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I.2.

Da Pragmática

[Comunicação feita no Departamento


de Psicologia da UFF. Maio de 1993]

De saída, é importante não confundir pragmática e pragmatismo. Por


pragmatismo, devemos entender uma escola de filosofia iniciada por Charles S. Peirce
(1839-1914) e cultivada por William James (1842-1910) e John Dewey (1859-1952).
Por pragmática, devemos entender um subdomínio de investigação dentro do domínio
da Semiótica moderna, tal como mapeada por Charles Morris na sua obra Foundation
of The Theory of Signs (1938). Dizemos Semiótica “moderna” para fazer uma
distinção em relação à tradicional, cuja história parece ter começado com a escola
estóica e, após um longo período de esquecimento, foi retomada pelos trabalhos de
Peirce nos finais do século XIX. Por Semiótica, os estóicos intitulavam um campo de
estudos em que se procurava partir de uma teoria dos sinais e, posteriormente, articulá-
la com uma teoria das inferências (Mates, 1973).
Por desaguar onde desaguava, Peirce, seguindo a trilha dos estóicos, considerou
que Semiotike nada mais era que outro nome para aquilo que se costuma entender por
lógica. Por ir além de uma teoria dos sinais, a Semiótica – tanto a proposta pelos
estóicos como a proposta por Peirce – não deve ser confundida com aquilo que o
lingüista suiço-francês F. de Saussure (1954) denominou Semiologia e definiu como
“uma teoria dos sinais na vida social”. Não só há uma diferença quanto aos limites do
campo de estudo, como também outra quanto à própria definição de “sinal” (ou “signo”,
caso se prefira). No seu artigo Classificação dos Sinais, Peirce não se afasta da linha
geral do projeto de estudo dos estóicos quando afirma que: “A lógica, em sentido geral,
é – como entendo ter demonstrado – apenas outra denominação da semiótica: a quase-
necessária ou formal doutrina dos sinais”. (Peirce, 1932).
Na sua visão de semiótica, Morris pretendeu se limitar a uma teoria dos sinais,
deixando de lado uma teoria das inferências; mas isto não significa dizer que sua
concepção estivesse mais próxima da concepção de Semiologia proposta por Saussure e
desenvolvida amplamente no mundo filosófico francês e latino em geral (Hervey,
1982). Na realidade, Morris se afastou da linha de pesquisa antes proposta por Peirce, à
medida mesma que retomou uma antiga tradição britânica proveniente de Hobbes,
Locke e outros pensadores ingleses do século XVII (Land, 1974). No mapeamento do
seu campo de investigação, Morris retomou a peirciana divisão tricotômica dos
domínios da linguagem em: (1) a sintaxe, que trata das relações internas entre os sinais,
(2) a semântica, que trata das relações entre os sinais e os objetos a que estes se aplicam
e (3) a pragmática, que trata das relações entre os sinais e seus intérpretes, i.e. os
usuários da linguagem.
Essa repartição de domínios, bem como as caracterizações de cada um, são
geralmente aceitas até hoje pela maioria dos filósofos da linguagem e lingüistas, ao
menos no contexto do pensamento anglo-germânico em que a Semiologia de Saussure
não exerceu uma influência tão marcante e abrangente como a exercida sobre o
pensamento francês e latino em geral.
Contudo, como adverte Levinson (1990, pp.103-4), há uma significativa
diferença entre Morris e os aludidos filósofos e lingüistas contemporâneos, no tocante à
questão da extensão do campo de estudo da pragmática. Para estes – assim como para o
próprio Levinson, que é autor de um volumoso tratado sobre o assunto – o campo de
estudo é muito mais restrito do que o definido por Morris na sua já mencionada obra:

É uma caracterização suficientemente acurada da pragmática dizer que


ela lida com os aspectos bióticos da semiose, quer dizer: com todos os
fenômenos psicológicos, biológicos e sociológicos, que ocorrem no
funcionamento dos sinais (Morris, 1938, p.108)

