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“O problema não é o método de

alfabetização, é alfabetizar sem


método” – Entrevista com Magda
Soares

Magda Becker Soares é uma das maiores autoridades no Brasil na área de alfabetização e
letramento. Professora titular emérita aposentada da Faculdade de Educação (FAE) da Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG), Magda tem diversos livros publicados, sendo referência obrigatória
para docentes e pesquisadores que trabalham com o tema do ensino e aprendizagem da leitura
e da escrita. Por ocasião do lançamento de seu mais recente livro, Alfabetização: a questão dos
métodos (Editora Contexto), Magda concedeu esta entrevista para Antônio Augusto Gomes Batista,
coordenador de Desenvolvimento de Pesquisas do Cenpec e ex-aluno de Magda no mestrado e
doutorado na UFMG, e Joana Buarque de Gusmão, editora da Cadernos Cenpec.

Em uma conversa descontraída, Magda


aborda as motivações para a produção do
livro, seu processo de escrita e pesquisa,
suas experiências como consultora da
rede municipal de educação do município
de Lagoa Santa (MG), em que atua na
formação de professores, sua visão
sobre temas polêmicos relacionados à
alfabetização e à história da alfabetização
no Brasil, além de compartilhar um pouco
de sua história de vida.
Entrevista com Magda Soares

CADERNOS CENPEC – Magda, para começar, conte um pouco sobre a história


do livro Alfabetização: a questão dos métodos (Editora Contexto), que você
está lançando. Ele nasceu das repercussões do The National Reading Panel?

MAGDA SOARES – Quando comecei a estudar o assunto, minha intenção não


era propriamente escrever um livro. Na ocasião, enfrentávamos um debate
sobre o conceito de alfabetização, muito reduzido a uma questão de métodos;
alguns países, sobretudo os Estados Unidos, por meio principalmente do
National Reading Panel, tomaram a dianteira para definir o que é alfabetização
e como se deve alfabetizar as crianças. No Brasil, o momento também era de
muita polêmica a respeito de métodos de alfabetização, uma disputa entre
método fônico e construtivismo, disputa que ainda continua. Eu já tinha
mais de uma vez levantado a hipótese de que na verdade o método fônico,
tal como muito enfatizado no contexto norte-americano, não era adequado
ao brasileiro. Mas minhas reflexões começaram, de fato, por volta de 1984,
com o lançamento de “As muitas facetas da alfabetização”. Desde aquela
época essa questão de métodos de alfabetização me preocupava e foi me
preocupando cada vez mais. Minha intenção inicial foi compreendê-la: afinal,
como é o processo de aprendizagem da língua escrita pela criança? O que
as pessoas estão estudando a respeito disso? O que as pesquisas estão
dizendo? E quando saiu o Painel nos Estados Unidos, eu estava convicta de
que as pessoas que se apoiavam em suas conclusões estavam equivocadas.

CADERNOS CENPEC – Para esclarecer aos nossos leitores, explique um pouco


o que é o The National Reading Panel.

MAGDA SOARES – Os Estados Unidos, como a maioria dos países, enfrentava


o problema da dificuldade em alfabetizar as crianças. Esse fato já era algo que
me chamava a atenção: em diversos países, em muitas línguas diferentes,
todos discutiam o que fazer para alfabetizar a criança. Nos Estados Unidos,
constituíram uma comissão de alto nível para estudar toda a produção
científica que já tinha sido feita a respeito da aprendizagem inicial da língua
escrita pela criança. Em inglês, alfabetização tradicionalmente é chamada de
reading, pois a ênfase sempre foi em leitura. Foi um estudo que começou
enviesado, porque a comissão – o painel – que desenvolveu o estudo definiu
que só analisaria pesquisas experimentais, ou seja, com grupo de controle
e tratamento estatístico. O resultado do Painel rendeu um relatório em que
o foco foi a importância do papel da aprendizagem das relações fonema-
grafema. As pesquisas analisadas mostravam que essa aprendizagem era
fundamental. Bom, as pesquisas indicavam esse resultado preponderante

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“O problema não é o método de alfabetização, é alfabetizar sem método” – Entrevista com Magda Soares

porque a relação fonema-grafema é uma área em que é possível fazer,


sem grande dificuldade, pesquisa experimental com grupo de controle
e tratamento estatístico: você separa as crianças em dois grupos; em um,
experimental, você ensina as relações fonema-grafema; no outro grupo, de
controle, você não ensina. O primeiro vai aprender mais que o segundo. Mas
o painel não se limitou a esse componente da alfabetização, a comissão
estudou outros componentes, como a compreensão na leitura, o vocabulário.
Algumas pessoas no Brasil, entusiastas do método fônico, deram destaque
à conclusão do painel sobre a aprendizagem das relações fonema-grafema,
ignorando as demais; basearam-se em um recorte das conclusões para
afirmar que estaria provado que é preciso alfabetizar pelo método fônico. Eu
tinha estudado muito o relatório e outros documentos anexos ao relatório que
surgiram em seguida e estava convencida de que não era isso.

CADERNOS CENPEC – Dessas suas leituras do relatório e de outras pesquisas,


como você chegou à escrita do livro?

MAGDA SOARES – Outro dia eu estava tentando colocar ordem em anotações


que tenho o hábito de fazer quando leio e estudo, com a intenção de ver o
que poderia descartar, e encontrei inúmeras anotações minhas desde os
primeiros debates, com argumentos e referências bibliográficas contra e a
favor do método fônico, contra e a favor do construtivismo, e comparações
entre estudiosos norte-americanos e ingleses. Estudei muito a bibliografia
da Inglaterra – os ingleses são bastante independentes dos Estados Unidos
e já tinham implantado uma base comum, um currículo comum. Inclusive,
nas minhas idas à Inglaterra, visitei escolas para ver como o currículo estava
funcionando. Também me voltei para estudos da França, principalmente
em nossos contatos muito estreitos com a Anne-Marie Chartier. Fiz também
um estágio na França com o Jean Hébrard, que era então inspetor geral da
Educação Nacional da França, eu o acompanhava em suas visitas a escolas.
As inspeções eram assim: o inspetor entrava na sala de aula, sentava lá no
fundo e assistia à aula. Depois se reunia com a professora e discutia o que ela
estava fazendo, o que não estava. Essa experiência me marcou e eu faço um
pouco isso atualmente em Lagoa Santa. Desde então tenho lido e estudado
a bibliografia nacional e estrangeira sobre o processo de alfabetização, a
aprendizagem e o ensino. Sou ávida por leitura, estudo, pesquisa. Com a
facilidade que surgiu com as tecnologias digitais – o que eu menciono na
introdução do livro –, temos acesso fácil à bibliografia estrangeira atualmente.
Levantei toda a produção brasileira por meio do Scielo e de outras fontes
e bases de dados. Nós temos no Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita

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Entrevista com Magda Soares

(Ceale), da Faculdade de Educação da UFMG, um Centro de Documentação em


que há todas as teses e dissertações sobre o tema alfabetização produzidas
no país. Da bibliografia estrangeira, consultei inúmeros artigos e muitos
livros. Eu organizo artigos em pastas porque imprimo tudo, gosto de ler
no papel. Em cada pasta cabem 30, 40 artigos, e já estou na 26ª pasta. A
bibliografia foi crescendo à medida que fui escrevendo, identificando pontos
que era preciso esclarecer mais, descobrindo novos artigos e novos livros,
escrevendo e lendo e estudando, tudo ao mesmo tempo.

CADERNOS CENPEC – E foi com base na análise de toda essa bibliografia que
surgiu o projeto do livro?

MAGDA SOARES – A ideia inicial era fazer um livro não só sobre alfabetização,
não só da aprendizagem inicial da língua escrita, mas que incluísse também
o letramento junto com a alfabetização, que abordasse o trabalho da
alfabetização sempre associada ao letramento, partindo de textos, da leitura
e da produção de texto. No projeto, cheguei a planejar três organizações para
o livro. À medida que fui escrevendo, percebi, porém, que ficaria extenso
demais se seguisse o plano que tinha definido. Comecei a escrever com essa
intenção de relacionar alfabetização e letramento, mas era tanta coisa sobre
alfabetização que decidi focar somente a aprendizagem do sistema alfabético,
a alfabetização propriamente dita. Por exemplo, no processo de leitura e
pesquisa sobre a alfabetização em diferentes línguas, comecei a ver que a
ortografia da língua tem uma importância fundamental nesse processo. Eu
não me contentava em dizer só assim: “A ortografia do português brasileiro
é bem próxima da transparência, por isso a alfabetização é assim”. Não!
Sentia a necessidade de explicar o que é uma ortografia opaca e o que é uma
ortografia transparente, como é esse contínuo. As línguas com ortografias
mais transparentes são aquelas em que a escrita é mais próxima à fala. Fui
ficando mais curiosa sobre diferentes ortografias e sua influência no processo
de aprendizagem do sistema alfabético de escrita. Essas interrupções para
me aprofundar em determinados temas é que explica por que demorei tantos
anos para escrever o livro... Outra questão que despertou meu interesse
sobre a influência da ortografia na alfabetização foram as diferenças entre
as relações fonema-grafema no português europeu e no português brasileiro.
Com minha ligação com a Margarida Alves Martins, de Lisboa, e os artigos
dela, comparei os resultados de suas pesquisas com nossos trabalhos do
Brasil e concluí que o processo de alfabetização lá e cá deve ser diferente. São
duas ortografias em níveis diferentes de transparência. Quis me aprofundar
no assunto do contínuo entre ortografias mais opacas e mais transparentes.

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A ortografia mais transparente é a finlandesa, o que também me fez buscar


bibliografia para entender como seria essa ortografia. No finlandês, cada
fonema tem um grafema correspondente, o que facilita a alfabetização: as
crianças se alfabetizam em seis meses lá. Esse fato me levou a refletir sobre
a questão de que, no Brasil, muitos estudos se pautam no que acontece nos
Estados Unidos e como eles alfabetizam lá, sendo que a ortografia do inglês é
a mais opaca no contínuo da transparência à opacidade, enquanto a ortografia
do português brasileiro está próxima da transparência. Não podemos nos
pautar pelos estudos da alfabetização na língua inglesa para dizer como
alfabetizar as crianças brasileiras se as ortografias são tão diferentes.

CADERNOS CENPEC – A diferença entre o português brasileiro e o português


de Portugal decorre da questão das consoantes? Porque lá elas têm “vida
própria”, muitas vezes dispensando a vogal, que é o núcleo central da sílaba
do português falado no Brasil.

MAGDA SOARES – O oral do português europeu é muito diferente do nosso,


o que até dificulta nossa compreensão do português europeu falado. Por
exemplo, na pronúncia do português europeu as vogais átonas são reduzidas
ou neutralizadas, o que não ocorre no português brasileiro: o brasileiro
pronuncia operar, perigo, o português, op’rar, p’rigo. Então, nessa relação
entre fala e escrita, há diferenças, o que influencia a alfabetização, em que
a criança aprende a representar os fonemas com grafemas. É significativo
mostrar que, mesmo se tratando do português, são duas modalidades no
mínimo diferentes em termos de relação entre fonologia e ortografia. Então,
incluí no livro todo um capítulo sobre a questão das relações entre a ortografia
da língua e a alfabetização nessa língua.

CADERNOS CENPEC – Que outro capítulo você destacaria na obra?

MAGDA SOARES – Há um capítulo sobre a consciência fonológica, um


conceito geralmente mal compreendido. Muitos acreditam que, ao falar de
consciência fonológica, se está necessariamente defendendo o ensino pelo
método fônico. Então, neste capítulo, eu aprofundo o conceito colocando-o
no contexto mais amplo da consciência metalinguística. Discuto os
diferentes níveis de consciência metalinguística a serem desenvolvidos para
contextualizar a consciência fonológica, e como é importante o trabalho com
esses diferentes níveis para a aprendizagem da língua escrita. Dentre esses
níveis, há alguns que são desenvolvidos junto com a alfabetização, apesar de
não serem essenciais a ela. Um exemplo disso é a consciência metatextual
no trabalho com produção de texto e com leitura. Há muito o que se discutir
sobre consciência sintática, consciência morfológica e consciência semântica

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Entrevista com Magda Soares

para abordar ensino de gramática, gramática contextualizada, etc. Mas isso


já seria outro livro! Neste, eu quis pelo menos discutir um pouco isso para
contextualizar a consciência fonológica, para situá-la nesses processos e
defini-la. Mesmo ao enfocar a consciência fonológica, quis levar a perceber
que ela apresenta diferentes dimensões, desde a dimensão da consciência
fonológica da palavra, depois da sílaba até chegar ao fonema. Então, foi
necessário trazer o conceito de consciência fonêmica também.

