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UNIDADE 3 AMOR UNIDADE

DE PERDIÇÃO,
4 OSdeMAIAS,
CAMILOdeCASTELO BRANCO
EÇA DE QUEIRÓS
Conteúdos literários

OS MAIAS, de EÇA DE QUEIRÓS d) D


o que foi dito se depreende que a decadência é outro tema d’Os Maias
(para alguns estudiosos da obra, o tema é a própria ideia de Portugal no
contexto do século XIX). Isto porque o romance procede a uma análise dos
OS TEMAS D’OS MAIAS
aspetos e das causas da decadência nacional.
A análise social empreendida identifica o problema em vários domínios da
• O
s principais temas d’Os Maias associam-se à ideologia e às preocupações
sociedade, como a degradação dos costumes e da moral (por exemplo, a
nucleares do Realismo e do Naturalismo, que são as principais referências artís-
falta de carácter dos portugueses), a incompetência e a indiferença da
ticas do romance.
classe dirigente (com políticos como Gouvarinho, banqueiros como Cohen),
a) O
amor é um dos temas centrais d’Os Maias. Trata-se da força motriz que a falta de civismo da sociedade burguesa (recorde-se o episódio das corridas
desencadeia e faz avançar a intriga principal — a relação sentimental entre de cavalos), o provincianismo, a futilidade, a falta de cultura (lembre-se o
Carlos e Maria Eduarda —, mas também do ingrediente que precipita as Sarau no Teatro da Trindade), etc.
personagens para um desfecho desditoso, infeliz: o fim de um amor verda- A decadência é política, social, económica, cultural e moral. E as personagens
deiro e de um projeto de vida a dois, mas também a morte de Afonso. do romance traduzem a descrença numa regeneração da pátria e das menta-
A ligação amorosa entre as duas personagens centrais termina quando se lidades, facto que é ilustrado na conversa galhofeira do jantar no Hotel Central.
descobre que são irmão e irmã e, portanto, que vivem em situação de
e) O
utro tema d’Os Maias, que se associa ao da decadência, é a família, tópico
incesto (outro tema da obra), ainda que involuntário e inconsciente. Carlos
que será analisado na secção «O título e o subtítulo» desta sistematização.
sobrevive, profundamente desiludido, à frustração sentimental. De alguma
Leia-se esta mesma secção para compreender de que forma o próprio
maneira, a possibilidade de realização pessoal no amor e de uma existência
Romantismo, enquanto mentalidade dominante, é tematizado nesta obra
feliz naufraga com a separação dos dois irmãos.
(cf. também Reis, 2000: 40-42).
b) T
ema profundamente realista, o adultério assume, assim, uma expressivi-
f) P
or outro lado, a própria literatura e as ideias artísticas realistas/naturalistas
dade considerável neste romance. A infidelidade amorosa está presente em
(mas também as românticas) constituem questões temáticas que são abor-
linhas narrativas secundárias do romance, condicionando a vida de certas
dadas por personagens do romance e problematizadas por Eça de Queirós
personagens. N’Os Maias estuda-se literariamente este fenómeno social,
na composição d’Os Maias, pela forma como mostra a falência do Roman-
revelando como ele se associa à futilidade e à esterilidade do modo de vida
tismo (sobretudo na personagem de Alencar) ou como questiona a ideologia
e da mentalidade das classes burguesa e aristocrática bem como à educa-
do Naturalismo (demonstrando que a hereditariedade e a educação não são
ção que os seus membros receberam.
fatores que garantam a realização pessoal, o carácter forte e a prosperidade
Em primeiro lugar, é o amor o responsável pelos sobressaltos da vida de
de um indivíduo).
Pedro da Maia: a saída, em rutura, do lar paterno, a paixão inflamada por
Maria Monforte e o seu suicídio. Aqui emerge outro tópico relevante da nar- • P
odemos incluir neste elenco outros temas (ou subtemas) da obra, que ocupa-
rativa: o adultério, que é praticado por figuras femininas como a condessa rão uma posição secundária ou subordinada em relação aos temas principais:
de Gouvarinho, Raquel Cohen e, como vimos, Maria Monforte. o progresso, o jornalismo, o donjuanismo ou o tédio.
c) A educação é outro tema da obra. Desde logo porque condiciona o trajeto de
vida de várias personagens do romance, como Carlos, Pedro da Maia e Euse-
A REPRESENTAÇÃO DE ESPAÇOS SOCIAIS E A CRÍTICA DE COSTUMES
biozinho, mas também, pela análise que o processo narrativo se encarrega de
fazer, Maria Monforte e Dâmaso, entre outras. Ao longo da narrativa, equa- • A
ação d’Os Maias decorre, em grande parte, em vários lugares de Lisboa e dos
ciona-se o problema de apurar qual o melhor modelo a seguir para educar um seus arredores, como em Sintra; no entanto, na infância e na juventude
jovem português do século XIX. (A educação era um tópico de reflexão dos de Carlos da Maia, o leitor vai encontrar a personagem e o seu avô na quinta de
pensadores da Geração de 70, que acreditavam que ela podia ser a pedra família de Santa Olávia e em Coimbra.
filosofal que resgataria o povo português do seu atraso e da sua decadência.)
Dois modelos de educação são colocados em confronto: o modelo tradicio- sses lugares, que constituem o espaço físico do enredo do romance, são olha-
• E
nal português, orientado pelos valores da fé católica, baseado no estudo dos de outra forma quando criam ambientes povoados com personagens
teórico e livresco e na aprendizagem do latim; e o modelo britânico, apolo- da narrativa — várias delas personagens-tipo — e proporcionam momentos de
gista do exercício físico, do contacto com a natureza, de uma formação caracterização de grupos sociais, de figuras individuais e, sobretudo, de crítica
moral sólida e humanista e do estudo das línguas vivas. de costumes. A estes cenários que convidam à análise de comportamentos
O modelo de educação português produz indivíduos de carácter fraco, de e de personagens dá-se o nome de espaço social.
condição débil e sem uma orientação prática para a vida; exemplos disso • L
isboa é o grande palco onde se desenrola o enredo d’Os Maias porque é na
são Pedro da Maia e Eusebiozinho. Carlos é educado segundo o modelo capital portuguesa que se movimenta a sociedade nacional, que é estudada e
britânico mas falha na vida, ainda que não por causa deste tipo de educa- criticada no romance. É nos episódios que têm lugar em vários espaços lisboe-
ção: são as circunstâncias da sua existência e os condicionalismos do tas e dos arredores da cidade que assistimos ao vícios e à decadência da socie-
Portugal em que vive que o tornarão um «vencido da vida». (Desta forma, dade burguesa da segunda metade do século XIX. Subtilmente, estabelecem-se
o diletantismo — de Carlos, de Ega e da classe dirigente — acaba por contrastes entre Lisboa e outras capitais europeias — sobretudo Paris e Londres
constituir outra questão relevante da obra.) — para melhor dar a conhecer os vícios cívicos e civilizacionais do nosso país.

