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Significado da evolução contemporânea do direito de propriedade

SIGNIFICADO DA EVOLUÇÃO CONTEMPORÂNEA DO DIREITO DE PROPRIEDADE


Revista dos Tribunais | vol. 757/1998 | p. 717 - 727 | Nov / 1998
Doutrinas Essenciais Obrigações e Contratos | vol. 2 | p. 1267 - 1280 | Jun / 2011
Doutrinas Essenciais de Direitos Humanos | vol. 2 | p. 937 - 950 | Ago / 2011
Revista dos Tribunais Nordeste | vol. 7/2014 | p. 509 - 520 | Set - Out / 2014
Revista dos Tribunais Nordeste | vol. 8/2014 | p. 509 - 520 | Nov - Dez / 2014
DTR\2012\694

Orlando Gomes
Professor catedrático de Direito Civil da Faculdade de Direito da Bahia.
 
Área do Direito: Constitucional; Civil
Sumário:
 
 
1 — Sob muitos aspectos, o direito de propriedade tem sofrido alterações e limitações, que lhe emprestam uma
aparência nova, singularmente interessante. O atual rejuvenescimento de seus característicos fisionômicos é, em
análise derradeira, a transposição jurídica de alguns têrmos através dos quais se desdobra a complexa equação
social, focalizada sob o prisma das co-relações de classe. Os novos institutos que a ordem jurídica vai consagrando
respondem a essa dilatação na esfera da proteção de interêsses materiais, objetivada na diminuição da importância
que resulta da posse, detenção ou conservação de bens. O alargamento processa-se em detrimento do prestígio da
riqueza adquirida, da fortuna estática, como tem sido assinalado, com acuidade, por juristas de penetrante poder
analítico, notadamente Ripert, Savatier e Morin.
Através de análise das alterações mais incisivas, pode-se perceber, contudo, que a evolução do direito de
propriedade, nos dias correntes, não possui o sentido de uma transformação radical, mas tão-sòmente, o de simples
acomodação a uma estrutura econômica, fendida nas vigas que a sustentam.
Para apreendê-lo, é preciso, todavia, configurar com clareza e distinção, êsse direito de propriedade, destacando os
seus traços característicos.
2 — O conceito individualista da propriedade corresponde à estrutura econômica do capitalismo, projeta-se com maior
nitidez quando pôsto em contraste com a concepção medieval, do domínio que lhe precede e por êle foi substituída.
O que caracteriza essencialmente a propriedade medieval, como forma de disciplina das relações de produção, é, em
primeiro lugar, a primazia que confere aos bens imóveis. Na estrutura econômica da feudalidade, a terra é o bem
principal que tem prioridade, porque a subsistência social depende, fundamentalmente, do seu cultivo. Da importância
social que êsse bem de produção desfrutava nessa estrutura, decorrem conseqüências que singularizam o regime
jurídico da propriedade. Sua exploração tomou, juridicamente, a forma de vínculo entre os que a possuiam, mas não a
cultivavam, e os que a trabalhavam mas, dela não eram donos. A êstes se reconheceu o direito de possuí-la com a
obrigação, porém, de satisfazer perpétuamente determinadas prestações, que revestiam diversas formas. Em suma,
tinham um direito real na coisa alheia, mas não a propriedade. Conservava-se esta no domínio eminente das famílias
nobres, que a senhoreavam, sem a trabalhar. Mas, o direito dos que a cultivavam era, no fundo, um autêntico
domínio, paralelo ao outro, pôsto que sujeito a encargos irresgatáveis, que vieram a ser considerados injustos,
quando as forças produtivas desenvolveram-se e reclamaram novas formas jurídicas. Havia, pois, duas classes de
proprietários sôbre o mesmo bem, ainda que um dêles, o que a utilizava economicamente, não tivesse propriamente a
propriedade. Em substância, caracterizava-se o regime por curiosa fragmentação da propriedade. Êsse traço distintivo
foi assinalado incisivamente por Chaullaye ao observar que a originalidade da propriedade fundiária feudal está em
que a mesma terra tem vários proprietários, subordinados uns aos outros, e, tendo sôbre ela, poderes mais ou menos
extensos («Histoire de la pro- prieté», Paris, 1948.)