CADERNOS CENPEC – No currículo de Lagoa Santa, você distingue três tipos


de desenvolvimento que concorrem concomitantemente para a alfabetização.
Quais são?

MAGDA SOARES – Os três são: o conhecimento das letras, a evolução


psicogenética e a consciência fonológica, que são desenvolvidos
simultaneamente. Quem adota a perspectiva de Emilia Ferreiro defende
que, por exemplo, se a criança está na fase da garatuja, é preciso esperar
que ela avance dessa fase. Eu defendo que não se pode esperar, não. Ela
está na garatuja porque não está “ouvindo” o som das palavras. Ela tem de
ouvir o som das palavras para saber que o som das palavras é que é escrito,
representado, não o significado da palavra.

CADERNOS CENPEC – Você interagiu três facetas? Uma faceta que é gráfica,
outra que é linguística e uma outra que é psicológica?

MAGDA SOARES – É, exatamente. Há um processo psicológico, cognitivo. Eu


prefiro chamar cognitivo. O desenvolvimento cognitivo da criança caminha
junto com o desenvolvimento de consciência fonológica e junto com o
conhecimento das letras, ou seja, de saber que é o som das palavras que
é registrado por grafemas. Isso é o que eu vejo acontecer com as crianças,
comprovamos esse processo com 600 crianças em Lagoa Santa. Elas precisam
chegar à consciência fonológica da palavra. Há aqui algo interessante, que
não foi possível abordar neste livro, talvez entre em um próximo, que é o
processo de passar da palavra para a frase. Eu me esforço muito lá em Lagoa
Santa para não agir como pesquisadora, porque acho que é misturar posturas
e atividades. Ter um olhar de pesquisador é diferente de ter uma presença de
parceira. Eu não quero olhar a prática das professoras como pesquisadora,
embora a todo momento pense: “Meu Deus do céu, isso ia dar uma pesquisa
tão boa!” (risos). Mas é inevitável que seja uma forma de pesquisa, porque
vejo as coisas acontecendo. Você tem o referencial teórico e identifica as
lacunas que tem o teórico, como também identificas as lacunas que tem a
prática. Essa passagem da criança da escrita da palavra à escrita da frase é
interessante, viu?

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“O problema não é o método de alfabetização, é alfabetizar sem método” – Entrevista com Magda Soares

CADERNOS CENPEC – Isso na escrita e também na leitura?

MAGDA SOARES – Na escrita. Por exemplo, se você pede para a criança


escrever nomes de objetos, animais, ela escreve com correção. Quando
você pede que escreva as mesmas palavras em frase, ela erra a palavra
que mostrou que sabe escrever. A hipótese é que, quando a palavra está
inserida na frase, o processo de relacionar fonema a grafema se torna mais
difícil, porque oralmente a palavra se perde na frase, perde de certa forma a
individualidade, já que a frase é uma cadeia fonológica sem interrupção, os
fonemas são pronunciados de forma contínua. Quando se pede a escrita de
uma palavra, ela está isolada, então a criança focaliza as sílabas.

CADERNOS CENPEC - É uma questão realmente ligada à representação?

MAGDA SOARES – É. Há casos, e não poucos, de criança que está, por


exemplo, silábica-alfabética ou até alfabética na escrita de palavras. Na
escrita de frases ela está em um nível anterior, ela está silábica sem valor
sonoro, está até frequentemente pré-silábica. Quando fazemos, em Lagoa
Santa, os diagnósticos, avaliamos as crianças tanto na escrita de palavras
quanto na escrita de frase. Analisando os resultados com as professoras, nos
perguntamos: “Está desencontrado... Como é que aqui ela sabe escrever a
palavra e aqui ela não sabe?”. Começamos a pensar sobre isso, a observar
com regularidade. Esse tipo de reflexão com as professoras é bom, porque
elas também ficam curiosas em descobrir a causa, cria uma atitude diferente
em relação ao processo das crianças. No livro, tratei apenas da leitura e
escrita de palavras, porque já dava muita conversa, já que achei importante
discutir os modelos de leitura e de escrita.

CADERNOS CENPEC – Sobre a questão do ensino, tanto tendo em vista


a consciência fonêmica quanto o ensino de nossa ortografia, é necessário
adotar uma abordagem metodológica para desenvolver os dois aspectos
da aprendizagem da escrita. O que se propõe aqui no Brasil, por alguns, é
uma abordagem metodológica muito parecida com a norte-americana, que
é a sintética, partindo dos sons. O aluno pronuncia artificialmente os sons,
incluindo as consoantes, o que linguisticamente é quase impossível no
português brasileiro, pois elas não têm existência própria sem auxílio de uma
vogal. Daí muitos proporem, mesmo nos EUA, uma abordagem analítica. Essa
perspectiva de partir do fonema é adequada no caso do português brasileiro
e o ensino de sua escrita?

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Entrevista com Magda Soares

MAGDA SOARES – O mais adequado é partir do texto ou pelo menos da


palavra. Para abordar isso no livro, ao lado de minha análise da bibliografia
está minha experiência, meu trabalho direto com as professoras e as crianças
em Lagoa Santa. Lá, trabalhamos sempre o processo a partir de um texto. As
professoras trabalham muito leitura e interpretação de textos de diferentes
gêneros. A partir disso, a professora seleciona uma frase do texto e foca
a atenção nessa frase, mostra aos alunos que a frase é feita de palavras,
seccionando-a oralmente e escrevendo a frase, indicando o espaço entre uma
palavra e outra. Nesse momento, é possível trabalhar com as palavras, em
seguida das palavras para as sílabas – oralmente e na escrita. Da sílaba então
se chega ao fonema, o que é feito sempre sem que se pronuncie o fonema,
mas por jogos baseados na técnica de comutação linguística: por exemplo,
na palavra “pa-to”, se altero o primeiro som, posso compor novas palavras,
como “sa-po”, “fa-to”, “ga-to”, “ma-to”. São dois caminhos que se sucedem:
um é top down – do texto ao fonema; o outro é botton up – do fonema de
volta ao texto.