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• E ntre vários espaços da capital onde a ação do romance se desenrola, o jantar em casa dos condes de Gouvarinho (Capítulo XII), é a classe dirigente
• N
destaca-se o Ramalhete, a casa dos Maias em Lisboa, que alberga a família ao da nação — representada pelo conde de Gouvarinho, político proeminente, e
longo de várias gerações e que, por isso, assiste aos seus reveses e aos momen- por Sousa Neto, alto funcionário da Instrução Pública — que revela a sua falta
tos trágicos. É ela que corresponde à noção de lar da família na capital. Por de cultura bem como a mediocridade das suas ideias e das propostas que tem
outro lado, a quinta de Santa Olávia, propriedade dos Maias no Douro, repre- para o País. Tal facto é notório quando estas personagens abordam tópicos
senta as origens rurais da família, o que lhe confere uma ligação ao campo, à relacionados com a educação (das mulheres), a filosofia e a literatura.
natureza e ao que há de mais genuinamente português e não foi corrompido
• P
or outro lado, os vícios do jornalismo e a aspiração da burguesia são tratados
pela cidade. Funciona também como um santuário onde Carlos cresce e o avô
nos episódios que decorrem nas redações dos jornais A Corneta do Diabo e
Afonso se refugia.
A Tarde (Capítulo XV).
• J á a Toca, vivenda dos Olivais com um nome simbólico e que serve de ninho ao
o sarau artístico no Teatro da Trindade (Capítulo XVI) critica-se a futilidade da
• N
amor de Carlos e Maria Eduarda, é um lugar afastado e resguardado do epicen-
sociedade burguesa. A cultura das classes privilegiadas é pobre e falta-lhes
tro da vida social de Lisboa e, até certa altura, dos rumores e da maledicência.
o gosto e a sensibilidade pela arte mais exigente.
Por fim, a Vila Balzac é a casa que acolhe os amores de Ega e de Raquel
Cohen. Ambas as casas estão marcadas pelo signo dos sentimentos impuros:
a primeira, porque está associada ao adultério, e a segunda, ao incesto. OS ESPAÇOS E O SEU VALOR SIMBÓLICO E EMOTIVO
• P
or seu lado, Coimbra, onde Carlos estuda, é a cidade que forma a futura classe
dirigente do reino. Aí chegam as ideias filosóficas e científicas de filósofos e 1. O jardim do Ramalhete
cientistas da Europa, como Hegel, Proudhon, Comte, Darwin, etc. Mas, na vida • Antes de Afonso e Carlos decidirem habitar o Ramalhete, este espaço «possuía
boémia estudantil coimbrã, encontramos já o embrião da vida diletante e estéril apenas, ao fundo de um terraço de tijolo, um pobre quintal inculto, abando-
que minará personagens centrais do romance como Carlos da Maia e Ega. nado às ervas bravas, com um cipreste, um cedro, uma cascatazinha seca, um
• J á Sintra é a vila pitoresca aonde Carlos se tanque entulhado, e uma estátua de mármore ([…] Vénus Citereia) enegre-
desloca, no Capítulo VIII, na esperança de cendo a um canto na lenta humidade das ramagens silvestres.» (Capítulo I).
encontrar Maria Eduarda. Pela sua beleza • Depois de avô e neto se terem instalado neste espaço, o jardim é descrito da
natural e pela proximidade de Lisboa, este seguinte forma: «tinha o ar simpático, com os seus girassóis perfilados ao pé
local afigura-se como um cenário que con- dos degraus do terraço, o cipreste e o cedro envelhecendo juntos como amigos
vida, com algum recato, aos amores… tanto tristes e a Vénus Citereia parecendo agora, no seu tom claro de estátua de par-
aos puros como aos impuros. que, ter chegado de Versalhes, do fundo do grande século… e desde que a
o Hotel Central, onde jantam Carlos, Ega e
• N água abundava, a cascatazinha era deliciosa, dentro do nicho de conchas, com
outras personagens da narrativa (Capítulo VI), os seus pedregulhos arranjados em despenhadeiro bucólico, melancolizando
o leitor assiste a uma discussão literária (que aquele fundo de quintal soalheiro com um pranto de náiade doméstica esfiado
encena a polémica entre o Ultrarromantismo gota a gota na bacia de mármore.» (Capítulo I).
e o Realismo/Naturalismo) e às reflexões tro- • F
inalmente, quando Ega e Carlos visitam o Ramalhete, dez anos depois, depa-
cistas sobre a situação política e económica ram com este cenário: «Em baixo o jardim, bem areado, limpo e frio na sua
de Portugal. Nesta confraternização entre nudez de inverno, tinha a melancolia de um retiro esquecido, que já ninguém
personagens com formação e com relevo na ama: uma ferrugem verde, de humidade, cobria os grossos membros da Vénus
vida nacional (Cohen é um banqueiro e um Citereia; o cipreste e o cedro envelheciam juntos, como dois amigos num ermo;
homem influente; Alencar, o tipo do poeta e mais lento corria o prantozinho da cascata, esfiado saudosamente gota a gota,
ultrarromântico), não só observamos a indife- na bacia de mármore.» (Capítulo XVIII).
rença e a insensibilidade perante a decadên-
cia do País como a incapacidade de alguns • D
ado que Maria Monforte surge aos olhos de Pedro como uma deusa, é possí-
membros da elite lisboeta se comportarem vel associá-la à estátua de Vénus Citereia na sua primeira fase. É como se a
com civismo e dignidade. presença desta figura feminina fosse sugerida obscuramente no quintal do
Ramalhete, simbolizando a possibilidade de uma nova tragédia.
• N
o episódio das corridas de cavalos (capítulo X),
que decorre no hipódromo, é denunciado o • C
om a vinda de Afonso e de Carlos para Lisboa, a estátua renova-se, passando a
culto da aparência da sociedade burguesa e a simbolizar uma nova deusa que surge em Lisboa: Maria Eduarda. De notar, no
sua aspiração de se mostrar requintada e cos- entanto, que, apesar da nota de alegria proporcionada pela referência ao renasci-
mopolita, imitando a realidade das corridas George Leonard Lewis, mento da estátua e à «cascatazinha deliciosa», a verdade é que o ambiente de
inglesas. No entanto, o evento revela-se monótono e entediante, e os comporta- Palácio da Pena (1883). melancolia se mantém parcialmente, sendo sugerido pela comparação do cipreste
mentos, artificiais. Mais ainda, o ambiente apenas anima quando o provincia- e do cedro a dois «amigos tristes» e pela alusão ao «pranto de náiade doméstica».
nismo lusitano vem à superfície numa cena de discussão e pugilato que põe a É possível, pois, considerar que se aponta desta forma para a presença de um
nu a genuína falta de civismo do português. destino funesto, cuja ameaça, mesmo em momentos felizes, parece estar latente.