3. — O regime que o substitui vai retomar o conceito unitário da propriedade, provindo de Roma, segundo o qual cada
coisa tem apenas um dono de direito e de fato. As novas forças produtivas, desencadeadas desde os grandes
descobrimentos marítimos, exigiram um novo regime jurídico para a propriedade, que fôsse antagônico ao que se
consumira pela perda irremediável de sua função histórica. Sob os moldes que a nova estrutura econômica
reclamava, a propriedade encontrou sua fórmula legal mais expressiva no Código de Napoleão, justo na lei do povo
que mais dramaticamente sofrera com o partejamento da nova ordem social. Sem que se tivessem definido ainda os
contornos do novo regime, cujo rápido desenvolvimento iria senilizar precocemente a famosa codificação, seu sentido
capital foi magistralmente fixado, através de normas que favoreceram a evolução econômica. A nova concepção
assinala-se pela preocupação de emancipar a propriedade de fato dos ônus e encargos que a gravaram, decorrendo,
dessa atitude perfeitamente lógica e conseqüente, o desfavor com que foram tratados os direitos reais na coisa
alheia.
Considerou-se a propriedade como um direito natural, inalienável e imprescritível, ombreado com as liberdades
antepostas ao poder público, emprestando-se-lhe valorização exagerada condizente embora, com as garantias de
que necessitava como instrumento da expansão irresistível das forças produtivas, libertadas definitivamente pela
revolução industrial.
4 — O Código de Napoleão a definira como o direito de fruir e dispor das coisas do modo mais absoluto, contanto que
não fôsse exercido por forma proibida pelas leis e regulamentos (art. 544.) Em outro preceito declarara que ninguém
poderia ser constrangido a ceder sua propriedade senão por causa de utilidade pública, e mediante justa e prévia
indenização (art. 545.) O direito do homem sôbre os bens que podem ser submetidos à sua vontade e ação ocupa,
nesse Código famoso, mais de dois terços de suas disposições, pois dos 2.281 artigos de que se compunha, eram
consagrados aos bens e aos diferentes modos de os adquirir nada menos do que 1.766 artigos. Até o regime
matrimonial foi incluído entre os modos de aquisição da propriedade, pois não se regulou na parte dedicada às
pessoas, ou à família, mas, em título referente aos bens. Conservou o Código Civil francês a preeminência dos bens
imóveis, resíduo irredutível da ordem ultrapassada, porque os valores mobiliários não haviam adquirido a importância
fundamental que vieram a ter em conseqüência do desenvolvimento vertiginoso do nosso processo de produção da
riqueza. Mas, instituiu, em verdade, um regime jurídico novo da propriedade, cujas características foram definidas em
traços inconfundíveis.
Caracteres do direito de propriedade
5 — Com efeito. O direito de propriedade é absoluto, exclusivo e perpétuo. Seu titular o exerce do modo que lhe
pareça o mais conveniente, inclusive pela destruição da coisa sôbre que recai, podendo, obviamente, reduzi-la à
inatividade econômica. Daí não se deve inferir que, por ser absoluto, não sofresse limitações. O próprio preceito legal
que assegurou ao proprietário o direito de fruir e dispor da coisa do modo mais absoluto, estabeleceu que o seu
exercício encontraria limites na lei e nos regulamentos. Essas restrições, sobretudo as que decorrem de regulamentos
administrativos, são consideráveis, e se avolumam dia a dia, em tôdas as legislações. Mas, por numerosas que
sejam, não afetam, por sua natureza, o caráter absoluto do direito de propriedade, uma vez que limitam o seu
exercício em determinadas circunstâncias, mas, não lhe sacrificam a essência. Do mesmo modo, as que se impõem
no interêsse de outros indivíduos, como são as que decorrem da relação de vizinhança. O proprietário, como titular de
um direito sôbre a coisa, permanece com a prerrogativa de exercê-lo de modo absoluto, desde que é soberano o seu
poder de determinar o modo porque a utilizará. As faculdades inerentes ao domínio não sofrem substancialmente com
tais limitações, porque o proprietário conserva o poder de dar destinação ao bem que pertence, usando ou deixando
de usá-lo, estabelecendo o tipo de fruição que lhe agrada, dêle dispondo como lhe apraz; alienando-o a título gratuito,
ou oneroso, cultivando a sua terra ou deixando-a inculta, aplicando ou não o seu capital, em suma, procedendo
autocràticamente. Neste sentido, a propriedade é ainda um direito absoluto, a «plena in re potestas.»
6 — Para o individualismo, o conceito de propriedade é eminentemente unitário: sôbre a mesma coisa não deve haver
mais de um proprietário de direito e de fato. Daí, a hostilidade das legislações aos «jura in re aliena», particularmente
em relação aos que corporificavam gravames próprios da propriedade medieval, como os censos. O direito de
propriedade, tal como na concepção romana, deveria caracterizar-se pela exclusividade. Tamanha era a preocupação
de acentuar êsse atributo, que o legislador não dissimulava a sua animosidade até contra o condomínio. Os direitos
reais na coisa alheia foram limitados em número e eficácia. O desdobramento da relação jurídica de domínio
dificultado; os desmembramentos da propriedade, garroteados. Era, em suma, a revanche de uma nova ordem
jurídica contra o regime que ruíra nas convulsões de uma revolução social, triunfante.
