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SAYO NARA, AI SU RU N I H O N...'

e Fumìe moravam em Sapporo, capital da ilha de Hokkaido, norte do Japã0, numa


casa de madeira, que abrigava ainda os pais de Kiyoshie os irmãos solteiros.
A vida nunca fora fácil para a família Enomoto, que sobrevivia do plantio de ar-
roz, legumes, verduras e da criação de alg,úns'CávAlt)S,el,vâcâs ,só:rquel,agora tudo

Agachado, plantando com as mãos as pequenas mudas de arroz nos canteiros


cheios de água, Kiyoshi meditava: "0 jornal diz que no Brasil dá para plantar 0 an0
inteiro...,,.EmSa.pporoeradiÍerente,c0mparaVaele.Alifaziaumfriobravoduran-
te seis meses e não dava para cultivar nada por causa da neve.

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u
Manchúria - tm 1931, tropas milita- Ouanto mais as costas doíam, mais 0 jovem agricultor sonhava com aquele
res invadiram a Manchúria, província da China,
paraíso tropical no outro lado do mundo. 0uando retornava para casa, naquele final
dando início a um período expansionista que cul-
de tarde, a decisão do esperançoso Kiyoshi estava tomada:
minaria com o envolvinento do Japão na Segun-
Fumie, estive pensando muito e resolvi: nós dois vamos para o Brasil. Não
da Guerra Mundial. A região da Manchúrìa loca-
liza-se no norte da Chìna e faz fronLeira clm a pe-
-
agüento mais continuar vivendo assim. .
"
nínsula coreana e a Sibéria.
Brasil?l
- espantou-se
- 0 Massayuki a esposa.
me disse que lá é uma maravilha. Falou que se a gente traba-
-
lhar cinco an0s dá para v0ltar ric0!
u
Saku ra Signifìca "flor de cerejeira", ár-
vore cuja floração é aguardada com ansiedade Mas é tão longe.
todos os anos no Japã0. Nas cidades japonesas
- Tem . .

muitos japoneses c0m0 nós indo para lá. Não iremos sozinhos.
exìstem muitas cerejeiras nas ruas e nls par- -Fumie Íicou calada. AÍinal, ele era seu esp0s0 e a ela cabia respeitar todas as
ques, responsáveis por um verdadeiro espetácu-

lo da Natureza no início da primavera - época SUaS deciSõeS.


en que a maìoria das fanílias japonesas sai para
Nos dias seguintes, Kiyoshi parecia ter se transÍ0rmad0 em 0utra pess0a.
o tradicional pìquenique embaixo das árvores
Animado e feliz, só pensava n0 futuro. Não comentou nada com seus paìs nem com
floridas.
0s irmãos, mas t0d0s notaram que ele estava diferente.
Uma tarde, saiu para ir ao centro de Sapporo, que não era grande, mas tinha
escolas, hospitais e um comérci0 razoável. Kiyoshi entrou na Prefeitura e l0g0 esta-
va à frente da pessoa a quem fora procurar: um homem de meia-idade bem vestido.
Era Kato-san, o agente de viagem.
A decisão de ir para o Brasil é muito acertada, meu jovem. 0 país é rico, muito
-
bonito e tudo o que se planta se colhe com abundância garantiu o agente.
Kiyoshi voltou para casa radiante:
-
Agora só temos que assinar o contrato com a Companhia de Emigração
-
comunicou a Fumie. Kato-san me disse que no Brasilvamos ter casa, comida e
-
Cereieira em período de Íloração.
-
trabalho. Ele me explicou direitinho 0 que iremos lucrar se trabalharmos bem. Disse
que vamos para uma fazenda de café, com salário fixo e tudo.
Mas Fumie não mostrou muito entusiasmo com a notícia.
0 que foi? Você está triste.
- ".
Não estou triste. Estou preocupada. É que tenho uma coisa para contar.
- Oue aconteceu? indagou Kiyoshi, inquleto.
- -
medo de ir pro Brasil-falou, com a cabeça baixa, e depois, num sus-
-Tenho
surro: Estou grávida. .
- .

0 agricultor s0rriu, t0d0 contente, e peg0u a mã0 da mulher. Fumie nunca o vira
assim, tã0 carinhoso. Kiyoshi fora criado dentro da tradição japonesa, na qual os
homens nunca devem demonstrar aÍeto. Mas naquele momento parecia que tinha
esquecid0 a educação rígida. Estava emocionado:
Nosso filho vai nascer numa terra rica, Fumie, pense nisso. Agora a gente tem
-
mais um motivo para mudar de vida, não fique preocupada.
Kiyoshi achou que já estava na hora de contar tudo à sua Íamília. 0 pai costu-
mava respeitar suas opiniões, mas desta vez 0 filho temia uma oposição aos seus
planos. Na casa, ele fora um dos poucos que tinham conseguido estudar até o

ensino médio. Além disso, como 0 primogênito da família, tinha a obrigação moral

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de cuidar dos pais, sendo o herdeiro natural da autoridade paterna e dos poucos
bens dos Enomoto.
0uando todos estavam reunidos para jantat pediu licença para falar.
Pai. mãe, irmãos, tenho algo a lhes dizer. Eu e Fumie vamos embora do
-
Japão !

