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Cosmovisão Africana no brasil

ELEMENTOS PARA UMA FILOSOFIA AFRODESCENDENTE

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Sumário

TRILOGIA DA ANCESTRALIDADE: Ensaios de Filosofia Africana


Ética da Alteridade e Ontologia da Diferença: por uma estética da
libertação
INTRODUÇÃO
COSMOVISÃO AFRICANA: A África antes da invasão europeia
Aspectos Históricos
Império do Gana
Império do Mali
Império do Songai
Aspectos Filosóficos
Elementos estruturantes das sociedades africanas
Universo
Força Vital
Palavra
Tempo
Pessoa
Socialização
Morte
Família
Produção
Poder
Ancestralidade
Religiões Africanas
II. COSMOVISÃO AFRICANA: A Forma Cultural Africana no Brasil
Escravidão no Brasil
Cultura Negra
Aspectos Civilizatórios

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1) A questão do conhecimento, da memória e sua transmissão
2) Sincretismo religioso
Relações de Gênero e Candomblé
Meio Ambiente e Candomblé
Formas Culturais
A Filosofia Banto
Integração
Diversidade
Tradição (Ancestralidade)
III. CULTURA BRASILEIRA E AFRODESCENDÊNCIA: Sobre o Jogo
das Identidades e a Política da Africanidade no Brasil
Movimentos Sociais Populares, Práxis e Subjetividade
Ética dos Movimentos Sociais Populares
Subjetividade Subversiva e Alteridade
O Mito da Mestiçagem
A Negação do Negro Brasileiro
Identidade Africana no Brasil
Princípio do Corte e Memória Coletiva
Filosofia Africana
Filosofia Africana como Filosofia do Encantamento
Forma Cultural e Filosofia Africana
Ética e Moralidade
CONSIDERAÇÕES FINAIS
ENSAIOS DE FILOSOFIA AFRICANA: Trilogia da Ancestralidade
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
SOBRE O AUTOR
Bibliografia do Autor:
Conselho editorial

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Agradeço especialmente a sensibilidade artística e generosidade de Kleyson
Rosário Assis, (Otun Elebogi), pelas fotografias que ilustram as capas dessa
Trilogia da Ancestralidade.

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TRILOGIA DA ANCESTRALIDADE: Ensaios de
Filosofia Africana

A história da filosofia é a história de suas transformações, ainda mais


quando operar transformações é uma exigência nascida no âmago do autor1,
e ele é uma expressão singular de seu tempo. A filosofia é texto, não há
dúvida, mas, sobretudo, é contexto.
Esta Trilogia da Ancestralidade publicada pela Editora Ape’Ku na
Coleção X, trata, efetivamente, de uma Filosofia das Relações, ou como
dizia Glissant (2011), de uma Poética das Relações2. Relacionam-se aqui, o
tempo e o espaço, difusos e complexos, numa trajetória à deriva que traça
um curso curioso, sem planos ou controles prévios, mas cumprido como
trajetória e que se expressa como uma epistemologia da liberdade,
desenhando uma Poética da Ancestralidade que tem seus contornos
delineados em três obras consecutivas: Cosmovisão Africana no Brasil:
elementos para uma filosofia da educação brasileira (2003); Ancestralidade
na Encruzilhada (2007) e Filosofia da Ancestralidade: corpo e mito na
filosofia da educação brasileira (2007).
Ao longo do tempo, o que era uma pesquisa de pequena envergadura,
foi se transformando junto com a demanda pública pelas africanidades no
Brasil. Era o momento do primeiro governo popular brasileiro - o presidente
operário, nordestino, negro, assinava a Lei Federal 10.639/200 que instituía
o ensino obrigatório, em todas as etapas da educação brasileira, da Educação
das Relações Étnico-raciais (ERER) e História e Cultura Africana e Afro-
brasileira (HCAA). Naquele momento, eu publicava o livro Cosmovisão
Africana no Brasil (2003), gestado nos anos anteriores, no seio do
movimento social de maioria negra e publicado um ano antes do Parecer
004/04, que instituía as Diretrizes da ERER e HCAA, contemplando, para
minha surpresa, o conteúdo programático anunciado no Parecer.
Muito embora meu livro nascesse para atender a uma demanda muito
pontual de um evento no Recôncavo baiano, extraoficialmente, foi o
primeiro livro a atender à demanda da Lei Federal, a ser utilizado pela recém
criada SECAD – Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e
Diversidade do Ministério da Educação. A publicação visava atender a um

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público limitado composto por professores(as), ativistas e o povo-de-santo
para um evento, em uma cidade do interior baiano. Seu índice, no entanto,
era extravagante: pretendia açambarcar uma leitura de séculos, que defendia
as continuidades entre Brasil e África.
De um só lance, era a síntese da história e cultura africana no
Continente, utilizado como referencial cultural e político no enfrentamento
ao racismo através da educação das relações étnico-raciais, visando à
promoção de políticas públicas e afirmativas para a população negra
brasileira.
Pretensioso no conteúdo e limitado na edição, “Cosmovisão”, sem que
eu soubesse, me lançava em uma aventura que foi delineando meu
pensamento pari passu com o movimento social negro, a entrada
significativa de negros e negras nas universidades, a eleição de
parlamentares negros(as) em escala municipal, estadual e federal, a
consolidação da política de reserva de vagas nas IFES, o debate público
sobre as ações afirmativas.
Ao mesmo tempo em que eram exigidas transformações relativas à
implementação da Lei 10.639/03 (o conteúdo programático, a formação
docente, as áreas de conhecimento envolvidas etc.), transformava-se também
a forma, a linguagem, a metodologia, a epistemologia. Estive então,
banhando-me nas águas turbulentas da História.
Assumi a filosofia africana como uma filosofia africano-brasileira3,
que entende o Brasil como ponto equidistante entre a América Latina e o
continente africano, filiando-se, a um só tempo, às Filosofias da Libertação
latino-americana e às Filosofias Africanas, tendo como foco o solo brasileiro
e seus desdobramentos.
A Trilogia da Ancestralidade é uma expressão dos fluxos dessas águas
históricas, ora revoltas, ora serenas, sempre densas, e sempre expressão de
afeto e compromisso para com meu lugar de pertencimento e expressão: as
africanidades.

