13, 26-27)
de Orígenes a Tomás de Aquino
Tradução: pza, 2018
Introdução
1
L.C. Filion, Judas assistait-il à l’institution? In Essais d’exégèse, Lyon 1884, 311-326,
defende, contra a maioria da tradição, que Judas não participou na Eucaristia. M.-J. Lagrange, Êvangile
selon saint Jean, Paris 1936, 359, considera que o bocado de Judas, seguido da sua saída, precede a
Eucaristia e que Judas não participou na Eucaristia. «Que lugar era o dele na instituição do rito que devia
ser o instrumento da união de Jesus ressuscitado com os seus que ficavam na terra? (...) Os Padres que
admitiram que Judas tinha comungado: Efrém, Crisóstomo, Ambrósio, Agostinho, Jerónimo, etc. não estão
de acordo sobre o momento e só podem ser citados como exegetas, não como testemunhas da tradição».
R.E. Brown, The Gospel according to John, New York 1970, 197914, t. 2, 575: «Algumas escolas
sugerem que Jesus deu a Eucaristia a Judas. Loisy e W. Bauer usam a 1Cor 11, 29, que fala da condenação
daqueles que comem o corpo do Senhor sem discernimento, para explicarem porque é que Satanás entrou
em Judas, depois que ele comeu o bocado (Eucaristia). Mas esperaria o autor (João) que os seus leitores
entendessem que o bocado era a Eucaristia, quando ele não relatou a instituição? Isso só seria viável na
duvidosa hipótese de que ele estivesse observando a disciplina arcani, escondendo a instituição de
estranhos que pudessem ler o Evangelho».
I. O bocado em Orígenes2.
Da exegese de Orígenes vamos reter três questões: qual é a relação entre o bocado
e a entrada de Satanás? Que significa o facto de o bocado ser molhado? Será que Judas
comeu o bocado? Orígenes coloca implicitamente a primeira questão (§ 281) e
explicitamente as outras duas (§ 288 e 305). Ele responde-lhes, dando a sua opinião
pessoal e, por vezes, hipóteses que ele próprio apresenta como contraditórias (μὴ
συνᾴδειν)3, de tal maneira que ele abre caminho às posições opostas da posteridade 4.
2
Sobre este episódio, ver S. Lauchli, Origen’s Interpretation of Judas Iscariot, ChH 22 (1953),
253-268, e V.H. Drecoli, Giuda Iscariota nel comento a Giovanni, in E. Prinzivalli (éd.), Il comento
a Giovanni di Origine: il testo e i suoi contesti. Actas do VIII Convénio de Estudos do Grupo Italiano de
Investigação sobre «Orígenes e a Tradição Alexandrina» (Roma 28-30 setembro 2004), Villa Verrucchio
2005, 555-570.
3
Com. Io. XXXII, 305 (SC 385, 317-319).
4
M. Simonetti, Origene esegeta e la sua tradizione, Brescia 2004, 192, sublinha o carácter
zetético deste comentário e de maneira singular o episódio do lava-pés.
5
Com. Jo. XXXII 281 (307).
6
Ver Com. Mt. XI 9 (SC 162, 317-319): «Foi por causa desse mal, que o corroeu como uma
gangrena, que o diabo lhe meteu “no coração” (Jo. 12, 2) a intenção de entregar (Jesus) e, quando ele
recebeu a seta incendiada (Ef. 6, 16) com essa finalidade, o próprio diabo, invadindo a sua alma, o
preencheu inteiramente (Jo. 13, 27)». S.L. Auchli, Origen’s Interpretation, cit., 256 ss., insiste com
razão na importância das duas etapas.
7
Com. Jo. XXXII 287 (309-311).
8
Com. Jo. XXXII 285. De Principiis III 2, 1: «Quanto a Judas, “quando o diabo tinha já metido
no seu coração a intenção de entregar” Cristo (Jo. 13, 2), de seguida acolheu Satanás todo inteiro dentro
dele, como está escrito: “Logo após o bocado, Satanás entrou nele” (Jo. 13, 27). E o Apóstolo Paulo ensina-
nos a “não dar lugar ao diabo” (Ef. 4, 27)». Com. Jo. X 322 (SC 157, 579): «Se alguém “dá lugar ao diabo”
(Ef. 4, 27), Satanás entra nele, como em Judas, que lhe deu lugar, quando o diabo meteu no seu coração a
intenção de entregar Jesus».
tivesse resistido à seta (πρὸς τὸ βληθέν στὰς ὁ Ἰούδας ἧν), Satanás não teria encontrado
depois (ὕστερον) lugar (τόπων) para entrar nele»9.
Orígenes sugere prudentemente que Jesus não lavou os pés de Judas 13, o que será
rejeitado por João Crisóstomo. Um pouco mais adiante, Orígenes retorna a esta sequência
e parece, no entanto, concordar que Judas teve os pés lavados.
«No decorrer da ceia, tendo já o diabo metido uma seta (ἤδη βεβληκότος) no coração de
Judas, filho de Simão Iscariotes, para ele entregar Jesus, ele não repeliu esta seta (οὐκ
9
Fr. Ef. 4, 27, ed. J.A.F. Gregg, JThS 3 (1902, 20, 10-15 (trad. MOB).
10
Fr. Ex. PG 12, 292, 8-24 (trad. MOB). Ver também Com. Jo. XXXII 24.
11
Encontra-se também uma rápida alusão a estas duas etapas e ao bocado de Judas nas novas
Homilias sobre os Salmos de Orígenes, descobertas por Marina Molin no Codex Graecus 314 de Munique,
e transcritas por Lorenzo Perrone que generosamente me deu uma cópia delas, antes de serem publicadas.
Na Homilia 1, Sl. 73, fol. 124v, Orígenes comenta o mal cometido pelo diabo contra o Salvador. Depois de
ter mencionado as tentações do deserto, ele explica que, se o diabo se afastou de Jesus até um momento
favorável (Lc. 4, 13: ἀπέση ἀπ’ αὐτοῦ ἄχρι καιροῦ), ele voltou para o tentar, a fim de o matar, «no momento
em que, quando o diabo tinha lançado a sua seta no coração de Judas, filho de Iscariotes, para que ele
entregasse o Senhor, Satanás entrou nele logo após o bocado (ὅτε τοῦ διαβόλον βεβληκότος εἰς τὴν καρδίαν
Ἰούδα Σίμωνος Ἰσκαριώτου ἵνα παραδῷ τὸν Σωτῆρα καὶ μετὰ τὸ ψωμίον εἰσῆλθεν εἰς ἐκεῖνων ὁ Σατανᾶς)».
12
Com. Jo. XXXII 19. Com. Jo. XXXII 314: «Não era de noite para aqueles que tinham tido os
pés lavados por Jesus».
13
A. Popova, La représentation de Judas dans l’église de saint Georges de Polosko,
(http://www.kalamus.com.mk/pdf_spisanija/patrimonium_5/012%20=%20011_1%20Patrimonium%2020
12%20Ana%20Popova.pdf) sinal de que na iconografia ocidental se encontram muitos casos em que
somente onze apóstolos participam no lava-pés, por exemplo sobre o pórtico da catedral de Trogir na
Croácia (1240), ou na ilha de Chipre, sobre um fresco influenciado pela arte ocidental, na Igreja da santa
Paraskevi em Yeroskipos.
ἀπώσατο τὸ βεβλημένον). É por isso que os onze, que tinham recebido o banho e estavam
puros, se tornaram ainda mais puros depois de terem tido os pés lavados por Jesus; quanto a
Judas, que já não estava puro, torna-se ainda mais sujo e mais impuro – “que o impuro
continue a cometer mais ações impuras” (Ap. 22, 11), é o que de facto está escrito – quando,
logo após o bocado, Satanás entrou nele»14.
Judas, não estando revestido com as armas divinas, não pôde repelir a seta de Satanás;
portanto ele já está impuro e não recebe espiritualmente o lava-pés, que torna mais puros
os que já estavam. Este versículo do Ap. 22, 11 será citado de novo a propósito do bocado
molhado. Para compreender esta afirmação surpreendente de que Jesus não lavou os pés
de Judas, é preciso, segundo M. Simonetti, supor que Orígenes passa de uma leitura literal
do lava-pés a um nível espiritual (purificação da alma), sem informar o seu leitor, a não
ser pela sua forma introdutória: «Eu ousaria dizer»15.
b) O papel do bocado.
Voltando à cronologia da entrada de Satanás, é somente depois do bocado que ela
tem lugar, o que levanta a questão de saber qual é o papel deste bocado16. Esta
concomitância levanta o problema da relação de causalidade entre o bocado e Satanás. Aí
Orígenes apresenta também uma hipótese pessoal, que ele constrói a partir de uma rede
de cinco citações17. O objectivo é compreender como um dom provoca uma perda, um
contra-dom (ἀντίδοσις) per meio do qual Jesus faz, em troca (ἀντιλαβεῖν), uma retoma.
«A meu ver (οἶμαι) era preciso, em troca do dom deste bocado, retirar daquele que era
indigno (ἀναξίου) de o possuir, o dom superior que ele acreditava ter; é que “àquele que não
tem, ser-lhe-á tirado (ἀρθήσεται) até mesmo o que acredita ter” (Lc. 8, 18). Portanto, uma
vez despojado (ἀφαιρεθείς), por ser indigno (ἀνάξιος), do bem superior (que era)
precisamente aquele que ele tinha acabado de falar, Judas foi capaz de acolher a entrada de
Satanás nele. Para podermos compreender como o Senhor deu um bocado a Judas e como
Judas se desfaz então de um bem superior que estava nele, que talvez (τάχα) seja o dom da
paz, que volta do ouvinte que a recusa para aquele que a proclama, de acordo com o que foi
dito: “Se houver lá um filho da paz, a vossa paz repousará sobre ele; se não houver lá um
filho da paz, a vossa paz voltará para vós” (Lc. 10, 6); para o podermos compreender, nós
citaremos, à maneira de exemplo, o versículo da Segunda Epístola aos Coríntios, entendido
nestes termos: “O vosso supérfluo supera a indigência dos outros, a fim de que também o
supérfluo deles venha em socorro da vossa indigência” (2Cor. 8, 14). É que, depois de termos
compreendido aqui a troca (ἀντίδονιν) de bens materiais pelos espirituais, poderemos ver
como Jesus deu um bocado de pão àquele que não era digno (τῷ μὴ ἀχίῷ), a fim de lhe tirar
(ἀφέλῃ) a paz, em troca deste bocado, porque ele não era mais digno (ἀναξίου) de se ouvir
dizer: “Até o homem da minha paz” (Sl. 40, 10) – com efeito: “Que o homem impuro continue
a cometer mais ações impuras” (Ap. 22, 11). Uma vez retirada (ἀφαιρεθείσης) a paz, aquele
14
Com. Jo. XXXII 109-110 (tradução modificada por βεβληκότος).
