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Emanuel B.

Nobre | 2024/1

Básicos da Entrevista Psiquiátrica


• A entrevista deve ser centrada na pessoa, mas baseada no transtorno; não se
deixem levar pelas histórias e narrativas dos pacientes de forma não analítica,
isto é, conduzam a anamnese para andar por assuntos de relevância
clínica/psicológica e com um propósito definido; quando o paciente toma
“controle” da anamnese com algum assunto tangencial, busque entender o
motivo dessa mudança e, se necessário, corte o paciente e volte à anamnese.

• O mesmo mantra da semiologia se aplica aqui: iniciar com perguntas abertas e


encerrar com fechadas; no entanto, na semiologia normalmente se avalia uma
doença em questão – aqui, serão avaliados múltiplos quesitos em uma só
consulta; por isso, a entrevista não deve ser um funil e sim múltiplos funis, cada
um começando com uma pergunta aberta e direcionando no tópico em questão.

• Também se aplica o modelo de anamnese básico:


o QP – o que trouxe o paciente à consulta (queixa, revisão, manutenção,
encaminhamento, etc.)
o HDA – o que, quanto (gravidade), por quanto tempo (início e duração) e
fatores associados
▪ Muitos atendimentos serão reconsultas -> focar nas mudanças,
estado mental, uso de medicações e seguimento das orientações
desde a última consulta
▪ Importante sempre ler a conduta da última consulta para nortear
o que precisa ser averiguado na atual anamnese
o Medicações em uso – SEMPRE investigar quais drogas o paciente usa,
posologia, adesão ao tratamento, dificuldades de uso, etc.
▪ É interessante pedir para o paciente falar por conta própria ao
invés de ler o que está anotado no prontuário e pedir pro paciente
confirmar; dessa forma, você consegue ter uma melhor noção da
adesão medicamentosa do paciente (exceto se as drogas são
administradas por terceiros)
o HPP – doenças e transtornos previamente diagnosticados, tratamentos
utilizados, resultados, efeitos colaterais, desfechos, etc
▪ História de letalidade: importante fator preditivo pra risco de
letalidade atual; investigar automutilação, ideação, intenção,
planejamento e tentativa de suicídio; cabe aqui também
investigar histórico de dano a terceiros, abuso, violência
doméstica, etc.
o História familiar – muito importante; transtornos de humor e
esquizofrenia têm bastante relação hereditária – especial atenção à
transtornos comórbidos ou hereditariedade cruzada (ex: TP Borderline
aumenta risco de THB em descendentes)
Emanuel B. Nobre | 2024/1

Investigação de suicídio
• Perguntas escalonadas: você tem tido pensamentos ruins? Costuma pensar
em morte? Já pensou em se machucar? Já se machucou? Já pensou em
suicídio? Já teve alguma intenção ou planejamento de suicídio? Já tentou se
matar?
o É interessante começar com perguntas mais amplas e menos específicas
para fazer um pente fino e não perder a informação em pacientes “não
tão suicidas” – isto é, identificar comportamentos parassuicidas ou
ideações mais leves
o Prestar atenção quando relatada vontade de dormir e não acordar mais,
de fugir de tudo, de sumir, ser esquecido, etc. Pensamentos assim
também podem ser classificados como alguma forma menos madura de
ideação suicida
o Não é necessário perguntar tudo isso a todos pacientes; naturalmente,
um paciente que negou ter pensamentos de morte não vai falar que já
tentou se matar, etc.; vá até onde o paciente permitir – se muita
resistência, talvez seja melhor abordar em segundo momento.
• Sempre investigar a letalidade das tentativas/planejamentos (método, quão
longe chegou, se havia chance de ser encontrado, preparações para morte,
etc.)

Exame do Estado Mental


• Consciência: nível de consciência (em ambientes hospitalares, usa-se a Escala de
Coma de Glasgow)
o Sonolência, obnubilação, torpor, estupor, flutuante, coma
• Orientação: capacidade do paciente de localizar-se em tempo, espaço e pessoa
(autopsíquica) – sei quando estou, onde estou e quem eu sou
o O declínio de orientação é na ordem tempo -> espaço -> pessoa (perder-
se no tempo é mais “fácil” que perder-se em pessoa); portanto, sabe-se
que alguém desorientado autopsiquicamente também estará
desorientado em tempo e espaço
o Ao recobrar orientação, a ordem é a mesma (primeiro recupera-se
orientação em tempo)
• Atenção:
o Tenacidade: capacidade do paciente focar na conversa e no médico;
hipo/hipertenaz
o Vigilância: percepção do paciente frente aos seus arredores;
hipo/hipervigil
Emanuel B. Nobre | 2024/1