CADERNOS CENPEC – Você aborda os estágios do desenvolvimento da escrita


de Emilia Ferreiro no livro?

MAGDA SOARES – Sim, abordo, sobretudo porque vemos que as crianças


passam pelas fases de conceitualização da escrita que Emilia Ferreiro
estudou e explicou. Mas há dois aspectos relacionados a esses estudos que
me deixavam intrigada. O primeiro era: por que os franceses e os ingleses,
por exemplo, não consideram a teoria de Emilia Ferreiro em suas práticas
de alfabetização? Muitos nem a conhecem. Há quem diga que sua teoria
seria para crianças do Terceiro Mundo... O segundo aspecto era: “Será que
só Emilia Ferreiro identificou fases de desenvolvimento na apropriação da
escrita pela criança?”. Na verdade, não. A pesquisa de Ferreiro se insere no
quadro piagetiano, da psicogênese. Então, fui buscar bibliografia a respeito,
em outros quadros conceituais que trataram das fases de desenvolvimento da
escrita na criança, e, assim, mais um capítulo surgiu. Nele, mostro que não é
somente Emilia Ferreiro que percebeu e estudou as fases de desenvolvimento
na aprendizagem da escrita. A pesquisadora Glenda Bissex, anterior a
Ferreiro, por exemplo, identificou fases com base na aprendizagem da escrita
pelo filho.

CADERNOS CENPEC – Como você chegou a esses estudos anteriores a Ferreiro?

MAGDA SOARES – Em um artigo, Cláudia Martins caracteriza o paradigma que


orienta Emilia Ferreiro como construtivista, diferenciando-o do paradigma de

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“O problema não é o método de alfabetização, é alfabetizar sem método” – Entrevista com Magda Soares

Linnea Ehri, que faz pesquisas sobre a aprendizagem da escrita no quadro


fonológico. Ehri parte do momento em que a criança já tomou consciência
de que a escrita é o registro do som das palavras, e investiga do ponto de
vista fonológico como o processo se desenvolve. Ferreiro investiga o processo
do ponto de vista psicogenético, construtivista, parte de antes mesmo que a
criança compreenda que a escrita é o registro dos sons da fala, e não de seus
significados. Essas referências que, no meu entender, se complementam, não
se opõem, me deram a clareza necessária para escrever o capítulo em que
faço a revisão das fases de aprendizagem da língua escrita em diferentes
propostas, não só as de Ferreiro e Ehri, que termino por adotar.

CADERNOS CENPEC – Há um embate de alguns grupos brasileiros com a


perspectiva de Emilia Ferreiro, principalmente quando se aborda a questão
linguística no processo de aprendizagem da escrita. Houve um debate difícil
na UFMG entre Emilia Ferreiro, Milton do Nascimento, você [Antônio Augusto
Gomes Batista], Marco Antônio de Oliveira, Eunice Nicolau e Daniel Alvarenga,
que na época faziam uma pesquisa sobre a aquisição do sistema ortográfico.

MAGDA SOARES – Ela ficou descontente na época com contestações que


vinham do campo da linguística. A ideia, no fundo, para a escrita de um dos
capítulos está relacionada a essas contestações. Eu queria esclarecer como
interpreto a controvérsia e, como sou fundamentalmente professora, o que
esclareço para mim quero sempre partilhar com os outros. Não consigo
entender as pessoas que ficam pesquisando e estudando, na academia, por
exemplo, que escrevem artigos que só os pares vão ler e compreender.

CADERNOS CENPEC – E você pensa em compartilhar com quem, quando está


escrevendo? Com estudantes de graduação, professores?

MAGDA SOARES – Pois é, pensar o público desse livro foi outro processo
demorado. A primeira ideia era escrever para professores, para chegar à
escola, que, aliás, foi sempre a minha postura em relação à produção de livros
e artigos, por isso é que eu escrevi tantas coleções didáticas. Acredito que
toda essa discussão sobre alfabetização, sobre ensino da língua não vai servir
de nada se não mudar a escola, particularmente a escola pública. Mas, a certa
altura da escrita deste livro, percebi que o que eu estava escrevendo não iria
servir diretamente a professores, e sim a quem forma os alfabetizadores. E
isso me traz um pouco de decepção com esse livro, porque não é diretamente
para as alfabetizadoras... É preciso fazer a transposição didática para
chegar à prática da sala de aula. Então a minha hipótese é que os leitores
do livro serão basicamente os formadores de alfabetizadores que queiram

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Entrevista com Magda Soares

ampliar seu conhecimento do processo de alfabetização, considerando-o


como um conteúdo complexo, não apenas uma técnica, uma questão de
método. Tomara! E talvez interesse também a pesquisadores que queiram
contextualizar o recorte de sua pesquisa sobre alfabetização no quadro amplo
desse processo. O livro tem ainda uma intenção um pouco combativa de ter e
fornecer argumentos para discussão com outras perspectivas.

CADERNOS CENPEC – Que outras perspectivas? Você poderia dar um exemplo?

MAGDA SOARES – Renata Jardini, fonoaudióloga, tendo lido este meu último
livro, me escreveu para dialogar sobre alfabetização. Ela propõe um método
de alfabetização que parte da articulação dos fonemas, denominado “método
das boquinhas”. Mantivemos uma boa interação por e-mail e discutimos
esclarecendo nossas perspectivas: ela, da área médica, analisa o processo do
ponto de vista fisiológico, do funcionamento do aparelho fonador, enquanto
eu analiso do ponto de vista da linguística e da psicologia cognitiva. É esta
minha vontade, minha intenção: que as discussões a respeito de como
alfabetizar sejam discutidas com clareza dos pressupostos e consciência
de que o processo de aprendizagem da língua escrita é complexo. Podemos
adotar diferentes perspectivas, mas não podemos deixar de concluir que
essas diferentes perspectivas se somam, não se contradizem nem se opõem.