15
M. Simonetti, La “Lavanda dei piedi” (Com. Jo. 32, 5-55) in M. Maritano - E. dal
Covolo (eds.), Commento a Giovanni. Lettura origeniana, Roma 2006, 16-17.
16
Com. Jo. XXXII 284: «O Senhor deu um bocado a Judas e este desfaz-se então (τότε) de um
bem superior que estava nele»; 286: «Assinala ao mesmo tempo que antes (πρότερον οὐ) Satanás não tinha
entrado em Judas, apenas que lhe tinha metido no seu coração (...), segundo o texto que nós analisamos
agora, é logo após o bocado (μετὰ τὸ ψωμίον) que Satanás entra nele».
17
O. Munnich, Le rôle de la citation dans l’écriture d’Origène: étude des Homélies sur Jéremie,
in H. Pietras - S. Kaczmarek (eds.), Origeniana Decima. Origen as Writer, Leuven 2011, 507-538,
521: «A citação bíblica, longe de ser um material trazido para o texto origeniano, faz parte da sua própria
trama»; e 524: ela é «um modo de elaboração do seu próprio pensamento».
que estava à espreita do momento de entrar na sua alma e do homem que lhe daria a ocasião
de entrar em Judas, entrou em Judas»18.
É fundamentalmente porque Judas é indigno (ἀνάξιος)19 que o bem que ele acreditava
possuir lhe foi retirado. Na realidade, ele não mais o possui verdadeiramente. A citação
de Lc. 8, 18 fornece a Orígenes o verbo «tirar» (ἀφαιρεῖν) que é retomado três vezes ao
longo destes dois parágrafos. Essa citação permite-lhe também justificar a acção de Cristo
que poderia ser entendida como injusta, sublinhando que este bem retirado não lhe
pertence mais, uma vez que ele apenas crê possuí-lo. Qual é este bem? De novo Orígenes
se aventura a uma hipótese: trata-se talvez (τάχα) da paz20. Esta identificação, que se apoia
no Salmo 40, 10: «Até o homem da minha paz», permite-lhe descrever o fenómeno do
regresso do dom ao doador, por meio de uma outra citação: «Se houver lá um filho da
paz, a vossa paz repousará sobre ele; se não, a vossa paz voltará para vós» (Lc. 10, 6).
É preciso notar que Orígenes reescreve este versículo, introduzindo-lhe uma segunda
prótase: «Se não houver lá um filho da paz». Este acrescento não é anódino, porque se
trata do ponto nodal da sua exegese: visto que Judas não é um homem de paz, a paz de
Cristo não pode repousar sobre ele e volta (ὐποστρέφω, ἀνασκάμφει) ao seu ponto de
origem. Este versículo de Lc. 10, 6 já tinha sido citado mais acima, para mostrar que Judas
teve um dia (ποτε) uma fé autêntica, caso contrário ele não teria sido enviado em missão
com os outros Apóstolos, para espalhar a paz21. É também digno de nota que este
versículo tenha sido citado ao lado do Sl. 40, 10, como na nossa passagem.
O recurso ao Sl. 40, 10 parece ainda mais tópico, quando o Evangelho de João o cita
para descrever a traição de Judas (Jo. 13, 18). Mas Orígenes não dá somente a segunda
parte do versículo, ele cita também o princípio: «Até o homem da minha paz, em quem eu
depositava a minha esperança, ele que comia do meu pão, levantou contra mim o
calcanhar»22. Ora esta qualificação de Judas desempenha um papel maior em numerosas
passagens onde Orígenes sublinha, sem dúvida contra os gnósticos, que Judas não era
mau por natureza desde o início, mas que ele foi um amigo íntimo de Cristo 23. Esta
palavra profética tem por objectivo provar «aos que imaginam que Judas era por natureza
(φύσει) incapaz de salvação, que ele não era assim, e para explicar, ao mesmo tempo, que
a seguir à palavra do Senhor (isto é, «um de vós me entregará»), os discípulos olharam
uns para outros sem saberem de quem se falava»24. Com efeito, houve um tempo 25 em
que Judas era digno da confiança de Jesus 26, mas esse tempo acabou no momento do
bocado e ele não foi mais digno de receber este título: «homem de paz». Assim se explica
que esta paz lhe seja retirada e a citação de 2Cor. 8, 14 permite justificar como um bem
material, um bocado, pode ser trocado por um bem espiritual, a paz. A última citação, Ap.
21, 11: «Que o impuro continue a cometer mais ações impuras», já utilizada a propósito
do lava-pés, faz de certo modo eco da primeira, Lc. 8, 18: Judas que já é impuro vê-se
privado do que ele ainda julgava ter e já não tinha mais: a paz. Podemos ver, a partir da
complexidade desta rede, como a concomitância do bocado e da entrada de Satanás é
delicada, supondo ao mesmo tempo a responsabilidade de Judas, qualificado de indigno,
18
Com. Jo. XXXII 282-285.
19
Com. Jo. XXXII 282: ἀνάξου; 283: ἀνάξιος; 285: ἀνάξιου, μὴ ἀξίῳ.
20
Com. Jo. XXXII 284.
21
Com. Jo. XXXII 159.
22
Com. Jo. XXXII 157.
23
Orígenes realça, de facto, tudo o que Judas fez de bem na sua vida. Ver S.L. Auchli, Origen’s
Interpretation, cit. 254 ss.
24
Com. Jo. XXXII 246.
25
Com. Jo. XXXII 159.162.249.
26
Com. Jo. XXXII 161.
mesmo que o não tenha sido sempre, e uma intervenção de Jesus que não é estranha a esta
entrada, visto que «uma vez retirada a paz, aquele que estava à espreita entrou em
Judas»27.
2. O bocado molhado.
a) A perda do «molho».
A segunda questão é sobre o significado do bocado molhado. «Podemos
perguntar-nos por que razão (ζητήσαι διὰ τί) não foi escrito: “É aquele a quem eu vou dar
um bocado”, mas por que razão se acrescentou (μετὰ προσθήκης): “Eu o molharei”»28.
Aqui a precisão do molhar o bocado recebe uma dupla interpretação. A primeira está em
continuidade com a exegese do dom. «O bocado é molhado para aquele que seria capaz
de remover (ἀποσπάσαι) da sua alma o molho (βαφήν), que até um certo ponto tinha
recebido do Logos, de maneira que, logo após o bocado, Satanás entrou nele» 29. A
responsabilidade de Judas é nitidamente afirmada: foi precisamente ele que removeu da
sua alma a sua imersão no Logos, permitindo assim a entrada de Satanás, do qual ele não
é apenas um joguete passivo. O papel de Jesus é quanto a si muito eficaz. O facto de
molhar aparece somente como um sinal inverso da perda de molho, como ilustrativo e de
maneira nenhuma causativo. Segundo Volker Drecoll, Orígenes apresenta este gesto de
maneira dialética: Jesus molha o bocado, o que simboliza a imersão dos apóstolos no
ensinamento do Logos e, de seguida, dá-o a Judas, que se desfaz desta imersão, perdendo
ao mesmo tempo a condição de apóstolo 30. É preciso notar que não encontramos em
Orígenes nenhuma ideia de uma anulação da eficácia do bocado no meio deste gesto,
como se poderá encontrar em Efrém.
b) O descaramento de Judas.
A esta primeira explicação, Orígenes acrescenta uma segunda que ele apresenta
como uma conjectura pessoal (ἐγὼ στοχάζομαι). Consciente do carácter perigoso das suas
explicações, ele encerra-as reconhecendo que elas «serão taxadas pelos seus ouvintes de
investigações supérfluas»31, mas se ele ousou (ἐτολμήσαμεν) apresentá-las, é porque ele
prefere «analisar tudo (πάντα βασανίζειν), em vez de deixar uma parte do texto sem
análise». Este luxo de precauções oratórias acompanha a ligação entre o bocado do
Evangelho de João e os paralelos sinópticos, que Orígenes qualifica de aparentados
(συγγενές), mas ele tem bem consciência da sua difícil harmonização. Os sinópticos
empregam o verbo “molhar” (βάπτω) a propósito de Judas que mergulha a sua mão no
prato ao mesmo tempo que Jesus, mas não se fala ali da dádiva de um bocado feita por
Jesus32. A interpretação é então mais psicológica: tendo o atrevimento de se servir ao
mesmo tempo que Jesus, em vez de lhe dar precedência, Judas faz figura de
desavergonhado (ἀναιδές). Este tema terá uma grande posteridade.
27
Com. Jo. XXXII 285.
28
Com. Jo. XXXII 288.
29
Com. Jo. XXXII 289.
30
V. Drecoli, Giuda Iscariota, cit., 566.
31
Com. Jo. XXXII 294.
32
Orígenes especifica, no entanto, que Mt. 26, 33 e Mc. 14, 20 empregam o verbo βάπτω, ao passo
que Lc. 22, 21 não emprega este verbo, mas fala da «mão que está à mesa comigo».
3. Terá Judas comido o bocado?
a) Bocado e Eucaristia.
A terceira questão surge de maneira análoga. Trata-se de procurar saber «por que
razão, a seguir ao “logo após ter tomado o bocado”, não se acrescentou (οὐ πρόςκειται)
“e tendo-o comido”»33. Convém, em primeiro lugar, assinalar que este bocado é
claramente identificado por Orígenes com a Eucaristia, coisa que se encontrará entre os
seus sucessores gregos, João Crisóstomo ou Cirilo de Alexandria, mas que será rejeitado
categoricamente por Agostinho. Em função desta identificação, Orígenes é, portanto, o
primeiro a colocar a questão de saber se Judas comungou ou não a Eucaristia, e colocou
uma dúvida a este propósito34.
Dois indícios permitem afirmar que o bocado é realmente a Eucaristia. Em
primeiro lugar, Orígenes faz alusão à 1Cor. 11, 27-29: «Aquele que come o pão do Senhor
e bebe o cálice indignamente (ἀναξίως) come e bebe a própria condenação», para
explicar que os efeitos da Eucaristia, melhoria ou agravamento, dependem das
disposições boas ou más daquele que a recebe35. Orígenes inaugura com esta citação uma
tradição que será continuamente retomada, para tratar da comunhão de Judas. Além disso,
o emprego por Paulo do advérbio ἀναξίως «indignamente» corresponde à acusação que
Orígenes precedentemente formulou contra Judas, justificando assim a razão por que
Jesus lhe retira a paz anteriormente partilhada. Orígenes, em seguida, dá-se ao trabalho
de especificar que Judas recebeu a mesma coisa que os outros Apóstolos. «O bocado que
Jesus deu a Judas era da mesma natureza (ὀμογενές) que o que ele deu aos outros
Apóstolos, dizendo-lhes: “Tomai e comei” (Mt. 26, 26), o que para eles foi em vista da
sua salvação, ao passo que para Judas, foi em vista da sua condenação, de tal maneira
que, logo após o bocado, Satanás entrou nele»36. Não há nenhuma distinção de alimento
ou de momentos diferentes, contrariamente ao que se encontrará entre os seus posteriores,
em particular Agostinho. É verdade que, para Orígenes, o pão do Senhor não está limitado
à Eucaristia, visto que esta interpretação é a dos simples (ἀπλουστέροις), ao passo que
para os mais avançados este pão é o ensinamento do Logos da verdade37. No entanto, nós
não nos debruçaremos sobre esta questão que já foi objecto de muitos estudos38. Importa
sobretudo constatar que o bocado de Judas é claramente identificado com aquilo que os
outros Apóstolos receberam na última Ceia.