A desintegração do direito de propriedade
7 — A unificação do direito de propriedade, realizada pelos Códigos individualistas, parece não sobreviver a
ocorrências que revelem distúrbios na ordem econômica e social que a realizou. A tese, vigorosamente afirmada, de
que a propriedade devia ser um direito unitário, começou a ser negada, sob formas aparentemente desconexas, de
sentido incompreensível, mas, obedientes, nas suas linhas fundamentais, às regras do mesmo estilo. A desintegração
não se realiza, contudo, através de processos tradicionais, renovados por técnica mais audaciosa e aperfeiçoada. E’
sob aspectos inteiramente inéditos que o direito de propriedade vai se desagregando, e está perdendo um de seus
atributos mais incisivos. O fenômeno apresenta-se sob moldes curiosos, quer do ponto de vista social, quer do ponto
de vista jurídico. Deixa transparecer a existência de uma nova categoria de proprietários, ora exercendo um direito
que se assemelha ao domínio, ora direitos que correspondem, tradicionalmente, aos do proprietário. Esses novos
direitos, não possuem, no sentido clássico, a natureza do direito de propriedade, mas conferem aos seus titulares
prerrogativas análogas às de que desfrutam os proprietários, quando não se apresentam como limitações ao domínio,
que fazem supor a existência de um direito marginal e concorrente. Na esteira dêsse desenvolvimento, é a
propriedade que adquire novas formas originais, ou são novos direitos que, como o de propriedade, se regulam por
assimilação, proveniente, de um lado, da influência inevitável que exerce a alta valorização social desta e, do outro,
das deficiências técnicas resultantes da percepção primária dos novos fatos, somente agora carregados de energia
social suficiente para a sua cristalização jurídica. A êsses novos tipos, eu os reuniria sob denominação de quase-
propriedade.
8 — Dentre as manifestações indicativas do fenômeno ora assinalado, nem uma sobreleva, em importância social, à
que se consubstancia na limitação, de ordem geral, que se está impondo à propriedade dos meios de produção.
A ordem econômica atual caracteriza-se pela predominância do capital sôbre o trabalho. Os meios de produção,
sendo atomizados, investem os seus detentores no poder sôbre pessoas. Assim, a propriedade dêsses bens é, nesse
regime, um instrumento de dominação, tanto mais poderoso quanto o processo produtivo desde que foi aperfeiçoada
a técnica, desenvolve-se em grandes unidades econômicas, dirigidas exclusivamente pelo detentor do capital ou por
aquêle que o controla. É, exatamente, essa dominação que empresta à propriedade dinâmica uma valorização social,
tremenda. Por sua vez, a prerrogativa do exercício dêsse poder que é a pedra angular do regime econômico
dominante, simultâneamente, constitui o limite que não pode ser transposto pelas instituições políticas e jurídicas. Por
isso, adquirem relêvo excepcional as medidas que atingem o direito de propriedade nas prerrogativas sociais que
confere. Conseqüentemente essas medidas traduzem a maior limitação do ponto de vista intensivo que jamais sofreu
a propriedade privada como instrumento jurídico dos sistemas de produção baseados na apropriação individual. As
mais relevantes são, incontestavelmente as que consagram a participação dos trabalhadores na direção das
emprêsas, restringindo o poder diretivo dos detentores do capital.
9 — A produção da riqueza organiza-se modernamente em unidades econômicas, que se denominam emprêsas. O
principal processo da limitação da propriedade está se desenvolvendo no seio dêsses organismos, com larga
repercussão social.
As emprêsas constituem-se de elementos humanos e materiais, isto é, do pessoal que trabalha e dos meios utilizados
para o desenvolvimento da atividade produtiva, subordinados, homens e coisas, à vontade do empresário ou
empregador. A êste cabe determinar o fim que deve ser atingido, os meios que devem ser empregados e o modo por
que o trabalho deve ser executado. Numa palavra, a empresa tem um dirigente investido em importantíssimos
poderes. Dêsse modo, quem pode reunir êsses elementos torna-se o chefe de uma unidade econômica de produção,
exatamente porque dispõe de meios para criá-la e mantê-la, ou de forma mais precisa, porque é detentor de bem de
produção, em suma, porque é proprietário.
O chefe da emprêsa, digamos, o patrão, legisla, administra e julga, diretamente ou por meio de delegados, por êle
remunerados, para êsse fim, enfeixando em suas mãos todos os poderes, tal como os governantes nas sociedades
políticas de cunho despótico.
10 — O fundamento comum de tôdas essas prerrogativas foi salientado por Sinzeheimer, ao assinalar que são
conseqüências do direito de propriedade do empresário ou empregador sôbre os elementos constitutivos da emprêsa.