Fez-se um silêncio pesado. 0 pai, que já se servia do yuugohan. parou de comer. 7


Yuugohan - A refeição noturna (jantaf.
Sem dartempo para qualquer reaçã0, Kiyoshi revelou sua decisão de ir para o Brasil Nornalmente consta de arroz branco sen tem-
pero, peixe, Iegunes, conserya e missoshiru.
e contou todas as maravilhas que os esperavam.
Oue garantias vocês terão num país desconhecido? Por acaso conhecem pes-
-
soas que estão bem por lá? perguntou, sério, o patriarca dos Enomoto.
-
Realmente, pai, o Brasil é um país distante, mas tenho certeza de que lá fica-
-
remos ricos e daqui a cinco anos estaremos de volta
- argumentou Kiyoshi. - Sei
que como filho mais velho tenho a responsabilidade de levar adiante 0 nome de nos-
sa Íamília. E é isso que farei, mas em outro lugar. Ouero tentar uma nova vida...
A tensão no ar continuou. Kiyoshi prosseguiu dizendo que Fumie estava grávida
e que eles tinham o direito de buscar um futuro melhor para o filho que ia nascer.
Esse argumento quebrou a resistência do pai:
Eu não gostaria que vocês fossem. Pensem na dificuldade que vão ter para
-
se adaptarem a um país tão diferente do nosso. Mas você, Kiyoshi, é meu filho mais
velho e tem o direito de decidir o seu futuro. Espero que possa realizar seu objeti-
vo, junto de sua esposa e de meu futuro neto...
Kiyoshi abaixou a cabeça em sinal de agradecimento. A palavra do patriarca era
definitiva e ninguém mais iria contestá-la.
Fumie notou, porém, que a mãe de Kiyoshi ficara muito chateada. Permanecera
em silêncio 0 tempo todo, com os olhos baixos, pousados sobre a tigela de comida.
Pensou então que teria de suportar uma outra situação familiar delicada: dar a notÊ
cia a sua avó.
Órfã, Fumie fora criada, com sacrifício, por sua avó Kimie. A jovem sabia que
aquela despedida seria muito dolorosa, porque ela e a velha Kimie sempre tinham
sido extremamente unidas.
A avó morava a alguns quilômetros de Sapporo, no vilarejo de Ebetsu, um vale
cercado por montanhas, onde 0 arroz era plantado em terraços construídos nas
encostas das elevações.
0 casal viajou a cavalo. Enquanto percorriam a trilha no vale, Fumie recordava a
vida dura que levara com a avó. A dedicada Kimie trabalhara na roça, de sol a sol,
para criar a neta. Ainda adolescente, Fumie casou-se com Kiyoshi, que veio a conhe-

cer apenas no dia do casamento. Naquela época era comum o miaiï, casamento ar-
' Mia i - É un casanento arranjado entre as
ranjado entre os pais do rapaze os da moça. fanílias. Esse foi o sistema adotad7 entre os ini-
Após duas horas de viagem, chegaram à casa humilde da anciã. Kimie os rece- grantes japoneses no Brasil, que dur\u até a dé-

cada de 1970 e era pratìcamente a únìca forma


beu com alegria intensa, que aumentou ainda mais quando soube que a neta esta-
de casamento utìlizada pela colônia.
va grávida. 0 problema é que Fumie não conseguia encontrar uma maneira de con-
tar que ela e o marido estavam para deixar o Japã0.

Uma estranha missão na tena do sol nascente


II
e
Batia fi -vow somente no segund0 dia, quando Kiyoshi lhe disse que estava na h0ra de voltar
a Sapporo, é que Fumie teve coragem para falar com a avó. A anciã, miúda e encur-
19
Makizuslzi - Aoo, branco enrolado vada, nã0 conseguiu segurar 0 ch0r0 ao 0uvir a notícia.
Não chore, batiane
en algas narìnhas de cor esverdeada escura,
com recheios diversos. Também é conhecìdo com
- - tentou consolar Fumie, abraçada à velhinha. -
que meu filho tenha tudo o que não pude
0uero
ter...
o nome genérico de sushi. É inporlante destacar
Kiyoshi avisou que estava na hora de partir. Kimie olhou para o rapazcom 0lhos
qre do sushi surguan vários pratas, dentre os
quais, o makizushi.
suplicantes:
Por favor, meu filho, fiquem só mais esta n0ite.
-0 jovem
" ,T , S;..:7U',"--n agricultor c0ncordou. Então a anciã, em silêncio, dirigiu-se à cozinha e

''.- i- â-\ - À\, preparOu a reÍeição mais abastada daqueles anos de pObreza.

Fumie assustou-se com a Íartura.


A senhora gastou toda a sua despensa neste jantar. Fezaïé makizush|D ...
-
disse ela, preocupada.
-
0uerida neta, nada disto vai fazer falta para mim | 0 que vale é a felicidade que
-
sinto ao oferecer-lhes esta refeiçã0. Não que quando
tenho ilusã0, sei vocês voltarem
dessa longa viagem não estarei mais aqui...
Prato de makizushi, com recheios diversos,
acompanhado de conserva de gengibre e No dìa seguinte, ainda escuro, estavam prontos para a partida. Já acomodada
pasta de raiz-Íorte. s0bre 0 caval0, Fumie tentava evitar as lágrimas. Fitou a velha Kimie e despediu-se:

,|?
Batian, karada ni ki o tsukete kudasai. Sayonara...11 lrBatian, karada ni ki
-Depois, tudo aconteceu rapidamente. tsukete kudasai. Sayonara
o
A viagem ao Brasil estava marcada para o
dia 19 de setembro e o agente Kato-san providenciou todos os documentos neces- - Vovó, por favor, cuide de sua saúde. Adeus. . .

sários e também os exames médicos exigidos para comprovarem que não tinham
problemas de saúde.
'2 Hospedaria dos lmigran-
Kiyoshi e Fumie embarcaram no navio Rio de Janeiro Maru, que estava atraca- IES - Ao chegaren ao Brasil, os imigrantes, ge-
do no porto de Yokohama, à margem da baía de Tóquio. Com eles iam mais de mil ralnente fugindo da críse econômica e social que
assolava seus paÍses de origem, eram prìmeua-
pessoas. Além da esperança, carregavam consigo malas enormes, baús e caixas,
mente recebìdos na Hospedaria dos Inigrantes,
com roupas, objetos pessoais e ferramentas para o trabalho na lavoura.
en São Paulo. A hospedaria foi inaugurada en
0 jovem casal ficou um p0uc0 no convés do navio. 0uando o porto de Yo- 1 885 no bairro do Brás, com capacidade para aco-

kohama desapareceu no horizonte, Kiyoshi convenceu-se de quea partir daque- modar 1.200 imìgrantes que, em sua maìoria, eram

selecionados e envìados para trabalhar nas lavou-


le momento nada voltaria a ser c0m0 antes. 0lhou para Fumie. Tão magra e deli-
ras de café ou nas indústrias paulistas.
cada, nem parecia que estava grávida, mas apesar dessa aparente fragilidade
era uma mulher forte e trabalhadora. 0lhou então para o lado onde tinha ficado
sua pátria e sussurrou:
Sayonara, aisuru Nihon...
-

