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Adler esclarece que a estreita relação entre experiência comum e opiniões do senso
comum não deve obscurecer a clara distinção entre ambas as noções. Para estabelecer a
referida distinção, ele assume decididamente uma asserção que, à primeira vista, pode
parecer problemática, mas que se torna bastante plausível quando ele esclarece o que
entende precisamente por ela. Ele afirma que “Experiência não é conhecimento”. Mas por
que não?
Adler alega que a experiência da respiração não é conhecimento da respiração ou
sobre a respiração. Para ele há três elementos envolvidos com esta função biológica: (1) a
respiração em si mesma, que posso estar experimentando ou não, conforme esteja
acordado ou dormindo, atento a ela ou desatento em relação a ela, (2) minha experiência
da respiração, que só se dá quando estou acordado e tenho minha atenção convergida para
esta atividade dos meus pulmões e (3) as opiniões que posso formar a respeito da
respiração, como, por exemplo: a opinião correta de que minha respiração continuará se
exercendo, independentemente de eu estar atento a ela e de estar experimentando-a.
Para Adler, experiência não é conhecimento: é uma fonte de conhecimento a respeito
das coisas experimentadas e, além disso, a experiência fornece um teste para as alegações
de conhecimento das coisas experimentadas. Para funcionar destas duas maneiras_ como
fonte e como teste de conhecimento_ a experiência tem de ser distinta tanto das coisas
experimentadas como do conhecimento sobre estas mesmas. A este respeito Adler faz
referência a John Dewey (1925, pp.18-21, 25-6).
Adler considera que o conhecimento sob a forma de doxa e de opiniões e crenças do
senso comum (que, para ele, têm alguns dos atributos da doxa) estão sempre sujeitas à
crítica e à retificação. A única crítica podendo ser feita à experiência qua tale consiste
em dizer que ela é “inadequada”, mas esta crítica da experiência geralmente brota de uma
crítica das opiniões que estão baseadas na experiência qualificada como “inadequada”.
Este tipo de crítica se aplica tanto a casos de experiência especial como a casos de
experiência comum. Os dados obtidos em uma investigação podem ser inadequados. E
quando isto ocorre, há o pressuposto de que outras e melhores opiniões se formariam,
caso outras e melhores experiências substituíssem a criticada. (Adler, 1965, pp.132-3).
Embora as crenças e opiniões do senso comum estejam sujeitas à crítica e retificação,
o senso comum não pode ser considerado uma faculdade autocrítica, pois não se
caracteriza como um modo de investigação metódica. Ele não produz um corpo
organizado de conhecimento, mas sim um agregado de opiniões separadas com pouca ou
nenhuma correlação. De fato, não se trata de nenhum modo de um corpo organizado de
conhecimento, mas temos razões para suspeitar que não se trata tampouco de um
agregado, pois há correlações de diferentes tipos entre essas crenças e opiniões, embora,
até onde nos é dado saber, não tenham sido explicitadas por ninguém até o presente
momento.
Isto posto, Adler coloca uma oportuna questão: De onde vêm as críticas e as
retificações das crenças do senso comum? Considerando que estas crenças costumam se
expressar por meio de generalizações, elas não podem receber quaisquer críticas ou
retificações dos historiadores, uma vez que estes estão voltados para eventos passados e
singulares. Considerando que elas estão relacionadas com questões de fato e existenciais
[que são opiniões sobre o que é ou acontece no mundo] não podem recebê-las dos
matemáticos, uma vez que estes estão voltados para entidades abstratas fora do tempo e
do espaço. Parece que restam tão-somente a ciência e a filosofia. Adler defende três teses
a este respeito:
(2) A Terra está parada; não gira em torno do seu eixo nem em
torno do Sol.
Adler afirma que não é difícil descobrir a experiência comum em que cada uma destas
proposições está baseada. Não fossem os dados obtidos por investigações especiais em
cada caso, estas opiniões do senso comum _apesar de manifestamente falsas_ não teriam
sido falsificadas. Ele acrescenta um detalhe muito importante: a ciência falsifica a
opinião do senso comum, não a experiência em que ela está baseada. E isto porque,
mesmo quando estas opiniões do senso comum são corrigidas e substituídas pelo
conhecimento científico, nossa experiência comum em relação aos assuntos mencionados
acima continua exatamente como era antes. (Adler, 1965, p.136).
Segundo pensamos, Adler tocou aqui em um aspecto crucial para uma boa compreen-
são das complexas relações entre o conhecimento do senso comum e o conhecimento
científico: o que se modifica é a opinião sobre determinada experiência, não a própria
experiência. Assim como na Antigüidade, qualquer pessoa do nosso tempo poderá
observar que, quando um pedaço de carne entra em estado de putrefação, ele fica cheio de
vermes. Estes mesmos vermes não estavam presentes quando a carne ainda era fresca e
não se pode constatar a olho nu que eles tivessem vindo de fora.
