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Da Pragmática
Tal escopo é muito mais amplo do que o dos trabalhos feitos hoje sob
a rubrica de pragmática lingüística (linguistic pragmatics), uma vez
que ele incluía o que é hoje conhecido como psicolingüística,
neurolingüística, entre outras especialidades. (Levinson, 1983, p.2).
Os cinco últimos exemplos - bem como alguns outros dos apresentados por
Witt-genstein visando a mostrar a diversidade e heterogeneidade dos jogos de
linguagem – constituirão exemplos daquilo que J.L.Austin (1953) chamará mais tarde
de atos ilocucionários (illocuci-onary acts), um conceito que não se identifica com
aquilo que Wittgenstein entende por jogos de linguagem, mas que, provavelmente, foi
elaborado a partir deste e do espírito da abordagem pragmática encetada pelas
Investigações.
Após um sucinto levantamento, Austin foi levado a crer que, na língua inglesa,
há mais de mil tipos de atos ilocucionários. De nossa parte, temos razões para acreditar
que em outras línguas esse número não deve ser muito menor Além disso, tais formas
de expressão lingüística estão estreitamente relacionadas com costumes e práticas
sociais, de tal modo que não é despropositado imaginar que em determinada cultura não
seja encontrado este ou aquele ato ilocucionário bastante comum na nossa – digamos,
por exemplo, o ato de agradecer ou o de advertir – mas possam ser encontrados outros
inexistentes na nossa.
Todavia, a tarefa de identificar e classificar atos ilocucionários, bem como a de
investigar as relações entre eles e os costumes devem ser deixadas para os lingüistas e
para os antropólogos. E foi pensando assim que J. Searle (1962), ao invés de se
embrenhar nessa floresta em busca da diversidade da sua fauna e flora, fez justamente o
contrário: procurou fazer uma taxionomia básica dos atos ilucucionários em que sua
grande multiplicidade foi reduzida a quatro tipos. Se ele foi bem sucedido ou não, não é
coisa para ser discutida aqui, mas importa assinalar aqui a diferença da abordagem
filosófica em relação às feitas por lingüistas e antropólogos.
A idéia fundamental é a de que a linguagem é, antes de qualquer coisa, uma
forma de ação. Quando empregamos a linguagem para fazer uma promessa, para fazer
uma declaração, para fazer humor, para fazer uma asserção, etc. estamos realizando
diferentes formas de ação. A linguagem é um instrumento que utilizamos para realizar
os mais diferentes tipos de ação. E esta foi a idéia central das conferências feitas por
J.L. Austin – não confundir com J.Austin, jurista britânico do século XIX – em Harvard
em 1955, posteriormente agrupadas e publicadas em um pequeno livro com um título
extremamente sugestivo: How To Do Things With Words [ literalmente: “Como fazer
Coisas Com Palavras”; talvez mais coloquialmente: “Como Agir Com As Palavras”. A
tradução francesa optou por um circunlóquio: “Quand Dire C’Est Faire”, que parece ter
sido seguido pela tradução brasileira: “Quando Dizer É Fazer”].
É facilmente constatável que a maioria das ações investigadas pelos teóricos da
ação social ou ação humana (Pareto, Weber, Talcott Parsons, L. von Mises) – bem como
as mais relevantes formas de ação – não se caracterizam como movimentos do corpo
nem como gestos, porém como diversas formas de um mesmo tipo de ação – a ação
verbal. No entanto, todos estes e outros cientistas sociais convergem sua atenção para os
efeitos sociais da ação humana – ou para aquilo que na terminologia de J.L. Austin seria
considerado um aspecto entre outros de um ato de fala (speech act), aspecto este
denominado por ele como ato perlocucionário (perlocucionary act). Talvez, por
emprestar toda ênfase aos fins, os teóricos da ação social tenham descurado dos meios,
ou seja: das características dos modos de expressão lingüisticos de que se servem os
agentes para alcançar finalidades extralingüísticas.
