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O PROBLEMA DA FICÇÃO

NA FILOSOFIA ANALÍTICA

Mario A. L. Guerreiro

Publicado por Editora UEL, Londrina, 1999


2. ABORDAGENS SEMÂNTICAS AMODAIS

2.1. Frege: As Regras do Jogo


Semântico

Como havíamos dito na Introdução, a primeira geração de


filósofos analíticos (Frege, Russell e Moore) não tinha como projeto
deliberado nenhuma tematização da ficção. Depararam-se com
questões relacionadas com ela de modo semelhante a alguém que,
ao dobrar uma esquina, topa repentinamente com uma pessoa
inconveniente ou estranha. No que diz respeito particularmente a
Frege, ele sequer tinha como finalidade uma investigação da
linguagem comum enquanto tal. Sua única preocupação ao longo de
toda a sua vida acadêmica foi o problema da fundamentação da
aritmética.

Tendo sempre esta finalidade em mente, foi levado ao estudo da


lógica _ para a qual, a exemplo de Russell e Whitehead, deu
inestimáveis contribuições_ e sentiu a necessidade de desenvolver
uma análise lógica da linguagem, pois, na sua época, alguns conceitos
relacionados com a aritmética e com a lógica formal lhe pareceram
bastante confusos (e de fato eram). Passaremos a examinar como
Frege entendeu as respectivas naturezas da predicação e da
identidade, porquanto estes dois pontos são fundamentais para
mostrar como ele acabou se deparando inesperadamente com a
questão da ficção.

Quando dizemos que a Suiça é um país pequeno encravado nos


Alpes, estamos falando de uma propriedade de um objeto. Quando
dizemos que a Suiça fabrica muitos relógios, estamos falando de
outra propriedade deste mesmo objeto. ”Suiça” é um nome próprio,
assim como “Sócrates”, “Oceano Índico”, “Rex” (o cão do meu
vizinho), etc. Distinguimos intuitivamente um nome próprio daquilo
que é designado por ele. O que é designado por um nome próprio,
mediante um ato de nomeação, pode ser um país, uma personagem
da história, uma praça, etc.

Apesar das diferenças entre estas coisas, importa saber que um


nome próprio designa um indivíduo determinado. Há somente um
país denominado “Suiça”, assim como há somente uma personagem
da história denominada Napoleão Bonaparte. Assim, diferentemente
de um nome comum_ que designa uma classe de indivíduos e que
Frege chama de Begriffswort (termo conceitual)_ um nome próprio
sempre designa um indivíduo determinado, ou seja: um indivíduo
único em todo o universo.

O ato de nomear é um ato lingüístico, mas o indivíduo ou objeto


nomeado não é um ato, tampouco uma entidade lingüística. Um
nome próprio_ tal como empregado no ato da nomeação_ é uma
entidade lingüística. Por mais que procuremos, não encontraremos
nomes próprios entre a multiplicidade de objetos dispostos nos
limites do espaço e do tempo. Predicados ou expressões predicativas
são entidades lingüísticas e a relação sujeito | predicado é uma
estrutura lingüística. Mas a relação objeto | propriedade não é uma
estrutura lingüística, porque seus componentes não são entidades
lingüísticas. Seus componentes são entidades extralingüísticas e a
relação mantida entre eles constitui uma estrutura ontológica.

Desse modo, quando dizemos: (a) “A Suiça é um país pequeno


encravado nos Alpes”, estamos predicando o predicado “um país
pequeno encravados nos Alpes” de o sujeito “A Suiça”. Fazemos uma
predicação sempre que dizemos que tal coisa é assim e assim;
sempre que atribuímos um predicado qualquer a um sujeito
qualquer. Nada impede que atribuamos o predicado “um país grande
ocupando uma planície” ao sujeito “A Suiça”. Porém, neste caso, se
dissermos: (b) “A Suiça é um país grande ocupando uma planície”,
não estaremos falando de uma propriedade possuída pelo objeto “A
Suiça”. Como a geografia pode confirmar, o objeto “A Suiça”
apresenta a propriedade a que se refere o predicado encontrável em
(a), mas não a pretendida pelo predicado encontrável em (b).

Não basta predicar um predicado de um sujeito, para que se


estabeleça uma propriedade de um objeto, é imprescindível que o
objeto a tenha de fato. Nada impede que enunciemos (b). Ao fazer
esta enunciação, produzimos uma sentença bem-formada do tipo
predicativo. Há nesta sentença um sujeito gramatical e um predicado
gramatical, mas não há um predicado lógico, pois a expressão “país
grande ocupando uma planície”_ embora possa ser propriedade de
algum país_ não é uma propriedade do país chamado “Suiça”. Assim
sendo, em (a) temos uma predicação verdadeira, porém em (b) uma
predicação falsa.

Tanto em (a) como em (b) “A Suiça” designa um objeto. Se


dizemos que (b) é uma predicação falsa, não é porque “A Suiça” em
(b) não designa o mesmo objeto antes designado em (a). O mesmo
nome próprio é empregado em ambas as predicações para fazer
referência a um mesmo objeto. A diferença entre (a) e (b) é que a
propriedade a que se refere (a) é uma propriedade do objeto “A
Suiça”, ao passo que a propriedade a que se refere (b) não é uma
propriedade deste mesmo objeto. Consideremos, agora, a
formulação: (b’) “O objeto ‘A Suiça’ tem a propriedade de ser um país
grande ocupando uma planície”

A diferença entre (b) e (b’) é que (b’) é uma interpretação daquilo


que se pretende dizer quando se diz (b). Entendemos que, se alguém
diz (b) está, para todos os efeitos, querendo dizer (b’). Entendemos
que (b) é uma predicação falsa, porque (b’) é uma proposição falsa..