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• Q
uando pratica o incesto, Carlos começa a sentir alterações na forma Tal como este lugar sagrado, também a relação de Carlos e de Maria Eduarda
como via o corpo de Maria Eduarda: fora aquele corpo dela, adorado acabará por perder a sua dimensão sublime e converter-se, após a descoberta
sempre como um mármore ideal, que de repente lhe aparecera, como do seu grau de parentesco, numa ligação meramente sensual. O carácter ilícito
era na realidade, forte de mais, musculoso, de grossos membros de deste amor (não pela sua dimensão adúltera, mas pelo facto de os amantes
amazona bárbara, com todas as suas belezas copiosas do animal de serem irmãos) é sugerido pela referência aos «amores de Marte e de Vénus»
prazer.» (Capítulo XVII). Esta imagem pode ser associada à que a (Capítulo XIII), bem como a Lucrécia Bórgia — figura histórica conhecida pela
estátua tem no momento em que Carlos regressa ao casarão após o luxúria e pelas relações incestuosas. A alusão a Romeu funciona também como
seu abandono: «uma ferrugem verde, de humidade, cobria os grossos um indício de uma relação amorosa que culminará de forma trágica. Final-
membros da Vénus Citereia» (Capítulo XVIII). mente, também a referência a S. João Batista aponta para a denúncia de uma
relação considerada, na época, incestuosa (dado que Herodes casara com a sua
cunhada — grau de parentesco equivalente, nesta fase, ao de irmã — e deseja
2. O interior do Ramalhete no epílogo
a enteada, Salomé). Os indícios de catástrofe são também reiterados pelo olhar
• No epílogo (isto é, no Capítulo XVIII), Carlos e Ega visitam o Rama- agoirento de uma coruja embalsamada. Finalmente, a insistência nas cores
lhete, espaço a propósito do qual o primeiro afirma: «— É curioso! amarela e dourada pode ser entendida como uma referência à vitalidade e ao
Só vivi dois anos nesta casa e é nela que me parece estar metida carácter ardente do seu amor, mas também à perversão que marca esta relação
a minha vida inteira!» O seu amigo refere que tal se fica ao dever ao amorosa, dado que a cor amarela pode também ter esta conotação negativa.
facto de ter sido naquele espaço que Carlos viveu «aquilo que dá
• N
a Toca, é posto em destaque um armário «“divino” do Craft, obra de talha do
sabor e relevo à vida — a paixão.» Com efeito, o protagonista tem
tempo da Liga Hanseática, luxuoso e sombrio» e que «tinha uma majestade
uma intensa relação emotiva com este espaço não só pelo facto de
arquitetural: na base quatro guerreiros, armados como Marte, flanqueavam as
ele estar associado à vivência do seu amor com Maria Eduarda, mas Vénus Citereia (Bertel Thorvaldsen, portas, mostrando cada um em baixo-relevo o assalto de uma cidade ou as
também pelas recordações que lhe proporciona do seu avô, Afonso Vénus com uma maçã, 1813-1816).
tendas de um acampamento; a peça superior era guardada aos quatro cantos
da Maia.
pelos quatro evangelistas, João, Marcos, Lucas e Mateus, imagens rígidas,
• N
esta medida, a redução do Ramalhete à condição de um depósito de recorda- envolvidas nessas roupagens violentas que um vento de profecia parece agitar:
ções do passado torna-se muito pungente, sendo possível interpretar a destrui- depois, na cornija, erguia-se um troféu agrícola com molhos de espigas, foices,
ção que neste espaço se operou como um símbolo da efemeridade da vida: «De cachos de uvas e rabiças de arados; e, à sombra destas coisas de labor e far-
repente, deu com o pé numa caixa de chapéu sem tampa, atulhada de coisas tura, dois faunos, recostados em simetria, indiferentes aos heróis e aos santos,
velhas — um véu, luvas desirmanadas, uma meia de seda, fitas, flores artifi- tocavam, num desafio bucólico, a frauta de quatro tubos.» (Capítulo XIII).
ciais. Eram objetos de Maria, achados nalgum canto da Toca, para ali atirados É possível considerar os dois faunos como Carlos e Maria Eduarda, na medida
no momento de esvaziar a casa! E, coisa lamentável, entre estes restos dela, em que os amantes, tal como as figuras míticas, se entregam exclusivamente à
misturados como na promiscuidade de um lixo, aparecia uma chinela de veludo sensualidade, indiferentes a valores fundamentais representados pelas restan-
bordada a matiz, uma velha chinela de Afonso da Maia!» (Capítulo XVIII). tes figuras: o heroísmo, a religião e o trabalho.
• A morte é também simbolicamente representada neste passo pelos panos • D
e notar que no epílogo, quando Carlos regressa ao Ramalhete, verifica que
brancos que cobrem os móveis do escritório de Afonso da Maia — e que são houvera «um desastre na cornija, nos dois faunos que entre troféus agrícolas
designados como «sudários brancos» (Capítulo XVIII). tocavam ao desafio. Um partira o seu pé de cabra, outro perdera a sua frauta
bucólica…» (Capítulo XVIII).
3. A Toca • F
inalmente, destaca-se ainda, como «génio tutelar» (Capítulo XIII) da Toca,
• O
nome «Toca» aponta para um espaço de proteção, imune às perturbações do «um ídolo japonês de bronze, um deus bestial, nu, pelado, obeso, de papeira,
exterior. O próprio Carlos sugere que se lhe ponha «Uma divisa de bicho egoísta faceto e banhado de riso, com o ventre ovante, distendido na indigestão de todo
na sua felicidade e no seu buraco: Não me mexam!» (Capítulo XIII). Com efeito, um universo — e as duas perninhas bambas, moles e flácidas como peles mor-
os elementos perturbadores da relação (o artigo difamatório da Corneta do Diabo tas de um feto.» (Capítulo XIII). Esta figura de contornos grotescos pode ser
e o encontro de Guimarães com Maria Eduarda e subsequentes revelações) pro- considerada como um símbolo da dimensão monstruosa do próprio incesto que
vêm de Lisboa ou decorrem após Maria Eduarda regressar à Rua de S. Francisco. será cometido naquele local.
No entanto, podemos ainda considerar que esta designação pode referir-se sim-
bolicamente uma relação de carácter animalesco, porque incestuosa. 4. Os espaços de Lisboa percorridos no passeio final de Carlos e Ega
• O
facto de Carlos introduzir «a chave devagar e com inútil cautela na fechadura • C
arlos e Ega começam por percorrer o Loreto, espaço em que a estátua de
daquela morada», o que «foi […] um prazer» (Capítulo XIII), pode ser entendido Camões representa simbolicamente a época áurea dos Descobrimentos, que
como um símbolo da relação sexual entre os dois amantes. contrasta com a estagnação, inércia e decadência que marcam a sociedade do
• Q
uanto ao quarto de Maria Eduarda, está carregado de símbolos que se assu- século XIX (daí a caracterização da estátua de Camões como «triste»).
mem como presságios do desfecho trágico desta relação amorosa. Em primeiro • A
decadência da sociedade está associada à degenerescência da própria
lugar, temos a referência ao facto de a alcova se assemelhar ao «interior de um população portuguesa, que é descrita como «feiéssima, encardida, molenga,
tabernáculo profanado, convertido em retiro lascivo de serralho» (Capítulo XIII). reles, amarelada, acabrunhada» (Capítulo XVIII).