Até este ponto, estamos descrevendo uma experiência feita por muitas pessoas através
dos tempos e em todos os povos. Uma experiência que não se modificou, apesar de a
teoria da geração espontânea ter sido falsificada há séculos. Porém é importante frisar que
esta mesma teoria surgiu como uma resposta inadequada para uma indagação plausível:
De onde vêm estes vermes que aparecem na carne putrefata? A maioria das pessoas do
nosso tempo não saberia dar uma resposta correta para esta indagação, uma vez que ela
não pode ser respondida com qualquer conhecimento fornecido pela experiência comum,
mas sim com um conhecimento fornecido por uma experiência especial no domínio da
biologia.
Do mesmo modo, as experiências de que a Terra é plana e está parada, assim como a
de que a luz é transmitida instantaneamente da sua fonte, foram feitas por muitas pessoas
e em todos os povos. Estas experiências também não se modificaram. Qualquer pessoa no
nosso tempo_ mesmo que ela seja um cientista_ perceberá esses estados de coisas tal
como descritos acima, ainda que saiba se tratar de “aparências enganosas”. Teremos de
dedicar um espaço para o exame cuidadoso desta expressão, pois ela é fonte de graves
mal-entendidos. No presente momento, basta ficarmos com o ponto estabelecido por
Adler: não é a experiência que se modifica, porém a opinião formada a respeito dela.
(Adler, 1965, p.136).
Adler diz que é importante observar que a maneira pela qual a ciência corrige essas
opiniões do senso comum falsas_ indo além da experiência comum através de esforços de
investigação_ é em princípio a mesma maneira que teorias científicas posteriores
costumam corrigir erros das anteriores, surgidos por insuficiência de dados, observações
mal feitas, etc. Fazendo observações que seus antecessores não haviam feito, W. Harvey
(1578-1657) corrigiu a falsa opinião científica de que o sangue não circulava pelas veias.
O próprio Adler se apressa em esclarecer que a ênfase conferida por ele à experiência
não deve ser tomada como um sinal de desprezo nem de minimização do importante
papel exercido pelas hipóteses e pelas conceituações teóricas na investigação científica.
Ele faz questão de lembrar que o próprio Harvey não somente fez observações que ainda
não tinham sido feitas pelos seus antecessores, como também corrigiu seus raciocínios
sobre observações que eles tinham feito.
O fato é que ele tinha uma teoria melhor sobre o funcionamento do coração e dos
vasos sangüíneos_ uma teoria capaz de fornecer uma visão mais abrangente e mais
explicativa de dados antigos e novos. A diferença é que a ciência não corrige os erros do
senso comum deste mesmo modo, pois o senso comum têm opiniões, mas não constrói
teorias e explicações para as opiniões sustentadas por ele.
Evidentemente, os termos “teoria” e “explicação” estão sendo tomados por Adler em
um sentido estrito relacionado com a filosofia e a ciência, não em um sentido amplo em
que “teoria” assume as acepções de “visão das coisas”, “concepção”, etc. e “explicação”
assume a acepção de “qualquer relato procurando dar conta da razão de ser de uma coisa
ou acontecimento”. Nestes sentidos amplos, a quiromancia pode ser considerada uma
“teoria” e os mitos podem ser considerados “explicações”, porém, nos respectivos
sentidos estritos, não se pode dizer que haja qualquer teoria desenvolvida a partir da idéia
de que nosso destino está escrito nas linhas da nossa mão, tampouco qualquer explicação
feita a partir da idéia de que o mundo surgiu de um grande ovo primordial. Quando muito
pode-se falar em tentativas de teorizar sobre o destino humano e de explicar a origem do
mundo.
Estabelecido isto, Adler retoma um tópico abordado perfunctoriamente por ele.
Devemos lembrar que ele havia reconhecido um tipo especial de opinião ou crença do
senso comum: as assim chamadas “noções comuns” da geometria euclidiana e por
extensão os axiomas de sistemas geométricos não-euclidianos e sistemas lógicos.
Enquanto as demais crenças e opiniões do senso comum foram consideradas passíveis de
falsificação, as noções comuns ou axiomas constituíam, para Adler, uma exceção:
tomadas como proposições auto-evidentes, não poderiam ser falsificadas. Referindo-se de
saída ao princípio de não-contradição, diz Adler:
Não há dúvida de que podemos mostrar que o todo é maior que qualquer uma das
suas partes. Basta desenhar um círculo, dividi-lo em quatro partes e indagar se a área do
círculo pode ser menor do que a área de uma destas mesmas partes. Podemos mostrar,
mas não podemos demonstrar que o todo é maior do que qualquer uma das suas partes,
assim como podemos demonstrar que “A soma dos quadrados dos catetos é igual à do
quadrado da hipotenusa” (teorema de Pitágoras). Esta é uma proposição demonstrável;
aquela indemonstrável. Esta é uma não é uma proposição auto-evidente [se o fosse,
dispensaria o trabalho da demonstração]; aquela uma proposição auto-evidente.