33
Com. Jo. XXXII 303.
34
Contrariamente ao que diz A. Mazzola, Note sul comento agostiniano a Jo. 13, 26-27: la
ducella e il traditore svelato, VetChr 25 (1988) 557-565, que considera que Orígenes se exprime em favor
da comunhão de Judas, diferentemente da exegese moderna.
35
Com. Jo. XXXII 309.
36
Idib.
37
Com. Jo. 310.
38
A. Le Boulluec, L’accueil du corps du Seigneur et les conditions requises selon Origène,
in N. Beriou - B. Caseau - D. Rigaux (eds) Pratiques de l’eucharistie dans les Églises d’Orient et
d’Occident (Antiquité et Moyen Âge), Paris 2009, I, 359-370, em particular, 363.
39
Com. Jo. XXXII 23.
participado nesta refeição, ele não tirou nenhum proveito dela. No seu Comentário sobre
Mateus, Orígenes aborda a questão mais geral da eficácia da comunhão: «Se se trata do
pão do Senhor, qualquer um faz uso dele a título de vantagem (ἡ ὠφέλαι), quando, sem
ter o seu espírito esteja conspurcado e tendo uma consciência pura, leva a sua parte deste
pão. Assim, (...) não é pelo facto de nós o termos comido que nós temos um bem
acrescentado (περισσεύομεν) (cf. 1Cor. 8, 8)»40. Ele critica, por isso, o comportamento
dos simplórios, que crêem num efeito automático da comunhão, sem se darem conta da
importância das disposições interiores. Da mesma maneira, no Comentário sobre João, é
a comparação médica que ilustra os efeitos ambivalentes do pão do Logos, alimento para
os saudáveis e ocasião de agravo para os doentes, imagem que se voltará a encontrar em
João Crisóstomo41. Esta interpretação, fundada em 1Cor. 11, 27-29 e ilustrada pela
comparação com a saúde corporal, tem, pois, por objectivo refutar uma possível objecção
a propósito da eficácia da Eucaristia no caso de Judas. Uma vez mais aqui trata-se de uma
hipótese proposta como não desprovida de verossemelhança (οὐκ ἀπιθάνος)42, mas ela
foi primeiro precedida, na ordem da exposição, da hipótese inversa. «Será que, logo após
o bocado, Judas não o teria comido?»43.
40
Com. Mt. XI 14, 97 (SC 162, 345 [tradução ligeiramente modificada]).
41
João Crisóstomo, Homilia sobre a traição de Judas 1, 6 (PG 49, 381): «O sacrifício é um
alimento espiritual e, da mesma forma que o alimento corporal, quando penetra num estômago cheio de
humores doentios, aumenta a doença, não em razão da sua própria natureza, mas por causa da má disposição
do estômago, assim também acontece geralmente com os mistérios espirituais: quando penetram num alma
cheia de malícia, corrompem-na e enfraquecem-na ainda mais, não em razão da sua própria natureza, mas
pelo efeito da enfermidade da alma que a recebe».
42
Com. Jo. XXXII 309.
43
Com. Jo. 305.
44
Com. Jo. XXXII 304.
45
Com. Jo. 306-307. O adjectivo ὠφελητικός parece ser um hápax em Orígenes.
46
L. Perrone, Il profilo letterario del Commento a Giovanni: operazione esegetica e
construzione del texto in E. Prinzivalli (ed.), Il Commento a Giovanni di Orígene, Villa Verrucchio
2005, 81: «No decurso do trigésimo segundo livro, os apelos ao leitor tendem a nunca mais acabar, como
se o autor contasse já com um “acompanhamento” da sua obra por parte de um público tornado maduro e
receptivo».
introduz a alternativa, propondo «uma abordagem em todos os sentidos dos problemas
que se colocam a propósito desta passagem, deixando o leitor julgar qual das suas
interpretações é preciso admitir (κρινοῦντος τοῦ ἐντευξομένου ὁπότερα χρὴ
παραδέξασθαι)»47 e conclui assim: «Nós debatemos a questão nos dois sentidos: que se
diga que, logo após ter recebido o bocado, ele o comeu, ou então que ele foi impedido de
o comer, pela entrada de Satanás nele»48.
Embora os sucessores de Orígenes não tenham retomado o papel preventivo de
Satanás, a questão de saber se Judas comungou ou não, permanecerá um debate sobre o
qual as opiniões serão partilhadas. Vejamos as razões que conduziram os autores antigos
e medievais a responder negativamente ou positivamente.
1. Autores antigos.
a) Hilário de Poitiers.
Entre os Padres, o primeiro a defender esta tese foi Hilário de Poitiers e o seu
testemunho constituirá para os medievais uma referência obrigatória, seja para aprová-lo,
seja para refutá-lo. No seu Comentário sobre Mateus, ele sem mais discussão afasta Judas
da Ceia, pelo motivo de não ser digno.
«Depois disto, Judas é apresentado como um traidor (cf. Mt. 26, 15 - 16.21.24), sem o qual
a Páscoa se cumpriu pela recepção do cálice e pela fracção do pão (cf. Mt. 26, 26-28), visto
que ele não merecera comungar dos mistérios eternos (dignus enim aeternorum
sacramentorum communione non fuerat). Deduzimos que ele se esquivou imediatamente,
pelo facto de ele ser apresentado como regressando com uma multidão de pessoas (cf. Mt.
26, 47). E era absolutamente impossível que ele bebesse com o Senhor, ele que não devia
beber com Ele no Reino, porque o Senhor tinha prometido aos que bebessem neste mundo
deste fruto da videira, que eles o beberiam todos (universos) com Ele mais tarde (cf. Mt. 26,
29)»50.
47
Com. Jo. XXXII 305. Ver também Com. Jo. XXXIII 191: «Eu digo isto em consonância com o
que estava de acordo com a interpretação, segundo a qual isto seria um espírito santo que teria profetizado
por meio de Caifás, sem demonstrar de maneira nenhuma que isso é assim, e deixando aos leitores o cuidado
de julgar o que é preciso admitir (καταλιπῶν καὶ τοῖς ἐντυγχάνουσιν κρρύνειν ὁπότερον χρὴ παραδέξασθαι)
a propósito de Caifás, que teria sido tratado de maneira irrisória pelo Espírito»; XXXII 268: «Visto que nós
não devemos fartar-nos de investigar e de deixar ao julgamento do leitor (εἰς κρίσιν παραδοῦνναι τῷ
ἐντευξομένῳ) o que nos vem ao espírito»; Fr. Jo. 76, 20: κρῖνον ὁπότερον χρὴ αὐτῶν παραδέξασθαι.
48
Com. Jo. XXXII 312.
49
A exegese moderna retomou estas questões da harmonização dos relatos e da distinção dos dois
alimentos. Ver K. Hein, Judas Iscariot: Key to the Last-Supper Narratives, NTS 17 (1970-1971) 227-232.
50
Hilário de Poitiers, Comentário sobre Mateus 30, 2 (J. Doignon, SC 258 [1979], 223: Post
quae Iudas proditor indicatur, sine quo pascha accepto calice et fracto pane, conficitur; dignus enim
æternorum sacramentorum communione non fuerat. Nam discessisse statim hinc intellegitur, quod cum
turbis reversus ostenditur. Neque sane bibere cum Domino poterat, qui non erat bibiturus in regno, cum
universos tunc bibentes ex vitis istius fructu bibituros se cum postea polliceretur. Esta passagem é citada
por Tomás de Aquino na Catena aurea in Matheum, cap. 26, lectio 7, 1. 134, p. 384, 1. 122: Hilarius in
Math. Vel sine Iuda, Pascha, accepto calice et fracto pane, conficitur: dignus enim aeternorum
sacramentorum non fuerat. Discessisse autem eum hinc intellegitur quod cum turbis reversus ostenditur.
Duas provas escriturísticas são propostas: por um lado, o facto de Judas regressar
com uma multidão, o que faz supor um certo lapso de tempo entre a sua saída e o seu
regresso; por outro lado, e sobretudo, a promessa escatológica, segundo a qual todos os
que bebem do seu cálice, beberão com Cristo no reino. A essência do argumento recai no
emprego de universos (todos), que não está, no entanto, no texto de Mateus51.
Não convinha que aquele, por quem aconteceu o assassinato de Cristo, participasse
da comunhão, o que constitui um argumento disciplinar para excluir dela os que são
indignos. Vemos que a opção exegética tem consequências na prática sacramental e, daí
para frente, a invocação do precedente de Judas a favor ou contra a aceitação dos
pecadores à mesa eucarística será constantemente retomada. Encontramos nas
Constituições Apostólicas a mesma cronologia que supõe que a dádiva do bocado
precedeu a Eucaristia, na qual Judas não participou.
«Então na quinta-feira nós comemos a Páscoa em sua casa; depois de Judas ter molhado a
mão no prato (Mt. 26, 23), recebido o bocado e mandado sair de noite (Jo. 13, 30), o Senhor
diz-nos: “Chegou a hora em que vós sereis dispersos e me deixareis só” (Jo. 16, 32). Mas
cada um garantia com intensidade que não o abandonaria, e eu, Pedro, prometia morrer com
Ele (Mt. 26, 33; Jo. 13, 37). (...) 7. Depois Ele entregou-nos os mistérios, figuras do seu
precioso corpo e do seu sangue precioso (Mt. 26, 34), sem que Judas estivesse connosco»53.
O autor insiste na ausência de Judas aquando da transmissão dos mistérios, sem que
para isso dê uma razão teológica, sendo a única prova o facto de ter saído antes. Toda a
demonstração recai na reconstrução da cronologia harmonizada dos diferentes relatos
51
Não há variante no aparato crítico do Novo Testamento de Nestle-Aland, nem no Itala (Das
neue Testament in altlateinischer Uberlieferung, ed. A. Julicher, Berolini 1938). Este argumento será
discutido por Tomás de Aquino. Depois de ter citado esta passagem hilariana na Catena aurea, cap. 26,
lectio 8, 1. 177, p. 386, 1. 96, ele menciona a Glosa que defende que Judas recebeu o sacramento de Cristo,
porque Jesus disse «convosco», o que se refere a muitos dentre eles, mas não a todos.