Como observou Max Black (1947) – um conhecido filósofo da linguagem –


Morris expandiu consideravelmente o domínio de investigação da pragmática em
virtude da sua particular teoria behaviorista da Semiótica. A maioria dos investigadores
contemporâneos, por sua vez, afastaram-se do projeto de Morris ao menos em dois
pontos relevantes: (1) Reservaram para a pragmática um campo de investigação muito
mais modesto, basicamente restrito ao uso da linguagem tal qual feito pelos agentes
lingüísticos, os usuários da linguagem e (2) embora não costumassem fazer nenhum
apelo à psicanálise ou a qualquer outra forma de psicologia introspeccionista, também
não costumam se comprometer com um behaviorismo estrito como o de J. Watson e o
do do próprio C.Morris. No que diz respeito à concepção de pragmática aventada por
este último, diz Levinson:

Tal escopo é muito mais amplo do que o dos trabalhos feitos hoje sob
a rubrica de pragmática lingüística (linguistic pragmatics), uma vez
que ele incluía o que é hoje conhecido como psicolingüística,
neurolingüística, entre outras especialidades. (Levinson, 1983, p.2).

Desse modo, pode-se detectar na pragmática de Morris o mesmo que se pode


surpreender no caso de outras teorias filosóficas pioneiras, que acabaram se
transformando em diversas especialidades de investigação científica ou ao menos
reivindicadoras de um status de cientificidade. Todavia, no que diz respeito
especificamente à pragmática proposta pioneiramente por Morris, é incorreto pensar que
uma teoria filosófica simplesmente desapareceu do cenário, à medida mesma que gerou
seus rebentos científicos. Pode-se dizer que o objeto estrito da referida disciplina –
definido como: “as relações entre os sinais e seus intérpretes, i.e. os usuários da
linguagem” – continua sendo compreendido assim até hoje. E foi assim que recebeu
uma importante tematização feita pelo “segundo” Wittgenstein (1969), o das
Investigações Filosóficas (Philosophische Untersuchungen) .
É correto dizer que o referido autor jamais empregou a palavra “pragmática”,
mas isto é tão irrelevante quanto o fato de Aristóteles jamais ter empregado a palavra
“lógica”, mas sim analítica, e Newton nunca ter ser servido da palavra “física”, porém
da expressão philosophia naturalis. Apesar destas constatações, não devemos chegar à
estapafúrdia conclusão de que Aristóteles não estava voltado para o que hoje chamamos
de “lógica” e Newton não estava voltado para o que hoje chamamos de “física”.
Há diferentes interpretações sobre a passagem do primeiro Wittgenstein – o do
Tratado Lógico-Filosófico para o segundo – o das Investigações Filosóficas; porém,
pondo de lado essa complexa e intrincada questão hermenêutica, consideramos ser
bastante razoável sustentar a idéia de que as preocupações do primeiro se concentraram
no domínio da semântica e no da assim chamada análise lógica da linguagem, tal como
esta já tinha sido desenvolvida por B. Russell em Cambridge.
Mas as preocupações do segundo deslocaram-se para o domínio da pragmática e
da assim chamada análise da linguagem comum, tal como esta já tinha sido
desenvolvida também em Cambridge por G.Moore. A conhecida teoria pictórica da
linguagem – tal como exposta no Tratado – é uma tentativa de esclarecer as relações
entre linguagem e mundo estribada na tese central de que “Os limites da minha
linguagem são os limites do meu mundo” [onde o “minha” e o “meu” não devem ser
entendidos como expressão de individualidade e se tornam mais claros quando
substituídos por “nossa” e “nosso”]. R. Jakobson costumava dizer que, “no domínio da
linguagem, não há propriedade privada” e o próprio Wittgenstein (Kripke, 1982)
construiu um argumento destinado a mostrar a impossibilidade de uma linguagem
privada.
O projeto de esclarecer as relações entre linguagem e mundo parece estar muito
perto do de esclarecer “as relações entre os sinais e os objetos a que estes se aplicam”,
conforme C. Morris (1938) definiu a finalidade básica da semântica. Contudo, há uma
significativa diferença entre, de um lado, lingüistas e semioticistas (como Morris,
Saussure e outros) e de outro filósofos como Russell, Frege, Moore e Wittgenstein.
Os primeiros costumam entender que a semântica envolve fundamentalmente a
questão do significado e não costumam se mostrar interessados na questão da verdade –
entenda-se na da assim chamada “verdade proposicional”, ou seja: o que faz com que
uma proposição seja verdadeira e outra, falsa. Os segundos costumam entender que a
semântica envolve fundamentalmente duas questões distintas, porém estreitamente
relacionadas: a do significado – que, a partir de Frege (1960) foi desmembrada em a
questão do sentido (Sinn) e a questão da referência (Bedeutung) – e a da verdade
(tendo como pressuposto que esta consiste em uma correspondência ou adequação entre
uma proposição e um estado de coisas e, por isto mesmo, é também uma relação entre
linguagem e mundo). Em uma passagem do Tratado, Wittgenstein expressa
sinteticamente a teoria pictórica da linguagem de modo cristalinamente claro:

Uma proposição deve (muss) expressar um novo sentido (Sinn) com


velhas palavras. A proposição nos comunica um estado de coisas
(Sacheverhalt), portanto ela tem de estar essencialmente ligada ao
estado de coisas. E a ligação é que, de fato, ela é a sua figura ou
imagem lógica (logisches Bild) (Wittenstein, 1947).

A idéia central do Tratado é a de que há uma relação isomórfica entre a


estrutura da linguagem e a estrutura do mundo. Pensamos que uma leitura atenta das
Categorias de Aristóteles (1983) poderá mostrar que tal idéia já estava presente no seu
pensamento, com a diferença que, para Wittgenstein, “os limites da minha linguagem
são os limites do meu mundo” e para Aristóteles os termos se invertem. Ele não disse,
mas poderia muito bem ter dito: “Os limites do meu mundo são os limites da minha
linguagem”, pois não é o mundo que tem de se ajustar à linguagem: esta é que tem de se
ajustar àquele. Desse modo, supondo que a estrutura ontológica do mundo fosse
diferente desta que se mostra, a estrutura da linguagem também seria, de modo tal que
esta pudesse expressar aquela.(Guerreiro, 1999b).
Wittgenstein tentou esclarecer a natureza da sua concepção de isomorfismo tanto
do ponto de vista sintático como do ponto de vista semântico. No entanto, no Tratado,
ele diz muito pouca coisa no que se refere à relação entre os sinais e seus usuários.
Talvez a chave para a compreensão da passagem do primeiro ao segundo Wittgenstein
esteja na mudança do seu conceito de significado, pois é justamente a partir daí que fica
mais fácil sustentar a idéia de que se trata de uma passagem de uma abordagem
semântica a uma abordagem pragmática da linguagem. No Tratado, ele sustenta que o
significado de uma proposição consiste nas suas condições de verificação: “O sentido
de uma proposição é a concordância ou a discordância com as possibilidades de
existência e inexistência de fatos atômicos” (Wittgenstein, 1947). E mais adiante, ele
acrescenta:

A especificação de todas as proposições elementares verdadeiras


descreve completamente o mundo. O mundo é completamente
descrito pela especificação de todas as proposições elementares, mais
especificamente de quais delas são verdadeiras e quais falsas.
(Wittgenstein, 1947).

Pondo de lado a descabida pretensão de que a linguagem pode esgotar a


infinidade de nuanças da realidade e a não menos descabida esperança de que algum dia
contaremos com uma descrição completa do mundo, podemos passar agora para a
abordagem pragmática desenvolvida nas Investigações. Ela já está configurada em uma
das mais conhecidas afirmações de Wittgenstein: “O significado é o uso”.
Não temos a menor dúvida de que um lexicógrafo concordaria inteiramente com
esse ponto de vista, uma vez que sua atividade consiste basicamente em registrar usos
lingüísticos de uma língua pressupondo aquilo que F. de Saussure chamava de corte
sincrônico, ou seja: uma língua tal como esta é falada em determinada etapa histórica do
seu processo de mudança ou o seu eixo diacrônico. Se tais mudanças fossem
demasiadamente rápidas, a tarefa do lexicógrafo estaria fadada ao fracasso, pois, no que
ele registrasse um uso, este já teria há muito se trans-formado em desuso.
No entanto, tais mudanças não são tão rápidas quanto as da moda e as de
determinados fatores sociais. Com a provável exceção das gírias – em que algumas
caem em desuso e outras entram em uso no espaço de uma geração ou menos - tais
mudanças costumam ser lentas, às vezes levam um século ou mais. E é justamente essa
estabilidade relativa, dentro de um incessante processo de transformação, o fator que
torna viável a importante atividade dos lexicógrafos. No entanto, ao dizer que o
significado é o uso, Wittgenstein estava descortinando algo mais amplo. No texto das
Investigações, logo após uma crítica da teoria dos sinais de Santo Agostinho, ele
afirma:

Na prática do uso da linguagem, um interlocutor enuncia as palavras,


o outro age de acordo com elas. Na lição da linguagem, porém,
encontrar-se-á neste processo: o que aprende denomina os objetos, isto
é: fala a palavra quando o professor aponta para a pedra. Sim,
encontrar-se-á aqui um exercício ainda mais simples: o aluno repete a
palavra que o professor pronuncia, ambos processos de linguagem
semelhantes.
Podemos imaginar também que todo o processo de uso das palavras é
um daqueles jogos por meio dos quais as crianças aprendem sua
linguagem materna. Chamarei esses jogos de jogos de linguagem
(Sprachspielen) e falarei muitas vezes de uma linguagem primitiva
como de um jogo de linguagem. (Wittgenstein, 1969) .

Temos, assim, uma pequena amostra da abordagem pragmática encetada pelo


segundo Wittgenstein. Como deixa bastante claro a supracitada passagem, ele passa a se
preocupar com alguns tópicos ausentes do Tratado: sai de cena a teoria pictórica e
entram em cena usos, interlocutores e, como veremos mais tarde, a noção crucial de
contextos de proferimento.
E isto para não falar na emergência do seu interesse pelo processo de aquisição
da linguagem, coisa que coloca em cena a importante função desempenhada pelas
definições ostensivas. Não é válido dizer que é no contexto das Investigações que
desponta a conhecida distinção wittgensteiniana entre dizer e mostrar, pois ela já está
presente no Tratado quando Wittgenstein afirma, por exemplo, que a forma lógica está
no domínio do indizível: só pode ser mostrada. Contudo, a referida distinção adquire
muito maior relevância no contexto das Investigações. Enfim: os conceitos de
significado como uso, de jogos de linguagem (Sprachspielen) e de formas de vida
(Lebensformen) constituíram as peças-chave da abordagem prag-mática proposta pelo
segundo Wittgenstein. Temos razões para afirmar que cabe falar ainda em um terceiro
Wittgenstein, o de Über Gewissheit (Sobre A Certeza) em que ele se desloca para a
problemática suscitada pela visão de mundo do senso comum, tal como proposta por G.
Moore (Guerreiro, 1999). Porém, como nosso interesse aqui é tentar elucidar o campo
de investigação da pragmática, limitar-nos-emos ao segundo Wittgenstein cujo texto
mais relevante é mesmo o das Investigações Filosóficas.
Pode-se dizer que uma das mais férteis imagens wittgensteinianas para os
posteriores desdobramentos da pragmática consiste na sua comparação entre as palavras
e as ferramentas em uma caixa de ferramentas em que o serrote, o martelo, a chave de
fenda, etc. desempenham funções específicas. O espírito dessa interessante analogia é
que não costumamos usar a linguagem para fazer uma só coisa – por exemplo: expressar
fatos (estados de coisas) mediante proposições – porém para fazer uma heteróclita
diversidade de coisas ou, caso se queira: para desempenhar os mais diferentes jogos de
linguagem.

Quantas espécies de sentença existem? Afirmação, indagação e


comando? Talvez. Há inúmeras de tais espécies: inúmeras espécies
diferentes de emprego daquilo que chamamos de sinal, palavra, frase e
sentença. E essa pluralidade não é nada fixo, um dado para sempre,
mas novos tipos de linguagem, novos jogos de linguagem, por assim
dizer, nascem enquanto outros envelhecem e são esquecidos (uma
imagem aproximada disto pode nos ser fornecida pelas modificações
da matemática). (Wittgenstein, 1969).