Consideremos, agora, a formulação: (b’’) “O predicado ‘um país


grande ocupando uma planície’ é atribuído ao sujeito ‘A Suiça’ “. (b’’)
é também uma interpretação de (b). Porém há significativas
diferenças entre (b’), (b’’). Se alguém diz (b) está querendo dizer (b’),
mas não está querendo dizer (b’’), porque (b’’) é uma análise
gramatical da predicação feita em (b). Enquanto análise gramatical,
ela é correta. Desse modo, se um gramático afirma (b’’), ele emite
uma proposição metalingüística verdadeira.

O critério empregado pelo gramático para o reconhecimento de


uma sentença do tipo predicativo é puramente sintático. Para todos
os efeitos, são sentenças predicativas tanto (a) como (b), como ainda
(c ) “O número cinco está cada dia mais gordo” _ e isto não
importando os fatos de que (a) é uma proposição verdadeira, (b) é
uma proposição falsa e (c ) não passa de sheer nonsense _ ou um
erro de categoria, como dirá G. Ryle, muito tempo depois de Frege.

Não devemos pensar que os gramáticos sofrem de miopia atroz,


de tal modo que não percebem essas gritantes diferenças. É evidente
que_ como todos os indivíduos dotados de um mínimo de
perspicácia_ eles as percebem muito bem. O problema é que eles
estão unicamente interessados nas estruturas sintáticas, e de um
ponto de vista estritamente sintático não há a menor diferença entre
(a) e (c). Mas, como há uma grande diferença entre emitir uma
proposição verdadeira e emitir um puro contra-senso, devemos
passar dos conceitos de sujeito e predicado gramaticais para os de
sujeito e predicado lógicos.

O critério para o reconhecimento de um sujeito ou de um


predicado lógico é sintático e semântico. Não basta reconhecer que
determinada expressão desempenha a função de sujeito gramatical e
outra a de predicado gramatical. Para que haja um sujeito lógico, é
preciso que a expressão de sujeito faça referência a um objeto (ou a
uma classe de objetos) e para que haja um predicado lógico, a
expressão de predicado faça referência a uma propriedade, ou seja:
é imprescindível uma correspondência da estrutura sintática com a
estrutura ontológica:, para que tenhamos uma proposição
verdadeira:

_______ estrutura sintática _____

| |

sujeito predicado

objeto propriedade

|_____ estrutura ontológica ______|

Se a expressão de sujeito faz referência a um objeto, mas a de


predicado não faz referência a uma propriedade deste mesmo
objeto, temos uma predicação falsa. Porém se a expressão de sujeito
não faz referência a um objeto [independentemente da expressão de
predicado fazer ou não uma referência a uma propriedade] temos
uma predicação que não é verdadeira nem falsa: é carente de valor
lógico. As duas situações são diferentes. Em uma predicação falsa, o
objeto existe mas não possui a propriedade atribuída a ele. Mas se
um objeto simplesmente não existe, ele não pode ter nenhuma
propriedade [por exemplo: (e) “A fronteira da Espanha com a Suiça é
montanhosa”]. Considera-se que a existência é condição de
possibilidade para a posse de propriedade.

Como já dissemos, para Frege os objetos são designados por


nomes próprios e as propriedades por expressões predicativas.
“Conceito” (Begriff) e “objeto” (Gegenstand) são radicalmente
distintos, porque um objeto é algo que cai sob um conceito, e um
conceito algo que não pode cair sob um objeto. Assim sendo, sob o
conceito “satélite da Terra”[ entenda-se: satélite “natural”] cai um
único objeto. Empregando a linguagem lógica de Russell, podemos
expressar isto dizendo: “Há um e somente um x, tal que x é satélite
[natural] da Terra”. Porém sob o conceito “satélite de Júpiter” caem
doze objetos. Mas que dizer de “satélite de Mercúrio”? É um
conceito sob o qual caem zero objetos. Alternativamente: é um
conceito sob o qual não cai objeto algum.

Uma outra maneira de dizer isto é dizer que o conjunto dos


satélites de mercúrio é vazio ou nulo. Uma outra maneira ainda de
dizer isto é dizer que a expressão predicativa “satélite de mercúrio” é
desprovida de referência (Bedeutunglos). Podemos empregar esta
mesma expressão em um predicado gramatical; podemos empregá-la
em uma descrição científica dizendo: “Não existe x, tal que x é um
satélite de Mercúrio”; podemos até mesmo empregá-la na
formulação de uma proposição hipotética (por exemplo “Se existisse
x e se x fosse um satélite de Mercúrio, ...). Só não podemos empregar
essa expressão e fazer referência a um corpo celeste, simplesmente
porque não há tal objeto.