52
Apolinário, Fragmentum in Matheum (J. Reuss, Matthaus-Kommentare aus der Griechischen
Kirche: aus Katenenhandschriften, Berlim 1957, 133, 1, 46 [Mt. 26, 26]; trad. MOB): Ὅτι προεξῆλθεν
Ἰούδας, Ἰωάννης ἐδήλωσεν· οὐ γὰρ ἂν ἐδέξατο τῆς σωτηρίου κοινωνίας τύπον ὁ τῆς χριστοκτονίας
ὑπηρέτης· καίτοι τὰ ἄλλα πάντα ἤνεγκεν αὐτὸν ὁ κύριος, ἀλλὰ τοῦτο οὐκέτι συνεχωρεῖτο. καὶ ἡμῖν ὁ τύπος
εἰς τὸ τῆς ἁγίας κοινωνίας ἀπείργειν τοὺς πονηρούς, εἰ καὶ εἰς τὰ ἄλλα πάντα δι᾿ ἀνεξικακίας φέρομεν
αὐτούς. Esta passagem é utilizada por Pedro de Laodiceia (século X), sem que ele o diga, no seu Comentário
sobre os evangelhos (PG 86, 2, 3328C), que é de facto um pseudo-comentário elaborado a partir de citações
dos Padres que ele não nomeia. À maneira de cadeias, ele justapõe teses opostas, visto que esta passagem
vem a seguir, sem transição, a um resumo das ideias de João Crisóstomo, que defendem, ao contrário, que
Judas participou da Eucaristia. A passagem de Apolinário é também parcialmente retomada na Catena in
Marcum, ed. Cramer 1, 422, 18-22, ch. 86: Profecia sobre a traição.
53
Constituições Apostólicas V 14, 6-7 (SC 329, 251).
evangélicos54. Estes dois textos introduzem, portanto, uma distinção entre o bocado e a
Eucaristia, como em Agostinho, que defende, no entanto a cronologia inversa.
c) Efrém de Nísibe.
Uma terceira maneira de rejeitar a participação real de Judas na Eucaristia é
proposta por Efrém de Nísibe, que identifica, no entanto, o bocado com a Eucaristia.
Como Hilário, Efrém invoca a indignidade de Judas, mas é o facto de o bocado ter sido
molhado na água que anulou o seu efeito salutar. No seu Comentário do Diatessaron,
Efrém propõe duas interpretações da humidificação do bocado, seja a participação de
Judas na morte de Cristo, seja, o que parece ter a sua preferência, a anulação da bênção
consecratória. «O Senhor, por meio da água, separou Judas dos apóstolos, quando molhou
o pão na água e lho deu, porque Judas não era digno do pão que foi dado aos Doze com
o vinho. Não era permitido que recebesse o pão que salva da morte quem ia entregá-lo à
morte»55. Houve na verdade uma inconveniência teológica em Judas receber o pão
salutar, ele que ia entregar Cristo à morte, e o molhar do pão tem um valor execratório 56.
É de notar que nós encontramos esta exposição no seu comentário do Diatessaron, que é
precisamente uma obra que tende a harmonizar os quatro evangelhos. Ora, segundo o
comentário de Efrém sobre o Diatessaron, a designação do traidor por meio do pão
molhado precede a instituição da Eucaristia, seguindo a ordem de Mateus e Marcos, e não
a ordem de Lucas. Ao mesmo tempo, segundo Victor de Cápua, que fez transcrever e fez
a revisão de uma tradução latina do Diatessaron, em 54657, a saída de Judas precede a
consagração do pão e do vinho 58. Medievais, como Gilberto de Nogent, citarão o
testemunho de Victor de Cápua, como apoio para a tese segundo a qual Judas não
participou da Eucaristia.
De maneira mais nítida ainda, nos seus Hinos sobre os Ázimos, Efrém declara que,
molhando o pão, Jesus deu «um pão doravante desprovido / do remédio da vida», «este
pão assim desprovido de toda a bênção, / o maldito recebeu-o, / como uma serpente»59.
«Ele privou o ázimo / deste remédio de vida, / e deu-o a Judas / como um veneno
mortal»60. Judas não recebeu, portanto, o remédio da salvação, porque o pão foi privado
do seu carácter benéfico, devido ao gesto de intinção feito por Jesus.
Esta interpretação terá uma posteridade no mundo siríaco, como o mostra D. Cerbelaud,
que menciona, entre outras, uma homilia monofisita da segunda metade do século IV.
Judas, desapontado por ter recebido um pão que tinha perdido a sua consagração, absteve-
se, a seguir, de comungar do cálice do sangue 61. Sem que possamos necessariamente ver
54
Ver também Afrates, o sábio persa, Exposições 12, 6 (SC 359, 575): «Na verdade, Ele realizou
o sinal da Páscoa para os seus discípulos. Depois que Judas saiu de junto deles, Ele tomou o pão, abençoou-
o e deu-o aos seus discípulos, dizendo-lhes: “É o meu corpo, tomai e comei”».
55
Efrém, Comentário do Evangelho concordante ou Diatessaron 19, 3 (SC 121, 332-333).
56
D. Cerbelaud, ‘Et trempant la bouchée (Jn 13, 26): une curieuse exégèse des Pères syriens,
Muséon 110 (1997) 73-80. É preciso, no entanto, corrigir a nota 11, p. 79, onde o autor assinala Orígenes
entre os que dizem que Judas participou na Eucaristia, sem notar que Orígenes coloca também a hipótese
inversa.
57
F. Bolgiani, Vittore di Capua e il Diatessaron, Turim 1962. W.I. Petersen, Le
Diatessaron de Tatien in G. Aragione – É. Junod – E. Norelli (eds.), Le canon du Nouveau
Testament,
Geneve 2005, 86-116.
58
Victor de Cápua, Evangelistarum harmoniarum interpretativo 155 e 156 (PL 68, 340A-B).
59
Efrém, Hinos sobre os Ázimos 14, 15-17 (trad. D. Cerbelaud, Célébrons la Pâque- Hymnes
sur les Azymes, sur la crucifixion, sur la Résurrection, Paris 1995, 69).
60
Efrém, Hinos sobre os Ázimos 18, 16 (trad. D. Cerbelaud, Célébrons la Pâques, cit., 89.
61
Hebd. sanct. 4, 172-191 (CSCO 412 Sr 181), 31 (trad. D. Cerbelaud, ‘Et trempant la
buchée’, cit., 78).
aí um eco desta exegese, encontramos na iconografia um exemplo semelhante de
distinção da comunhão de Judas no pão e no vinho. Na igreja da transfiguração do
Salvador, em Paleochorio (Chipre), um fresco do século XVI representa a comunhão dos
apóstolos; de maneira rara, todos os apóstolos são representados comungando à esquerda
o corpo e à direita o sangue, quando habitualmente há seis de cada lado. Ora, na extrema
esquerda, Judas cospe o bocado nas suas mãos, retirando-se, e simetricamente à direita
Cristo só dá a beber o cálice a onze apóstolos, Judas não está mais lá 62.
2. Autores medievais.
a) Ruperto de Deutz (1075-1129).
No seu Comentário sobre Mateus, Ruperto de Deutz apresenta uma muito longa
análise, na qual ele cita as posições opostas de Hilário, para quem Judas não comungou,
e de Agostinho, para quem Judas participou na Eucaristia 63. Para resolver este debate, ele
estabelece que o critério deve vir da Escritura e, antes de tudo, da harmonia dos relatos
evangélicos. Ora, segundo Ruperto, Agostinho só se apoia em Lucas, que parece falar da
traição depois da instituição da Eucaristia. Esta ordem permite situar a dádiva do bocado
joânico, identificado com o anúncio da traição lucana, depois da consagração do pão e do
vinho, de maneira que a saída de Judas é posterior à sua comunhão. Ora, para Ruperto a
ordem verdadeira está no inverso, como são disso testemunha os primeiros dois
sinópticos.
Resta saber por que é que Lucas inverteu as duas etapas da narrativa. A explicação
assenta na sexta regra de Tyconius, denominada «recapitulação», segundo a qual a Bíblia
conta mais tarde um acontecimento que passou em silêncio, para dar um complemento ao
relato64. Se Lucas procedeu desta maneira, foi para mostrar a continuidade entre a ceia
pascal antiga, que tinha valor figurativo, e a instituição eucarística, antes de chegar às
palavras de Jesus que anunciam a traição e pronunciadas aquando da primeira refeição 65.
Mesmo que Ruperto saiba que «a maior parte e quase todos (plerique et fere omnes) sigam
a ideia de Santo Agostinho, mais do que a de Hilário 66, ele prefere aderir à de Hilário.
Vemos no fim desta longa exegese que a vantagem pastoral é determinar se se pode
recusar a comunhão aos que são indignos. Os que consideram que não se deve recusar
este sacramento a ninguém (a menos que não esteja abertamente condenado por um
crime) fazem valer como argumento principal o facto de o Senhor não ter excluído Judas,
que não era ainda publicamente reconhecido como traidor. Mas, segundo Ruperto, este
argumento não cola, porque Jesus tinha apontado claramente o traidor, respondendo à
questão de João. O precedente de Judas não pode, portanto, ser utilizado, mas não deixa
de ser verdade que não é preciso recusar a comunhão a ninguém, desde que não seja um
pecador público67. No seu Comentário sobre João, Ruperto declara igualmente que ele
não tem «nenhuma dúvida de que Judas não estava presente entre os discípulos, no
62
A. Stylianou - J.A. Stylianou, The painted Churches of Cyprus. Treasures of Byzantine
Art, Nicosie 19972, 284 fig. 169.
63
Ruperto de Deutz, De gloria et honore filii hominis super Matheum (CC CM 29), 10, 313.
64
Ruperto de Deutz, De gloria et honore filii hominis super Matheum 10, 314, 586-315, 619. Sobre
esta regra, ver Agostinho, De doctrina christiana III 36, 52 (BA 11/2, 311): «Alguns factos são reportados
como se eles fossem posteriores na sequência do tempo, ou recontados segundo uma sucessão contínua de
acontecimentos, quando o relato remete, sem que o pareça, para acontecimentos anteriores que tinham sido
omitidos». M. Dulaey, La sixiéme régle de Tyconius et son résumé dans le De doctrina christiana, in
REAug 35 (1989) 83-103.
65
De gloria, cit., 10,315, 619-316,649.
66
De gloria, cit., 10,316,650.
67
De gloria, cit., 10,317,697-700.
momento preciso em que o Senhor lhes distribuiu o sacramento do seu corpo e do seu
sangue»68. O pão molhado não era o corpo de Cristo, porque o sacramento foi transmitido
aos discípulos não antes da ceia da antiga Páscoa, mas sim depois da ceia. Ele conclui,
exortando a Igreja à tolerância para com os maus. Ela deve esperar que o grão seja
separado da palha através da joeira do julgamento, mas a paciência não deve, no entanto,
ser indistinta, ao ponto de transmitir os mistérios sagrados de Cristo aos indignos
notoriamente reconhecidos.
b) Teodoro de Andida.