Para Sinzeheimer o que a distingue é, exatamente, êsse domínio de uma pessoa sôbre uma pluralidade de
trabalhadores, proveniente do poder que essa pessoa exerce, com exclusividade sôbre os bens por ela reunidos para
uma atividade produtiva. A essa conclusão chegou o publicista alemão depois de exaustiva análise do papel que
trabalhadores e patrões desempenham no processo de produção da riqueza. O modo pelo qual se acha atualmente
organizada, impõe a sociedade aos que executam o trabalho a interposição de um organizador, que é o detentor do
capital, isto é, em linguagem jurídica, o proprietário. Como os meios materiais de produção pertencem apenas a
algumas pessoas, a relação entre o capital e o trabalho trava-se em condições que favorecem e garantem o
predomínio do primeiro sôbre o segundo. Nesse poder sôbre as coisas, assenta o poder sôbre os homens. No
sistema econômico vigente, capital e trabalho estão submetidos juridicamente ao capitalista.
11 — Mas, tanto o poder legislativo como o diretivo e o disciplinar, em que se acha investido o empregador, estão
sofrendo vigorosas limitações, de ordem geral, que atingem o direito de propriedade no seu mais significativo
conteúdo do ponto de vista social. O poder legislativo, consistente no direito de ditar, por ato unilateral de vontade, as
condições de trabalho, mediante um regulamento de emprêsa, restringe-se cada dia mais, não só pela interferência
do Estado, através da legislação do trabalho ou da função normativa dos tribunais trabalhista, mas, também, pela
difusão dos regulamentos coletivos, com a participação das associações profissionais. A própria expedição de
regulamentos, quando as empresas não se encontram no quadro de relações coletivas disciplinadas por convenção
ou sentença, está hoje sujeita ao controle estatal. O empregador não mais dispõe do arbítrio de estatuir as normas
que devem vigorar em seu estabelecimento. Quando a lei da emprêsa não se elabora com a participação dos
governos, intervém o Estado para impedir que êstes sejam obrigados a acatar e aceitar regras despóticas. O próprio
poder diretivo sofre limitações severas, especialmente no tocante às relações entre o pessoal e os dirigentes da
emprêsa, e, em menor grau, redutivamente aos fins produtivos da emprêsa. Quanto ao poder disciplinar já se
encontra sob o controle da justiça.
E’ a decadência da riqueza acumulada, a que se refere Savatier.
A democratização das empresas
12 — Onde se acentua mais ostensivamente e, portanto, onde se revelam os sinais mais veementes das
transformações da propriedade dinâmica é, exatamente, na organização atual das emprêsas, sob moldes que estão
sendo fundidos em temperatura social elevadíssima.
Próprio do regime econômico baseado na propriedade privada dos meios de produção e no salariato é o monopólio
de sua gestão pelos que detêm o capital. A direção das emprêsas pertence-lhes, com exclusividade. Os que a
integram como executores do trabalho necessário à produção e colocação das mercadorias e são retribuídos, pura e
simplesmente, com um salário, nenhuma interferência têm no seu destino, nem na sua administração. Já se
comparou, com felicidade, a emprêsa moderna às sociedades políticas, dizendo-se que, nelas, vigora o regime da
monarquia absoluta, em proveito do capital. Quem o possui é o que manda; os outros obedecem, como súditos
submissos, sem franquias, de qualquer espécie, subjugados diante da própria necessidade de subsistir. O proprietário
é, na extensão maior da palavra, um senhor, que manda e desmanda no seu feudo econômico e financeiro.
13 — Os primeiros sinais de reação contra êsse absolutismo privado já se fazem notar. As relações de trabalho não
mais se disciplinam por adesão individual do trabalhador a um regulamento soberbamente elaborado pelo
empregador; do seu nascimento à sua morte subtraem-se à vontade prepotente dos dirigentes da emprêsa,
enquadradas em estatutos que transcendem o círculo estreito de cada unidade econômica, para abarcar a inúmeras,
elaborado principalmente mediante contratos coletivos, nos quais se experimenta e se manifesta a fôrça sindical dos
trabalhadores. A limitação não pára, todavia, nessa extroversão das emprêsas. Nas suas entranhas, criam-se
organismos de controle da sua direção, que quebram o monopólio da gestão do capital.
14 — Já as legislações vão acolhendo essa reivindicação dos trabalhadores no sentido da democratização industrial.