KIYOSHI DESAPARECE
Após uma viagem difícil de mais de quarenta dias, o navio dos emigrantes che-
gou Íinalmente, no dia 7 de novembro, ao porto de Santos. :;';i:ìj;li:l$

Ao desembarcarem, os passageiros já sabiam que seu próximo destino seria a


3,!f,:11,',,lÍl
Hospedaria dos lmigrante,s'', em São Paulo. Essa outra viagem seria bem mais curta Japoneses recém-chegados, aguardando
e todos ficaram assombrados com a riqueza da mata Atlântica, que separava uma seu destino na Hospedaria dos lmigrantes,
em São Paulo.
cidade da outra. "Esta é uma terra fértil", muitos concluíram com alegria. Já na
Hospedaria, a conÍusão era grande. ïodo mundo amontoado, com suas bagagens,
sem entender nada do que aquelas outras pessoas diziam. t3
Ha icai -flrma aplrtuguesada da pala-
Depois de horas de burocracias e desacertos, Kiyoshi e Fumie foram encaminha- vra haiku, uma nodalidade de poesia japonesa

dos para uma fazenda de café, no interior de São Paulo. Na pressa de partir Kiyoshi que transmite sua mensagen (um conceito, uma

idéia, um sentinento) em apenas três versls (o


nem teve tempo de se despedir de Bashô-san, um ex-monge budista que passara a
primeiro com 5 sílabas métricas, o segundo con
maior parte da viagem escrevendo haicais".0s dois tinham se tornado amigos e o 7 e o último com 5).
velho poeta emprestara um livro de poesias dele para Kiyoshi.
0 trabalho duro no Japão nunca permitira ao rapaz Íicar lendo haical. Foi, por-
tanto, uma revelação para Kiyoshi descobrir nos versos simples de Bashô-san uma
profunda sabedoria.
Eu fiquei com o livro dele e nem pude devolver
-
Fumie. no caminho para a fazenda. As terras
- lamentou, desolado, com
pertenciam a Sato-san, um senhor
idoso que viera na primeira leva de imigrantes para o Brasil, em 1g08.
Durante o trajeto, tiveram uma desagradável surpresa: Sato-san avisou que não
ia poder pagar-lhes nenhum salário. Ao chegarem à propriedade, uma nova decep-
ção os aguardava. Ouando viram o lugar onde iriam morar, Fumie olhou para o mari-
do, desesperada: era uma minúscula casa de madeira caindo aos pedaços.

Uma estranha missão na tena do sol nascente


I3

,:it.. .ê
Apesar de ser uma mulher de espírito forte, Fumie chorou muito nos primeiros
dias. Trabalhavam de sol a sol, sem direito a nada. Mesmo assim, achavam que
Sato-san era bom com eles, p0is os ajudava na medida do possível, fornecendo-lhes
alimentos e algum dinheiro.
Ouando aquichegamos, em 1908, tudo era muito pior- dizia o velho Sato.
-
Tivemos de enfrentar um situação mais difícil que a de vocês.
- Kiyoshi não podia imaginar que existisse algo pior do que aquil0 que estavam
vivendo. A noite, em vez de descansar, Fumie desmanchava 0s quimonos, já rotos,
trazidos do Japão e voltava a costurá-|os. 0 cansaço era tremendo e 0 isolamento,
quase total.
Nas poucas vezes que Kiyoshi foi à cidade, sentiu-se mal. Percebeu que havia
14
Precon ce ilo - beia, opinião ou sen- um prec1nceifol4 disfarçado contra 0s imigrantes japoneses. As crianças cOrriam
timento desfavorável formado sem real conhecí atrás dele, zombando:
mento dos fatos, experìência própria ou reflexão
da cara chata come queijo com barata!
crÍtica. 0s imigrantes japoneses e seus descen- -AlémJaponês -
gritavam.
disso,0 jovem casal tinha de enfrentar o chlque culturalls, que nã0 era
dentes, por terem aparência e hábitos culturais

dìferentes dos ocidentais, sofreran por pafte dos


pequeno. Não conseguiam conversar com ninguém. Apenas um brasileiro se dispôs
brasileiros una série de preconceitos, principal- a lhes ensinar algumas palavras em português. Tiveram de modiÍicar um pouco sua
mente durante o período da 2i Guerra Mundial. alimentação japonesa, pois nã0 tinham todos os ingredientes necessários, princi-
palmente algas e peixes frescosl'.
tu As condições de vida eram tã0 precárias que Fumie teve de Íazer o próprio parto,
Choque cultural - cuttura é o
c1njunto dos c1mp\rtament\s, das crenças, dos
enquanto o marido trabalhava na lavoura. Nasceu um menino, que recebeu o nome
conhecìnentos, dos costumes, etc., particulares de Koichi.
de um grupo social, e que o distingue dos demais. Assim que se sentiu mais forte, Fumie voltou a0 trabalho. 0 bebê transformou-
0 choque cultural ocorre n0 encontrl de índiví-
se numa "miniatura de camponês". Todos os dias era levado para a lavoura e dei-
duos de culturas nuito diferentes.
xado sob a sombra de uma árvore, enquanto 0s pais trabalhavam. Foi quando
Kiyoshi começou a ter um comportamento estranho: às vezes sumia, durante horas,