A expressão jogos de linguagem, tal como empregada na supracitada passagem,


sugere as idéias de que o uso da linguagem é uma atividade e uma forma de vida.
Assentado isto, Wittgentein nos solicita a imaginar a grande multiplicidade de jogos de
linguagem e, para facilitar nossa tarefa, oferece alguns interessantes exemplos:
(...) Comandar e agir segundo comandos, descrever um objeto
conforme sua aparência ou conforme medidas, produzir um objeto de
acordo com uma descrição (fazer um desenho do mesmo), relatar um
acontecimento, fazer hipóteses sobre um acontecimento, apresentar os
resultados de um experimento mediante tabelas e diagramas, inventar
uma estória, ler uma estória para alguém, representar no palco [ou na
vida real, acrescentamos nós], cantar uma cantiga de roda, resolver
enigmas, criar uma anedota, contar a mesma, resolver um caso de
cálculo aplicado, traduzir uma língua para outra, pedir, agradecer,
amaldiçoar, maldizer, saudar, rezar, etc. (Wittgenstein, 1969).

Os cinco últimos exemplos - bem como alguns outros dos apresentados por
Witt-genstein visando a mostrar a diversidade e heterogeneidade dos jogos de
linguagem – constituirão exemplos daquilo que J.L.Austin (1953) chamará mais tarde
de atos ilocucionários (illocuci-onary acts), um conceito que não se identifica com
aquilo que Wittgenstein entende por jogos de linguagem, mas que, provavelmente, foi
elaborado a partir deste e do espírito da abordagem pragmática encetada pelas
Investigações.
Após um sucinto levantamento, Austin foi levado a crer que, na língua inglesa,
há mais de mil tipos de atos ilocucionários. De nossa parte, temos razões para acreditar
que em outras línguas esse número não deve ser muito menor Além disso, tais formas
de expressão lingüística estão estreitamente relacionadas com costumes e práticas
sociais, de tal modo que não é despropositado imaginar que em determinada cultura não
seja encontrado este ou aquele ato ilocucionário bastante comum na nossa – digamos,
por exemplo, o ato de agradecer ou o de advertir – mas possam ser encontrados outros
inexistentes na nossa.
Todavia, a tarefa de identificar e classificar atos ilocucionários, bem como a de
investigar as relações entre eles e os costumes devem ser deixadas para os lingüistas e
para os antropólogos. E foi pensando assim que J. Searle (1962), ao invés de se
embrenhar nessa floresta em busca da diversidade da sua fauna e flora, fez justamente o
contrário: procurou fazer uma taxionomia básica dos atos ilucucionários em que sua
grande multiplicidade foi reduzida a quatro tipos. Se ele foi bem sucedido ou não, não é
coisa para ser discutida aqui, mas importa assinalar aqui a diferença da abordagem
filosófica em relação às feitas por lingüistas e antropólogos.
A idéia fundamental é a de que a linguagem é, antes de qualquer coisa, uma
forma de ação. Quando empregamos a linguagem para fazer uma promessa, para fazer
uma declaração, para fazer humor, para fazer uma asserção, etc. estamos realizando
diferentes formas de ação. A linguagem é um instrumento que utilizamos para realizar
os mais diferentes tipos de ação. E esta foi a idéia central das conferências feitas por
J.L. Austin – não confundir com J.Austin, jurista britânico do século XIX – em Harvard
em 1955, posteriormente agrupadas e publicadas em um pequeno livro com um título
extremamente sugestivo: How To Do Things With Words [ literalmente: “Como fazer
Coisas Com Palavras”; talvez mais coloquialmente: “Como Agir Com As Palavras”. A
tradução francesa optou por um circunlóquio: “Quand Dire C’Est Faire”, que parece ter
sido seguido pela tradução brasileira: “Quando Dizer É Fazer”].
É facilmente constatável que a maioria das ações investigadas pelos teóricos da
ação social ou ação humana (Pareto, Weber, Talcott Parsons, L. von Mises) – bem como
as mais relevantes formas de ação – não se caracterizam como movimentos do corpo
nem como gestos, porém como diversas formas de um mesmo tipo de ação – a ação
verbal. No entanto, todos estes e outros cientistas sociais convergem sua atenção para os
efeitos sociais da ação humana – ou para aquilo que na terminologia de J.L. Austin seria
considerado um aspecto entre outros de um ato de fala (speech act), aspecto este