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• A
s descrições de lugares, personagens e comportamentos concretizam-se
em anotações que resultam sobretudo de observações do narrador. Tal significa
que o registo descritivo assenta em perceções visuais desses elementos;
ou seja, nesta obra de ficção, simula-se que o narrador caracteriza os espaços
e as figuras que, pretensamente, estaria a observar.
• E
ncontramos um exemplo de descrição pautada pela perceção visual no
seguinte passo do sarau da Trindade: «De ambos os lados se cerravam filas de
cabeças, embebidas, enlevadas, atulhando os bancos de palhinha até junto ao
tablado, onde dominavam os chapéus de senhoras picados por manchas claras
de plumas ou flores.»
• E
sta caracterização dos espaços, em que domina a técnica da verosimilhança,
procura representar os lugares «como eles são». Ela serve os princípios artísti-
cos e os objetivos do Realismo, pois, ao representar o mundo social, analisa-o
também socialmente.
utra técnica descritiva importante usada por Eça é a técnica impressionista.
• O
João Christino, Lisboa, Avenida da Liberdade (litografia publicada na Mala da Europa, n.o 488, 1905).
Como sucede na pintura do Impressionismo, neste tipo de descrição de lugares,
figuras e elementos dá-se maior relevo à luz e às manchas de cor de um
e seguida, os dois amigos chegam à Avenida da Liberdade, espaço que repre-
• D conjunto (uma paisagem, um pôr do Sol) do que à forma exata ou aos contor-
senta simbolicamente um Portugal pretensamente moderno e cosmopolita. nos desses elementos. Veja-se como a cor e os reflexos de luz sobressaem
na representação da multidão e de outros elementos no episódio das corridas
• N
o entanto, podemos verificar que as tentativas de modernização do espaço de cavalos.
urbano se resumem a uma zona muito limitada, terminando de forma abrupta
no fim da Avenida, não passando, portanto, de um «curto rompante de luxo • H
á, no entanto, momentos d’Os Maias em que as descrições se destacam por
barato» (Capítulo XVIII). referências ou sugestões a sensações olfativas, auditivas e táteis. As sensa-
ções olfativas estão frequentemente associadas a cenários naturais e decorrem
• N
este espaço se confirma também a degenerescência dos portugueses — das fragrâncias exaladas pela vegetação: «as chaminés […] ornavam-se de
neste caso, especificamente, através da descrição da juventude. Com efeito, braçadas de flores, como um altar doméstico; era ainda aí, nesse aroma e nessa
esta «mocidade pálida» (Capítulo XVIII) — cuja falta de vitalidade é, provavel- frescura, que ele gozava melhor o seu cachimbo» (Capítulo I).
mente, uma consequência da educação tradicional portuguesa — limita-se a
passear pela Avenida da Liberdade sem propósito aparente. Assim — ao con- • R
elativamente a perceções sensoriais auditivas e táteis, também elas podem
trário da geração de Carlos e de Ega —, nem sequer tem qualquer ideia de ser sugeridas na caracterização de cenários campestres, como os de Sintra
transformação do país, tendo apenas o objetivo de ostentar um luxo artificial (Capítulo VII). Encontramos exemplos de tais caracterizações quando Carlos e
com o qual não se sente confortável. O absurdo desta situação é agravado pelas Cruges estão a chegar a Sintra: «envolvia-os pouco a pouco a lenta e embala-
botas que estes jovens calçam: na sua ânsia de parecerem muito civilizados, os dora sussurração das ramagens e o difuso e vago murmúrio das águas corren-
portugueses copiaram o modelo do estrangeiro, mas levaram-no ao excesso, tes» (auditivo); e «o ar subtil e aveludado» (tátil). Desta forma se dá conta de
acabando por cair no ridículo. De acordo com Ega, este é o processo seguido como o cenário envolvia plenamente e fascinava as duas personagens.
por toda a sociedade portuguesa da época que, no seu provincianismo, julga • E
m algumas descrições irrompe a sinestesia, ou seja, expressões em que se
que este é o caminho para a modernização. cruzam ou se fundem diferentes perceções sensoriais: «transparentes novos
• F
inalmente, Carlos aponta para os «velhos outeiros da Graça e da Penha», que dum escarlate estridente» (visual e sonoro); «luz macia» (visual e tátil).
representam simbolicamente a hipótese de orientação para aquilo que é genui-
namente português. No entanto, como Ega refere, esta solução também não é
satisfatória, uma vez que implicaria o regresso ao um passado decrépito, asso- REPRESENTAÇÕES DO SENTIMENTO E DA PAIXÃO
ciado ao domínio do clero e da nobreza.
1. Diversificação da intriga amorosa
• N
’Os Maias, a diversificação da intriga amorosa é conseguida através da refe-
A DESCRIÇÃO DO REAL E O PAPEL DAS SENSAÇÕES rência a diferentes tipos de relação — entre os quais se destacam as ligações
Pedro da Maia/Maria Monforte, Ega/Raquel Cohen e Carlos da Maia/Maria
• E
ça de Queirós revela-se exímio a compor descrições, tanto de espaços sociais Eduarda.
urbanos como de cenários campestres. No romance Os Maias, o narrador des-
creve a realidade social do seu tempo em vários lugares de Lisboa e arredores:
a casa dos Gouvarinho, o Hotel Central, o teatro da Trindade, o hipódromo, etc.
Por outro lado, demora-se também na caracterização de ambientes naturais,
como Sintra ou a Quinta de Santa Olávia.

