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Rodrigo de Haro, anacrônico contranatura

Anacrônico contumaz

A poesia de Rodrigo de Haro é caracteristicamente anacrônica, ou seja, não


está interessada na cronologia, mas em sua suspensão determinada por uma lógica
racional de manipulação do imaginário. Se temos em João Cabral um “cão sem
plumas”, em Rodrigo de Haro o que prevalece é um “relógio com plumas”, como diz
para descrever o que é o poema, no poema “Escrita” do livro Andanças de Antônio -
Cinquenta e sete sinopses memoráveis para o cinematógrafo1:
“O texto oculta-se materialmente do poeta./ Difícil encontrá-lo, pois de muito
zelo o escondera./ A folha toma muitas formas: bule, pedaço de madeira,/ algumas
pimentas. Disfarça-se no/ gato. O poema é muitas vidas, alma/ só uma. Ninguém pode
deter sua/ vocação natural para a mentira./ O poema se disfarça em escultura,/ alcança
dureza magnífica do gelo. // Quebra-se por vezes a Ode, circula/ aos pedaços pelas
ruas. Em poucas linhas/ a herética receita se ilumina. Mas/ o verso eclipsado sempre é
maior/ poesia. Pois o poema que foge é ave/ mineral, espécie de relógio sem plumas./
E o poeta encanecido por delírio/ prende nas mãos um caderno que voa”.
Seu vocabulário é requintado, com palavras caídas em desuso ou que remetem
ao tempo anacrônico ou ao passado cultural em que se inspira, demarcando um viés
barroquizante na escrita, tanto por esse vocabulário preciosista quanto pelas imagens
que usa reiteradamente. Sobre isso cabe a observação feita por Haro sobre sua prática
de escrita: “Consiste em aguçar cada vez mais a lucidez possível neste vale sublunar.
Escrever. Copiar. Recopiar. Copiar de novo. E de novo - assim o texto se despoja de
toda escória e deve alcançar a essência. Sim, alquimia do verbo, como queria
Rimbaud e muito antes dele, São João, o discípulo amado”2.
Com relação à sua predileção pela estética barroca, é interessante a resposta
dada à revista Coyote, como um entendimento da prática escrita: “O Barroco é

1
HARO, Rodrigo de. Andanças de Antônio ‒ Cinquenta e sete sinopses memoráveis para o
cinematógrafo. Florianópolis: Insular, 2005.
2
HARO, Rodrigo de. “Convocações do espanto”. Entrevista para Marco Vasques e Rodrigo Garcia
Lopes. Revista Coyote, Londrina, Verão 2010, n. 20, p. 42‒ 51.
includente, vertiginoso, encantatório, erótico e trágico. Trazido ao Brasil, por
Portugal, vai incluir‒ nos nos grande teatro do mundo com Vieira, Gregório de
Mattos. É orgânico, vegetal, pétreo, aéreo e tempestuoso. Fala da terribilidade, da
paixão e do excesso. Na própria mortificação dos Santos exalta os sentidos, ao
contrário do puritanismo da Reforma que nega o feminino e os anjos. O ressurgimento
do barroco é um momento de redescobrimento da alma brasileira. Um reencontro com
suas solicitações profundas e panteístas, polimorfas. O barroco fez lustrar nossa
língua com modulações dos motetos sacros da escola mineira e seus mestres. Mulatos
e negros. Na grande cenografia barroca dos cenários de nossa poética, nada se perde.
No luxo verbal a mesma exatidão do epigrama. Sua presença em Jorge de Lima e
Cecília Meirelles, por exemplo”.3
A esse aspecto soma-se também a predileção pela edição artesanal de seus
livros, pelo selo editorial Athanor, criado por ele. A expressão Athanor refere-se a um
forno cósmico, utilizado na alquimia para fornecer calor para a digestão alquímica.
Era considerado o forno filosófico com o qual se conseguiria a obtenção da pedra
filosofal (lapis philosophorum).4 Athanor é também um conjunto de poemas reunido
no livro Pedra elegíaca.5
Essas edições eram em geral ilustradas com seus desenhos - Péricles Prade
exaltou essa prática do desenho como a arte mais refinada de Rodrigo de Haro6.
Seguindo essa prática, estava nos seus planos também realizar a edição de oito
manuscritos inéditos, ilustrados: “Será um manifesto artesanal, da mão como
instrumento insubstituível do criador. Esse projeto não tem outro objetivo senão o de
satisfazer o capricho anacrônico de produzir manuscritos ilustrados com elegância e
bem encadernados, em edição limitada, enquanto a tecnologia aponta para o horizonte
oposto. Não importa. É importante que alguém assuma o papel de zelar pelos ‘nichos’
do trabalho realizado passo a passo, só pelo prazer de criar coisas belas, capaz de
emocionar o próximo”.7