Por exemplo: suponhamos que eu esteja à mesa com outras pessoas tomando
chá. Como o açucareiro está longe do alcance do meu braço e eu não desejo me levantar
para apanhá-lo, peço a uma dessas pessoas para passá-lo para mim. Como sou uma
pessoa bem-educada, uso a expressão de cortesia apropriada e digo: “Por favor” e em
seguida enuncio o meu pedido específico: “Você pode me passar o açucareiro”. Meu
interlocutor – que por suposição entende a língua portuguesa – entende que estou
fazendo um pedido, não dando uma ordem, nem fazendo uma promessa. O que há de
estritamente lingüístico na minha ação comunicativa termina nesse ponto. Desde o
momento em que fiz o referido pedido e este foi devidamente compreendido por meu
interlocutor, meu ato ilocucionário foi bem-sucedido. Contudo, não posso dizer que
minha ação humana também termina no mesmo ponto, uma vez que ela visou à
produção de um efeito sobre meu interlocutor. Entendendo a natureza específica do
pedido feito por mim, meu interlocutor vê-se diante de uma tomada de decisão: atender
ou não o podido feito a ele. [e reparemos que desde o momento em que houve uma
compreensão da minha ação comunicativa, tudo que irá se seguir já não está mais em
um contexto lingüístico, porém extralingüístico, a começar pelo ato de tomar uma
decisão].
Como meu interlocutor é também uma pessoa bem-educada, ele toma a decisão
de atender meu pedido: estica seu braço para pegar o açucareiro e o estica novamente
para colocá-lo ao meu alcance. Reparemos que o que acaba de ser descrito não é uma
ação lingüística, porém corporal, mas é uma ação humana, pois o movimento do corpo
foi produzido por uma ordem da vontade do meu interlocutor e esta foi dada visando a
um fim específico: atender ao particular pedido feito por mim.
Diante disto, posso dizer que usei a linguagem, desempenhei uma ação
lingüística, porém visando a uma ação extralingüística: fazer com que meu interlocutor
executasse uma ação em meu benefício. E isto que acabei de descrever é justamente a
caracterização daquilo que J.L. Austin denomina de ato perlocucionário
(perlocucionary act). Em síntese: um ato perlocucionário é um efeito não-lingüístico
que um interlocutor produz sobre outro(s) mediante uma causa lingüística.
Quando nos comunicamos com alguém, podemos ter em mente unicamente o
efeito imediato de reforçar, abalar ou modificar uma crença dessa pessoa, sem que
tenhamos o desejo de que ela movimente seu corpo para fazer algo; mas podemos ter
também em mente reforçar, abalar ou modificar esta ou aquela crença, de modo a
estimular nosso(s) interlocutor(es) a fazer algo para ou por nós. Talvez, a idéia mais
importante implícita em tudo isto que acabamos de dizer é a de que a ação lingüística
está estreitamente relacionada com a ação humana. Geralmente, a primeira se desdobra
na segunda dentro de um processo contínuo.
A idéia central da pragmática de Austin é a noção de speech act (ato de fala).
Trata-se de uma entidade composta de três outras. Por “fala”, ele não entende somente o
ato fonatório por meio do qual expelimos sons lingüísticos [tal como talvez assim
entendam o foneticista e o fonoaudiólogo, que estão voltados unicamente para a
articulação de fones], mas também um ato expressivo [quer dizer: algo mais próximo
daquilo que entendemos como as “falas” de um ator ou a “fala” de um político].
Considerando que tanto interjeições como sentenças ininteligíveis podem ser
consideradas atos expressivos – as primeiras por expressarem emoções e as segundas
por expressarem nonsense – temos de acrescentar algo mais, um sentido, para fornecer
uma idéia mais acurada de um ato de fala.
Não é necessário que ele seja desempenhado por meio de uma sentença, nem
mesmo por meio de uma frase, pois, às vezes, basta a emissão de uma única palavra
para que se configure um autêntico ato de fala. Suponhamos por exemplo alguém que,
dentro de um edifício, grita: “Fogo!”. As pessoas não entenderão que ele está
comandando um pelotão de fuzilamento nem pedindo a alguém uma caixa de fósforos
para acender seu charuto, pois, o contexto em que ocorreu sua forte exclamação
concorreu para que ela fosse entendida como uma séria advertência visando a tomada
imediata de uma providência, podendo ser parafraseada, sem perda de conteúdo, mais
ou menos nos seguintes termos: “Corram todos, porque este edifício está pegando
fogo”.
