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Magda Becker Soares é uma das maiores autoridades no Brasil na área de alfabetização e
letramento. Professora titular emérita aposentada da Faculdade de Educação (FAE) da Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG), Magda tem diversos livros publicados, sendo referência obrigatória
para docentes e pesquisadores que trabalham com o tema do ensino e aprendizagem da leitura
e da escrita. Por ocasião do lançamento de seu mais recente livro, Alfabetização: a questão dos
métodos (Editora Contexto), Magda concedeu esta entrevista para Antônio Augusto Gomes Batista,
coordenador de Desenvolvimento de Pesquisas do Cenpec e ex-aluno de Magda no mestrado e
doutorado na UFMG, e Joana Buarque de Gusmão, editora da Cadernos Cenpec.
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“O problema não é o método de alfabetização, é alfabetizar sem método” – Entrevista com Magda Soares
CADERNOS CENPEC – E foi com base na análise de toda essa bibliografia que
surgiu o projeto do livro?
MAGDA SOARES – A ideia inicial era fazer um livro não só sobre alfabetização,
não só da aprendizagem inicial da língua escrita, mas que incluísse também
o letramento junto com a alfabetização, que abordasse o trabalho da
alfabetização sempre associada ao letramento, partindo de textos, da leitura
e da produção de texto. No projeto, cheguei a planejar três organizações para
o livro. À medida que fui escrevendo, percebi, porém, que ficaria extenso
demais se seguisse o plano que tinha definido. Comecei a escrever com essa
intenção de relacionar alfabetização e letramento, mas era tanta coisa sobre
alfabetização que decidi focar somente a aprendizagem do sistema alfabético,
a alfabetização propriamente dita. Por exemplo, no processo de leitura e
pesquisa sobre a alfabetização em diferentes línguas, comecei a ver que a
ortografia da língua tem uma importância fundamental nesse processo. Eu
não me contentava em dizer só assim: “A ortografia do português brasileiro
é bem próxima da transparência, por isso a alfabetização é assim”. Não!
Sentia a necessidade de explicar o que é uma ortografia opaca e o que é uma
ortografia transparente, como é esse contínuo. As línguas com ortografias
mais transparentes são aquelas em que a escrita é mais próxima à fala. Fui
ficando mais curiosa sobre diferentes ortografias e sua influência no processo
de aprendizagem do sistema alfabético de escrita. Essas interrupções para
me aprofundar em determinados temas é que explica por que demorei tantos
anos para escrever o livro... Outra questão que despertou meu interesse
sobre a influência da ortografia na alfabetização foram as diferenças entre
as relações fonema-grafema no português europeu e no português brasileiro.
Com minha ligação com a Margarida Alves Martins, de Lisboa, e os artigos
dela, comparei os resultados de suas pesquisas com nossos trabalhos do
Brasil e concluí que o processo de alfabetização lá e cá deve ser diferente. São
duas ortografias em níveis diferentes de transparência. Quis me aprofundar
no assunto do contínuo entre ortografias mais opacas e mais transparentes.
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“O problema não é o método de alfabetização, é alfabetizar sem método” – Entrevista com Magda Soares
CADERNOS CENPEC – Você interagiu três facetas? Uma faceta que é gráfica,
outra que é linguística e uma outra que é psicológica?
