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Críticas ao pensamento das senzalas e casa grande

HENRIQUE CUNHA JUNIOR*

Resumo
As criticas sobre o que é considerada a obra “Casa Grande e Senzala” são
tratadas em diversos aspectos. Como uma ideologia de nação brasileira que tem
origem na mestiçagem, ou como desmandos da informalidade e da
superficialidade. São refutados tanto os argumentos de que a obra seja inovadora
quanto a abordagem das relações socais entre populações negras e brancas, tanto
no âmbito nacional como no panorama internacional. Ainda contestamos a ideia
que o trabalho contenha informações importantes sobre as populações negras
imigradas de maneira forçada para o Brasil. Conclui-se que, para as populações
negras, o trabalho não teve nenhuma importância e apenas serviu como
ideologia para evitar as conseqüências dos protestos dos movimentos negros.
Palavras-chave: africanidades e afrodescendência; mestiçagem; ideologia do
racismo; críticas ao livro Casa Grande e Senzala.
Abstract
Critics on what is considered the social masterpiece “Masters and Slaves”
(literally Big House and Slave Quarters, from Portuguese version and for the
more focused in English The Masters and the Slaves) are treated in several ways.
As an ideology of the Brazilian nation that has its origin in the racial
miscegenation, or as excesses of informality and superficiality. In this paper are
refuted the arguments the book was an innovative approach to social relationship
between black and white populations. This is not really new considering the
literature on this subject in Brazil and Cuba. We still challenged the idea that the
work contains important information about African enslaved in Brazil. We
conclude that for the black population the book does not represent an important
contribution and only served as a base to ideology of racial miscegenation and
democracy to avoid the consequences of the protests of black movements.
Key words: African decendence; racial miscegenation; racism as ideology;
critics on the book Master and Slaves.

*
HENRIQUE CUNHA JUNIOR é Professor Titular da Universidade Federal do Ceara desde
1995. Tese de Livre docente USP - 1993. Professor da USP entre 1985 - 1994. Pesquisador Senior do IPT -
1988 - 1994. Doutor pelo Instituto Nacional Pesquisa de Lorraine - INPL.

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1. As visões revolucionárias sobre o eurocêntricas estabelecidas desde o
negro não estão em Casa Grande e inicio do século passado, constituído
Senzala pelo pensamento republicano brasileiro e
sua decorrências. Em NTU, artigo
A indignação que move este artigo sobre
os enfoques e o peso dados ao livro publicado pela Revista Espaço
Acadêmico (n. 108, maio de 2010), faço
“Casa Grande e Senzala” data desde
criticas ao pensamento conservador
meu curso de graduação em ciências
sociais na UNESP de Araraquara na brasileiro que, em parte, tem resultado
no fato de os pesquisadores africanos e
década de 1970. Esta indignação
da diáspora estarem fora das
remonta às épocas das reuniões na casa
bibliografias usuais que tentam pensar o
de meu pai e dos seus amigos militantes
Brasil. Não existe pluralidade de
dos movimentos negros. A crítica ao
opiniões, são de modo geral as
pensamento universitário recebido na
bibliografias eurocêntricas, ocidentais,
universidade não se restringe ao
tanto entre os marxistas como quanto
pensamento da casa grande e da
aos positivistas funcionalistas.
ideologia deste, mas a visões filosóficas

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Nas ausências dos africanos e O intelectual baiano Manoel Querino
afrodescendentes das bibliografias se (1851-1923), jornalista, escritor, artista
exclui também aqueles que fazem plástico e historiador, fundador do Liceu
propostas revolucionárias sobre o de Arte e Oficio e do Instituto Histórico
pensamento brasileiro quanto à e Geográfico da Bahia, propositor de
população negra. O professor Doutor polêmicas que criou para o pensamento
Juliano Moreira, médico negro, um dos social brasileiro uma analise critica
maiores pesquisadores deste país do inovadora e desafiadora para os padrões
inicio do século passado, fundador do de sua época, visto ter pensado o
novo pensamento psiquiátrico brasileiro, africano como colonizador do Brasil.
grande esquecido e injustiçado da Este personagem foi possivelmente um
ciência brasileira, foi um dos primeiros dos primeiros a analisar e fazer justiça à
intelectuais a contestar as premissas da importância da população de africanos e
escola racista baiana de medicina sobre a descendentes na formação histórica do
suposta maléfica herança da raça negra Brasil (QUERINO, 1980, 1955).
para a sociedade brasileira (PASSOS, Querino pensava o africano como
1975), (JACOBINA/GELMAN, 2008). colonizador do Brasil e produziu estudos
Enquanto a escola racista baiana de inovadores e desafiadores sobre a cultura
medicina, com destaque para a produção e a contribuição africana num período
do médico Nina Rodrigues, fazia uma em que não havia interesse dos
ciência de desqualificação social da estudiosos brasileiros sobre o assunto.
população negra, tornado um fator Numa época na qual os pesquisadores,
biológico os problemas de loucura e atos na sua maioria médicos e etnógrafos, se
criminosos incidentes sobre a população interessavam apenas pela população
negra, Juliano Moreira, desde 1910, indígena, este historiador introduziu
declarava que estas decorrências eram estudos sobre a população negra de
apenas resultados das limitadas forma magistral e despoluída do racismo
condições sociais impostas à população científico vigente à época. Viveu e
negra na sociedade brasileira produziu importantes debates em
(MOREIRA, 1910). ambiente cultural pautado por
fortíssimas teorias racistas contra negros
A propósito, Juliano Moreira, desde sua e descendentes (CORREA, 1998),
tese de doutoramento em medicina (LEAL, 2004). Poderíamos também
(1891), denominada “Etimologia da fazer referências aos intelectuais negros
Sífilis Maligna Precoce”, já contestava de Pelotas, no Rio Grande do Sul, que
as afirmações da ciência sobre os no período de 1905 a 1930 imprimiam
determinismos tropicas e raciais sobre no Jornal Alvorada novas visões sobre a
esta doença. A proposta de Juliano população negra, cultura negra e as
Moreira e os resultados das suas situações de vida desta população
pesquisas não tiveram impactos na perante o racismo (SANTOS, 2003),
sociedade e no pensamento brasileiro, (SILVA, 2001). Embora o jornal tenha
pois condenava a estrutura social racista durado até 1957 são importantes as
e escravista criminosa e não a população posições destes intelectuais em período
e a cultura negra. Existe até a atualidade anterior a publicação de Casa Grande
um imenso silêncio sobre a figura de Senzala em 1933.
Juliano Moreira, trata-se de um dos Se fizermos a aplicação dos métodos da
grandes cientistas e não figura no site do história encontraremos significativas e
CNPq.
inovadoras visões sobre a população