denominado por ele como ato perlocucionário (perlocucionary act). Talvez, por
emprestar toda ênfase aos fins, os teóricos da ação social tenham descurado dos meios,
ou seja: das características dos modos de expressão lingüisticos de que se servem os
agentes para alcançar finalidades extralingüísticas.
Por exemplo: suponhamos que eu esteja à mesa com outras pessoas tomando
chá. Como o açucareiro está longe do alcance do meu braço e eu não desejo me levantar
para apanhá-lo, peço a uma dessas pessoas para passá-lo para mim. Como sou uma
pessoa bem-educada, uso a expressão de cortesia apropriada e digo: “Por favor” e em
seguida enuncio o meu pedido específico: “Você pode me passar o açucareiro”. Meu
interlocutor – que por suposição entende a língua portuguesa – entende que estou
fazendo um pedido, não dando uma ordem, nem fazendo uma promessa. O que há de
estritamente lingüístico na minha ação comunicativa termina nesse ponto. Desde o
momento em que fiz o referido pedido e este foi devidamente compreendido por meu
interlocutor, meu ato ilocucionário foi bem-sucedido. Contudo, não posso dizer que
minha ação humana também termina no mesmo ponto, uma vez que ela visou à
produção de um efeito sobre meu interlocutor. Entendendo a natureza específica do
pedido feito por mim, meu interlocutor vê-se diante de uma tomada de decisão: atender
ou não o podido feito a ele. [e reparemos que desde o momento em que houve uma
compreensão da minha ação comunicativa, tudo que irá se seguir já não está mais em
um contexto lingüístico, porém extralingüístico, a começar pelo ato de tomar uma
decisão].
Como meu interlocutor é também uma pessoa bem-educada, ele toma a decisão
de atender meu pedido: estica seu braço para pegar o açucareiro e o estica novamente
para colocá-lo ao meu alcance. Reparemos que o que acaba de ser descrito não é uma
ação lingüística, porém corporal, mas é uma ação humana, pois o movimento do corpo
foi produzido por uma ordem da vontade do meu interlocutor e esta foi dada visando a
um fim específico: atender ao particular pedido feito por mim.
Diante disto, posso dizer que usei a linguagem, desempenhei uma ação
lingüística, porém visando a uma ação extralingüística: fazer com que meu interlocutor
executasse uma ação em meu benefício. E isto que acabei de descrever é justamente a
caracterização daquilo que J.L. Austin denomina de ato perlocucionário
(perlocucionary act). Em síntese: um ato perlocucionário é um efeito não-lingüístico
que um interlocutor produz sobre outro(s) mediante uma causa lingüística.
Quando nos comunicamos com alguém, podemos ter em mente unicamente o
efeito imediato de reforçar, abalar ou modificar uma crença dessa pessoa, sem que
tenhamos o desejo de que ela movimente seu corpo para fazer algo; mas podemos ter
também em mente reforçar, abalar ou modificar esta ou aquela crença, de modo a
estimular nosso(s) interlocutor(es) a fazer algo para ou por nós. Talvez, a idéia mais
importante implícita em tudo isto que acabamos de dizer é a de que a ação lingüística
está estreitamente relacionada com a ação humana. Geralmente, a primeira se desdobra
na segunda dentro de um processo contínuo.
A idéia central da pragmática de Austin é a noção de speech act (ato de fala).
Trata-se de uma entidade composta de três outras. Por “fala”, ele não entende somente o
ato fonatório por meio do qual expelimos sons lingüísticos [tal como talvez assim
entendam o foneticista e o fonoaudiólogo, que estão voltados unicamente para a
articulação de fones], mas também um ato expressivo [quer dizer: algo mais próximo
daquilo que entendemos como as “falas” de um ator ou a “fala” de um político].
Considerando que tanto interjeições como sentenças ininteligíveis podem ser
consideradas atos expressivos – as primeiras por expressarem emoções e as segundas
por expressarem nonsense – temos de acrescentar algo mais, um sentido, para fornecer
uma idéia mais acurada de um ato de fala.
Não é necessário que ele seja desempenhado por meio de uma sentença, nem
mesmo por meio de uma frase, pois, às vezes, basta a emissão de uma única palavra
para que se configure um autêntico ato de fala. Suponhamos por exemplo alguém que,
dentro de um edifício, grita: “Fogo!”. As pessoas não entenderão que ele está
