado.
A despeito dos tremendos esforços empreendidos durante a
maior parte do século, ninguém parece ter conseguido
efetuar a inequívoca transformação de uma espécie natural.
Dito em termos positivos, aí temos uma evidência gritante a
favor da estabilidade das formas vivas. Como Caullery já
notava cinquenta anos atrás, ao anunciar la stabilité
expérimentalement constatée des organismes actuels:
 
Ao contrário do que se poderia imaginar há meio
século, a pesquisa recente corrobora a ideia da
estabilidade das formas animais e vegetais, relegando as
variações delas quer a fenômenos tão-somente
individuais sem retenção na linhagem hereditária, quer a
pequenas diversificações praticamente restritas à
espécie.26
 
No âmbito teorético, a descoberta dos genes e do
mecanismo mendeliano de hereditariedade aplicou um duro
golpe ao conceito darwiniano de variabilidade ilimitada.
Depois veio a descoberta das mutações, alimentando a
esperança de que estes “saltos quânticos” provassem
fornecer a flexibilidade necessária. Mas, no fim das contas,
também as mutações acabaram desapontando o
evolucionista. Em primeiro lugar, logo se tornou consabido
serem elas prejudiciais. Nas palavras de um laureado do
Nobel: “As mutações são maléficas na grande maioria. Para
dizer melhor, as benéficas são tão raras que podemos
considerá-las todas maléficas”.27 Assim, desde logo parece
dúbia a expectativa de que o mais importante mecanismo
do progresso evolutivo consista num processo que
invariavelmente vai no sentido errado. Mas provou-se
decepcionante para o evolucionista não só o sentido, como
ainda a magnitude das variações mutacionais. “Hoje se
sabe,” escreve Bounoure, “pelos estudos dos geneticistas,
que a mutação afeta somente detalhes relativamente
menores, e jamais transpõe as fronteiras da espécie”.28
Surge a questão de se o quadro veio a mudar
substancialmente após 1973, com a descoberta da técnica
do ADN recombinante. Neste campo, por certo, vêm-se
propondo teses extravagantes aos montes e, como costuma
acontecer quando se trata da evolução, a linha divisória
entre fato e fantasia tem-se esvaído. Daí é que volta e meia
nos contam já ter sido posto a nu o chamado mecanismo
genético do processo evolutivo, encontrando-se a ciência
atualmente na posição de compreender a fundo e por miúdo
o funcionamento da evolução — como se nós, para início de
conversa, tivéssemos conhecimento de que algum dia
chegou a ocorrer isto de transformações macroevolutivas! Já
outros evolucionistas se pronunciam com mais modéstia,
afirmando, por exemplo, que “a genética molecular decerto
dá uma defesa do darwinismo bem melhor que a oferecida
pela paleontologia”,29 afirmação que de fato diz muito
pouco. Mas mesmo este pouco parece ser prematuro;
porque, como declarou Edward Wilson, o evolucionista de
Harvard, em recente encontro da American Academy of Arts
and Sciences (sob o tema “Darwinismo: a crescente síntese
com a genética molecular”): “Dentro de poucos anos vamos
começar a ter algumas respostas a questões evolucionárias
no nível molecular”. Pode ser; mas neste meio-tempo há de
admitir-se, como Wilson admite a seguir, que no pé em que
estão as coisas “a genética molecular não tem muito para
dizer sobre a especiação, a macroevolução e as taxas
evolutivas”. Entre os especialistas parece difundir-se a
expectativa de que no futuro ela venha a ter. “Ao frigir dos
ovos”, conjectura Rudolf Raff, “os mecanismos evolutivos
provavelmente se explicarão em termos de estrutura e
rearranjos gênicos, mas ainda há muito chão para
percorrer”. Ao que poderíamos acrescentar que antes de se
poder explicar a evolução se deve primeiro estabelecer a
existência dela — e aí também “ainda há muito chão para
percorrer”. Nesse ínterim, goste-se ou não, uma inviolável
constância das espécies permanece como o fato
experimental prevalecente.
JÁ DISSEMOS BASTANTE para mostrar como a doutrina da
evolução não é de modo algum a teoria científica bem
fundamentada que tanto pintam. É verdade que uma boa
soma de fatos já foi trazida à baila em defesa dela; porém
desde o princípio não poucos cientistas e pensadores —
inclusive alguns dos mais destacados expoentes da
evolução — reconhecem a fraqueza do argumento empírico.
Assim é que o próprio Darwin, para começar, tivesse toda a
circunspecção em expor a sua tese. “Darwin jamais afirmou
apresentar prova da evolução ou da origem das espécies”,
admite o artigo da Britannica; “afirmava, sim, que caso haja
ocorrido a evolução se explicaria uma série de fatos caso
contrário inexplicáveis”. E Haeckel, o teórico evolucionista
alemão e renomado popularizador do darwinismo na
Europa, chegou mesmo a escrever (em carta para um amigo
cientista): “Não se pode imaginar nada mais absurdo, nada
mais revelador de total incompreensão da nossa teoria, que
exigir dela um fundamento em evidência experimental”. É
questionável se os empiristas britânicos podiam concordar
com o colega do continente nesse particular; do que não há
dúvida é que de ambos os lados a teoria foi proposta
fundamentalmente em base apriorística e que, sejam quais
tenham sido os principais fatores a motivar e impulsionar o
movimento evolucionista, o empurrãozinho decisivo para o
triunfo lhe foi dado não por qualquer evidência palmar, e
sim por considerações racionais e ideológicas de variadas
ordens. Dampier, por exemplo, evolucionista convicto ele
próprio, admitiu isso ao escrever:
 
Haeckel e outros biólogos materialistas, e seguindo-
lhes a esteira filósofos e teóricos políticos alemães,
uniram-se para criar esse darwinismo que fez adeptos
mais darwinistas que Darwin. [...] Os homens aceitavam
a seleção natural como causa provada e suficiente da
evolução e da origem das espécies. Passou o darwinismo
de uma cautelosa teorização científica a uma filosofia —
quase a uma religião.30
 
Deixando de lado certas implicações interessantes
contidas nessas observações, está claro, em todo caso, que
a teoria da evolução chegou na hora certa, e que as
condições favoráveis à sua recepção haviam sido
preparadas com antecedência por algumas das principais
correntes do pensamento europeu. Como nota Hossein
Nasr, outro historiador da ciência:
 
É mesmo raríssimo uma teoria vinculada a uma
ciência particular obter tão ampla aceitação, talvez
porque o próprio evolucionismo, ao invés de ser uma
teoria científica que veio a popularizar-se, começou como
uma tendência geral para depois adentrar o domínio da
biologia. Não por outro motivo teve pronta aceitação
mais como dogma do que como hipótese científica útil.31
 
Por certo, o caráter dogmático ou apriorístico da doutrina
ainda não é reconhecido pelo vulgo, e até mesmo nos
círculos científicos continua generalizada a crença de que a
evolução já foi empiricamente verificada além de qualquer
dúvida razoável. E no entanto, por incrível que pareça, não
raro se admite o contrário. Assim fez, por exemplo, um
biólogo francês de prol (depois de informar que “jamais
presenciamos, por mais ínfimo que seja, um só autêntico
fenômeno evolutivo”):
 
Estou firmemente convicto — pois não vejo meio de
pensar diferente — de que os mamíferos vêm dos
lagartos e os lagartos dos peixes; só que, quando eu faço
tal declaração, tento não fechar os olhos à indigesta
enormidade dela, e sou mais por deixar indefinida a
origem dessas metamorfoses escandalosas do que por
adicionar à improbabilidade delas a de uma interpretação
estapafúrdia.32
 
O que o cientista nos diz aí, por outras palavras, é que,
mesmo com a “indigesta enormidade” da afirmação
transformista e o fato de que “jamais presenciamos, por
mais ínfimo que seja, um só autêntico fenômeno evolutivo”,
ele aceita a doutrina em base apriorística (“pois não vejo
meio de pensar diferente”).
A posição semioficial, em contrapartida, omite toda
referência a uma indigesta enormidade, e sustenta apenas
que a doutrina teve êxito em explicar de maneira
plenamente satisfatória uma série de fenômenos “caso
contrário inexplicáveis”. Mas, para além da intrínseca
dificuldade de determinar ao certo quando um dado
fenômeno é “caso contrário inexplicável” — assunto em que
já tocamos —, essa asserção fraqueja ainda em outro ponto.
E que, muito longe de conseguir explicar com desembaraço
uma multidão de fatos à luz da sua teoria, o evolucionista
na realidade é forçado a estipular incontáveis hipóteses ad
hoc para protegê-la contra fatos adversos a ela, dos quais já
conhecemos alguns exemplos: a falta de fósseis pré-
cambrianos e a geral escassez de elos evolutivos; as
incongruências da recapitulação; a ausência de órgãos
nascentes; os dados sobre precipitação sanguínea
“infestados de absurdidades” (Dewar); e, para fechar o rol
de constrangimentos, la stabilité expérimentalement
constatée des organismes actuels. Cada um destes itens o
evolucionista tem conseguido rebater com alguma hipótese
especial, ou antes, as mais das vezes, com uma boa coleção
de tais teses. Confrontado com a observada estabilidade
das formas vivas, por exemplo, ele pode dizer que o período
de tempo ou o número de gerações é muito pequeno para
permitir a manifestação de transformações evolutivas, ou
que a dada espécie chegou a um estágio em que tais
transformações já não podem mais ocorrer. E, conquanto
haja parca evidência em apoio dessas estipulações e
nenhum consenso entre os especialistas sobre quais seriam
corretas, ele não obstante acredita que, seja como for, tem
de existir para a sua teoria alguma legítima explicação a
salvaguardá-la. E aí mais uma vez se patenteia a natureza
apriorística da doutrina. De modo que o evolucionista não
enxerga na interminável multiplicação de hipóteses ad boc
nenhum motivo para suspeita, simplesmente porque o seu
princípio fundamental não está jamais sujeito a
questionamentos: aceita-se a evolução como fato
consumado, e não perceber isso é revelar “uma total
incompreensão da nossa teoria”, como há muito disse
Haeckel.
Pela natureza do caso, a doutrina da evolução é
impossível de estabelecer em base empírica; e, no reverso
da medalha, é em certo sentido “indesmentível”, como já
assinalaram alguns contemporâneos filósofos da ciência. Eis
aí a sua força e a sua fraqueza: “Sua força como dogma e
sua fraqueza como verdade científica”, declara Bounoure.
NÃO TERÁ SIDO POR ACASO que o darwinismo se
consolidou à altura em que a Weltanscbauung newtoniana
atingira o zênite da sua influência. Entre as duas doutrinas
há uma ligação evidente, na medida em que sob as
premissas newtonianas o darwinismo se torna, duma ou
doutra forma, praticamente inescapável. Num universo
correspondente à ideia de um sistema mecânico fechado, as
possibilidades se reduzem enormemente. Além disso, caso
se suponha — como desde o início se supôs — que a própria
Terra veio à existência em algum tempo longínquo,33 não
sobra outra maneira de explicar a gênese da vida e a
origem das espécies senão em termos transformistas. Sob
tais auspícios, de fato, não é possível ver nenhum “meio de
pensar diferente”.
No que concerne ao clima geral da crença científica, a
situação parece não ter mudado significativamente desde o
inicial triunfo do darwinismo. Em contraposição, cumpre
notar que, com a derrocada do atomismo estrito e do
associado determinismo laplaciano, a noção de um
clockwork universe perdeu o seu aval científico. Hoje se
sabe que até mesmo o mecanismo de um relógio
propriamente dito se baseia tão-somente em leis
estatísticas. Assim, o mundo real revelou-se muito menos
restringido às nossas concepções físicas do que se
imaginava, um fato que se verifica sobretudo “no pequeno”.
Em um sentido bem real, parece que a natureza é
imensamente mais misteriosa nas suas operações do que o
século XIX tinha sido levado a supor. Os próprios avanços da
física vieram descortinar imprevistas limitações na
pretensão de explicar os fenômenos naturais em termos de
qualquer mecanismo físico concebível. Hoje temos mesmo
fortíssimo motivo para suspeitar que as “leis ordinárias da
física” não se aplicam às formas altamente estruturadas de
matéria encontradas no núcleo de uma célula viva.34
Referimo-nos em especial àquelas moléculas gigantescas,
situadas dentro dos cromossomos, que controlam toda a
estrutura e funcionamento do organismo — os genes. Ora,
na perspectiva da física, essas substâncias distinguem-se
das formas inanimadas de matéria principalmente pela sua
aperiodicidade. Lembram, assim, uma pintura requintada
onde cada pincelada desempenha um papel especial, em
contraste com a matéria inorgânica, que se poderia
comparar a um grande papel de parede onde um padrão
simples se repete em série. Pois bem, sendo inerentemente
estatísticas as leis ordinárias da física — aquelas que
normalmente testamos e usamos —, sua aplicabilidade, no
caso dos sólidos, depende da periodicidade. Por analogia,
elas aplicam-se ao papel de parede, em oposição à pintura.
Logo, “tendo em vista tudo o que aprendemos sobre a
estrutura da matéria viva,” escreve Schrödinger, “devemos
estar preparados para identificar-lhe um funcionamento
impossível de reduzir às leis ordinárias da física”.35
Isso não significa que dentro da biosfera não vigore
nenhuma lei, ou nenhuma lei física. Onde quer que haja
vida há ordem — e, na verdade, um grau de ordem
imensamente superior ao de qualquer coisa encontrada no
âmbito inorgânico. De fato, o problema fundamental com
que todo organismo vivo tem de lidar é conservar essa
ordem tremenda em face da desordem ambiente; e pode-se
acrescentar que todos os mecanismos vitais parecem ter-se
instituído somente para a execução dessa tarefa. Além
disso, a ordem dos organismos distingue-se não apenas em
grau — conforme mensurada em termos de “entropia
negativa” —, mas ainda em tipo: é o que Schrödinger
chama “ordem a partir da ordem”, em oposição à “ordem a
partir da desordem”. E, sem dúvida, esta diferença leva às
consequências mais amplas. Quando temos diante dos
olhos a misteriosa coisa chamada vida, mesmo nas suas
manifestações mais simples, apresenta-se-nos um quadro
inteiramente novo.
Uma característica especialmente notável dos
organismos vivos é o que se pode denominar a primazia do
todo. Ora bem, o todo exibe uma multiplicidade de partes, e
a mente analítica tem propensão para reduzir o todo às suas
partes, ou, dito de outro modo, para concebê-lo como mero
aglomerado ou soma dos seus constituintes. Este ponto de
vista, note-se, é próprio do atomismo, e ainda da física
clássica em geral.36 Mas, com o advento da teoria quântica,
o quadro começou a mudar. “A moderna física nos ensinou”,
escreveu Planck em 1929, “que não se pode descobrir a
natureza de sistema algum dividindo-o em suas partes
componentes e estudando cada uma delas por si, visto que
tal método amiúde implica a perda de propriedades
importantes do sistema”.37 E, quando passamos das
estruturas inorgânicas às orgânicas, esse princípio assume
uma posição de importância máxima. Assim, ao entrarmos
no domínio biológico, chegamos com efeito à antítese da
hipótese mecanicista: aqui já não é o todo que se deriva das
partes, mas sim as partes que derivam sua existência (como
partes) do todo.
O organismo, está visto, é divisível numa miríade de
componentes; mas mesmo assim é claramente um só
organismo, a exemplificar uma só forma básica. Nós
sabemos ademais que essa forma básica vai inscrita, em
código genético, dentro do núcleo de cada célula, e que a
partir destes centros ela controla todos os aspectos da vida.
Pode-se dizer que a forma ela mesma constitui o centro em
torno do qual tudo gira e de onde se outorga a cada
estrutura orgânica a sua função própria.
Agora, o grande problema é explicar a origem dessa
forma ou, se se preferir, dessa ordem estupenda. A resposta
darwinista, em essência, é que a ordem emana da
desordem e que a ordem maior se deriva da menor.
Deitando à margem a desconcertante questão de como
poderiam formas orgânicas brotar de substâncias
inorgânicas — a pintura brotar do papel de parede —, o
darwinismo sustenta que a transformação das espécies se
efetua basicamente pelo processo de reprodução. Procura,
portanto, atribuir a origem de novas formas orgânicas ao
mecanismo biológico cuja função natural é justo o inverso:
isto é, preservar a forma orgânica da qual o próprio
mecanismo em questão deriva toda a sua força e eficácia.
De nossa parte, acharíamos difícil conceber uma teoria em
mais frontal desacordo com o que a física e a biologia
modernas têm a ensinar.
O MISTÉRIO DO ORGANISMO VIVO reside na sua forma.
Dela provém cada parte sua, todos os seus processos, a sua
inteira estrutura tetradimensional. Mas o que é essa forma,
esse princípio ordenador do qual as criaturas derivam a
vida? Para responder à pergunta em clave cristã, só
precisamos relembrar os rudimentos da doutrina metafísica:
a momentosa afirmação de que a criação é uma teofania e
que “toda criatura é pela própria natureza uma espécie de
efígie da Sabedoria eterna”, como declarou São Boaventura.
Daí decorre ser aquilo a que chamamos forma básica nada
menos que a manifestação de um arquétipo eterno
subsistente no Logos ou Sabedoria de Deus. No fim das
contas, o que transluz na forma como o princípio da ordem
ou a fonte da vida é o Logos ele mesmo.
Porém, tendo-se concedido que a forma exemplifica um
arquétipo, permanece a questão de como afinal foram
trazidas à existência as diversas espécies de animais e
plantas espalhadas pelo globo. Foram as espécies criadas
por Deus em dois ou três “dias de vinte e quatro horas”,
como acreditam alguns fundamentalistas? Ou a doutrina
cristã admite outras interpretações, mais palatáveis à
mente científica? Será possível, em particular, reconciliar a
posição cristã com a hipótese transformista?
Para responder a essas perguntas, importa compreender
em primeiro lugar que não se há de conceber o ato da
criação em termos temporais. Não devemos pensar que
Deus criou o universo em algum tempo passado, seja há
seis mil ou há vinte bilhões de anos. A questão é que o
tempo se aplica à criação, e não a Deus. Assim também
Deus age, não no tempo, mas “no princípio” (Gn 1, 1),
termo que significa “o instantâneo e imperceptível momento
da criação”, como explica São Basílio.38 Este “início
indivisível e imediato”39 não é senão o nunc stans, o sempre
presente “agora” sobre o qual tivemos tanto para dizer no
capítulo m. Como observa Mestre Eckhart, “Deus faz o
mundo e todas as coisas no presente agora”.40
Portanto, não existe na realidade nenhum conflito entre a
posição de que as espécies foram criadas em simultâneo —
“todas de uma vez” — e a visão aparentemente
contraditória de que foram trazidas à existência em
sucessão, em certa sequência temporal. No primeiro caso
olhamos a matéria “desde o ponto de vista da eternidade”
— sub specie aeternitatis, como diriam os escolásticos —;
no segundo caso, desde o ponto de vista temporal. A
segunda perspectiva, havemos de admitir, é a que se
conforma à nossa disposição normal. Custa-nos
compreender como é que “tempos idos mil anos atrás são
agora tão presentes e tão próximos a Deus quanto este
exato instante”.41 Mas, afinal, não é de admirar que tais
coisas não nos entrem na cabeça!
O fato em que o cristianismo insiste é que todas as
criaturas sem exceção foram criadas por Deus: “sem Ele
nada se fez” (Jo 1, 3). Mas, ao dizermos que todas as coisas
foram criadas “no princípio”, devemos ter em mente que
este princípio “foi um início sempiterno”:42 “Meu Pai trabalha
até agora”, diz o Cristo (Jo 5, 17).
Isso deixa em aberto a questão de se Deus criou os
progenitores originais de cada espécie por algum modo
especial — de forma direta, por assim dizer — ou se Ele cria
sempre mediante uma concatenação de causas
secundárias. Ora, esta questão pertence ao modus operandi
do ato criativo tal como encarado na perspectiva
cosmológica, um assunto sobre o qual a Escritura parece ter
bem pouco a dizer. O relato de Gênesis, em particular, dá só
a entender muito grosso modo que a manifestação da vida
terrestre se deu num curso progressivo, através de uma
sequência ascendente de formas vivas culminando no
homem.43 Ademais, como se tem apontado com frequência,
não há na Escritura nada que inequivocamente descarte a
hipótese transformista. Não podemos afirmar com certeza
absoluta que a transformação das espécies é impossível ou
que jamais aconteceu. Realmente, se é verdade que Deus
pode fazer destas pedras filhos de Abraão (Mt 3, 9), por que
não poderia Ele fazer de peixes lagartos e de lagartos
mamíferos?
Mas a questão é: afinal, Ele fez? Pois bem, para os
cânones da tradição cristã, a resposta é não. Há mesmo um
consenso entre escritores patrísticas e escolásticos no
sentido de que os progenitores originais de cada espécie
natural não se formaram através da comum cadeia de
causas secundárias — não nasceram “da semente” —, mas
foram trazidos à existência de uma maneira especial, mais
ou menos correspondente ao conceito da criação direta.44
Assim, de acordo com essa doutrina, as criaturas vivas
podem originar-se por dois meios: mediante um modo de
geração primária ou “vertical”, que não inclui semente
como causa intermediária; e mediante um modo de geração
secundária ou “horizontal”, quer dizer, por meio dum
processo natural. Mas, ao mesmo tempo, não devemos
esquecer que o processo natural, tanto quanto a geração
primária, deriva toda a sua eficácia do poder divino.45 Ao fim
e ao cabo, então, a distinção entre os dois modos pertence
ao âmbito das aparências: não afeta a causa última, que é
em ambos os casos a mesma.
O que sobretudo nos inquieta com relação à geração
primária é que nós não a vemos acontecer, nem
conseguimos imaginar como ela se dá. Isso, porém, não
passa da perplexidade em que sempre nos encontramos
perante as realidades que transcendem as fronteiras do
universo. Compreender um fenômeno de modo natural ou
científico exige rastrear suas causas secundárias,
justamente o que não se pode fazer no caso da geração
primária. Pode ser que ele não tenha causa secundária
alguma — como parece ser o caso dos milagres46 —, ou
talvez as suas causas sejam demasiado sutis para cair
dentro do nosso alcance.47 Assim como assim, aí temos
diante de nós um portento: o fenômeno observado destroça
a ilusão de um universo fechado e autossuficiente.
Há origens primeiras, portanto — e, realmente, não pode
deixar de havê-las. Toda cadeia de causas secundárias,
rastreada até o fim, conduz à beira de um mistério: mesmo
a cosmologia física, ao que parece, chegou finalmente a
este reconhecimento. Da mesma maneira, no concernente
às cadeias de descendência biológica, não pode deixar de
haver sempre um “elo perdido”: a única questão é se há
vários deles — um para cada espécie natural — ou se os
ramos da árvore genealógica remontam a um só ancestral
primordial, de forma tal que o mistério da criação pareça
concentrar-se, digamos assim, num único ponto. Como
acabamos de ver, o pensamento cristão tradicional optou
pela primeira dessas alternativas ao postular dois modos
básicos de geração. É interessante notar, em acréscimo,
que as teorias evolucionistas modernas outrossim
convergem para a concepção de um processo bifásico (a
chamada Zweiphasenhypothese), onde fases
microevolutivas se alternam com “explosões criativas” por
meio das quais são trazidas à existência formas
fundamentalmente novas — residindo a principal
divergência entre a doutrina moderna e a tradicional,
obviamente, na interpretação destes acontecimentos
explosivos ou descontínuos. Além disso, é evidente que a
interpretação criacionista se enquadra nos fatos
paleontológicos muito melhor do que a hipótese
transformista, uma vez que escapa ao importunante
problema dos elos perdidos. O criacionista, assim, fica
eximido da necessidade de pressupor coisas tais como “a
automática supressão das origens” proposta por Teilhard de
Chardin, e tampouco requer quaisquer outras hipóteses ad
hoc a fim de contornar dificuldades. De mais a mais, a
doutrina tradicional tem plena aptidão para explicar a
existência das homologias biológicas; pois, nas palavras de
Titus Burckhardt, “pela sua significação mais profunda, o
mútuo reflexo dos tipos é expressão da continuidade
metafísica da existência, ou da unidade do Ser”.48
Cabe acrescentar ainda que este lume tradicional pode
provar-se elucidativo mesmo dum ponto de vista científico.
Tomando-se como exemplo a embriologia dos vertebrados,
os fenômenos que os evolucionistas têm procurado explicar
pela hipótese da recapitulação podem agora ser observados
a uma luz diferente. Porque, caso o homem ocupe uma
posição central no reino animal — o que pode ser
compreendido em uma perspectiva metafísica —, então não
surpreenderá que essa centralidade se manifeste até
mesmo no plano ontogênico. Isso significaria que,
ontogenicamente, se pode ver o homem como o tronco
central de uma árvore cujos ramos representam estágios na
ontogenia das outras formas vivas. Assim, num sentido
profundo e distintamente não-darwiniano, existe a real
possibilidade de que as mais primitivas formas de vida
descendam, afinal, do homem. Será talvez este o grande
fato do qual o quadro evolucionista não é senão uma
imagem invertida.
Vale assinalar, aliás, que já se propôs uma teoria
científica consonante com esta posição. Foi propalada por
Edgar Dacqué,49 notável paleontólogo alemão, que se
persuadiu de que o homem representa a forma primordial
(Urform) da qual emanam os principais tipos do reino
animal. E, como seria de esperar, a teoria de Dacqué veio a
ser severamente criticada nos círculos profissionais, muito
embora nada tenha de irracional nem de anticientífico.
Como observa Carl Jung, o problema está em outra parte:
 
Do ponto de vista epistemológico, é tão admissível
derivar os animais da espécie humana quanto o homem
das espécies animais. Mas sabemos quão mal se saiu o
prof. Dacqué na sua carreira acadêmica à conta do seu
pecado contra o Zeitgeist, que não deixa ninguém fazer
pouco dele. É uma religião, ou — mais ainda — um credo,
sem nenhuma ligação que seja com a razão, mas cuja
relevância está no desagradável fato de tonar-se como a
medida absoluta de toda verdade e pretender ter sempre
do seu lado o bom senso.50
 
EM SUMA, existem, sim, “meios de pensar diferente”; só
que viraram cartas fora do baralho. Ademais, existe uma
doutrina cristã tradicional concernente à origem das formas
vivas que se coaduna tanto com a razão como com os fatos;
o único porém é que não se coaduna com o pensar
moderno, “o Zeitgeist, que não deixa ninguém fazer pouco
dele”.
 