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Ética da Alteridade e Ontologia da Diferença: por uma estética
da libertação
Como articular uma Ética da Alteridade, cujos princípios pretendem a
universalidade, com uma ontologia da diferença que radicaliza o princípio da
singularidade situada em topologias contextualizadas? Quais frutos trariam o
diálogo entre vertentes filosóficas tão afins, quanto distintas, como são a
filosofia da libertação, a interculturalidade, a decolonialidade, a filosofia da
diferença, o pensamento africano e mesmo, o pensamento social brasileiro
com recorte étnico-racial?
Esse o compromisso da reedição, em forma de Trilogia, 18 anos depois
da primeira edição do Cosmovisão, articular uma ética baseada no Outro,
que fuja da perspectiva solipsista do Mesmo, e encontre seu ponto de tensão
e fusão numa ontologia que afirma radicalmente a diferença do Outro, sem
reduzi-lo a esquemas universalizantes, valorizando sua pertença de gênero,
de classe, de origem e étnica, no intuito de, habitando tal encruzilhada,
apontar para a possibilidade e a potência de uma estética da libertação que
encarna o movimento epistemológico da produção do conhecimento, bem
como, o princípio ético-político de manter e aumentar a liberdade pública e
privada.
Ressalte-se que o lugar discursivo da macro-pesquisa que desenvolvo,
situa-se nas Africanidades, que anuncia seu diálogo com a perspectiva
indígena, realizando uma travessia entre a filosofia latino-americana e a
filosofia africana, tendo como ponto equidistante o Brasil, como território, e
a filosofia africano-brasileira como destino.
Nas obras que integram a Trilogia concentrei-me em discutir, a partir de
uma escolha autoral, a perspectiva de uma filosofia africano-brasileira com
ênfase no tema da ancestralidade. Produzi o conceito de ancestralidade e
com ele desejei construir um plano de imanência que agencie outros
conceitos como os de corporeidade, encantamento, rito, mito, deriva, beleza,
estética da libertação, epistemologia da liberdade, entre outros, valores e
ações que perfazem uma reflexão que se desloca, frequentemente, entre a
epistemologia, a ética e a estética, guardando ainda relações com a política e
a ontologia.
Outrossim, a dimensão poiética e poética4 dessa experiência que se
configura numa estética da libertação, encontra no conceito de deriva, o par
de relação, por excelência, com o conceito de ancestralidade.

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O problema da investigação que desenvolvo se dá no âmbito dos
diálogos Sul-Sul. Há uma sobreposição de problemas a serem investigados:
1) o diálogo entre perspectivas críticas do pensamento latino-americano
entre si e deste com o pensamento africano; 2) coadunar uma pesquisa
marcadamente latino-americana, intercultural, decolonial, em diálogo com a
filosofia da diferença, de origem europeia; 3) partir da estética como ponto
de referência para a epistemologia e a ética; 4) problematizar a ausência de
pesquisas avançadas sobre os temas das africanidades na filosofia da
libertação, interculturalidade, na decolonialidade, e mesmo no pensamento
social brasileiro; 5) considerar o negro e a negra como sujeitos
epistemológicos, uma vez que parte significativa da filosofia da libertação,
da filosofia intercultural, da decolonialidade e do pensamento social
brasileiro, apesar de manifestadamente apresentarem-se antirracistas, não
aprofundaram a produção de conhecimento com base na cultura africana e
afro-diaspórica.
Em realidade, face aos ataques aos direitos humanos em todo o mundo,
assim como, diante de movimentos como BLACK LIVES MATTER/VIDAS
NEGRAS IMPORTAM (2020), particularmente nas Américas e na África,
visamos manejar a Filosofia Africana na perspectiva propositiva de anunciar
sendas éticas, tanto na política, na cultura, na arte, quanto na ciência, bem
como, criar outras perspectivas de compreensão/intervenção no mundo
contemporâneo.
Intento assim, realizar uma revisão crítica das vertentes filosóficas que
estamos abarcando e, a partir da crítica, passar para a criação, ou seja,
esboçar uma filosofia propositiva com relação a uma estética da libertação,
com base na cultura africana do continente e da diáspora5.
Quanto à Filosofia da Libertação, por exemplo, já vai longe a polêmica
entre Salazar Bondy e Leopoldo Zea6 sobre a originalidade – ou não - da
filosofia na América Latina, que, no entanto, sempre volta ao cenário quando
o assunto é o filosofar em solo latino-americano. Do final da década de 1960
para cá, há transformações radicais no contexto político, econômico, social e
cultural que se refletem, certamente, na produção filosófica da e na América
Latina, não obstante a cilada ainda esteja armada, isto é, limitar-se ao debate
sobre a universalidade da filosofia ou sua circunstancialidade identitária.
Para driblar a dupla armadilha, de um universalismo ideológico e de
uma contextualização relativizante, é que proponho cartografar o
pensamento contemporâneo, dando ênfase ao contexto latino-americano e,