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Pedro da Maia/Maria Monforte • N


ão deixa de ser curioso o facto de Carlos, aquando da descoberta do seu grau
de parentesco com Maria Eduarda, considerar que tanto ele como a sua amada
• P
edro, personagem marcadamente naturalista, é vítima da hereditariedade, da
eram seres profundamente racionais que conseguiriam facilmente sufocar os
educação e do meio em que viveu. Com efeito, além de ser «pequenino e ner-
seus sentimentos agora que sabiam ser irmãos. O desdém que mostra pela
voso» (Capítulo I) como a sua mãe, acaba por se tornar um ser apático, passivo
mentalidade romântica rapidamente se desfaz no momento em que se revela
e nervoso, em consequência da educação tradicional portuguesa.
incapaz de contar a verdade a Maria Eduarda, acabando por ceder à tentação
• A
paixão obsessiva que nutre pela mãe — e que o leva a roçar a loucura e cometendo incesto voluntariamente.
aquando da sua morte — acaba, na idade adulta, por ser transferida para Maria
• A
ssim, podemos verificar que também a relação amorosa entre Carlos e Maria
Monforte, figura feminina bela, fútil, caprichosa e manipuladora.
Eduarda é influenciada pelos ideais do amor romântico — de forma mais dra-
• I nfluenciado pelo Romantismo, Pedro revolta-se contra o pai, que não aprova o mática no momento do incesto, mas também pelo facto de ambos enfrentarem
casamento com a filha de um antigo traficante de escravos, e casa com Maria. as convenções sociais e decidirem ficar juntos (num primeiro momento, numa
• No entanto, a leviandade de Maria Monforte leva-a a fugir com Tancredo. suposta relação de adultério, num segundo momento, numa relação de aman-
tes, que se torna mais controversa pelo passado de Maria Eduarda).
• A
fragilidade psicológica de Pedro torna-o incapaz de sobreviver à fuga da
mulher, suicidando-se. • D
e facto, esta realidade é magistralmente sintetizada na fala de Ega, aquando
da sua última visita ao Ramalhete: «Que temos nós sido desde o colégio, desde
Ega/Raquel Cohen o exame de latim? Românticos: isto é, indivíduos inferiores que se governam na
vida pelo sentimento e não pela razão…» (Capítulo XVIII).
paixão da vida de Ega acaba por ser o romance adúltero com Raquel Cohen,
• A
mulher do banqueiro Cohen.
• O
carácter ilícito desta relação, bem como o facto de os amantes se encontra- 2. A intriga trágica
rem na Vila Balzac, espaço cuja decoração — em tons de vermelho e tendo
como ponto fulcral o leito — é propícia à sensualidade, mostra que, tal como Revelação da relação de parentesco entre Carlos e Maria
sucedera com Pedro e Maria Monforte, também a paixão entre Ega e Raquel Peripécia/ Eduarda feita por Guimarães a Ega; revelação desta relação
Cohen é influenciada pelos ideais do amor romântico. Anagnórise de parentesco feita por Ega a Vilaça, por este a Carlos
e por Carlos a Afonso.
• E
sta relação termina no momento em que Cohen, descobrindo o adultério,
Carlos é incapaz de resistir à paixão que sente por Maria
expulsa Ega. No entanto, este episódio — que poderia ter contornos trágicos Hybris /Clímax
Eduarda e comete incesto voluntariamente.
— acaba por ser investido de um tom grotesco, uma vez que, porque tudo
sucedeu num baile de máscaras, Cohen se encontrava vestido de beduíno e Afonso morre e Carlos e Maria Eduarda separam-se para
Catástrofe
Ega, de Mefistófeles. Além disso, Raquel é espancada pelo marido, mas acaba sempre.
por se reconciliar com ele.
• D
este modo, o único elemento sublime que acaba por restar desta relação
amorosa são as recordações de Ega, que este evoca junto de Carlos e Craft, CARACTERÍSTICAS TRÁGICAS DOS PROTAGONISTAS
mas cujo dramatismo é, mais uma vez, diluído pelo facto de aquele se encon-
• N
a Poética, Aristóteles afirma que as personagens da tragédia deveriam ter uma
trar profundamente ébrio.
condição elevada.
Carlos/Maria Eduarda isto, de facto, o que sucede n’Os Maias: Afonso da Maia, Carlos da Maia e
• É
Maria Eduarda são personagens de condição superior não apenas pelo seu
• A
pós uma relação fugaz com a condessa de Gouvarinho — que nutre por ele
estatuto de fidalgos, mas também (e sobretudo) pela nobreza do seu carácter.
uma intensa paixão não correspondida —, Carlos acaba por encontrar o grande
Ainda que nenhuma destas figuras seja perfeita, a verdade é que todas têm
amor da sua vida em Maria Eduarda.
traços heroicos.
• T
odas as relações anteriormente referidas (Pedro/Maria Monforte, Ega/Raquel
Cohen e Carlos/condessa de Gouvarinho) contribuem para exaltar o carácter Afonso da Maia
sublime desta última relação amorosa.
• A
pesar de ter alguns traços de diletantismo (que o levarão a esquecer facil-
• Com efeito, no amor de Carlos e de Maria Eduarda, não temos uma relação mente a dura luta travada pelos seus companheiros liberais em Portugal
marcada pela manipulação (como sucedera com Pedro e Maria Monforte) nem enquanto vivia uma vida luxuosa em Inglaterra e a limitar-se a aconselhar Carlos
pela superficialidade (como acontecia nos casos de Ega e Raquel Cohen e de e os amigos a fazerem algo para mudar Portugal, ao invés de agir), Afonso da
Carlos e da condessa de Gouvarinho). A paixão entre os protagonistas decorre Maia é uma personagem admirável.
de uma sintonia de personalidades — já que ambos são inteligentes, cultos e
• C
om efeito, apesar de os princípios morais o terem levado a desaprovar o casa-
requintados — que os eleva acima da sociedade mesquinha em que vivem e
mento de Pedro, quando este regressa, humilhado, após a partida de Maria
lhes permite superarem todas as contrariedades — até que um destino impie-
Monforte, o seu amor paternal leva-o a reconciliar-se com o filho e a apoiá-lo,
doso se abate definitivamente sobre eles.
ao invés de o recriminar.