Notas
 
CAPÍTULO IV - EVOLUÇÃO: FATO E FANTASIA
 
1. Déterminisme et finalité. Paris: Flammarion, 1951, p. 66.
2. The Origiti of Species. Chicago: Britannica, 1952, p. 152.
3. Ibid., p. 179.
4. Ibid., pp. 163-4.
5. The Transformist Illusion. Hillsdale, NY: Sophia Perennis, 2005, cap. 4.
6. Les transformations du monde animal. Paris: Flammarion, 1907.
7. The Major Features of Evolution. Nova York: Columbia University, p. 360.
8. Ver The Transformist Illusion, cap. 2.
9. Ibid, cap. 9.
10. É digna de nota a extraordinária teoria exposta por Teilhard de Chardin no
Congresso de Filosofia da Ciência, realizado em Paris no ano de 1949. A doutrina
(“cuja embasbacante engenhosidade não se pode deixar de admirar”, como
observa Bounoure) resolve o problema com espantosa incisividade ao postular
“a automática supressão das origens”. Segundo De Chardin, o nascimento de
um filo efetua-se em curto espaço de tempo mediante pequena quantidade de
indivíduos, todos de estatura modesta e compleição frágil, que desaparecem
sem deixar rastro, circunstância que explicaria o surgimento aparentemente
súbito do novo filo. “Sem dúvida,” comenta Bounoure, “é preciso estar tocado
da graça evolucionista para achar convincente tal raciocínio”.
11. Déterminisme et finalité, p. 57.
12. Ibid., p. 64.
13. Depois de mencionar que a teoria da evolução originalmente se baseara em
evidência indireta, o artigo (“Evolução”, The New Encyclopedia Britannica, 1981)
prossegue notando que: “Recentemente, todavia, se encontrou evidência direta
da evolução”. Só que a gente fica sem saber qual seria a tal evidência direta e
onde achá-la. A referência mais próxima que o artigo chega a fazer-lhe ocorre na
seção 8, iniciada pela seguinte observação: “Seria preciso uma alegação bem
especial para sustentar que a paleontologia não represente evidência objetiva
da evolução, mas agora também já se descobriu evidência mais direta, a
começar pela citogenética”. Além disso, dá-se o assunto por encerrado em uma
frase a respeito do código genético de três espécies de drosófila, sem oferecer-
se uma referência cruzada que seja. Será essa aquela “evidência direta” a que o
autor aludiu antes? Em todo caso, é obviamente uma evidência tão indireta
quanto qualquer outra. Cifra-se na simples observação de que a disposição dos
genes em três tipos de mosca-da-fruta talvez possa ser explicada pela suposição
de o terceiro descender do segundo e o segundo do primeiro.
14. The Origin of Species, p. 225.
15. Não confundir o zoólogo Adam Sedgwick (1854-1913), aí referido, com o
geólogo homônimo (1785-1873), seu tio-avô que chegou a ser professor de
Darwin. — NT
16. G.R. de Beer St W.E. Swinton, T.S. Westoll (org.), Studies on Fóssil
Vertebrates. Londres: Athlone Press, 1958, p. 3. Um desses “cantos e recantos”,
pelo jeito, é o nosso artigo da enciclopédia Britannica, que se refere à
recapitulação como fato consumado estabelecido por Darwin. (A propósito, não
se confunda o embriólogo Von Baer, a quem o artigo cita em defesa da lei
biogenética, com o embriólogo De Beer, franco opositor dela.)
17. Ver The Transformist Illusion, cap. 15. Vale notar que Dewar está entre os
maiores autores científicos de língua inglesa a oporem-se à teoria darwiniana; e
no entanto a obra citada (ver nota 5 do presente capítulo) era até pouco tempo
dificílima de adquirir. “Com frequência demasiada”, escreve um eminente
historiador da ciência, “têm sido as obras de tais autores deliberadamente
ignoradas ou suprimidas. Caso ilustrativo é o livro de D. Dewar intitulado The
Transformist Illusion, que reúne vastíssimas evidências paleontológicas e
biológicas contra a teoria da evolução. O autor, quando ainda jovem adepto do
evolucionismo, escreveu numerosas monografias que continuam disponíveis nas
bibliotecas de biologia comparativa mundo afora. Mas seu último livro teve de
ser publicado em Murfreesboro, Tennessee (!), e dificilmente se acha até mesmo
nas bibliotecas que abrigam todas as suas obras da juventude. Não haverá
nenhum outro campo da ciência onde prevaleçam tais práticas obscurantistas”
(Hossein Nasr, Man and Nature. Londres: Allen St Unwin, 1976, p. 140).
18. The Origin of Species, p. 225.
19. Ibidem.
20. L. Vialleton, L’origine des êtres vivantes. Paris: Pion, 1929, p. 164.
21. Ver The Transformist Illusion, cap. 12.
22. W.E. Le Gros Clark, Early Forerunners of Man. Baltimore: W. Wood & Co.,
1934, p. 205.
23. The Transformist Illusion, p. 166.
24. C. Schwalbe, “The Descent of Man”. In: A.C. Seward (org.), Darwin and
Modem Science. Cambridge: Cambridge University Press, 1909, p. 129.
25. Ver The Transformist Illusion, cap. 13.
26. M. Caullery, Le problem de l’evolution. Paris: Payot, 1931, p. 401.
27. Muller, Time, 11/11/1946, p. 38.
28. Déterminisme et finalité, p. 71.
29. Apud: Roger Lewin, “Molecules Come to Darwin’s Aid”. In: Science, 216
(1982): 1092.
30. A History of Science. Cambridge: Cambridge University Press, 1928, p. 280.
31. Man and Nature. Londres: Allen & Unwin, 1976, p. 124.
32. Jean Rostand, Le Figaro Littéraire, 20/4/1957. Apud: Titus Burckhardt,
“Cosmology and Modern Science”. In: Jacob Needleman (org.), The Sword of
Gnosis. Baltimore: Penguin, 1974, p. 143.
33. O conceito de evolução cósmica já tinha sido enunciado por Descartes nos
seus Principia pbilosophiae.
34. Pode-se achar uma discussão de fácil leitura a esse respeito em Erwin
Schrödinger, What is Life? Cambridge: Cambridge University Press, 1967.
35. What is Life?, p. 81.
36. No ato mesmo em que um sistema físico é descrito em termos de equações
diferenciais, ele se reduz, para todos os efeitos, à “soma das suas partes
infinitesimais”. Daí que a física clássica toda pressupõe tal redução. No caso da
mecânica quântica, por outro lado, é só a função de onda (e não o sistema em
si) que se sujeita à descrição em termos de uma equação diferencial.
37. The Pkilosophy of Modem Physics. Londres: Norton, 1936, p. 36.
38. Hexamerão, i, 6. Apud: St. Vladimir’s Theological Quarterly. vol. 12, 1968, p.
63.
39. Ibidem.
40. Meister Eckhart, trad. C. de B. Evans. Londres: Watkins, 1924, vol. I, p. 209.
41. Ibidem.
42. A frase é de Jacob Boehme [Mysterium pansophicum, 4, 9],
43. Alguns já defenderam ser o relato bíblico da criação (e outras passagens
escriturísticas relacionadas) passível de uma interpretação concordante com os
achados científicos modernos. Arthur Neuberg, por exemplo, declara que “quase
se poderia expender todo o desenvolvimento natural [Naturentwicklung], tanto
o inorgânico como o orgânico, tanto o físico como o biológico, dentro do
panorama do relato genesíaco” (Das Weltbild der Physik. Gõttingen:
Vandenhoeck & Ruprecht, 1951, p. 161). E Karel Clays, em especial,
recentemente publicou estudo que segue a mesma linha, examinando o
ensinamento bíblico em relação ao registro paleontológico (Die Bibel bestätigt
das Weltbild der Naturwissenschaft. Stein am Rhein: Christiana, 1979).
44. As maiores autoridades são os santos Efrém, Basílio, Gregório de Nissa,
Cristóvão, Ambrósio, Agostinho, Boaventura, Alberto Magno e Tomás de Aquino.
Referências e traduções inglesas de originais podem encontrar-se em E.C.
Messenger, Evolution and Theology. Nova York: Macmillan, 1932.
45. “O poder da geração pertence a Deus”, diz São Tomás (Suma teológica, i,
45, 5); e, mais uma vez, “O poder da alma, que existe no sêmen por meio do
Espírito contido neste, molda o corpo” (ibid., m, 32,1). Isso, ademais, está de
acordo com o direto ensinamento do Cristo (ver especialmente Jo 6, 63 e Mt 23,
9).
46. A despeito da crença científica em contrário, milagres acontecem, e
porventura com mais frequência do que se possa pensar. O fato é que já foi
autenticada, acima de qualquer dúvida razoável, uma imensidade de
ocorrências milagrosas. O processo de canonização da Igreja Católica Romana,
por exemplo, fornece copiosos dados relativos a esta questão. Assim como
outras “anomalias” que acabaram provando-se cientificamente esclarecedoras,
também os milagres têm algo para dizer sobre as operações da natureza.
47. Era essa, na verdade, a opinião de Santo Agostinho e outros, que atribuem a
geração primária à agência de “razões seminais”. Acha-se uma boa discussão
deste assunto um tanto abstruso em Etienne Gilson, The Philosopby of St
Bonaventure. Paterson, NJ: St Anthony Guild Press, 1965, cap. II.
48. “Cosmology and Modern Science”. In: Jacob Needleman (org.), The Sword of
Gnosis. Baltimore: Penguin, 1974, p. 146.
49. Ver Die Urgestalt: Der Schöpfungsmythos neu erzäblt. Leipzig: Insel Verlag,
1943.
50. Modem Man in Search of a Soul. Nova York: Harcourt Brace, 1933, p. 175.
 
CAPÍTULO V - O EGO E A BESTA
 
 
DE DARWIN A FREUD vai um passo relativamente curto.
Dado que a espécie humana é derivada de ancestrais sub-
humanos, segue-se que também a sua mentalidade evoluiu
de um rudimento sub-humano: o racional do irracional, o
autoconsciente do instintual. E, se é esse o caso, nada mais
natural do que supor que a psique bestial ainda existe em
nós, escondida atrás ou abaixo da mentalidade consciente
como vestígio vivo do estágio animal. E assim chegamos ao
id freudiano, o substrato psíquico que Freud julga “o âmago
do nosso ser”.1
É verdade que Freud deu um bom corte no conceito de id
ao separar dele todas as faculdades relacionadas à
percepção do mundo exterior e à resposta aos estímulos
vindos de fora: o id freudiano enquanto tal não fica em
contato com o ambiente externo. Ele só conhece as suas
próprias necessidades somáticas, “tensões” que procura
eliminar mediante oportunas descargas de energia.
“Catexias instintuais em demanda de descarga”, define
Freud. “Isso, a nosso ver, é tudo o que há no id”.2 Parece
que “o âmago do nosso ser” não é especialmente bem-
dotado e que não há muito para dizer a respeito dele. O
próprio Freud deixa isso perfeitamente claro:
 
É ele a parte obscura, inacessível da nossa
personalidade. [...] Chamamo-lo caos — um caldeirão de
excitações fervilhantes. [...] Não tem organização
alguma, e não produz nenhuma vontade coletiva, mas
somente um empenho por proporcionar a satisfação das
necessidades instintuais regidas pelo princípio do prazer.3
 
Considerando que não pode haver vida animal sem
alguma medida de seleção, adaptação e controle, está claro
que mesmo nos animais mais inferiores o id necessita ser
complementado por outra formação psíquica a atuar como
intermediário entre ele e o ambiente externo. De acordo
com Freud, esse segundo componente da nossa constituição
psíquica se deriva do primeiro. “Sob a influência do mundo
exterior real,” conta-nos ele,
 
uma porção do id veio passar por um
desenvolvimento especial. Do que era originalmente uma
camada cortical, provida de órgãos para receber
estímulos e de aparelhagem para proteger-se contra
estimulação excessiva, surgiu uma organização especial
que desde então atua como intermediário entre o ide o
mundo exterior. A esta região de nossa vida mental se dá
o nome de ego.4
 
Para desempenhar sua função intermediadora, o ego
deve, é claro, comunicar-se com o id. Uma vez que não tem
nenhuma energia própria, o ego, para começar, é forçado a
obter a sua potência do id; e, tendo conseguido fazê-lo de
algum modo (não poucas vezes, ao que parece, com o
emprego de artimanhas), deve então largar a conduzir o
organismo em direção ao cumprimento de suas funções
naturais, tarefa que envolve o exercício de certos controles
sobre as propensões instintuais do id. A este respeito pode-
se equiparar o ego a um cavaleiro no comando da sua
montaria. Mas, como Freud assinala, o relacionamento entre
o ego e o id corresponde, na verdade, a uma situação bem
longe da ideal: é que, no caso, o cavaleiro acaba sendo
obrigado a guiar a montaria rumo a um destino que não foi
escolhido por ninguém senão pelo cavalo. “O ego”, sustenta
Freud, “no geral deve levar a efeito as intenções do id”.5 E
de novo: “A potência do id expressa o verdadeiro propósito
da vida do organismo do indivíduo”.6 Numa palavra, o ego é
pouco mais que uma máscara, “uma espécie de fachada”,7
atrás da qual se encontra o id.
ANTES DE PASSARMOS a outras concepções básicas da
doutrina freudiana, talvez convenha parar para refletir um
momento no que foi dito até aqui a respeito do ego e do id.
Em primeiro lugar, observemos que o ensinamento
freudiano — por incrível que pareça — tem algo em comum
com a antropologia cristã. De fato, ambos concordam em
uma grande verdade que costumamos perder de vista e que
é crucial para qualquer entendimento mais profundo do
homem. Pode-se sintetizá-la assim: em seu estado
egocêntrico, o homem esqueceu-se de quem é. Nessa
condição ele não se conhece direito. Identifica-se com o
ego, e ao fazê-lo falha em reconhecer que o ego enquanto
tal não passa de um fenômeno — um efeito ou uma
imagem, talvez, do que somos. E qual é essa verdadeira
natureza, o genuíno “âmago do nosso ser”? E aqui, na
resposta a esta pergunta fundamental, que o cristianismo e
Freud se desconciliam. Para o cristão, o âmago do nosso ser
se localiza na alma, ou na parte mais alta da alma, que é ela
mesma uma imagem — não de qualquer coisa temporal ou
contingente, mas do próprio Deus. Daí Clemente de
Alexandria e tantos outros santos já terem dito: “Se o
homem se conhece a si mesmo, há de conhecer Deus”. Bem
diferente é a resposta de Freud à perene questão “Quem
sou eu?”: para ele, como vimos acima, a busca leva não a
uma ímago Dei, mas a um “caldeirão de excitações
fervilhantes” ou um caos de “catexias instintuais em
demanda de descarga”.
Com isso não se quer dizer que coisas tais como
excitações fervilhantes ou catexias instintuais não existam.
Decerto há de admitir-se, na perspectiva tradicional não
menos do que na freudiana, que a nossa constituição
psíquica é complexa e comporta vários níveis. A diferença
essencial, porém, entre a psicologia tradicional e a
freudiana está em que a primeira concebe uma ordem
hierárquica que abrange não só um “abaixo”, feito de
camadas psíquicas subconscientes, mas também um
“acima”, formado pelo que se poderia denominar os graus
espirituais. No nosso presente estado, é certo, também
esses níveis superiores de consciência nos estão toldados —
tanto quanto o id freudiano. O que nos é inconsciente,
portanto, compõe-se dos elementos mais díspares, indo
desde um extremo até o outro da gradação psíquica. O ego,
então, com a sua estreita e movediça faixa de consciência,
ocupa um entremeio: situa- -se em algum lugar “entre o
Céu e o Inferno”, ou entre o que em nós atende a estas
respectivas designações. Assim, falando simbolicamente, é
possível tanto ascender como descender do plano ocupado
pelo ego. Ascender, frisemos, é aproximar-se ao verdadeiro
âmago do nosso ser: é alcançar um grau mais elevado de
autoconhecimento. Do mesmo modo, foi por via de uma
“descida” — o desviar-se e esquecer-se da natureza
arquetípica — que chegamos ao nível corriqueiro da
existência psíquica — o ego, que costumamos tomar por
nós mesmos. E, para mais, este movimento descendente
não chegou, aí, ao seu ponto final: resta ainda um “abaixo”
em que se pode acabar caindo. Embora tenha sido criado
“judicioso e sábio à imagem de Deus”, como observou
Gregório do Sinai, o homem não obstante dispõe da opção
de fazer-se “bestial, desatinado e quase insano”.
Não poderia haver melhor descrição do id freudiano.
Ademais, a existência de tais “regiões ínferas” não deverá
causar espécie a nenhum homem de discernimento
espiritual. A principal contribuição de Freud, portanto,
consiste em ter elevado este particular elemento da nossa
constituição psíquica ao status de um princípio primeiro: fez
dele “o âmago do nosso ser”. O que nos mapas tradicionais
figura como a extremidade inferior da nossa existência
psíquica — mera sombra daquela luz suprapsíquica que
reside no nosso interior como uma imagem de Deus —
tornou-se aos olhos de Feud a nossa própria alma.
Examinada de perto, a doutrina freudiana revela-se uma
inversão da verdade cristã.
MAS SIGAMOS EM FRENTE. Depois de formular suas
ideias concernentes ao ego e ao id, o próprio Freud se deu
conta de que faltava aí alguma coisa. Afinal, a vida do
homem não diz respeito exclusivamente a necessidades
biológicas e requisitos de sobrevivência. Tem ela ainda um
objetivo mais alto, que encontra expressão sobretudo nas
esferas da arte e da religião, bem como em incontáveis
ações e reações cotidianas. Assim, há de haver em nosso
aparato psíquico algo que corresponda aos aspectos ideais
da cultura humana, uma estrutura que engendre e sustente
os vários modos de idealismo. Pois bem. É óbvio, para
começar, que o id por si mesmo não está à altura da tarefa.
Já o ego, por sua vez, havendo emergido do id sob a
influência de percepções externas, como já notamos, tem a
seu encargo “representar ao id o mundo exterior”,8 função
que se faz necessária à sobrevivência do organismo.
Portanto, pela sua origem e razão de ser, o ego é um
realista: interessam-lhe antes realidades exteriores do que
normas ou ideais. “Para adotar uma maneira popular de
dizer,” observa Freud, “o ego corresponde à razão e ao bom
senso, enquanto o id corresponde à paixão indomada”.9 E,
conquanto seja talvez mais refinado que o
desbragadamente bestial id, não pode o ego ser um
moralista nem um artista, e nem sequer um cidadão
respeitável de uma sociedade civilizada. De maneira que,
para dar conta desses patamares superiores da vida, é
preciso uma nova estrutura psíquica que pelo seu próprio
pendor para o ideal se distinga do ego. Eis o que Freud
denomina superego, assim designado por atuar como
observador e juiz do ego e por prescrever as normas que ele
deve cumprir e o ideal que deve emular — motivo por que
às vezes também é chamado “o ideal do ego”.
Até aí a doutrina parece bastante promissora. Para
compreendermos, porém, aonde Freud quer chegar, temos
de seguir o caminho por onde ele explica a gênese dessa
nova entidade psíquica. E isso nos leva ao célebre complexo
de Édipo: a extraordinária teoria segundo a qual em certo
estágio da infância o filho experimenta o desejo de
assassinar o pai e ter relação sexual com a mãe, ao passo
que a filha, ao contrário, se volta contra a mãe e deseja ter
um filho com o pai. Para complicar ainda mais a história,
todo ser humano, ao ver de Freud, é por natureza bissexual
durante a vida inteira, de sorte que já na sua infância se
manifestam tendências homossexuais. Assim sendo, eis que
a criança é afligida, na verdade, por um complexo de Édipo
“duplo” ou “completo”, constituído de quatro anseios
perversos. No curso “normal” dos acontecimentos — e
depois de muitas ânsias, frustrações e traumas —, o
complexo de Édipo por fim “dissolve-se”, altura em que “as
quatro tendências de que ele se compõe são agrupadas de
forma a produzir uma identificação paterna e uma
identificação materna”.10 Esta metamorfose ocorreria lá
pelos cinco anos de idade e daria origem à terceira
estrutura básica da nossa constituição psíquica:
 
Pode-se considerar o amplo resultado geral da fase
sexual dominada pelo complexo de Édipo, portanto,
como a formação de um precipitado no ego, feito dessas
duas identificações por algum modo unidas entre si. Esta
modificação do ego retém a sua posição especial; ela
confronta os outros conteúdos do ego como um ideal do
ego, ou superego.11
 