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particularmente, ao contato entre os africanos e seus descendentes na
sociedade brasileira e seus desdobramentos na produção da filosofia.
Pretendo com isso, rejeitar tanto o estruturalismo generalizante, quanto o
culturalismo exacerbado, explícitos nas abordagens antes mencionadas.
Em termos de pensamento contemporâneo, particularmente da filosofia
da diferença, não quero reproduzir a contenda entre estruturalismo e
culturalismo que marcou o pensamento europeu na década de 1960. Opto
pela dupla crítica aos modelos reducionistas e assim, evito a resolução da
contenda pela reconciliação dos pares.
A utilização do conectivo “e” está longe de ser conciliador e sintético, e
contribui mais para a problematização e desconstrução/reconstrução dos
conflitos do que para sua solução harmônica. Assim, estruturalismo e
culturalismo formam uma unidade conflituosa, só passível de ser
compreendida se, por um lado, evidenciamos seus conflitos e, por outro,
suprimimos sua aparente dissociação em vista de uma proposição filosófica
que ao invés de evitar, assume esse conflito como ponto de partida.
A Diáspora Africana é emblemática a esse respeito, pois não foi apenas
um acontecimento estrutural, como também, e concomitantemente, uma
ocorrência que modificou as configurações culturais no planeta. O evento
mudando a história; a história desdobrando-se em eventos.
Com efeito, a Diáspora Africana semeou pelo planeta modos muito
diversos de organização da vida e da produção, baseados nas culturas do
continente africano, ao mesmo tempo tão distintas e similares. Na América
Latina, as experiências diaspóricas de África, em contato/conflito com as
experiências indígenas e europeias, ganharam outros contornos e geraram
novos problemas.
A polaridade continuidade-ruptura sintetiza muito bem essa
problemática, que atravessa os séculos, desafiando o pensamento na
América Latina, a não negar a permanência da cultura africana entre os
latino-americanos e, concomitantemente, a não manter a ideologia ingênua
de que a cultura africana tenha deitado suas raízes na América, de maneira
atávica. Diáspora é signo de movimentos complexos, de reveses e avanços,
de afirmação e negação, de criação e mimese, de cultura local e global, de
estruturas e singularidades, de rompimento e reparação.
Se, de um lado, a filosofia latino-americana abriu as porteiras da
filosofia para os temas do indigenismo, negritude, juventude, gênero,
trabalhadores, cultura popular entre outros, sem, no entanto, adentrar na

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especificidade dos temas, tratando-os desde uma perspectiva longínqua – ao
menos no que se refere à negritude, sem desenvolver um corpus singular
para africanos e seus descendentes na diáspora, por outro lado, foi na
filosofia da diferença que encontrei subsídios conceituais suficientes para
pensar a diferença desse Outro apontado pela Ética de Lévinas,
materializado de maneira generalizante pela filosofia da libertação, mas
ainda não respeitado como sujeito singular da produção de saber, sequer pela
própria filosofia da diferença.
Com efeito, Deleuze e Guattari (1995)7 contribuíram largamente para
fazer a crítica dos modelos miméticos, em vista de desenvolver fluxos e
processos de criatividade e construção. A diferença como signo seminal,
permite distanciar-me dos discursos platônico-hegelizantes da
universalização. Mas, como efeito colateral, os filósofos da diferença não se
aproximaram com potência da produção africana ou diaspórica, e, de certa
maneira, recaem na armadilha do discurso culturalmente carcerizante de uma
Europa subjacente ao discurso de singularidade.
Intento aqui aproveitar-me da crítica radical aos processos totalizantes e
valer-me generosamente dos processos de singularização, mas, ao nosso
modo, singularizar implica etnicizar, não como território único de
enunciação, mas como território contextualizado e singularizado de
produção de narrativas.
Dessa forma, nossa Filosofia da Ancestralidade vislumbra esse diálogo
entre a filosofia da diferença, de matiz europeia, com a filosofia latino-
americana, bem como acrescentar ao diálogo a filosofia africana e entretecer,
a partir desse mangue conceitual, uma rede de argumentos e experiências
com a filosofia africano-brasileira à qual me dedico a desenvolver num
cenário decolonial e intercultural.
Não sou partidário, portanto, da tese da continuidade da cultura africana
no Brasil, de maneira atávica, nem da ruptura radical dela no solo brasileiro.
Resulta óbvio que os processos se interpenetram e que o movimento da
minha investigação é justamente cartografar quando um tem ênfase sobre o
outro. Mas muito mais que rupturas e continuidades interessa-me pensar e
viver a experiência da contiguidade, ou seja, meu ponto de partida é o
pertencimento, e elejo o tempo de agora como o tempo de enunciação.
Para a publicação dessa Trilogia da Ancestralidade vale lembrar que a
escolha foi realizar uma síntese-criativa da produção em torno da filosofia
africano-brasileira, elegendo a autoria como fio condutor da obra.

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O que ressignifica a produção sobre a Cosmovisão Africana no Brasil,
sobre a Ancestralidade na Encruzilhada e sobre a Filosofia da Ancestralidade
é justamente uma Estética da Libertação que, a seu modo, sobrecodifica o
campo da filosofia africano-brasileira. Elegendo a Estética como a Primeira
Filosofia, os Ensaios de Filosofia Africano-brasileira são então, derivações
da Estética da Libertação, tanto na origem como no destino: é nossa arché
narrativa.
É desde a tradição do pensamento social brasileiro, no qual me insiro
por razões de contiguidade, que a Trilogia da Ancestralidade visa a
contribuir, desde o solo fértil da cultura brasileira, tanto com nosso território
e seus dilemas, quanto com os dilemas do planeta que são tangenciados por
nós, nessa rede de relações que compõe o mundo contemporâneo.
Por fim, cabe observar que as articulações entre o pensamento latino-
americano e o africano aqui estão sumariamente abordados, muito mais
como contexto para uma filosofia africano-brasileira que se apresenta como
uma das possibilidades da filosofia africana – ênfase dessas reedições.
Revisito as obras Ancestralidade na Encruzilhada, Cosmovisão
Africana no Brasil e Filosofia da Ancestralidade, que não seguem uma
ordem cronológica de publicação, mas uma ordem lógica de raciocínio que
foi se desenhando como Estética da Libertação de uma Filosofia Africano-
Brasileira, à luz da pesquisa filosófica com e desde os sujeitos culturais de
libertação.
A filosofia, de início, foi como o cimento que agrega uma perspectiva
dinâmica da ação dos indivíduos na história com uma análise da mesma
história em larga escala. A tentativa era a de apresentar uma interpretação
que fosse ao mesmo tempo estruturalista e singularizada. Demorei certo
tempo para ter sucesso nessa análise, mas quando finalmente compreendi
que a forma cultural africana é em si mesma uma forma ética, esse
empreendimento tornou-se possível e vislumbrei aí um projeto de vida,
muito mais que um plano de estudos.
Será necessário, então, que eu apresente o programa dessas publicações
para expor os principais resultados dessa proposta de pensar a ética como um
vetor da filosofia, e a filosofia como uma estética, configurando uma
perspectiva ético-estética como locus enunciador da filosofia.
Cosmovisão Africana no Brasil: elementos para uma filosofia
afrodescendente, foi publicado em 2003. Ele surgiu por conta da primeira
Conferência de Africanidades, realizada na cidade de Cachoeira, Recôncavo