comandando um pelotão de fuzilamento nem pedindo a alguém uma caixa de fósforos
para acender seu charuto, pois, o contexto em que ocorreu sua forte exclamação
concorreu para que ela fosse entendida como uma séria advertência visando a tomada
imediata de uma providência, podendo ser parafraseada, sem perda de conteúdo, mais
ou menos nos seguintes termos: “Corram todos, porque este edifício está pegando
fogo”.
E ele só não se expressou dizendo isto, porque em momentos de aflição
costumamos recorrer a uma economia de linguagem. É escusado acrescentar que a
compreensão do sentido da mensagem emitida desencadeou uma reação da parte dos
que a ouviram e entenderam. Se quisermos introduzir maior precisão na nossa
descrição, é melhor passar para o plural dizendo: diferentes reações, pois, diante de um
grande perigo dessa natureza, algumas pessoas costumam sair correndo apavoradas, mas
outras, tomadas pela perplexidade, ficam com seus pés colados no chão.
Mas, como nosso interesse aqui não é a psicologia do pavor, importa destacar,
no mencionado ato de fala, a conjugação de três atos distintos: (1) o ato locucionário: a
emissão da exclamação: “Fogo!” dotada de um conteúdo significativo específico
[supondo que ele tivesse gritado: “Ladrão!”, o conteúdo teria sido outro e isto produziria
alterações da natureza dos dois atos que se seguem] (2) o ato ilocucionário: o uso desta
mesma exclamação visando a expressão de uma advertência, não a de um comando
(como no caso do pelotão), nem a de um pedido (como no caso do fumante de charuto)
e, finalmente (3) o ato perlocucionário: o efeito gerado sobre o(s) interlocutor(es).
Refletindo agora sobre as relações entre (1), (2) e (3), não é difícil perceber que
a que se dá entre (1) e (2) é uma relação de superposição pressupondo simultaneidade.
No momento em que a (um falante qualquer) abre a sua boca para emitir uma palavra,
frase ou sentença, ele está realizando um ato locucionário dotado de um conteúdo
significativo específico. Neste mesmo momento em que a o realiza, realiza também um
ato ilocucionário, pois sua palavra, frase ou sentença têm de estar expressando um ato
ilocucionário, e isto porque tem de ser uma asserção ou uma interrogação ou uma
promessa ou um pedido, etc.
Generalizando: todo e qualquer ato locucionário emitido mediante toda e
qualquer língua humana tem de expressar um ato ilocucionário, pois usar a linguagem é
sempre usar a linguagem para fazer isto ou aquilo, não importando se é o caso de emitir
uma séria proposição filosófica, invocar a ira dos deuses clamando por vingança ou
contar uma boa piada. Reitera-mos: costumamos usar a linguagem para desempenhar
diversos e heteróclitos tipos de ação e visando às mais diferentes finalidades. Mas se a
relação entre (1) e (2) é uma relação de superposição pressupondo simultaneidade, a que
se dá entre (1) e (2), tomadas conjuntamente, e (3) é uma relação causal e, como tal, tem
de pressupor um fator antecedente (causa) e um subseqüente (efeito), ou seja: o ato
perlocucionário é um efeito extralingüístico produzido por uma causa estritamente
lingüística.
Dizendo de outro modo: o ato perlocucionário nada tem em si de lingüístico,
seja quando se limita a produzir efeitos imediatos no mundo das crenças e dos modos de
pensar, seja quando por meio disto vai além disso e faz com que alguém desempenhe
uma ação corporal interferindo no mundo. Atender pedidos de alguém passando um
açucareiro ou fechando uma janela, etc; cumprir uma ordem de alguém fazendo isto ou
aquilo, observar uma advertência feita por alguém não fazendo isto nem aquilo, etc. não
podem, sob nenhuma hipótese, serem considerados ações lingüísticas. Assim como
trocar, comprar e vender são ações humanas.
Neste sentido, a teoria dos atos de fala e a teoria da ação humana – embora
tenham sido desenvolvidas independentemente uma da outra e acalentando propósitos
bastante diferentes – não se excluem, porém parecem poder ser articuladas em uma
terceira, mais abrangente. Os filósofos deveriam se interessar mais pelas atividades dos
antropólogos e sociólogos e estes deveriam conceder mais importância ao fundamental
papel da linguagem como meio de comunicação e de ação.

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