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negra e relativo às teorias racistas que interpretado como tal. A realidade da
precedem em pelo menos 20 anos as produção abriga uma complexidade não
pesquisas e a publicação de Casa tratada na relação das senzalas com a
Grande e Senzala. Portanto, mesmo que casa grande na produção escravista
as análises deste fossem corretas não criminosa do açúcar no nordeste
cabe o adjetivo de inovadoras no interior brasileiro; muito menos serve de
dessa discussão. Pela deficiência do uso referência para pensar o Brasil na sua
sistemático, senzalas e casa grande imensa diversidade humana, de
tornaram-se um símbolo impregnado no produtos, regiões, organizações da
pensamento brasileiro. Deficiência em produção e de tempos históricos.
razão de ser uma simplificação ou uma
quase deformação da realidade histórica. Outro grande erro de interpretação do
Sistemático pelo fato de insistência livro se estabelece em pensá-lo como um
repetitiva nesta forma de raciocínio modelo que descreve as relações
incompleto, aplicando aos cursos de escravistas brasileiras e a formação das
formação e não examinando outras famílias patriarcais de toda a nação,
possibilidades e propostas a exemplo do quando não descreve nem mesmo de
trabalho de Clovis Moura (MOURA, maneira sistemática a forma de vida e de
1990). As afirmações e ponderações habitação e relações sociais da fazenda
encontradas no clássico “Casa Grande e de produção de açúcar como sistema
Senzala” podem ser questionadas por produtivo do nordeste. Também não
diferentes razões: inicialmente porque deixa de ser equivocada a ideia de que a
não representa o cerne do sistema de obra Casa Grande e Senzala traria um
produção escravista criminoso. Os eitos, caráter inovador ou revolucionário
os lugares de trabalho, onde se quando dito em relação ao cenário
processam a realização do sistema, onde internacional. Na visão nacional, como
os seres e os produtos tomavam formas já apontamos, muitas leituras
diversas, na produção de gado, nos estereotipadas se consolidaram no
engenhos de ferro, nos engenhos de imaginário social. Em âmbito
farinha, nos de produção de açúcar, na internacional as políticas do café com
mineração e manufaturas, nas atividades leite e da “cubanialidade” mostram que
de transporte e portuárias, e não nas Cuba precedeu as discussões
senzalas e nem na casa grande da conciliadoras sobre mestiçagem devido
produção açucareira do nordeste. A às ações política da população negra nos
maior parte do país no período escravista que culminaram com a repressão
não possuiu senzala ao estilo da americana de 1912 (TRELLES,
produção canavieira e açucareira 1927:75-78), (DOMÍNGUEZ, 2007). O
pernambucana, e nem a casa grande. mesmo processo de criação da ideologia
da mestiçagem positiva pode ser vista na
Menos ainda, a senzala não foi a única Venezuela. Os projetos de estados
forma de moradia da população que nacionais nas Américas, bem com as
trabalhava nos engenhos de cana-de- políticas de mestiçagem tiveram o
açúcar do nordeste brasileiro. Uma parte patrocínio do governo e acadêmicos
significativa de trabalhadores negros americanos.
livres e semi-livres, a serviço da
produção do açúcar, de O pensamento cientifico, visto como um
acondicionamento, de transporte e de conjunto diverso de ideias e paradigmas
embarque para o exterior, nunca morou de um tempo e lugar histórico, oscila
numa senzala, ou pelo menos no que é entre avanços e retrocessos, entre

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certezas provisórias e incertezas, tendo livro. Assim temos como proposta que a
como fonte o provisório. Algumas permanência da suposta importância do
contribuições importantes para a livro se deva a existência de razões
compreensão da formação histórica, ideológicas como veremos mais adiante.
cultural e social do Brasil podem ter sido
2. O que representou para população
noticiadas tardiamente, no entanto os
acréscimos cabem às gerações presentes negra a livro de Freyre?
e futuras, como é o caso dos anúncios da Os cotidianos da população negra são
superação do passado. Um texto de gerados por um conjunto de
reparação do pensamento histórico a ser pensamentos presentes no imaginário
incorporado e fonte importante de novas social. Não importa como eu esteja bem
visões é o “Brasil do Boi e do Couro” de vestido ou quem eu seja
Jose Alípio Goulart (GOULART, 1966). profissionalmente, existe um
Este permitiria, entre outros, a pensamento sobre um coletivo da
reformulação do olhar sobre a sociedade população. As pessoas são vistas
brasileira e sua formação indo em relacionadas com o que sociedade pensa
direção destoante das ideologias das sobre as culturas de origem,
casas grandes e das senzalas. O texto nos independente de quem elas sejam. Neste
diz que existe uma organização social sentido é que podemos dizer que edição
que difere da ideia do engenho como do livro Casa Grande e Senzala não
fator importante da nossa organização representou nenhum impacto positivo
social, política, cultural e econômica. sobre a vida da população negra. Apenas
Completa esta visão o texto recente de reforçou e formou de forma renovada
Viviane Lima de Morais (MORAIS, vários conceitos racistas sobre a
2009). Podemos também recuperar que inferioridade civilizatória da população
em 1959 o historiador Clovis Moura negra. Prega-se que a inovação
publicou Rebeliões na Senzala fantástica do referido livro é ter saído da
(MOURA, 1959), que poderia ter sido o ênfase na raça e ter mudado para cultura,
prenúncio de uma ampla revisão de o que também não foi avanço nenhum
conceitos sobre a nossa formação para a população negra, pois o que
histórica, visto existirem mais quilombos ocorreu foi a substituição da
que casas grandes e senzalas (MOURA, inferioridade pela raça pela inferioridade
1988), sendo reafirmando por pelo pela cultura.
menos dois importantes autores Flavio
dos Santos Gomes (GOMES, 1993) e Considero que o livro em nada
Rafael Sanzio Anjos (ANJOS, 2011). A contribuiu para o conhecimento sobre a
minha critica “as senzalas e a casa população negra, funcionou como uma
grande” tem como base a reformulação forma de desqualificação cultural
do pensamento cientifico nacional que reafirmando um suposto e controvertido
pareceu não ter existido, visto que tenho atraso civilizatório das populações
a sensação que o texto de Freyre parece africanas em relação à portuguesa. Além
não ter sido superado pela critica atual do mais o livro retira a força, ou pelo
executada pela maioria dos professores menos atenua os enfoques que acusavam
universitários. Caso não tenha a sociedade brasileira de racista.
realimente existido a superação do texto Funciona como uma negativa à
de Freyre, isto não aconteceu por razões existência do racismo como forma
da ausência de novos conhecimentos ou estrutural de impedimento da ascensão
de não existirem criticas importantes ao social da população negra. Ascensão
social esta que abrange tanto a