CADERNOS CENPEC – Magda, e sobre essas polêmicas todas no Brasil hoje


em relação aos gestores, particularmente aos gestores que se encantam com
soluções mágicas que chegam para eles – o que você diria sobre isso? O
que se poderia dizer às pessoas que formulam políticas para alfabetização
e acreditam firmemente que um método vai resolver todos os problemas da
alfabetização? O que você diria para que não pensem que o que você escreveu
é um método?

MAGDA SOARES – Eu já não sei o que a gente tem de fazer neste país, viu?
Adotam-se projetos e métodos por critérios outros que não o critério da
fundamentação teórica. Nas situações em que eu aceitei falar para gestores,
não abordei teorias. Sempre achei que o caminho era falar sobre o projeto
de Lagoa Santa. E, com base no projeto, mostrar o que é alfabetizar por
meio da comprovação pelos resultados. Então mostro como é o processo de
aprendizagem da língua escrita e como agir para chegar ao sucesso, como
trabalhamos e o que trabalhamos em cada situação. Mas confesso que ando
muito decepcionada com os gestores neste país. Prefeitos, secretários de
educação, MEC, que propõem a cada mandato projetos que não consideram
o passado, que não consideram fundamentos em que o proposto se baseie.

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“O problema não é o método de alfabetização, é alfabetizar sem método” – Entrevista com Magda Soares

Intervenções, uma depois de outra, sem que se veja real avanço na qualidade
do ensino e da aprendizagem. Não sei qual seria a solução. Estou convicta de
que o caminho, embora longo, seja atuar sobre a formação inicial dos futuros
alfabetizadores. O que se tem proposto como formação continuada tenta
continuar uma formação que não existiu antes... continuar o quê? Mas isso
significa mudar o currículo dos cursos de Pedagogia, o que se tem tentado
ao longo de anos sem sucesso, ou então, quem sabe, ser criado um curso
específico para formação de alfabetizadores.

CADERNOS CENPEC – Como o Normal Superior, por exemplo?

MAGDA SOARES – É, o curso Normal Superior foi minha esperança, porque


eu acreditava que seria um curso para formar especificamente os professores
das séries iniciais e da educação infantil. Mas as universidades públicas não
assumiram esse curso, acho que porque consideraram que seria um curso
muito “básico” para se ocuparem com ele... Ou talvez porque os cursos de
Pedagogia consideravam que já faziam o que se pretendia com o Normal
Superior. As instituições particulares é que passaram a oferecer o Normal
Superior. E a maioria desses cursos nada mais tem sido que uma “reprodução
simplificada” dos cursos de Pedagogia. A formação de professores para a
educação infantil e as séries iniciais é um grande problema. E penso que,
se não reformularmos a formação desses professores, não resolveremos o
problema do nosso reiterado fracasso não só em alfabetizar nossas crianças
mas também em dar a elas condições para a continuidade de estudos. Há até
uma alternativa interessante que é o Mestrado Profissional, mas que também
tem enfrentado inúmeros problemas: a oferta para a área da alfabetização
é praticamente inexistente; nas universidades, os professores alegam que
não têm tempo para assumir mais esse encargo, por isso os mestrados
profissionais vêm selecionando um número reduzido de candidatos, falta
apoio em bolsas e liberação, por parte dos empregadores, dos professores
para fazer o curso, os critérios de seleção em geral resultam em pouco impacto
sobre a qualidade de ensino nas escolas. A minha ideia é que faculdades ou
universidades fizessem convênio com uma prefeitura, garantindo no projeto
a liberação de carga horária dos professores selecionados, pelo menos em
parte, para que pudessem fazer o curso. Assim seria possível atender um
número significativo de professores; melhor ainda se o projeto envolvesse
toda a rede de ensino, selecionando um ou dois professores de cada escola
da rede, que se comprometeriam a socializar a aprendizagem com os colegas
da escola... A maior parte dos municípios tem um número pequeno de escolas,
é uma alternativa viável. Mas parece haver pouco interesse nisso.

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Entrevista com Magda Soares

CADERNOS CENPEC – Você afirma que o grande problema é que no Brasil se


criou a mentalidade de que alfabetização é uma questão de método. Poderia
explicar melhor esse problema?

MAGDA SOARES – A nossa história da alfabetização é uma história de


mudança de método em método, conforme a tendência do momento.
Professores e gestores discutiam: “Não, bom mesmo é o silábico”. “Ah, não,
não é o silábico. Bom mesmo é o global.” “Não, é o fônico.” Eu me lembro
de que, quando estava na escola pública, a grande questão que a gente
tinha em cada começo de ano era sobre qual método usar para alfabetizar as
crianças. E as professoras adotavam o método que na verdade estivesse mais
próximo de um receituário, minuciosamente prescrito nos livros didáticos do
método escolhido. Nos primeiros anos de minha vida profissional, eu formava
professoras no curso normal de uma escola municipal. A grande maioria das
alunas era de meninas que já estavam trabalhando em escolas, e o problema
que elas traziam era qual método usar, como era um determinado método,
como era outro determinado método.

CADERNOS CENPEC – Se não é sobre métodos, qual é a principal questão


sobre alfabetização que devemos discutir? Ou seja, qual a resposta para
como alfabetizar nossas crianças?

MAGDA SOARES – É essa conclusão a que chego no livro. A questão não é de


método, porque, se analisarmos os métodos que circulam na área, cada um
privilegia um aspecto que é, sim, necessário trabalhar. Até o fônico, porque
ninguém pode negar que a criança tem que aprender a relação fonema-grafema
para se alfabetizar, já que a escrita alfabética é um sistema de representação
de fonemas em grafemas. Mas a escrita não é só essa relação, o processo de
aprendizagem da língua escrita não é tão simples assim. Então, a solução é
compreender o processo dessa aprendizagem em toda a sua complexidade,
e não é possível um método único para dar conta dessa complexidade. É
preciso conhecer o processo de conceitualização da escrita pela criança na
perspectiva psicogenética, as operações cognitivas que estão envolvidas na
compreensão do sistema de escrita, é preciso conhecer a fonologia da língua
e saber relacioná-la como sistema alfabético e com a evolução da criança,
o desenvolvimento da criança. E ainda é preciso relacionar tudo isso com
o conhecimento das letras, que tem sido um conhecimento em geral mal
trabalhado, pois se ensinam as letras como figuras, o que as letras não são,
elas são uma representação abstrata e arbitrária de sons – fonemas – que
também são abstratos, o que exige um trabalho específico com o conhecimento

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“O problema não é o método de alfabetização, é alfabetizar sem método” – Entrevista com Magda Soares

do alfabeto. Parece óbvio que um único método não pode atender a toda essa
necessária articulação de diferentes processos. Por isso a minha proposta no
livro é que não se busque um método de alfabetização, mas que se busque
uma alfabetização com método: alfabetizar compreendendo as várias facetas
do processo.