3
HARO, Rodrigo de. Andanças de Antônio ‒ Cinquenta e sete sinopses memoráveis para o
cinematógrafo. Florianópolis: Insular, 2005.
4
Wikipedia.
5
HARO, Rodrigo de. Pedra elegíaca. Porto Alegre: 1971
6
PRADE, Péricles. Debate sobre a obra de Rodrigo de Haro. Revista Sphera. “A partilha do poético”.
Edição de 1 Set. 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?
v=aT9R0WWzdUs&ab_channel=REVISTASPHERA.
7
Entrevista para Marco Vasques e Rodrigo Garcia Lopes. Revista Coyote, Londrina, Verão 2010, n. 20,
p. 42‒ 51.
Esse anacronismo temporal que é prevalecente, no entanto, em alguns poemas
é rasurado pela descrição de eventos do lugar de moradia do poeta, como no poema
“As bruxas do Rio Vermelho” - Rio Vermelho é um lugar da ilha de Florianópolis -
é preciso que se diga que também o imaginário sobre ilhas é recorrente nos livros de
Haro, e num deles menciona: “Nós, das ilhas, somos os seres mais cruéis.” (“Riscas
meu nome na parede”, em Andanças de Antônio). Quanto às bruxas do Rio Vermelho,
ele diz: “Quem me dera surpreendê-las/ Em suas danças/ Na praia!” (“Bruxas”, em
Amigo da labareda8). O mesmo Rio Vermelho onde por seus caminhos “tropeçam
bêbedos e poetas” atormentados por mulheres danadas. Seu livro A borboleta Verde
ou A Guardião dos Sortilégios - Desenhos em prosa 9, é todo dedicado à história e
memória de Florianópolis.
Noutro poema, em “Visita à Quinta da Boa Vista”, por exemplo, que é um
poema de Amigo da labareda, Rodrigo de Haro descreve o enlevo habitual em sua
poesia de fazer presente no real em que está um Egito fantasioso: nesse momento de
êxtase imaginário, na Quinta da Boa Vista, pois, surge no poema uma cantora do
templo de Ammon e também remadores vestidos de linho, entre outros aspectos. Eis
que o êxtase é imaginário, como ressaltei, próprio desse poeta que descreve imagens
fazendo montagens, pois nesse mesmo poema ele explicita que “Os murmúrios
modernos/ Da cidade ardente” não seguem os passos medidos da pequena dançarina,
tampouco “Os murmúrios próximos/ Da Mata atlântica” não a fazem sorrir. Haro,
assim, consegue um interessante contrassenso imagético ao ver o Egito ou seus
personagens, transitando pela Mata Atlântica.
No engenho da casa da Lagoa da Conceição, local de morada de Haro,
também uma cobra desliza como um último discurso de Thot e por conhecer
provérbios e jogos perdidos da ilha, imobiliza nuvem e sapo.
É significativo, portanto, que Rodrigo de Haro coloque a seguinte epígrafe em
seu livro Andanças de Antônio: “Ante a quantidade de provas em seu favor, não existe
hipótese mais verossímel do que a da realidade; porém, ante a quantidade de provas
em contrário, não nos resta mais nada, caro senhor, do que a ilusão” (Luca Marenzio -
Anotação à margem de uma partitura de John Dowland, 1597 - citado como epígrafe
no livro Andanças de Antônio.