Dentro de um outro contexto polémico, Teodoro de Andida, que reviu o
comentário sobre a liturgia do seu predecessor Nicolau de Andida (1054-1067), coloca a
questão da participação de Judas, a partir de um outro problema textual. Como explicar
que Cristo, quando apresenta o pão, declare «tomai e comei», omitindo (ἔλλειψις) o
«todos», ao passo que para o cálice ele acrescenta «bebei todos dele» 69? Cristo, que
conhecia tudo antecipadamente, sabia que Judas, tomando o pão, o iria esconder e mostrar
aos judeus, entregando assim o mistério à chacota (ἐξεπόμπευσε), ao passo que para o
sangue divino, visto que todos o receberam a partir de um único cálice, o astuto não podia
escondê-lo e dele participou à semelhança dos outros. Aqui encontramo-nos num
contexto de polémica anti-judaica, onde a questão já não é saber se Judas é digno ou não
de participar da Eucaristia, mas onde o crime da traição de Judas se duplica com um crime
de profanação da Eucaristia.
1. Autores antigos.
a) Padres gregos: João Crisóstomo, Cirilo de Jerusalém e Cirilo de Alexandria.
A tese segundo a qual Judas não participou na Eucaristia é, no entanto, defendida por
uma minoria, como o afirmou justamente Ruperto de Deustz, e nós precisamos de ver
agora a argumentação inversa, começando por João Crisóstomo, que parece, em
determinados pontos, opor-se a Orígenes. João Crisóstomo aborda muitas vezes esta
questão em três das suas obras: as suas Homilias sobre Mateus, sobre João e sobre a
traição de Judas70. De maneira insistente ele afirma que Judas realmente «participou nos
mistérios»71, o que contrasta com a alternativa deixada em aberto por Orígenes. Além
disso, nas suas Homilias sobre a traição de Judas72, ele sublinha de maneira simétrica a
presença de Judas ao mesmo tempo no lava-pés e na Ceia.
«Judas estava presente e tinha participado na mesa sagrada (μετεῖχε τῆς ἱερᾶς τραπέζης). Tal
como (Jesus) lhe tinha lavado os pés, da mesma forma que aos outros discípulos, também
68
Ruperto, Commentaria in evangelium Iohannis 11 (CChr.CM 9), 616 (trad. MOB)
69
Teodoro de Andida, Commentatio Liturgica 25 (PG 140, 449BC).
70
G. Sekulovski, Jean Chrysostome sur la communion de Judas, StPatr 67 (2013) 311-321.
71
João Crisóstomo, Homilia sobre Mateus 81, 1 (PG 58,731,24): κοινωνήσων καὶ μυστηρίων;
82,1 (PG 58, 737,37): τῶν μυστηρίων μετέχων. Ele será seguido por Teodoreto de Ciro, Interpretatio in I
Epistulam ad Corinthios 11, 25 (PG 82, 316,55-56 [trad. MOB]): «Ele abriu as portas do mistério e não
somente aos onze apóstolos, pois também o traidor participou do precioso corpo e sangue (οὐ μόνον τοῖς
ἔνδεκα ἀποστόλοις, ἀλλὰ καὶ τῷ προδότῃ τοῦ τιμίου μετέδωκε σώματός τε καὶ αἵματος)».
72
As duas homilias sobre a traição de Judas são muito semelhantes, a ponto de podermos crer que
se trata de duas versões de um mesmo discurso, mas elas apresentam algumas diferenças não despiciendas,
refletindo duas pregações distintas, segundo J. Marsaux (Jean Chrysostome, L’eucharistie, école de
vie, Paris 2009, 97).
ele participou na mesa sagrada, para que não tivesse nenhuma desculpa, se ele perseverasse
(ἐπιμείνῃ) na sua maldade. (...) Mas ele perseverou (ἔμεινε), mantendo a sua decisão
perversa»73.
73
João Crisóstomo, Homilia sobre a traição de Judas I, 5 (PG 49, 380, 14-25). Ver a passagem
paralela na Homilia sobre a traição de Judas II, 5 (PG 49, 389, 32-42). Este desenvolvimento será retomado
de maneira muito próxima por Barsanufio e João de Gaza, Correspondência II, carta 464 (SC 451, 561-
563). À questão de saber como é que Jesus pôde permitir a Judas participar da Ceia, quando o homem
indigno deve ser excluído, João responde que foi para mostrar o seu amor aos homens que Jesus «lavou os
pés de Judas e o fez participar dos mistérios, a fim de que lhe retirar toda a desculpa a ele e aos que sempre
dizem: “Se ele o tivesse deixado usufruir dos seus mistérios, Judas não se teria perdido”». No entanto, Judas
condenou-se a si mesmo. O mesmo acontece aos pecadores. Não é preciso expulsá-los à força da Igreja,
uma vez que Jesus não o fez com Judas, mas é preciso preveni-los de que eles se condenam, ao recusarem
fazer penitência.
74
João Crisóstomo, Homilia 82, 1 sobre Mateus (PG 58, 737, 36-46). É espantoso que João
Crisóstomo remeta para Lucas a entrada de Satanás «depois disto», visto que em Lucas (22, 3) a entrada de
Satanás em Judas teve lugar precisamente antes da Ceia, e nós esperaríamos que remetesse antes para Jo.
13, 27, onde é precisamente depois do bocado que Satanás entra. Para confirmar que teria aí havido um
erro no nome do evangelista, podemos comparar esta passagem com a 1ª Homilia sobre João 72 (PG 59,
391), que está muito próxima no vocabulário (γελάσας ἀναισχυντίας) e onde se trata da entrada de Satanás
depois do bocado em Jo. 13, 27.
75
Teofilacto da Bulgária, Enarratio in evangelium Mathaei 26, 26 (PL 123, 414), sublinha, tal
como Crisóstomo, que a participação de Judas na mesa eucarística prova a sua «inumanidade
(ἀπανθρωπία)», na medida em que, depois de ter provado do corpo, ele não se arrependeu. Mas ele evoca,
em seguia, a tese de «alguns (τινές)», segundo a qual Judas tinha saído, quando os outros apóstolos
participaram nos mistérios, o que nos deve servir de modelo para excluir os iníquos da Eucaristia. Trata-se
da posição defendida por Apolinário de Laodiceia.
(melhor) disposição»76. Os τινές poderiam muito bem remeter para Orígenes, que
comenta assim este gesto com formulações, das quais Crisóstomo parece fazer eco.
«Por minha parte, suponho que aqui se manifesta também o descaramento (τὸ ἀναιδές) de
Judas, que partilhava a refeição com o Mestre, sem lhe dar a precedência da honra (μὴ
τιμῶντος τὸν διδάσκαλον), e que não se humilhava diante dele, como faziam os outros, no
momento de molhar o seu bocado no prato. Foi por isso que nenhum dentre eles molhou a
mão no prato ao mesmo tempo que Jesus; Judas, porém, não se dignando molhar ao mesmo
tempo que eles, molhou ao mesmo tempo que Jesus (μετ᾿αὐτοῦ ἐνέβαπτε)»77.
Por outro lado, Crisóstomo segue Orígenes em dois pontos. Mostra que Satanás
entrou progressivamente em Judas: primeiro, sondou-o («διακωδωνίσας») e, quando o
viu preparado para o acolher, pôde sujeitá-lo totalmente78. Como Orígenes, Crisóstomo
utiliza a comparação com o alimento que agrava a doença de um corpo já cheio de
humores doentios, para explicar que a Eucaristia enfraquece ainda mais uma alma já cheia
de malícia. O que provoca uma certa corrupção não é a natureza própria da Eucaristia
(«οὐ παρὰ τὴν οἰκείαν φύσιν»), mas o estado de fraqueza da alma que a recebe 79. Judas é
assim apresentado como um contra-modelo e Crisóstomo incita os seus fiéis a
interrogarem-se sobre as suas disposições, quando participam na Eucaristia.
«Que ninguém seja hipócrita, ninguém seja cheio de malícia, ninguém esteja com veneno no
pensamento, a fim de não tomar parte (nos mistérios) para sua condenação. Foi, com efeito,
nessa ocasião, depois da oferenda eucarística (προσφοράν) que o diabo se precipitou para
Judas, não por desprezo para com o corpo do Mestre (οὐ τοῦ σώματος καταφρονήσας τοῦ
δεσποτικοῦ), mas por desprezo para com Judas, por causa do seu descaramento
(ἀναισχυντίαν)80, a fim de que tu aprendas que sobretudo os que participam indignamente
nos mistérios divinos, são muitas vezes assaltados e invadidos pelo diabo, como aconteceu
então com Judas. É que as honras aproveitam àqueles que são dignos delas, ao passo que
provocam uma punição maior nos que usufruem delas indignamente. Falando-vos desta
maneira, eu não quero de modo algum amedrontar-vos, mas somente fortificar-vos. Que
ninguém seja Judas, nem avance envenenado pela malícia»81.
76
João Crisóstomo, Homilia 81, 1 sobre Mateus (PG 58, 732,4-8).
77
Orígenes, Com. Jo. XXXII 291-292.
78
João Crisóstomo, Homilia 81, 3 sobre Mateus (PG 58, 733,46-58).
79
João Crisóstomo, Homilia sobre a traição de Judas 1, 6 (PG 49, 300,60-381,5).
80
Ver também Homilia 82, 1 sobre Mateus: οὐ τοῦ σώματος καταφρονῶν τοῦ δεσποτικοῦ, ἀλλὰ
τῆς ἀναισχυντίας καταγελῶν τοῦ προδότου λοιπόν.
81
João Crisóstomo, Homilia sobre a traição de Judas 1, 6 (PG 49, 380,47-60).
82
Cirilo de Jerusalém, Catequeses baptismais XIII 6,12-17 (trad. MOB).
Por sua vez, Cirilo de Alexandria sublinha esta permuta ingrata entre os dons
recebidos por Judas e o seu acto de traição. Como Orígenes, ele recorre ao Salmo 54, 14-
15: «Mas tu, um homem com os mesmos sentimentos que eu, meu guia e meu íntimo (σὺ
δέ, ἄνθρωπε ἰσόψυχε, ἡγεμών μου καὶ γνωστέ μου), tu que saboreavas os pratos ao
mesmo tempo que eu»83. Aplicando este versículo a Judas, Cirilo insiste, na senda de
Orígenes, no facto de Judas ter sido outrora um íntimo do Senhor e que, apesar desta
proximidade, «ele mudou (ἠλλάξατο), por causa de lucros vergonhosos, a graça daquele
que lhe tinha demonstrado esta solicitude»84. Ora, entre estes benefícios, encontram-se o
lava-pés85 e o dom da eulógia, que Cirilo identifica claramente com o bocado e na qual
Judas participou claramente86. Dois aspectos da questão preocupam Cirilo: explicar a
concomitância entre o bocado e a entrada de Satanás, e justificar a ineficácia da eulógia.