E ele só não se expressou dizendo isto, porque em momentos de aflição
costumamos recorrer a uma economia de linguagem. É escusado acrescentar que a
compreensão do sentido da mensagem emitida desencadeou uma reação da parte dos
que a ouviram e entenderam. Se quisermos introduzir maior precisão na nossa
descrição, é melhor passar para o plural dizendo: diferentes reações, pois, diante de um
grande perigo dessa natureza, algumas pessoas costumam sair correndo apavoradas, mas
outras, tomadas pela perplexidade, ficam com seus pés colados no chão.
Mas, como nosso interesse aqui não é a psicologia do pavor, importa destacar,
no mencionado ato de fala, a conjugação de três atos distintos: (1) o ato locucionário: a
emissão da exclamação: “Fogo!” dotada de um conteúdo significativo específico
[supondo que ele tivesse gritado: “Ladrão!”, o conteúdo teria sido outro e isto produziria
alterações da natureza dos dois atos que se seguem] (2) o ato ilocucionário: o uso desta
mesma exclamação visando a expressão de uma advertência, não a de um comando
(como no caso do pelotão), nem a de um pedido (como no caso do fumante de charuto)
e, finalmente (3) o ato perlocucionário: o efeito gerado sobre o(s) interlocutor(es).
Refletindo agora sobre as relações entre (1), (2) e (3), não é difícil perceber que
a que se dá entre (1) e (2) é uma relação de superposição pressupondo simultaneidade.
No momento em que a (um falante qualquer) abre a sua boca para emitir uma palavra,
frase ou sentença, ele está realizando um ato locucionário dotado de um conteúdo
significativo específico. Neste mesmo momento em que a o realiza, realiza também um
ato ilocucionário, pois sua palavra, frase ou sentença têm de estar expressando um ato
ilocucionário, e isto porque tem de ser uma asserção ou uma interrogação ou uma
promessa ou um pedido, etc.
Generalizando: todo e qualquer ato locucionário emitido mediante toda e
qualquer língua humana tem de expressar um ato ilocucionário, pois usar a linguagem é
sempre usar a linguagem para fazer isto ou aquilo, não importando se é o caso de emitir
uma séria proposição filosófica, invocar a ira dos deuses clamando por vingança ou
contar uma boa piada. Reitera-mos: costumamos usar a linguagem para desempenhar
diversos e heteróclitos tipos de ação e visando às mais diferentes finalidades. Mas se a
relação entre (1) e (2) é uma relação de superposição pressupondo simultaneidade, a que
se dá entre (1) e (2), tomadas conjuntamente, e (3) é uma relação causal e, como tal, tem
de pressupor um fator antecedente (causa) e um subseqüente (efeito), ou seja: o ato
perlocucionário é um efeito extralingüístico produzido por uma causa estritamente
lingüística.
Dizendo de outro modo: o ato perlocucionário nada tem em si de lingüístico,
seja quando se limita a produzir efeitos imediatos no mundo das crenças e dos modos de
pensar, seja quando por meio disto vai além disso e faz com que alguém desempenhe
uma ação corporal interferindo no mundo. Atender pedidos de alguém passando um
açucareiro ou fechando uma janela, etc; cumprir uma ordem de alguém fazendo isto ou
aquilo, observar uma advertência feita por alguém não fazendo isto nem aquilo, etc. não
podem, sob nenhuma hipótese, serem considerados ações lingüísticas. Assim como
trocar, comprar e vender são ações humanas.
Neste sentido, a teoria dos atos de fala e a teoria da ação humana – embora
tenham sido desenvolvidas independentemente uma da outra e acalentando propósitos
bastante diferentes – não se excluem, porém parecem poder ser articuladas em uma
terceira, mais abrangente. Os filósofos deveriam se interessar mais pelas atividades dos
antropólogos e sociólogos e estes deveriam conceder mais importância ao fundamental
papel da linguagem como meio de comunicação e de ação.
Referências Bibliográficas