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economia, a política e a cultura. A origem. Ou seja, não existe no texto uma
população negra ao longo do século XX, verdadeira substituição da raça pela
além de ser usurpada do direito de cultura, não aparecem os povos, como
ascensão social, também perdeu muito Angolanos, Congoleses, Nigerianos,
dos campos de trabalho e áreas que era Daomeanos e contra cenam com Tupis,
de sua predominância. Em torno da Tapuias, Tabajaras e Portugueses, sim as
mestiçagem se costura uma ideologia da raças. Quando se refere aos africanos, as
democracia de igualdade de culturas são sempre tomadas a partir da
oportunidades entre as populações lógica dos portugueses, sem considerar
negras e brancas, um país sem razões as tecnologias e os feitos realizados no
para se falar de racismo antinegro. campo concreto da produção pelos
descendentes no Brasil. Muito menos se
Durante o escravismo criminoso, antes considera o intenso comércio de
da abolição e da transição do século XX, produtos africanos que irriga a sociedade
e no período anterior aos grandes ciclos brasileira.
das imigrações europeias, um amplo
conjunto de pequenos comércios e das O livro Casa Grande e Senzala é
profissões artesanais eram ocupados analfabeto em história e cultura africana.
predominantemente por negras e negros, Quando se refere aos feitos de africanos
majoritariamente livres, mas também e descendentes para nos efeitos que não
nesse coletivo se incluíam escravizados vão além dos feitos relativos aos campos
de ganhos. Muitos negócios de do lúdico e do trivial, das comidas, do
escravizados de ganho tinham outros samba, das modinhas e do requebrar das
escravizados trabalhando. Este mulatas. Restritos as estes aspectos
predomínio profissional negro foi sendo ainda fica na superficialidade dos fatos,
substituído paulatinamente e tornado o sem uma avaliação profunda e avalizada
trabalhador negro dispensável pelas também destes aspectos importantes da
mentalidades de desqualificação social cultura. Não existe no trabalho uma
da população negra. A preferência pelo valorização da população negra e muito
trabalhador branco, europeu. Sendo que menos da cultura negra. Sobre o negro, o
no século XX a grande contribuição para que existe são alguns elogios vazios de
este processo racista no mercado de conteúdos e somente de efeito discursivo
trabalho foi dado pela ciência que sem profundidade no seu
considerava a população negra inferior, desenvolvimento. Sobre população e
primeiro pela raça e depois pela cultura, cultura negra, o livro Casa Grande e
tendo sido um dos pilares desta força Senzala copila os seus antecessores
teórica o livro Casa Grande e Senzala. racistas sem, contudo, usar a palavra
raça negra. Avançando na demonstração
Não houve também uma mudança de desconhecimento sobre o continente
radical de raça para cultura na totalidade africano e sobre as culturas e populações
do texto de Gilberto Freyre. A promessa africanas, o livro comete outros deslizes
não se concretiza visto que falar de racistas quando compara as populações
mestiçagem implica em considerar as da África Ocidental como as da África
raças denominadas por indígena, negra Austral, ou seja, os denominados
como o africano e o branco como o sudaneses com os Bantos. Insiste no
português. Este triângulo perambula pelo defeito de informação que considera os
texto todo produzindo as ideias de negros oriundos da África Ocidental
mestiçagens biológicas e culturais, mas mais evoluído que os das regiões
nunca teorizando distante das raças de Centrais, vindos de Angola, Congo e

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Moçambique. Deduz que os primeiros o conceito de escravismo criminoso
não seriam nem propriamente negróides. preenche estes propósitos.
Isto é uma tradução dos mesmos
equívocos que estão presentes nos Existe um juízo de valor que diferencia a
trabalhos de Nina Rodrigues, que foi um opinião de quem sofreu o sistema
dos principais atores da transmissão do escravista e as conseqüências posteriores
racismo cientifico para a sociedade dos que o impuseram e usufruem das
brasileira. Então podemos reafirmar que, heranças deste. A sociedade brasileira
para a população negra, a edição da comporta esta diferença e cumprem às
referida obra literária não representou gerações presentes a negociação critica
avanço algum e nem um processo deste passado e presente histórico.
concreto de valorização. Existiu no período republicano uma
produção ideológica, tanto no campo das
Quando nos referimos ao escravismo o ciências humanas e biológicas, quanto
imputamos como um modo de produção na produção literária, para justificar o
criminoso. Escravismo criminoso. Este escravismo criminoso a partir da
adjetivo criminoso não é aceito pela naturalização dos fatos históricos. Tal
maioria dos colegas acadêmicos e ideologia defendia que a naturalização
muitos dos revisores dos artigos pedem a do sistema é explicada por dois fatores: a
retirada do termo, alguns com certa fatalidade econômica e a inferioridade
irritação. Consideram o termo com cultural ou mental da população negra.
militante, ideológico e nada acadêmico. Ambas justificativas ganham
Alegam ser a lei e a terminologia de uma legitimidade desde que o leitor se
época. Contestamos que a lei pode ser predisponha a manter-se no campo da
parte de um sistema criminoso. Usando desinformação pela realidade dos fatos
o exemplo da Alemanha nazista, onde históricos. Esta postura corrobora para
leis criminosas permitiram o extermínio confirmar a hipótese de que a escravidão
de milhares de pessoas. Depois da foi necessária pela amplitude da terra
derrubada do nazismo o governo e o brasileira a colonizar e pela ausência de
estado nazista foram julgados e população em Portugal. Afirma também
condenados como criminosos. Isto que a população africana foi escravizada
demonstra que embora seja a lei de um devido à superioridade civilizatória do
período histórico cabe retratações europeu, do atraso dos africanos e da
conceituais e julgamentos morais e existência de escravidão entre os povos
legais posteriores. Assim, embora tenha africanos. A importância da força deste
sido a lei do sistema de produção da pensamento pseudo naturalizado pode
colônia e do império no Brasil, tratava- ser observada na introdução de um
se de um sistema criminoso. Na artigo publicado na Revista Cultura do
qualidade de descendente dos africanos Ministério da Educação e Cultura, de
escravizados, necessito deste julgamento autoria de Corcino Medeiro dos Santos,
de valor sobre o sistema em que viveram em 1978:
meus antepassados. Foram vitimas de
um sistema criminoso. Clamo que não “A opção da grande empresa
agrícola para a colonização do
podemos silenciar as histórias sobre os
Brasil demandava abundante mão-
grandes holocaustos, sob pena de estes de-obra. Como resolver o problema
poderem se repetir. Uma das missões do foi a questão que se levantou.
ensino de história é a formação critica Portugal era um país de população
sobre a vida humana e sobre os seus diminuta e não havia como resolver
condicionantes. Portanto, trabalhar com a imigração de europeus para atuar