Todavia, não podemos sustentar que a expressão “satélite de


Mercúrio” é desprovida de sentido (Sinnlos). Entendemos
perfeitamente o que ela expressa, assim como entendemos
perfeitamente expressões tais como “número ímpar entre 3 e 5”,
“mulheres que foram presidentes do Brasil”, “floresta na fronteira do
Brasil com o Equador”. Se levássemos o princípio de extensionalidade
a um extremo radicalismo, chegaríamos à conclusão que tais
expressões se eqüivalem e são intercambiáveis, pois constituem
diferentes modos de expressar a mesma coisa.

Todavia, estas diferenças não constituem diferentes enfoques


capazes de enriquecer nosso conhecimento. A classe dos números
ímpares entre 3 e 5, a das mulheres que foram presidentes do Brasil,
assim como a das florestas entre o Brasil e o Equador é a mesma.
Trata-se da classe nula (vazia). Estas expressões fazem referência a
zero objetos, ou seja: não fazem referência a coisa alguma. No
entanto, temos de admitir duas coisas: (1) Apesar de não fazer
referência a coisa alguma, essas três expressões são plenamente
inteligíveis, são portadoras de sentido. (2) Apesar de não fazer
referência a coisa alguma, elas não são do mesmo tipo. A classe dos
números ímpares entre 3 e 5 é necessariamente vazia, mas a das
mulheres que foram presidentes do Brasil é contingentemente vazia.

Não há como conceber a possibilidade de um número ímpar entre


3 e 5, mas há como conceber a possibilidade de uma mulher vir a ser
Presidente do Brasil. Não importa que isto seja pouco provável,
importa saber que é possível e que nem tudo é possível [por
exemplo: (1) desenhar um círculo quadrado, (2) um olho ver o
próprio olho qua tale, não como imagem refletida em um espelho].
Além disso, temos de levar em consideração o caso de classes que
foram vazias no passado, mas que não mais hoje. Consideremos, por
exemplo, a expressão “brasileiros vencedores da Fórmula l”. Na
década de 60, esta classe era vazia, mas hoje, em 1996, ela conta
com três membros: Fittipaldi, Piquet e Sena. E nada impede que esta
classe ternária venha a se transformar em uma quaternária.

Mas que devemos entender precisamente por “sentido” (Sinn)?


Frege usa esta palavra da linguagem coloquial com uma acepção
peculiar. Pensamos que “modo de dizer” constitui a expressão-chave.
Dela podemos derivar duas alternativas bastante proveitosas: (a)
dizer o mesmo do mesmo modo ou (b) dizer o mesmo de modos
diferentes. Como já podemos vislumbrar, estas alternativas abrem as
portas não só para a compreensão da peculiar acepção conferida por
Frege a Sinn (sentido), como também para o conceito de estilo
desenvolvido por E.D.Hirsch (1975) a partir do referido conceito
criado por Frege.

Assim como “significado”, “signifié” e “meaning”, “Bedeutung” é


uma palavra ambígua na linguagem coloquial. O mesmo pode ser
dito dos verbos correlacionados com estes substantivos abstratos:
“significar”, “signifier”, “to mean” e “bedeuten”. Desse modo, a
pergunta: “Que significa isto?” ou “Que quer dizer isto?” (Was das
bedeuten?; What does it mean?) é uma pergunta ambígua, pois não
sabemos se ela indaga pelo sentido ou pela referência. Frege deu-se
conta disto e, para remediar a ambigüidade, passou a usar
Bedeutung na acepção estrita de “referência”.
Uma vez em um restaurante chinês, deparamo-nos com um
cardápio bilíngüe em chinês e inglês. Como, para nós, os ideogramas
chineses não passam de belos desenhos, passamos a percorrer a
coluna escrita em inglês. Deparamo-nos com a expressão “sea
cabagge”. Chamamos o garção e perguntamos: “What does sea-
cabbage mean?”. O atencioso atendente da terra de Confúcio nos
deu uma resposta muito esclarecedora: ”‘Sea-cabagge’ means sea-
cabagge”. Diante disto, fomos obrigados a introduzir maior precisão
na reformulação da questão: “Sure, but what does ‘sea-cabbage’
stand for?”, ou seja: “Certo, mas que coisa ‘sea-cabbage’ representa
ou substitui na linguagem?”.

Evidentemente, sabíamos que ‘sea-cabagge’ queria dizer sea-


cabagge e devia ser traduzido, ao menos literalmente, por “couve do
mar”. Supondo que a palavra devesse ser entendida em um sentido
literal _ o que nem sempre é o caso, pois “pé-de-moleque”e
“peitinho-de-moça” só teriam de ser tomados literalmente em um
restaurante canibal_ podíamos tentar captar a sua referência
mediante um exercício de associação. Couve é um vegetal, vegetal no
fundo do mar é alguma coisa parecida com alga... Quem sabe não é o
caso de uma coisa parecida com alga marinha? E de fato, acabamos
descobrindo que era.

A pergunta “O que significa isto?” é irremediavelmente ambígua.


O caso de Alfredo é uma outra evidência disto. Alfredo estava
efusivamente abraçado com sua secretária quando sua esposa
chegou de modo inesperado no seu escritório. Imediatamente, ela
disse: “O que significa isto, Alfredo?”. Ao que ele respondeu de
pronto: “Isto é um bruto azar, mulher!”. Em Através do Espelho, o
autoritário Humpty-Dumpty, disse para a cândida Alice: “Quando eu
uso uma palavra, ela significa exatamente o que eu quero dizer, nem
mais nem menos”. Ao que Alice, ponderou: “Como pode ser assim?
Uma palavra pode ter tantos sentidos. Ela depende de tantas
coisas...”. Ao que Humpty-Dumpty retrucou: “Depende de uma só
coisa: de quem manda!”.