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“O problema não é o método de alfabetização, é alfabetizar sem método” – Entrevista com Magda Soares
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“O problema não é o método de alfabetização, é alfabetizar sem método” – Entrevista com Magda Soares
MAGDA SOARES – Pois é, pensar o público desse livro foi outro processo
demorado. A primeira ideia era escrever para professores, para chegar à
escola, que, aliás, foi sempre a minha postura em relação à produção de livros
e artigos, por isso é que eu escrevi tantas coleções didáticas. Acredito que
toda essa discussão sobre alfabetização, sobre ensino da língua não vai servir
de nada se não mudar a escola, particularmente a escola pública. Mas, a certa
altura da escrita deste livro, percebi que o que eu estava escrevendo não iria
servir diretamente a professores, e sim a quem forma os alfabetizadores. E
isso me traz um pouco de decepção com esse livro, porque não é diretamente
para as alfabetizadoras... É preciso fazer a transposição didática para
chegar à prática da sala de aula. Então a minha hipótese é que os leitores
do livro serão basicamente os formadores de alfabetizadores que queiram
MAGDA SOARES – Renata Jardini, fonoaudióloga, tendo lido este meu último
livro, me escreveu para dialogar sobre alfabetização. Ela propõe um método
de alfabetização que parte da articulação dos fonemas, denominado “método
das boquinhas”. Mantivemos uma boa interação por e-mail e discutimos
esclarecendo nossas perspectivas: ela, da área médica, analisa o processo do
ponto de vista fisiológico, do funcionamento do aparelho fonador, enquanto
eu analiso do ponto de vista da linguística e da psicologia cognitiva. É esta
minha vontade, minha intenção: que as discussões a respeito de como
alfabetizar sejam discutidas com clareza dos pressupostos e consciência
de que o processo de aprendizagem da língua escrita é complexo. Podemos
adotar diferentes perspectivas, mas não podemos deixar de concluir que
essas diferentes perspectivas se somam, não se contradizem nem se opõem.
MAGDA SOARES – Eu já não sei o que a gente tem de fazer neste país, viu?
Adotam-se projetos e métodos por critérios outros que não o critério da
fundamentação teórica. Nas situações em que eu aceitei falar para gestores,
não abordei teorias. Sempre achei que o caminho era falar sobre o projeto
de Lagoa Santa. E, com base no projeto, mostrar o que é alfabetizar por
meio da comprovação pelos resultados. Então mostro como é o processo de
aprendizagem da língua escrita e como agir para chegar ao sucesso, como
trabalhamos e o que trabalhamos em cada situação. Mas confesso que ando
muito decepcionada com os gestores neste país. Prefeitos, secretários de
educação, MEC, que propõem a cada mandato projetos que não consideram
o passado, que não consideram fundamentos em que o proposto se baseie.
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“O problema não é o método de alfabetização, é alfabetizar sem método” – Entrevista com Magda Soares
Intervenções, uma depois de outra, sem que se veja real avanço na qualidade
do ensino e da aprendizagem. Não sei qual seria a solução. Estou convicta de
que o caminho, embora longo, seja atuar sobre a formação inicial dos futuros
alfabetizadores. O que se tem proposto como formação continuada tenta
continuar uma formação que não existiu antes... continuar o quê? Mas isso
significa mudar o currículo dos cursos de Pedagogia, o que se tem tentado
ao longo de anos sem sucesso, ou então, quem sabe, ser criado um curso
específico para formação de alfabetizadores.
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“O problema não é o método de alfabetização, é alfabetizar sem método” – Entrevista com Magda Soares
do alfabeto. Parece óbvio que um único método não pode atender a toda essa
necessária articulação de diferentes processos. Por isso a minha proposta no
livro é que não se busque um método de alfabetização, mas que se busque
uma alfabetização com método: alfabetizar compreendendo as várias facetas
do processo.
CADERNOS CENPEC – Você acha que a exploração do som com a letra pura é
danosa para o processo de alfabetização?
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“O problema não é o método de alfabetização, é alfabetizar sem método” – Entrevista com Magda Soares
distinguem pela maior ou menor vibração das cordas vocais. Mas não acho
que isso seja necessário. É muito mais fácil levar a criança a perceber que
“pata” e “bata” são duas palavras diferentes e que são diferentes porque
o som de “pa” é diferente do som de “ba”, do que ficar fazendo a criança
repetir “ba-ba-ba”. Quando comecei a desenvolver o projeto em Lagoa Santa,
havia uma professora que enchia um saco plástico de pedacinhos de papel
para a criança falar dentro do saco “pa”, “ba”. Se fosse a consoante sonora
[“ba”], os papéis voariam. E não voava nada, voava só um pouquinho... Os
alunos não estavam entendendo o que era aquilo de ficar falando na boca de
um saco plástico (risos). Um esforço enorme da professora, sobretudo. Logo
no começo eu disse que não era necessário. Meu primeiro momento lá foi
ver como as professoras trabalhavam. Era incrível, muitas usavam o método
da boquinha, focalizando a articulação dos sons. Foi preciso convencê-las
de que nem sempre isso é necessário. E hoje eu me sinto realizada quando
vejo as professoras falando em fonema, sílabas, CVC [sílaba com a estrutura
Consoante + Vogal + Consoante], CCV [sílaba com a estrutura Consoante +
Consoante + Vogal] – estudamos as estruturas silábicas, porque é das sílabas
que se chega à identificação dos fonemas. Eu me preocupo muito com o
projeto em Lagoa Santa porque vai chegar um momento em que vou ter de
sair, não sou eterna... Por isso, não quero que o Núcleo fique dependendo da
minha figura. Eu fico me consolando, dizendo que vou escrever um livro com
esse projeto. Mas não sei se terei coragem de fazer isso.