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e, em desacordo com suas tradições tiveram que empregar os mesmos
e aptidões. métodos que os portugueses. Essa
exigência de grande lavoura tropical
A instituição da escravidão foi,
tornou indissociável o trinômio
assim, um imperativo econômico. A
latifúndio-monocultura-escravidão.
montagem dos engenhos e a
A estrutura econômica, social e
implantação da lavoura da cana e
política do Brasil colonial terá as
indústria do açúcar só se tornaram
sua bases neste famoso trinômio”
possíveis com a garantia de mão-de-
(SANTOS, 1978, p. 66).
obra em quantidade e continuidade.
O índio não se prestou a isto por O presente texto, popularizado por um
estarem em estágio de civilização órgão oficial do governo brasileiro, é um
inferior. Trabalhavam juntos na monumento de simplismo e de
caça e na pesca e dividiam os desinformação, marcado pela visão
resultados entre si. Recolhiam e eurocêntrica e racista que coloca sempre
cumulavam somente o necessário o europeu na posição civilizatória e
para sua subsistência diária, cultural superior. Seu conteúdo omite a
desconhecendo, portanto, a existência de escravidão na mesma
economia agrícola, e por isso não
época na Europa e da circulação de
poderiam entender o sentido do
cultivo de grandes plantações de escravos de diversas regiões com
cana, das quais não tinham predominância de eslavos. Deixa de
necessidade. dizer que o escravismo de africanos no
Brasil teve origem anterior Portugal
Diante da resistência e da
onde o papa já havia autorizado da
incapacidade do índio para as
grandes plantações tropicais,
escravização dos povos considerados
recorreu-se à escravidão de negros pagãos, dentro de uma lógica da luta de
africanos, que foram mais cristãos europeus contra mulçumanos
resistentes a adaptáveis. Essa africanos (CUNHA JUNIOR, 2007). O
adaptação ao trabalho escravo, à texto prima pela desinformação em
grande exploração rural, foi desconhecer a diversidade das cidades e
resultante de dois fatores das realizações africanas nos vários
fundamentais: primeiro, o negro na campos do conhecimento. Deixa de
África estava num estágio de dizer que os portugueses conheciam bem
civilização bem inferior ao do índio a mão de obra africana e as
brasileiro que já praticava
competências dos trabalhadores
agricultura; segundo, muitos reinos
africanos viviam a fase do
africanos, pois já utilizavam desde muito
escravismo e, portanto, muitos tempo antes da colonização do Brasil,
negros que eram negociados no visto que no século XV grandes ourives,
Brasil já eram escravos em sua joalheiros e artesões africanos
própria terra. trabalhavam em Portugal. A produção de
artefatos de ferro e de tecidos africano
Legitimada a escravidão pelas leis
econômicas e civis, ela veio a ser o
eram de qualidade superior às de origem
sustentáculo de todo sistema europeia (SILVA, 2008).
colonial. Daí afirma Gilberto Freyre
O artigo da revista do MEC deixa de
que a grande lavoura tropical só se
tornou possível com a escravidão. informar que parte da população
De fato, os holandeses tentaram no indígena foi escravizada como negros da
nordeste brasileiro a continuação da terra, como omite o extermínio de vários
indústria açucareira como o trabalho grupos indígenas que reduziu
livre assalariado. Fracassaram e consideravelmente a possibilidade destes

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como mão-de-obra intensiva. Mas o Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso.
mesmo documento informa o que é Também muito distintas da região
importante para este texto, destacando Amazônica e da região sul. Portanto o
que os trabalhos de Gilberto Freyre livro não deveria ser tomado como uma
servem para cristalizar e confirmar esta interpretação da ocupação, povoamento
estrutura de pensamento. Uma visão e produção nem do nordeste e muito
acrítica sobre um texto como Casa menos do Brasil. No entanto o autor
Grande e Senzala que utiliza os afirma que o Brasil nasceu na Casa
elementos da naturalidade da história Grande, argumento este que não se
como argumento, não pode fazer uma justifica nem pelo ponto de vista da
historiografia renovada e nem ser geografia, tão pouco da historia ou da
pensado como marco de ruptura na sociologia.
historiografia social. Também não deve
representar uma forma coerente com a Outra critica que merece atenção é a
realidade para explicar a nossa estrutura forma infantil e descomprometida de
social. formação universitária ou cientifica que
o autor constrói a ideia de relações
3. O teor das minhas criticas sobre o harmônicas entre as mulheres negras e
livro índias e o português. Diz sem explicar
de onde e como observou que embora os
As críticas apresentadas até aqui tem negros fossem brutamontes, os pênis
como ponto de partida a análise da eram pequenos como titicas de
geografia do nordeste e da história da moleques. Surgindo desta constatação a
produção da região. No nordeste preferência das negras pelos
predomina o clima do semiárido, sendo portugueses. Se qualquer estudante de
que as regiões que permitem a produção mestrado ou doutorado escrevesse tal
de cana-de-açúcar, quer seja para absurdo estaria sumariamente reprovado.
produção de rapadura ou de açúcar, No entanto, esta rude e tosca afirmação
ocorre em uma pequena faixa de mata ao não é denunciada e nem criticada pela
longo do litoral (com largura de 100 maioria dos leitores e admiradores do
Km) e algumas regiões de serra, isto do livro. A afirmação ingênua e infantil é
Recôncavo Baiano até a Paraíba. A estrutural na construção do raciocínio de
predominância do clima e da vegetação Freyre, pois ela leva a crer no interesse
deu origem a colonização pela criação das negras e índias pelo europeu
de gado. A maior parte do nordeste se português, fato que também não tem
desenvolveu baseada na criação do gado nenhuma comprovação histórica,
e nos produtos obtidos desta cultura. Nas funciona como uma hipótese, sem
criações de gado não existiu nem nenhuma análise ou demonstração
senzalas e nem casa grande. O histórica convincente. Também as
escravismo existiu, mas sob outra forma situações das mulheres africanas
de organização. Partindo desta aprisionadas na casa grande não são
constatação podemos deduzir que o livro percebidas pelo autor como cárcere
não expressa nem o processo de privado, sendo então a gênese desta
colonização do nordeste, ou a trajetória mestiçagem. O português não figura
histórica de ocupação do nordeste. como estuprador dessas mulheres. Da
Também em outras regiões do Brasil o mesma forma imprudente também
escravismo criou formas de organização explica a preferência das índias pelos
muito distintas das do engenho de cana- portugueses. Freyre nos diz que os
de-açúcar, como são os exemplos de índios eram pouco interessados pelo