Há ao menos dois tipos de termos primitivos: (1) os que são indefinidos dentro de
uma definição de algo [por exemplo: na definição: “O conhecimento é a crença
justificada”, há uma definição de “conhecimento” em termos de um tipo de crença, mas
não há uma definição de “crença”] ou que são indefinidos dentro de uma teoria [por
exemplo: o movimento retilíneo uniforme na mecânica clássica, que é tomado como um
estado natural, e “número” na axiomática de Peano (mas que podem ser definidos em
outras definições ou teorias)] e (2) os que são indefiníveis em toda e qualquer proposição
ou teoria [por exemplo: “todo” e “parte”]
Ora, se uma proposição é auto-evidente, a sua negação tem de ser autocontraditória.
Dizer que o todo não é maior do que uma das suas partes é emitir uma proposição auto-
contraditória. Seria como dizer: “Neste momento, eu estou mas não estou sentado nesta
cadeira”. Assim como não podemos conceber a possibilidade de um estado de coisas em
que o todo não seja maior do que a parte, não podemos conceber um estado de coisas em
que alguém, em um dado momento, esteja e não esteja sentado em uma cadeira.
Importante assinalar que proposições autocontraditórias são proposições falsas, mas
sua falsidade difere da das proposições empíricas falsas. Assim como proposições auto-
evidentes são necessariamente verdadeiras, proposições autocontraditórias são necessa-
riamente falsas, ao passo que proposições empíricas verdadeiras são contingentemente
verdadeiras e proposições empíricas falsas são contingentemente falsas. Dizendo de
outro modo: as primeiras são assim, porque têm de ser assim e não podem ser de outro
modo, ao passo que as segundas são assim, mas poderiam ser de outro modo.
Embora Adler não tivesse feito explicitamente nenhuma distinção entre as duas
referidas formas de falsidade, ele reconheceu que axiomas representam não só verdades
indemonstráveis como também incorrigíveis. Para Adler, eles constituem conhecimento
no sentido de episteme (ou seja: conhecimento seguro), não no sentido de doxa (crença
ou opinião). Para Adler, eles estão baseados na experiência comum e fazem parte do
conhecimento do senso comum, pois não pertencem a nenhum corpo organizado de
conhecimento. Não pertencem à lógica nem à matemática, assim como não pertencem à
ciência nem à história. E segundo Adler, esta é a razão pela qual Euclides teria chamado
seus axiomas de noções comuns.(Adler, 1965, p.139). Estabelecido isto, ele faz uma
importante afirmação:
Esta idéia de fundar um sistema de mundo ou de explicar todas as coisas a partir deste
ou daquele princípio eleito pode ser encontrada na filosofia pré-socrática em que os
filósofos estavam em busca de uma arché (um princípio, um fundamento) capaz de
permitir as referidas fundação e explicação. Tales julgava tê-lo encontrado na água,
Heráclito no fogo e Empédocles_ talvez mais próximo dos alquimistas_ na reunião dos
quatro elementos: Água, Ar, Fogo e Terra (Kirk & Raven, 1966).
Às vezes mais poéticos do que filosóficos, estes pré-socráticos estavam muito mais
perto do pensamento cosmogônico herdado da mentalidade mítica do que do pensamento
da tradição autenticamente filosófica e questionadora inaugurada por Sócrates (Burnet,
1930, pp.25-31). Dizemos isto, porque uma das características da mentalidade mítica_
diante da angústia produzida pela diversidade incontrolável dos fenômenos_ consistia em
fazer uma representação de uma totalidade fechada baseada em um princípio fundador e
fornecedor de coesão das coisas, capaz de produzir segurança e apaziguar seu temor do
caos. (Dodds, 1951. Eliade, 1966).
Descartes, Spinoza, Fichte, Hegel _ entre outros racionalistas e idealistas_ certamente
recusariam a idéia de que a filosofia e a ciência são refinamentos do conhecimento do
senso comum, porém_ considerando suas mais remotas raízes_ parece que suas filosofias
eram refinamentos do pensamento mítico. Não só há nelas resquícios típicos da busca
pela arché, como também resquícios animistas e antropomórficos. J. Monod (1976, p.50
e pp.157-8) e K. Popper (1973, 125 e 1957, vol. II) detectaram-nos muito bem nos
pensamentos holísticos de Hegel e Marx.