8
HARO, Rodrigo de. Amigo da labareda. São Paulo: Massao Ohno, 1991.
9
HARO, Rodrigo de. A borboleta verde ou A Guardiã dos Sortilégios - Desenhos em prosa.
Florianópolis: Fenasoft, 1998.
Com a suspensão do tempo, do lugar e da realidade, eis que Rodrigo de Haro é
inteiramente um poeta alegórico, que é um modo de expressão ou interpretação que
consiste em representar pensamentos, ideias, qualidades sob forma figurada.
Carlos Felipe Moisés comentou sobre o aspecto “alquimista” dessa poesia10,
porém não deixou de chamar a atenção para o fato de que nela “a realidade é um
permanente espetáculo, deslumbrante, feérico, impregnado de magia” - ou seja, a
realidade é suprarreal. Cláudio Willer, até agora um dos seus leitores mais argutos,
disse que a escrita poética de Rodrigo de Haro se confunde com sua produção
pictórica e, nesse sentido, remarcou que sua pintura é literária e sua poesia
imagética11. Willer também observou o fato de que os leitores de Haro, por
acreditarem superficialmente num hermetismo da escrita, poderiam estar incorrendo
numa “inversão ou desvio de perspectiva”, pois “Sua poesia é complexa e resiste à
apreensão imediata de um sentido. Por isso tende a ser associada a escritos das
disciplinas ocultas”.12
Quanto à imagética em sua obra poética e pictórica, a revista Coyote o
questionou: “Você também é pintor. Como se dá a relação entre poesia e imagem em
sua obra? HARO: Nunca houve escolha nem ‘relação’ entre elas, pois ambos os
exercícios são emanações diferentes da mesma essência, e fatalmente se
complementam - embora independentes. Poesia também é imagem, pintura também é
luz, verso”.13
De fato e, mais que o interesse pela cultura de tradição hermética, pelas artes
alquímicas, pelo imaginário da maçonaria e outras fontes, toda sua escrita, sua
poética, se transparece sumamente estruturada pelas imagens. Delas vêm as palavras,
pode-se constatar - e isso é fundamental para entender de onde vêm esses poemas.
Rodrigo de Haro, lido em sua poesia, é um obcecado observador das artes pictóricas,
mas também de esculturas, cinema e toda forma de representação, constituindo-se
num artista que age na escrita como um bricoleur. Assim, os poemas são compostos
por descrições de objetos, estampas, filmes ou imagens de obras de arte, finamente
observadas, que são constantemente recortadas em seus detalhes que são incorporados
em cada poema, escrito como se ele olhasse um quadro.

10
Na orelha do livro Amigo da labareda.
11
No Posfácio ao livro Amigo da Labareda.
12
WILLER, Cláudio. “Rodrigo de Haro: Espelho dos melodramas & Folias do ornitorrinco”. Revista
Poesia Sempre, n. 36, Ano 18, 2012, p. 197-200.
13
HARO, Rodrigo de. “Convocações do espanto”, op. cit.
As referências se multiplicam pelos textos, assim podemos encontrar um
repentino e destoante Edgar Allan Poe em um verso que diz “um pássaro casual como
fero nevermor” (“Espectro de Magnólia”, em Amigo da labareda) ou um anjo de
Leonardo, esperado no Mercado Público.
Outro exemplo excelente desse procedimento pode ser constatado no livro O
Mistério de Santa Catarina ou Livro de Emblemas de Alexandria 14, cuja santa foi uma
fonte recorrente de sua expressão, pois, além do livro de poemas, ele produziu
mosaicos como a obra pública na Praça Tancredo Neves, no centro de Florianópolis,
ou a Catarina na monumental obra “Leitura Catarinense do Livro da Criação Latino
Americana”, realizada em 1997-2000 com colaboração Idesio Leal, na fachada da
reitoria da Universidade Federal de Santa Catarina, também em Florianópolis.
Nesse livro, Rodrigo de Haro inseriu, juntamente com a Bibliografia, uma
Iconografia com significativa lista de fontes de imagens relacionadas à Santa. Nessa
lista ele menciona as diversas ocorrências imagéticas de Santa Catarina, como na
“Alegoria da Majestade” (c.1308-1311) de Duccio di Buonisegna, no Museu do
Duomo de Milão; o detalhe do “Coroamento da Virgem”(1434-1435), de Fra
Angelico, no Louvre; os afrescos da vida de Santa Catarina (c. 1428-1430) de
Masolino na Basílica de San Clemente, em Roma; Santa Catarina em afresco na
basílica inferior de Assis (1322-1326), pintada por Simone Martini; “O martírio de
Santa Catarina” (1504-1505), de Lucas Cranach, o Velho; “O corpo de Santa Catarina
carregado pelos anjos” (c. 1514), de Bernardino Luini; o desenho preparatório e a
pintura de Santa Catarina (c. 1508) de Raffaello Sanzio, respectivamente no Louvre e
na National Gallery, de Londres; a Santa Catarina (c. 1606) de Guido Reni, no Museo
del Prado, em Madrid; “O matrimônio místico de Santa Catarina” (c. 1567-68), de
Paolo Veronese, da Galleria dell’Academia, em Veneza; e a “Santa Catarina” (1598-
99) de Caravaggio, no museu Thyssen Bonemisza, em Madrid.
Em seus mosaicos constata-se a bricolage mencionada antes: vários dos
elementos iconográficos por ele representados vêm de diversas fontes dessa
iconografia. Assim é que a roda do martírio, a pena, o livro, os trajes luxuosos da
princesa, se somam a outras que ilustram cenas da vida da santa que, por sua vez, são
registradas nos poemas de “Mistério de Santa Catarina”, como a apresentação do
Menino Jesus (de Masolino); a Boda Mística (de Veronese); Catarina diante dos