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sexo e os portugueses bem mais. Assim, participação da população negra no
as índias deram preferência aos brancos sistema dos engenhos, o que
“pegadores”. As atrocidades, guerras, impossibilita uma tradução das relações
genocídios dos homens e, depois, as sociais da propriedade na sua amplitude.
mulheres caçadas como cães nas matas, Então o livro não tem a capacidade nem
nada disto é reportado ou analisado. mesmo de refletir as relações existentes
Restou no imaginário popular a ideia das na propriedade regionalista do engenho.
índias bugres caçadas a dente de
cachorro, visto erroneamente como um 4. Os grandes críticos de Casa Grande
ato de benevolência do civilizador e Senzala
branco em aceitar a incivilizada como Na literatura universitária brasileira
esposa. Este provérbio de ser podemos elencar pelo menos quatro
descendente de índia bugre caçada a grandes críticos do livro Casa Grande e
dente de cachorro é muito comum no Senzala. Certamente existem vários
nordeste, em particular no Ceará e em outros, estou apenas retomando os que
Pernambucano, entre a população considero os mais conhecidos. Ficando
denominada como morena ou cabocla. em apenas quatro grandes criticas
Serve como forma de explicação da cor podemos citar Kabengele Munanga
da escura de pele. (2006), como seu livro “Repensando a
mestiçagem”; Dante Moreira Leite
O terceiro conjunto das críticas vai em
(1969) com “O caráter nacional
direção ao trabalho na indústria
brasileiro. História de uma ideologia”;
açucareira do engenho de cana-de-
Carlos Guilherme Mota (2008),
açúcar, por escravizados, agregados e
“Ideologia da cultura brasileira”; e,
meeiros. Trata-se da população de
ainda, o laborioso trabalho recente
trabalhadores com variações de status
“Tempos de Casa-Grande (1930-1940)”
sociais, não se trata de uma massa
de Silvia Cortez Silva (2010), que faz
uniforme. A complexidade da produção
uma crítica importante ressaltando
do açúcar foi comandada por uma
também os problemas do antissemitismo
variedade de profissões e
e outros racismos contidos na produção
especializações, compondo um quadro
Freyreana.
diversificado de situações de trabalho. O
livro Casa Grande e Senzala não Kabengele Munanga faz uma crítica a
transcreve esta complexidade, pois ela um conjunto de intelectuais que tem a
não levaria aos trabalhadores serem mesma preocupação e jogam de forma
tratados apenas como escravos da semelhante com o problema da
senzala e patrões da casa grande. O mestiçagem com a intenção da
trabalho implica na criação de animais construção da nacionalidade (no sentido
para transporte e tração. Na produção de ideológico) do povo brasileiro
oleiros para produção de construções e (MUNANGA, 2006). Demonstra que a
vasos cerâmicos para resfriamento do busca por uma identidade étnica única
caldo cristalizado. A realização de fiação para o país tornou-se o foco de vários
e tecelagem. O trabalho de ferreiros e intelectuais na primeira república. Esta
produtores de instrumentos de ferro. A identidade única sempre fomentou a
criação das pesas dos engenhos e dos negação da negritude brasileira e das
trabalhos de marcenaria e carpintaria. O formas das identidades negras
texto de “Casa Grande e Senzala” brasileiras. Contrapõe esta ideologia da
desconhece esta complexidade e fazendo identidade nacional única às identidades
isto impossibilita uma real avaliação da negras. Tece ainda uma crítica ao

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espírito da mestiçagem colocando no dominante em ver o mundo, a nação,
mesmo projeto Silvio Romero, Euclides somente desde si próprio, fazendo-se
da Cunha, Alberto Torres, Manuel como centro de tudo e superior aos
Bonfim, Raimundo Nina Rodrigues, outros. Dante ainda reconhece que o
João Batista de Lacerda, Edgar Roquete sentimento nacionalista é imposto pelos
Pinto, Oliveira Viana e Gilberto Freyre. grupos dominantes ao povo. Trata das
diferenças e semelhanças entre o
Munanga (2006) critica em particular o nacionalismo e o racismo. O
livro “Casa Grande e Senzala”, visto nacionalismo justifica as desigualdades e
que este se cristaliza o mito da hierarquias entre nações que têm
democracia racial brasileira. Diz que o conteúdos históricos, políticos e
livro permitiu completar em definitivo culturais, enquanto o racismo justifica as
os contornos de uma identidade desigualdades sociais por questões
ideológica nacional que há muito vinha biológicas e naturais, e existe dentro de
sendo desenhada desde os primórdios da uma nação para justificar a divisão de
república. Parte da consolidação do mito classes ou de castas. Entende que o
da origem nacional das três raças produz racismo está próximo do nacionalismo
as descrições das misturas entre os se for usado para justificar o domínio de
povos. Passa dos enfoques de raças para um povo sobre outro, como ocorreu no
os das culturas que também se tornam expansionismo colonial. Inclui nesta
mestiças no campo cultural. Destas explanação o darwinismo social que,
ideias, constrói o conceito da dupla respaldado pela ciência, indica que a
mistura de onde forma-se a hipótese da evolução natural da humanidade ocorre
democracia racial. O mito da democracia pela dominação das raças menos capazes
racial está expresso na conclusão de por raças superiores. Segue afirmando
Freyre, reproduzida e criticada por que a origem do nacionalismo num povo
Munanga: “Somos uma democracia se caracteriza pela exaltação das suas
porque a mistura gerou um povo sem qualidades, sendo que as grandezas
barreira, sem preconceito”. Esta afirmadas são comparadas com outros
conclusão é duramente criticada em povos vistos como inferiores. Tal
função da realidade em que vivem as sentimento nasce nas classes mais
populações negras no país. Portanto, ilustradas e é imposto pelos grupos
Munanga conclui que a forma que a dominantes às outras classes através da
mestiçagem é construída nas ideias de educação e dos meios de comunicação.
Freyre estrutura uma ideologia que opera Assim, Dante reconhece em Freyre a
tanto disfarçando o racismo como continuidade deste esquema de
também dificultando as manifestações nacionalismo e, nas criticas, indica que
públicas dos protestos dos movimentos e este autor não consegue ultrapassar a
da população negra. perspectiva do grupo social a que
pertence, ou seja, a elite patriarcal.
Dante Moreira Leite inaugura um ciclo Denuncia que somente uma visão
de duras críticas ao livro na década de conservadora da história social poderia
1950 e 1960. No trabalho deste autor imaginar doçura na relação do
produzido em 1955 é importante notar escravizador com a escravizada. Assim,
que ele trata de conceitos como a tese serve como uma ideologia que
etnocentrismo, sentimento nacionalista e justifica a forma de dominação desta
da relação deste com o nacionalismo. elite patriarcal, através da mestiçagem,
Reconhece o eurocentrismo como a sem, contudo, admitir plenamente a
expressão de um grupo minoritário