Quando o artigo de Frege Über Sinn und Bedeutung (Sobre O


Sentido e A Referência) foi traduzido para o inglês, “Sinn” (que nada
tem a ver com “sin”, “pecado” em inglês) não produziu grande
problema, pois a palavra “sense” era apropriada. “Bedeutung”, no
entanto, gerou algum embaraço. Houve quem recorresse a
“denotation”, considerando a terminologia da lógica de J.Stuart Mill,
em que “denotation” era usado em oposição a “connotation”, porém
este uso havia adquirido uma outra acepção dentro da crítica
literária. Houve quem recorresse à palavra latina “denotatum” (o
denotado), mas acabou prevalecendo a palavra inglesa proveniente
do francês normando “reference”. Posteriormente, alguns filósofos
alemães, considerando que esta mesma palavra ajudava a
desambiguar (disambiguate) “Bedeutung”, introduziram o
neologismo “Referenz” [certamente porque não abraçavam o ponto
de vista heideggeriano de que somente as “línguas fortes”_ o grego e
o alemão_ podiam expressar a essência do ser].

Importante não confundir a palavra “reference”, tal como


empregada para traduzir “Bedeutung” com a palavra “referent”, tal
qual usada por Ogden & Richards (1953) com uma acepção próxima
daquilo que Frege denominava “objeto sensível”. Frege distinguiu
claramente os conceitos de Bedeutung (referência) e Gegenstand
(objeto).Considerando no entanto a irremediável ambigüidade de
“significado”, seria incorreto dizer que para ele o problema
semântico era o problema do significado. O que estava em jogo, para
ele, era a questão do sentido e da referência, sendo que esta última
remetia inevitavelmente à questão dos valores de verdade das
proposições.

Publicado ao apagar das luzes do século XIX, o artigo Über Sinn


Und Bedeutung (1891) acabou se tornando um texto clássico da
filosofia analítica. Neste artigo, Frege tinha como finalidade última a
única que sempre tivera: a fundamentação da aritmética. Assim
sendo, não é de surpreender que o texto comece com o filósofo
desejoso de esclarecer o conceito de igualdade tal como este
costumava e ainda costuma ser representado mediante o uso do
sinal de igualdade em expressões tais como “2+2=4”. Assumindo que
era o caso de uma relação, restava esclarecer se era o caso de uma
relação entre objetos ou entre nomes (sinais) de objetos.

Na sua obra Begriffsschrift [Conceptografia (1879)], Frege havia


optado pela última alternativa; mas, no referido artigo de 1891, ele
sustentou que as duas fórmulas a=a e a=b representavam expressões
de diferentes tipos. Não havia dúvida de que a=a _ embora não
pudesse ser desconsiderada por questões estritamente lógicas_ era
trivial (não-informativa). Consideremos por exemplo a sentença:

(1) Sócrates é Sócrates


A afirmação de (1) não veicula nenhuma informação a respeito
do indivíduo Sócrates. Não há dúvida de que ela expressa identidade,
no caso sob a forma de identidade pessoal. Mas esta é uma
característica de todo e qualquer indivíduo humano. A não ser no
caso de graves distúrbios psíquicos ou mesmo no da perda
temporária de memória, toda pessoa apresenta uma identidade
pessoal e é capaz de reconhecer a si mesma como um indivíduo
único. Wittgenstein certa vez foi procurado por um aluno que
colocou as seguintes indagações: “Professor: Quem sou, onde estou e
para onde vou? Estas não lhe parecem sérias questões filosóficas?”.
“Não _ disse Wittgenstein _ parece mais um caso de amnésia”.

Frege (1891, p.40) mostrou-se disposto a concordar com Kant, no


sentido de que expressões da forma a=a devem ser consideradas
analíticas a priori. Porém negou que expressões da forma a=b
pudessem ser assim consideradas, pois nem sempre podiam ser
estabelecidas independentemente da experiência e freqüentemente
mostravam-se informativas. Como disse o próprio Frege (1891, p.40),
a descoberta de que o Sol nascente não é novo cada manhã, porém
sempre o mesmo astro, foi uma das mais importantes descobertas
nos primórdios da astronomia.

É preciso acrescentar que muitos povos antigos não tinham essa


noção de permanência substancial; acreditavam que o Sol nascia,
morria e renascia no sentido literal, não no sentido figurado em que
ainda usamos estas expressões. Os egípcios, por exemplo,
costumavam fazer rituais rogando para que o deus-Sol se dignasse a
renascer ofertando aos míseros mortais sua luz e seu calor. Eles
tinham esta crença injustificada, mas em compensação não tinham
aquela crença igualmente injustificada de que o Sol nasceria
necessariamente no dia seguinte, como acreditavam os “crentes” da
época de Hume, que haviam assimilado por osmose a mecânica
celeste newtoniana, mas não tinham se dado conta do problema da
indução.