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da Bahia, em 2003. Destinou-se, inicialmente, aos militantes do movimento
negro, professores/as da educação básica e para o povo-de-santo8. Inicia
fazendo uma crítica conceitual ao Capitalismo Mundial Integrado e critica o
regime do Capital como Único Universo de Referência no mundo dito
globalizado.
Além do signo dominante do capital, denuncia também seus correlatos:
o SIGNIFICANTE (na linguística) e o SER (na ontologia). Contra a falácia
da REPRESENTAÇÃO engendrada pela filosofia moderna, apresenta a
COSMOVISÃO AFRICANA, como signo distintivo da diversidade e como
experiência histórica que desautoriza o discurso homogeneizante do
capitalismo contemporâneo.
A história africana, então, é apresentada como um contra-discurso.
Trata-se, no horizonte geral da pesquisa, de mostrar a África como um
estudo de caso para desbancar a pretensão universalista do ocidente. É assim
que cinco séculos da história africana (do séc. X ao XV) é abordada numa
perspectiva macrossociológica. Acompanha-se, assim, a criação de três
grandes Impérios Africanos: o de Gana, o do Mali e o do Songai. O olhar
busca similaridades entre eles e consegue, depois de realizar uma síntese
histórica, elencar onze elementos estruturantes dessas sociedades: as
concepções de universo, força-vital, palavra, tempo, pessoa, socialização,
morte, família, produção, poder e ancestralidade.
Tendo um exemplo significativo da história da África pré-colonial,
voltam-se os esforços para compreender a forma cultural africana no Brasil,
ou seja, como re-criamos a África entre nós. Aqui revisou-se sumariamente
o escravismo criminoso brasileiro e atentou-se para a cultura negra
ressemantizada no Brasil, dando atenção especial ao Candomblé, como
território de produção de subjetividades e de uma filosofia que tem na
relação com a natureza o seu principal sustentáculo.
Dessa recriação da cultura africana em solo nacional, destaquei três
princípios filosóficos que conseguem unificar, para efeitos de compreensão,
a diversidade africana: integração, diversidade e tradição. No terceiro
capítulo, então, tratei do jogo das identidades, das políticas da africanidade e
da fundamentação filosófica, iniciando com a discussão da práxis dos
movimentos sociais, dando ênfase à ética e à subjetividade.
Fazendo uma leitura política da formação das identidades no Brasil,
lancei mão da semiótica para criticar o conceito de identidade e estabelecer
como categoria de análise o outro excluído, neste caso, “o negro”. Ao fim,

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propus uma filosofia africana com base na experiência histórica da África
pré-colonial e com base na atualização e recriação dessa experiência em solo
brasileiro.
Por fim, vislumbrei as categorias encantamento e ancestralidade como
as principais descobertas desse trabalho seminal. Afastei-me do conceito de
estrutura e o substituí pelo de forma cultural, mantive o de singularidade e
encerrei o livro com uma reflexão sobre a ética e a moralidade africana, a
partir dos personagens da cultura religiosa africana: Exu (ética) e Oxalá
(moral), ressignificando esses conceitos em termos da filosofia africana.
Ancestralidade na Encruzilhada foi o último livro a ser publicado
(2007), mas o segundo a ser escrito. Ele é o resultado da minha pesquisa de
mestrado em antropologia social na qual me debrucei sobre os últimos cem
anos de candomblé no Brasil. É uma etnografia, por certo, mas uma
etnografia dos mortos, já que tratei de autores como Nina Rodrigues, Artur
Ramos, Edson Carneiro, Ruth Landes, Roger Bastide, Pierre Verger, Duglas
Monteiro, Peter Fry, Lísias Negrão entre tantos, dialogando com eles,
fazendo-lhes dialogar. Tratou-se de uma obra crítica, tanto em relação à
militância, como em relação à academia, quanto em relação ao povo-de-
santo. Daí seu título conter o signo: encruzilhada.
Com efeito, a ancestralidade, que se apresenta como a categoria capaz
de explicar a experiência no universo cultural do candomblé contemporâneo,
sendo considerada a mais antiga e fundamental das explicações, tem o
sentido que tem hoje articulado há apenas 35 ou 40 anos9.
De fato, é mais uma invenção que surgiu no período denominado por
Reginaldo Prandi de re-africanização do Candomblé, quando as mães-de-
santo de terreiros tradicionais da Bahia resolveram distinguir-se de maneira
taxativa do catolicismo, realizando, assim, a maior crítica já feita ao
sincretismo brasileiro.
A frase de Mãe Stela de Oxóssi é emblemática neste contexto: “Iansã é
Iansã, Santa Bárbara é Santa Bárbara!”. Anterior à categoria ancestralidade,
havia o termo pureza nagô, cunhado pelos autores da Escola Nina
Rodrigues. Como contraponto aos homens desta Escola, utilizei a
antropóloga feminista Ruth Landes, que, contemporânea deles, fez uma
crítica ao nagocentrismo no livro intitulado: Cidade das Mulheres. Era o
verso e o re-verso da pureza nagô. Até aqui estávamos entre a virada do
século XIX até a década de 1930.