14
HARO, Rodrigo de. Mistério de Santa Catarina ou Livro de Emblemas de Alexandria. 2.a ed.,
Florianópolis: Athanor, 2001.
filósofos (de Masolino); Catarina encarcerada que recebe a visita da rainha e sua
decapitação de (Masolino); Catarina e os anjos (de Masolino, Veronese e Luini); a
roda destruída (de Masolino, Cranach, Reni e Caravaggio); a decapitação da santa (de
Masolino); os anjos que vêm buscar a santa morta (de Luini).
Luana M. Wedekin15, numa historiografia artística, ao analisar essa iconografia
de Santa Catarina, observou que a lista feita por Rodrigo de Haro “é ela mesma uma
espécie de montagem de nomes de lugares e personagens que evocam tempos
remotos, lugares de sonhos e de mistérios. Compõe as notas um conjunto de termos
que figurariam muito bem num conto de Jorge Luís Borges: O Indeterminado;
Sefirots; Hecate; Sechinah; “Sta Catarina é padroeira da Sorbonne”; Asmodeus;
Abraxas; Pitagóricos; Arcano; Adufe; Mosteiro de Santa Catarina; Maxêncio;
Arianismo; “Falar em línguas”; Lilith; Hermetista; Kilim; Flabélo; Basilissa;
Iluminuras; Anagrama; Trebizonda; Coptas; Rito Ambrosiano; Quadi Natroun”.
Como em toda sua poética, Rodrigo de Haro ressalta num dos poemas de
Mistério de Santa Catarina:

“Estamos rodeados de símbolos,


sempre. O nome de Catarina
procede de Hecate, a temível,
três vezes pura, deusa das
encruzilhadas
e dos bosques, quando seu
nome torna-se Diana. evoca
Astarte e Ísis, como
a lua cheia, a senhora
da serpente no templo,
a quem se oferece
um prato de favas pretas”.

15
WEDEKIN, Luana M. “Santa Catarina de Rodrigo de Haro: um exercício warburguiano de diálogo
entre referências iconográficas”. Disponível em:
https://www.udesc.br/arquivos/ceart/id_cpmenu/8561/_11__SANTA_CATARINA_DE_ALEXANDRI
A_DE_RODRIGO_DE_HARO__UM_EXERC_CIO_WARBURGUIANO_DE_DI_LOGO_ENTRE_
REFER_NCIAS_ICONOGR_FICAS_Alexandria_de_Rodrigo_de_Haro_1579868286513_8561.pdf.
Consulta em: 3 Set. 2021.
Em minha leitura me chamou também a atenção a musicalidade desses
poemas, muitos transparecendo letras de música e muitas vezes tive a sensação de
estar ouvindo algum moteto, alguma canção sacroprofana pronta para orquestra. Ou
seja, em sua leitura fica-se com a sensação de que a música está sendo executada.
Num dos poemas, Rodrigo de Haro menciona um arpejo “Do célebre Guarnieri/ Del
Gesu” que é mencionado como capaz de fazer desaparecer “A casa com três salões”.
(“Astreia”, em Amigo da labareda).