O superego, então, representa uma espécie de
internalização da bipolar imagem parental. Sendo o
“herdeiro do complexo de Édipo”, ele é a expressão das
“mais importantes vicissitudes libidinais do id”11 — aqueles
impulsos que, conforme já vimos, se expressam durante a
fase edipiana como as tendências ao incesto e ao parricídio.
Na estrutura do superego, que elas próprias ajudaram a
produzir, estas “vicissitudes libidinais do id” vão achar
canais mais adequados de auto expressão, presume Freud,
que passa daí a explicar: “Ao instituir o seu ideal, o ego
dominou o complexo de Édipo e ao mesmo tempo pôs-se
em sujeição ao id".
Assim, ao cabo desse tortuoso percurso, descobrimos
afinal que o superego, malgrado sua aparência tantas vezes
beata, nada é senão outra projeção do id. Como tudo o mais
na psique humana, ele não passa de uma fachada para a
besta dentro de nós, o “obscuro id" que constitui “o âmago
do nosso ser”.
NATURALMENTE PÕE-SE A QUESTÃO: como é que Freud
conseguiu certificar a verdade dessas pasmosas
conclusões? Como verificar, por exemplo, se o superego — o
veículo de todo pensamento ideal — surge com a dissolução
do complexo de Édipo? Ou, antes disso, como sequer
averiguar se o complexo de Édipo existe de verdade? Freud
tem muitíssimo para dizer sobre as fantasias sexuais das
crianças: mas como é que ele veio a saber essas coisas?
Como descobriu que uma garotinha, ao bater os olhos pela
primeira vez no órgão masculino, é no mesmo ato
acometida por uma “ansiedade de castração”, se sente “em
grande desvantagem” e “cai vítima da inveja fálica, que
deixa marcas indeléveis no seu desenvolvimento psíquico e
na formação do seu caráter”?12 13 É este um fato, um dado
de que se possam tirar conclusões científicas? Ou é
somente uma hipótese, uma conjectura a carecer de
ancoragem em fatos observáveis?
Bem difícil mesmo seria declarar cientificamente
observáveis coisas tais como a ansiedade de castração e a
inveja do falo. A este respeito, o próprio Freud assinala
haver “ocasiões em que se olha uma menina pequena e não
se vê nada parecido”.14 Logo em seguida, porém, garante:
“Pode-se ver muito numa criança — basta saber olhar”. Mas
como? Em que consiste esse olhar diferenciado? Será que
não é antes uma questão de agarrar-se seletivamente a
determinadas facetas do comportamento infantil e
interpretá-las de acordo com certas ideias preconcebidas?
Vem à lembrança a célebre observação de Freud sobre
bebês amamentados: “Ao cair no sono ao seio após ter-se
fartado nele, a criança mostra uma expressão de bem-
aventurada satisfação que se repetirá, mais tarde na vida,
após a experiência do orgasmo sexual”. Contudo, Freud ele
próprio parece não levar muito em conta essas revelações
obtidas a poder do “olhar treinado”. Por isso é que nos pede
para considerar “quão pouco dos seus desejos sexuais a
criança pode trazer ao plano pré-consciente ou sequer
comunicar”, e prossegue notando que, “por conseguinte,
apenas nos valemos de um justo direito quando estudamos
retrospectivamente os resíduos e consequências desse
mundo emocional nos adultos em quem tais processos de
desenvolvimento tenham atingido um grau de expansão
particularmente nítido ou mesmo excessivo”.15 Mas dizer
isso é tomar por pressuposto, primeiro, que as fantasias
infantis em questão existem e, segundo, que elas
continuam a crescer e desenvolver-se pela vida adulta
afora, quando então de fato podem atingir “um grau de
expansão particularmente nítido ou mesmo excessivo”. Ora,
aí está um exemplo lapidar de petição de princípio. Não se
pode deixar de concordar com Andrew Salter quando ele
chama a toda essa linha de pensamento seguida por Freud
“um crescendo incessante de raciocínio falho”.16
Para piorar ainda mais as coisas, sucede que,
epistemologicamente, estamos impossibilitados de chegar a
bom termo mediante o estudo de adultos normais, uma vez
que é especialmente no adulto anormal, no paciente
neurótico, que esses fenômenos obscuros podem mostrar-se
de modo inequívoco. “A patologia”, afirma Freud, “sempre
nos prestou o serviço de tornar perceptíveis, ao isolá-las e
exagerá-las, aquelas condições que permaneceriam ocultas
no estado de normalidade”. Mas isto, é claro, é só mais
outra hipótese, outra pressuposição necessária para escorar
o argumento freudiano. Como no caso dos anseios
homossexuais e incestuosos dos infantes, deve-se supor
que tais “condições” permaneçam ocultas nos indivíduos
normais. Porém, mesmo havendo-se adotado esta hipótese
adicional, as dificuldades estão longe de acabar. Aliás,
acabaram de começar. Pois, ao tentar-se tirar conclusões
científicas da mixórdia testemunhai que se tenha
conseguido extrair de pacientes neuróticos, fica-se mais do
que nunca obrigado a selecionar e interpretar, isto é, a
trabalhar com hipóteses, uma vez que não se acredita ser o
paciente, mesmo sob análise profissional, capaz de recordar
coisas como a presumida fase edipiana do seu
desenvolvimento. “Vocês hão de lembrar”, conta-nos Freud
a este propósito,
 
um interessante episódio da história da pesquisa
analítica que me causou muitas horas de atribulação. Na
época em que meu interesse se voltava sobretudo para a
descoberta de traumas sexuais infantis, quase todas as
minhas pacientes me contavam haver sido seduzidas
pelo pai. Acabei por ter de assentar que esses relatos
não eram verdadeiros [...]. Só mais tarde vim a
reconhecer nessa fantasia de ser seduzida pelo pai a
expressão do típico complexo de Édipo na mulher.17
 
E digno de nota que esses casos de incesto imaginário
tenham surgido a Freud no período em que o seu interesse
“se voltava sobretudo para a descoberta de traumas
sexuais infantis”. Não podemos deixar de nos perguntar até
que ponto essas fantasias perversas não foram de alguma
forma sugeridas no curso da análise, tanto mais se
consideramos questões como a transferência e outros
processos ocultos associados à psicanálise. Mas neste
assunto nos deteremos mais adiante, quando tratarmos do
procedimento psicanalítico enquanto tal. Por ora só
queremos sublinhar o que dissemos antes: que, mesmo
depois de feitas todas as pressuposições que possibilitem
tomar as fantasias dos pacientes neuróticos como legítimo
campo de testes para teorias sobre a sexualidade infantil,
ainda não se deu nem um só passo em direção a uma
fundamentação científica da teoria edipiana. Não é para
menos, então, que essa doutrina tenha sido rejeitada pela
maioria das escolas de psicologia contemporâneas, e que
até mesmo entre os declarados adeptos de Sigmund Freud
haja uma pronunciada tendência para ler na velha fórmula
novos sentidos, de modo que se chegue a alguma coisa
mais aceitável.
A FORÇA DOS ARGUMENTOS DE FREUD desde o princípio
foi posta em causa por cientistas e filósofos, inclusive entre
os muitos simpatizantes da doutrina. Ludwig Wittgenstein,
por exemplo, embora tecesse comentários elogiosos ao
“charme” da teoria freudiana, asseverava faltar a ela status
científico. Na prática, dizia: isso tudo é muito interessante,
mas verifica-se como? E Robert Sears, de Harvard, em
minucioso relatório encomendado pelo Social Science
Research Council, sintetizou esse receio nos seguintes
termos:
 
Os experimentos e apontamentos examinados neste
relatório dão testemunho de que poucos investigadores
sentem segurança em aceitar as declarações de Freud
pelo valor de face. O motivo se encontra no mesmo fator
que torna a psicanálise uma má ciência: seu método. A
psicanálise estriba-se em técnicas que não admitem a
repetição da observação, que não têm nenhuma validade
denotativa ou auto evidente e que se impregnam, a um
grau ainda desconhecido, das sugestões incutidas pelo
observador. Essas dificuldades talvez nem atrapalhem
gravemente a terapia; mas o método, quando
empregado para descobrir fatos psicológicos necessários
para que se tenha alguma validade objetiva,
simplesmente fracassa.18
 
Freud, por sua parte, estava pronto para defender-se
afirmando que “os ensinamentos da psicanálise se baseiam
num número incalculável de observações e experiências, e
somente quem haja repetido essas observações em si
mesmo ou em outrem tem condições para formar juízo
próprio sobre ela”.19 Bem entendido, repetir observações em
si mesmo significa ser psicanalisado, e o recado de Freud aí,
traduzido em linguagem clara, é que só ao psicanalisado e
ao psicanalista cabe julgar a verdade da sua doutrina.
Desnecessário dizer que essa enormíssima alegação não foi
vista com bons olhos pelos críticos da psicanálise e que,
onde antes podia até haver dúvidas quanto à validade
científica das asserções freudianas, agora ficava claro como
a doutrina psicanalítica, seja lá o que mais se possa dizer
contra ou a favor dela, não é uma teoria científica.
No entanto, segundo parece, essa avaliação não se
difundiu para muito além de um restrito público de
estudiosos. Em círculos mais amplos, sobretudo o da
boêmia artística, a sutil distinção entre ciência e ficção
normalmente passava despercebida. “O resultado”, diz um
psicólogo contemporâneo, “foi uma campanha de relações
públicas que milhões de dólares não poderiam ter igualado.
Tão logo a psicanálise virou moda entre os escritores, já lá
estavam os seus leitores mais impressionáveis a roer-se de
impaciência na lotada sala de espera do psicanalista”.20
O próprio Freud sempre fez questão de salientar o
caráter científico das suas ideias. A ciência, de acordo com
ele, constitui a única legítima via para o conhecimento — o
que, aliás, a própria ciência admite. “Ela afirma”, conta-nos
Freud, “que não existe nenhuma outra fonte de
conhecimento do universo senão a perquirição intelectual
de observações meticulosamente deslindadas — quer dizer,
aquilo a que se chama pesquisa —: não há, segundo a
ciência, nenhum conhecimento provindo de revelação,
intuição ou adivinhação”.21 O que ele não nos conta é por
quais passos “a perquirição intelectual de observações
meticulosamente deslindadas” chegou a essa formidável
descoberta; mas, seja como for, aí está um dos dogmas
fundamentais da mundivisão freudiana.
À parte a ciência, de que a psicanálise é o arremate, se
não a apoteose, reconhece Freud três outros domínios da
cultura humana: a arte, a filosofia e a religião, os “três
poderes que podem disputar a posição básica da ciência”, e
dentre os quais “só cumpre levar a sério como inimigo a
religião”.22 A arte “é quase sempre inofensiva e benfazeja;
não procura ser nada mais que uma ilusão”. Já a filosofia, a
despeito de suas ambiciosas pretensões, é pelo menos
inofensiva, na medida em que “não exerce influência direta
sobre a grande massa da humanidade; somente tem
interesse para uns poucos intelectuais de escol, mal sendo
inteligível para a demais gente”. Resta a religião como
“poder imenso” e grave ameaça à iluminação científica da
humanidade.
Isso nos leva a um dos grandes temas freudianos: “A luta
do espírito científico contra a Weltanscbauung religiosa”. Ao
que parece, trata-se de assunto seriíssimo para Freud, e,
como já se poderia esperar, ele vê na psicanálise a
responsável por ter conquistado finalmente a palma da
vitória para o lado da ciência. “A última contribuição à
crítica da Weltanscbauung religiosa”, declara ele, “foi feita
pela psicanálise ao mostrar como a religião advém do
desamparo infantil e ao atribuir a origem dos conteúdos
religiosos à sobrevivência, na idade madura, de desejos e
necessidades da puerícia”.23 Por outras palavras, o conteúdo
de toda crença sagrada, segundo Freud, remonta ao
complexo de Édipo e seu precipitado, o superego. Este
último, diz-nos ele, “corresponde a tudo o que se espera da
natureza mais elevada do homem. Como substituto do
anseio pelo pai, contém o germe de todas as religiões”.24
Pode-se talvez ficar com a impressão, aí, que Freud
considera a religião uma das ilusões “benfazejas”. Em outro
lugar, porém, ele deixa bem clara a sua visão do assunto:
 
A religião é uma tentativa de obter controle sobre o
mundo sensorial em que nos encontramos, mediante o
mundo volitivo que desenvolvemos dentro de nós por
efeito de necessidades biológicas e psicológicas. Mas ela
não pode conseguir tal. Suas doutrinas trazem a marca
dos tempos em que surgiram — os tempos da insciente
infância da humanidade. Seus consolos não merecem
confiança. A experiência nos ensina que o mundo não é
um berçário. Às exigências éticas que a religião procura
ressaltar deve-se dar-lhes outra base; pois elas são
indispensáveis à sociedade humana, e é perigoso
associar a observância delas com a fé religiosa. Se
quisermos situar a religião no decurso evolutivo da
humanidade, ela não aparece como uma aquisição
permanente da espécie humana, mas como um
equivalente histórico da neurose por que indivíduos
civilizados precisam passar na transição da infância à
maturidade.25
 
Isso tudo, por questionável e infundado que seja, leva o
imprimátur da ciência. Pelo menos é o que nos dizem, e é o
que nos pasma, a nós mortais. Se a psicanálise é uma
ciência, como pode o leigo contestar as conclusões dela?
Uma vez aceito esse dogma crucial promulgado por Freud,
fica-se predisposto a acreditar também nos seus demais
pronunciamentos ex catbedra.
POIS FOI ISSO MESMO, parece, o que milhões fizeram. Tal
como a teoria da evolução, também o freudismo se
adentrou no senso comum contemporâneo, e talvez pela
mesma razão: por ser uma pretensa doutrina científica que
veio atender a uma tendência predominante. Não quer isto
dizer que as massas tenham aceitado ponto por ponto a
doutrina freudiana inteira, que afinal é incomparavelmente
mais complexa e difícil de compreender que a tese
darwiniana. Ainda assim, numerosos conceitos freudianos
acharam seu canto na consciência popular — por exemplo,
as ideias de que a cultura é intrinsecamente “repressiva” e
portanto má, que a moralidade é convencional e a crença
religiosa uma ilusão, e que no fundo o princípio do prazer
reina soberano. São essas as concepções, sem dúvida, de
que nos embebemos em nossas escolas e através da mídia.
No mais, seguir outra linha de pensamento é arriscar-se a
ser tachado de reacionário, lorpa ou, muito possivelmente,
neurótico.
Seria difícil superestimar a magnitude da revolução
encabeçada por Freud. Ela minou os remanescentes
vestígios de cultura cristã e obteve brilhante êxito em seu
programa de desconversão. Como observa Philip Rieff, “o
solapamento sistemático de todas as convicções
estabelecidas representa o princípio anticultural a partir do
qual a personalidade moderna se vem reorganizando, não
só no Ocidente como também, com mais lentidão, no não-
Ocidente”.26 É indiscutível, ademais, que Freud contribuiu
para a consolidação dessa tendência mais do que qualquer
outro indivíduo. “Freud sistematizou a nossa descrença,”
escreve Rieff, “e esse é o anticredo mais inspirador já
oferecido a uma cultura pós-religiosa”.27 Pode-se dizer que
veio à existência um novo tipo de ser humano: o “homem
psicológico” — aquele que por instinto rejeita todos os
absolutos menos o absoluto da descrença ela própria. E
cuidam alguns que essa nova estirpe está fadada a herdar a
terra. “Onde já esteve a família e a nação, ou a Igreja e o
Partido,” prevê Rieff, “aí estará o hospital e também a casa
de espetáculos — as instituições normativas da cultura
vindoura. Treinado para ser incapaz de sustentar satisfações
sectárias, não pode o homem psicológico ser suscetível ao
controle sectário. O homem religioso se destina à salvação;
o homem psicológico se destina ao prazer”.28
Bem verdade que o ensinamento freudiano, no sentido
estrito, veio a ser em grande parte suplantado. E austero
demais e negativo demais para sustentar apoio popular. A
doutrina fez sensação durante as primeiras décadas do
nosso século, numa época em que ainda não se tinham
esvanecido os últimos resíduos do vitorianismo. Já nos
nossos dias é a egolatria em suas incontáveis formas — “o
culto da autodevoção”, como o chama Paul Vitz — que
domina a cena popular. Não Freud, mas Fromm, Maslow e
Rollo May são os gurus psicológicos de hoje em dia. E em
certos sentidos a doutrina deles vai ao arrepio do
ensinamento freudiano, que não se preocupa nem um
pouco em oferecer consolos. Apesar de tudo isso, é patente
que essas novas autoridades continuam a seguir os passos
do mestre e que, não fosse a ruptura produzida por Freud,
não poderiam estar exercendo sobre a sociedade tamanha
influência. Somente depois de Deus e a religião terem sido
sutilmente destronados na imaginação popular é que se
afigura tão sedutora a perspectiva de “sentir-se bem”.
Ao mesmo tempo, também a hostilidade freudiana contra
a religião se tornou um tanto ultrapassada. Chegando a
mentalidade terapêutica a predominar em uma cultura, já
não é preciso vituperar o cristianismo, nem o credo que for.
Pode-se então pregar o evangelho do “pluralismo” e da
“tolerância” com plena confiança em que cada aspecto da
crença será, no momento oportuno, devidamente
subjetivizado e incorporado em um panteão universal de
ilusões terapêuticas. A esse aliciante apelo, aliás, muitos
clérigos não taparam os ouvidos. De início com timidez, e
então em penca, prontificaram-se a atender ao chamado.
Como Rieff assinala, “o presente fermento da Igreja Católica
Romana” pouco diz respeito a alguma renovação da
percepção espiritual; antes, constitui “um avanço em
direção a mais sofisticadas acomodações com as
comunidades negativas da terapêutica”.29 A seu ver, “o
sacralista dá vez ao analista no cargo de funcionário
terapêutico da cultura moderna”.30
Mas voltemos a Freud e à psicanálise.
 
Por via de regra, a literatura psicanalítica
contemporânea põe de lado o simples fato de que a
psicanálise teve origem e inicialmente buscou validação
como método para tratar doenças mentais. Visto que
muitos já tentaram mas ninguém ainda conseguiu
demonstrar de modo convincente que fazer psicanálise,
ou mesmo qualquer forma de psicoterapia, é melhor para
o paciente neurótico do que não fazer nada, essa atitude
não será surpreendente.31
 
O surpreendente, aí sim, é que esse parecer tenha sido
emitido por um psiquiatra clínico. Contudo o dr. Henry Miller
está longe de ser o primeiro membro da sua classe
profissional a chegar a essa conclusão. Trinta anos antes,
por exemplo, Abraham Myerson, renomado clínico, já
dissera o seguinte:
 
Afirmo com toda a segurança que, como sistema
terapêutico, a psicanálise não foi capaz de provar o seu
valor. Primeiro de tudo, ela não conquistou a área, como
fez qualquer outra abordagem terapêutica bem-sucedida,
segundo já indiquei na primeira parte deste artigo. No
caso das psicoses, há mais motivo para enaltecer as
medidas farmacológicas e as estimulações fisiológicas do
que a psicanálise. No tocante às neuroses, elas seriam
“curadas” por osteopatia, quiropraxia, noz-vômica e
brometo, sulfato de benzedrina, mudança de ares, uma
pancada na cabeça e psicanálise — o que significa
provavelmente que nenhum desses itens chegou a
estabelecer o seu valor na matéria e certamente que a
psicanálise não é o remédio específico para o caso.
Ademais, dado que muitas neuroses são autolimitadas,
qualquer psicanalista que passe dois anos com um
paciente leva o crédito pela operação da natureza.32
 
Cabe acrescentar que Myerson havia conduzido uma
enquete com neurologistas, psiquiatras e psicólogos para
descobrir ao certo o que os colegas achavam de Sigmund
Freud. Os resultados apresentaram uma amplíssima gama
de posições e crenças, revelando estar dividida de modo
mais ou menos uniforme a opinião especializada sobre o
valor tanto teórico como terapêutico do ensinamento
freudiano. Parece que aí ficou representado cada matiz de
juízo sobre o assunto. Havia, por exemplo, os que elogiavam
a argúcia teórica de Freud mas sentiam que a psicanálise
“manifestamente fracassa em produzir resultados
benéficos”. Havia aqueles de opinião que “a doutrina da
sexualidade infantil é toda ela contrária aos fatos”, bem
como aqueles persuadidos de que ela em grande medida
pode ser substanciada com objetividade. Havia os
absolutamente convictos de ser a psicanálise a panaceia
para todos os males, e os que asseguravam que menos de
5% dos seus pacientes poderiam ser beneficiados pelos
métodos freudianos. Havia psiquiatras do parecer de que
60% das vezes a psicanálise faz mais mal do que bem e que
quatro dentre cinco análises “não são indicáveis”. Havia
aqueles que louvavam Freud como o profeta da nossa era, e
aqueloutros que consideravam seus pronunciamentos “uma
das mais estranhas anomalias e fantásticas extravagâncias
do começo do século XX”. “Quando lemos,” diz Myerson,
“em O mal-estar na civilização, de Freud, que a mulher se
tornou a guardiã da lareira doméstica porque sua
constituição anatômica lhe impossibilita apagar o fogo com
um jorro de urina, ficamos matutando em como é que pôde
haver a mínima aceitação de tais doutrinas”. Ficamos
matutando, deveras! Nesse meio-tempo, seja lá o que mais
se possa respigar dessas sortidas observações, basta uma
tão fenomenal falta de concordância entre os especialistas
para provar que não estamos lidando nem com uma ciência
autêntica nem com um sistema medicinal bem-sucedido.
Embora não tenhamos notícia de nenhum levantamento
similar feito em data mais recente, parece que o prestígio
da psicanálise freudiana nos círculos profissionais diminuiu
consideravelmente desde o tempo de Myerson. “Exceto na
França, onde as teses de Freud ainda fazem escola,”
escreve Vitz, “a influência da psicanálise vem declinando.
Nos Estados Unidos tem estado sob constante crítica vinda
de todo lado já faz uns bons anos”.33 O principal motivo das
críticas é que os métodos freudianos em geral se provaram
ineficientes no tratamento de transtornos mentais. “Em
consequência,” relata Rieff, “andam novos polemistas
perseguindo Freud por aí afora [...]”.34 Um dos mais
diligentes deles, podemos ajuntar, é Thomas Szasz, outro
respeitado psiquiatra, que chegou a afirmar ser errônea e
capciosa a própria noção de “doença mental”. Szasz
sustenta que a psicoterapia em si mesma não é um sistema
medicinal propriamente dito, mas sim uma técnica para
influenciar e controlar. Chama a atenção para o uso imoral e
danoso que se costuma fazer da técnica, o sistemático
ocultamento deste fato e “a nossa obrigação de declarar
maléficas tais intervenções e propostas até prova em
contrário”.35 Enquanto isso, porém, a psiquiatria segue
estendendo os seus domínios no Ocidente e no Oriente.
INCONTESTAVELMENTE, a psicanálise põe o paciente em
uma posição de extrema vulnerabilidade e sujeita-o a
influências que ele não consegue entender nem controlar.
Segundo observa Salter, “o procedimento analítico inteiro
promove a mais cabal e mais perigosa dependência”.36
Primeiro de tudo, a psicanálise, como é notório, deve
qualquer eficácia que possa ter ao estabelecimento de uma
relação especial entre o paciente e o analista conhecida
como “transferência”. Nas palavras de Freud:
 
O paciente não se contenta em ver o analista como o
que ele de fato é: um auxiliar e conselheiro profissional,
remunerado pelo seu trabalho [...]; antes, encara-o como
o retorno — a reencarnação — de alguma importante
figura saída da sua infância ou do seu passado e, em
consequência, transfere para ele sentimentos e reações
que indubitavelmente se aplicam a esse protótipo.37
 