Nas emprêsas de certas dimensões, tornam obrigatória a presença de delegados operários, sindicais ou não, junto à
sua direção. Formam-se comités de emprêsa, de constituição mista, nos quais participam representantes do pessoal
empregado. Esses conselhos visam estimular o espírito de colaboração entre o capital e o trabalho na organização da
produção. Mas, seu funcionamento importa severa limitação aos poderes que a propriedade dos meios de produção
confere ao seu titular. Sem dúvida, — como bem assinala Paul Durand, estudando-se à luz da legislação francesa, —
essa participação dos empregados na vida da emprêsa não afeta as prerrogativas de ordem econômica do detentor
do capital, mas, restringe os seus poderes no domínio social («Traité de Droit du Travail», t. 1º.) Mesmo na esfera que
ainda é subtraída à sua influência, interferem moderadamente, propondo a aplicação de sugestões do pessoal para o
aumento e melhoria da produtividade. Por outro lado, devem ser obrigatoriamente informados das questões que
interessam à organização, à gestão e à marcha da emprêsa, e, do mesmo modo, dos lucros apurados, podendo
sugerir a finalidade de sua aplicação. Na esfera meta-econômica, cabe a êsses «comités» cooperar com o chefe da
emprêsa para a melhoria das condições coletivas de trabalho, e administrar os serviços sociais das emprêsas, de
natureza assistencial, cultural ou recreativa.
15 — Não é muito, mas é tôda uma revolução psicológica. Porque, nesses ensaios de controle obreiro, o que
borbulha, na correnteza da vida social, é a idéia-fôrça de que o trabalho tem direitos que o capital sempre lhe recusou;
é o pensamento de que a produção da riqueza não deve ser governada autocràticamente. Os preceitos legais, que,
indecisamente, estão consubstanciando êsse pensamento, não os traduzem na plenitude de sua significação Social,
nem atestam a imediatidade de sua expansão prática. Mas, essa função prematura das leis é própria de sua trajetória.
Ainda há pouco, em obra recentíssima sôbre o estudo do direito comparado, René David observava que, do mesmo
modo que, nas Constituições, proclamam-se muitas vêzes princípios que são ainda a expressão de um ideal puro, os
autores de um Código podem perfeitamente estatuir regras que, dado o estado político, social e econômico do país,
correm o risco de permanecer, ao menos durante algum tempo, como preceitos teóricos («Traité Elementaire de Droit
Civil Compare», pág. 265, «Lib. gen. de droit et jurisprudence», Paris, 1950.). Pouco importa, assim, que o estatuto
legal dos conselhos de empresa, nas suas limitações, na sua timidez, na sua indecisão, não passe de um dêsses
modelos confeccionados mais para exibir, do que para usar. A jurisformização de uma tendência, mesmo sob essa
forma, é sinal de sua vitalidade.
Demais disso, o que interessa registrar, na observação feita sôbre esses institutos, é que encerram, nos seus vagidos,
restrições relevantes do direito de propriedade.
A interpretação jurídica das transformações da propriedade (Josserand, Duguit, Morin.)
16 — Todos êsses fatos novos, e tantos outros do mesmo teor, reclamam uma interpretação jurídica de conjunto. São
realidades nascentes, de originalidade desconcertante, que escandalizariam a um individualista ortodoxo. A
exuberância de sua floração, a insistência de sua penetração, a desenvoltura de sua irradiação, têm obrigado
eminentes doutores a se debruçar sôbre a janela de onde se divisa o panorama debuxado pelas instituições jurídicas,
e saltá-la para investigar, perquirir, e verificar o significado dessa evolução, especialmente na parte que toca à
propriedade, por ser o instituto no qual se polarizam as mais profundas divergências políticas e sociais.
Numa obra publicada recentemente, que compreende estudos oferecidos a George Ripert, por insignes professores
franceses, o decano da Faculdade de Direito de Montpellier, êsse mesmo espírito investigador que, há um quarto de
século, nos proporcionara análise de fecunda pénetração sociológica sôbre «a revolta dos fatos contra o Código» e a
«decadência da soberania da lei e do contrato», retoma o problema da interpretação das transformações do direito de
propriedade, para nos revelar o seu ponto de vista, original, depois de ter combatido as teorias, muito difundidas, de
Josserand e Duguit.
17 — No comêço dêste século, aquêle, já impressionado pelas iterativas limitações que a lei estava a impor ao direito
de propriedade, desfigurando-o no seu perfil de linhas clássicas, partiu da idéia de uma imanente relatividade dos
direitos subjetivos, delineando a figura do abuso de direito. Todo direito teria caráter funcional, isto é, seria conferido
pela ordem jurídica em vista de determinados fins. Quando o seu exercício se desviasse de sua finalidade, seria
abusivo. E, desde que assim deixasse de corresponder à sua função, êsse exercício seria intolerável.