'u Algas e peixes f rescos - e Fumie nunca conseguia saber 0 que ele andava fazendo...
Faz parte da culinárìa japonesa comer peixe to- Assim se passaram dois anos, mas Kiyoshi e Fumie sentiam c0m0 se tivessem
dos os dias. lsso significa que seu consumo é envelhecido dez. No c0meço, ainda se correspondiam c0m seus parentes em Sappo-
bem naior do que a carne de vaca e de frango.
r0, porém com 0 temp0 as cartas foram rareando, até pararem por completo. Não
A alinentação japonesa também é muito saudá-
tinham conseguido guardar praticamente nenhum dinheiro e 0 s0nh0 de voltar ao
vel, con bastantes legumeg verduras, frutas, al-
gas marinhas e frutos do nar Japão ficava cada vez mais distante.
Numa tarde de domingo, Sato-san apareceu para conversar. Perguntou a Kiyoshi
se ele queria comprar um lote de terra na Fazenda Cuiabá, em Cuiabá Paulista.
Comprar? Mas como? Não tenho nem uma moeda respondeu 0 agricultor.
-0 velho Sato então oÍereceu-se para
-
emprestar o dinheiro e disse que terra
a era
muito boa. Kiyoshi nem pensou duas vezes:
Claro que quero! aceitou, feliz.
-Mas ao chegarem à -Fazenda Cuiabá constataram, desalentados, que
aquilo ia
ser um novo pesadelo. 0 lugar estava tomado por jagunços, que ameaçavam as pes-
soas e colocavam fogo nas casas. Ficaram sabendo que 0s pistoleiros não incomo-
davam os vários japoneses que moravam ali, pois eles tinham a documentação de
compra da terra. Mesmo assim, ficaram desconÍiados e com muito medo.

.:::::::::
14
Kiyoshi e Fumie foram morar numa casinha de pau-a-pique17 infestada de bichos-
" Gasinha de pau-a-pique
barbeiros, que fransmitiam a doença de Chagas,8. A noite, enquanto 0 pequeno - É um tipo de habitação rudinentar, feita con
paredes de varas e tr1ncos amarrados, preenchi-
Koichi dormia, o casal ficava acordado, matando os insetos que tomavam as frestas
das com barro e geralmente coberta con palha
da casa. como nos primeiros dias da chegada, Fumie chorava muito. Estava grávida
de coqueiro.
de novo e temia pelo Íuturo dos seus filhos.
Apesar de todas essas dificuldades, começaram a trabalhar duro, sem sábado,
f8
domingo ou feriado. 0 solo era realmente bom, dando a esperança de uma ótima Doença de Ghagas - Doença
transmi lida pelo paraslta Trypanosom a cruzi, en-
colheita de milho e amendoim. Mas a vida não ficou mais fácil. Fumie deu à luz seu
contrado nas fezes do ìnseto conhecido popular-
segundo filho, Eiti, novamente sem a ajuda de ninguém; havia a malária1e, que ata- nente como barbeiro, chupança, procotó e bìcho-

cou toda a família, e a penúria comiam apenas um pouco de arroz sem sal, mrs- de-parede, entre \utr\s. Como o barbeiro costu-

soshiru e tsukemono.
- na habitar as frestas de paredes de barro ou de
madeira, habitações c0m0 as casas de pau-a-
Kiyoshi continuava com aquela sua mania estranha de desaparecer por algumas pique são as maìs visadas.
horas, sem contar a Fumie para onde ia ou o que Íazia.
0 trabalho pesado na roça acabou dando seus frutos: a primeira safra foi exce-
lente. Conseguiram até pagar 0 empréstimo de Sato-san eÍazer uma pequena pou-
pança. A segunda safra foi melhor ainda. Kiyoshi Íicou entusiasmado:
Mais duas colheitas iguais a esta e finalmente conseguiremos voltar ao Japão!
-anunciou elea Fumie, fazendo as contas num caderno.
- A esposa quase explodiu de alegria:
Oue coisa maravilhosa!
-Trabalharam c0m0 nunca naquele ano, pensando n0 retorno ao Japã0. 0 resul-
tado foi fantástico: aquela safra era maior do que as duas primeiras juntas. Barbeiro, agente causador da doença de
Chagas.
Numa certa manhã, receberam a visita de Hirata-san. Era um conterrâneo que
costumava servir de intermediário entre os agricultores japoneses e os comprado-
t' M a I á ri a
res brasileiros, ganhando uma comissão para isso. Hirata-san falava bem o portu- - Doença ìnfecciosa, febril, não-

contagiosa, aguda ou crônica, causada por proto-


guês e era bastante esperto. Sempre fechava bons negócios para 0s imigrantes.
zoárìos do género Plasmodium, transmitidos a0
Hirata-san iria negociar a safra de Kiyoshi e aparecera apenas para tratar dos
ser hunano pela picada das fêmeas dos mosqui-
últimos detalhes da transaçã0. Íos do género Anopheles.

agora mesmo para a cidade vender sua produção anunciou o japonês,


-Vou
terminando de tomar a xícara de chá servida por Fumie.
-
Ouero ir com você... Já está na hora de eu começar a aprender os segredos
-
da venda dos produtos
- disse Kiyoshi.
Melhor nã0. Se você fol vai atrapalhar
-
oportunidade eu o levarei comigo.
- afirmou Hirata. - Numa outra
Kiyoshi concordou. Tão logo Hirata-san se despediu, o agricultor começou aÍazer
planos com o dinheiro que receberia. Acreditava que em seis meses ele e a
mulher já poderiam embarcar para o Japã0.
Mas Hirata não apareceu mais naquele dia. Nem no dia seguinte. Preocupado,
Kiyoshi foi procurar o negociante. Depois de andar por t0d0s os lados, descobriu o
tenível golpe: Hirata fugira com todo o dinheiro da safra!
0 lavrador chegou em casa transtornado:

Uma estranha missão na tena do sol nascente


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Acabou tudo, Fumie... Acabou!
-0 roubo de Hirata deixou a família novamente na miséria. Tiveram até de ven-
der um pedaço da terra para pagar as contas. Foi uma fase quase insuportável.
Kiyoshi aumentou seus desaparecimentos misteriosos e Fumie continuou sem saber
o que ele fazia nesses momentos.
A muito custo arranjaram forças paÍa trabalhar dur0 na plantaçã0. Com o passar
dos anos, a situação foi melhorando um pouco, mas 0 casal nunca conseguia juntar
recursos suÍicientes paraicumprir o velho sonho de retornar à sua pátria.
Para evitar novas desilusões, Klyoshi pediu a Fumie que nã0 tocasse mais n0
assuntO do retorno,0 que só fez aumentar o seu sofrimento.
En 1942, o Brasil entrlu na Segunda Guerra Mundialr\ contra 0 Japã0, a Ale-
manha e a ltália. 0s bens dos imigrantes japoneses foram confiscados pelo gover-

'00 Brasil entrou na Segun- no, as aulas de japonês foram proibidas e os jornais editados nessa língua deixaram
da Guerra Mundial -ouandoo de circular. Kiyoshi enterrou seus livros sobre a história japonesa e proibiu que
Brasil ranpeu as relações dipllmáticas clm as
Fumie falasse o idioma natal na frente de brasileiros.
Forças do Eixo- Alenanha, ltália e Japãl -, de-
clarando guerra a esses ÍÍés países en 22 de eu nã0 podia falar na volta a0 nosso país... Agora tenho de esquecer
-Antes
agosto de 1942, alemães, italìanos e japoneses que sou japonesa. Não posso falar! Não posso pensaÍ! desesperou-se a mulher.
que aqui residiam coneçaram a ser persegui- Não chore, Fumie tentou consolar o marido.
- Um dia tudo isso vai
dos. No caso dos imigrantes japlneses e seus -
terminar...
- -
desce nde ntes, várias propri edades f o ra m conf i s-

cadas, diversas escolas fechadas, a língua japo- Realmente terminou. Mas a guerra iria deixar uma marca definitiva na vida do
nesa proibida, etc. A perseguiçãT s1nente ter- casal, enterrando de vez os sonhos de Kiyoshi e Fumie: o Japão ficara destruído.
minou com o fim da guerra.
arrasado. Como voltar?

t6
Apesar da desilusão de não poder mais retornar ao Japã0, a vida dos Enomoto " N i kke i s - Segunda geração de descen-

prosseguia em sua rotina. Afinal, tinham dois filhos para cuidar e que tempo tinham dentes de japlneses nascidos no Brasil.

para se lamentar se trabalhavam de sol a sol, de segunda a segunda?


Vários anos se passaram desde o final da guerra, quando Íinalmente consegui- 22
Ka i c a n - Ctube japonês onde se reunia a
ram comprar um pedaço de terra, na verdade, uma mata virgem e ainda cheia de ani- comunidade nipônica local para festejar e come-

mais silvestres, como caplvaras, antas e onças-pintadas. mlrar datas inpoftantes do calendário do Japã0.

Nada porém podia desanimar aquela Íamília que após tanto sacrifício podia tra- Tanbém é o local onde se ensina a língua japone'

sa e alguns espoftes, coml o Yakyu (beisebol),


balhar para si. Koichi, já um homem adulto, comandava alguns peões para arrancar
gatebol, etc.
as árvores para o plantio da agricultura. Eiti era adolescente e em sua alegria juve-
nil a maior diversão era observar os animais na Natureza e pescar às margens do
rio Paraná.
Tempos prósperos aqueles, no bairro do Campinal em Presidente Epitácio, oeste
do Estado de São Paulo. Na região havia um grande número de japoneses e, já na
segunda geraçã0, os nikkeis2'formavam grupos de jovens e se aglomeravam no kai-
can", onde participavam de jogos, praticavam esportes (como o beisebol), estuda-
vam o idioma de seus pais e assistiam filmes japoneses, um luxo para a época. Cha-
mava a atenção dos demais que um grupo de simples agricultores pudesse ser
assim tão organizado.
}toosan, okaasan"l Eiti, entrando em casa todo eufórico. Hoje
- -gritoupassar
vaiter cinemano kaicanl Puxa, vai
-
um filme de samuraique eu estou louco
Comunidade de descendentes de iapone-
ses reunidos no kaicanpara mais uma ati-
para ver! vidade Íestiva.

É claro que seus pais já sabiam, pois era a comunidade que organizava esses
eventos culturais. 0 casal observava, com satisfaçã0, Eitifalar do filme sem parar,
pois eles trabalhavam muito para que seus Íilhos pudessem ter um p0uc0 de lazer " 0toosan, 0kaasan - Papai,

mamãe.
no país que a família acabou adotando c0m0 sua segunda pátria. Afinal, fora nela
que 0s Enomoto conseguiram criar seus filhos. E como não puderam retornar a0
Japã0, a colônia'o passou afazer parte da vida deles, preservando a cultura japone- 'n C o I ô n i a - Grupo de migrantes ou indi-
sa, sua língua, seus costumes e seus hábitos alimentares. víduos de una nação que se estabelecem em

terra ou região estranha, conservando as tradi-


Kiyoshi sempre acompanhava pelo jornal nipo-brasíleiro'u notícias da colônia no
Ções, as características culturais e religiosas do
Brasil, bem como de sua terra natal, e às vezes ele próprio se espantava ao obser-
local de origem.
var 0 quanto os japoneses haviam se integrado na sociedade brasileira.
Kiyoshi sabia que havia muitos patrícios no interior de São Paulo, no Paraná e

até no Amazonas. No Estado de São Paulo eles até fundaram na capital um bairro
25
Jornal nipo-brasileiro -
Com o aumento do número de imigrantes japo-
japonês, o bairro da Liberdade, que Kiyoshi teve a oportunidade de conhecer e
neses, surgiram no Brasil vários jornais da colô-
achou lindo, tudo lembrava o Japão de forma exagerada, mas era gostoso ver as
nia japonesa, orìginalmente de circulação regìo-
pessoas vendendo produtos japoneses nas bancas e nos supermercados, e o idioma nal, mas atualmente de alcance nacional. 0 ter-

falado livremente em todos os lugares. no também se aplíca aos jornais publicados pe-

/os dekasseguis brasileiros que vìvem no Japã0.