No que diz respeito à Lua, alguns povos não tomavam as quatro


fases do nosso satélite natural como diferentes aspectos do mesmo
corpo celeste, porém como quatro corpos celestes distintos. Desse
modo, quando, em um western, o pele-vermelha diz para o cara
pálida: “Mim encontrar cara pálida dentro de três luas”, o cara pálida
desavisado pode ser levado a pensar que ele quer dizer “dentro de
três dias”, quando, na realidade, ele está querendo dizer: “dentro de
três fases da Lua”. Em compensação, o pele-vermelha recentemente
aculturado que, ao ler um livro de história, se depara com Henrique I,
Henrique II, Henrique III... Henrique VIII, poderá não perceber que
são distintos reis recebendo o mesmo nome, ser levado a pensar que
se trata de várias reencarnações do rei Henrique e que na nossa
cultura a concepção da transmigração das almas é algo tão enraizado
e universalizado quanto o hábito de comer com garfo e faca.

Frege disse que, se considerássemos que a igualdade expressava


uma relação interna entre aquilo a que se referiam a e b, não haveria
diferença real entre a=a e a=b (supondo que esta última expressão
fosse verdadeira). Neste caso, não estaria em jogo uma relação entre
duas coisas distintas. Porém, admitindo que o que se quer dizer
quando se afirma a=b é que os sinais ou nomes “a” e “b”_ embora
distintos qua sinais ou nomes_ referem-se à mesma coisa, então
nosso interesse tem de se deslocar para estes sinais ou nomes, pois o
que está em jogo é uma relação entre eles.

Após considerar alguns casos em que está em jogo apenas uma


diferença de caráter material entre os sinais, Frege passou a
considerar outros em que está em jogo uma diferença real, que_ de
acordo com as suas próprias palavras_ só se configura quando “à
diferença entre sinais corresponde uma diferença no modo de
apresentação daquilo que é designado” (Frege, 1891, p.41, o grifo é
nosso), e é justamente isto que havíamos apontado com a expressão:
dizer o mesmo de modos diferentes. Ele pede que consideremos um
triângulo em que são traçadas medianas (i.e. linhas ligando os
vértices aos pontos médios dos lados opostos):

.a

b . .c

Traçadas duas dessas medianas, obtemos o ponto k. Podemos


dizer então que k é o ponto de interseção das medianas a e b, mas
podemos dizer também que k é o ponto de interseção das medianas
b e c, ou ainda das medianas a e c. Frege considerou que estas
diferenças não afetavam apenas a materialidade dos sinais: eram
diferenças reais contendo informações e expressando autêntico
conhecimento. De nossa parte, entendemos que se trata de dizer o
mesmo de modos diferentes. Após ter apresentado um exemplo
extraído da linguagem formal da matemática, para caracterizar
diferenças nos modos de apresentação, Frege passou a fazer algumas
breves e importantes considerações e culminou com seu exemplo
clássico extraído da linguagem comum:

É portanto plausível que exista _ unido a um sinal (nome


ou combinação de palavras),além daquilo por ele
designado, que pode ser chamado sua referência _ o que
eu gostaria de chamar de o sentido do sinal, onde está
contido o modo de apresentação do objeto.
Conseqüentemente, no nosso exemplo, a referência das
expressões “o ponto de interseção de a e b” e “o ponto
de interseção de b e c “ é a mesma, mas não os seus
sentidos. A referência de “Estrela Vespertina” e “Estrela
d’Alva” é a mesma, mas não o sentido.( Frege, 1891,
p.41).

Devemos lembrar que no começo de Über Sinn und Bedeutung,


Frege advertiu que as expressões da forma a=b não podiam ser
consideradas analíticas a priori, pois nem sempre podiam ser
estabelecidas sem recurso à experiência e freqüentemente se
mostravam informativas. Em seguida, ele acrescentou que a
descoberta de que o Sol nascente não era novo cada manhã, porém
sempre o mesmo, foi uma das mais importantes nos primórdios da
astronomia. Na passagem acima, temos mais um exemplo extraído
da astronomia, com vistas ao esclarecimento dos conceitos de
sentido e referência.

Na Antigüidade, tomavam-se como duas aparições distintas de


corpos celestes distintos o que hoje tomamos como duas aparições
distintas do mesmo corpo. Podemos descrevê-lo mediante a
linguagem das descrições definidas que Russell desenvolveu a partir
de Frege: “Há um e somente um x, tal que x é um planeta situado
entre Mercúrio e Terra”.

Quem conta com um conhecimento básico de astronomia sabe


que estamos falando daquele planeta que_ em virtude da sua bela e
cintilante coloração azulada_ recebeu o nome de “Vênus” (deusa do
amor na mitologia romana correspondente a “Afrodite” na mitologia
grega). Justamente por seu intenso brilho, Vênus se destaca de
outros corpos celestes. É a primeira a aparecer no céu ao final da
tarde e a última a desaparecer do céu no começo da manhã. Por isto
mesmo recebeu os nomes de “Estrela Vespertina” e “Estrela d’Alva”.

Apesar da astronomia já ter desfeito há muito tempo o referido


equívoco, continuamos usando esses dois nomes para designar o
mesmo objeto; mas, ao fazer tal coisa, não estamos dizendo o
mesmo da mesma maneira, pois o primeiro nome refere-se a Vênus
qua o astro pioneiro a brilhar no céu ao final da tarde, ao passo que o
segundo refere-se a Vênus qua o derradeiro astro a desaparecer do
céu no começo da manhã.