Ora, a propriedade, que era concebida, no sistema do individualismo jurídico, como o direito em virtude do qual uma
coisa se acha submetida, de maneira absoluta e excluída, à ação e à vontade de uma pessoa, na definição clássica
de Aubry et Rau, era, por isso mesmo, o direito subjetivo mais exposto a exercício abusivo, isto é, a que seus titulares
praticassem abuso de direito. Como a tentação para os cometer se apresentava com o cunho de generalização, e, por
outro lado, as novas necessidades, interesses e concepções sociais exigiam a limitação teleológica dêsse direito, o
legislador encontrou campo farto para uniformizar as restrições. Mas, como não é possível prever, casuisticamente,
para impedir, em preceito legal, a prática de todo e qualquer abuso que o proprietário, por capricho, por emulação, ou
por desfastio, queira cometer, foi preciso encerrar o conceito numa fórmula elástica, que permitisse a sua aplicação
por inferência, sempre que a ação repugnasse ao ideal de justiça dos aplicadores oficiais da lei.
Como observa Gaston Morin, a teoria de Josserand seria, dêsse modo, não somente a explicação, mas também a
justificação da desapropriação parcial do proprietário, proveniente dos novos direitos que se defrontam como o seu
(«Le sens de l’evolution contemporaine du droit de proprieté, in le droit privé français au milieu du XV siècle», t. II, pág.
14, Lib. gen. de droit et jurisprudence, Paris, 1950.)
18 — Verdadeiramente, porém, a teoria do abuso de direito não explica nem justifica o fenômeno da decomposição da
propriedade. Não explica, porque os fatos novos que se atritam com o conceito tradicional da propriedade fariam
presumir que, agindo por essa ou aquela forma, o proprietário estaria se conduzindo culposamente. Mas, desde que
se considera culposa essa maneira de proceder, a propriedade deixa de ser o que é, no seu sentido clássico. Não se
sabe, porém, porque está perdendo o seu sentido histórico-social. Continua-se a ignorar, com efeito, porque certos
modos de utilizá-la constituem abuso de direito, enquanto outros não o são. Por isso, Gaston Morin considera a
concepção de Josserand um disfarce da realidade, isto é, uma camuflagem, um recurso meramente técnico, sem
substrato filosófico, ainda que de certa utilidade na prática.
19 — Não menos vazia de conteúdo é a teoria da propriedade função social. Já Augusto Comte, no Sistema de
Política Positiva, depois de observar que nenhuma propriedade pode ser criada ou transmitida por seu possuidor sem
cooperação pública, ensinava que ela deveria ser considerada «uma indispensável função social, destinada a formar
e a administrar os capitais, pelos quais cada geração prepara os trabalhos da seguinte» (t. 1, pág. 156.)
A idéia de propriedade função é retomada e desenvolvida por Duguit. Depois de ter repelido a concepção de direito
subjetivo, por lhe parecer metafísica, define êle a propriedade, não como um direito ou uma faculdade, mas como a
função social do detentor da riqueza. A ordem jurídica asseguraria aos indivíduos o poder de usar e desfrutar uma
coisa para que o exercessem em benefício de todos. Através dêsse conceito de que a propriedade, por definição,
impõe deveres, explicar-se-iam as crescentes limitações que a lei está opondo ao exercício dêsse poder sobre as
coisas. O interêsse geral, em função do qual se legitima a sua utilização econômica, estaria a exigir, no momento,
maiores restrições aos poderes do proprietário.
20 — A idéia de propriedade função social fêz fortuna, conquistando vertiginosamente os espíritos. Mesmo os que
repeliram as suas matrizes filosóficas, censurando as extravagâncias inevitáveis do positivismo de Duguit, aceitaram,
em tese, a concepção. Provavelmente, seu êxito espetacular se deve à circunstância de conter uma satisfação
psicológica ambivalente, pois, do mesmo passo que condenava os excessos a que conduzia a noção quiritária do
domínio, justificava a necessidade da propriedade privada. Por isto, gregos e troianos acolheram-na com entusiasmo,
esquecidos uns de que não passava de uma hábil justificação doutrinária do regime da propriedade, de cujo valor
duvidavam, e outros de que a idéia, levada até às suas últimas conseqüências, se eliminava por contradição.
Na sua própria substancialidade lógica, a idéia de propriedade função não resistia a uma análise mais ,profunda. Seu
ilogismo está quase à flor da pele. Criticando-a sôb êsse aspecto, Gaston Morin pondera que, introduzir a idéia de
função no conceito de direito subjetivo, é integrar uma contradição em sua estrutura, pois o «direito é uma liberdade
no interêsse do seu titular e a função uma obrigação em benefício ou ao serviço de outras pessoas que não aquela
que a exerce.» Ora — arremata Morin — a lógica exige a escolha entre o conceito de direito e o de função; é
impossível cumulá-los («Estudos», cit., pág. 14.)