Para começar, ele quer descartar a ideia de que o bocado tenha causado a entrada de
Satanás. «É que nós não chegamos a esse estado de loucura, nem estaremos privados do
senso comum, ao ponto de supor que a eulógia deu ao Maligno a ocasião de entrar»87.
Cirilo prossegue de uma maneira próxima de Orígenes e de João Crisóstomo, revelando
que, apesar do amor de que Judas foi objecto, este não mudou o seu coração, e que Satanás
utilizou a sua técnica habitual de cerco, contentando-se em sussurrar ao princípio, antes
de se tornar totalmente senhor dos seus pensamentos.
Mas ele mostra também que esta entrada não é totalmente desconectada da recepção
da eulógia, na medida em que Judas não tira dela nenhum proveito. «Com efeito, é
sobretudo isto (ou seja, a eulógia) que torna impotente o dardo homicida do diabo» 88. Ora,
a eulógia não teve efeito sobre ele. E Cirilo tende a acentuar o carácter completamente
paradoxal desta comunhão. «Ele parte correndo, para (cumprir) o desígnio do diabo e,
como tomado por um transporte de fúria e excitado, salta fora da refeição; ele não vê nada
de mais importante que a sua ganância e, coisa paradoxal, nós descobriremos que ele não
tirou nenhum proveito da eulógia (τό γε παράδοξον οὐδὲν ἐκ τῆς εὐλογίας ὠφελημένον
83
Cirilo de Alexandria, In Ioannem IX, 736c (Jo. 13, 23-26), ed. Pusey, 2, 366 (Trad. MOB).
Orígenes, Com. Jo. XXXII 248-249).
84
Cirilo de Alexandria, In Ioannem IX 736d,366 (trad. MOB). Ver também Comentário sobre
Lucas 142 (Lc 22, 17-22), ed. Payne Smith, 2, 669, que cita igualmente Sl. 54, 13-15, depois de ter
sublinhado que a admissão à mesa lhe foi concedida, que ele foi julgado digno da doçura divina nele
manifestada até ao fim e que, por este facto, a sua punição foi mais severa. O texto grego foi conservado
pelas Catenae (PG 72, 912,22-28; ver também J. Reuss, Lukas-Kommentare aus der griechischen
Kirche, Berlim 1984, I, fr. 330, 210) que menciona a participação de Judas na mesa, sem citar Sl. 54, 13-
15.
85
Cirilo de Alexandria, In Ioannem IX 725d, 351 (trad. MOB): «Embora Ele soubesse que o
discípulo não era bom e trazia em seu seio o veneno da maldade diabólica, pensando na maneira como o
havia de trair, todavia honrou-o da mesma maneira que aos outros (ἐν ἴσῳ τοῖς ἄλλοις), e lava-lhe os pés
também a ele (καὶ αὐτοῦ), conservando totalmente os efeitos do seu próprio amor, sem lhe impor a sua
cólera antes de ele ter levado a cabo o delito».
86
É preciso, no entanto, mencionar que ele parece opor-se a esta posição, no seu Comentário sobre
Mateus (J. Reuss, Matthaus-Kommantare, cit., fr. 290, 1,256): «Depois da saída de Judas, o Salvador dá
aos onze o mistério salutar (μετὰ τὸ ἐξελθεῖν τὸν Ἰούδαν παραδίδωσιν ὁ σωτὴρ τοῖς ἕνδεκα τὸ σωτηριῶδες
μυστήριον)». Mas, em razão da afirmação nítida e repetida do Comentário sobre João, esta frase é pelo
menos questionável, tanto que este Comentário sobre Mateus, perdido na tradição directa, só nos foi
conservado nas Catanae. Podemos, portanto, supor uma má atribuição, talvez uma confusão com
Apolinário, que fala, no seu comentário de Mt. 25, 26-28, da saída de Judas antes da comunhão salutar (Ὅτι
προεξῆλθεν Ἰούδας, Ἰωάννης ἐδήλωσεν)». É necessário assinalar que os manuscritos P, L, N, O, T o
atribuem a Cirilo, o manuscrito K atribui-o a Apolinário e o manuscrito I não apresenta atribuição a este
fragmento.
87
Cirilo de Alexandria, In Ioannem IX 737d, 367 (trad. MOB). Sobre o emprego de εὐλογία por
Cirilo, para designar a Eucaristia, ver M.-O. Boulnois, L’eucharistie, mystère d’union chez Cyrille
d’Alexandrie: les modèles d’union trinitaire et christologique, RevSR 74 (2000) 147-172.
88
In Ioannem IX 738d, 369 (trad. MOB).
εὑρήσομεν)»89. Para explicar a ineficácia da Eucaristia, Cirilo acrescenta parcialmente
uma tese de Orígenes, a saber: o medo por parte de Satanás de que o bocado tenha o poder
de desviar Judas do seu desígnio 90. Mas Orígenes aventa a hipótese de que Satanás
impediu Judas de comer o bocado, ao passo que Cirilo, sem pôr em causa a comunhão de
Judas, acentua sobretudo a pressa com que Satanás instiga Judas a agir. De maneira geral,
o diabo apressa sempre a agir aqueles de quem ele toma posse, com medo de que um
atraso lhes dê a oportunidade de se converterem, mas no caso de Judas este medo é
redobrado, pelo facto de ele acabar de receber a eulógia.
«Logo após o bocado, ele força Judas, mantendo-o sob a sua mão, a dirigir-se em direcção
ao seu acto ímpio, porque ele verdadeiramente tem medo, não só da conversão, mas também
receia que o poder saído da eulógia (τὴν ἐκ τῆς εὐλογίας δύναμιν), brilhando no coração do
homem como uma luz, o persuada a preferir cumprir o bem, ou faça nascer um pensamento
nobre naquele que tinha então sido persuadido a praticar a traição»91.
89
In Ioannem IX 743a, 375 (trad. MOB).
90
Cirilo segue também uma outra hipótese origeniana, contra a ideia oposta de João Crisóstomo,
a propósito da identidade daquele que Jesus diz: «O que tens a fazer, fá-lo depressa» (Jo. 13, 28). Cirilo
interpreta-a como uma palavra dirigida a Satanás e não a Judas. Era uma hipótese de Orígenes, que uma
vez mais propunha duas interpretações, ao passo que João Crisóstomo, Homilia sobre João 72, via aí uma
censura à intenção de Judas.
91
In Ioannem IX 743d, 375, 29-376,6 (trad. MOB)
92
Agostinho, Homilias sobre o evangelho de João 62, 3 (BA 74A, 157). A nota da BA, que se
apoia sobre o artigo de A. Mazzola, Nota, cit., supõe que Agostinho faz aqui alusão a leitores individuais,
porque a maior parte dos exegetas antigos sustentam que Judas comungou anteriormente o corpo de Cristo.
Mas os autores gregos não fazem uma tal distinção e basta ler Cirilo de Alexandria, In Ioannem IX 737d,
para se ficar convencido de que o bocado é claramente identificado com a eulógia.
93
Agostinho, Homilias sobre o evangelho de João 62, 3(BA 73B, 277).
94
Ibid. 50, 10 (BA 73B, 277): «Ele toma parte como eles nesta Ceia do Senhor».
sacramento, outra coisa é a virtude (virtus) do sacramento»95. Sem que Agostinho levante
explicitamente o problema da eficácia da Eucaristia no caso de Judas, esta distinção entre
Eucaristia e a sua «virtus» (que corresponde ao grego δύναμις) é uma forma de lhe dar
resposta96. Por outro lado, e sobretudo, o facto de Judas e Pedro terem recebido o mesmo
pão, um para a morte, outro para a vida, deve convidar a Igreja a suportar os maus 97. Na
controvérsia antidonatista, a paciência de Jesus para com o traidor por excelência é tida
como um modelo de tolerância, tanto mais que os donatistas acusavam os católicos de
receberem traidores. Mais ainda, Jesus tinha enviado Judas a pregar o reino dos céus em
companhia dos outros, o que prova que os dons de Deus podem chegar àqueles que têm
a fé, mesmo que aquele por quem eles chegam seja semelhante a Judas98. Por outras
palavras, o valor dos sacramentos não depende da santidade do seu ministro.
A muitos títulos, Agostinho recorre à parábola do bom grão e da palha, para estimular
a Igreja a «suportar os maus irmãos», seguindo o exemplo de Jesus que durante muito
tempo tolerou Judas, como a palha no meio do cereal99. Esta exortação à tolerância para
com os pecadores tem por objectivo evitar que o corpo de Cristo seja dividido, o que
provocou precisamente o cisma donatista. «Que advertência, meus irmãos, é que nosso
Senhor Jesus Cristo quis dar à sua Igreja, querendo ter um homem perdido entre os Doze,
senão que nós temos de suportar os maus, para não dividir o corpo de Cristo?» 100 Quando
Orígenes insistia na amizade profunda que tinha ligado Judas e Jesus, e na parte de
bondade que tinha101, Agostinho recusa que Judas tenha começado a ser mau somente no
momento em que ele recebe dos judeus o dinheiro para entregar Jesus 102. «Ele não se
perdeu nessa altura, porque ele já era ladrão e foi por estar perdido que ele seguiu o
Senhor, porque ele não o seguia de coração, mas de corpo»103. Agostinho vai mesmo ao
ponto de dizer que «Judas foi escolhido entre os Doze, para que mesmo este pequenino
número de doze não existisse sem um mau»104, o que deve ser um exemplo para a nossa
própria paciência em tolerar os maus. Agostinho afasta-se também de Orígenes, quando
95
Ibid. 26, 11 (BA 72, 509).
96
Ver o decreto de Graciano que distingue a eficácia do sacramento em si e o seu efeito, em função
daquele que o recebe.
97
Agostinho, Homilias sobre o evangelho de João 50, 10 (BA 73B, 277): «Pedro, com efeito,
recebeu o pão para a vida; Judas para a morte. Acontece com este bom alimento o que acontece com este
bom odor: tal como o bom odor, o bom alimento dá também a vida aos bons e a morte aos maus. Com
efeito, “aquele que o come indignamente, come e bebe a sua própria condenação” (1Cor. 11, 29), a sua
condenação não a tua; se é a sua condenação e não a tua, suporta o mau, tu que és bom, para chegares à
recompensa dos bons e não seres mandando para o castigo dos maus».
98
Agostinho, Enarrationes in Psalmos 10, 6 (BA 57A, 459). Segundo E. Rebillard (BA 438), esta
Enarratio poderia ser datada dos anos 395, estando próxima, por sua argumentação antidonatista, do Contra
litteras Petiliani.
99
Agostinho, Homilias sobre o evangelho de São João 61, 1 (BA 74A, 141).
100
Agostinho, Homilias sobre o evangelho de São João 50, 10 (BA 73B, 277).
101
Orígenes, Com. Rom. IX 41, 9 (SC 555, 237): «Ninguém está entre os piores, mesmo
considerando o próprio Judas, que era ímpio para além de toda impiedade, a ponto de ele mesmo parecer
ter tido algo de bom».