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Daí passei a investigar o período que ia da pureza nagô até a re-
africanização do candomblé, e elegi Roger Bastide como meu principal
interlocutor, já que ele apesar de não falar em ancestralidade como categoria
explicativa das Religiões Africanas no Brasil, já anunciava uma metafísica
sutil subjacente à prática do candomblé. Primei pela diversidade de
abordagens e escolhi Peter Fry e suas críticas ao nagocentrismo. Por fim, fui
da africanização à criação do conceito de ancestralidade e evidenciei que ela
deixou de ser uma referência de relações consanguíneas, para se tornar o
principal conceito articulador da tradição africana no Brasil e suas regras.
De relações contextuais de parentesco, ela passou a ser uma categoria
de análise. De relações restritas a linhagens, passou a ser a “lógica” do
espaço sagrado e, portanto, social, do povo-de-santo no Brasil.
A obra Ancestralidade na Encruzilhada denunciou um autor na
encruzilhada. Encruzilhada entre a militância e a academia, entre a academia
e a iniciação religiosa, entre ser iniciado e o ativismo político.
De certo modo, essa obra foi uma crítica ao livro anterior, Cosmovisão
Africana no Brasil. Denuncia os mecanismos culturais de invenção e re-
invenção de tradições, aponta o caráter provisório das construções
ideológicas, analisa os discursos e contra-discursos na época mesma de suas
enunciações e, assume um papel crítico ante tudo.
Próprio da Antropologia, o livro critica e relativiza os pontos-de-vista
de nativos e intelectuais. Mas o que mais me seduziu na antropologia foi, ao
mesmo tempo, a pesquisa de campo como suporte metodológico e teórico, e
a teoria antropológica baseada numa compreensão semiótica da cultura.
A meu ver, minha pesquisa de mestrado não deu conta, a contento, das
relações entre singularidades e estruturas. Ela fez o trabalho que
imediatamente antecede à resolução dessa relação, a saber: a crítica e o
desmonte de ideologias que se apresentam naturalizadas e naturalizantes.
Faltava-me, entretanto, ousar mais e superar o paradigma analítico da
filosofia moderna e escrever um texto propositivo, assumindo posições, sem,
entretanto, deixar de lado o papel sempre muito democrático da crítica.
Filosofia da Ancestralidade: corpo e mito na filosofia da educação
brasileira foi exatamente a materialização dessa proposta acadêmica. Para
além da análise, que separa para conhecer, optei por uma tese propositiva,
assumindo conteúdos ideológicos, escolhendo pontos-de-partida
(arqueologia) e vinculando-me, não sem crítica, a uma tradição.

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Foi neste texto que melhor conciliei Antropologia, Filosofia e
Educação. Foi nele também que acreditei ter encontrado pistas que
conciliem estrutura e singularidade, natureza e cultura, indivíduo e
sociedade. Uma tese como essa, que se tornou livro, não poderia manter a
forma clássica da narrativa científico-acadêmica. Ela, então, quis dizer tanto
com a forma quanto com o conteúdo.
A discussão subjacente é a ética, não como conteúdo dos capítulos
apenas, mas no modo de dizer, ao que acrescentou-se a estética – não como
teoria da arte, menos ainda como reflexão sobre o belo, mas como forma,
como aesthesis.
A primeira tese encerra-se exatamente no modo como o livro é escrito:
ele pretende dizer com sua construção estética que, por sua vez, trata-se de
uma proposição ética. Eis o ponto de partida principal. Esta tese pretendeu
ser uma obra de arte.
Fiz uma etnografia de minhas próprias experiências na Tempo Livre:
espaço de consciência corporal e ancestralidade africana, e no GCAP -
Grupo de Capoeira Angola Pelourinho, núcleo do Ceará. Mas como bem
observou Kabengele Munanga, que estava na banca de defesa da tese,
utilizei o meu corpo como artifício para discorrer sobre o corpo social do
negro na sociedade brasileira. Uma vantagem dessa escolha metodológica
foi a radicalização da categoria experiência em contraponto à insistência da
filosofia ocidental nas categorias de abstração (essência, metafísica, ser,
representação etc.).
Não uma experiência depurada pela razão, como queriam os empiristas,
nem uma razão que sobrepusesse as experiências, como queriam os
racionalistas. Uma experiência integral, onde a razão e o desejo
desenvolvem um jogo sem finalidades determinadas, mas, entretanto, com
regras e transgressões.
Uma experiência que acompanha o fluxo, o devir, o acontecimento. É
neste sentido que afirmei tratar-se de uma filosofia do acontecimento.
Como experiência, busquei um pensamento que estivesse sempre em
movimento, fosse o movimento da cultura ou o movimento do corpo, ou,
melhor ainda, o movimento da cultura no corpo e o movimento do corpo na
cultura.
Identifiquei territórios para prover sua desterritorialização.
Desterritorializei territórios de identidades para descobrir outros territórios

