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A ObRA DE MANETON EO CULTO ALEXANDRINO A SERAPIS: Dols INSTRUMENTOS DE ORGANIZAGAO DA MEMORIA PTOLOMAICA José DAS CANDEIAS SALES €e nest pas (.) un hasard si les premiers souverains lagides firent appel & Manethon, pretre de Sebennytos .), pour rediger en grec une histoire de son payset servir de conseiller pourla mise en place du culte de Serapis- (Chnstine Favard Meeks ¢ mits Mocks, Alexandee I siecle a JAC Tous fs savoirs inverse des Peolenees Pars Editon Aatrement, 192 p. 3) A temporalidade @ a unidade articulada das trés dimensdes do tempo ~ passado, presente e futuro — que apresentam e desenvolvem entre si intmeras relacoes de intima implicacao. 0 passado nunca se extingue completamente, influindo implicita, mas activamente, na orientacao das percepcoes, sentimentos, estratégias ¢ habitos dos individuos e das sociedades, tanto do presente como do futuro. A complexidade da nocgao temporal e das caleidoscopicas conexoes internas que produz representam amitide um problema para qualquer sociedade e mesmo quando geram potenciais contradicoes transportam em si a necessidade de uma unificacao relativa, ordenadora e estruturadora da realidade. A existéncia de um tempo passado activo e actuante, no ambito de uma visao do tempo como duracao dinamica, eo funcionamento de uma memoria do passado, como condicao social de unificacao, integracao e homogenei- zacao, contribuem enormemente para a interacedo com 0 tempo presente (e futuro) e com a memoria individual ¢ colectiva vigente em determinada configuracao social do presente. A memoria é sem diivida, um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, cuja busca permanece uma das actividades fundamentais dos indivi duos e das sociedades'. Em consonancia, a construcao social da memoria & um traco idiossincratico de todas as sociedades ¢ como esforco continuo, dinamico, sempre activado, alimenta o presente e o futuro de modelos imagens e paradigmas retirados do passado e, assim, pré JuNHo 9001 61 define, prospectivamente, o futuro. A memoria desempenha, por isso, um papel central na evolucao e devir historicos das sociedades, fazendo parte integrante e¢ destacada das grandes questoes que se colocam para a sobrevivencia, para a historia ¢ para a identificagao de uma civilizacao, de uma cultura, de uma sociedade. O Lempo ¢ um componente das formas da actividade social’ e é vivido em todas as culturas como um fendmeno multifacetado, heterogeneo, divergente ¢ muitas vezes contraditorio. A memoria, ao se plasmar no tempo, ¢, igualmente, uma actividade social, unificadora e harmonizadora da temporalidade. Qualquer sociedade tem necessidade, por vezes de forma dramatica, em momentos particularmente conturbados, mas altamente significativos, de conhecer e conservar os contornos da sua memoria colectiva, captando analogias, tracando e definindo separagoes e oposicoes no(s) tempos), temporalidade eficaz ¢ produtiva, encontrando o seu proprio rumo no devir numa palavra, tornando a historico, Neste sentido, a memoria encerra em si a stimula retrospectiva do passadlo e projecta sobre o presente e o futuro todo um programa de actuacao. No mecanismo de identificagao e de definicao historicas a que a memoria preside e¢ da coeréncia interferem elementos voluntarios e involuntarios, onde mitos ¢ lendas de Idades de Ouro-, acontecimentos, ideias, simbolos, herdis (e anti: herdis) de -Tempos Gloriosos-, anseios e frustracoes acumulados no processo historico, comemoracoes e seleccoes de factos- e momentos historicos, tem lugar destacado. 0 objective da memoria pode, por isso, ser multiplo: pode dar unidade c significado (positive e/ ou negativo) a fragmentos culturais dispersos ou quase perdidos, a situacoes tradicionais consideradas insignificantes ou irrelevantes ¢ a modalidades de conduta e¢ accao aparentemente descontextualizadas; pode igualmente seleccionar ¢ catalogar os modos de agir e de ser mais consentaneos com a auto-imagem social que se estabeleceu ou se pretende estabelecer: pode, ainda, forgar & adopcao de processos ¢ fenomenos de relacionacao com o tempo conformes a determinada visdo de sociedade que se pretende instaurar, reforcar ou desenvolver. ste processo de identificagao ou projeccao na/ pela memoria nao se desenrola de forma passiva, pacifica, acritica, mas, antes, por vezes, de forma extremamente movimentada ¢ criativa, comummente materializada numa praxis existencial. A par da heranga cultural consciente (se quisermos, dos modelos), a memoria reveste-se de uma heranca cultural nao consciente (se preferirmos, de imagens) de que, naturalmente, 0 homem depende ¢ é agente enquanto membro de uma familia, de um grupo, de uma comunidade, de uma civilizacao. A representa¢ao do real, do tempo e da histéria associada a