o OBS: normalmente, são fatores opostos (ex: paciente que está muito
focado na conversa não vai prestar atenção aos seus arredores e vice-
versa); no entanto, não é regra (ex: paciente está desatento a tudo,
conversa e arredores, principalmente quando com declínio de
consciência)
• Humor: experiência subjetiva do paciente frente às suas sensações – melhor usar
as palavras do paciente; difere do afeto por ser duradouro e contínuo
o Triste, irritado, extasiado, ansioso, eufórico, culpado, etc.
o Avaliar modulação (humor modulado é o normal, isto é, a pessoa é capaz
de transitar pelas emoções de forma saudável)
▪ Hipomodulado: certa restrição do humor que costuma ser vista
junta ao embotamento afetivo
▪ Hipermodulado: humor intenso, expansivo ou possivelmente
flutuante; “emoções à flor da pele”
• Afeto: representa a percepção do médico frente ao paciente e ao que ele
expressa no momento da consulta; refere-se a um sentimento atual e mais
efêmero que o humor
o Avalia-se qualidade, quantidade, variação, adequação e congruência
o Qualidade: disfórico, irritável, feliz, eutímico, choroso, embotado
o Quantidade: intensidade dos sentimentos
o Variação: se há oscilação ou flutuação do afeto
o Adequação: se os sentimentos expressos estão de acordo com o
ambiente e ocasião (postura em ambiente hospitalar pode ser diferente
de postura ambulatorial, etc.)
o Congruência: se os sentimentos expressos estão de acordo com o
humor/pensamento do paciente (ex: rindo ao falar de uma morte)
• Memória: avalia-se memória de trabalho, recente e de longo prazo
o Se todas estão adequadas, diz-se: memória preservada globalmente; se
alguma alteração, é importante averiguar quais memórias estão afetadas
• Sensopercepção: inclui alterações da percepção de realidade; cuidar para não
confundir com alterações do conteúdo do pensamento; sempre avaliar
frequência, gatilhos e desconforto causado pelas alterações
(egodistônicas/egossintônicas)
o Alucinações: percepções na ausência de estímulos (auditivas são as mais
frequentes; visuais, táteis e gustativas mais incomuns); sempre bom
avaliar se o paciente recebe comandos e se reconhece as vozes/figuras
o Ilusões: percepção errônea de estímulos (ex: o barulho de vento na janela
é interpretado como seu nome sendo chamado)
o Despersonalização: sensação de sentir-se estranho a si mesmo ou de que
algo mudou, mas não sabe dizer o que
o Desrealização: sensação do ambiente ter mudado ou ser subitamente
estranho de maneira difícil de descrever
• Pensamento: julga-se o conteúdo e processo do pensamento
Emanuel B. Nobre | 2024/1

o Conteúdo: é o que o paciente pensa; pode ser confuso, mágico, delirante,


obsessivo, paranoide; aqui também entram os potenciais suicida e
homicida (junto à noção de ideação, intenção, planejamento e
preparação do paciente)
▪ Delírio: ideia fixa, falsa e individual; podem ser divididos em
bizarro (impossível de acontecer) ou não bizarro (falso, mas
dentro da gama de possibilidades); o conteúdo varia muito –
grandiosos, paranoides, erotomaníacos, etc.
o Processo: é como o paciente pensa; refere-se à formulação e expressão
dos pensamentos, avalia velocidade, organização e expressão
▪ Pensamento normal é linear (fluxo de sentido contínuo),
organizado (estruturação adequada) e orientado ao objetivo (tem
um “ponto” que está se tentando chegar)
▪ Circunstancialidade: muitos detalhes irrelevantes
▪ Descarrilamento: desconexão lógica das ideias
▪ Fuga de ideias: paciente “perde o fio da meada”; pulo de uma
ideia à outra, com associações múltiplas, totalmente sem foco
▪ Perseveração: insistência em alguma palavra ou detalhe do
discurso
▪ Tangencialidade: paciente responde algo relacionado, mas não o
que se pediu; cria linhas paralelas na conversa
▪ Bloqueio de pensamento: interrupções repentinas e quebras de
pensamento
• Linguagem e inteligência: a maneira mais adequada de avaliar é por meio de
escores, mas, no dia a dia, avalia-se subjetivamente (adequado ou inadequado
para nível socio-escolar, idade e desenvolvimento do paciente; pobreza de
linguagem; inteligência sem alterações clinicamente perceptíveis)

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