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UNIDADE 4 OS MAIAS, de EÇA DE QUEIRÓS
Conteúdos literários

• A
lém disso, a sua enorme força interior é demonstrada pela capacidade de • E
ssa crónica de costumes que anima Os Maias decorre sobretudo em vários
sobreviver à morte do filho e de se dedicar com entusiasmo à educação do neto. lugares de Lisboa e dos seus arredores. Assim, a multiplicidade de espaços
físicos lisboetas — como o Hotel Central, o hipódromo, o teatro da Trindade
• F
inalmente, é uma personagem profundamente digna, que não se deixa sedu-
— constrói uma série de palcos onde podemos analisar os comportamentos de
zir pelo luxo que Carlos tanto aprecia, vivendo de forma simples e austera.
grupos e figuras típicas da sociedade burguesa oitocentista: espaço social.
À virtude da sobriedade acresce o facto de ser inteligente, culto e caridoso —
tanto com as pessoas, como com os animais. or seu lado, a organização temporal da narrativa é também complexa neste
• P
romance. A narrativa inicia-se em 1875, quando Carlos da Maia se prepara
Carlos da Maia para vir viver para Lisboa; mas logo assistimos a uma retrospetiva (analepse)
que leva o leitor a conhecer a vida do avô e do pai do protagonista. Por outro
• A
pesar do carácter diletante, que prejudica os seus estudos universitários e,
lado, o romance encerra com um epílogo que tem lugar dez anos após o desfe-
após o regresso a Lisboa, o impede de concretizar os seus projetos no campo
cho da intriga principal.
da Medicina, Carlos é também uma personagem na qual ressaltam caracterís-
ticas positivas.
• C
om efeito, ao longo da intriga, destaca-se pela sua inteligência, cultura e sen- 2. O título e o subtítulo
tido de humor, assumindo uma atitude crítica e irónica em relação à sociedade
• O
título do romance, Os Maias, é uma referência direta à família fidalga, oriunda
portuguesa.
do Norte do País, que ocupa uma posição central na narrativa. De facto, se
Carlos da Maia é a personagem nuclear da ação principal, a vida do seu pai e
Maria Eduarda
do seu avô assumem relevância no romance. Aliás, o enredo d’Os Maias
• A
pesar de as circunstâncias da vida a terem forçado a viver com Mac Gren remonta a algumas décadas anteriores ao nascimento do protagonista. A perti-
sem se casar e, posteriormente, a tornar-se amante de Castro Gomes, Maria nência do título manifesta-se também no facto de os acontecimentos da intriga
Eduarda nunca perde a sua dignidade. principal, a relação incestuosa de Carlos e Maria Eduarda, serem uma conse-
quência dos infortúnios e dos desencontros dos membros da família Maia.
• À
semelhança de Carlos e de Afonso da Maia, é inteligente e culta. Além disso,
herda de Afonso da Maia a capacidade de se compadecer dos mais fracos. esse sentido, a obra enquadra-se na classificação de «romance de família»,
• N
porque faz desfilar nos dois capítulos iniciais, de forma resumida, a vida de
Como é apanágio da tragédia, a nobreza de todas estas personagens torna mais quatro gerações de Maias, representando os diferentes períodos do século XIX
pungente a catástrofe que se abate sobre elas. português. Numa fugaz presença na narrativa, Caetano da Maia, adepto do
Absolutismo, manterá uma relação tensa (por questões ideológicas) com o seu
filho, Afonso, que defende as ideias do Liberalismo. Já Pedro da Maia, filho de
LINGUAGEM, ESTILO E ESTRUTURA Afonso, representa a segunda geração liberal e a mentalidade romântica.
Por fim, Carlos da Maia aparece como um contemporâneo da Regeneração
1. Os Maias enquanto romance (1851-1906).
• A
obra Os Maias deve ser classificada literariamente como um romance; isto • A
ssim, através das personagens desta família, equacionam-se questões da
porque, segundo as regras deste género literário, se trata de uma narrativa época: a decadência, o progresso material, o rotativismo político, etc. Assim, até
longa (mais extensa do que o conto e a novela) em que existe mais do que uma certo ponto, a família Maia representa metonimicamente Portugal e a decadên-
linha de ação — embora, por regra, domine uma principal — e um número cia da nação ao longo do século XIX.
considerável de personagens. Por esse motivo, multiplicam-se os espaços em
que o enredo se desenvolve e a organização temporal torna-se mais complexa. • S
e o título aponta para a história de uma família, o subtítulo — Episódios da
vida romântica — abre o leque de possibilidades da narrativa para a tornar um
relação amorosa entre Carlos e Maria Eduarda constitui a ação principal
• A estudo da sociedade portuguesa (sobretudo) da segunda metade do século XIX.
d’Os Maias: esta linha narrativa funciona como motor do romance, e é a vida Nessa medida, este subtítulo aponta para a crónica de costumes, que atravessa
e o destino destas personagens centrais que dinamizam o texto. Por outro lado, o romance e se desenvolve a par da intriga principal. Nesse estudo da socie-
encontramos uma linha de ação secundária: o casamento de Pedro da Maia dade portuguesa analisam-se os comportamentos, os hábitos, as práticas de
e Maria Monforte. um povo, a fim de denunciar e criticar os seus vícios, incongruências e falhas.
• N
uma narrativa extensa, de enredo complexo, é natural que o número de per- ma finalidade maior d’Os Maias, enquanto estudo social, é tentar compreen-
• U
sonagens que sobe à cena se multiplique. Além das figuras centrais, Carlos der as «causas da decadência» do povo português no século XIX. Aliás, Eça de