A essa objeção poder-se-ia responder, aliás, que na construção doutrinária do chefe da escola realista não há
contradição, mas, ao contrário, coerência, pois Duguit, ao traçar o conceito de propriedade, eliminara de antemão a
noção de direito subjetivo. O que importa, todavia, não é o valor da teoria sob o ponto de vista formal, mas, sim, como
interpretação e justificação das medidas legislativas, que estão modificando a concepção tradicional do direito de
propriedade. Por esta face, o conceito de Duguit não é satisfatório. Dizer que a extensão e o conteúdo do domínio, se
transformam porque o seu titular deve exercê-lo para servir a outros, no interêsse da coletividade, não explica a
modificação que está sofrendo, pois nada se elucida quanto às suas causas determinantes. Ademais, a concepção
não impede que se concedam aos proprietários direitos ou poderes bem mais amplos, sob o fundamento de que para
o cumprimento da função social que lhes incumbe, êles são necessários e, por outro lado, que se considere
incompatível a detenção da riqueza ou, ao menos, de certa espécie de riqueza, com a sua função. Dêsse modo, o
conceito parece envolvido em membrana complacente.
21 — A evolução do direito de propriedade encontra uma nova interpretação jurídica no pensamento, recentemente
exposto, de Gaston Morin. Assinala êsse eminente professor que não estamos assistindo atualmente a uma
socialização da propriedade, mas ao nascimento de novos direitos individuais reconhecidos à pessoa humana, o que
vem desmembrá-la, tais como o direito à vida e o direito do trabalho. Êsses novos direitos, restritivos do direito de
propriedade, tomam, contudo, a forma da propriedade, de tal sorte que, sobre a mesma coisa, há duas propriedades
(Op. cit., pág. 15.)
21 — A interpretação de Morin não é muito clara. Ao desdobrá-la, segue êle uma associação de idéias que não se
entrosam perfeitamente. À primeira vista, tem-se a impressão de que a evolução do direito de propriedade se
realizaria no sentido de sua dissociação. Morin chega a afirmar que se está verificando um certo regresso à
concepção medieval do domínio dividido, e, portanto, ao desaparecimento do caráter unitário do direito de
propriedade. Mas, ao exemplificar, dando-nos as manifestações mais características dessa bifurcação, qualifica-os
como direitos novos que tomam apenas a forma de propriedade, dando a entender que se estão formando
propriedades paralelas, mas, ao mesmo ponto, nega a tais direitos a natureza de direitos de propriedade. Ora, se
assim é, a duplicidade não existe. Não é uma propriedade restringindo outra, mas, uma propriedade limitada por
direitos de outra ordem. Nem haverá, propriamente, dissociação do direito de propriedade, uma vez que as limitações
às faculdades que lhe são inerentes não são atingidas na sua essência. Ainda, porém, que tôdas essas restrições
tivessem o cunho de ônus reais, e, portanto, que os titulares dos novos direitos se achassem investidos em novos
direitos reais sobre a coisa alheia, permaneceria sem resposta a indagação sôbre as causas que determinaram a sua
constituição e perduraria a dúvida sôbre a sua própria natureza jurídica. Pouco adianta, com efeito, assinalar que a
propriedade está sendo limitada por efeito da constituição de novos direitos reais. Êsse registro nada esclarece sôbre
o significado da evolução do direito de propriedade nos dias correntes, especialmente se em conta se levar a
assertiva de Morin, de que não estamos assistindo a uma socialização da propriedade, embora êle próprio assevere
que um dos fundamentos da desagregação é, precisamente, o direito à vida para todos os homens. O Prof. René
Thiery, da Faculdade de Direito de Lille, também repele a idéia de que a evolução se verifica no sentido da
socialização. O que está ocorrendo, diz êle, é a expansão da propriedade privada, a qual se estaria reconciliando com
o trabalho. Segundo lhe parece, processa-se uma espécie de evolução trabalhista, apenas esboçada, uma vez que a
massa trabalhadora não tem ainda nas mãos mais do que uma promessa de propriedde («De la utilisation a la
proprieté des choses, in le droit privé français au milieu du XXe. siècle», t. 1º, págs. 17 a 32.)
A democratização da propriedade
23 — Em resumo: desenvolve-se entre os escritores franceses uma tendência para interpretar a evolução do direito
de propriedade como um’movimento para a sua Democratização. A fortuna acumulada desprestigia-se. A propriedade
estática cede diante da propriedade dinâmica, baseada no trabalho, ou na utilização das coisas. Os que trabalham e
os que utilizam as coisas, operários, lavradores, professionistas, comerciantes, inquilinos, rendeiros, tôda essa
incalculável massa de não proprietários forçam o círculo da propriedade. Estaríamos presenciando a uma espécie de
popularização da propriedade, a um espetáculo curioso na luta entre os que possuem e os que não possuem; à
medida que os primeiros recuam, atraem os segundos, cedendo terreno, para conquistar novos aliados entre os
próprios adversários. Nas tréguas da procela, o espírito pequeno burguês.