Isto é algo semelhante a dizer que x qua cidadão francês nascido


em 1694 e falecido em 1778 é conhecido pelo nome de François-
Marie Arouet, porém x qua autor de Cândido e de Zadig é conhecido
pelo pseudônimo de Voltaire. François-Marie Arouet e Voltaire são o
mesmo indivíduo, porém as aplicações dos dois nomes diferem: o
primeiro não consta da lista dos membros da Academia Francesa de
Letras e o segundo de nenhuma certidão de nascimento.

Do sentido e da referência de nomes próprios, que estão


articulados com objetos (indivíduos determinados), Frege passou a
examinar o sentido e a referência de sentenças declarativas. Para ele,
este tipo de sentença expressava um pensamento, que podia ser
verdadeiro ou falso. Ele distinguiu de um lado “pensamento”
(Gedanke) e “conceito” (Begriff) e de outro “representação”
(Vorstellung), pois entendeu que, diferentemente das
representações, os pensamentos e os conceitos não são afetados por
fatores afetivos e idiossincrásicos. Distinguiu também “pensamento”
e “valor de verdade”, pois considerou que o pensamento é o sentido
de uma sentença declarativa e o valor de verdade, a referência desta
sentença. Ao fazer esta última distinção, observou:

Se substituirmos uma palavra da sentença por uma outra


que tenha a mesma referência mas o sentido diferente,
isto não poderá ter nenhuma influência sobre a
referência da sentença. No entanto, vimos em tal caso
que o pensamento muda. Assim, por exemplo, o
pensamento da sentença: “A Estrela d’Alva é um corpo
iluminado pelo Sol” é diferente do da sentença: “A
Estrela Vespertina é um corpo iluminado pelo Sol”.
Alguém que não soubesse que a Estrela d’Alva é a
Estrela Vespertina, poderia sustentar um pensamento
como verdadeiro e o outro como falso. O pensamento
não pode ser portanto a referência da sentença: deve
ser considerado como o seu sentido. (Frege, 1891, p.45).

Assentado isto, podemos passar agora a mostrar como Frege


esbarrou com o problema da ficção e qual a solução encaminhada
por ele.

Primeiramente, ele colocou a seguinte indagação: “É possível que


uma sentença como um todo tenha tão-somente um sentido, mas
nenhuma referência?”(Frege, 1891, p46). Ele já tinha examinado o
caso de frases nominais tais como: (a) “o corpo celeste mais distante
da Terra” e (b) “A série que converge menos rapidamente”, e havia
considerado que expressões deste tipo certamente tinham sentido,
mas era duvidoso que tivessem referência. Todavia, estas expressões
eram frases, não sentenças capazes de expressar pensamentos
completos. No que diz respeito a sentenças, Frege admitiu que
algumas delas eram de um tipo especial, porquanto uma das suas
partes tinha sentido, mas não tinha referência. Este é o caso de
sentenças cujo termo do sujeito é um nome próprio carente de
referência. O exemplo fornecido por Frege é uma sentença extraída
da Odisséia de Homero:

(a) Ulisses profundamente adormecido foi


desembarcado em Ítaca

Uma breve análise de (a) pode revelar que ela não é uma
sentença simples, porém composta. De um ponto de vista sintático, a
frase nominal “profundamente adormecido” não faz parte do termo
de sujeito, que se reduz a “Ulisses”. Este, por sua vez, desempenha a
função de sujeito de duas sentenças simples:
(a) Ulisses (estava) profundamente adormecido

(b) Ulisses foi desembarcado em Ítaca

Admitindo que o termo de sujeito de (b) e (c) é um nome próprio


carente de referência, ambas têm de ser consideradas sentenças
carentes de referência. Repetimos aqui o que havíamos dito: Se a
expressão de sujeito faz referência a um objeto, mas a de predicado
não faz referência a uma propriedade deste mesmo objeto, temos
uma predicação falsa. Porém se a expressão de sujeito não faz
referência a um objeto [independentemente da expressão de
predicado fazer ou não referência a uma propriedade], temos uma
predicação que não é verdadeira nem falsa: simplesmente não tem
valor lógico.

Em um artigo publicado postumamente, Frege ratificou o caráter


imprescindível da função referencial, não para toda e qualquer
atividade discursiva, porém para toda aquela que nutre pretensões
de universalidade e verdade ou, ao menos, usa a linguagem para
fins informativos.

Se estamos interessados na verdade _ e a lógica visa à


verdade_ devemos indagar pelas referências; devemos
rejeitar os nomes próprios que, embora tenham sentido,
não designam nem nomeiam objeto algum. Devemos
rejeitar termos conceituais que não tenham nenhuma
referência (...). Para cada obje-to, deve estar determinado
se ele cai ou não sob um conceito. Um termo con- ceitual
que não satisfaça essa exigência carece de referência.
(Frege, 1892b, p.37).

Dito isto, Frege recorreu novamente a um exemplo extraído da


Odisséia:

A essa espécie de termos pertence, por exemplo, a palavra “moly”


(Homero, Odisséia, X, 305), embora algumas das suas notas
características sejam assinaladas. Nem por isto a referida passagem
carece de sentido, como tampouco carecem aquelas em que figura o
nome “Náusica”, que provavelmente nada nome nem se refere à
coisa alguma. Esse nome age porém como se nomeasse uma jovem .
Para a poesia, basta o sentido, o pensamento sem referência e
sem valor de verdade; mas isto não basta para a ciência (Frege,
1892b, p.37, o grifo é nosso).