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de alteridade. Foi um jogo, uma ginga. Um confronto. Uma filosofia da
diferença. Diferença propositiva e afirmativa.
A voz e o corpo daqueles que historicamente tem tido negado seu
direito à palavra e à cidadania. O corpo do outro, afrodescendente,
escravizado, erotizado, satanizado. Diferença que se afirma em regimes de
inclusão (Tempo Livre; GCAP). Diferença que encerra nos movimentos do
corpo uma epistemologia própria, oriunda de um contexto cultural que
produziu signos e significados específicos que, no bailar de conceitos,
categorias e experiências, foram vindo à tona no percurso narrativo desse
livro.
A organização do livro obedeceu à divisão de duas partes: I) Do
Movimento; II) De Estruturas e Singularidades. O Movimento ocupou-se do
Corpo, e Estruturas e Singularidades ocupou-se do Mito. Cada uma das
partes contém quatro capítulos, e cada capítulo pode ser lido aleatoriamente,
sem necessidade de uma leitura linear. Toda a primeira parte realiza uma
etnografia das atividades da Tempo Livre.
Para compreender a Tempo Livre, fez-se necessário, antes,
compreender a trajetória de Norval Cruz. Assim, a partir da convivência que
estabeleci com ele durante os dois anos contínuos da pesquisa de campo, das
entrevistas por ele concedidas, etnografei sua experiência através da re-
criação de seu ambiente familiar, de sua relação com o meio-ambiente, de
sua interação social, de seus vínculos com a ancestralidade africana, e,
sobretudo, na criação da Tempo Livre.
Com exceção das memórias de Norval, as experiências narradas no
texto foram todas elas protagonizadas por mim, com a intenção deliberada
de atendo-me às minhas experiências no grupo, eu estivesse etnografando
muito mais o grupo que minhas experiências. Foi um recurso metodológico
que utilizei para acompanhar o grupo sem atrapalhar as dinâmicas coletivas.
Utilizei duas estratégias narrativas: a recriação literária das memórias
de Norval Cruz e a transcrição literal do meu diário de campo. Por isso, o
texto exala emoções e reflexões muito particulares, mas que incidem, a todo
o momento, no corpo social (seja dos grupos que frequentam a Tempo Livre,
seja do corpo social do negro(a) brasileiro).
Não é um texto autoexplicativo, portanto. Ele diz na sua forma, no
modo como organiza os argumentos, na descrição das paisagens, no
significado latente, no modo de dizer mais pelo estilo do que pelo conteúdo.
É neste sentido que é uma obra-de-arte. Assim, é literatura para iniciados. O

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último capítulo10, entretanto, quebra a regra e, por entender que a tese é
pública e não exclusiva para iniciados (seja em literatura, religião, ciência ou
filosofia), expõe as teses que estão implícitas nos capítulos anteriores, e
desenvolve um conceito de corpo a partir da experiência africana em solo
brasileiro, particularmente na Tempo Livre e na Capoeira Angola.
Definido o que é o corpo (são apresentadas várias definições
provisórias; a primeira é: “o corpo é chão”) e apresentando a tese sob a
forma de aforismos, temos a seguinte argumentação: o corpo é já uma
filosofia. Reparem: não é fazer uma filosofia sobre o corpo, mas filosofar
desde o corpo. Esse é o intento. Daí a relevância da categoria experiência.
Antes de ser contemplado, revelado, refletido, manipulado, analisado,
compreendido, o corpo é sentido. Não trato do corpo como um dado
biológico. Isto é evidente! Trato o corpo como uma construção social, como
um signo, como algo constantemente em mudança, devir, como jogo de
identidades flutuantes, como afirmação de alteridades.
Como Deleuze e Guattari, acredito que a tarefa da filosofia é produzir
conceitos. Tenho o primeiro: corpo. E que consequências o corpo vai trazer
para a filosofia?11 Vai redesenhá-la. Assim, i) a filosofia, doravante, não
pode não partir de um território, de um lugar. Fica para trás a ilusão
universalista da modernidade, supervalorizada no Iluminismo. O lugar do
qual parto é o lugar da cultura africana – território desterritorializado pelo
escravismo criminoso e pela diáspora forçada, aos quais foram submetidos
mais de 6 milhões de africanos.
A filosofia é invenção e, ao mesmo tempo, memória. Estou às voltas
com o binômio tradição/novidade. Não mantenho a dicotomia, mas faço ver
que a tradição é o tempo todo reinventada na dinâmica dos contextos onde
ela se apresenta; ela reinventa a si e a seu território.
A filosofia é uma atitude. Aqui se encerra o fundamento ético
propriamente dito. Ética não se diz de abstrações formais, mas de práxis. É
atitude! A filosofia compreendida como atitude e não como especulação é
uma das minhas teses.
O corpo é imanência que é transcendência, ou seja, abordo o corpo
como territorialização e como desterritorialização simultaneamente. Por ora,
o que me interessa dizer aqui é, se a filosofia é uma atitude e se a atitude é
alguma coisa que se diz dos corpos, então a filosofia é uma ética que nasce e
parte deles.