e Maria Eduarda, que são complexas (modeladas), encontramos n’Os Maias Queirós planeara escrever um conjunto de doze novelas de cariz realista/natu-
personagens que participam na ação central (Afonso da Maia, Ega, Castro ralista, que receberia o título de Cenas da vida portuguesa ou Crónicas da vida
Gomes), mas também outras entidades de importância. Assim, personagens-tipo sentimental, mas o projeto não foi concluído. Esta obra multifacetada comporia
ou caricaturas, como Palma Cavalão, Sousa Neto, o Neves, estão sobretudo ao um painel de retratos do Portugal de então e versaria temas como o alcoolismo,
serviço da crítica social porque neles se estudam vícios e tiques sociais. o adultério, o jogo, o sacerdócio, etc.

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UNIDADE 4 OS MAIAS, de EÇA DE QUEIRÓS
Conteúdos literários

• Quanto ao método seguido na análise social, Eça concebe uma série de • O


Portugal de Carlos é romântico porque herdou as ideias, os valores e as cren-
episódios em que as características dos portugueses se manifestam. Nestes ças da segunda geração liberal e romântica e neles se fossilizou. Tipicamente
episódios, desmascaram-se traços da identidade coletiva portuguesa, como o romântica é também a mentalidade pautada pelo tédio, pela ociosidade e pelo
parasitismo, o oportunismo, a inércia, a falta de cultura e outros vícios que, pelo diletantismo, que minam a existência das personagens desta obra.
menos em parte, explicam a situação do Portugal da Regeneração.
• D
ecorrente desta ideia está a segunda explicação para a mentalidade romântica
• O subtítulo do romance sugere que no Portugal do fim do século XIX pulsa ainda do fim de século. A sociedade romântica é a sociedade liberal, dominada pela
uma «vida romântica»; Ega decifra o sentido da expressão: «— E que somos burguesia e pelos seus valores: materialismo, mercantilismo, elitismo, (pseudo-)
nós? […] Românticos: isto é, indivíduos inferiores que se governam na vida pelo requinte, o luxo, a monarquia. São estes valores decadentes, liberais, burgueses
sentimento, e não pela razão…». Românticos são Ega, Carlos e os restantes — românticos! — que ainda conduzem a sociedade portuguesa e o grupo diri-
membros da sociedade burguesa aqui retratada, porque as personagens gente, condenando o País ao atraso e à pobreza (material e de espírito).
do romance, se, por um lado, extravasam paixão, emoção e espontaneidade
(os amores, legítimos ou adúlteros, as amizades e as inimizades virulentas,
a maledicência, a desorganização e a desordem), por outro, revelam-se parcas 3. Linguagem e estilo
em seriedade, organização, equilíbrio, trabalho, disciplina e empenho (razão). m termos de registos de linguagem, a prosa de Eça de Queirós revela-se
• E
Ou seja, faltam as qualidades necessárias para colocar o País na rota do desen- admiravelmente versátil e maleável. Por um lado, no melhor registo literário e
volvimento, do civismo e da justiça social. elevado, atinge rasgos de grande beleza com a construção frásica elegante e
cuidada, as imagens plásticas sugestivas e o léxico erudito. Por outro lado,
sobretudo na reprodução das falas das personagens, recorre-se aos registos
familiar e corrente e, ocasionalmente, ao calão para reproduzir com naturali-
dade e humor os tiques de linguagem oral do português do fim de século.
• A
inda no que diz respeito à «reprodução do discurso no discurso», o discurso
direto dos diálogos e o discurso indireto livre (técnica em que a voz de uma
personagem e do narrador se sobrepõem) revelam-se estratégias ao gosto da
literatura realista na medida em que se colocam as personagens em interação,
de forma a exporem-se através do que dizem e a denunciarem o seu carácter,
incongruências e vícios, num processo de caracterização indireta em que a
personagem mostra o que é pelo que afirma e pela forma como afirma: Dâmaso
é boçal; Cohen, inculto; Ega, pedante; Palma «Cavalão», hipócrita, etc.
or outro lado, os recursos expressivos conferem originalidade e riqueza à
• P
prosa queirosiana. A ironia é um recurso expressivo cultivado por Eça, tanto
porque serve a crítica social como porque se trata de uma figura de estilo que
confere leveza, encanto e humor à narrativa. Este recurso expressivo revela-se
adequado para denunciar as contradições, as incongruências e as falhas das
personagens e dos comportamentos sociais.
• A
hipálage é outro recurso expressivo que se associa à prosa romanesca
de Eça, tendo em conta a elegância e a expressividade com que o romancista
a usou. A hipálage, recorde-se, consiste em associar uma palavra (normal-
mente um epíteto) não ao termo a que estaria naturalmente ligado mas a um
vocábulo vizinho: «Ega espalhava também pelo quarto um olhar pensativo» (era
Ega quem estava pensativo, não o seu olhar).
• A
comparação e a metáfora são recursos expressivos de capital importância
na caracterização de certas personagens e da vida lisboeta. Em tom irónico ou
trocista, na boca de algumas personagens a comparação e a metáfora são
formas de caracterização insultuosa: por exemplo, «a besta do Cohen».
Facilmente a ironia se associa à metáfora na caracterização de alguém, neste
caso, o conde de Gouvarinho, acerca de quem Ega diz: «— Tem todas as con-
dições para ser ministro: tem voz sonora, leu Maurício Block, está encalacrado,
e é um asno!…».
João Abel Manta, As personagens de Eça (meados do século XX).