Para dar apenas um breve exemplo: Anaximandro dizia que ali onde as coisas
tiveram seu princípio, ali também terão seu fim. Marx, por sua vez, dizia que no prelúdio
da história era o comunismo (primitivo) e no fim da história, o comunismo (pós-
socialista). Para ambos, estava em jogo a concepção de um processo como um grande
círculo em que o princípio se encontrava com fim, ou seja: a idílica Idade do Ouro
perdida e recuperada. Ao animismo mítico, acrescente-se, portanto, o utopismo explícito.
Mas deixemos de lado nossas desavenças e justificadas antipatias em relação a
racionalistas, idealistas e céticos, bem como nosso manifesto apreço pelo senso comum, e
voltemos ao pensamento de Adler (Guerreiro, inédito, pp. 13-4, 60-2)
Após ter mostrado o desprezo pelo senso comum característico do pensamento
racionalista clássico e de outros que seriam melhor qualificados como idealistas, Adler
diz que o filósofo empírico (não necessariamente empirista) se caracteriza justamente por
recorrer ao senso comum para refutar devairios de uma razão hostil ou indiferente a este
mesmo. Diz ainda que o leitor poderá constatar que a experiência comum pode servir ao
filósofo do mesmo modo que os dados obtidos por investigações especiais servem ao
cientista para testar suas hipóteses.
O leitor poderá constatar também que, assim como a correção feita por Harvey das
visões errôneas do coração e da circulação sangüínea envolvia a correção do raciocínio
defeituoso dos seus predecessores, a defesa do senso comum contra os racionalistas e
céticos envolve uma crítica lógica das suas concepções, bem como uma reunião de
evidências empíricas contra estas mesmas. (Adler, 1965, p.142).
Para Adler, a filosofia não só pode defender como também corrigir as opiniões do
senso comum. Geralmente, tais correções costumam ser feitas pela ciência, pois, quando
elas se mostram defeituosas, seu defeito consiste em uma inadequação da experiência
comum com assuntos sobre os quais a investigação é possível. Caracterizando-se como
não-investigativa [quer dizer: como um conhecimento que não recorre a experiências
especiais e experimentos para testar hipóteses], a filosofia não tem condições de substituir
a experiência comum quando esta se mostra inadequada. Por isto mesmo, ela corrige a
opinião comum somente naquelas raras instâncias em que esta mesma representa uma
inadequada compreensão da experiência comum de onde emerge a opinião.
Como exemplo deste tipo de correção, Adler apresenta as correções_ feitas em
diferentes épocas e lugares por Santo Agostinho e W. James_ da concepção de tempo do
senso comum. De acordo com Adler, nossa experiência comum do fluxo temporal levou a
uma opinião do senso comum de que o tempo é dividido em três partes distintas: passado,
presente e futuro. Cada qual tinha determinada extensão e estavam separadas umas das
outras por linhas divisórias. As análises dos dois mencionados filósofos revelaram que é
incorreto conceber as três hipóstases como se estas estivessem separadas umas das outras
e relacionadas como três partes de uma área espacial.
Segundo entendemos há de fato um refinamento da opinião do senso comum, mas um
aperfeiçoamento que preserva as noções de passado, presente e futuro e as relaciona com
as de memória, atenção e prospecção. Ora, isto é muito diferente do argumento de
MacTaggart levado ao ridículo por G. Moore, por pedir que aceitássemos que passado,
presente e futuro não passavam de representações enganosas da nossa consciência. Se
assim fosse, não teria o menor sentido dizer algo tão simples e cristalino como: “Moore
não concordava com MacTaggart (passado), eu também não concordo (presente), mas
talvez possa concordar daqui a alguns anos (futuro)”. Devemos conter o riso? (Guerreiro,
1995).
De acordo com Adler, as correções introduzidas por Santo Agostinho e William
James ilustram bem como são radicalmente diferentes as maneiras como a ciência e a
filosofia corrigem o senso comum. A ciência o faz indo além da experiência comum
sempre que esta se mostra inadequada, substituindo-a por experiências especiais obtidas
mediante investigação. A filosofia o faz mantendo a experiência comum, mas
apresentando uma melhor compreensão ou um apreensão mais acurada das coisas
experimentadas. Adler complementa seu pensamento dizendo:
Adler entende que há uma diferença entre defender e corrigir as opiniões do senso co-
mum, de um lado, e confiar no senso comum de outro. Segundo ele, o método adequado
para a filosofia exige confiança na experiência comum, não no senso comum. A adoção
do método empírico (empirical method) conduz a um respeito às crenças do senso
comum, que brotaram das mesmas experiências para as quais o método apela, porém isto
não significa dizer que seja preciso apelar para a autoridade do senso comum, de modo
que ele possa estabelecer ou defender suas próprias teorias e conclusões.(Adler, 1965,
p.144).