Por outras palavras, o paciente perde contato com a
realidade e sucumbe a uma atitude mais ou menos infantil,
uma atitude que confere ao psicanalista poder sobre a
mente dele. “Se o paciente coloca o analista no lugar de seu
pai (ou de sua mãe),” explica Freud, “está-lhe concedendo o
poder que o superego exerce sobre o ego, já que que os
pais são, como sabemos, a origem do superego. O novo
superego tem oportunidade para efetuar uma espécie de
pós-educação do neurótico [...]”.38 Seja como for — quer
aceitemos as teorias de Freud sobre o superego e suas
raízes libidinais, quer não —, permanece o fato de que o
paciente, via transferência, se abre a influências emanadas
do analista — influências tecnicamente chamadas
“sugestões”, ao menos até o ponto em que sejam
manipuladas pelo analista de modo consciente. Assim, a
transferência prepara o terreno para a sugestão, e sem
dúvida este processo duplo constitui o mecanismo central
da terapia psicanalítica. “A influência da terapia psicanalítica
funda-se na transferência, isto é, na sugestão”, diz Freud.39
Paremos para examinar algumas implicações dessa
espantosa admissão. Em primeiro lugar, pelo que se vê, o
testemunho psicanalítico do paciente é muito
provavelmente influenciado pelo analista e suas ideias
preconcebidas. Como explica o próprio Freud: “O
mecanismo do nosso método curativo é, com efeito,
facílimo de entender. Damos ao paciente a representação
consciente do que ele espera encontrar [bewusste
Erwartungsvorstellung], e a similitude da representação
consciente com a inconsciente, reprimida, leva-o a deparar
com a segunda por si mesmo”.40 Mas a tal similitude com o
material inconsciente é só uma hipótese — e, diga-se logo,
uma hipótese injustificada. Tudo o que se sabe, tudo o que
se observa, é que o analista faz sugestões e o paciente uma
hora ou outra termina por reprisar os temas e imagens
previamente implantados na sua mente. Ora, a explicação
disso se encontra facilmente, e sem quaisquer hipóteses
além, no fato de que o paciente, a poder da transferência,
ficou patologicamente vulnerável aos desejos e
induzimentos do analista. Ele está em virtual estado de
hipnose, preparado para agir de acordo com o que lhe seja
sugerido pelo hipnotizador. Segundo constata Freud, uma
transferência dita positiva “altera toda a situação analítica,
desviando o objetivo racional do paciente: ele já não visa a
sarar e livrar-se das suas aflições, mas a satisfazer o
analista, a ganhar-lhe o aplauso e o amor”.41 Recordamo-
nos, a este propósito, daquelas desafortunadas mulheres
que confessaram ter sido seduzidas pelo pai. Ainda que não
se saiba quanto aplauso e amor elas ganharam em troca de
tais invencionices incestuosas, pode-se até imaginar como o
próprio Freud ficou “satisfeito”.
O que dissemos a respeito da transferência, além de
lançar séria suspeita sobre a objetividade das descobertas
feitas por meio desse método, aponta para o terrível perigo
a que se expõe o paciente ao entrar de livre e espontânea
vontade no pacto psicanalítico. Segundo vez por outra se
admite dentro dos círculos profissionais, mesmo uma
pessoa perfeitamente normal, no momento em que se
submete à psicanálise, está fadada a contrair uma neurose
genuína por efeito direto do processo psicanalítico.42 E,
desnecessário dizer, quanto mais confuso e desgraçado se
torna o paciente, mais suscetível ele fica aos induzimentos
do analista. “Espetando o arpão da transferência no
paciente,” diz um psicólogo clínico, “o analista pode sair-se
com qualquer interpretação, por mais disparatada, e o
paciente geralmente se deixa levar”.43
Mas parece que seguir orientações disparatadas talvez
seja o menor dos riscos que corre o coitado do paciente;
para piorar as coisas, há na psicanálise
inquestionavelmente um lado oculto. A própria transferência
enquanto tal é algo de muito misterioso, algo que não se
entende como se deveria. Freud ele mesmo parece ter tido
essa impressão algumas vezes, sobretudo quando, no curso
das suas investigações, ele dava com certos fenômenos
estranhos. Assim, embora sem se comprometer neste
ponto, Freud julgava provável que a transferência acione
meios até então desconhecidos de influência e comunicação
física, tais como a telepatia.44 Mas isso, dito com clareza,
significa que o paciente psicanalítico se abre a forças que
nem sequer o analista compreende. E significa, de quebra,
que o analista pode, também ele, a alturas tantas, acabar
sendo vitimado por influências ocultas a agirem fora do seu
controle consciente — o que parece ainda mais verossímil
quando lembramos que, de acordo com a tradição
freudiana, o psicanalista deve ser analisado ele próprio
antes de mais ninguém.
Agora, qual será a natureza e a origem, pondo a questão
em termos bastante gerais, dessas forças misteriosas que o
cenário da psicanálise é todo ele montado para
desencadear? Uma boa olhada nas típicas imagens que o
processo desencava do fundo do inconsciente deverá dar
uma pista. Afinal de contas, já há muito o cristianismo
proclamou haver na criação, com efeito, “forças obscuras”
capazes de atuar sobre nossa mente. “Que é esse
pernicioso sussurrar do Inimigo?”, indaga Tauler. “E quanta
imagem ou sugestão tumultuária irrompe no teu espírito”.
Havemos de concluir, então, que o id freudiano representa
deveras um domínio infernal — que ele constitui uma
exemplificação microcósmica, por assim dizer, das regiões
ínferas? Como já notamos atrás, de fato parece ser esse o
caso. E, ironicamente, o próprio Freud deu a entender isso
mesmo quando inscreveu no frontispício da sua primeira
obra célebre este verso de Virgílio: Flectere si nequeo
superos, Acheronta movebo (“Se não posso manejar o
empíreo, hei de agitar o inferno”).45
 
Notas
 
CAPITULO VI - A DEIFICAÇÃO DO INCONSCIENTE
 
1. The Collected Works (Bollingen Series XX) [doravante referido como cw].
Nova York: Pantheon, v. 15, p. 35.
2. Ibid., pp. 34-5.
3. Modem Man in Search of a Soul [doravante referido como MM). Nova York:
Harcourt Brace, 1933, p. 121.
4. Ibidem.
5. cw, v. 15, pp. 38-9.
6. Ibid., p. 37.
7. Ibid., p. 35.
8. MM, p. 119.
9. Ibid., p. 121.
10. Ibid., p. 122.
11. cw, v. 15, p. 40.
12. Ver, por exemplo, AOP, pp. 49-50.
13. cw, v. 9, par. 1, pp. 277-8.
14. Ibid., p. 283.
15. Ibid., p. 276.
16. Ibid., p. 282.
17. Psyche cmd Symbol [doravante referido como r&s]. Garden City, NY:
Doubleday, 1958, p. 16.
18. Memories, Dreams, Reflections [doravante referido como MDR]. Nova York:
Pantheon, 1963, p. 348.
19. Ibid., pp. 158-61.
20. MM, p. 186.
21. cw, v. 9, par. 1, p. 275.
22. MM, p. 118.
23. MDR, p. 179.
24. Ibidem.
25. Ibid., p. 199.
26. Ibid., p. 162.
27. Ibid., p. 205.
28. Ibid., p. 200.
29. cw, v. 7, p. 77; e v. 10, p. 83. Ver também meu artigo “Gnosticism Today”,
publicado originalmente no periódico The Homiletic and Pastoral Review e
republicado em Teilhardism and the New Religion (Rockport, IL: TAN Books,
1988, pp. 233-45).
30. P&S, p. 49.
31. MDR, p. 216.
32. Ibid., p. 210.
33. Ibidem.
34. “An Introduction to the Religious Thought of C. G. Jung”. In: Studies in
Comparative Religion, v. 3, n. 1, inverno de 1969, p. 37.
35. p&s, p. 286.
36. MDR, p. 351-2.
37. cw, v. 9, par. 1, p. 173.
38. MM, pp. 175-6.
39. MDR, p. 350.
40. Logic and Transcendence. Nova York: Harper & Row, 1975, p. 7.
41. The Triumph of the Therapeutic. Nova York: Harper & Row: 1968, p. 110.
42. “An Introduction to the Religious Thought of C. G. Jung”, p. 35.
43. MDR, p. 324.
44. MM, p. 57.
45. “An Introduction to the Religious Thought of C. G. Jung”, p. 36.
46. MDR, p. 40.
47. Ibid., p. 93.
p
48. The Triumph of the Therapeutic, p. 113.
49. Ibid., p. 139.
50. Ibidem.
51. MM, p. 67.
52. The Triumph ofthe Therapeutic, p. 139.
53. “Cosmology and Modern Science”. In: Jacob Needleman (org.), The Sword of
Gnosis. Baltimore: Penguin, 1974, p. 174.
 

CAPITULO VI - A DEIFICAÇÃO DO INCONSCIENTE


 
 
CONSTA QUE CARL GUSTAV JUNG foi o discípulo dileto de
Freud, como chegou a admitir o próprio mestre em carta
para o aprendiz, onde fala em “ungir-te o príncipe da coroa,
o meu sucessor”. Esta investidura, é sabido, nunca
aconteceu, pelo menos não da maneira como Freud
intencionara; e sabe-se também que, à altura da desavença
entre eles, Jung passou a considerar seu ex-mentor
unilateral, estreito e tendencioso nas suas convicções.
Sentia, por exemplo, que ele sobrevalorizara o papel da
sexualidade e da repressão na vida psíquica e exagerara a
importância de coisas como fantasias e traumas vividos na
infância. Não que as premissas da psicologia freudiana
fossem de todo infundadas: o que principalmente
incomodava Jung era o extremo dogmatismo e exclusivismo
com que esses conceitos eram sustentados. Ele encara
Freud sobretudo como um iconoclasta, “um grande
destruidor votado a quebrar os grilhões do passado”, um
crítico implacável do meio burguês oitocentista em que
nascera, “com suas ilusões, sua hipocrisia, suas meias-
verdades, suas falsas emoções exacerbadas, sua
moralidade malsã, sua religiosidade de araque, sem seiva, e
seu gosto lamentável”.1 Mas ele não o encara como o
profeta de uma nova era — posição que, como veremos,
ficou reservada para ele mesmo.
É talvez irônico que Freud, tendo tomado a si psicanalisar
os vivos e os mortos — desde Moisés até Woodrow Wilson
—, acabasse por ser submetido ele próprio a tratamento
semelhante nas mãos de um discípulo apóstata. Enfim, Jung
dá conta das idiossincrasias freudianas como uma sobre-
reação contra as imposturas de uma civilização decadente.
Reputando a era vitoriana “uma época de repressão,
marcada pelo afã de manter moribundos ideais
artificialmente vivos num quadro de respeitabilidade
burguesa à força de moralismo constante”, acredita que
isso explica, e em alguma medida justifica, “a atitude
redutiva e negativa de Freud ante os valores culturais
aceitos” e, de modo mais geral, sua “paixão revolucionária
por explicações negativas”.2 Em particular, Jung associa ao
contexto vitoriano o martelar incessante de Freud no tema
da sexualidade e das consequências sinistras de reprimi-la.
Acusa-o de manter uma visão distorcida sobre o assunto e
não conseguir enxergar nada afora “uma superenfatizada
sexualidade acumulada atrás de um açude”.3 Explica:
 
Aferrar-se a velhos ressentimentos contra os pais e
outros parentes, emaranhar-se nos cipoais emocionais da
situação familiar, é isto o que quase sempre provoca o
represamento das energias vitais. Tal é a barragem que
infalivelmente se mostra na espécie de sexualidade
chamada ‘infantil’. Não se trata de sexualidade
propriamente dita, mas de uma antinatural descarga de
tensões pertencente a outra área da vida.4
 
Numa palavra, Jung confirma o que já se poderia supor:
que a visão de Freud sobre o sexo é enviesada, tacanha e
um bocado doentia.
À luz dessas observações não será de surpreender que
Jung permaneça cético quanto às pretensões científicas de
Freud. Ele discerne nas máximas freudianas antes a
expressão de atitudes subjetivas que a de uma teoria
validada com objetividade. E, o que é mais, acredita que
Freud, a dada altura, quer de caso pensado, quer
inconscientemente, inflectiu de “servir à ciência” para
“cumprir uma missão cultural”. “Hoje em dia a voz que
clama no deserto”, observa Jung, “tem de assumir um tom
científico se pretende chegar até os ouvidos da multidão.
[...] Secretamente, a teoria psicanalítica não visa a atingir o
estatuto de verdade científica; sua real finalidade é
influenciar o grande público”.5 Será este um dos segredos
iniciáticos da psicanálise, e a verdadeira razão por que não
cabe aos não iniciados no círculo psicanalítico julgar as
alegações de Freud? E terá sido na qualidade de então
membro da irmandade freudiana que Jung teve acesso a
esse fato sigiloso?
Como quer que seja, Jung é cético também com relação à
eficácia terapêutica da psicanálise. Considera por demais
negativa a inteira abordagem freudiana. “Tudo nela está
orientado para trás”, diz-nos ele. “O único interesse de
Freud é de onde as coisas vêm, jamais para onde vão”.6
Jung, está claro, não partilha a fé freudiana de que uma
explicação regressiva da aflição padecida pelo paciente já
basta para saná-la. Não hesitava em admitir que Freud
“descobriu toda a imundície de que a natureza humana é
capaz”, mas duvidava que ele conseguisse curar almas.
Isso nos leva a outro ponto de divergência: a questão da
religião. Aqui mais uma vez Jung acusa Freud de ignorância
e tendenciosidade. Afirma que ele não conhece nada mais
do que a “religiosidade de araque, sem seiva”, da era
vitoriana, com “sua moralidade malsã” — “é nessa religião
falseada que o olhar dele se fita”.7 Aí está o que Freud ataca
com tanta paixão, o que ele deseja a todo custo descreditar
como nada além de uma manifestação bizarra de instintos
sexuais reprimidos. Jung, em contraste, enxerga a religião a
uma luz bem diferente:
 
Não duvido que os instintos ou impulsos naturais
constituam forças propulsoras da psique humana, quer
se denominem sexualidade, quer vontade de poder; mas
não duvido também que esses instintos entram em
colisão com o espírito, pois eles estão sempre a colidir
com algo, e por que não chamar a esse algo espírito? [...]
Como se vê, eu atribuo um valor positivo a todas as
religiões.8
 
Seja qual for sua natureza última, “esse algo” chamado
espírito é o fator crucial que nos capacita a transcender as
exigências recorrentes da vida animal e entrar na plenitude
da existência humana. “A permanecermos aquém disso,”
adverte Jung, “instaura-se um círculo vicioso, e é bem aí,
me parece, que mora o perigo da psicologia freudiana”.9 O
caminho de Freud não nos conduz para além da tirania dos
impulsos instintuais — para além dessa “desesperação”,
como a chama Jung. “Pobre de mim!,” exclama ele, citando
as palavras de São Paulo, “quem me livrará deste corpo que
me prende à morte?” E sua resposta a essa indagação
perene é bastante simples: “Nada nos pode libertar desta
amarra a não ser o impulso vital oposto — o espírito. Não
são os filhos da carne que conhecem a liberdade, mas os
‘filhos de Deus’”.10
A CRÍTICA FINAL de Jung a Freud é que ele “não penetrou
a camada mais profunda, comum a todos os homens”.11
Essa camada mais profunda é aquilo a que Jung chama o
inconsciente coletivo — nossa herança psíquica, ou pelo
menos a parte dela “comum a todos os homens”. Vale notar
que Freud também chega a falar de uma herança arcaica no
mesmíssimo sentido e igualmente acredita que este
“material filogenético” pode manifestar-se em sonhos, mitos
e outros fenômenos culturais.12 Jung, portanto, ao acusá-lo
de não ter penetrado “a camada mais profunda”, não queria
dizer que ele falhara em reconhecer a existência de um
inconsciente coletivo, mas sim que emitia juízos superficiais
e falaciosos a respeito. O engano de Freud aí, basicamente,
foi retratar o inconsciente coletivo nos mesmos moldes da
consciência e seus conteúdos. Isso não tem cabimento,
sustenta Jung, porque, no que diz respeito ao inconsciente
coletivo, defrontamo-nos com algo de todo exótico, algo que
nos desconcerta, algo incompreensível.
Essas características da psique primordial relevam-se
mais acentuadamente no caso da insanidade, que, segundo
Jung, não é outra coisa senão a impetuosa inundação do
campo consciente pelos conteúdos do inconsciente coletivo.
Jung repreende seus predecessores por se haverem
fixado demais no estudo da neurose. Tivessem eles
prestado mais atenção à fenomenologia da psicose, acredita
ele,
 
na certa lhes acudiria que o inconsciente exibe
conteúdos inteiramente distintos dos conscientes, tão
estranhos que ninguém é capaz entendê-los, nem o
paciente nem seus clínicos. O paciente é inundado por
uma enxurrada de pensamentos que são tão estranhos a
ele quanto a qualquer pessoa normal. Daí que lhe
chamamos ‘louco’: ele não consegue entender suas
ideias. [...] O material da neurose é compreensível em
termos humanos, mas o da psicose, não.13
 
Essa aparente irracionalidade do profundo inconsciente
não deve ser interpretada em sentido pejorativo. Importa
apreender que insano não é o inconsciente, mas o psicótico.
Além disso, o psicótico é insano não simplesmente em
decorrência das ideias que lhe entraram na consciência,
mas por causa da sua incapacidade para compreendê-las. É
como se ele fosse confrontado por um ser de outra ordem —
um deus ou um demônio, digamos, cujos pensamentos não
são como os nossos pensamentos. Eis aí o que escapara a
Freud, e o que invalida sua visão geral sobre o inconsciente
coletivo.
Tal qual Freud, Jung acredita que o ego representa uma
formação relativamente tardia, havendo evoluído a partir
das obscuras profundezas do inconsciente mediante um
gradual processo de desenvolvimento e dissociação. O
nascimento do ego, ademais, é também o nascimento da
consciência, pois “a consciência necessita de um centro, um
ego que seja consciente de algo”.14 Quanto à questão de se
também o inconsciente tem o seu centro, Jung é
decididamente cético. “Tudo indica o contrário”, afirma;15
para ele, é bem a ausência de um centro — a ausência de
uma “consciência pessoal” — o que explica o fato de o
inconsciente se nos apresentar caótico, irracional e
incompreensível.
Contudo, apesar da profunda diferença entre o
inconsciente coletivo e o domínio consciente, há entre os
dois uma íntima ligação. Jung descreve essa interação nos
seguintes termos:
 
Normalmente o inconsciente colabora com o
consciente sem atritos nem perturbações, de tal maneira
que a pessoa nem chega a dar pela existência dele. Mas,
quando um indivíduo ou grupo social se desvia demais
das suas fundações instintuais, então vivência todo o
impacto das forças inconscientes. A colaboração do
inconsciente é inteligente e apropositada, e mesmo
quando vem opor-se à consciência atua no sentido de um
contrabalanceamento engenhoso, como se tentasse
restaurar o equilíbrio perdido.16
 
Como seria de esperar, o inconsciente dá-se a conhecer
ao consciente por meio de imagens e ideias; comunica-se
conosco, podemos dizer, em uma linguagem de símbolos
universais. Jung, ademais, tem o cuidado de distinguir entre
esses símbolos — que são objetos da consciência — e os
conteúdos inconscientes que engendram essas formações
conscientes e se expressam por meio delas. Tal realidade
inconsciente a postar-se por trás da imagem visível ou ideia
consciente é aquilo que Jung denomina “arquétipo”. Os
arquétipos constituem o conteúdo, por assim dizer, do
inconsciente coletivo. “São entidades vivas”, explica Jung,
 
que causam a pré-formação dos conceitos numinosos
ou representações dominantes. [...] Na realidade
pertencem ao âmbito das atividades instintuais, e, nesse
sentido, representam formas de comportamento psíquico
herdadas. Como tais, estão investidos de certas
qualidades dinâmicas que, psicologicamente falando, se
designam por “autonomia” e “numinosidade”.17
 
Os arquétipos eles mesmos, como dissemos, são
incognoscíveis, dado que jamais se tornam objetos da
experiência consciente; no entanto, podem ser conhecidos
indiretamente por via das imagens e “ideias numinosas”
que projetam. Nessa base, Jung afirma ter identificado uma
série de arquétipos específicos: elaborou, realmente, uma
lista um bocado longa deles. Assim, com frequência ele fala
na sombra, na anima, no animus — três arquétipos que
ocupam lugar de particular importância em seus escritos —
e mais tantos outros: o velho sábio, a grande mãe, a
criança, e assim por diante. O ponto central aí é que cada
um desses arquétipos teria a sua manifestação típica e a
sua função especial na economia da vida psíquica.
Fugiria demais ao nosso escopo entrar nos pormenores
dessa doutrina. Basta dizer que a teoria pretende ter valor
explicativo: basicamente, Jung opera com os seus
arquétipos tal como Freud com os seus complexos de
origem repressiva. Assim, mais uma vez, toda sorte de
ocorrências psíquicas passou a ser interpretável com base
em uma específica álgebra de termos psicológicos: agora,
acredita Jung, uma imensa variedade de fenômenos tanto
individuais quanto coletivos pode explicar-se à força da
nova teoria psicológica.
EMBORA AQUI E ALI faça reservas ao darwinismo, é
evidente que Jung concebe a psique em termos
evolucionistas. “Tal como o corpo tem a sua pré-história
anatômica de milhões de anos,” escreve ele, “outro tanto se
dá com o sistema psíquico”.18 E, assim como os
consecutivos estágios da pré-história anatômica estão
registrados nas sucessivas camadas fossilíferas, existe
também um registro da nossa pré-história psíquica, só que
com uma diferença notável: os estágios primevos da vida
psíquica permanecem conosco não como fósseis mortos,
mas sim como vivos conteúdos do inconsciente coletivo.
E interessante lembrar que Jung topou com essa
concepção em um sonho, onde percorria os cômodos de um
casarão de dois andares. Lá pelas tantas desceu ao porão,
descobriu na laje um alçapão oculto e, seguindo por ali
abaixo, foi ter a uma caverna subterrânea “cheia de
ossadas e cacos de cerâmica esparsos, como resquícios de
uma cultura primitiva”. Relatou o sonho a Freud, que não
conseguiu interpretá-lo a contento de Jung. Por fim, a poder
da sua própria interpretação, “o sonho tornou-se para mim
uma espécie de imagem-guia. [...] Foi minha primeira pista
para um a priori coletivo abaixo da psique pessoal”.19
Convencido da sua descoberta, Jung ficava mais e mais
impressionado com a magnitude da entidade psíquica cujos
rastros ele agora investigava com avidez: um ser
“transcendente à juventude e à velhice, ao nascimento e à
morte, e, dispondo de uma experiência humana acumulada
por um ou dois milhões de anos, quase imortal”.20 Jung não
demorou a reconhecer que semelhante “ser humano
coletivo” teria atributos super-humanos e bem podia ser
dotado com um potencial conhecimento e poderio de
proporções divinais. Acresce que, se a nossa consciência
individual evoluiu — tanto no sentido filogênico quanto no
ontogênico — a partir dum inconsciente coletivo, então é
este ente portentoso literalmente o pai de nós todos e o
provedor da vida. Aquilo com que Jung tinha topado
começava a afigurar-se-lhe nada menos que a fonte
numinosa de que brotaram, e a que em última análise se
referiam, todas as concepções religiosas da humanidade.
Os fatos relativos às religiões primitivas pareceram logo
confirmar essa impressão. Assim, seria plausível que o
homem arcaico, tendo acabado de ingressar na vida egóica,
ainda mal dissociado do inconsciente, vivenciasse o mundo
numinoso dos arquétipos em termos sobremodo tangíveis e
veementes. Isto explica, segundo Jung, por que outrora as
florestas e bosques abundavam de espíritos e os deuses
caminhavam sobre a terra. O homem primitivo, seria
conjecturável ainda, sentia-se ameaçado por tais seres
míticos, que afinal representam as forças selvagens e
caóticas de que ele apenas começara a emancipar-se; e,
sendo assim, ele desejava agradar esses poderosos
espíritos, a fim de apaziguá-los e assegurar a cooperação
deles, por meio de ritos sacrificiais e práticas mágicas,
sobejamente encontrados nas sociedades primitivas. E pode
ser que pareça mediar um passo relativamente curto entre
isto e a elucidação psicológica das religiões mais evoluídas,
desde a ioga indiana e o budismo tibetano até as crenças
sagradas do cristianismo.
Mas tudo isso era só uma parte do ambicioso programa
para o qual Jung se sentiu chamado na sequência da sua
grande descoberta: além de interpretar as tradições
religiosas do passado, ele queria ainda entender a fundo a
crise da era atual e, se possível, descobrir-lhe um remédio.
Ficou claro para ele que a progressiva dissociação entre o
ego e o inconsciente não podia senão representar a fase
inicial de um processo evolutivo maior. Ele reconhecia,
ademais, o risco desse passo: pois, a menos que a
tendência presente venha a ser em tempo suplantada por
uma fase integrativa, ela mais cedo ou mais tarde vai
terminar em neurose e desintegração psíquica. E, na
verdade, Jung chegou mesmo a persuadir-se de que a
civilização moderna já tinha adentrado a zona vermelha da
neurose coletiva: aí está, a seu ver, a causa primeira da
crise contemporânea. A raiz do problema consiste em ir o
indivíduo egocêntrico alheando-se progressivamente da
fonte espiritual da vida: a nossa dificuldade, no fundo, é de
caráter religioso. Quase todos os seus pacientes acima da
meia-idade, conta-nos Jung, padecem de falta de propósito
ou sentido, causada por falta de convicção religiosa ou de
vida espiritual. O ego se acha aprisionado entre as suas
próprias paredes estreitas, e a fonte da vida vai secando.
Para mais, Jung acredita que o cristianismo, noutros tempos
capaz de pelo menos neutralizar esses perigos em escala
coletiva, essencialmente perdeu sentido para o homem
moderno: exige-lhe um ato de fé que ele, doutrinado por
concepções científicas e humanistas, não está apto a
praticar. O século XIX, mesmo tendo já sofrido uma erosão
da crença cristã dentro dos estratos sociais mais instruídos,
tentou ainda assim manter uma fachada de cristianismo; e
isso deu lugar às deploráveis imposturas contra as quais
Nietzsche e Freud reagiram com tanta violência. Mas agora
o quadro mudou: o século XX entregou-se sem rebuço à
dúvida religiosa, e o que os sociólogos denominam
“desconversão” vai sendo implementado em toda parte. O
resultado é que o homem perdeu o seu norte espiritual: hoje
se vê desorientado e desenraizado.
E chegada a hora, acredita Jung, de alcançar uma
compreensão mais profunda do objetivo que a natureza nos
designou. Esse objetivo, sustenta ele, não está nem na
glorificação do ego — em alguma vitória definitiva sobre as
forças obscuras do inconsciente, o que de todo modo seria
uma impossibilidade —, nem no aniquilamento do ego, o
que significaria um retorno à inconsciência. Está antes na
harmonização desses dois aspectos opostos ou
complementares da psique, culminando com o nascimento
de um único organismo plenamente integrado. Além disso,
Jung defende que esse é um objetivo perfeitamente realista
aqui e agora, um objetivo possível de seguir com eficiência
através dos meios adequados a tal fim. O caminho para
atingi-lo é o que Jung denomina individuação: “O processo
através do qual uma pessoa se torna um ‘indivíduo’
psicológico, isto é, uma unidade ou um ‘todo’ separado e
indivisível”.21 E, já se vê, é exatamente isto o que o próprio
sistema psicoterapêutico de Jung ambiciona promover.
Não tentaremos dar uma explicação simplificada do
“processo através do qual uma pessoa se torna um
‘indivíduo’”: é demasiado complexo e difícil esse assunto a
que Jung devotou grande parte dos seus volumosos escritos.
Basta-nos dizer que o processo envolve “a integração do
inconsciente na consciência”, levada adiante com o auxílio
de imagens arquetípicas. Entre estas se incluem o círculo e
o quadrado a desempenharem um papel de particular
importância: formam a base de um diagrama simbólico
representando a psique em sua totalidade. Na medida em
que consiga intuir o significado psicológico de tal
“mandala”, a pessoa pode chegar à efetivação da psique
integral: um todo que contém tanto o ego como o obscuro
submundo psíquico. Tal efetivação, ademais, dá à luz um
centro que Jung denomina “o si-mesmo”. Misteriosamente, e
não sem as dores do parto, nasce este novo ente psíquico e,
ato contínuo, torna-se o objetivo a que se dirige o processo
de individuação. O eu agora se converteu em um sol interior
ao redor do qual o ego órbita, por assim dizer, e ao qual se
subordina. Dissipou-se, portanto, a ilusão da
egocentricidade, e o sujeito descobriu “o si-mesmo” — por
outra, descobriu-se a si mesmo, “o que eu sou de verdade”.
Tudo aquilo que o homem primitivo, na sua ignorância,
cultuava como um externo panteão de deuses e espíritos
passa a ser percebido como uma interior realidade psíquica:
tal qual o Reino dos Céus, encontra-se “dentro”.
DIFÍCIL IMAGINAR como se poderia validar doutrina de
semelhante natureza em base puramente científica, e, com
efeito, o próprio Jung abdica dessa pretensão. Assim,
embora se classifique como psicólogo empírico, ele tem o
cuidado de salientar que o empirismo, ao menos nesse
domínio, traz de mistura consigo uma boa dose de
subjetividade e não constitui automática salvaguarda contra
o erro. De fato, essa é uma das críticas que ele fazia a
Freud: o pai da psicanálise apresentava suas teorias como
uma espécie de verdade absoluta e universal, sem advertir
nos pressupostos especiais subjacentes à sua visão do todo.
“Enfim,” conta-nos Jung, “a crítica filosófica me ajudou a ver
como toda psicologia — inclusive a minha — tem o caráter
de uma confissão subjetiva. [...] Mesmo quando eu trato de
dados empíricos, estou necessariamente a falar de mim
mesmo”.22 E contudo, a despeito dessa humildade
epistemológica, é evidente que Jung também tem as suas
pretensões, e por sinal descomunais.
E na sua autobiografia póstuma que Jung nos deixa
espiar o modus operandi da sua investigação psicológica. À
guisa de confissões íntimas, conduz-nos por um labirinto de
sonhos enigmáticos e aparições visionárias, exibindo, por
assim dizer, o vivo mundo da experiência psíquica de onde
ele colheu as suas principais ideias. Tudo começou com uma
série de sonhos curiosos que lhe pareceram prenunciar
grandes verdades, concernentes em especial à esfera
religiosa. Mais tarde, depois de romper relações com Freud,
decidiu entrar em uma deliberada “confrontação com o
inconsciente”. Assim relata Jung o início desta singular
introspecção em que ele se engajaria ao longo de duas
décadas:
 