As pessoas que fundaram o bairro eram aquelas que não tinham o dom para li-
dar com a terra. Muitas delas tinham se mudado para a cidade, tornando-se bons
comerciantes, empregados, 0u se dedicaram a alguma proÍissã0, ingressando até
nas universidades, pois faz parte da cultura japonesa o incentivo à educaçã0.
Acho que já
somos brasileiros, apesar de tanta diferença cultural...
-
pensava alto Kiyoshi em seus devaneios.
-

nascente
Uma estranha missão na tena do sol
1l
'6 0rigami - É a ane da dobradura de pa- Apesar de ele ter essa consciência a colônia era bem fechada, tanto que os
pel, amplamenti: dìfundida por quase todo o mun-
nikkeis, em sua mai0ria, se casaram entre eles e alguns, c0m0 0 própri0 Eiti, que,
do. Com o origami podem ser criados flores, obje-
apesar de ser extrovertido, se casaram ao estil0 japonês, por miai.
tls utìlitários, figuras geonétricas e decorativas.
0uando 0s netos vieram, 0s tempos começaram a ficar novamente difíceis; os
empréstimos n0 Banco mais 0s juros quebraram a mai0ria dos pequenos agricultores,
que se mudaram para 0utras regiões, vendend0 suas terras, 0 que acabou esvaziand0
também o kaican e tudo 0 que ele representava para a vida socialda comunidade.
Kiyoshi e Fumie eram persistentes e lutavam muito para preservar sua proprie-
dade. Trabalhar na terra era 0 que sabiam Íazer e era nela que havlam criado raízes.
Apesar de toda a situação desfavorável, Kiyoshi e Fumie sempre mantinham acesa
a chama das tradições japonesas dentro de casa.
Era uma alegria só quando 0s netos pediam:
faz um origamì'z6 n0v0 pra mim e depois me ensina, tá?
0 Isuru {grou} é uma das Íiguras mais po-
pulares e belas da arte do 0rigami.
- Batian, faz um kazaguruna2s (cata-vento) para mim?
-LogoDitian'?t,
ambos estavam envolvidos com 0s netos e uma das coisas que mais gosta-

2t vam de Íazer era justamente isso: brincar com eles"


Ditlan -vova

28
KazagurulÍtâ - Cata-vento de brìn- NOVO PAfrAíSO
quedo. Presente na cultura japonesa há séculos,

é passado de uma geração a outra, fazendo un 0uarenta anos se passaram. Ouarenta longos anos. Um velho japonês cuida de
interessante clntraste con a nodernidade e o um viveìro de orquídeas2e. Um chapéu de palha protege a cabeÇa e 0s cabelos bran-
avanço tecnológico do país.
cos e ralos.0 corpo está encurvado, mas as mãos ainda guardam uma habilidade
quase mágica para tratar da terra.
Ditian! Ditian!
-Kiyoshi Enomoto se volta sorrindo a0 reconhecer a moça que corre para ele. É

Naomi, filha de Eiti, seu filho mais n0v0. Pele m0rena queimada de sol e cabel0s
negros brilhantes que chegam até as costas, Naomi é uma bonita sanseide22anos,
A neta abraça o avô com carinho:
Ditian, venha, venha! Preciso lhe contar uma coisa... diz, puxando-o pela
- -
mã0 em direção a uma cadeira de balanço colocada sob uma mangueira frondosa.
Só depois de vê-lo sentad0 na cadeira é que revela, feliz.
O kazaguruma (cata-vento) é um dos brin-
quedos preÍeridos das crianças iaponesas, Ditian, o senhor não vai acreditar... Eu, Hiromi e Shoji estamos indo para o
nas Íestas de verão. -
Japão !

Japã0... repete o anciã0, hesitante. A notícia nã0 0 surpreende. Sabe


- -
que a situação está difícil e que 0s netos pensavam nessa possibilidade há algum
2s
Viveiro de orquídeas Pe-

las suas características, as orquídeas precisam temp0, principalmente Shoji, que planeja se casar c0m Satik0, sua namorada há
ser cultivadas à sombra, em viveìros apropria- mais de quatro anos.
dos. Dentre os imigrantes japoneses e seus des-
Pro Japã0, ditian- confirma Naomi. E começa a contar, entusiasmada, que
cendentes são muitos os orquidófilos apaixona- -
ela e 0s irmãos iriam trabalhar numa grande indústria japonesa, por dois v0l-
dos por essas plantas e suas flores, considera- anos, e
das por eles as mais belas do planeta. tariam ao Brasil com bastante dinheiro.
Enquanto a neta continua a falar, 0s pensamentos do velho Kiyoshi voam até o
passado. Lembra-se de todo 0 sofrimento, do roubo de Hirata, da guerra e de como