Esta passagem confirma o que já dissemos e acrescenta alguns


pontos importantes: (1) Além dos nomes próprios carentes de
referência ou de referência duvidosa, há que considerar também os
termos conceituais. Por exemplo: “moly” é caracterizada por Homero
como uma planta mágica de raiz preta e folha branca, que Ulisses
recebeu de Hermes para se proteger da feiticeira Circe. Estas são as
notas características a que aludiu Frege. Contudo, essa palavra tem
uma referência duvidosa.

(2) Frege admitiu que o nome próprio “Nausica” funciona como


se (als ob) denominasse uma jovem [assim como “Penélope”
funciona como se denominasse uma mulher, a fiel esposa de Ulisses].
Pode-se inferir daí que a compreensão destes nomes no texto não
pressupõe uma atitude de crença, porém de fazer de conta. Como
veremos mais adiante, esta segunda atitude é de fundamental
importância para a compreensão do discurso ficcional. (3) Frege
admitiu que a ficção tem sentido. A referência não é uma condição
de possibilidade do sentido; ao contrário, o sentido é que é uma
condição de possibilidade da referência.(4) Frege admitiu _ e isto
ficará mais claro um pouco adiante_ que o sentido basta para a ficção
e que é despropositado falar em referência e valor de verdade no
contexto do discurso ficcional.

Finalmente,(5) Frege admitiu que a função referencial, essencial


para a lógica e para a ciência_ à medida mesma que é imprescindível
para a determinação do valor de verdade de uma proposição_ é
perfeitamente dispensável para a ficção. Isto não significa dizer, sob
nenhuma hipótese, que a ficção seja algo sem valor. Como veremos,
Frege sustentava a existência de uma diferença radical e insuprimível
entre atitude científica e atitude estética, e esta rígida segregação
era considerada extremamente saudável tanto para o conhecimento
científico como para a expressão artística. Atentemos para esta
passagem:
O pensamento perde o valor para nós tão logo
reconhecemos que a referência de uma das suas partes
está faltando. Estamos assim justificados por não
ficarmos satisfeitos somente com o sentido de uma
sentença, sendo levados, deste modo, a perguntar
também pela referência. Mas por que queremos que
cada nome próprio tenha não apenas um sentido, mas
também uma referência? Por que o pensamento não
nos é suficiente? Porque estamos preocupados com o
seu valor de verdade. ( Frege, 1891, p. 48).

Até este ponto da passagem acima, Frege se situa do ponto de


vista de quem assume uma atitude científica, porém logo em seguida
ele se desloca para o ponto de vista de quem assume uma atitude
estética qua receptor: O que nem sempre é o caso.

Ao ouvir um poema épico, além da euforia da linguagem,


estamos interessados apenas no sentido das sentenças e
nas representações e sentimentos que este sentido
evoca. A questão da verdade nos faria abandonar o
encanto estético por uma atitude de investigação
científica. Logo, é totalmente irrelevante para nós se o
nome “Ulisses” por exemplo tem referência, contanto
que aceitemos o poema como uma obra de arte. É
portanto a busca da verdade, onde quer que seja, o que
nos dirige do sentido para a referência. (Frege, 1891,
p.48, o grifo é nosso).

Segundo pensamos, nesta passagem Frege se aproximou bastante


do pensamento kantiano. Considerando que ele se deslocou de uma
atitude científica para uma atitude estética, assumindo
explicitamente o papel de um receptor de uma obra de arte, é
compreensível que esteja em jogo uma “finalidade sem fim (de
caráter cognitivo ou utilitário)” [Zweckmässigkeit ohne Zweck]
voltada tão-somente para uma “satisfação
desinteressada”[interesseloses Wohlgefallen] produzida pelas
representações e sentimentos evocados pelo sentido das palavras do
poema. A questão da verdade exigiria um deslocamento da jurisdição
do “juízo de gosto” [Geschmacksurteil ] para a jurisdição do “juízo de
conhecimento”[Erkenntnisurteil], mas isto consistiria na saída de
cena da faculdade de julgar e na entrada em cena da faculdade de
conhecer.

Admitindo que é justamente a faculdade de julgar que está em


jogo, é totalmente irrelevante a função referencial [“se o nome
‘Ulisses’ por exemplo tem referência].E isto continua de pleno acordo
com o pensamento kantiano, pois_ como sustentara Kant_ o juízo de
gosto se faz sob a uma suspensão do juízo de existência _
pressuposição esta inaceitável, caso estivesse em jogo um juízo de
conhecimento (juízo lógico) em que se configuram a referência e a
predicação. Além disso, se para Kant “existe” não é um predicado
real, porém um predicado especial _ condição de possibilidade de
toda e qualquer predicação_ para Frege “existe” não é um predicado
de primeira, mas sim de segunda ordem (Guerreiro, 1989, pp.122-
136).

Como vimos, para Frege, um nome de uma personagem de ficção


como “Penélope” não faz referência a nenhum objeto, mas funciona
na linguagem como se (als ob) fizesse. Isto significa dizer que
Homero, ao empregar “Penélope”, faz de conta que está fazendo
referência a uma mulher, e seus leitores_ ao lerem sua narrativa _
fazem de conta que “Penélope” faz referência a uma mulher. Parece
não haver dúvida de que, como já havíamos insinuado, a
comunicação ficcional pressupõe esta convenção tácita entre o
emissor do discurso ficcional e seus receptores.