Foi no Advento do ano 1913 — a 12 de dezembro,
para ser exato — que me resolvi a dar o passo decisivo.
Estava sentado à minha escrivaninha, cogitando mais
uma vez nas minhas apreensões. E então deixei-me cair.
De repente foi como se o chão cedesse debaixo dos
meus pés e eu me despenhei, mergulhando em
profundezas tenebrosas. Não me pude furtar a um
sentimento de pânico. Vai senão quando, a uma não tão
grande profundidade, abruptamente eu pouso de pé
numa massa fofa, viscosa.23
 
Jung prossegue contando o estranho espetáculo a que
assistiu logo que seus olhos se acostumaram à escuridão.
Havia ali “um anão de pele coriácea, como se mumificado”,
“uma rocha proeminente”, “um cristal vermelho”, “um
córrego e um defunto boiando nele”, “um jovem loiro com
uma ferida na cabeça”, e por aí vai. Parece que Jung
compreendeu na hora o significado dessas revelações
todas: “Eu percebi, é claro, que lá estava um herói e um
mito solar, um drama de morte e renovação, o
renascimento simbolizado pelo escaravelho egípcio”.24
Tais são as espiadelas à oficina secreta de Jung que ele
nos oferece postumamente. Ficamos sabendo ainda que
esses seus sonhos e visões desde o início serviram para lhe
revelar a substância das suas doutrinas psicológicas: “os
detalhes ulteriores”, informa-nos ele, “são só suplementos e
notas ao material que rebentou do inconsciente e desde o
princípio me inundou”.25
Isto levanta a questão de como é possível Jung ter obtido
de tal inundação essas elucidações, haja vista o que ele
próprio nos disse a respeito da psicose. Se os conteúdos do
inconsciente coletivo “não são compreensíveis em termos
humanos”, e se ficar inundado deles equivale a tornar-se
insano, como é que Jung fugiu a este destino e saiu destas
arriscadas experiências não somente lúcido, como
elucidado? Ao que parece, ainda na juventude ele se dera
conta de que imagens arquetípicas por si só não bastam:
resguardar-se da insanidade e chegar à elucidação requer a
posse de certas chaves que só uma fonte tradicional pode
dar. Assim, logo em seguida ao sonho que o pôs no rastro
do inconsciente coletivo, ele entregou-se a ler com interesse
voraz “uma montanha de material mitológico e, depois,
autores gnósticos”.26 Nessa época Jung não achou, ao
menos não de modo consciente, as chaves que procurava;
pelo contrário, segundo admissão própria, terminou em
“completa confusão”. Em todo caso, relata-nos ele que,
transcorrido largo tempo, conseguiu fazer progressos na
interpretação daquelas experiências visionárias e sentiu
necessidade de corroborar as conclusões a que chegara. Foi
quando ele deu com a alquimia: “Deparava-se-me ali o
correspondente histórico da minha psicologia do
inconsciente”, escreve Jung.
 
A possibilidade de uma comparação com a alquimia,
assim como a ininterrupta cadeia intelectual remontante
ao gnosticismo, davam substância histórica à minha
teoria. Quando me debrucei sobre esses textos antigos
tudo se encaixou: as imagens fantasísticas, os dados
empíricos que eu coletara em minha prática terapêutica
e as conclusões que deles tirara.27
 
Jung parece deixar subentendido que a presumida
convergência entre as suas próprias conclusões e as
doutrinas gnósticas teria o condão de validar ambas as
teorias de uma só vez. Com isso, ele fala na necessidade de
“documentar a prefiguração histórica das minhas
experiências interiores” e acrescenta que, “se não houvesse
achado essa documentação, jamais conseguiria substanciar
minhas ideias”.28 Mas não está nada claro que suas ideias
tenham sido de fato substanciadas, com ou sem tais
“prefigurações”. Caso se verifique que outros antes dele
chegaram a conclusões parecidas, o que isto provaria? Não
é a verdade mais do que mera questão de repetição? De
resto, se porventura os gnósticos concordam com Jung, e
quanto a todas as outras escolas que não? Além do mais, o
que nos garante que Jung, para começar, já não viesse
influenciado por fontes gnósticas? Realmente, ele estudara
esses autores com assiduidade antes de passar a
desenvolver as próprias teorias, e, mesmo que este precoce
enfronhamento no gnosticismo o tenha levado a um estado
de “completa confusão”, o encontro ainda assim pode ter
deixado sua marca no pensamento de Jung. Numa palavra,
a alegação de haver substanciado sua própria doutrina por
meio de prefigurações históricas só seria plausível para a
mente condicionada.
QUER SE TRATE DE INFLUÊNCIA, quer de corroboração, o
fato é que temas gnósticos desempenham papel
protagônico na psicologia junguiana. Antes de mais nada,
Jung partilha com os gnósticos uma inclinação para ver tudo
em termos de, como são chamadas, sizígias, ou “pares de
opostos” — luz e treva, macho e fêmea, bem e mal, para
ficarmos só em alguns —, como se a própria existência
cósmica nada mais fosse do que um equilíbrio instável, um
processo em que cada mais deve ter o seu menos e cada
soma deve dar zero — se cuidarmos de incluir aí todos os
termos. Em consonância com esta visão, as sizígias
emergiriam de um estado indiferenciado, que os gnósticos
denominam o Abismo (bythos) e que Jung por sua vez toma
como o inconsciente coletivo. Isso não quer dizer que as
duas concepções do estado indiferenciado sejam idênticas:
devemos lembrar que os gnósticos, de acordo com a
tendência objetivista da filosofia antiga, pensavam o bythos
em termos objetivos ou ontológicos, ao passo que o
inconsciente coletivo naturalmente se concebe em uma
perspectiva psicológica. As duas concepções, porém, são
análogas em toda a linha e na essência cumprem a mesma
função: o bythos, por um lado, constitui a base originadora
da manifestação cósmica; o inconsciente coletivo, por outro,
representa a base originadora da manifestação psicológica,
e portanto de tudo quanto se observe introspectivamente.
Assim, o que os gnósticos enxergam como a manifestação
da existência cósmica — ou da “criação” no sentido grego —
corresponde na doutrina junguiana a um assomo à
consciência. Nos dois casos a gênese em questão configura-
se uma diferenciação em pares de opostos de algo
inerentemente incognoscível que reside no fundamento
último.
Jung desvela-se por aplicar essas noções à esfera moral.
Se tudo deve ter o seu lado sombrio, e se a própria
existência resulta da separação de opostos, então o que
tomamos como o mal não pode ser nada menos essencial
do que o bem: tal qual os dois lados de uma moeda ou a
crista e o cavado de uma onda, o bem e o mal não são
senão os aspectos complementares de uma só e única
realidade. E, dado que os dois lados da balança vão acabar-
se anulando de qualquer maneira, segue-se que o ditame
moral “fazer o bem e evitar o mal” vira uma
impossibilidade. De mais a mais, o nosso esforço por
cumpri-lo serve apenas para exacerbar o já existente
desequilíbrio e, em consequência, deve conduzir a uma
crise, a um ponto de ruptura. Por aí fica claro que aceitar o
axioma gnóstico implica rejeitar a ética cristã.
É historicamente consabido o antagonismo entre a
posição cristã e a gnóstica. As multifacetadas e algo
polimórficas especulações subsumidas ao título de
gnosticismo constituem uma das famosas heresias contra as
quais o cristianismo teve de afirmar-se. E de certo modo
essa foi talvez a mais crassa de todas as heresias, o
ensinamento mais frontalmente oposto à verdade central do
cristianismo. Neste sentido, Jung terá acertado ao
considerar o gnosticismo “a contraposição inconsciente ao
cristianismo”, e terá acertado mais uma vez quando disse
que “as correntes espirituais do nosso tempo têm mesmo
uma profunda afinidade com o pensamento gnóstico”.29
Voltando à questão do bem e do mal, lembremos que o
cristianismo, em contraste com o princípio gnóstico, vê o
mal como uma privatio boni: uma mera ausência ou
“privação” do bem, e portanto algo destituído de essência
própria. Ora bem, esta doutrina cristã parece ser a pedra no
sapato de Jung, que não perde nenhum ensejo de exprobá-
la, chegando com isto a permitir-se grandes digressões no
que é evidentemente terreno de especulação metafísica. “O
argumento da privatio boni”, afirma-nos ele numa dessas
diatribes, “continua uma petição de princípio eufemística,
seja o mal tomado como bem menor, seja como efeito da
finitude e limitação das coisas criadas. A falsa conclusão
decorre necessariamente da premissa ‘Deus = Summum
Bonum’, visto ser inconcebível que o sumo bem pudesse
jamais criar o mal”.30
Por outro lado, para Jung, assim como para os gnósticos,
era convicção firmada — espécie de verdade evangélica —
que Deus é o autor do mal. O dogma já vem implícito na
concepção gnóstica da criação — a noção de que o cosmos
surge da separação de opostos. Porque, efetivamente, deste
pressuposto se segue que o poder responsável pela
manifestação do bem é outrossim responsável por todo o
mal existente no mundo. “Em última análise,” diz-nos Jung,
“foi Deus quem criou o mundo e seus pecados e, por
conseguinte, quem se tornou Cristo para suportar o destino
da humanidade”.31 Quer dizer, de acordo com a “teologia”
junguiana, o Cristo expia não os pecados do homem, mas os
pecados de Seu Pai! E, de fato, Jung considera a
humanidade algo como um drama a reencenar a
“contraditoriedade trágica” de Deus e, portanto, também a
do universo que Ele cria ou projeta a partir de Si.
Para Jung “o mito Cristo” — como qualquer narrativa ou
símbolo que incorpore conteúdos arquetípicos — é
verdadeiro e é importante: sua única reclamação é que não
foi entendido de modo correto. Para decifrarmos o
verdadeiro significado do simbolismo cristão, ao que parece,
nós precisamos tomar posse das chaves gnósticas. Só então
nos será dado compreender o sentido de tudo — até os
mínimos detalhes da liturgia sagrada!
Muito da culpa por essa incompreensão generalizada,
sustenta Jung, recai sobre a teologia, que impinge aos fiéis
certas interpretações e ideias errôneas, a exemplo da
ignominiosa privatio boni e do correspondente postulado
‘Deus = Summum Bonwrí. Tais concepções falsas e
eufemísticas, diz Jung na prática, cegaram-nos à óbvia
verdade de que Deus é ambivalente, de que Ele também
tem um lado obscuro e de que somente Ele responde pelos
sofrimentos do mundo. Logo, aquilo que a teologia
denomina Satã ou Anticristo, na realidade, é só “a outra
face de Deus”.
Já é tempo, acredita Jung, de trazer à tona mais uma vez
esta verdade esquecida e ostracizada. O cristianismo, tal
como se costuma entender, é credo literal demais para que
seja crível na presente era. Com o advento da ciência e dos
“milagres” da tecnologia, o homem ficou menos ingênuo,
menos crédulo. Ainda assim, todavia, ele continua a carecer
de um mito vivo e, o que é mais, ele tem necessidade da
“mensagem cristã”, que Jung reputa “de central importância
para o homem ocidental”.32 Apenas, essa mensagem
“precisa ser vista a uma nova luz, em conformidade com as
mudanças operadas pelo espírito contemporâneo”.33
Só que pelo visto essa “nova luz” é bem antiga; é, com
efeito, gnóstica. Afinal, se se verifica que “as correntes
espirituais do nosso tempo têm mesmo uma profunda
afinidade com o pensamento gnóstico”, então conformar o
cristianismo ao espírito contemporâneo é ipso facto
conformá-lo a ideias gnósticas. Ao ver de Jung isto significa
acima de tudo reconhecer a “face obscura” de Deus e
portanto, para todos os efeitos, deificar Satã. Como observa
Philip Sherrard, “Jung tomou a seu cargo redimir o Diabo”.34
As especulações teológicas de Jung, ao que tudo indica,
tinham por fim último instalar Satã como a Quarta Hipóstase
na Quaternidade divina.
MAS ORA, COMO É QUE JUNG, autodeclarado psicólogo
empírico, ganhou acesso à seara teológica? Por outras
palavras, como poderia a observação psicológica, ainda que
atingisse proporções visionárias, elucidar-nos quanto a
realidades transcendentais? A resposta dada por ele é que o
que se chama verdade filosófica, religiosa ou metafísica
constitui mesmo assim objeto de pensamento e, enquanto
tal, é fenômeno psíquico. Jung enuncia esta posição
múltiplas vezes — por exemplo, em seu “Comentário
psicológico” ao Livro tibetano dos mortos: “É a psique, pelo
divino poder criativo inerente a ela, que faz a asserção
metafísica, que postula a distinção entre entidades
metafísicas. Não só ela é a condição para toda a realidade
metafísica, ela é tal realidade”.35
O próprio Jung, no entanto, não parece plenamente
satisfeito com essa conclusão radical. “Não quero dar a
entender que exista somente a psique”, diz ele alhures. “É
só que, no concernente à percepção e à cognição, nós
somos incapazes de enxergar além da psique. [...] Toda
compreensão e tudo que seja compreendido é em si mesmo
psíquico, de sorte que estamos inescapavelmente
engaiolados em um mundo cem por cento psíquico”.36
Mas, ainda que tenha voltado atrás no pampsiquismo da
sua declaração pregressa ao admitir a existência de uma
realidade não-psíquica ou transpsíquica, Jung permanece
enredado na contradição fundamental de um implícito
bifurcacionismo: por um lado, assevera estarmos
“inescapavelmente engaiolados em um mundo cem por
cento psíquico”; por outro, evidentemente acredita na
existência de um universo físico e acena dar boa acolhida
ao que a ciência tem para dizer a respeito dele. Às vezes
chega até a cogitar que
 
as “camadas” mais fundas da psique [...] acabam por
esvair-se na materialidade do corpo, isto é, nas substâncias
químicas. O carbono do nosso corpo não é mais do que
carbono. A psique, então, no mais fundo de si mesma é tão-
somente mundo.17
 
Mas, ao que parece, também não é essa a última
palavra. Em outra obra, por exemplo, ao verberar “a
irresistível tendência a explicar tudo em termos físicos”, ele
mais uma vez dá mostras de rejeitar a posição materialista:
 
Nos nossos tempos não é a psique que constrói ela
mesma um corpo; ao contrário, é o corpo que, com seu
quimismo, produz a psique. Tal inversão de perspectiva
seria caso para rir se não fosse um dos traços mais
marcantes do Zeitgeist. E esse o vulgarizado modo de
pensar, e portanto é digno, razoável, científico e normal.
Deve a mente ser concebida como epifenômeno da
matéria. [...] Repugna ao Zeitgeist admitir a
substancialidade da alma ou psique: tal coisa para ele
seria heresia.38
 
Mas voltemos à ideia de estarmos “inescapavelmente
engaiolados em um mundo cem por cento psíquico”. Sucede
que, no entender de Jung, esta contraditória noção anda de
mãos dadas com uma outra ideia. Assim, tendo dito que “a
psique não pode saltar para fora de si”, ele logo em seguida
declara: “A psique não pode estabelecer nenhuma verdade
absoluta, pois que sua própria polaridade determina a
relatividade de suas afirmações”.39
Mas também essa é uma asserção antinômica. Obvio dos
óbvios: se ela é verdadeira, então se anula, dado que ela
mesma se apresenta como uma verdade absoluta. “A
absurdidade dela”, como assinala Frithjof Schuon sobre esta
espécie de declaração, “jaz na sua implícita pretensão a
escapar excepcionalmente, como por encanto, de uma
relatividade por ela declarada a única possibilidade”.40
Pelo jeito, a Jung pouco incomoda contradizer-se a cada
passo. Pode ser que, uma vez tendo-se engolido a ideia de
que o próprio Deus é o paradigma da contradição, tal
conduta pareça genuinamente virtuosa.
FICA DIFÍCIL DISCORDAR de Philip Sherrard e outros que
sustentam ser o objetivo primário de Jung destronar o
cristianismo e substituí-lo por uma nova marca religiosa de
linha psicológica. Todos os sinais apontam nessa direção, e
mesmo os aspectos mais bizarros e contraditórios do
ensinamento junguiano se encaixam de imediato tão logo
observados à luz dessa hipótese.
Está claro, para começar, por que Jung escolheu vestir
sua mensagem em roupagem científica. Como nos diz ele
próprio, ao comentar as ambições didáticas de Sigmund
Freud: “Hoje em dia a voz que clama no deserto tem de
assumir um tom científico se pretende chegar até os
ouvidos da multidão”. Não é de surpreender, ademais, que o
“tom científico” se faça mais conspícuo nos primeiros
escritos de Jung, produzidos num período em que o jovem
psiquiatra labutava por se estabelecer como escritor de
prestígio. Já nas suas produções literárias tardias se
distingue um cariz cada vez mais místico e francamente
religioso. “Ainda assim,” como nota Philip Rieff, “ele esperou
até estar além do alcance de resenhistas céticos para
publicar o segredo da sua vida: esse fardo de profeta que
lhe pesou desde o seu primeiro sonho visionário”.41
Outro ingrediente essencial do pensamento junguiano,
como já vimos, é o antinômico credo do relativismo
dogmático — também este constitui um “tom” com que os
ouvidos da multidão hoje estão sintonizados. Mas qual é ao
certo o papel desempenhado por ele na economia da
catequese junguiana? “Por que, realmente,” pergunta Philip
Sherrard, “veio Jung a emitir tal dogma — um dogma, bem
verdade, próprio para solapar as bases tradicionais do
dogma religioso, mas não obstante um dogma?” E a
resposta, como Sherrard observa, “é bastante clara”:
 
Deveras, foi por causa disto mesmo — porque Jung
almejava solapar as bases tradicionais do dogma
religioso, bem como de todo pensamento teológico
tradicional. [...] Enquanto lhe atravancasse o caminho a
grande estrutura da doutrina e do dogma cristão,
continuando ela a ser vista como sagrada e inviolada,
pouco progresso poderiam fazer as ideias de Jung. Mas,
se ele conseguisse mostrar que essa estrutura partilhava
todas as inevitáveis limitações do pensamento humano e
com efeito era de natureza subjetiva, relativa, psíquica —
então a autoridade dela seria abalada.42
 