CADERNOS CENPEC – Isso na leitura e na escrita? A leitura e a escrita podem


ser vistas como processos diferentes ou podemos considerá-las uma o
espelho da outra?

MAGDA SOARES – Na leitura e na escrita. São processos diferentes, e esta é


mais uma razão para não ser possível um único método de alfabetização. É
preciso compreender que os processos de ler e de escrever são cognitiva e
linguisticamente diferentes, embora se desenvolvam simultaneamente. Para
ler, o processo é representar por sons os grafemas; para escrever, o processo
é transformar grafemas em sons. No livro, discuto esses dois processos
e a importância da compreensão deles e das diferenças entre eles para a
alfabetização.

CADERNOS CENPEC – Você afirmou que a redução da alfabetização a uma


questão de método seria algo brasileiro e que talvez tenha ficado no passado.
Havia, por exemplo, uma época em que ou era silábico ou era global, sendo
que havia uma hierarquia entre os dois.

MAGDA SOARES – Pobre só aprenderia pelo silábico, rico aprendia pelo


global... (risos).

CADERNOS CENPEC – Isso não seria uma questão internacional? Ou voltou a


se tornar mundial com essa guerra dos métodos nos Estados Unidos?

MAGDA SOARES – Eu acho que não é geral, internacional. A “guerra dos


métodos” ocorre mesmo é nos Estados Unidos entre um método global, que
chamam de whole language, e o fônico. A whole language não é exatamente
o método global que se difundiu no Brasil, que é muito específico, veio da
Universidade de Colúmbia por intermédio de Lúcia Casasanta. O que nos
Estados Unidos chamam de “guerra dos métodos” é a disputa entre método
fônico, que parte dos fonemas, e a chamada whole language, que nega
métodos, e defende a aprendizagem por meio da interação da criança com
textos e livros de diferentes gêneros. Para nós, no passado a “guerra” era entre
métodos sintéticos e métodos analíticos, atualmente é entre construtivismo e
método fônico.

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Entrevista com Magda Soares

CADERNOS CENPEC – Magda, então podemos dizer que os nossos métodos


globais são uma invenção brasileira?

MAGDA SOARES – Eles são muito específicos; o nosso global é o também


chamado método global de contos. O curso que Lúcia Casasanta fez em
Colúmbia, que resultou no método global que trouxe para o Brasil, tinha como
quadro de referência a Gestalt. Então, partia-se de um texto, em geral um
conto, e dele iam-se progressivamente fazendo segmentações: de frases, de
palavras, de sílabas. Mas eu tenho minhas hipóteses para essa introdução do
método global de contos no Brasil. Todos os livros que tenho sobre história da
alfabetização nos Estados Unidos falam sobre método fônico e sobre o método
look and say, em que a criança aprendia a reconhecer palavras e mesmo
frases como um todo, por memorização – como se vê, com pressupostos
da Gestalt e um antecedente da whole language; não há menção a método
global de contos. Suponho que, quando Lúcia Casasanta voltou ao Brasil,
como era muito interessada em literatura infantil, deve ter tido a ideia de
partir de um conto, de uma história, mas construída artificialmente, para levar
progressivamente a criança a perceber a segmentação da cadeia sonora da
fala.

CADERNOS CENPEC – Não é um grande problema, mas você defende também


que não é possível evitar o ensino das relações fonema-grafema. Mas, com
exceção de alguns poucos fonemas consonantais e das vogais, nós não
pronunciamos a maior parte das consoantes isoladamente.

MAGDA SOARES – Exatamente. Esta é a grande questão: a criança precisa


aprender a relação dos sons da fala com os grafemas da escrita, mas o som que
é representado na escrita, o fonema, não é pronunciável, é uma representação
linguística abstrata. Em ortografias com transparência, ainda que não total,
como o português brasileiro, não é difícil que a criança identifique – o que não
quer dizer pronuncie – o fonema por contraste ou oposição com outro fonema.
Em ortografias opacas, como a inglesa, isso se torna bem mais difícil, e é
preciso usar memorização, nos casos em que um mesmo conjunto de letras
corresponde a fonemas diferentes, ou usar muito a morfologia das palavras.

CADERNOS CENPEC – Você acha que a exploração do som com a letra pura é
danosa para o processo de alfabetização?

MAGDA SOARES – Há momentos em que a articulação pode ajudar,


como na diferenciação entre sonoras e surdas, as chamadas consoantes
homorgânicas, que têm a mesma articulação no aparelho fonador, mas se

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“O problema não é o método de alfabetização, é alfabetizar sem método” – Entrevista com Magda Soares

distinguem pela maior ou menor vibração das cordas vocais. Mas não acho
que isso seja necessário. É muito mais fácil levar a criança a perceber que
“pata” e “bata” são duas palavras diferentes e que são diferentes porque
o som de “pa” é diferente do som de “ba”, do que ficar fazendo a criança
repetir “ba-ba-ba”. Quando comecei a desenvolver o projeto em Lagoa Santa,
havia uma professora que enchia um saco plástico de pedacinhos de papel
para a criança falar dentro do saco “pa”, “ba”. Se fosse a consoante sonora
[“ba”], os papéis voariam. E não voava nada, voava só um pouquinho... Os
alunos não estavam entendendo o que era aquilo de ficar falando na boca de
um saco plástico (risos). Um esforço enorme da professora, sobretudo. Logo
no começo eu disse que não era necessário. Meu primeiro momento lá foi
ver como as professoras trabalhavam. Era incrível, muitas usavam o método
da boquinha, focalizando a articulação dos sons. Foi preciso convencê-las
de que nem sempre isso é necessário. E hoje eu me sinto realizada quando
vejo as professoras falando em fonema, sílabas, CVC [sílaba com a estrutura
Consoante + Vogal + Consoante], CCV [sílaba com a estrutura Consoante +
Consoante + Vogal] – estudamos as estruturas silábicas, porque é das sílabas
que se chega à identificação dos fonemas. Eu me preocupo muito com o
projeto em Lagoa Santa porque vai chegar um momento em que vou ter de
sair, não sou eterna... Por isso, não quero que o Núcleo fique dependendo da
minha figura. Eu fico me consolando, dizendo que vou escrever um livro com
esse projeto. Mas não sei se terei coragem de fazer isso.