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“O problema não é o método de alfabetização, é alfabetizar sem método” – Entrevista com Magda Soares
orientar a criança para argumentar por escrito. Peço que selecionem alguma
coisa que está ocorrendo na escola para discutir na sala de aula. Por exemplo,
uma delas selecionou a questão do dever de casa, de que muitos alunos
reclamavam. Ela discutiu com os alunos essa questão, se é bom ou não ter
dever de casa, se precisa ou não de dever de casa. Depois de discutir, fez um
esquema: expor a opinião e depois defendê-la. Como a discussão evidencia
que há opiniões diferentes sobre ter ou não dever de casa, é preciso rebater
as opiniões contrárias à assumida. As crianças são espertas, escrevem bons
textos argumentativos usando o esquema. Discutimos os textos dos alunos,
analisando como as crianças elaboraram seus textos. Um menino escreveu:
“Eu detesto dever de casa, porque a gente não pode brincar. A gente fica só
ocupado com o dever de casa. Tem gente que acha bom, mas eu detesto dever
de casa” (risos). O interessante é que as professoras passam pela experiência
para depois transferir aquilo para a escola, levando as crianças a também
passar pela experiência.
CADERNOS CENPEC – Estou vendo ali na estante o livro Reading in the brain.
O que você está achando de suas leituras em neurociência, neurolinguística?
O quanto isso colabora para pensar nossas questões? Pelo que eu li, no
caso do cérebro, há a construção de uma arquitetura cerebral e as outras
aprendizagens vão ser realizadas a partir dela. Como você vê isso?
CADERNOS CENPEC – São coisas assim, Magda, que fazem a gente querer
não só uma sociedade mais justa, mas também uma educação infantil de
excelente qualidade. Afinal, é o momento em que essa arquitetura cerebral
está sendo feita.
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“O problema não é o método de alfabetização, é alfabetizar sem método” – Entrevista com Magda Soares
CADERNOS CENPEC – Magda, esse livro me parece uma base muito sólida
para se produzir material para alfabetização.
MAGDA SOARES – É o que eu quero fazer agora. Quero traduzir o que discuto
nesse livro em um material de formação de alfabetizadores. Uma espécie de
livro didático para a alfabetizadora... E, como todo mundo sabe, gosto muito
de preparar material didático. Como disse, sou fundamentalmente professora,
então, é uma coisa que faço com prazer.
MAGDA SOARES – De certa forma, é, mas sob uma forma mais voltada
para a prática docente. Não sei ainda como vou chamar este novo livro.
Letramento não precisa ser teórico, não. Será? Não! Minha vontade é articular
letramento com a alfabetização, mostrando como essa articulação é possível
e mesmo necessária na prática, porque, se podemos discutir no nível teórico
separadamente alfabetização e letramento, na prática é preciso articular os
dois processos. E fazemos isso em Lagoa Santa. As professoras dizem que
esse é o “coração” do projeto – elas se referem a um gráfico que fiz colocando
o texto no centro e todos os demais componentes do processo partindo desse
centro. Talvez eu comece o novo livro por aí. O projeto de Lagoa Santa, que
vem sendo desenvolvido há nove anos, me dá alguma segurança para produzir
esse novo livro. Mas ainda preciso amadurecer a ideia, porque, enquanto não
tenho com clareza o plano de um livro, não consigo começar a escrever.
Referências
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