memoria nao despreza, porém, os factores conscientes, deliberadamente construidos, estrategicamente implementados ao servigo de uma ideia, de uma causa, de uma 62 Discursos. INGUA, CULTURA E SOCIEDADE - Il ideologia. A funcionalidade de determinadas representacoes do passado, do presente e/ ou do futuro ¢, assim, inseparavel da memoria e da sua construcao. Por isto, pode afirmar-se que a construcao social da memoria, com as suas imagens e modelos construidos, tende a ocupar o territorio que vai da Verdade a Historia ou vice-versa. Na realidade, verdadeiramente aconteceu- (0 wie es eigentlich gewesen de Ranke) sao as imagens construidas sobre aquilo que aconteceu, como aconteceu_e porque aconteceu, Estas sao Mais operantes ce modeladoras do que_o realmente ‘acontecido-. Ha uma significativa distancia entre o passado real e a sua representacao discursiva. ‘A utilidade do passado deriva, em regra, das representacoes desse pasado. A matriz de fidelidade ou de afastamento estabelecida pela memoria marca indelevelmente as proprias relacdes com 0 passado e, por isso, com 0 presente e com o futuro. Estamos perante aquilo_a_que poderiamos chamar -funcao ideoldgica- da memoria. Muitos segmentos sao, assim, postos ao servico da memoria com 0 fim de agirem como elementos permanentes e continuos de uma cultura e como elos de contacto no tempo e com a temporalidade. So a memoria assegura a funcionalidade de certas imagens e representacoes. No Egipto ptolomaico, no inicio da dinastia que governaria o Egipto durante ivel detectar a actuacao e proclamagao de modelos e imagens de conduta individual e colectiva, nomeadamente em torno da reescrita benitos, Maneton, ¢ do estabelecimento de um novo culto a volta do novo deus, Serapis. Estes dois aspectos. apontando para sentidos temporais diferentes (Maneton cerca de 300 anos, é pos da historia egipcia pelo sacerdote de S pr pratica para o presente-futuro), integramrse, porém, numa mesma comunidade, jecta-se sobre o passado; a criacao do culto alexandrino de Serapis institui uma ancorando-a_ numa tradi¢ao, as’ legado. egurando Ihe a vivencia e preparando-the um A cronologia dinastica de Maneton Sacerdote natural de Sebenitos (a egipcia Djebnutjer, em copta Djemenuts actual Samanud), no Delta, Maneton viveu no séc. IIl_a.c, durante os reinados de Piolomeu | Soter I (305-283 a.C) e Ptolomeu II Filadelfo (285-246 aC), e formowse. Segundo as fontes. em Mendes ou em Heliopolis. dois importantes centros teologicos do Baixo Fgipto. A tradicao lendaria atribui Ihe a compilacao de oito ‘obras: diversos manuais sobre as doutrinas religiosas, a liturgia e as festas egipcias, um livro sobre a estrela-deusa Sopdit e até um tratado sobre a utilizagao do incenso. JUNHO 9001 63 Certo e, porem, gue redigiu, em grego, cerca de 280 a.C, no reinado de Ptolomeu Il Filadelfo, uma historia do Egipto (Aegyptiaca), em tres volumes, utilizando a documentacao historiografica do periodo faraonico. 0 trabalho de Maneton_compreende, no_primeiro volume, oS reinados dos deuses, dos semideuses ¢ dos primeiros farads; no segundo, abarca as dinastias XEXIX: no |= Lerceiro volume debruca-se sobre as dinastias XX-XXX, até 342 aC. (reinado do persa aqueménida Artaxerxes TID, Trata-se de um documento fundamental sabre a vida politica, social e religiosa dos antigos egipcios ot zinal completo perdeu-se, mas sabe-se que foi muito apreciado na = Antiguidade. Com efeito, foi compulsado pelos cronografos das épocas romana e bizantina e subsistem ainda hoje alguns fragmentos, extraidos de transcricoes | 2) feitas por historiadores ¢ compiladores de épocas mais recentes (ex. 0 historiador juceu Flavio Josefo, do séc. I*; 0 cronista cristao de inicios do séc. Ill, Sextus Julius, =, 0 Africano’, ou o bispo Eusebio de Cesareia, dos sécs. III/IV*). No entanto, mesmo estes auitores so sao conhecidos indirectamente, gracas as compilacoes de Georges, © Monge, ou Georges Syncello, secretario (dai o nome Syncello) do patriarca bizantino Tarasius (séc. VIII). Através deles, utiliza fragmentos de Maneton’. Desde Menés (0 mitico unificador do Egipto na transigao do IV para o IIL milénio a.C) até a Segunda Dominacao Persa do Egipto (por Artaxerxes III), no sec. IV a.C, Maneton fornece uma lista de 193 reis do antigo Fgipto (com os nomes transcritos em grego”), dividida em trinta dinastias (embora so 11 sejam suficien temente conhecidas) algumas anedotas +historicas» pouco crediveis. Cada dinastia ¢ caracterizada pela referéncia a uma cidade-capital (adjectivo geografico) ou, no caso dos reis de origem exterior, a um qualificativo étnico (Hicsos: XV-XVII dinastias";, Etiopes: XXV com a indicacao do tempo de duracao de cada reinado e dinastia; Persas: XXVII). Nao ¢ possivel apurar se 0 termo

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