94
crueldade do sistema de trabalho um simples escritor. Mota deduz que
escravista colonial. Na crítica ao livro esta trama de escritor serve apenas para
Casa Grande e Senzala, Dante considera tornar indefinidas as suas verdadeiras
o método enquanto um enorme processo opções e filiações teóricas e conceituais.
de deformação, pois constitui uma teoria Como critico de Freyre, Mota discute o
correta quanto a miscigenação, que problema do estilo dito atípico e conclui
produz um disfarce da realidade, sem um que o estilo desenvolvido no livro não é
ponto de vista teórico bem definido, sem um produto da personalidade do autor ou
método explicativo baseado quer na do seu pendor literário, mas a forma de
historia, na sociologia ou na despistar as verdadeiras intenções. Na
antropologia, e que contém as hipóteses perspectiva de Guilherme Mota o livro
básicas apenas fundamentada nas “Casa Grande e Senzala”, devido a sua
intuições pessoais do autor, que padece forma ensaística, entretêm o leitor, mas,
de comprovações sistemáticas e em muitos casos, não explica os fatos,
objetivas. Indica e critica existir no texto mas os lança ingenuamente e forma uma
um desprezo à cronologia e à precisão consciência sobre estes, na qual encobre
do espaço geográfico em relação aos o real das relações de dominação entre
fatos descritos, o que prejudica e anula brancos e negros no Brasil.
as qualidades esperadas de um trabalho
cientifico. Silvia Cortez Silva trata de outros
aspectos voltados para a análise do mito
Para Carlos Guilherme Mota o livro da democracia racial e da mestiçagem.
Casa-Grande e Senzala é produto do Tempos de Casa-Grande representa uma
conservadorismo da República Velha e reflexão minuciosa sobre o livro, pondo
indica os esforços de compreensão da em evidencia uma das problemáticas que
realidade brasileira levados a cabo por é a invisibilidade do trabalho e do
uma elite aristocratizante que racismo. A autora coloca Freyre no
progressivamente perdia poder. Mota banco dos réus, demonstrando o seu
critica a informalidade do texto e indica pensamento racista. Para Silvia Cortez, o
que o uso literário funcionam como uma conhecido autor é um intelectual racista,
máscara para encobrir a realidade da destacando neste trabalho o viés do
dominação. Realiza no seu ensaio crítico antissemita. Na sua análise, a autora não
uma história das “desleituras” da obra de se confunde com as ambigüidades
Freyre e instrui que autor desenvolveu produzidas por Freyre, que criam uma
uma série de “mecanismos e artifícios” estratégia de elogios e acusações, e que
para não ser facilmente localizável na funde as acusações num argumento forte
sua real estrutura de opção e filiação que fica apenas numa das denominadas
científica. Diz que Freyre oscila entre se marcas mais importantes de Freyre, que
colocar como sociólogo, mas em é a mestiçagem e a elaboração do mito
contraposição em se dizer contrário à da democracia racial, mas produz um
ciência na forma que é feita. Ou seja, se inventário de outra marca importante: o
coloca como um reformador ou racismo e a formação de mentalidade
inovador. Assume as tarefas e conceitos racista. Demonstra como o racismo e o
liberais e, no entanto, quando critica os racialismo foram naturalizados e
liberais produz uma ilusão de se tratar de acobertados por interpretações do
um revolucionário. No entanto como próprio Freyre. O pensamento de
revolucionário trabalha no campo de mestiçagem de Freyre é um pensamento
conservadores. De revolucionário evolucionista, o qual pressupõe que, pela
conservador pode ser classificado como marca do racismo, estaríamos indo em