Contranatura, naturalmente

Chama a atenção nos livros o jogo erótico da linguagem16, mas também uma
recorrente lubricidade discreta, de elogio à “contranatura”, expressão citada de forma
gozosa no poema “Encontro no Mercado Público”, em que relata as aventuras de
Camilo Valentini, que “Deu-se ao amor mercenário” e do qual relata que “Christos,
marujo grego, conduziu-me ao lundu contranatura”. O tema percorre sua poética,
como na homenagem ao poeta da Alexandria, Kavafis (“Ao poeta grego”) e outros
poemas de temática grega; em “Hierofante” (“Astucioso rio de meu sonho/ Saberei
entre salsas/ Navegar-te.// Rio impetuoso de meu sangue/ Que sabe cantar/ E se
prolonga/ Eufrates rígido macho/ E fêmea grito/ De Ianit.// [...] Astucioso rio./ Linfa e
sangue/ Rota obscura/ Magnífica tiara entre salsas/ Saberei.// Deitado nas areias/ Leito
e tigre/ Navegar-te astucioso/ Rio saberei”); a uma “Gimnopedia” - que era antiga
festa espartana, no mês de julho, em honra dos deuses e dos guerreiros mortos em
Tireia (e mais tarde aos das Termópilas), celebrada com danças e exercícios de
ginástica, de que participavam, despidos, homens e meninos; “No Mercado Público”
(“Na espera do anjo de/ Leonardo/ Sorri de ti mesmo/ sopesa/ Luz frutal/ guirlanda
filtrada nas esteiras - chiaramente / nas esteiras desdobradas/ do Mercado Público.”).
Sendo um poeta óptico e variegado, Rodrigo de Haro movimenta a pupila,
contra a uniformidade do juiz e do carrasco que, observa ele, “nunca contraem a
pupila” (“O fundo do olho”, em Folias do ornitorrinco17).

16
Em entrevista à revista Coyote, Haro afirma: “Toda poesia é o Eros ou não é nada”. HARO, Rodrigo
de. “Convocações do espanto”, op. cit.
17
HARO, Rodrigo de. Folias do ornitorrinco & Espelho de melodramas. Florianópolis: EDUFSC,
2011.
Hilda Hilst escreveu que “Os poetas são seres irreais, absurdos. Filhos da
Quimera, da Ilusão. Não há nada mais esdrúxulo sobre a Terra do que o Poeta. Só o
ornitorrinco. E é em homenagem aos poetas‒ ornitorrincos, os mais extravagantes de
todos os seres, os líricos devastados, os inoportunos, aleijões da praticidade e do
cotidiano, os patéticos inconsumíveis, os loucos‒ outsiders, em homenagem a todos
eles que eu transcrevo este meu poema, dedicado a um dos maiores ornitorrincos da
Espanha, Federico Garcia Lorca”18.
Pois Rodrigo de Haro publicou justamente um livro com o título Folias do
ornitorrinco, cujo poema que dá título ao livro diz:

Celebremos as núpcias do ornitorrinco


gentil e pertinaz. Brindemos
a natura folgazã, que ‒
por incansável amor
ao paradoxo ‒ cheia de
recursos, concebeu

este jardim de todas as delícias


com a torre inclinada e
o tarot de Marselha

‒ Mas sobretudo
criou o ornitorrinco solidário
elaborado, como todos nós, de
partes antagônicas para maior

triunfo da unidade, animal


sonhador que fecunda

e brota de si mesmo.

18
HILST, Hilda. Cascos e carícias. São Paulo, Editora Globo, 2007, p. 165.
Eis que temos em Rodrigo de Haro esse símile de poeta e artista, poeta e
ornitorrinco, que brota de si mesmo, que, gentil e pertinaz, de natura folgazã, e que
por incansável amor ao paradoxo, cheio de recursos, concebeu este jardim pan óptico
de todas as delícias que é sua obra poética: “Interessa-me simplesmente captar a luz,
transmitir o mistério, o Grande Mistério inesgotável da poesia. Poder operar cada vez
mais com maior intimidade na oficina poderosa da palavra, capaz de mover as
montanhas. Sim, a alquimia do verbo. E isso é tudo”.19

Publicado na Revista Sphera em 4 Set. 2021, disponível em:


https://www.revistasphera.com/post/rodrigo-de-haro-anacr%C3%B4nico-
contranatura-por-ademir-demarchi

19
HARO, Rodrigo de. “Convocações do espanto”, op. cit.

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