CADERNOS CENPEC – Por quê?

MAGDA SOARES – Primeiro, é a questão de tomar um distanciamento que seria


necessário, para ver “de fora” a experiência. E também há muita coisa que é
essencial da experiência que eu não gostaria de tornar público. Sinto que seria
uma espécie de traição. Por exemplo, as dificuldades. Quanto às dificuldades
pedagógicas que aparecem, não há problema. Mas há dificuldades de outra
natureza... Por exemplo, como é difícil enfrentar as injunções administrativas,
negociar com prefeito, com secretários de educação, com as determinações
de nível estadual. Falar sobre isso, ainda que eu não cite o município, todo
mundo vai saber que é de lá que estou falando. E seria injusto, porque em
todos os municípios é assim, sempre o jogo do pedagógico com o político.

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Entrevista com Magda Soares

CADERNOS CENPEC – Voltando à formação inicial dos alfabetizadores e


considerando que está a cargo dos cursos de Pedagogia, como você acha que
ela poderia ser?

MAGDA SOARES – Seria necessário que, especificamente na formação de


alfabetizadores, nos cursos de Pedagogia, se discutisse como a criança
aprende e o que é esse objeto linguístico que ela aprende, a escrita. A partir
disso, inferir como orientar a aprendizagem da criança. Porque, conhecendo o
processo e o objeto, é possível definir o que fazer e compreender dificuldades
da criança para ajudá-la de forma adequada. Por exemplo, sobre a letra
espelhada, o que acontece com certa frequência na fase inicial da alfabetização,
em geral se pensa que “essa criança tem dificuldade. É disléxica, encaminha
para o psicólogo”. Se o alfabetizador é bem formado, ele sabe o que explica a
letra espelhada – uma questão da assimetria de certas letras – e sabe, assim,
o que fazer. As professoras em Lagoa Santa estão sempre interpretando as
dificuldades das crianças, e é isso que uma professora precisa saber fazer.
Porque em salas de 25/30 alunos, há níveis diferentes de aprendizagem, e
há somente uma professora para orientar crianças nesses diferentes níveis. O
que a professora tem que saber? Tem que entender o processo da turma, de
cada grupo, de cada criança, e saber o que fazer, como intervir.

CADERNOS CENPEC – Um grande desafio da educação é entender qual a


diferença entre saber o que a criança aprende e saber o que se deve ensinar.
Como resolver esse desafio?

MAGDA SOARES – É fundamental para o professor compreender essa


diferença. O que o professor precisa aprender para levar a criança a aprender? E
aprender isso por quê? Para quê? Ele precisa aprender aquilo que é necessário
saber para compreender o que a criança vai aprender. E tem que compreender
como é que a criança aprende. Por isso o projeto em desenvolvimento em
Lagoa Santa tem tido bons resultados. Primeiro as alfabetizadoras passam
pela experiência de aprender e desenvolver determinadas habilidades. Por
exemplo: trabalhando com produção textual, com textos narrativos, textos
informativos e até textos argumentativos nas séries iniciais. Trabalhar com
textos argumentativos causou um espanto: nas séries iniciais? Desenvolvemos
uma reflexão: “Toda criança argumenta. Desde pequenininha já está
argumentando com a mãe. Argumenta com vocês, professoras. Então por
que não podem escrever um texto argumentativo?”. Estudamos o que é texto
argumentativo, as professoras produzem um texto argumentativo, eu leio e
mostro como fazer a revisão do texto. Em seguida, passamos a discutir como

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“O problema não é o método de alfabetização, é alfabetizar sem método” – Entrevista com Magda Soares

orientar a criança para argumentar por escrito. Peço que selecionem alguma
coisa que está ocorrendo na escola para discutir na sala de aula. Por exemplo,
uma delas selecionou a questão do dever de casa, de que muitos alunos
reclamavam. Ela discutiu com os alunos essa questão, se é bom ou não ter
dever de casa, se precisa ou não de dever de casa. Depois de discutir, fez um
esquema: expor a opinião e depois defendê-la. Como a discussão evidencia
que há opiniões diferentes sobre ter ou não dever de casa, é preciso rebater
as opiniões contrárias à assumida. As crianças são espertas, escrevem bons
textos argumentativos usando o esquema. Discutimos os textos dos alunos,
analisando como as crianças elaboraram seus textos. Um menino escreveu:
“Eu detesto dever de casa, porque a gente não pode brincar. A gente fica só
ocupado com o dever de casa. Tem gente que acha bom, mas eu detesto dever
de casa” (risos). O interessante é que as professoras passam pela experiência
para depois transferir aquilo para a escola, levando as crianças a também
passar pela experiência.

CADERNOS CENPEC – Estou vendo ali na estante o livro Reading in the brain.
O que você está achando de suas leituras em neurociência, neurolinguística?
O quanto isso colabora para pensar nossas questões? Pelo que eu li, no
caso do cérebro, há a construção de uma arquitetura cerebral e as outras
aprendizagens vão ser realizadas a partir dela. Como você vê isso?

MAGDA SOARES – Estou achando que os estudos de neurociência vão clarear


muita coisa na área da aprendizagem da escrita. Ainda estão no começo, mas
vão contribuir cada vez mais. E ando fascinada com as leituras que tenho
feito sobre isso. Porque você vê como é que está tudo aqui dentro [apontando
a cabeça], entendeu? É uma coisa até meio misteriosa... Quase que eu fico
obrigada a acreditar em Deus, eu, que sou ateia. Eu me pergunto como pode
um animal ter algo aqui dentro que faz tanta coisa! Até a própria dislexia ficou
praticamente esclarecida com a análise neurológica.

