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D6 - O ESTADO DE S.

PAULO
%HermesFileInfo:D-6:20040725:

CADERNO 2/CULTURA DOMINGO, 25 DE JULHO DE 2004


CIÊNCIA

Sapos de calça curta e outras histórias obscuras Reproduções


Livros humanizam dramáticos,decientistasfracassa- paixãopeloirra-
dos, diletantes aloprados e explo- cional, com al-
descobertas científicas, radores compulsivos. Com raras tíssimas doses
mobilizando emoções exceções, uma gente completa- de ironia: inver-
por meio do humor mente à margem da ciência oficial tendo o bom
edasinstituiçõesquesupostamen- sensopedagógi-
ELIAS THOMÉ SALIBA te a dirigem. Como Lázaro Spalan- co – “sempre
Especial para o Estado zani – cuja história é introduzida exemplifique
por Witkowki a partir do romance com o certo e

P
obre, quase na miséria, pa- Bufo & Spallanzani, de Rubem não com o erra-
ra não ir de mãos vazias à Fonseca – que, em pleno século do!”, recomen-
festa de aniversário de seu 18, pesquisou o sexto sentido dos dam os educa-
amigo,emPraga, JohannesKepler morcegos, as migrações dos pei- dores – escre-
presenteou-o com um floco de ne- xes e a fecundação animal, vestin- veu um extenso
ve. Um dos primeiros sapos que do seus sapos com calças curtas e manualdafalca-
William Harvey abriu com seu bis- suspensórios do mais belo efeito. trua e da boba-
turi pertencia a uma velha acusa- Ou Pierre Moreau Maupertuis, um gem,comexem-
da de bruxaria, que domesticara o visionário “Colombo francês”, que plos dos últi-
batráquio na base engajou-se nu- mos 50 anos da
do leite e da cerve- ma expedição, história das
ja. Para comprovar em1736,parade- ciências e mais
que lesmas não ti- terminar o for- alguns casos de
nham alma e im- mato dos pólos impostura vei-
pressionar-se com do mundo. A po- culados pela te-
a capacidade rege- lêmica surgiu levisão france-
neradoradanature- por causa do sa. O estilo é hi-
za, Voltaire cortou atraso nos reló- lário, os exercí-
a cabeça de oito es- gios de pêndulo cios colocados
cargots. Schope- na vizinhança do no final de cada
nhauer não desgru- Equador, que ali- liçãosãomorda-
dava do seu bicho mentouaespecu- zes, a pesquisa é
de estimação, o ca- lação de que o soberba – mas o
chorrinhoAtma(al- mundo pudesse excesso de refe-
ma do mundo), que ser alongado en- rências à mídia
os estudantes cha- tre os pólos – e o francesa impe-
mavam de peque-
no Schopenhauer.
Como professor,
I MPOSTORES
planeta um esfe-
róide alongado
em vez de uma
de que o leitor
partilhe de toda
abrilhanteargu-
quando tenho que TAMBÉM esfera. Sua expe- mentação. Os
explicar uma teo- dição durou adeptosdos tes-
ria, seja de um filó- FAZEM PARTE mais de um ano tes de Q.I. deve-
sofo, de um cientis- de sacrifícios – riam, pelo me-
ta, de um sábio, de DA HISTÓRIA incluindo 340 nos,lerocapítu-
um curioso, ou de garrafas de vi- lo no qual o au- Voltaire: para comprovar que lesma não tinha alma cortou a cabeça de oito escargots
um impostor (eles nho e 400 litros tor descreve a
também fazem parte da história), de aguardente para enfrentar a so- fraude praticada pelo psicólogo Max Gallo – que ganha um capítu-
começo sempre por revelar uma lidão gelada da Lapônia – mas me- britânico Cyril Burt, que funda- lo no livro pela sua má conduta ao
passagem reveladora, curiosa ou diu um meridiano e convenceu a mentou seus dados originais so- apropriar-se de informações do
anedótica – de suas vidas. Tal re- todosdeque oplanetaeraumesfe- bre 53 pares de gêmeos, dos quais Instituto Pasteur – ou Dean Ha-
curso funciona, e muito, pois nin- róide achatado nos pólos. apenas15tinhamrealmenteexisti- mer, que pesquisou o chamado
guém se esquece daquele momen- Mais histórias obscuras? Te- do–orestantefoisimplesmentein- “gene gay” – apenas enfraquece
to revelador e, por conseguinte, mos o capítulo sobre Santiago Ra- ventado por ele...Ou a lição de nú- seus argumentos. Mas, no todo, o
das idéias que estão por trás de to- món y Cajal, cientista catalão que meronove,naqualum exemplodi- livro é um poderoso antídoto con-
da uma vida. Kepler, que descre- só descobriu as interconexões vertido da correspondência de tra uma cultura supermitiatizada,
veu as órbitas elípticas, juntou ao dos neurônios, no final do século Groucho Marx – a “epistemologia regida pela ditadura do mercado
seu inusitado presente de aniver- 19, porque escrevia de forma apai- de Harpo” – serve para mostrar a ou dos índices de audiência.
sário,umescritonoqualdescrevia xonadaenãohesitava emusarme- importância da linguagem para o Nossa atual cultura científica,
– antecipadamente – a noção de táforas poéticas para designar o conhecimento científico. parece, regrediu décadas, não
“corpúsculo”. O divertido episó- desconhecido. Ou o episódio de Participando de um popular apenas devido à mídia – onde o
dio de Harvey com a feiticeira es- Léopold Hugo – tio de Victor Hugo programa da TV francesa dedica- impacto predomina sobre o con-
clarecemuito datrajetóriado cien- – um atrevido colecionador de po- do à discussão da paranormalida- teúdo das mensagens – mas tam-