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A ética é um modo de educação dos corpos. Reincide, assim, sobre
a educação, o que estou a dizer sobre a filosofia. Em se tratando de corpos,
falamos de criação. É, pois, uma filosofia criativa que está em gestação neste
momento. Por falar em gestação, pergunta-se sempre: como se constrói um
corpo? Como se dá sua auto-poiesis? Quais os significados que incidem
sobre o signo-corpo? O corpo tornou-se uma metáfora amplamente utilizada
na sociedade contemporânea. Por conta do uso metafórico do corpo ele
passou a funcionar como uma metalinguagem que sobrecodifica outras
linguagens. Passou a ser um superlativo da cultura.
Primei pelos meus próprios referenciais de cultura, o que me levou a
pensar uma filosofia (e uma educação) a partir das atividades de consciência
corporal e da prática da capoeira. Falta-me dizer, ainda, de que horizonte
conceitual estou partindo. Que instrumentos interpretativos estou utilizando
e como se configura a filosofia que estou anunciando.
O mito joga um papel fundamental na trama da tradição africana
recriada no Brasil. Sem embargo, o mito (e o corpo) são os legados africanos
que os escravizadores não conseguiram dizimar por completo. Por certo, as
instituições políticas e econômicas foram destruídas pelo colonizador, mas o
corpo negro-africano foi reinventado no Brasil; a memória encontrou nos
mitos a forma de manter-se e recriar-se.
O mito tornou-se o território de reconstrução da identidade – sempre
em mutação – dos/as africanos/as e seus/suas descendentes. Ele, portanto, é
o território sapiencial por excelência da população diaspórica. Sua forma
narrativa, seu modelo encantatório, sua síntese histórica, sua verve poética,
sua força agregacionista, sua potência simbólica, fundamentais para a
reconstrução de todo um povo que, através dos mitos, soube preservar e
atualizar seus conhecimentos políticos, sociais, medicinais, sociais,
linguísticos e, propriamente, religiosos.
Exu12, dentre todos os orixás do panteão iorubano que veio para o
Brasil, é, sem dúvida, o de maior potência filosófica, por isso o escolhi como
meu principal personagem conceitual. Exu habita as encruzilhadas. É pai de
todos os caminhos. Seu movimento é a ginga. Seu nome é esfera. Sua função
é a comunicação. Seu princípio é dinâmico. Ele é o princípio individual de
tudo o que existe. Assim, é pura imanência. Sendo o princípio individual da
existência é também o princípio dinâmico de todo o universo iorubano, uma
vez que a soma do todo resulta em Exu13.

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Assim, Exu é transcendência. Pela primeira vez não uma
transcendência desencarnada, mas incorporada no “dono do corpo”14. Ao
mesmo tempo Exu é a expressão da singularidade e da estrutura. Acontece
que essa singularidade é polifônica, polimorfa, polissêmica e, e acontece
também que essa estrutura ginga. Exu é o signo forte da cultura. Não pesa
sobre ele uma definição. Ele tem muitas faces. Ele não é verdade, mas
interpretação. Ele não é essência, mas devir. Ele não é monolítico, mas
diverso. Ele não é moral, mas ético.
Exu é o horizonte desde o qual se arrolam os argumentos por mim
desenvolvidos, por ser exatamente o personagem conceitual mais plástico,
mais surpreendente e mais encantador desse baluarte cultural. Não foi por
acaso que ele foi sincretizado com o satanás. Demonizar Exu é demonizar,
automaticamente, todos os africanos trazidos forçadamente para o Brasil. É
demonizar seus ritos. É satanizar sua cultura. Por isso, operamos esse ritual
de inversão, àquele que foi investido como o símbolo do mal, nós o tratamos
como o signo da ética. É o paradigma Exu que está em tudo e em cada parte.
Desde esse horizonte epistemológico, emerge um regime de
signos, isto é, a minha ótica sobre a educação e sobre a filosofia. Trata-se de
vislumbrar a semiótica do encantamento.
Com o advento de leis como a 10.639/03 e a 11.645/08 tem-se sempre a
perspectiva de estudar o negro na história brasileira. É um avanço, sem
dúvida. Proponho, no entanto, que abordemos a história do Brasil na
perspectiva dos negros.
Não é incluir a cultura africana como uma disciplina no currículo, mas
pensar a matriz curricular na perspectiva da cultura africana. Não como o
único referencial cultural, mas como um referencial possível.
Do ponto de vista político, esse é o maior alcance dessa obra. É assim
que pesquisei a capoeira angola. Não enfoquei nenhuma perspectiva
histórica, sociológica ou fisiológica. Centrei-me em sua filosofia latente e,
assim, destaquei-a como um regime semiótico que me oferece os elementos
necessários para uma interpretação do mundo.
Esse regime semiótico não é despótico. Não pretende
sobrecodificar outros regimes. Evidencia apenas que uma roda de capoeira
não é um “folguedo”, um “folclore”; é, sim, um micro-espaço sociológico
que mantém – e recria – o macro-cosmos africano. Daí falar-se em filosofia.
Daí ensejar a ética.

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A estrutura da roda de capoeira, em si, é uma forma ética. Ela tem seus
elementos idiossincráticos, como a vertigem, a mandinga, a ginga, o
mistério, a saudade, a magia, a simulação, a ancestralidade, o encantamento.
A luta (que não é luta), o jogo (que não é jogo), a dança (que não é dança), a
arte (que não é arte) da capoeira tem um regime de signos que encanta – esse
é seu principal traço diacrítico! É um jogo de corpo. Tem regras, que apesar
de não serem fixas, são rigorosas: o que rege a roda da capoeira é a
ancestralidade – daí o respeito e veneração pelos mestres. O movimento da
capoeira angola é o da ginga. Gingar é ocultar, mostrando; é mostrar,
escondendo. É simulação. Simulacro. Cultura.
A filosofia da ancestralidade nasce do encontro da filosofia da
terra africana com a filosofia do colibri - latino-americana. Para evidenciar a
filosofia africana pesquisei as culturas yorubana, jêje, angola e,
particularmente, a cultura Dogon, destacando ali os princípios fundamentais
daquela sociedade.
Antes de tudo, atesto que a cultura africana (costa ocidental e África
Austral) é uma cultura do encantamento. Os Dogon possuem uma filosofia
que literalmente brota do chão, e sua compreensão cosmogônica e
cosmológica da existência gira em torno da semente Kizi Uzi (ou Digitaria
Exilis), que significa “a coisa pequena”, e é, ao mesmo tempo a menor parte
do universo e o universo inteiro (teoria do fractal). Da vibração da Kizi Uzi
emana o movimento em ondas que gerará toda a sociedade e cada indivíduo.
Eis aqui o princípio da emanação.
Os elementos que emanam da Digitaria Exilis desdobram-se sempre em
pares binários (quente-frio; esquerda-direita; ímpar-par; macho-fêmea), o
que nos leva ao princípio da geminilidade, que por sua vez mostra como os
pares binários são complementares e não concorrentes, e fundem-se numa
equilibrada proporção dinâmica. Disso decorrem, então, os princípios da
complementaridade e da ponderação (ou princípio do equilíbrio).
A visão de mundo Dogon é semiótica: pensa o mundo para além das
representações. Para o povo Dogon a vibração da semente original cria um
movimento em zig-zag e elíptico que se multiplica ao infinito, cabendo
diversas interpretações de seu desenvolvimento, e não se sabe a priori a
trajetória dessa linha em espiral, aceitando que o movimento vai se fazendo
no próprio percurso, com um rol infinito de possibilidades de vir-a-ser. É a
ancestralidade que rege a lógica da organização da sociedade Dogon.