CADERNOS CENPEC – Em que sentido, Magda?

MAGDA SOARES – Os estudos neurológicos feitos com esses equipamentos


sofisticadíssimos de imagem mostram que as pessoas disléxicas apresentam
um problema em uma região específica do cérebro em que se processam os
sons. Funciona de maneira muito diferente na pessoa que é disléxica. Quer
dizer, é uma questão neurológica, fundamentalmente. Antes, se acreditava
que era um problema de visão. Mas é uma questão do processamento cerebral
dos sons no cérebro. É incrível. Há pesquisas sobre outros problemas com a
escrita que são feitas com pessoas que tiveram algum acidente cerebral ou

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Entrevista com Magda Soares

algum acidente que ocasionou um dano no funcionamento em uma parte do


cérebro. Buscam, então, que parte do cérebro foi essa que deixou de funcionar.
Por exemplo, quando o indivíduo continua capaz de ler, mas não é mais capaz
de escrever. Quer dizer, são lugares diferentes do cérebro que são ativados
para a leitura ou para a escrita. Até os lugares diferentes do cérebro em que
processamos consoante e vogal já foram identificados. É impressionante o
que acontece dentro da cabeça da gente. Eu fico até meio confusa... Como se
fosse um anãozinho que estivesse aqui dentro traçando umas linhas (risos).
E o medo enorme de acontecer alguma coisa no que está aqui dentro! (risos).

CADERNOS CENPEC – São coisas assim, Magda, que fazem a gente querer
não só uma sociedade mais justa, mas também uma educação infantil de
excelente qualidade. Afinal, é o momento em que essa arquitetura cerebral
está sendo feita.

MAGDA SOARES – Isso é o que já se mostrou também. É na fase do nascimento


até os 6/7 anos que o cérebro está ainda com grande plasticidade. Depois
fica mais difícil. Uma competência importante de desenvolver em criança na
educação infantil é o desenvolvimento das memórias de curto prazo e de longo
prazo, tão fundamentais na aprendizagem da língua escrita. Outro exemplo,
a habilidade de classificar. Aprender a classificar é algo a ser desenvolvido
quando a criança é pequena. Na educação infantil, é uma injustiça não
desenvolver sistematicamente nas crianças essas habilidades, esses
processos cognitivos tão essenciais, sobretudo nas crianças das camadas
populares. Os privilegiados social e culturalmente têm em geral estímulos
em casa, mas as condições econômicas e socioculturais das crianças das
camadas populares não têm esses estímulos no lar. Então, a escola tem de
fazer aquilo que o contexto dessas crianças não teve condições de dar a elas.
Eu fico repetindo isso em Lagoa Santa ano após ano, e mostro o absurdo de
justificar dificuldades de crianças dizendo que ela é pobre, o pai é alcoólatra,
a mãe é analfabeta...

CADERNOS CENPEC – Que a família é desestruturada...

MAGDA SOARES – A luta é para desconstruir a ideia de que a criança de


camada popular é carente, é deficiente. É preciso combater essa concepção
permanentemente, tão interiorizada ela está no contexto das escolas
públicas. Quando chegam professoras novas na rede, é preciso antes de
tudo discutir essa questão, para evitar que tenham essa concepção de
nossas crianças. E não aceitam que culpem as famílias. É preciso entender
que essas famílias não têm como oferecer às crianças o que gostariam que

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“O problema não é o método de alfabetização, é alfabetizar sem método” – Entrevista com Magda Soares

as crianças trouxessem, porque, quando os pais eram crianças pobres, não


tiveram professoras para desenvolver neles essas habilidades, hábitos, que
o processo de escolarização demanda. Então, nosso dever e compromisso
é desenvolver o que as famílias não têm condições de desenvolver em seus
filhos, porque quando esses filhos, nossas crianças, forem pais, saberão
dar melhores condições a seus filhos. Mas é difícil, é impressionante como o
preconceito social continua presente, na sociedade e na escola.

CADERNOS CENPEC – Magda, esse livro me parece uma base muito sólida
para se produzir material para alfabetização.

MAGDA SOARES – É o que eu quero fazer agora. Quero traduzir o que discuto
nesse livro em um material de formação de alfabetizadores. Uma espécie de
livro didático para a alfabetizadora... E, como todo mundo sabe, gosto muito
de preparar material didático. Como disse, sou fundamentalmente professora,
então, é uma coisa que faço com prazer.

CADERNOS CENPEC – Como você planeja esse material?

MAGDA SOARES – Quero fazer entrelaçando alfabetização e letramento,


senão continua essa ideia muito vigente de que primeiro se alfabetiza e só
depois se trabalham leitura e escrita. Aliás, o meu medo é que o livro passe
essa ideia, sabe? Mas, como já disse, se fosse fazer esse entrelaçamento no
livro, teria que escrevê-lo em no mínimo dois volumes...

CADERNOS CENPEC – Então, o que a gente pode esperar em seguida é o


volume sobre o letramento teórico?

MAGDA SOARES – De certa forma, é, mas sob uma forma mais voltada
para a prática docente. Não sei ainda como vou chamar este novo livro.
Letramento não precisa ser teórico, não. Será? Não! Minha vontade é articular
letramento com a alfabetização, mostrando como essa articulação é possível
e mesmo necessária na prática, porque, se podemos discutir no nível teórico
separadamente alfabetização e letramento, na prática é preciso articular os
dois processos. E fazemos isso em Lagoa Santa. As professoras dizem que
esse é o “coração” do projeto – elas se referem a um gráfico que fiz colocando
o texto no centro e todos os demais componentes do processo partindo desse
centro. Talvez eu comece o novo livro por aí. O projeto de Lagoa Santa, que
vem sendo desenvolvido há nove anos, me dá alguma segurança para produzir
esse novo livro. Mas ainda preciso amadurecer a ideia, porque, enquanto não
tenho com clareza o plano de um livro, não consigo começar a escrever.

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Entrevista com Magda Soares

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