102
Sobre a comparação entre Orígenes e Agostinho, ver G. Lettieri, Origene, Agostino e il
mistero de Giuda. Due esegesi di Joh XIII in conflito, in L. Padovese (ed.), Attti del V Simposio di Efeso
su S. Giovanni Apostolo, Roma 1995, 169-213, retomado em M. Maritano - E. dal Covolo (eds),
Commento a Giovanni. Lettura oriegeniana, Roma 2006, 83-133. No entanto, este artigo está centrado na
questão da liberdade e não diz nada acerca do bocado de Judas.
103
Agostinho, Homilias sobre o evangelho de João 50, 10 (BA 73B, 275). Ver também Ibid. 61,
2: «Um companheiro, quanto ao número, não quanto ao mérito; pela aparência, não pela virtude; pela
presença corporal, não pelo laço espiritual; pela proximidade da carne, não pela unidade do coração;
alguém, por consequência, que não é dentre vós, mas que vai sair do meio de vós».
104
Agostinho, Enarrationes in Psalmos 34, 1,10 (CChr.Sl. 38): et tamen inter duodecim electus
est, ne ipse duodenarius tam exiguus numerus esse sine malo.
sustenta que Jesus lavou os pés de Judas, vendo aí também uma prova da igualdade de
tratamento com os outros apóstolos105.
- O bocado e a entrada de Satanás.
Se voltarmos ao bocado, que não é Eucaristia, alguns podem, no entanto, ficar
desconcertados por esta dádiva ser concomitante com a entrada de Satanás e Agostinho
procura responder a esta inquietação, distinguindo a qualidade daquilo que é dado e
daquele que recebe.
«Eles, com efeito, dizem: “Mas quê? O pão de Cristo presente na mesa de Cristo teve este
efeito, a ponto de, após ele, Satanás ter entrado no seu discípulo?” Nós lhes reponderemos
que, com isso, aprendemos sobretudo com que cuidado é preciso evitar receber mal o que é
bom. O que mais importa, na realidade, não é o que se recebe, mas quem recebe, não é a
qualidade do que é dado, mas a qualidade daquele a quem é dado, porque as coisas boas
podem ser prejudiciais e as coisas más podem ser úteis, segundo a qualidade daqueles a quem
elas são dadas»106.
«O bocado dado pelo Senhor não era um veneno para Judas e, no entanto, ele
recebeu-o e, quando o recebeu, o inimigo entrou nele, não que ele tivesse recebido uma
coisa má, mas porque, sendo ele mau, recebeu uma coisa boa»107. Longe de ser um
veneno, o bocado era bom, mas foi recebido mal. De qualquer forma, o bocado é um
montante de graça ao qual Judas foi ingrato108. Embora o bocado não seja a Eucaristia,
Agostinho emprega o mesmo cuidado contra a comunhão indigna (1Cor. 11, 27-29), não
somente a propósito da participação eucarística de Judas, mas também a propósito do
bocado, para explicar que qualquer coisa boa pode ser nociva, se for mal recebida 109. Ele
junta-se assim aos seus predecessores, que não fazem esta distinção. Por outro lado, tal
como o conjunto dos Padres anteriores a ele, Agostinho distingue duas etapas na entrada
de Satanás que, num primeiro tempo, tentou um estranho, antes de tomar mais
completamente posse daquele que doravante lhe pertencia 110.
Falta analisar um último ponto: que significa o facto de o bocado ser molhado?
Enquanto que para tudo o resto Agostinho não dá lugar a nenhuma hesitação, ele avança
105
Agostinho, Homilias sobre o evangelho de João 55, 6 (BA 74ª, 71): «Ele não recusou lavar os
pés àquele mesmo, cujas mãos ele via já antecipadamente que iam ser metidas no crime».
106
Agostinho, Homilias sobre o evangelho de João 62, 1 (BA 74A, 153). Ver também 61, 6 (151):
«O que ele recebeu é bom, mas ele recebeu-o para seu mal, porque, sendo mau, recebeu mal um bem». Esta
ideia será muitas vezes retomada pelos seus sucessores. Paulino de Aquileia, Contra Felicem libri tres,
CCCM 95 (trad. MOB): «A morte e a vida vêm da mesma boca daquele que bebe, em função do espírito
com o qual bebe. Se é com um espírito santo que ele prova, vive e não morre. Se é com um espírito cheio
de perfídia, morre e não vive. Com efeito, não é o bocado entregue pela mão do Senhor que é a morte, nem
quem foi infetado pela crueldade do poder mortífero de Satanás, mas a morte estava na alma do traidor».
Pedro Damião, Epistolae 40, 404 (trad. MOB): «O que é dado é completamente bom, embora aquele que
recebe seja culpável e, de facto, um bom médico não daria a beber um veneno a um doente. Será que este
bocado que o Senhor estendeu a Judas não era bom? Mas o que era causa de salvação foi para ele matéria
de condenação, porque ele não recebeu pacificado o instrumento da paz».
107
Agostinho, Homilias sobre o evangelho de João 26, 11 (BA 72, 508).
108
Agostinho, Homilias sobre o evangelho de João 62, 1 (BA 74A, 155). Y. Zaluska - F.
Boespflug - A. Fernandez, La Cène dans la Bible moralisée au XIII siècle, in N. Beriou - B.
Caseau - D. Rigaux (eds.), Pratiques de l’eucharistie, cit., 1, 116ss, analisam uma representação da
comunhão de Judas no Codex Vysehradensis fol. 47, que poderia ser um meio de resolver o difícil problema
da comunhão de Judas, dando conta da solução de Agostinho: Jesus molha um pedaço no cálice, Judas faz
o mesmo; com a outra mão, Judas leva um outro pedaço à sua boca, de modo a não receber nenhum da mão
de Jesus, e com este pedaço, um pássaro negro entra na sua boca. Judas é, portanto, o único responsável.
109
Agostinho, Homilias sobre o evangelho de João 62, 1 (BA 74A, 155).
110
Agostinho, Homilias sobre o evangelho de João 62, 2 (BA 74A, 157).
mais prudentemente neste ponto, propondo uma alternativa. Este gesto de intinção
(tinctionem) indica talvez (fortassis) que Judas era um fingido (fictionem) e, para justificar
esta interpretação, jogando com as palavras (tinctio e fictio), explica que nem «tudo o que
é molhado é, no entanto, lavado; algumas coisas, ao contrário, são molhadas para virem
a ser sujadas»111. Esta exegese negativa do pão molhado terá uma posteridade
importante112 e poderá ser invocada contra a prática da comunhão por intinção por Pedro
Abelardo113. Agostinho propõe também uma leitura positiva deste bocado, que, se é bom,
manifesta a ingratidão daquele que não recebeu bem este bem. Agostinho não desenvolve
muito, coisa que farão alguns, especificando que um bocado molhado tem melhor sabor.
Digamos uma palavra acerca de Leão Magno, que será invocado ao lado de Agostinho
em favor da comunhão de Judas. No seu Sermão III sobre a Paixão, pronunciado no dia
5 de abril de 442, ele reprova em Judas o não ter tido confiança na misericórdia do Senhor,
quando inclusivamente ele não foi rejeitado dos mistérios nos quais teve a possibilidade
de participar.
«Já que tantos milagres feitos pelo Senhor e tantos benefícios recebidos torturavam a tua
consciência, ao menos ter-te-iam retirado do abismo estes sacramentos que tu tinhas recebido
na Ceia pascal, quando, por meio de um sinal, a divina ciência te tinha já revelado a tua
pessoa e a tua perfídia. Por quê desconfiar da bondade daquele que não te rejeitou da
comunhão do seu corpo e do seu sangue (qui te a corporis et sanguinis sui communione non
repulit)?»114.
2. Autores Medievais.
Entre os autores medievais a tese augustiniana da participação de Judas na
Eucaristia é quase unanimemente seguida 115, mas, como Hilário defendia o contrário, a
questão é muitas vezes discutida no meio de argumentos diversos.
111
Agostinho, Homilias sobre o evangelho de João 62, 3 (BA 74A, 159).
112
Ver, por exemplo, Ogier de Verceil (Psedo-Bernardo) (1140-1214), Sermão 3, 5: o pão molhado
representa a hipocrisia de Judas, que só olhava Jesus como homem e não como Deus, de maneira que ele
personifica os judeus, que não crêem que Jesus é Deus. Esta atitude de hipocrisia encontra-se em alguns
monges que seguem dessa maneira o traidor Judas. Por outro lado, Ogier segue a posição agostiniana,
segundo a qual o bocado não é o corpo de Cristo, que Judas tinha já recebido antes. Este sermão adverte
em muitos aspectos os monges contra o perigo de serem falsos religiosos à semelhança de Judas.
113
Pedro Abelardo, Sic et non, quaestio 118, sententia 1, 1.7, ed. Boyer – McKeon, 411:
«Que a eucaristia não deva jamais ser dada por intinção e argumento em sentido contrário (Quod eucharistia
mumquam sit danda intincta et contra)». Ele apoia-se em Agostinho e no concílio de Braga, que ocorreu
em 675 (III 1, ed. Vives), que ele identifica erradamente com uma carta do Papa Júlio. Depois da
reprovação desta prática pelo concílio de Braga, ela será retomada no século XI por João de Avranches, De
ecclesiasticis officiis (PL 147, 36-37) e pelo concílio de Clermont em 1095 (Mansi 20, 818). Pedro
Comestor, Historia evangelica 151 (PL 198, 1617C), explica que a eucaristia não deve ser dada por
intinção, precisamente porque Jesus deu o bocado molhado a Judas, mas também por causa de uma heresia,
segundo a qual Cristo só estava totalmente presente, se houvesse simultaneamente uma e outra espécie. No
caso contrário, era somente uma forma.
114
Leão Magno, Terceiro sermão sobre a paixão do Senhor 3 (SC 74bis, 57-59). Ver também
Sétimo sermão sobre a paixão do Senhor 3, 95: «Com efeito, os seus discípulos estavam sentados à mesa
com Ele, para comerem a refeição mística e, enquanto, na corte de Caifás, se deliberava a maneira de o
fazer perecer, o próprio Cristo estabelecia as regras do sacramento do seu corpo e do seu sangue e ensinava
qual a vítima que era preciso oferecer a Deus, não excluindo inclusivamente o traidor deste mistério (ne ab
hoc mysterio traditore submoto)».
115
Mas Bíblias moralizadas, o acento é colocado na comunhão indigna de Judas. No medalhão
consagrado à moralização da comunhão de Judas, um diabo vindo do céu entra na boca do fiel que recebe
a) Gilberto de Nogent.