A isso se pode acrescentar que o dogma do relativismo
cumpre função importante também em relação à própria
ciência, visto servir para neutralizar as asserções
materialistas e racionalistas com que a ciência moderna
desde o início se associou e que, não menos do que o
cristianismo, atravancam o caminho da nova religião. Esta
exige que não somente o Deus cristão e todas as categorias
metafísicas tradicionais, mas ainda que o próprio universo
físico, em última análise, seja engolido pelo Inconsciente, a
quem a “teologia” junguiana incumbiu o papel de uma
divindade panteística. Assim, quando Jung nos confidencia
em suas memórias póstumas — a título de interpretar um
dos seus sonhos proféticos — que “nossa existência
inconsciente é a real e nosso mundo consciente é um tipo
de ilusão, uma realidade aparente construída para uma
finalidade específica, à maneira de um sonho que parece
realidade enquanto se está dentro dele”,43 nós claramente
chegamos ao cerne do ensinamento junguiano: todo ele se
cifra numa psicologização da posição vedantina que
falazmente reduz a concepção do Brâman ao inconsciente
coletivo.
Mas retornemos à dialética de Jung. Havendo deposto, de
um só golpe, as pretensões absolutistas tanto da metafísica
tradicional como da ciência moderna, ele passa a pregar a
sua própria doutrina, não como dogma metafísico, e nem
sequer como teoria científica bem fundamentada, mas sim
em termos ostensivamente incertos. “Desnecessário dizer”,
avisa-nos ele, “que eu tomo a verdade das minhas
concepções como igualmente relativa, e a mim mesmo
como expoente de uma certa predisposição”.44 Ele não tem
nenhuma verdade absoluta a proclamar, segundo faz
questão de reiterar com insistência, e não se arroja a invadir
o território teológico ou metafísico. “Por outras palavras,”
diz Sherrard, “seu sistema de pensamento podia reivindicar
validade não por ser metafísico, mas justamente por não sê-
lo”.45
Contudo, uma vez aceita a reivindicação de validade,
Jung então ficava à vontade para dispensar tais cerimônias
epistemológicas e ir direto ao assunto. Nas suas polêmicas
contra a privatio boni, por exemplo, ele parece esquecer
todo aquele seu relativismo: em se tratando da crença cristã
de que Deus constitui o Summum Bonum, ele não vê nisso
uma verdade relativa nem “uma certa predisposição”, mas
somente uma “falsa conclusão”. Tampouco detectamos o
menor sinal de relativismo quando Jung apresenta suas
próprias um tanto místicas conclusões — por exemplo,
quando afirma a respeito da psique: “Não só ela é a
condição para toda a realidade metafísica, ela é tal
realidade”. Obviamente, nada aí ameniza o dogmático do
pronunciamento.
E essas declarações emitidas como dogmas, ao que
parece, são recebidas como tais pelos fiéis. Fica-se com a
impressão de que é na forma dum semimisticismo
psicológico que o ensinamento junguiano atinge o seu
verdadeiro fim.
Jung passa perto de dizer isso mesmo na sua
autobiografia, obra que, mais do que qualquer outra, nos
descortina a natureza e o propósito da doutrina junguiana.
Ali está retratada, para começar, a formação intelectual e
religiosa desse homem enigmático, um legado que ele julga
ter sido crucial para definir o trabalho da sua vida. Assim,
não será nem um pouco descabido relembrar que oito de
seus tios eram pastores religiosos, e seu pai também, vindo
este a perder parcialmente a fé e sofrer ataques de
insanidade que terminaram por provocar o seu
internamento num hospício. No livro fica claro, ademais, que
a questão religiosa foi desde o início a preocupação central
do futuro psiquiatra durante seus anos de formação — tanto
assim que Jung se refere a temas religiosos de modo
incessante ao recordar suas experiências da meninice. Uma
destas foi um sonho — ou terá sido uma visão? — em que
ele contemplava Deus sentado “no Seu trono de ouro, lá no
alto, muito acima do mundo”, de onde subitamente cai “um
enorme excremento” que vai despencar sobre uma catedral,
demolindo o telhado e despedaçando as paredes. Oito anos
mais tarde Jung ainda guardava vivida lembrança do
impacto causado por essa revelação primeva e do “júbilo
indescritível” que sentiu em seguida, bem como da sua
convicção juvenil de que “eu tinha tido uma iluminação”.46
Passado mais um tempo, o jovem vidente veio a dar àquela
“iluminação” a seguinte interpretação: “O próprio Deus
havia repudiado a teologia e a Igreja fundada sobre ela”.47
Tal foi, conforme crê Jung, o seu primeiro mandado
profético, a primeira vez — mas nem de longe a última —
que Deus lhe falou. Assim favorecido e iluminado, como ele
se acreditava sinceramente, o rapaz, segundo consta,
resolveu a seu próprio contento as perplexidades que
testemunhara em seu pai mediante o desenvolvimento de
uma contraposição ao cristianismo — trabalho esse que se
tornaria a paixão da sua vida. “Jtmg achou sua saída do
impasse religioso que havia destruído seu pai”, nota Rieff,
“num simbolismo pessoal integrativo, uma meta-religião
revelada a ele com exclusividade. Ele, então, sem divulgar a
fonte divina do simbolismo, traduziu-o em uma psicoterapia
[...]”.48
No entanto, mesmo com todas as suas tendências
sincretistas e empréstimos orientais, essa meta-religião
parece reter certa afinidade com o cristianismo: o produto
final do pensamento junguiano reflete ainda o seu ponto de
partida cristão. Apenas, o reflexo se mostra invertido: “Ele
criou uma paródia de cristianismo,” escreve Rieff, “e ficou
por um triz de alcançar a sua própria ‘cristificação’”.49 Mas
não por muito tempo; porque, como Rieff observa com
perspicácia: “No intento de evitar o martírio, Jung adiou
para depois de morrer o anúncio do seu pertencimento à
confraria dos profetas, tomando providências para que se
publicasse postumamente a sua autobiografia, que é a um
só tempo o seu testamento religioso e a sua doutrina
científica, expressos em termos de uma confissão
pessoal”.50
EM ÚLTIMA ANÁLISE, O que Jung tem a oferecer é uma
religião para ateístas e um misticismo para aqueles que só
amam a si próprios. Por um lado, ele enaltece o que
denomina atitude religiosa, “elemento da vida psíquica cuja
importância não se poderá superestimar”; por outro, afirma
dever o psicólogo de hoje “perceber de uma vez por todas
que já não estamos às voltas com questões de dogma e
credo”.51 Dito de outro modo, pouco importa se o conteúdo
da crença religiosa é falso ou verdadeiro: o que conta é a
nossa subjetiva atitude religiosa e o senso de bem-estar que
se supõe ser gerado por ela. Ao que parece, Jung descobriu
o segredo de cultivar atitudes religiosas a bel-prazer; o que
em tempos idos se adquiria à custa de compromissos
dogmáticos e morais agora se pode obter por outros meios.
Só que o novo produto não é como o antigo; é um Ersatz,
ou, no dizer de Rieff, “é uma religião de fancaria, feita para
diletantes espirituais, que colecionam símbolos e
significados como outros colecionam quadros”.52
Com efeito, Jung vasculhou religiões e doutrinas secretas
à cata de termos divinais para montar o seu próprio
venerável panteão deles. Mas invariavelmente algo se
perde no processo. Ao toque de Jung, os símbolos antigos no
mesmo ato perdem sua significação transcendental e
ganham um sentido truncado: o Deus vivo de Abraão deixa
de ser o Criador do universo para se tornar tão-somente
uma imagem paterna, um mero signo a representar um
arquétipo, o qual em si nada mais é que um determinado
conteúdo do inconsciente coletivo. É de se perguntar se
essa metamorfose não poderá prejudicar a eficácia
salvadora do símbolo religioso. Seja como for, isso que Jung
oferece à sua sofisticada clientela está a mundos de
distância duma orientação religiosa.
Os arquétipos junguianos são, como já vimos,
propensões psíquicas. Ao contrário dos arquétipos
platônicos ou cristãos, fazem parte da ordem temporal e
chegaram até o seu presente estado por algum processo
histórico ou evolutivo. Pois bem, se o cosmos é em essência
uma teofania, segundo reza a doutrina cristã, então
também os arquétipos junguianos hão de refletir, duma ou
doutra forma, as “ideias” eternas que se diz residirem no
Logos ou Sabedoria de Deus. Apenas, não se pode esquecer
que a natureza ou qualidade deste reflexo está
condicionada ao fator da pureza mental — e é aí que mora o
problema. Só os “puros de coração” verão Deus. Mas não há
muita razão para acreditar que o inconsciente em seu
presente estado, seja o individual seja o coletivo, atenda a
altíssimos padrões de pureza. Tampouco existe o menor
motivo para considerar o inconsciente coletivo algo melhor
ou mais espiritual do que a humanidade per se, quer se
tome esta coletividade em seu estado atual, quer em algum
anterior estágio de desenvolvimento. Assim, caso se admita
a afirmação evolucionista do progresso, o inconsciente
coletivo necessariamente corresponde a um estágio anterior
e portanto inferior, que o indivíduo do presente vem
superar. De outro lado, se a religião tem razão em afirmar a
queda do homem, então é de supor que o inconsciente
coletivo de uma humanidade degradada tome parte nessa
degradação. Ora, tanto num caso como no outro, o
inconsciente coletivo decerto não constitui uma norma
universal ou uma infalível fonte de graça salvadora, como
Jung parece presumir. E, até onde sabemos, nenhuma das
tradições espirituais do mundo jamais ensinou coisa
semelhante. Bem ao contrário: elas dão-nos severas
advertências para nos acautelarmos dessas turvas e
ambivalentes profundezas e das forças psíquicas ou
entidades ocultas pertencentes a essas regiões ínferas. Se
há tal coisa como uma espiritualmente legítima “descida ao
inferno”, deve-se proceder a ela com temor e tremor, e não
sem a proteção da graça sacramental.
No mais, é descabido sustentar que as formas ou
propensões psíquicas classificadas por Jung como
arquétipos específicos sejam assim tão imutáveis como ele
quer fazer crer. Não se deve levar longe demais a analogia
com os fósseis: a mente, à diferença da pedra, é um
elemento inerentemente proteico. Logo, nada mais natural
do que estar o inconsciente coletivo e seus chamados
arquétipos em constante mutação. Longe de conservar-se
perfeitamente homogêneo no transcurso do tempo e com
relação à distribuição étnica, o inconsciente coletivo tem de
reagir a conjunturas históricas e, em consequência, deve
sujeitar-se a variações locais. Muito possivelmente, como
defende Titus Burckhardt, nos maiores grupos culturais ou
étnicos ele sofrerá certa deterioração causada por uma
apostasia coletiva das normas religiosas e morais
estabelecidas. Citemos o que Burckhardt tem para dizer
sobre esta importante questão:
 
A qualquer coletividade que traia a sua forma
espiritual tradicional, o arcabouço sagrado da sua vida,
sobrevém-lhe a ruína ou uma espécie de mumificação
dos símbolos que herdou, e este processo afetará a vida
psíquica de cada indivíduo comparticipante na
infidelidade coletiva. A toda verdade corresponde um
traço formal; toda forma espiritual projeta uma sombra
psíquica. E, quando essas sombras são tudo o que resta,
elas assumem realmente o caráter de fantasmas
ancestrais a assombrarem o subconsciente. O mais
pernicioso dos erros psicológicos é reduzir o significado
do simbolismo a tais fantasmas.53
 
Foi Jung, é claro, quem dogmaticamente reduziu o
significado do simbolismo a “tais fantasmas”, como se nada
houvesse para ser contemplado pelo religioso a não ser os
arquétipos junguianos. Com isso, foi deificado o
inconsciente coletivo e, portanto, o homem, de quem ele se
deriva e a quem pertence. Na semiteologia psicologista de
Jung, a esfumada memória da nossa raça ocupou a posição
de divindade, e o si-mesmo coletivo e evolutivo, seja lá o
que for, converteu-se no Deus pessoal.
O que torna o culto junguiano da autodevoção
especialmente sedutor — e talvez mais perigoso para a
religião do que qualquer outro sistema ideológico em voga
— é sua vestimenta pan-religiosa e científica, que desarma
quase todo o mundo, levando até um dominicano erudito a
falar do psiquiatra suíço, em tom efusivo, como “um padre
sem sobrepeliz”. Maior a cada dia que passa, a influência de
Jung sobre o cristianismo, de fato, faz-se sentir sobretudo
entre os intelectuais religiosos e os interessados em
espiritualidade. Aí está finalmente um anticredo capaz de
“enganar até os escolhidos”! De resto, entre os eclesiásticos
de pendor porventura menos místico, a mistura junguiana
de religião e psicoterapia é com frequência enxergada como
o meio ideal para efetuar aquelas “sofisticadas
acomodações com as comunidades negativas da
terapêutica”. E a coisa vai passando rapidamente da fase de
planejamento para a de execução: está em pleno curso.
Pelo que parece, em igrejas espalhadas por aí afora, Jung já
foi admitido ao santuário.
 
Notas
 
CAPITULO VI - A DEIFICAÇÃO DO INCONSCIENTE
 
1. The Collected Works (Bollingen Series XX) [doravante referido como cw].
Nova York: Pantheon, v. 15, p. 35.
2. Ibid., pp. 34-5.
3. Modem Man in Search of a Soul [doravante referido como MM). Nova York:
Harcourt Brace, 1933, p. 121.
4. Ibidem.
5. cw, v. 15, pp. 38-9.
6. Ibid., p. 37.
7. Ibid., p. 35.
8. MM, p. 119.
9. Ibid., p. 121.
10. Ibid., p. 122.
11. cw, v. 15, p. 40.
12. Ver, por exemplo, AOP, pp. 49-50.
13. cw, v. 9, par. 1, pp. 277-8.
14. Ibid., p. 283.
15. Ibid., p. 276.
16. Ibid., p. 282.
17. Psyche cmd Symbol |doravante referido como r&s]. Garden City, NY:
Doubleday, 1958, p. 16.
18. Memories, Dreams, Reflections [doravante referido como MDR]. Nova York:
Pantheon, 1963, p. 348.
19. Ibid., pp. 158-61.
20. MM, p. 186.
21. cw, v. 9, par. 1, p. 275.
22. MM, p. 118.
23. MDR, p. 179.
24. Ibidem.
25. Ibid., p. 199.
26. Ibid., p. 162.
27. Ibid., p. 205.
28. Ibid., p. 200.
29. cw, v. 7, p. 77; e v. 10, p. 83. Ver também meu artigo “Gnosticism Today”,
publicado originalmente no periódico The Homiletic and Pastoral Review e
republicado em Teilhardism and the New Religion (Rockport, IL: TAN Books,
1988, pp. 233-45).
30. P&S, p. 49.
31. MDR, p. 216.
32. Ibid., p. 210.
33. Ibidem.
34. “An Introduction to the Religious Thought of C. G. Jung”. In: Studies in
Comparative Religion, v. 3, n. 1, inverno de 1969, p. 37.
35. p&s, p. 286.
36. MDR, p. 351-2.
37. cw, v. 9, par. 1, p. 173.
38. MM, pp. 175-6.
39. MDR, p. 350.
40. Logic and Transcendence. Nova York: Harper & Row, 1975, p. 7.
41. The Triumph of the Therapeutic. Nova York: Harper & Row: 1968, p. 110.
42. “An Introduction to the Religious Thought of C. G. Jung”, p. 35.
43. MDR, p. 324.
44. MM, p. 57.
45. “An Introduction to the Religious Thought of C. G. Jung”, p. 36.
46. MDR, p. 40.
47. Ibid., p. 93.
48. The Triumph ofthe Therapeutic, p. 113.
49. Ibid., p. 139.
50. Ibidem.
51. MM, p. 67.
52. The Triumph ofthe Therapeutic, p. 139.
53. “Cosmology and Modern Science”. In: Jacob Needleman (org.), The Sword of
Gnosis. Baltimore: Penguin, 1974, p. 174.
 
CAPITULO VII - O “PROGRESSO” EM
RETROSPECTO
 
 
TODA ÉPOCA, TODA CIVILIZAÇÃO tem um espírito próprio.
Ele é o que determina a visão de mundo habitual; o modo
corriqueiro de olhar as coisas; os valores, as normas e as
proibições — em suma, os elementos essenciais da cultura.
É certo, ademais, que a grande maioria dos indivíduos se
conformará às tendências predominantes da civilização em
que nasceu, e isto vale inclusive para os que se têm por
inconformistas. Em contrapartida, é possível também
transcender os limites da cultura: não pode existir coisa
como um rígido determinismo cultural. Ainda assim,
contudo, esse ultrapassar as fronteiras culturais prova-se
um acontecimento sobremodo raro; dá-se com muito menos
frequência do que somos levados a crer. Não nos deixemos
enganar. E verdade, por exemplo, que nos tempos
modernos tem havido um interesse sem precedentes pelo
estudo da história; e todavia o que se estuda aí é quase
sempre uma história truncada pelo horizonte mental da
nossa época e colorida pelos sentimentos humanistas da
nossa civilização. O Zeitgeist é mesmo uma força poderosa,
e nunca é fácil nadar contra a corrente.
No entanto é justamente isso que deve fazer quem
pretenda obter uma perspectiva desenviesada da
modernidade. Falando sem papas na língua, é preciso
romper a tacanhice e empáfia intelectual do homem
tipicamente moderno — o indivíduo compenetrado de que a
nossa civilização representa o auge de uma presumida
evolução humana e que a humanidade andava tateando no
escuro até aparecerem Newton e seus sucessores para
trazer luz ao mundo. Aqui não queremos negar que eras
passadas tenham tido o seu quinhão de ignorância e outras
mazelas e que a condição humana tenha melhorado em
certos aspectos. Queremos, sim, afirmar que esses
desenvolvimentos pretensamente positivos a figurarem com
tanta preeminência na percepção contemporânea da
história constituem somente uma parte do todo: a bem
dizer, a menor parte. Vemos as coisas que ganhamos e
somos cegos — quase por definição — a tudo o que se
perdeu. E o que é que se perdeu? Tudo, pode-se dizer, que
transcenda os planos corpóreo e psicológico, os reinos
gêmeos de uma objetividade matematizada e uma
subjetividade ilusória. Por outras palavras, como herdeiros
intelectuais da filosofia cartesiana, nós nos tornamos
habitantes de um universo empobrecido, um mundo cujos
nítidos contornos foram traçados para nós pelo renomado
racionalista francês. No fundo existe a física e existe a
psicologia — cada uma atendendo a um lado da grande
divisão cartesiana —, e juntas as duas disciplinas vieram
engolir todo o lócus da realidade: da nossa realidade,
entenda-se. Para lá disto não vemos nada; não podemos
nossas premissas não permitem.
Mas então o que será possível ver além? E por que meio?
A resposta é de uma simplicidade surpreendente: o que se
dá a ver é o mundo criado por Deus, e esse ver — esse
prodígio — efetua-se por meio dos instrumentos concedidos
por Ele: os cinco sentidos e a mente. Assim entramos em
efetivo contato com o cosmos real e objetivo, que se nos
revela um universo vivo, cheio de cor, som e fragrância, um
mundo onde as coisas falam a nós e tudo tem sentido. Mas
devemos aprender a escutar e a discernir. E esta é uma
tarefa que envolve o homem inteiro: corpo, alma e,
sobretudo, “coração”. Todos já viram uma ave ou uma
nuvem, mas nem todos são sábios, nem todos são artistas
na verdadeira acepção da palavra. E é isto, com toda a
evidência, o que uma educação digna do nome nos deveria
ajudar a alcançar: deveria tornar-nos sábios, deveria abrir-
nos os olhos da alma.
Permanece uma questão: o que é que a natureza tem
para nos dizer — caso nós tenhamos “ouvidos para ouvir”?
Bem, para começar, ela fala de coisas sutis, de causas
invisíveis e de harmonias cósmicas. Há aí uma ciência a ser
estudada, uma “filosofia natural” não inventada por nós.
Mas isso não é tudo; é só o começo do começo. Porque no
fim — quando “o coração está puro” — nós descobrimos que
a natureza fala, não de si, mas do seu Criador: “O céu e a
terra estão cheios da Vossa glória”. Ou, nas palavras do
Apóstolo, “Desde a criação do mundo as coisas invisíveis de
Deus, discernindo-se nas coisas criadas, se tornaram
visíveis: assim o Seu poder eterno e a Sua divindade”.
Porém, como sabemos, a própria lembrança desse
conhecimento elevado começou a minguar muito tempo
atrás e por alturas do Renascimento já se amortiçava, com a
exceção de umas poucas almas extraordinárias. No
concernente a Galileu e Descartes, ademais, parece que a
luz se tinha apagado de vez: a filosofia de ambos deixa
pouquíssimo espaço para dúvida nesta matéria. E daí em
diante prevalece um ambiente intelectual verdadeiramente
desiluminado, digam o que disserem os livros de história.
Por certo, ergueram-se algumas notáveis vozes no deserto,
mas é patente que quem levou a melhor foram “Bacon e
Newton, embainhados em aço nefasto”, e que seus
“raciocínios quais enormes serpentes” vieram cingir “as
escolas e universidades da Europa”, como Blake lamenta
para a sua eterna glória. Foi o triunfo da “visão única”: um
tipo de conhecer que por paradoxo se funda numa cisão,
num profundo alheamento entre o conhecedor e o
conhecido. Aí está o decisivo acontecimento que preparou o
terreno para a cultura moderna. A partir desse ponto nós
nos achamos (intelectualmente) em um cosmos artificial,
um mundo inventado pelo homem, talhado à medida da
inteligência profana, projetado para ser compreensível aos
físicos e igualmente, por sua própria falta de sentido
objetivo, aos psicólogos.
Melhor dizendo: nós nos acharíamos nesse cosmos se o
grande movimento moderno tivesse logrado êxito em nos
converter às suas noções preconcebidas. Isso não se deu,
nem se poderia dar: qualquer exame atento revelará que,
na verdade, ninguém jamais acreditou plenamente, de todo
o coração, no que a ciência tem a dizer. Tal
'Weltanscbauung só pode falar a uma parte de nós, a uma
única faculdade nossa, por assim dizer; e portanto ela é em
princípio inaceitável para o homem total. Não se pode
negar, todavia, que coletivamente nós fomos convertidos a
ela em alto grau. E, se a visão não abrange o homem por
inteiro, ele sempre pode aprender a viver aos bocados, por
compartimentos, digamos assim. Havendo-se alheado da
natureza — o objeto do conhecimento —, no fim ele se torna
estranho a si mesmo.
Por aí começamos a ver como a linha de pensamento
cosmológico que se iniciou de modo tão idílico com as
bucólicas meditações de Descartes acabou tendo
repercussões culturais tão tremendas. Roszak sem dúvida
acerta quando afirma que “cosmologia implica valores” e
que “não há nunca duas culturas, só uma — ainda que essa
única cultura seja esquizóide”.1 E talvez haja acertado
também ao falar das consequências dessa neurose cultural
nos seguintes termos:
 
Já podemos reconhecer que o destino da alma é o
destino da ordem social; que, em fenecendo o espírito
dentro de nós, fenece todo o mundo que construímos à
nossa volta. Literalmente. O que é afinal a crise ecológica
que só agora, com atraso, vem causando alarme, senão
a inevitável extroversão de uma psique derrancada?
Como dentro, assim fora. O próprio meio ambiente físico
na última hora de repente nos avulta aos olhos como o
espelho exterior da nossa condição interior, para muitos
o primeiro sintoma visível de uma doença lá dentro.2
 