Todavia, a questão situada por Frege não é se o nome de uma


personagem de ficção faz ou não referência a um objeto, pois ele
disse explicitamente que_ se assumimos uma atitude estética_ “é
totalmente irrelevante para nós se o nome ‘Ulisses’ por exemplo tem
referência.”. Disto se infere que, se por acaso um nome próprio ou
um termo conceitual do discurso ficcional fizessem referência, isto
não produziria a menor diferença de um ponto de vista estritamente
estético. Contudo, caso assumamos uma atitude científica, passa a
ser relevante indagar se um nome próprio ou um termo conceitual
fazem ou não referência. E disto se infere que diferentes atitudes,
associadas a distintos tipos de discurso, demandam diferentes
critérios em que a referência pode ser considerada relevante ou
irrelevante.
Supondo, no entanto, que nos situássemos do ponto de vista de
uma atitude científica, como poderíamos estar seguros de que nomes
próprios como “o Sol” e “a Lua” fazem de fato referência? Frege
coloca para si mesmo esta indagação e oferece uma resposta cujos
desdobramentos se mostrarão extremamente interessantes para
nossos propósitos.

Idealistas ou céticos terão talvez feito esta objeção há


muito tempo: “Você fala, sem maiores preocupações, da
Lua como um objeto; mas como você sabe que o nome
“A Lua” tem de fato alguma referência? Como sabe que
alguma, o que quer que seja, tem de fato uma
referência?” (Frege, 1841, p.49)

Colocada a indagação de que falamos, Frege fornece em seguida


a sua resposta:

Respondo que não é nossa intenção falar da nossa


representação da Lua, nem nos contentamos apenas
com o sentido quando dizemos “a Lua”; ao contrário,
pressupomos uma referência. Seria positivamente
entender mal o sentido da sentença: “A Lua é menor do
que a Terra” admitir que é a representação da Lua o que
está em questão. Se era isto que queria dizer seu
proferidor, ele deveria usar a frase “minha representação
da Lua”. Evidente-mente, podemos estar enganados
quanto à pressuposição de uma refe-rência e tais
enganos têm ocorrido. Mas a pergunta de se sempre
nos en-ganamos quanto a isto, pode ficar aqui sem
resposta. No momento, basta nossa intenção ao falar ou
pensar, para justificar que falemos da referência de um
sinal, mesmo que tenhamos de acrescentar a ressalva:
caso tal referência exista (Frege, 1891, p.49, os grifos são
nossos).
Com isto, Frege caracterizou uma posição típica do assim
chamado “ceticismo referencial”, a saber: “Não dispomos de nenhum
critério para decidir se qualquer expressão considerada referencial
faz ou não referência”. No entanto, não se pode dizer que ele deu
uma resposta para a objeção cética. Ele assumiu o ponto de vista do
senso comum_ que em nenhum momento questiona se a expressão
“a Lua” faz referência em sentenças tais como: (1) “A Lua é o satélite
natural da Terra ; (2) “A Lua tem uma cor prateada”, etc._ e ao
mesmo tempo assumiu o ponto de vista do astrônomo (cientista) que
quando diz : (3) “A Lua é cerca de cinqüenta vezes menor do que a
Terra” não quer dizer, sob nenhuma hipótese: (4) “Minha
representação da Lua é cerca de cinqüenta vezes menor do que a
minha representação da Terra”.

Ao proferir (3), o astrônomo pretende estar falando de uma


relação objetiva entre os mencionados corpos celestes e, por isto
mesmo, assume que seus nomes fazem referência. Se suas
pretensões de objetividade, verdade e universalidade são cabíveis ou
descabidas, isto é uma outra questão. Importa saber que ele as tem e
as expressa quando emite proposições como (3). De acordo com
Frege, o astrônomo ou qualquer cientista, ao empregar uma
expressão considerada referencial_ embora não ofereça quaisquer
justificativas para seu caráter referencial_ assume o pressuposto de
que ela faz efetivamente referência.

Assim sendo, cabe indagar: Qual a diferença entre, de um lado, o


proferidor e o receptor do discurso ficcional que fazem de conta que
“Ulisses” se refere a um homem e “Penélope” a uma mulher e, de
outro, o proferidor e o receptor do discurso científico que assumem o
pressuposto de que “a Lua” e “o Sol” fazem referência a dois
distintos corpos celestes? Em outras palavras: qual a diferença entre
“fazer de conta que p” e “pressupor que p”?

Supondo que não haja nenhuma diferença, o critério de


demarcação dos discursos ficcional e não-ficcional_ tal como
apresentado por Frege_ passa a ficar em uma situação precária.
Supondo que haja uma diferença, não é possível apontá-la dentro do
domínio estrito da semântica, pois o que está em jogo é se “fazer de
conta que p” e “pressupor que p” constituem a mesma atitude
proposicional ou diferentes atitudes proposicionais. Trata-se
portanto de investigar relações entre o usuário e a linguagem, e este
é o domínio da pragmática. Retomaremos esta questão na Parte 4,
pois passaremos a examinar outras posições sustentadas dento das
abordagens de caráter semântico amodal.
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