Gilberto de Nogent116, um pouco antes de 1120, intitula um dos seus tratados:
«Acerca do bocado dado a Judas»117. Aí ele responde a uma questão colocada por
Siegfried (prior de São Nicolau de Bois, depois abade de São Vicente de Laon), que lhe
pergunta se Judas participou na Eucaristia e recebeu o verdadeiro corpo de Cristo ou um
simples pão. Segundo Gilberto, esta questão não pode ser resolvida com a ajuda dos
Padres, porque eles tiveram posição opostas: Agostinho e Leão Magno consideram que
Judas recebeu a Eucaristia da mão do Senhor com os outros Apóstolos, ao passo que
Hilário de Poitiers e Victor de Cápua se opõem a isso 118. Segundo a interpretação que
Gilberto propõe prudentemente (nisi fallor), eles teriam argumentado que, enquanto os
outros participaram no sacramento, o Senhor teria indicado aquele que o ia trair, dando-
lhe um bocado, por outras palavras, simples pão, o que poderia confirmar a tese dos que
objectam que este sacramento foi uma representação, mais que uma verdade119. Vemos
como Gilberto sobrepõe aos textos patrísticos as problemáticas da transubstanciação que
não são as deles. De qualquer maneira, não é com o apoiar-se nos Padres que ele vai tentar
resolver a questão, mas sobretudo invocando os textos evangélicos.
Para ele, Judas esteve presente na instituição da Eucaristia, visto que os três sinópticos
que a mencionam, não falam da saída de Judas e que, segundo João, Jesus também não
excluiu Judas do lava-pés. Com efeito, Judas não tinha ainda cometido acto condenável
e não podia ser excluído por uma simples intenção (pro sola conceptione criminis)120. Da
mesma forma que Jesus não o privou dos poderes de batizar, de expulsar demónios ou de
curar os doentes, também não o excluiu dos mistérios, o que teria podido, ao contrário,
justificar ou encorajar a sua traição. O argumento aqui está muito próximo do de João
Crisóstomo.
No que diz respeito ao bocado propriamente dito, ele foi certamente um sinal de
traição, mas não um sinal do sacramento, porque ele foi dado antes da instituição deste
novo sacrifício, segundo o testemunho de Mateus e de Marcos. O bocado era, portanto,
pão ordinário e, se ele possuía alguma coisa de sagrado, não era em virtude da mudança
da sua substância, mas talvez porque o Salvador o havia tocado 121. Como Agostinho,
Gilberto distingue, portanto, o bocado da Eucaristia, mas, diferentemente de Agostinho,
ele segue a ordem de Marcos e de Mateus e não a de Lucas; ele já não procura harmonizar
a menção da saída de Judas, em João, e o mergulhar da mão no prato, nos sinópticos.
Gilberto está, por conseguinte, consciente do desacordo entre os sinópticos, mas pensa
que seriam necessárias obras inteiras para tratar estas questões e não uma simples carta122.
Sendo assim, ele dedica o resto da sua carta a mostrar que a Eucaristia é verdade e não
representação, corpo e não sombra. Notemos que ele explica rapidamente a entrada do
123
Zacarias de Besançon, o Crisopolitano, In unum ex quattuor, sive concordia evangelistarum,
liber quartus (PL 186, 503D-504A).
124
Ibid. 155 (PL 186, 500A).
125
Ibid. 156 (PL 186, 503D).
126
Ibid. 156 (PL 186, 504A).
127
Pedro Comester, Historia scholastica in evangelia 152 (PL 198, 1618C).
128
Tomás de Aquino, Comentário sobre São João 1790 (Jo. 13, 18-19): «Judas, com efeito, comeu
com os outros discípulos o pão, juntamente com Cristo, mesmo o pão consagrado».
constitui um mal, mas como Judas era mau, ele usou mal o bem 129. Apesar deste
augustinismo generalizado, é preciso notar que, acerca da saída justamente logo após o
bocado (Jo. 13, 30), ele cita nomeadamente Orígenes, de quem menciona duas hipóteses:
a primeira é que Judas não teria comido o bocado, porque Satanás lho teria impedido, não
podendo estar no mesmo lugar que Jesus; a segunda é que ele teria comido indignamente
a sua própria condenação 130. Mas Tomás de Aquino contenta-se em expor as duas, sem
dar a sua opinião e, sobretudo, sem colocar a questão da compatibilidade destas hipóteses
com a distinção operada por Agostinho entre o bocado e a Eucaristia.
Em contrapartida, na Suma Teológica, no seu artigo dedicado à questão de saber
se Cristo deu o seu corpo a Judas, Tomás de Aquino já não menciona Orígenes 131 e adere
à opinião de Agostinho. Começa por expor três objecções: o versículo de Mt. 26, 29,
segundo o qual os que acabavam de receber o seu corpo e o seu sangue deviam beber com
ele no reino, o que não pode ser o caso de Judas; Mt. 7, 6, que proíbe dar aos cães o que
é sagrado, de maneira que o Senhor não pôde dar a Judas o seu corpo e o seu sangue,
porque sabia que ele era pecador; por fim, a distinção entre o bocado e a Eucaristia
defendida por Agostinho. Contra esta tese, ele cita João Crisóstomo, que afirma
claramente que Judas participou nos mistérios sem, no entanto, se tornar melhor, o que
duplica o seu crime132. Para concluir, ele refuta a tese de Hilário, opondo a exclusão de
Judas à justiça de Cristo, que devia servir de modelo aos prelados da Igreja: uma vez que
era um pecador secreto, ele não devia ser excluído da comunhão. Além disso, Judas teria
podido tirar disso ocasião para pecar. É preciso, portanto, dizer com Agostinho que Judas
recebeu o corpo e o sangue do Senhor. As três objecções são então refutadas. A razão
dada por Hilário não é vinculativa, porque foi Judas que se excluiu a si mesmo: no que
dependesse de Cristo, Ele bebia o vinho no reino de Deus com Judas, mas foi Judas que
o recusou. No que diz respeito à recusa em dar o que é santo aos pecadores, é preciso
também distinguir o conhecimento que Cristo tinha da iniquidade de Judas e o facto de
ele ser um pecador oculto para os outros. Por fim, o bocado molhado, seja ele entendido
negativa ou positivamente, deve ser distinguido da Eucaristia, que tinha sido distribuída
antes, segundo o relato de Lucas. Vemos que Tomás de Aquino não leva em consideração
a ordem dos outros sinópticos, nem o argumento da recapitulação de Ruperto de Deustz.
Conclusão.
Orígenes deixa o leitor resolver a questão de saber se Judas comeu ou não o
bocado, sem o distinguir da Eucaristia, abrindo assim o debate que dividirá a posteridade.
Duas teses de Orígenes não serão exactamente retomadas: a troca do bocado pela paz de
que Judas deixa de ser digno, e que volta para Jesus; e a acção de Satanás que impede
Judas de comer o bocado, por medo do seu poder. É, no entanto, a indignidade de Judas
e a eficácia da Eucaristia que estão subjacentes a estas teses e que serão o coração da
discussão ulterior. Duas outras exegeses farão, em contrapartida, unanimidade: a análise
da entrada progressiva de Satanás em duas etapas; e a utilização de 1Cor. 11, 27-29, que
adverte contra uma comunhão indigna que conduz à condenação. Em diversos graus,
muitas outras hipóteses serão seguidas: Cirilo de Alexandria retoma a ideia de que Satanás
temeu a eficácia da eulógia; Efrém considera que, molhando o bocado, Jesus lhe retira
129
Tomás de Aquino, Comentário sobre São João 1808-1813.
130
Esta passagem de Orígenes tinha sido revelada por Tomás de Aquino, na sua Catena aurea
sobre João (ed. Guarienti), da mesma forma que três outras exegeses de Orígenes: a distinção das duas
etapas na entrada de Satanás; a ideia de que o bocado faz perder a Judas um bem que ele acreditava possuir;
e a ambiguidade da pessoa a quem é dada a ordem de agir depressa, Satanás ou Judas.
131
Tomas de Aquino, Comentário sobre o evangelho de São João 1823 (Jo. 13).
132
João Crisóstomo, Homilia 82,1 sobre Mateus (PG 58, 737, 36-46).
qualquer coisa: não a paz, como diz Orígenes, mas a eficácia sacramental. Em
contrapartida, um ponto, ausente de Orígenes, é introduzido por Apolinário, pelas
Constituições Apostólicas e por Agostinho: a distinção entre o bocado e a Eucaristia e a
harmonização das cronologias dos diferentes evangelhos. A história desta posteridade é,
portanto, rica e complexa, mesmo que sejam raros os que se referem nomeadamente a
Orígenes. De facto, só Tomás de Aquino cita explicitamente a alternativa colocada por
Orígenes, optando ele próprio pela comunhão de Judas, tese que tinha sido vigorosamente
sustentada por João Crisóstomo, verdadeiramente em oposição à hipótese de Orígenes.
Para terminar, este debate encontra inclusivamente ecos na iconografia, visto que a
questão aberta por Orígenes não é fácil de decidir em certas representações da comunhão
dos Apóstolos onde Judas se retira segurando o pedaço de pão, e até mesmo cuspindo-o.
A partir do século XII, a arte bizantina representa a partida de Judas que sai da comunhão
dos Apóstolos, por vezes segurando o pão eucarístico na sua mão 133. Esta figuração pode
ser ambígua e refletir em certos casos a tese segundo a qual ele não participou realmente
na Eucaristia. A dúvida não é permitida, em todo o caso, num fresco do século XIV, na
igreja de São Jorge de Polosko (Macedónia), onde se vê Judas, sem auréola, de perfil,
vomitando o pão eucarístico134. Estamos assim longe da hipótese de Orígenes, segundo a
qual Judas talvez não tenha comido o bocado, porque Satanás lho terá impedido.
Marie-Odile Boulnois
Escola Prática de Altos Estudos
«La bouchée de Judas (Jn 13, 26-27) d'Origène à Thomas d'Aquin», Adamantius.
Rivista del Gruppo Italiano di Ricerca su “Origene e la tradizione alessandrina”, 20,
2014, p. 322-342.
133
Em Chipre, na igreja da Panagia Forbiotissa de Asinou (1105-1106), Cristo lança um olhar
sobre Judas que se retira à extrema direita, segurando o bocado na sua mão perto da boca. A. Stylianou
- J.A. Stylianou, The Painted Churches, of Cyprus, cit., 118 fig. 58.
134
A. Ristovska, L’église saint Georges de Polosko (Macédonie): Recherches sur le
monumento et ses peintures murales (XIVe s.), tese dirigida por C. Jolivet-Lévy, EPHF, 2010. Ver A.
Popova, La représentation de Judas, cit., 200 fig. 5. Mesmo em Polosko só onze apóstolos participam
no lava-pés: Judas não está representado (fig. 3, p. 198). A. Popova cita também a Virgem de Perivleptos
de Ohrid (Macedónia), ícone da primeira metade do século XII, onde Judas cospe a comunhão, na igreja da
dormição da Virgem em Likhné (1350-1360) e São Jorge em Ubisi (Geórgia) (1300) (foto da internet
http://www.superstock.com/search/ubisi). Na catedral de Monreal (Sicília), um mosaico mural representa
Judas segurando a Eucaristia escondida nas suas mãos.