EM SEGUIDA a essas sumárias observações, talvez caiba
refletirmos sobre a primeira grande conquista da ciência
moderna, qual seja, a astronomia copernicana. Costuma-se
dar como líquido e certo que o destronamento da
mundivisão ptolemaica pela copernicana significou uma
vitória da verdade sobre o erro, o triunfo da ciência sobre a
superstição. Há mesmo quem veja na posição copernicana
uma espécie de doutrina sagrada, tendo Giordano Bruno
como seu mártir e Galileu como seu santo confessor. E,
coisa estranha, poucos se lembram de que a física do século
XX não toma nenhum dos dois partidos nesse debate todo.
Primeiro houve a controvérsia de se o sol se move enquanto
a Terra permanece fixa ou se é o contrário. Ora, o que a
física moderna tem asseverado — desde que Einstein
reconheceu as implicações últimas do experimento
Michelson-Morley — é que os conceitos de repouso e de
movimento são puramente relativos: tudo depende do
quadro referencial que adotamos. Portanto, dados dois
corpos no espaço, não faz sentido algum perguntar qual
está em movimento e qual em repouso. Lá se vai a primeira
controvérsia. Na segunda, atinente à posição dos dois
orbes, cada lado da disputa sustentava que o corpo por ele
considerado imóvel ocupa o centro do espaço. E aqui de
novo a física contemporânea vê um pseudoproblema
surgido de pressupostos falaciosos. Efetivamente, a
polêmica não tem sentido por dois motivos: primeiro
porque, como já visto, não é possível afirmar que um corpo
qualquer repousa em sentido absoluto; segundo porque
inexiste isto de centro do espaço. Quer se conceba o espaço
cósmico como ilimitado (à semelhança do plano euclidiano),
quer como limitado (à semelhança da superfície de uma
esfera), em ambos os casos não há nenhum ponto especial
destacado do resto e, por conseguinte, nenhum ponto
passível de ser tomado como o centro do espaço. Mas, na
ausência de um centro, o debate copernicano perde todo
sentido. Nesta perspectiva a controvérsia inteira de fato se
afigura um exemplo clássico de “muito barulho por nada”.
No entanto, este modo de olhar a questão — que iguala
os dois lados da disputa — prova-se não menos enganoso
do que a visão popular que entrega a palma da vitória aos
copernicanos. Se o veredicto popular se baseia em pouco
mais que preconceito e propaganda, o parecer científico por
sua vez se estriba no pressuposto não menos gratuito de
que a cosmologia há de ser formulada em termos
puramente quantitativos e “operacionalmente definíveis”.
Dito de outro modo, aí tacitamente se pressupõe ser a
quantidade a única coisa que tem realidade objetiva, e o
modus operandi da ciência empírica o único meio válido de
adquirir conhecimento. Ora, é justamente esta a posição em
que a civilização ocidental veio parar após uma série de
convulsões e reduções intelectuais em grande parte
promovidas pela revolução copernicana. Na verdade, a nova
visão provém direto dos copernicanos tardios, homens como
Galileu, cujo pensamento já era moderno a esse respeito.
Cumpre lembrar também que foram esses indivíduos — e
não Copérnico — que se desentenderam com as
autoridades eclesiásticas e suscitaram os famosos debates.
Copérnico, recordemos, comunicou suas ideias ao Papa
Clemente VII em 1530, sendo então incentivado pelo
pontífice a publicar suas investigações; e somente um
século mais tarde, no ano 1632, é que Galileu foi chamado a
depor perante a Inquisição. O xis da questão é que a célebre
controvérsia tratava de algo maior do que podia parecer à
primeira vista: aos olhos de todos a discussão se prendia
com tópicos aparentemente inofensivos tais como se é a
Terra que se move ou o sol, mas em retrospecto se pode ver
que o que de fato estava em causa não era nada menos que
uma inteira Weltanschauung.
Costumamos esquecer que a mundivisão ptolemaica ia
infinitamente além de uma simples teoria astronômica no
sentido contemporâneo; olvidamos que ela era uma
genuína cosmologia, à diferença de uma mera cosmografia
do sistema solar. Para reconhecer esta distinção é preciso
recordar que a Weltanschauung antiga concebe o cosmos
como uma ordem hierárquica constituída de muitos
“planos”, uma ordem em que o mundo corpóreo —
composto por corpos físicos, ou de “matéria”, na acepção
da física moderna — ocupa precisamente o escalão mais
baixo. Isto implica, em particular, que tudo quanto seja
investigado pelo método da física — tudo o que seus
instrumentos revelem — pertence ipso facto à orla inferior
do mundo criado. Newton afinal tinha razão: realmente, a
gente anda catando seixos à beira do mar;3 porque, com
efeito, as ciências físicas, pela sua própria natureza, se
voltam para a ordem corpórea da existência. Trata-se
basicamente do mundo perceptível aos nossos sentidos
externos; apenas, importa lembrar que até mesmo esta
faixa inferior da hierarquia cósmica é incomparavelmente
mais rica que o chamado universo físico — o cosmos
idealizado ou imaginado pela ciência contemporânea —,
dado que, como já tivemos sobeja oportunidade de ver, o
mundo corpóreo compreende muitíssimo mais do que meros
atributos matemáticos. Portanto, se quiséssemos localizar o
universo da física moderna nos mapas antigos, teríamos de
dizer que ele constitui uma visão abstrata ou sobremodo
parcial da orla ultraperiférica, da “casca” do cosmos. Já uma
verdadeira cosmologia, no sentido tradicional, é uma
doutrina que diz respeito não a um plano só, mas ao cosmos
na sua inteireza.
Põe-se, é claro, a questão de como poderia a teoria
ptolemaica, a qual afinal não deixa de tratar do sol e dos
planetas, “dizer respeito ao cosmos na sua inteireza”, tendo
em conta que a ordem corpórea não constitui senão a
menor parte desse cosmos total. E a resposta é bastante
simples, ao menos em princípio: as coisas da natureza
apontam para além de si próprias; ainda que sejam
corpóreas, falam de domínios incorpóreos — são símbolos.
Existe mesmo uma correspondência analógica entre os
vários planos: “como em cima, assim em baixo”, segundo
reza o axioma hermético. Não nos esqueçamos que apesar
da sua estrutura hierárquica o cosmos constitui uma
unidade orgânica, muito afim à unidade orgânica de mente,
alma e corpo que podemos vislumbrar em nós mesmos.
Acaso o rosto não espelha as emoções, os pensamentos ou
até o próprio espírito do homem? Viemos a perder de vista
que também o cosmos é um “animal”, como observavam os
filósofos antigos.
É isso, então — o milagre do simbolismo cósmico —, o
que está por trás da mundivisão ptolemaica e o que a eleva
de uma cosmografia algo tosca a uma cosmologia em toda
a plenitude. Ademais, houve um tempo quando os homens
sabiam ler o símbolo, quando pressentiam que a sólida Terra
enquanto tal representa o domínio corpóreo, situado no
mais fundo da escala cósmica; e que para lá deste âmbito
terrestre existem esferas em cima de esferas, cada qual
mais ampla e mais alta, até por fim se chegar ao Empíreo —
o limite ou fronteira do mundo criado. Além disso, eles
sentiam existir um eixo a estender-se desde o Céu até a
Terra, à força do qual todas essas esferas se mantêm unidas
e em torno do qual giram. E eles intuíam ainda que a
relação de contenção expressa preeminência: o mais alto, o
mais excelente, contém o mais baixo, assim como a causa
contém o efeito e o todo, a parte.
Acrescentemos que, ao avaliar essas crenças antigas,
não devemos indispor-nos com seus prístinos proponentes
por serem eles, ao mesmo tempo que supostamente
capazes de alguma apreensão intuitiva das mais altas
esferas, patentemente ignorantes de coisas hoje em dia
conhecidas por qualquer ginasiano. Não precisamos, por
exemplo, ficar demasiado estarrecidos com o juízo emitido
por Ptolemeu de que o nosso planeta se mantém fixo no
espaço porque, “caso houvesse movimento, este seria
proporcional à grande massa da Terra e deixaria para trás,
atirados ao ar, os animais e objetos”.4 * Sim, infantil; mas
lembremo-nos de que o Livro da Natureza pode ser lido de
muitas maneiras e em vários níveis, e que ninguém sabe
tudo. Por certo, “há mais coisas no céu e na terra, Horácio,
do que sonha a tua vã filosofia”.
Retornando ao debate copernicano, agora fica evidente
que a mudança da astronomia geocêntrica para a
heliocêntrica não foi afinal um passo tão pequeno ou inócuo
como se poderia imaginar. Em todos os espíritos, exceto os
mais sagazes, ela minou e descreditou um simbolismo
cósmico que havia nutrido a humanidade por eras a fio.
Perdia-se aí a exemplificação visível dos âmbitos mais
elevados e o vivido senso de verticalidade que falava de
transcendência e de busca espiritual. Perdia-se aí o mundo
que havia inspirado Dante a compor sua obra-prima. Com o
ocaso da cosmovisão ptolemaica, o universo reduziu-se a
uma secção transversal horizontal — e a mais inferior.
Tornou-se para nós este mundo estreito, e assim ele
permanece mesmo com toda a miríade de galáxias com que
ultimamente temos sido regalados. A natureza ficou sendo
“um negócio enfadonho”, como diz Whitehead, “nada mais
que o precipitar infindável e absurdo de matéria”.
A essa avaliação do que estava em causa para valer no
debate copernicano se poderia objetar que a astronomia
heliocêntrica também ela admite uma interpretação
simbólica, uma vez que coloca no centro do universo o sol
— símbolo natural do Logos. Mas, mesmo assim, não se
mostrou a redescoberta do heliocentrismo por Copérnico
propícia a uma visão espiritual do mundo; “antes, compara-
se à perigosa popularização de uma verdade esotérica”,
como observa Titus Burckhardt.5 Cumpre lembrar que a
nossa experiência normal do cosmos é obviamente
geocêntrica, o que por si só já implica uma acessibilidade
muitíssimo maior do simbolismo ptolemaico. Ademais, a
vitória copernicana veio num tempo quando as tradições
religiosas e metafísicas do cristianismo já tinham caído num
estado de decadência parcial — a essa altura já não se
oferecia nenhum molde dentro do qual se pudesse trazer à
luz o conteúdo simbólico do heliocentrismo. Como assinala
Hossein Nasr, “a revolução copernicana desencadeou todos
os revezes espirituais e religiosos previstos pelos seus
oponentes, justamente por ter ocorrido numa época em que
a dúvida religiosa imperava por toda parte [...]”.6 O homem
europeu já não andava tão sintonizado com a leitura dos
símbolos transcendentais, e tinha perdido em grande parte
o contato com as mais elevadas dimensões da existência. E
é isso o que confere um certo ar de irrealidade ao debate
copernicano, e o que desde o início da contenda tornava
inevitável o triunfo da nova orientação. Já então a sabedoria
de tempos idos — assim como qualquer verdade que não
mais se compreende — tinha virado superstição, a ser
refugada e substituída por novos entendimentos, novas
descobertas.
COM O DESAPARECIMENTO da cosmovisão ptolemaica o
homem ocidental perdeu o seu senso de verticalidade, o seu
senso de transcendência. Ou melhor, essas percepções
mais sutis ficaram circunscritas à esfera religiosa, que assim
se isolou e se alheou do resto da cultura. No que dizia
respeito à cosmologia — à Weltanschanung no rigor do
termo —, a civilização europeia descristianizara-se.
Ao mesmo tempo se operava uma mudança radical na
percepção do homem sobre si mesmo. Devemos relembrar,
a este propósito, que de acordo com a crença antiga há uma
correspondência simbólica entre o cosmos na sua totalidade
e o homem, a criatura teomórfica que recapitula o
macrocosmo dentro de si. O homem é, pois, um
“microcosmo”, um universo em miniatura — motivo por que
se situa, simbolicamente falando, ao centro do cosmos. No
homem convergem todos os raios; ou, melhor dito, a partir
dele eles irradiam para fora em toda direção até as
extremidades do espaço cósmico — um fato místico que
achamos retratado graficamente em numerosos diagramas
antigos. A razão desse antropocentrismo, sem dúvida, é que
o homem, tendo sido criado “à imagem e semelhança de
Deus”, carrega no seu interior o centro do qual todas as
coisas brotaram. Daí que ele seja capaz de entender o
mundo e que o cosmos seja inteligível ao intelecto humano.
O homem tem aptidão para conhecer o universo porque,
num sentido, o universo preexiste dentro do homem.
Mas é claro que na perspectiva moderna isso tudo não
significa coisíssima nenhuma. Uma vez reduzido o cosmos
ao plano corpóreo, e este por sua vez aos seus parâmetros
puramente quantitativos, pouco sobra da analogia
supramencionada. A nossa anatomia física por certo não
semelha o sistema solar nem alguma nebulosa espiralada.
É primeiro de tudo nos aspectos qualitativos da criação,
tal como revelados a nós por meio dos instrumentos de
percepção concedidos por Deus, que o simbolismo cósmico
entra em jogo. Não surpreende, portanto, que pouco tenha
para dizer sobre o assunto uma ciência dedicada a visionar
a natureza por meio de instrumentos sem vida
confeccionados pela tecnologia.
Como quer que seja, junto com a teoria ptolemaica caiu
em esquecimento a antropologia antiga. Deixou o homem
de ser um microcosmo, um ser teomórfico postado ao
centro do universo, para se tornar uma criatura puramente
contingente, atribuível a tal ou qual sequência de acidentes
terrestres. Assim como o cosmos, ele foi aplanado, apartado
das dimensões mais elevadas do seu ser. Só que, no caso
do homem, a “mente” se recusa a ser exorcizada por
completo. Ela fica lá, como um incompreensível
concomitante da função cerebral, uma espécie de fantasma
na máquina, um negócio que causa indizível embaraço aos
filósofos. O fato é que o homem não se confina aos limites
do universo físico. A natureza humana tem um outro lado —
subjetivo que seja! — irredutível a descrições ou explicações
em termos físicos. De maneira que, ao adotar a nova
cosmovisão, o homem se acha um forasteiro num universo
desolado e inóspito; passou a ser uma anomalia precária,
uma aberração mesmo. Há algo de patético no espetáculo
deste “símio precoce”; e por trás de todo o estardalhaço e
bravataria sente-se uma terrível solidão e uma angústia
pervasiva. Foi comprometida a nossa harmonia e afinidade
com a natureza, quebrado o nosso íntimo vínculo com ela;
toda a nossa cultura ficou dissonante. Malgrado a nossa
ostentação de conhecimento, a natureza se nos tornou
ininteligível, um livro fechado; e até mesmo o ato da
percepção sensorial — o próprio ato em que se supõe estar
baseado o nosso conhecimento — se nos tornou
incompreensível.
O que dizer então do estupendo conhecimento da
ciência? E um conhecimento filtrado através de
instrumentos externos e partícipe na artificialidade desses
aparelhos inventados pelo homem. O que aí se conhece, a
rigor, não é a natureza, mas sim certos efeitos dela, ao ser
submetida a metódico monitoramento, sobre aquela
misteriosa entidade denominada “o observador científico”.
Trata-se portanto de um conhecimento positivista orientado
para a predição e o controle de fenômenos e, em última
instância, para a exploração de recursos naturais e a prática
da espoliação terrestre. Eufemismos à parte, a ciência —
como quase tudo o mais com que se ocupa o homem
moderno — está em via de tornar-se uma mera “técnica”,
no sentido tomado pelo sociólogo Jacques Ellul.
Enquanto isso, todos os aspectos ideais da cultura
humana, incluindo todos os valores e normas, são relegados
à esfera subjetiva, e a verdade ela própria subsumida à
categoria da utilidade. Tirados da frente o simbolismo e a
transcendência, resta apenas o útil e o inútil, o agradável e
o desagradável. Não há mais absolutos nem certezas,
somente um conhecimento positivista e sentimentos, uma
verdadeira pletora de sentimentos. Tudo o que pertença à
parte mais elevada da vida — à arte, à moralidade ou à
religião — passa a ser tido na conta de subjetivo, relativo,
contingente — numa palavra, “psicológico”. Já não é
concebível que valores e normas tenham alguma base na
verdade: como concebê-lo num mundo feito de “precipitar
infindável e absurdo de matéria”? O homem, assim, virou o
grande sofista: arvorou-se em “medida de todas as coisas”.
Tendo acabado de aprender a andar sobre as patas traseiras
(segundo ele acredita piamente), agora se julga um deus!
“Tão logo fechado o Céu e instalado o homem no lugar de
Deus,” escreve Schuon, “as medidas objetivas das coisas,
virtual ou efetivamente, perderam-se. Foram substituídas
por medidas subjetivas, pseudovalores puramente humanos
e conjecturais”.7
Assim também todos os elementos da cultura: uma vez
subjetivizados, tornaram-se presa fácil para os agentes da
mudança. Nada mais é sacrossanto, e enfim toda a gente
tem a liberdade para fazer o que bem entenda. Ao menos
na aparência; porque na realidade a manipulação da cultura
se consolidou como um empreendimento, um negócio em
que investem governos e outros grupos de interesse.
Por aí constatamos que, com efeito, “cosmologia implica
valores”; e, pode-se até dizer, cedo ou tarde acaba por virar
política. Uma pseudocosmologia, portanto, necessariamente
implica valores falsos e uma política destruidora do bem.
Não é coisa à toa ter amputadas de si as esferas superiores
e os ditames divinos. Esqueceu a nossa civilização o que é o
homem e a que se presta a vida humana; como observa
Nasr, “jamais foi tão escasso o conhecimento do homem, do
anthropos”,8 Ao que se poderia acrescentar que, até onde
se sabe, jamais uma cultura pregressa violou tantas normas
naturais e estabelecidas por Deus.
ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A ARTE talvez venham a
propósito neste passo. Notemos antes de tudo que a própria
concepção de arte veio a mudar. A palavra de fato adquiriu
novo significado: “arte” passou a sinônimo de “bela arte”,
uma coisa a ser desfrutada nas horas de lazer, normalmente
por gente abastada. Tornou-se um luxo, quase uma espécie
de brinquedo. Nos tempos antigos, em contrapartida, “arte”
designava tão-somente a habilidade ou sabedoria de
produzir coisas, e as coisas produzidas pela arte eram então
chamadas “artefatos”. Estritamente falando, era artefato
tudo aquilo que atendesse a uma legítima necessidade e
tivesse de ser fabricado pela indústria humana. Uma
ferramenta agrícola e uma espada, portanto, eram
artefatos, e era artefato um móvel ou uma casa, bem como
uma catedral ou um ícone ou uma ode. O artefato, ademais,
servia ao homem total, ao ser tripartite composto por corpo,
alma e espírito, de maneira que até o mais humilde
instrumento ou utensílio precisava possuir mais do que
simples “utilidade”, no sentido contemporâneo. Esse
“mais”, é claro, deriva-se do simbolismo, da linguagem das
formas, e é a razão por que um jarro pode ter imensa beleza
e significado. Não que essa beleza tivesse de sobrepor-se ao
objeto, feito um ornamento. Estava lá como um natural
concomitante da utilidade, ou “correção”, pode-se dizer, da
obra. Daí que nos tempos antigos havia uma íntima ligação
entre arte e ciência, e daí que disse Jean Mignot (arquiteto
da Catedral de Milão): “Arte sem ciência nada é” (ars sine
scientia nihil). Numa palavra, entendia-se que tanto a
utilidade como a beleza advêm da verdade.
Compreendia-se ainda que a autêntica arte não pode
nunca ser profana. Porque, relembremos, segundo o
ensinamento cristão, a Palavra ou Sabedoria eterna de Deus
é deveras o supremo Artista: “Tudo foi feito por Ele, e sem
Ele nada se fez”. Do sentido profundo deste texto bíblico
decorre que quanto seja feito em verdade ou com justeza é
feito por Ele e, logo, que todo artista humano — todo
autêntico artista — deve participar, em alguma medida, da
Sabedoria eterna. “Não pode a alma produzir obras vivas”,
escreve São Boaventura, “a menos que receba do Sol, isto
é, do Cristo, o benefício da Sua luz graciosa”.9 De maneira
que o homem, o artista humano, não é senão um agente;
para alcançar a perfeição em sua arte ele tem de se fazer
um instrumento nas mãos de Deus. A produção do artefato,
então, deve ser atribuída ao divino Artífice na proporção em
que seja beneficente e bem-feita — pois, afinal, “toda
dádiva excelente e todo dom perfeito vem do alto e
descende do Pai das luzes” (Tg 1, 17).
Até certo ponto essa doutrina é universal: guiou e
iluminou as artes da humanidade desde sempre até o
advento da idade moderna. Mesmo nas chamadas
sociedades primitivas toda arte, todo “fazer” era questão de
“fazer como faziam os deuses no princípio”. E este
“princípio” há de ser tomado em um sentido mítico, ou seja,
metafísico. Trata-se, fundamentalmente, do sempre
presente “agora”, daquele elusivo ponto de contato entre o
tempo e a eternidade; é o centro do universo, o “eixo em
volta do qual gira a primeira roda”. Como Mircea Eliade
demonstrou com farta documentação, as culturas
tradicionais são sabedoras deste centro universal e buscam
através de rituais ou outros meios simbólicos efetuar um
retorno para este ponto de origem, para este “princípio”. Aí
é que o homem conseguia renovar-se; daí ele derivava força
e sabedoria. E daí também, escusado dizer, ele obtinha
inspiração artística. Assim, por muito estranho que possa
soar a nós, o artista tradicional trabalha não tanto no tempo
quanto na eternidade. Sua arte de algum modo toma parte
no instantâneo “agora”; e isto explica o frescor dela, a
unidade e a animação nela tão manifestas. Não importa
quanto tempo leve a produção do artefato exterior:
interiormente a obra se consumou num átimo, de um só
lance.
Os escolásticos sem dúvida contam-se entre os herdeiros
dessa imemorial concepção de arte. É ela, com toda a
evidência, o que São Tomás tem em mente ao dizer que “a
arte, no seu modo de operar, imita a natureza”10 —
atendendo-se a que o termo “natureza” aí não está
empregado no sentido hoje corrente de natura naturata, a
natureza criada, mas no de natura naturans, o agente
criativo que não é outro senão Deus. O artista humano
imita, pois, o Artífice divino: à imitação da Santíssima
Trindade, ele opera “pela palavra concebida em seu
intelecto” [per verbum in intellectu conceptum),11 isto é, por
uma palavra ou “conceito” que espelha a Palavra eterna.
Também o homem “engendra uma palavra” em seu
intelecto; e nisso consiste o actus Primus da criação
artística.
Dessas considerações se segue existir um profundo
significado espiritual tanto no apreciar como no praticar a
autêntica arte. Por um lado, um artefato genuíno possuirá
certo carisma, uma beleza e uma significação que nenhuma
arte profana ou tão-somente humana poderia atingir — para
já nem falar da produção mecanizada. Exercerá sobre o
usuário ou apreciador uma influência invisível; beneficiá-lo-á
de maneiras insuspeitas. Mas, e isto é ainda importante, o
exercício da arte renderá ao artista não só remuneração
material como também recompensa espiritual. “A
manufatura, a produção de uma arte”, escreve
Coomaraswamy, “não é portanto a produção de utilidades,
mas sim, no mais alto sentido, a educação do homem”.12 É
uma via espiritual, um meio de aperfeiçoamento. E pode-se
mesmo dizer que a prática da arte deveria ser parte
integrante e normal da vida cristã: todos deveriam ser
artistas de alguma espécie, consoante a vocação de cada
um. No expressar de William Blake, “O grande negócio do
homem é a arte. [...] O homem improdutivo não é cristão”.
Sabe-se, contudo, que enquanto Blake escrevia esses
versos a Revolução Industrial ia a todo vapor e a arte perdia
cada vez mais espaço. Despontava a era da máquina, e
aquela espécie de manufatura que tanto transcendia a mera
“produção de utilidades” foi sendo depressa substituída pela
linha de montagem. Sabemos que a eficiência aumentou
cem vezes e o “padrão de vida” nunca foi tão alto; sabemos
também que a utopia prometida não chegou, e que
dificuldades imprevistas vêm pipocando em ritmo
acelerado. O que em geral não sabemos, porém, é que a
nossa civilização se empobreceu a um grau alarmante.
Estamos começando a tomar consciência da crise ecológica
e estremecemos às notícias de chuva ácida, mas ainda não
abrimos os olhos para a devastação espiritual que se alastra
em nosso redor há séculos. Falamos na “dignidade do
trabalho” e esquecemos que já houve um tempo quando a
manufatura era mais do que um ramerrão, uma estafa sem
sentido que os homens suportam só por causa da
retribuição pecuniária. Falamos na “vida abundante” e
esquecemos que felicidade não é folga, entretenimento ou
“dar um tempo de tudo”, e sim o espontâneo concomitante
da vida bem vivida. Esquecemos que o prazer não vem em
pílulas nem via tubos eletrônicos, mas por meio do que os
escolásticos denominavam “operação própria” — a essência
mesma da autêntica arte. Em suma, o que esquecemos
completamente é que “o grande negócio do homem é a
arte”.
Além da indústria, é claro, a nossa cultura também inclui
as “belas artes”, que, presume-se, estão aí para nos
fornecer as “coisas elevadas”. Ora bem, seja lá o que se
possa dizer em favor dessas produções, não se discute que
elas são, na grande maioria, desprovidas de qualquer
conteúdo metafísico. Nossa arte há muito deixou de ser
“retórica” e passou a ser “estética”, como apontou
Coomaraswamy; dito de outro modo, ela já não visa a
proporcionar iluminação, somente prazer. Descabe às
nossas belas artes “tornar inteligível a verdade primeira,
tornar audível o inaudito, enunciar a palavra primordial,
representar o arquétipo”, o que na perspectiva tradicional é,
com efeito, “a tarefa da arte, senão não é arte”, segundo
observa Walter Andrae.13 E, por mais sublime que seja essa
“bela arte”, ela não diz respeito às “coisas invisíveis de
Deus” porque o criador dela é apenas um homem — um
gênio, porventura, mas ainda um homem. À diferença da
arte antiga, ela não se deriva do “acima”, nem se refere a
realidades espirituais ou a Deus, Aquele “que não é de bom-
tom mencionar na sociedade elegante”.14 De fato, em
conformidade com a generalizada tendência subjetivista, a
arte foi-se tornando cada vez mais uma questão de “auto-
expressão”, a ponto de o contingente, o trivial e o baixo
hoje monopolizarem a cena. Atingiu-se um estágio em que
muito da arte é pura e simplesmente subversivo — basta
recordar aqueles quadros bizarros de evidente inspiração
freudiana que bem podiam ter sido pintados entre as
paredes de um manicômio! A história da arte moderna nos
ensina que o tão-somente humano, desligado da tradição
espiritual e do toque de transcendência, é instável; sem
tardar, degenera no infra-humano e no absurdo.
HÁ ENTRE A METÁFORA DA MÁQUINA como concepção
cosmológica e a criação de uma sociedade tecnológica uma
íntima conexão. Lembremo-nos de que a máquina não tem
outra razão de existir senão a de ser usada. Quando a
natureza, portanto, é encarada como nada mais que uma
máquina, por via de regra virá a ser enxergada como
simples objeto de exploração em potencial, uma coisa a ser
usada de todas as maneiras possíveis com vistas ao lucro
do homem. As duas atitudes, ademais, andam de mãos
dadas; pois, como faz notar Roszak, “só quem crê viver num
mundo morto, estúpido ou alheio e portanto indigno de
reverência poderia jamais arremeter ao meio ambiente [...]
com a rapacidade fria e calculista da civilização industrial”.15
Daí não surpreender que, mal havia o postulado do
mecanismo cósmico ganhado reconhecimento oficial, os
homens, em escala sem precedentes, se pusessem a
construir suas próprias máquinas para utilizar as forças da
natureza — e assim desembocou o Iluminismo na Revolução
Industrial.
Mas a história não termina aí. Porque na perspectiva da
nova cosmologia é inevitável que o homem, também ele,
acabe por ser visto como uma espécie de máquina. O que
mais ele poderia ser num universo newtoniano? E, seguindo
o fio do pensamento científico moderno, se é o homem uma
máquina, também o é a sociedade, e o comportamento
humano só pode ser determinístico: Newton, La Mettrie,
Hobbes e Pavlov estão claramente alinhados na mesma
trajetória. E esses novos reconhecimentos — ou melhor,
essas novas premissas — abrem possibilidades
incalculáveis! Atinemos com isto ou não, a rigorosa e
impassível dialética da ciência em sua realidade concreta
conduz passo a passo à formação de uma sociedade
tecnológica, no pleno e assustador sentido do termo.
Vamos examinar a questão com mais detença. Para
entender o processo científico é necessário recordar uma
ideia crucial que remonta não tanto a Newton quanto a
Descartes e se associa em especial ao nome de Francis
Bacon (o primeiro dos dois “arquivilões” na visão blakeana
da Ciência Triunfante). O contributo de Bacon reside na sua
concepção de um método universal e oniabrangente para a
aquisição sistemática de conhecimento. Em primeiro lugar,
o processo científico é tomado como coletivo e acumulativo,
um empreendimento que a todo momento ganha impulso;
assim, o “negócio” do conhecer não deveria ficar na mão do
indivíduo, mas sim ser levado adiante por equipes de
especialistas, como diríamos hoje. E, não à toa — é esta sua
segunda característica notável —, o processo há de ser
executado “como que por um maquinário”. Lá vem de novo,
tudo conquistando e tudo devorando, a metáfora da
máquina! Só que desta vez em novíssima chave: como
princípio metodológico. De modo contundente, Bacon passa
daí a observar quão insignificantes seriam os feitos dos
“homens mecânicos” se eles trabalhassem somente com as
próprias mãos, sem o auxílio de ferramentas e instrumentos
inventados pelo engenho humano. Mutatis mutandis, nós
pouco conseguimos ao tentar adquirir conhecimento “à
força do entendimento por si só”: também no domínio
mental precisamos de uma ferramenta, um instrumento
intelectual. Eis justamente o que se propõe oferecer o
célebre método científico de Bacon, o novum organum.
“Uma nova máquina para a mente”, chama-lhe ele. E, como
toda máquina, essa está aí para ser usada em favor do
lucro. A verdade e a utilidade, garante-nos Bacon, “são aqui
uma só e mesma coisa”.
Em retrospecto, verificamos que, conquanto se tenham
provado relativamente inúteis as receitas específicas de
Bacon para a descoberta científica (como já muitos
assinalaram), o seu sonho de uma ciência sistemática e
coletiva em que “o conhecimento humano e o poder
humano se fundem” decerto foi realizado acima das suas
mais altas expectativas. O que triunfou não foi tanto alguma
“máquina para a mente” específica, mas sim a ideia de
método ou técnica como algo formal e impessoal a interpor-
se entre o conhecedor e o conhecido. E este intermediário
artificial, ao passo que isolou o conhecedor, que lhe obstruiu
o acesso direto à realidade, possibilitou o desenvolvimento
de um conhecimento formal e despersonalizado, baseado
nos labores sistemáticos de investigadores incontáveis.
Primeiro, desenvolveu-se a física clássica e o que se poderia
denominar a tecnologia “dura”; mais tarde surgiram as
modernas ciências biológicas, e depois ainda as chamadas
ciências comportamentais e sociais. Enquanto isso, ia o
processo de cientização transpondo as raias de cada ciência
formalmente reconhecida, até vir a exercer influência
dominante sobre outros campos. “Dentro do ambiente
artificial, o conhecimento científico torna-se o modo
ortodoxo de conhecer; a ele se submete tudo o mais”,
escreve Roszak. “O estilo mental lançado pelo cientista
natural não tarda a ser imitado em todos os quadrantes da
cultura”.16 Assim é que, em nossos dias, este “estilo mental”
se espalhou por todo canto; adentrou claustros e conventos.
Virou uma marca de esclarecimento, de respeitabilidade
intelectual; “a ele se submete tudo o mais”. Como Bacon
percebera com argúcia, em princípio a cientização da
cultura não encontra limites: deixado à rédea solta, o
processo há de insinuar-se em cada esfera do pensamento e
cada atividade humana.
É óbvio para todos nós que nossos estilos de vida
exteriores vêm sofrendo alterações drásticas em direta
consequência do avanço científico. O que geralmente nos
escapa, contudo, é que não é menos pronunciado o impacto
desse mesmo desenvolvimento sobre a nossa vida interior
— sim, sobre o estado da nossa alma. Para começar, a
mecanização do nosso ambiente de trabalho, o fenômeno
da expansão urbana, o congestionamento avultante e o
barulho perpétuo, a proliferação do concreto, do aço e do
plástico, a perda de contato com a natureza e com as coisas
naturais, a invasão dos nossos lares pela comunicação de
massa — isso tudo em si já não pode deixar de impactar a
nossa condição mental e emocional. Acrescente-se o
desarraigar de gentes do seu ambiente ancestral — uma
mobilidade humana sem precedentes a embaralhar
populações como a um maço de cartas. Somem-se ainda os
outros inumeráveis mecanismos por meio dos quais a
sociedade tecnológica tende a derrubar cada divisão natural
e desmanchar todo laço cultural. E, de mais a mais,
adicionem-se todos os fatores que homogeneízam e
nivelam. Porque, não nos esqueçamos, também as pessoas
têm de ser padronizadas, tal qual peças intercambiáveis de
uma máquina, a termo que as engrenagens da civilização
mecanizada girem nos conformes, com eficiência máxima.
É de notar, ademais, que no decurso do século XX esse
nivelamento, que começou com a Revolução Industrial, veio
ingressar numa nova fase por efeito das ciências
comportamentais e sociais. Ora bem, sob uma óptica
puramente acadêmica essas disciplinas se mostram um
tanto irrelevantes; afora as informações factuais
acumuladas por elas (grande parte na forma de dados
estatísticos), parece que aí mal se pode falar em “ciência”.
Os adereços da ciência (termos empolados e pilhas de
formulário contínuo) sem dúvida estão lá, mas muito pouco
da sua substância — pelo menos enquanto ainda se
considere condição sine qua non para o processo científico a
objetiva verificação de hipóteses sem subterfúgios nem
embustes. E essa deficiência é ocasionalmente admitida
pelos próprios membros da profissão. Stanislav Andreski,
para dar um exemplo, teceu observações perspicazes sobre
assuntos como “A cortina de fumaça do jargão”,
“Quantificação como camuflagem”, “A ideologia por baixo
da terminologia” e, o mais importante de todos,
“Tecnototemismo e criptototalitarismo”.17 Pronto! Aí está o
busílis: ao examinarmos de perto essas pseudociências
descobrimos que elas se encaixam à justa no quadro da
sociedade tecnológica. Aqui voltamos a topar com um tipo
de “conhecimento” que gera poder. Como já vimos no caso
da psicologia freudiana e junguiana, uma pseudociência
pode ter lá a sua “utilidade”, a sua eficácia técnica. E, se
Voltaire dizia que até o ato de mentir se torna “virtuoso”
quando praticado para a finalidade certa, então por que,
numa civilização pragmática, não deveriam essas técnicas
humanas passar por ciência e seus dogmas por verdade?
Seja como for, o nosso século vem testemunhando um
assombroso aumento na utilização, por governos, indústrias
e outros grupos de interesse poderosos, de métodos
baseados nas chamadas ciências comportamentais e
sociais. Talvez venha ao caso relembrar aqui uma conhecida
história sobre Pavlov: conta-se que, logo após a Revolução
Bolchevique, o afamado cientista foi praticamente
aprisionado no Kremlin e intimado a escrever um livro
descrevendo em detalhes como poderiam os métodos
comportamentais fundados na sua teoria dos reflexos
condicionados ser aplicados à doutrinação e controle de
seres humanos. Seja ou não verdade que Lênin, ao ler o
livro, haja exclamado a Pavlov: “O senhor salvou a
revolução!” — sabe-se de certeza que os métodos
pavlovianos foram usados à larga na União Soviética, e que
também nas democracias ocidentais se têm desenvolvido e
aplicado técnicas similares.18
Isso, contudo, não exclui o fato de que a vasta maioria
das pessoas, quer na Rússia quer nos Estados Unidos, mal
ouviram falar no processo e nem sequer conseguem
imaginar até que ponto ele já influenciou as emoções e a
constituição psíquica delas. Como observou Jacques Ellul, ao
tratar da propaganda política enquanto técnica humana:
 