tista vocacionado aos trabalhos liedros e dodecaedros de bronze, de (fazendo, obviamente, o papel bém devido ao tédio ao qual se
práticos e os caminhos tortuosos queusouparadescrever“cristalói- de cético), Pra- reduziu o ensino
que o levaram a elucidar os meca- des” e formas geométricas ousa- contal, auxiliado de história das
TRECHO
nismos da circulação do sangue.O das, antecipando em muito as teo-
bizarro episódio de Voltaire com rias dos “fractais”. Ou a história de
os escargots lembra a força dos Ada Lovelace, filha de Lord
pelo prestidigita-
dor Gérard Ma-
jax, mostrou co-
F ILHA DE LORD
ciências – capaz
de juntar o que
há de mais enfa- As regras de ouro da
métodosempíricosnafilosofiailu- Byron, que chegou a descrever mo todas as faça- BYRON JÁ HAVIA donho na histó- impostura científica:
minista. Já a piada de Atma, o ca- com precisão – o ano era 1819! – nhas de Uri Geller ria com o mais
chorrinho de Schopenhauer, ser- asfuturaspossibilidades doscom- não passavam de PENSADO NO distorcido da 1. Escolha um filão
ve para discutir a questão do asce- putadores mas, na história das truques de ilusio- ciência. Contra inesgotável. Você pode
tismo e do inconsciente na filoso- ciências foi sempre vista como nista. Apesar dis- COMPUTADOR tais coisas, os partir de uma verdadeira
fia do rabugento filósofo alemão. maisumaexcêntricamusadeinte- so, o apresenta- dois livros mos- pergunta que oferece a
Todas estas histórias e outras lectuais e artistas. Mais aventura? dor concluiu o tram que talvez o vantagem de estar sem
mais, intrigantes e divertidas, an- Veja-se o capítulo sobre Alfred programa com a frase final: “Mas, único caminho seja o do humor: resposta desde a aurora
tigas e atuais, juntando cientis- Wegener, conhecido como “o Ja- minhacolher,ele realmenteentor- ele conecta as invenções e des- da Humanidade e atingir
tas e charlatães, astrólogos e adi- mes Dean da geologia”. Ou, em tou!”. A ironia ácida que Pracontal cobertas na tomada de 220 ww. todo mundo: quem so-
vinhos, ilustres desconhecidos chave mais recente, a história de destila no seu livro parece ter nas- da vida, humaniza a ciência, in- mos nós? Por que existe
com ilustres mal-conhecidos, po- RenéDubos,“ohomemquenãoin- cido desta impotência e do seu centiva o pensamento reversível alguma coisa mais do
dem ser conhecidas em detalhes ventou a penicilina”. Cada capítu- ódio às imposições da TV. Ele sa- e mobiliza emoções. Mas, nem que nada? etc.
em dois lançamentos recentes: lo é uma narrativa dramática, bequeo nívelcientíficodosimpos- sempre é assim: um aluno, tem-
Uma História Sentimental das cheia de revelações, que dariam tores que desfilam no seu livro va- pos depois de já formado, encon- 2. Seja revolucionário.
Ciências (Jorge Zahar Editora, belos roteiros de filmes – se é que riadoautodidatacompletoao pes- trando-me por acaso, perguntou- Apresente-se como um
213 págs., R$ 34) , de Nicolas Wi- filmes sobre fracassos, loucuras e quisador de renome internacio- me: “Oi, mestre, quem foi mes- inovador, um inventor,
tkowski, e A Impostura Científi- hesitações inerentes à história hu- nal. Mas, convenhamos, colocar mo aquele filósofo que tinha o um criador. Seja um gê-
ca em Dez Lições (Unesp, 453 pá- mana são capazes de interessar conselheiras televisivas que reco- nome do cachorrinho?” nio solitário. Ignore
gs.,R$ 49),de Michel de Pracontal. produtores, cineastas e público. mendam “limão para acabar com aqueles que disseram a
Witkowski esboça uma narrati- Já o jornalista científico Michel a celulite” ou “banho de leite de ju- ■ Elias Thomé Saliba é historiador, pro- mesma coisa melhor que
va emocionante, dividida em 35 de Pracontal revolveu enfrentar o menta para harmonizar os cha- fessor da USP e autor dos livros ‘As Uto- você e bem antes.
episódios, tão divertidos quanto atual surto de pseudociências e de cras” ao lado de cientistas como pias Românticas’ e ‘Raízes do Riso’
3. Percorra os atalhos
batidos. Freqüente os lu-
gares-comuns. Só emita
idéias banais. Siga a cor-
rente dos preconceitos
mais comuns. Alimente
as superstições. Os extra-
terrestres têm forçosa-
mente uma mensagem, a
inteligência é forçosa-
mente hereditária, etc.
Ataque a energia nuclear,
não o petróleo – pois as
pessoas são muito apega-
das aos seus automóveis.

4. Nunca invente nada.


Um poder mágico é tan-
to mais digno de crédito
quando não tem efeito
objetivo algum.

5. Encontre seu públi-


co. Uma impostura sem
público é uma flor que fe-
nece num vaso sem água.
Escolha uma tribuna.
Constitua o seu auditó-
rio. Faça conferências.
Escreva livros. Abra um
site na internet. Apareça
na televisão. Seja seqües-
trado ao vivo pelos mar-
cianos (mas antes nego-
cie sua libertação).

(Trecho de A Impostu-
ra Científica em Dez Li-
ções, de Michel de Pra-
contal, págs. 71 e 72)
Kepler: sem dinheiro, deu neve de presente a um amigo próximo Schopenhauer: amor incondicional pelo bicho de estimação

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