1B

ii'
ç-s:
ffi
fora difícil, para ele e Fumie, se recuperarem de tudo aquilo. Lembra-se dos sacrifÊ
cios que tiveram de fazer para comprar o sítio em Campinal, no oeste de São Paulo,
onde estavam morando até hoje. Fora ali, naquele lugar bem cuidado, com pomar,
horta, muitas orquídeas e animais domésticos, que eles tinham conseguido criar os
filhos, Koichi e Eiti, dentro dos costumes japoneses.
Ah. Japã0, quantas ilusões perdidas... Alguns anos antes, estivera a ponto de
ir paralá. Desistiu p0Í causa do relato de Kikuchi-san. Kikuchi era seu amigo e tin-
ha a mesma idade dele. Há três anos Íora visitar o Japão e voltara arrasado: "0 nos-
so Japão não existe mais...", dissera-lhe Kikuchi-san, com lágrimas nos olhos.
0 amigo nunca mais foi o mesmo depois daquela viagem. Todos diziam que ele
estava morrendo, pouco a pouco, de tristeza. 30
Aeroporto internacional
Ouando os pensamentos de Kiyoshi voltam ao presente, Naomi ainda Íala, entu- dg Narita - Principal aer0p0rÍ0 interna-
siasmada: cional do Japã0, localizado a 66 km a noroeste
da capital, Tóquio.
Não vejo a hora de embarcal ditian. Não é engraçado? 0 senhor e a batian
-
vieram para cá porque estava muito difícil viver no Japã0, agora é o Brasil que está
numa situação parecida e nós, seus netos, é que vamos ao Japão para tentar melho-
É
rar de vida.
É... o destino é engraçado diz Kiyoshi, pensativo. 0uando vocês
-
viajam?
- -
que os documentos ficarem prontos.
- Assim chegarem lá, eu queria que me fizessem um favor...
- Ouando
Oue Íavor, ditian?
-0 ancião - indaga Naomi, curiosa.
não diz nada, apenas sorri.
Seu avô é cheio de mistérios, minha querida comenta a velha Fumie, que
- -
chegara naquele instante e ouvira parte da conversa.
acredita que seu avô tinha 0 costume de sumir de vez em quando e até 0 aeroporto de Narita é o mais movimen-
-Você tado do Japão, com grande Íluxo de passa-
hoje nunca me contou o que Íazia? diz a avó, sorrindo.
-
Foram24 horas de viagem. Ouando desembarcaramno aeroplrto internacional
geiros e mercadorias.

de Narita3o, Naomi, Hiromi e Shoji estavam tontos.0 cansaç0, a diferença defuso


horário31, a emoção de conhecer a terra dos seus antepassados, a expectativa de
31
Diferença de Íuso horá-
fiO - I diferença de fuso horário entre o Bra-
uma nova vida, tudo isso se misturava na cabeça dos três dekasseguis".
sil e o Japão é de 12 horas.
A exaustã0, o calor sufocante do verão japonês e o trânsito pesado tornaram
quase insuportável o trajeto de Narita a Tóquio. Ao chegarem à capital japonesa, a
situação ficou pior ainda. Foram largados no escritório da empreiteira33 que tratava
t'Dekasseguis - originatmente, o
terml se referia a camponeses que buscavam
dos empregos e ali ninguém se preocupou em saberse precisavam de um banho ou
trabalho na cidade durante a entressafra. De-
se estavam com fome. poìs, passou tanbém a denonìnar os estrangei-
0s funcionários da empreiteira eram rudes e mal-encarados. Tratavam os dekas- ros que vão trabalhar no Japã0, como no casl

seguis c0m0 se fossem coisas e não pessoas. Foram fichados, pesados e medidos. dos brasìleiros descendentes de japoneses.

Mais tarde, já liberados, tiveram de se virar sozinhos para encontrar um lugar onde
almoçar. Para sorte deles, havia um McDonald's nas redondezas. 33
Em p re ite il a - Empresa laponesa res-
Nunca me senti tão humilhado em toda a minha vida! disse
do,
-já na lanchonete. - ponsável pelo recrutamento sobretudo de dekas-

seguis para trabalhar nas empresas japonesas.

Uma estranha mìssão na tena do sol nascente


Ï$
'n Kisarazu -Cidade localizada no Esta- No meio da tarde, os três irmãos e 0utro grupo de dekasseguisÍoram embarca-
do de Chiba, às margens da baía de Tóquio. dos num trem para a cidade de Kisarazu'\. Eles tinham sido designados para traba-
lhar numa grande empresa fabricante de vídeos.

t'Byo Era noite quando chegaram ao seu destiRe, E aí uma nova decepçã0. Foram dei-
-Aloiamento.
xados num ry035 precário, uma construção de madeira, velha e imunda, isolada e dis-
tante do centro da cÌdade, pertencente à empreiteira. Cada quarto, pequeno, tinha
tt issei
N -0 mesmo que nikkeì.
de ser dividido com até seis pessoas. Ao lado do alojamento. funcionava uma
madeireira, cujas serras elétricas faziam um barulho infernal.0 cansaço e o desâ-

tt nimo falaram mais alto e todos foram dormir sem jantar.


Yakuza - Nome dado a grupos que con-
trolam o crime organizado no Japã0. 0s mem-
Só no dia seguinte é que Naomi, Hiromi e Shoji descobriram o motivo de terem
bros da\akuza são conhecidos não só pela vio- ficado tão mal impressionados com o tratamento dado pelo pessoal da empreiteira.
lência e pela ìlegalidade dos atos que conetem, Hélio, um nr'ssei36 que viera do Paraná há algum tempo e que também morava no
clmo tambén pell seu hábito de tatuat pratica'
alojamento, contou-lhes que a empreiteira tinha ligação com a Yakuza37, a temida
mente o corpo todo e decepar parte do dedo mí
nimo dos membros que clneteram erros.
máfia japonesa.
Yakuza?l Meu Deus... sussurrou Hiromi, olhando assustada para seus
-
dois irmãos.
-
t' Mi I iene s - 0 iene é a noeda oficial
Essas empreiteiras funcionam como agências de empregos paÍa
latino-ame-
do Japã0. Em novembro de 2004, cada dólar va- -
ricanos e muitas têm alguma vinculação com a Yakuza explicou Hélio. Eles
Iìà 105 ienes. - -
exploram a gente, que é estrangeiro, mas 0 governo finge que não vê porque as
fábricas estão precisando de mão-de-obra de fora.
quis saber Naomi.
- EEmexploram
tudo
como?
que
-
puderem explorar:n0 salário, no imposto de renda, n0 seguro
-
de saúde. Ouerem outro exemplo? Para renovar o visto de permanência no Japão
o preço oficial é de quatro mil ienes. Sabem quanto a empreiteira cobra? Trinta
mil ienes"...
Oue desaforo! bradou Shoji.
- Cuidado com 0
-
que você fala aconselhou Hélio. Principalmente se esti-
-
ver na fábrica.
- -
Por quê? Eles não entendem nada de português replicou Shoji.
- Sei -
lá ! Eles são manhosos, eu andei reclamando de umas coìsas e vieram me
- que
contar 0s caras estão de olho em mim
- alertou Hélio.
Naomi ia dizer alguma coisa. mas foi interrompida pela chegada de Sônia, uma
simpática nrssei de São Paulo, que estava ali há mais de um ano e que ocupava 0
mesmo quarto de Naomi e Hiromi no alojamento.
gentel a city Alguém quer ir comigo?
-Hélio0i,disse queVounãoatépodia - convidou Sônia.
ir e os três irmãos, apesar da curiosidade de conhe-
cer a cidade. acharam melhor fìcar descansando no alojamento. Ainda estavam sen-
tindo os efeitos do fuso horário e no dia seguinte começariam a trabalhar.
Hiromi, Shoji e Naomi chegaram bem cedo na fábrica. Eles e outros dekasseguis
foram apresentados aos chefes.
É um prazer recebê-los disse um dos gerentes em japonês, enquanto um
-
dekassegui, que
-
na fábrica há mais tempo, ia traduzindo.
lrabalhava