A propaganda política tem de ser natural como ar ou
comida. Deve atuar por inibição psicológica e causar o
mínimo de choque possível. O indivíduo então fica apto a
declarar com toda a sinceridade que não existe nada
disso de propaganda, havendo-se absorvido nela a ponto
de, literalmente, já não conseguir enxergar a verdade. A
natureza do homem se imiscuiu tanto na propaganda
que tudo passa a depender não de escolha ou de livre
arbítrio, mas de reflexo e de mito. A prolongada e
hipnótica repetição do mesmo complexo de ideias, das
mesmas imagens e dos mesmos rumores condiciona o
homem a assimilar sua própria natureza à propaganda.19
 
Mais ou menos o mesmo se poderia afirmar de muitas
outras técnicas humanas além da simples “propaganda” no
sentido estrito. E de esperar, assim, que na nossa espécie
de civilização quase todo “encontro” organizado — desde o
jardim-de-infância até seminários de pós-graduação —
contenha algum elemento de doutrinação velada. Como
demonstra Ellul, a educação praticamente inteira — de
ambos os lados da Cortina de Ferro — envolve mecanismos
de condicionamento e controle projetados para ajustar o
indivíduo aos planos da sociedade.20 Mesmo o nosso lazer
“está atulhado de mecanismos técnicos destinados à
compensação e à integração”, os quais, embora diferentes
dos do ambiente profissional, “são invasivos e exigentes, e
não deixam o homem mais livre do que o próprio labor”.21
Nos últimos anos até os retiros religiosos e sacerdotais têm
sido infestados pelos métodos científicos do “treinamento
de sensibilidade”! E um erro gravíssimo achar que a
sociedade tecnológica possa ser “culturalmente neutra”, ou
que o “pluralismo” tão celebrado nos países ocidentais
possa ser algo mais que uma fase passageira ou uma
completa farsa. “Cosmologia implica valores”, insistimos, e
sem dúvida alguma a manipulação do homem — o “recurso”
mais vital dentre todos — constitui o ápice da tecnologia.
EMBORA SEJA CERTO que no plano sociológico a ciência
gera tecnologia, não se pode negar também que em sua
forma mais pura a ciência é tão-somente a busca do
conhecimento por si mesmo. Assim como a filosofia, ela
surge do espanto, ou de uma certa curiosidade pela
natureza; e, sobretudo com relação aos grandes cientistas
— um Einstein ou um Schrödinger —, constatamos que a
força motriz por trás das suas investigações científicas está
a mundos de distância de qualquer pensamento em
aplicação. Basta relembrarmos a aflita relutância com que
Einstein entregou sua fatídica fórmula ao serviço do Mundo
Livre quando as duras condições da época pareciam exigir-
lho. E uma das maiores ironias do destino que o caminho
para criar os mais terríveis instrumentos de destruição
tenha sido aberto por homens que primavam pelo amor à
paz, e os mais poderosos meios de escravidão se devam a
notáveis paladinos da liberdade humana.
Paremos para refletir um pouco na ideia de conhecer por
conhecer. Em que pese aos nossos sentimentos, não existirá
uma intrínseca ligação entre essa nobre missão e tão
amargo fruto? Tolice, dirão os humanistas; e, havemos de
convir, em nossos tempos se tornou uma premissa quase
universalmente aceita que a desenfreada busca pelo
conhecimento constitui uma das mais benéficas e louváveis
ocupações humanas. Ninguém parece ter a menor dúvida
de ser a “pesquisa”, seja de que caráter for, uma maravilha
fadada a elevar, por alguma via misteriosa, “a dignidade do
homem” ou “a qualidade de vida”. Não raro nos deparamos
com sujeitos até do gênero mais prosaico erguendo
eloquentes e rasgadas loas àqueles que “fizeram recuar as
fronteiras do desconhecido”. Nossas bibliotecas já estão
abarrotadas dos produtos dessa grande paixão, e contudo o
brado é sempre por mais. E mesmo quando alguém vem a
reconhecer que os frutos desse conhecimento — as
consequências de tê-lo aplicado — se provaram
questionáveis ou ameaçadores à própria sobrevivência do
homem, mesmo então nem sequer lhe passa pela cabeça
responsabilizar a ciência. A culpa deve ser lançada sempre
aos empresários gananciosos ou aos políticos corruptos, ou
recair sobre os parlamentares imediatistas a quem se
imputa o subfinanciamento da pesquisa. Porque, sim,
pensa-se que todos os males resultantes da “pesquisa e
desenvolvimento” serão curados, homeopaticamente, com
ainda mais e mais doses de P&D; pelo jeito, não ocorre a
ninguém a possibilidade de a moléstia ser agravada não por
insuficiência, senão por excesso de dosagem.
Dê no que der, a ciência pura — a ciência com C
maiúsculo — não erra jamais. É impressionante que numa
era de ceticismo sem precedentes, quando crenças
imemoriais vêm sendo atiradas fora como brinquedos
velhos ou levianamente expostas à ridicularização pública,
encontremos uma fé quase que sem limites na infalível
beneficência da pesquisa científica.
O que se acha por trás desse desejo compulsivo por cada
vez mais ciência, cada vez mais tecnologia — dessa mania,
fica-se tentado a dizer, que tomou conta da nossa
civilização? Doutrinação? Sim, sem dúvida; mas quem foi
que doutrinou primeiro os educadores e os tecnocratas? A
questão não é tão simples assim. Tampouco podemos
esperar compreender o fenômeno a fundo desde as
perspectivas típicas do pensamento humanista. Acaso não
têm sido a mentalidade humanista e a científica como unha
e carne desde o início? Não é o humanismo tanto quanto a
ciência uma manifestação característica do nosso Zeitgeist?
Não partilham os dois uma veia antitradicional em comum?
Não estiveram ambos implicados, por exemplo, na
Revolução Francesa, quando “a deusa Razão” foi
entronizada no altar-mor de Notre Dame? E, à parte o
interlúdio do Romantismo, não se aliou um com o outro em
quase todas as causas? Parece impossível, assim, fazer uma
crítica percuciente à ciência que não o seja também ao
humanismo. Para ir além das aparências e banalidades
precisamos sair do círculo encantado das pressuposições
contemporâneas e valer-nos da única viável alternativa ao
pensamento moderno: e tal é o pensamento tradicional.
O que então tem o ensinamento tradicional para dizer a
respeito da ciência? Propomos examinar a questão dum
ponto de vista especificamente cristão; e, mesmo sob o
risco de dizer o que só pode ser “loucura para os gregos”,
tentaremos colocar-nos numa perspectiva autenticamente
bíblica. Isto significa, em particular, que precisamos refletir
mais uma vez em uma história que já suscitou tantas
reflexões: o relato de Gênesis sobre o “fruto proibido” e a
queda de Adão, sua expulsão do “jardim do paraíso”.
Primeiro de tudo, não nos contentemos com a explicação
costumeira deste evento, baseada no ponto de vista moral
por oposição ao metafísico. Está muito bem que se atribua a
queda de Adão ao “pecado da desobediência”, e isso sem
dúvida expressa uma verdade profunda e vital; mas cumpre
perceber que essa linha de intepretação, por válida que
seja, não tem como cobrir o terreno todo. Para começar, ela
não esclarece a razão por que Deus mandou Adão abster-se
apenas deste fruto em particular entre todos os demais,
nem a razão de Ele chamar à árvore que dá esta colheita
proibida “a árvore da ciência do bem e do mal”. Ademais, é
lícito supor não só que “o fruto do conhecimento” era fatal
porque estava proibido, mas ainda que estava proibido
justamente porque se provaria fatal ao homem. Além disso,
não devemos confundir o “bem” que seria conhecido
mediante o ato de comer o fruto com aquele bem
verdadeiro ou absoluto que a religião sempre associa ao
conhecimento de Deus; e tampouco devemos julgar ser o
“mal” que vem a ser revelado pelo mesmo ato uma coisa
objetivamente real, criada por Deus. Porque, com efeito, o
primeiro capítulo de Gênesis já nos informou reiteradas
vezes que Deus passou em revista a criação inteira e viu
que tudo aquilo era “bom”. O conhecimento simbolizado
pelo fruto proibido, portanto, é um conhecimento parcial e
fragmentário — um conhecimento que não capta a absoluta
dependência de todas as coisas para com o seu Criador, um
conhecimento limitado a apreender o mundo não como uma
teofania, mas como uma sequência de contingências: não
sub specie aeternitatis, mas sob o aspecto da
temporalidade. E é só neste mundo despedaçado, onde
todas as coisas se encontram em estado de fluxo perpétuo,
que o mal e a morte entram em cena. De maneira que, por
um lado, eles entram como o inescapável concomitante de
um conhecimento fragmentário, um conhecimento de coisas
conforme divorciadas de Deus; e, por outro lado, entram
como as nefastas consequências da “desobediência” — do
abuso da liberdade concedida por Deus — e portanto como
“o salário do pecado”.
Assim caiu Adão. “O vínculo com a Fonte divina foi
quebrado e tornou-se invisível”, escreve Schuon; “de súbito
o mundo se fez externo a Adão, as coisas ficaram opacas e
pesadas, ficaram como fragmentos ininteligíveis e hostis”.22
Por outras palavras, veio à existência o mundo tal como o
conhecemos: começou a história. E nela estamos: a
narrativa bíblica de fato tem máxima pertinência ao que
acontece aqui e agora; porque, como ressalta Schuon, “esse
drama está sempre a repetir-se, tanto na história coletiva
quanto na dos indivíduos”.23 A queda de Adão, então, não é
apenas um ato primordial prévio à história, mas também
algo que volta a suceder de novo e de novo no curso dos
eventos humanos. E reencenado em menor ou maior escala
sempre que os homens optam pelo contingente e efêmero
em lugar da verdade eterna.
Ao que tudo indica, deu-se mesmo uma “queda” de
enormes proporções entre os séculos XIV e XV. Até a leitura
mais casual da história europeia revela os contornos de uma
transformação descomunal: ruía a velha ordem e nascia um
novo mundo. Por certo, essa é metamorfose cultural que
normalmente contemplamos sob as cores da evolução e do
progresso; apenas, passou-nos despercebido que na
barganha perdemos o nosso senso de transcendência. Ou
seja, tornamo-nos sofisticados, céticos e profanos. Por mais
iluminados que possamos almejar ser, a sabedoria das eras
ficou sendo para nós uma superstição, um mísero vestígio
dum passado supostamente primitivo; ou, na melhor das
hipóteses, é vista por nós como literatura ou poesia no
sentido exclusivamente horizontal que hoje ligamos a esses
termos. Goste-se ou não, achamo-nos num cosmos
dessacralizado e aplanado, um universo sem sentido que
atende sobretudo às nossas necessidades animais e à nossa
curiosidade científica.
Admitamos, há compensações. A energia foi desviada
dos planos superiores para os inferiores, e sem dúvida isto
explica o incrível vigor com que a modernização do nosso
mundo vai sendo tocada adiante e tudo na terra se
transforma a olhos vistos. Enfim o homem é livre para se
dedicar por inteiro ao mundano e à porção efêmera de si
mesmo. E a tal ele se entrega não somente com esforço
hercúleo, mas com uma espécie de religiosidade. Aí está
uma das características mais salientes do nosso tempo:
objetivos transitórios e desígnios seculares — até os mais
triviais e inglórios — investiram-se de uma sacralidade,
pode-se quase dizer, que em eras passadas ficava
reservada para a adoração a Deus. Mas por quê? A que vem
tudo isso? “Equipado como é, pela própria natureza, para a
adoração,” escreve Martin Lings,
 
o homem não pode não adorar; e, se se amputa da
sua cosmovisão o plano espiritual, ele vai achar um
“deus” para adorar num nível inferior, aí dotando uma
qualquer coisa relativa com o que pertence unicamente
ao Absoluto. Donde haver nos tempos atuais tantas
“palavras de invocação” como liberdade, igualdade,
letramento, ciência, civilização — palavras à prolação das
quais multidões de almas caem prostradas em veneração
submental.24
 
Tudo depende de como percebemos o mundo, de qual a
qualidade, por assim dizer, do nosso conhecimento. É nossa
visão do universo centrípeta? Está orientada para o centro
espiritual? Regula-se por um senso de verticalidade, por
uma intuição das esferas mais altas? Ou é, ao contrário,
horizontal e centrífuga, um conhecimento que se desvia
para longe do centro, para longe da Fonte? Ora, esta é a
espécie de conhecimento que perpetua a Queda. Sempre
mesclada de ilusão, é uma sabedoria profana que dispersa e
transvia. É, ademais, algo a que não temos direito em
virtude do que somos; como comida inassimilável, sua
própria verdade acaba por se converter em veneno para
nós. Esse conhecimento nunca nos ilumina, somente cega
nossa alma; fecha os portões do Céu e abre o caminho para
as riquezas da terra, junto com as inomináveis misérias
dela. O terrível fato é que uma ciência prometeica, uma
ciência que faça do homem a medida e o senhor de todas
as coisas (“sereis como deuses”), no fim, vira uma maldição
(“maldita seja a terra por causa de ti; a duras penas tirarás
dela o teu sustento”).
 
Notas
 
CAPITULO VII - O “PROGRESSO” EM RETROSPECTO
 
1. Where tbe Wasteland Ends. Garden City, NY: Doubleday, 1973, p. 200.
2. Ibid., p. 17.
3. Alusão a uma famosa frase atribuída a Newton — proferida, acredita-se,
pouco antes da sua morte: “Não sei que imagem o mundo faz de mim, mas a
mim próprio eu me afiguro um menino brincando à beira do mar e de vez em
quando me distraindo ao achar um seixo mais polido ou uma concha mais
bonita que o normal, enquanto o grande oceano da verdade se estende à minha
frente todo ele ainda não descoberto”. — NT
4. Apud: E.A. Burtt, The Metaphysical Foundations of Modem Physical Science.
Nova York: Humanities Press, 1951, p. 35.
5. “Cosmology and Modern Science”. In: Jacob Needieman (org.), The Sword of
Gnosis. Baltimore: Penguin, 1974, p. 127.
6. Man and Nature. Londres: Allen 8c Unwin, 1976, p. 66.
7. Light on the Ancient Worlds. Londres: Perennial Books, 1965, p. 30.
8. “Contemporary Man, between the Rim and the Axis”. In: Studies in
Comparative Religion, v. 3, n. 2, primavera de 1969, p. 116.
9. De Reductione Artium ad Theologian, 21.
10. Suma teológica, 1,117,1.
11. Ibid., 1, 45, 6.
12. Christian and Oriental Pbilosophy of Art. Nova York: Dover, 1956, p. 27.
13. Apud: A.K. Coomaraswamy, op. cit., p. 55.
14. Ibid., p. 20.
15. Where the Wasteland Ends, pp. 154-5.
16. Ibid., p. 31.
17. Social Sciences as Sourcery. Londres: Deutsch, 1972.
18. Ver William Sargant, Battle for the Mind. Westwood, CT: Greenwood, 1957.
19. The Teckttological Society. Nova York: Alfred Knopf, 1965, p. 366.
20. Ibid., p. 347.
21. Ibid., p. 401.
22. Light on the Ancient Worlds, p. 44.
23. Ibidem.
24. Aitcient Beliefs and Modem Superstitions. Londres: Perennial, 1965, p. 45.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Este livro foi impresso pela Gráfica Daikoku.
O miolo foi feito com papel chambrill avena
80g, e a capa com cartão triplex 250g.

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