95
direção a uma sociedade mestiça e cada progresso, também precisava da unidade
vez mais embranquecida, culturalmente nacional e dos caminhos do progresso. A
purificada pela europeização. Definindo- ordem de um lado implicou nas
o como criador do maior mito da constantes repressões à população negra
sociologia brasileira, que é da oprimida. E dos acordos sobre a unidade
democracia racial, e que se trata antes de nacional. O progresso pela procura da
tudo de uma mitologia política que europeização do país, nos modelos
procura trazer para o centro do europeus de industrialização e da
pensamento uma solução para o supressão do que seria o atraso, as
problema racial, evidenciado nos anos africanidades e afrodescendências, não
1930 com as catastróficas teses apenas no campo da cultura, mas da
eugênicas, sendo que ele prometia uma configuração da população.
modernidade com atenuações que teria
como resultado o produto da mestiçagem Os genocídios, as repressões policiais e
eugênica. Trata o futuro anunciado por as obscuras iniciativas do eugenismo,
Freyre como de nítido sentido soreliano, seguidas das correntes imigratórias
em referência ao pensador francês europeias, com a proibição de imigração
Georges Eugène Sorel (1847-1922) que de negros da África e do Caribe,
acreditava no mito como força capaz de acompanhadas do pensamento da
levar pessoas a agir em prol do triunfo desaparição do negro pela mestiçagem.
de uma causa, fosse ela qual fosse, justa A mestiçagem funcionou como um
ou não (GUERRA, 1977). Então, o mito argumento importante na ideologia da
da democracia racial na análise de Silvia unidade nacional dos três povos de
Cortez teria este poder. Ela não deixa de origens e de situação na história nacional
ironizar o fato de ser Freyre um distintas. O amálgama estava na
descendente de judeus imigrados no mestiçagem como proposta da superação
passado para Pernambuco, desfazer dos das origens e não nas distinções
judeus no texto. históricas. Inexistiram as políticas de
proteção da população negra no mesmo
5. Na cultura científica o difícil não é a perfil das de proteção da imigração. Não
produção do novo e sim a ruptura houve a mestiçagem do imigrante com o
com o passado brasileiro negro como ampla realidade.
Muito menos a mestiçagem do poder
O problema não é o que está escrito no político, das propriedades e das contas
texto da casa grande e da senzala, mas as bancarias.
sérias implicações daquilo que se pensa
sobre o texto e das consequências sociais A mestiçagem faz parte da ideologia
destes pensamentos para a população unidade nacional que os positivismos
negra. O pensamento acadêmico, por procuravam e também fez parte do ideal
vezes clama pelas regras do rigor que os marxistas perseguiam. Numa
acadêmico. O texto é pleno de deslizes visão teórica de uma sociedade de duas
que o rigor acadêmico não deveria classes e com a contradição maior sendo
aceitar. No campo das ideologias, uma o capital, não cabe outra forma de pensar
bem brasileira é a da mestiçagem. O que as contradições estruturais. O povo
se pensa sobre a casa grande e a senzala brasileiro como unidade ideológica é
provém das interpretações deste texto premissa para adequação das
inoportuno para a condição social da interpretações marxistas e também para
população negra. Coroa a ideologia da a revolução das classes populares.
república. Onde era necessário ordem e Somente pelo que se pensa

96
ideologicamente é que podemos Como a cultura cientifica é muito
compreender como positivistas e repetitiva dos velhos paradigmas e das
marxistas pensam o Brasil através das formas anteriores, a novidade existente
propostas da casa grande e da senzala, tem dificuldade de penetração. Assim, a
reunidos harmonicamente pela cultura passada tem dificuldade em
mestiçagem. Desta maneira, pensam ser absorver o que existe de novo sobre as
o livro importante para a formação nas populações negras no Brasil, sobre a
ciências humanas em nosso país, o cultura negra e principalmente sobre as
adotam e elogiam nas formações. Os relações sociais entre esta população e as
mais cautelosos propõe leituras criticas demais. Sendo assim, sugerimos que os
sem, contudo, apresentarem os críticos e novos conhecimentos não bastam para
muito menos outros autores como que a cultura da casa grande e da senzala
propostas divergentes. em termos de cultura universitária seja
abolida e substituída. Continua-se a
Os absurdos e os erros apontados pelos conservar as leituras e os elogios ao
críticos são vistos como problemas do texto, sem uma real atenção para as
tempo que foi escrito. Afirmam nos críticas e mais ainda para as novas
corredores da Faculdade de Educação da produções. No campo universitário a
Universidade Federal do Ceará, no produção de conhecimento é
ambiente que convivo e observo, mas conservadora, como nos indica Thomas
também em outros fóruns, que ele foi Kuhn (2009) no seu trabalho sobre os
um homem o seu tempo, isto paradigmas científicos e a dificuldade da
justificando os problemas que temos sua superação.
apontado. A minha resposta é lógica, No caso brasileiro a produção do
sim foi um homem do seu tempo, tempo conhecimento universitário é
das teorias racistas e das perseguições conservadora e eurocêntrica. Poderia
sistemáticas das culturas negras. Tempo dizer mais atrasada em relação à própria
no qual os Babalorixás eram presos e produção europeia que tem se renovado
internados em manicômio na cidade do muito nos últimos 40 anos sobre as
Recife, sem nenhum protesto ou linha da visões a respeito das culturas africanas e
escrita deste herói do pensamento as relações entre o pensamento africano
brasileiro (SILVA, 2008). Mas o que e ocidental. O conservadorismo e
cabe no presente é concluirmos que as eurocentrismo brasileiro se fundem e
senzalas e a casa grande não explicam as produzem um perfeito campo de
relações sociais do Brasil e nem mesmo alienação cientifica para justificar o
as do nordeste. Por outro lado, a completo desprezo com a realidade da
mestiçagem também não teve sua partida população negra, da cultura negra e
e nem as suas origens de forma pacífica africana. População negra que representa
e ingênua como o texto leva a concluir. a imensa maioria dos mais pobres e dos
O texto não tem referências que mais excluídos das preocupações gerais
impliquem em concluirmos que ele da universidade, enquanto ensino,
transmita algum conhecimento sobre as
extensão e pesquisa. Neste sentido do
populações africanas e afrodescendentes conservadorismo cientifico expresso em
e das suas culturas. A conclusão é que
Casa Grande e Senzala, o que se
para as populações negras a denominada
consagra às diversas referências
obra não traz nenhum avanço e nenhuma
elogiosas ao mesmo representa um
visão progressista sobre a nossa
atraso acadêmico. Para Freyre, e diletos
realidade.
de forma contundente, não somos