24 — Ora, essa democratização da propriedade, sob forma tão rudimentar e rebarbativa, é um «ersatz» grosseiro
para arrefecer psicologicamente impulsos rebeldes contra a natureza autocrática da propriedade individualista.
Porque a propriedade, como fato econômico fundamental da estrutura social subjacente existe sob a condição de
pertencer a poucos. Assim, de duas, uma: ou essa popularização se desenvolve até ao ponto de fazer de cada
indivíduo um proprietário, como na democratização política, cada pessoa se tornou um cidadão; ou se processa
apenas em relação a alguns, sob a forma extravagante da ascensão de novos privilegiados. A democratização total
seria o ponto de fusão do direito de propriedade. Para que todos os indivíduos possuíssem direitos iguais aos do
proprietário atual, preciso se tornaria que êstes se limitassem em tal extensão, que desapareceriam, porque os novos
direitos conferidos a todos, ainda que sob formas diversas, só poderiam ser criados e mantidos com o sacrifício da
propriedade, tal como é concebido no regime econômico sob o qual vivemos. Dêsse modo, a popularização das
propriedades acabaria por eliminar a propriedade. E, então, em vez de democratização, verificar-se-ia uma
socialização por esgotamento, paradoxalmente anarquista, tão certo é que o individualismo excessivo corresponde a
seu contrário, assim como a virtude imoderada se converte em vício. Mas, a eliminação da propriedade, em
conseqüência da sua pulverização, acarretaria, por sua vez, o desaparecimento das propriedades criadas, por perda
de sentido. Os novos direitos, assimilados ao de propriedade, possuem um cunho eminentemente polêmico. Surgem
e existem para se contrapor e limitar a propriedade. Desde que esta deixasse de existir, esgotar-se-ia a função
daqueles.
Nestas condições, a evolução conduziria, por via oblíqua, à socialização, se possível fôsse o desenvolvimento
progressivo e linear da tendência democratizante. Todavia, como isso não pode ocorrer porque, muito antes de ser
atingido o ponto de fusão, a propriedade clássica entraria em colapso, a floração das novas propriedades não
encontra clima propício.
Sentido das transformações
25 — A expansão dos novos direitos, parificados ao de propriedade, tem por limite intransponível, na ordem vigente,
os marcos que assinalam as confrontações do sistema de produção baseado na apropriação individual do lucro.
Todas essas limitações que atingem o direito de propriedade, e a tantos tão audaciosas parecem, não lhe arranham
senão a pele.
Dèsse modo, é verdadeira a tese dos que negam às atuais transformações da propriedade o sentido de um
movimento para a sua socialização. Garantir ao inquilino a posse da casa em que mora; ao lavrador, a da terra que
cultiva; ao negociante, do fundo de comércio que criou; ao professionista, da clientela que organizou; ao empregado,
do emprêgo que exerce; e dar a êste participação insignificante na gestão da emprêsa em que trabalha, tudo isso
melhora situações individuais, favorece ascensões sociais, alarga o círculo dos privilegiados, mas não encaminha,
nem promove a socialização da propriedade. Os que presumem socialistas porque aplaudem essas medidas, ou são
ingênuos ou insinceros. Pode-se vislumbrar, nessas transformações, vagas tendências de humanização do direito
insuscetíveis,, porém, de modificar uma realidade que ainda se conserva inflexível na sua postura histórica.
26 — Todos êsses impulsos, desordenados e dispersos, traduzem a crise do regime, mas, de modo algum, a sua
superação. Quando se fala em socialização da propriedade, porque certas limitações estão se antepondo mais
freqüentemente ao direito individual de alguns proprietários, ou se toma o desejo como realidade, ou se camufla a
realidade com propósitos de mistificação.
O sentido contemporâneo da evolução da propriedade pode ser menormente compreendido à luz da psicologia de
grupos sociais, em suas reações típicas ao sistema de distribuição da riqueza. Deve-se captá-lo na faixa onde se
irradiam as ondas do espírito pequeno burguês, ávido de possuir, pela crença de que a propriedade expulsa o
espectro da insegurança, que o apavora, espírito que, transmitindo-se a outras camadas da população, desperta as
mesmas ilusões. Prêsas da mesma angústia, desejam libertar-se por um «transfert», sugerido e estimulado pelos que
já compreenderam que o melhor processo de preservar a propriedade é proprietarizar direitos.
     

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