20
bem que a gente fala japonês. Já pensou? Você chega num país estra-
-Ainda
nho e não entende uma palavra do que falam? sussurrou Hiromi para a irmã.
Vocês todos vieram de muito longe para
-
compor nosso quadro de emprega-
-
dos continuou o gerente. Sabemos que têm outra cultura e 0utro modo de
vida,
-porém
-
para
chegaram aqui trabalhar e terão que se adaptar aos nossos hábi-
tos e, principalmente, ao trabalho que oferecemos a vocês.
Em seguida 0 gerente mostrou o uniforme que passariam a usar, composto de
um colete de náilon, sapatos de plástico branco e um crachá com 0 nome do empre-
gado. Depois foram encaminhados a um grup0 de operários mais experientes, que
lhes dariam um treinamento rápido do serviç0. Naomi e Hiromi ficaram juntas e

Shoji foi levado para um outro setor.


0 tempo passou voando. Logo chegou a hora do almoço e os três irmãos se encon-
traram n0 reÍeitório da empresa. Sônia também trabalhava ali e juntou-se a eles.
Vocês duas vão trabalhar comigo, no setor de montagem de vídeos. Legal,
-
né?
- comentou Sônia. tt Koutai - Revezamento dos turnos de
- E você, Shoji, vaifazerplacas
o quê?
- perguntou Naomiao irmã0.
para circuito impresso de vídeo, numa área onde
trabalho. No Japã0, muìtos dekasseguis traba-
Vou fazer lavagem de
-
só trabalham pegar
lham nesse sistema, alternando semanalnente
homens. Vou o sistema de koutai". o período de trabalho diurno com o noturnl.

Uma estranha missão na terra do sol nascente


11
lh, cara, isso acaba com a saúde da pessoa observou Sônia. Tem que
- - -
trabalhar uma semana de dia e outra de noite... No começo dá sono, enjôo, tontura.
Não estou nem aí disse Shoji, sacudindo os ombros. Só sei que o
- - -
koutaidá mais dinheiro e assim dá para eu voltar mais cedo pro Brasil...
0 irmão parou de falar e começou a rir, apontando Hiromi, que comia o primeiro
bocado de anoz e fazia uma careta.
Nossal Este arroz é mais "grude" que aquele da vovó Fumie afirmou
-
ela, rindo.
-
A gente está acostumado a comer a comida japonesa
lá em casa, mas esta
-
aqui é tã0. .. tão adocicada comentou Naomi, que acabara de experimentar o pri-
-
meiro bocado de uma mistura de legumes.
É bom vocês irem se acostumando alertou Sônia. Aqui eles gostam de
-
temperar tudo com açúcar.
-
Foi apenas no segundo dia de trabalho que 0s três irmãos começaram a viver,
efetivamente, a rotina da indústria. E essa rotina tinha coisas curiosas. Por exem-
plo, ao chegarem, logo de manhã, foram convidados a fazer ginástica junto aos
demais operários. Não era obrigatória, mas a maioria fazia.
Depois houve uma reuniã0. Essa, sim, era diária e obrigatória. Ao final dela, os
empregados tinham de lel em voz alta, os princípios da empresa. Era um texto de
poucas linhas, em que todos se comprometiam com a produçã0, a qualidade, a rapi-
dezeomenorcusto.
0utra coisa que Naomi e Hiromi acharam "diferente" foi o comportamento do
responsável por sua seçã0. Ele consertava vídeos, Íazia limpeza, não tinha o menor
constrangimento em Íazer os serviços mais humildes.
jeito
- lmagina se no Brasil um chefe iria botar a mão na massa desse
cochichou Naomi para a irmã.
-
As duas irmãs e Sônia saíram do edifício da empresa, no fim do expediênte, e
ficaram esperando Shoji no estacionamento de bicicletas. Eles e os demais dekasse
gur's sempre usavam bicicletas para se locomoverem entre o alojamento e a fábrica.
Shoji está demorando comentou Hiromi. Será que pediram para ele
- - -
no
Za n gyo u - Hora extra. Íazer zangyouoo?
Minutos depois, porém, o irmão chegava ao estacionamento. Parecia estar
Íurioso.
ot
Id iwa ru - lndivíduo nal-educado. Oue sacol Oue japonês mais idiwarual! esbravejava o rapaz.- Para ele
- -
é só estrangeiro que erra, tive que me segurar para não falar umas "coisas"!
Shoji. 0uem é"ele"? 0 que aconteceu? indagou Naomi, preocupada.
- Calma,
Meu chefe, Naomi. Pegou no meu pé
-
o dia inteiro. 0 cara é um chato!
- Sossegue, Shoji, não fique nervoso acalmou-o Sônia. Tem chefes que
- - -
são assim mesmo. implicam com 0s dekasseguis. Mas isso é só no c0meç0, depois
a gente mostra que é competente e eles mudam 0 tratamento.
A semana passou rápido e no domingo, o dia de folga, os três irmãos estavam
esgotados com o ritmo de trabalho.

II 'ip;1'1r;;

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