97
racistas devido às características ardentes indo esfregarse nas pernas
mestiças do Brasil. Nesta premissa se desses que supunham deuses.
apoiaram muito dos argumentos contra Davam-se ao europeu por um pente
as cotas para a população negra nas ou um caco de espelho.
universidades brasileiras. A novidade São é geral pretalhonas de elevada
que se apresenta desde os anos de 1920 e estatura – essas negras que é
que é de difícil aceitação ampla pelas costume chamar de baianas.
nossas elites universitárias, tanto
A negra corrompeu a vida sexual da
marxistas como positivistas, é que
sociedade brasileira, iniciando
somos um país mestiço nas relações precocemente no amor físico os
biológicas e racistas nas relações que filhos-família. Mas essa corrupção
implicam em poder. A biologia (ou a não foi pela negra que se realizou,
mestiçagem), retomando as conclusões mas pela escrava. Onde não se
de Kabengele Munanga (2006), não tem realizou através da africana,
relação com as esferas econômicas, realizou-se através da escrava
políticas, culturais e sociais. O racismo, índia.
afirmo, é estrutural, invade as relações O que a negra da senzala fez foi
de poder, faz parte do sistema de facilitar a depravação com a sua
dominação entre grupos sociais. Sobre docilidade de escrava; abrindo as
essas relações sociais acerca da pernas ao primeiro desejo do sinhô-
complexidade que atravessa a história da moço. Desejo, não: ordem.
população negra é que a universidade
brasileira se recusa discutir. Nesta Para a população negra a edição do livro
recusa, o texto de Freyre funciona como não representou nenhum avanço, pois
álibi mitológico na formação de uma não possui nenhuma base na realidade
mentalidade sem culpa de não tratar a concreta. Não tem nenhuma base de
realidade como ela se apresenta, mas informação consistente sobre as origens
como podemos imaginá-la. africanas e nem sobre a variedade de
contribuições significativas que os
Ainda devemos nos localizar numa africanos e afrodescendentes deram ao
premissa importante para a análise de país. Também não tem elementos que
todos os trabalhos universitários e que discutam a realidade de vida da
não tem sido aplicado ao livro de Freyre. população e se concentra num passado
O todo não pode ser compreendido sem imaginado pelo autor, distante da
as partes e as partes em o todo. O texto diversidade de situações que produziram
de Freyre é pleno de frases racistas e a constituição da nação. O livro explora
sexistas. Afirmações sem referência, uma grande literatura com fonte baseada
aparentemente soltas ou da observação em atores que beberam nas informações
do autor sem comprovação da sua produzidas no período de grande
veracidade ou amplitude do fato. consistência do racismo cientifico e que
Apresentamos penas alguns exemplos aparecem recopiladas no livro sem uma
para ilustrar a precariedade do texto. reflexão critica dos seus significados e
das condições da produção dos fatos
O europeu saltava em terra
históricos. O livro produziu um grande
escorregando em índia nua; os
próprios padres da Companhia prejuízo político em relação às
precisavam descer com cuidado, reivindicações das populações negras e
senão atolavam o pé em carne. (...) dos movimentos negros, visto que
As mulheres eram as primeiras a se produziu um aparelho ideológico contra
entregarem aos brancos, as mais as denúncias de desigualdades entre as

98
populações negra e branca. O Maringá, 2010, disponível em
pensamento produzido pelo livro http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/Esp
acoAcademico/article/view/9385/5601
mascara a desqualificação social da
população negra. As denúncias de CUNHA JUNIOR, Henrique. Os negros não se
racismo antinegro ficam minimizados, deixaram escravizar. Temas para as aulas de
história dos afrodescendentes. Revista Espaço
pois a ideologia da democracia racial Acadêmico, nº 69, ano VI, Fev. 2007, disponível
está bastante difundida e teve como base em
a estrutura produzida pelo livro Casa http://www.espacoacademico.com.br/069/69cun
Grande e Senzala. hajr.htm

Para os moldes acadêmicos e científicos DOMÍNGUEZ, Esteban Morales. Desafíos de la


problemática racial en Cuba. Havana: Fundación
em curso no presente, uma conclusão é Fernando Ortiz. 2007.
importante: não é um trabalho
sistemático, nem de historiador, devidos FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala. 41ª
edição, Rio de Janeiro, Record, 2000.
às fontes fluidas, soltas de comprovação
dúbia, nem de sociólogo ou antropólogo. GOMES, Flavio dos Santos. Histórias de
Poderíamos, em termos técnicos destas Quilombolas – Mocambos e Comunidades de
Senzalas no Rio de Janeiro, século XIX. São
áreas do conhecimento, dizer que não se Paulo: Companhia da Letras. 1993.
trata de um trabalho profissional. Sendo
GOULART, José Alípio. Brasil do boi e do
assim não deveria ter a importância
couro. Rio de Janeiro: Edições GRD, 1966.
universitária e bibliográfica que é
atribuído. Como tem uma notaria GUERRA, Marino Diaz. El pensiamento social
de Georges Sorel. Madrid, Instituto de Estudios
importância, visto ser texto da maioria Políticos. 1977.
dos cursos de graduação e pós-
graduação em ciências humanas, então, JACOBINA, Ronaldo / GELMAN, Ester Ainda.
Juliano Moreira e a Gazeta Medica da Bahia.
estamos diante de um fato importante e História, Ciência e Saúde – Manguinhos, vol.15,
político, a política cultural antinegra da n.4, Rio de Janeiro, Oct./Dec. 2008.
república velha permanece viva entre http://dx.doi.org/10.1590/S0104-
nós. Por mito no cotidiano não 59702008000400011\
especializado das áreas não técnicas JACOBINA, Ronaldo Ribeiro. De Santo (São
universitárias e por ideologia para os João de Deus) a médico (Juliano Moreira):
especialistas das áreas técnicas das analise histórica do manicômio estatal da Bahia
universidades, mas não por razões de (1930-1937). Salvador: Revista Bahiana de
Saúde Pública.V.30, numero 1, jan-jun, 2-6.p.24-
mérito cientifico. 32.
KUHN, Thomas. A Estrutura das Revoluções
Referências Científica. Tradução de Carlos Marques. Lisboa:
Guerra & Paz, 2009, 288 pp.
ANJOS, Rafael Sanzio Araújo dos.
Territorialidade Quilombola. Brasília: Editora: LEAL, Maria da Graça. Manoel Querino entre as
Mapas & Consultoria. 2011. letras e lutas - Bahia 1851-1923. São Paulo: PUC
tese de doutoramento, 2004.
CARVALHAL, Lázara A. Loucura e sociedade:
o pensamento de Juliano Moreira (1903-1930). LEITE, Dante Moreira. O Caráter Nacional
Monografia (Bacharelado em História) – Brasileiro. História de uma ideologia. 2a. ed. São
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Paulo: Pioneira, 1969.
Janeiro. 1997.
MORAIS, Viviane de Lima. Da subjetividade do
CORREA, Mariza. As ilusões de liberdade: A homem à materialidade do boi: recriando Áfricas
escola de Nina Rodrigues e antropologia no na diáspora. São Paulo: Tese de doutoramento.
Brasil. Bragança Paulista: EDUSF, 1998. PUC, 2009.
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