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UNIDADE 4 OS MAIAS, de EÇA DE QUEIRÓS

• N
outros casos, a comparação, a metáfora e as imagens tomam parte nas des-
crições artísticas de paisagens: «Iam ambos caminhando por uma das alame-
das laterais, verde e fresca, de uma paz religiosa, como um claustro feito de
folhagem.» Ou então, traduzem, de forma admirável, os estados de alma
humana, como no caso da metáfora: «os bigodes esvoaçando ao vendaval das
paixões». Para caracterizar o vazio existencial de Pedro da Maia, diz-se que,
para ele, «dias [são] taciturnos, longos como desertos».
• N
o seu período de maturidade literária, Eça de Queirós trabalhou o adjetivo
e o advérbio de forma artística e disciplinada, de modo a obter uma expressivi-
dade admirável. O adjetivo pode ser usado, em Eça, de forma surpreendente,
associando-se a elementos a que não se ligava semanticamente: «sorriso mole»,
«chiar lento das rodas». Nesses casos, projeta na frase a subjetividade e o juízo
do enunciador (narrador ou personagem). Os casos de adjetivação dupla
revestem-se de particular significado, sobretudo quando os adjetivos contrastam
entre si, associando o concreto e o abstrato, o físico e o psicológico, etc.: «maciço
e silencioso palácio», «uns sons de piano, dolente e vago». Alguns dos exem-
plos revelam que o adjetivo pode estar ao serviço da crítica.
• I gual função pode ser desempenhada pelo advérbio, sobretudo quando tem
uma presença inesperada e surpreendente na frase: «remexia desoladamente
o seu café». Aí o advérbio corresponde, como o adjetivo, a um comentário ou a
uma constatação do enunciador; noutras situações, desencadeia um efeito
humorístico. Significativos são os casos em que o advérbio contrasta com o
significado do verbo, como em «Dâmaso sorria também lividamente».
• O
verbo é outra classe de palavras trabalhada criativamente, produzindo em
vários passos combinações sugestivas e plenas de significado: «mordia um sor-
riso», «vamo-nos gouvarinhar», «Ega trovejou», etc. Por outro lado, tanto o pre-
térito imperfeito do indicativo, que alude a ações repetidas, como o gerúndio
conferem dinamismo às descrições. As formas verbais do imperfeito e gerúndio
funcionam também normalmente como modos de dar conta do valor aspetual
habitual ou durativo da ação: «o tédio lento ia pesando outra vez.»
• A inda no domínio do vocabulário, o texto d’Os Maias surge polvilhado de
estrangeirismos, que são criteriosamente usados. Assim, tanto o «anglicismo»
( vocábulo de origem inglesa) como o «galicismo» ou «francesismo» traduzem
frequentemente a pretensão das personagens em exibir um requinte, uma
modernidade e um cosmopolitismo, que, contudo, acabam por ser artificiais.
Vemos aqui o jogo das aparências em que a sociedade burguesa tanto se com-
praz. Por exemplo, no episódio das corridas de cavalos, o vocabulário deste
espetáculo tão pouco nacional é requisitado à língua inglesa: «jockey», «sports-
man», «handicap» ou «dead-beat». Não raro, o estrangeirismo é usado de
forma irónica, como o famoso «chique», de Dâmaso, que denuncia a sua sub-
missão pacóvia ao francesismo, o qual também marca presença no romance
para aludir a questões de moda e sociedade.
• P
or último, o diminutivo pode assumir vários significados: se em alguns casos
se trata de uma expressão de afeto («Carlinhos», «o latinzinho»), mais interes-
sante é a sua utilização irónica para depreciar ou ridicularizar alguém: «Dama-
sozinho, flor, fique avisado de que, de ora em diante, cada vez que me suceder
uma coisa desagradável, venho aqui e parto-lhe uma costela […].» O diminutivo
encarrega-se de participar na atitude trocista do narrador e de algumas perso-
nagens na crítica de comportamentos e de costumes.

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