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Das vibrações iniciais da Kizi Uzi nascem duas que se desdobram em
mais duas sementes primordiais. Assim, temos quatro sementes – Amma
Seru, Lebé Seru, Binu Seru e Diongu Seru, que são também os quatro pais-
ancestrais, que darão origem às quatro primeiras tribos (Arou, Dyon, Ono e
Donno), que serão a origem de toda a sociedade Dogon. Cada antepassado
ocupa um lugar no universo: norte, sul, leste e oeste, compreendendo, assim,
a criação do mundo todo. Percebam que a criação do mundo todo é uma
totalidade aberta, pois o mundo ainda está em processo de criação. Essa
lógica, tão avessa à metafísica antiga e à ontologia moderna, existe em
função da ancestralidade.
É compreendendo a dinâmica ensejada pelo mito e pelo corpo africano
que chego ao conceito de ancestralidade. Está posto que ela não é apenas
relações de consanguinidade, como já havia mostrado antes. Desta feita, no
entanto, não reduzo a ancestralidade a uma leitura crítica, mas considero-a
como um conceito cunhado pelos próprios nativos e, transformada em
categoria analítica pelos intelectuais orgânicos da tradição africana,
reinventada no Brasil. De posse de um conceito próprio, posso acompanhar
como ele concomitantemente se relaciona e transforma outros conceitos.
Assim, por exemplo, afirmo que a ancestralidade é o movimento da cultura.
A partir daqui posso realizar a crítica à ontologia moderna e à
teoria das identidades, e dar um passo significativo em direção à relação
tumultuosa entre singularidades e estruturas e, de quebra, enfatizar a
prerrogativa da alteridade como fonte da ética. Com efeito, a ancestralidade
é o relacionamento das singularidades no plano de imanência.
Assumo esse postulado como fundamental da filosofia da
ancestralidade. A estrutura, doravante, será resultado das relações travadas
no plano da imanência e não uma abstração generalizante que busque reduzir
o real a uma teoria. Pelo contrário. Não há uma definição a priori de cultura.
É preciso ir até o plano de imanência para se compreender o que é
cultura. Cultura não é um conceito produzido para explicar as comunidades.
Necessita-se, pelo contrário, ir até as comunidades para se produzir o
conceito de cultura. Isto é, ela será o resultado de relações que se dão no
interior das comunidades e das comunidades entre si, porque privilegia o
contato com o Outro (alteridade). Aqui vigora o princípio da coletividade –
cujo critério ético é o bem-estar de todos e de cada um. De ligação, pois é a
ancestralidade que rege os vínculos entre os parceiros de uma relação.

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Daí eu poder afirmar que a ancestralidade é uma categoria de relação,
ligação, inclusão, diversidade, unidade e encantamento.
Ancestralidade é o território sob o qual se dão as trocas simbólicas,
materiais, linguísticas, afetivas e energéticas: revela o princípio da
reciprocidade. Ela é uma categoria de inclusão, pois inclui tudo o que
passou e acontece. A ancestralidade é o lugar onde habita a diversidade e a
existência. Tudo o que existe é signo diverso e advém de outro signo: é o
princípio da inclusão do terceiro excluído - dos que não tiveram voz, vez,
cidadania, história, cultura. Incluir não é inverter os polos de dominação,
mas eliminar as figuras do dominador-dominado.
A diversidade é a expressão da existência. A ancestralidade é a
expressão máxima da diversidade, muito embora, enquanto categoria, ela
pretenda compreender o mundo. Ou seja, ela empresta unidade à
diversidade, sem reduzir a última à primeira. Pelo contrário, a identidade,
doravante, será fluídica, e terá como referência não o Mesmo, mas o Outro.
É o princípio da alteridade.
Por fim, o encantamento é a função da ancestralidade. Encantar é
construir mundos. Se produzir conceitos é a tarefa da filosofia, como
disseram Deleuze e Guattari (1992)15, eu digo que seu objetivo é construir
mundos16. Reconstruí-los. Destruir mundos (exercício da crítica) será, então,
imprescindível para construir outros. De minha parte, dedico-me a construir
o mundo do Outro17. Uma metafísica da alteridade, dir-se-á.
A ancestralidade, pensada a partir da experiência africana
ressemantizada no Brasil será o princípio máximo da educação. Educação
será educar o olhar e a atitude. Educa-se desde um território, uma cultura,
um paradigma, um regime de signos, uma experiência singular, um objetivo;
desde princípios, horizontes interpretativos, desde uma configuração
estética, desde a práxis, a ética.
A Educação converte-se no conteúdo e no continente: é uma forma
[estética] e uma atitude [ética]. Ao mesmo tempo é o caminho e o caminhar.
É uma arte de viver (ensina e aprende em relação de ancestralidade:
educando/a-educador/a, mestre/ discípulo/a, criança/adulto, eu/outro, meio-
ambiente/sujeito, secular/sagrado...). É o paradigma ético-estético como
horizonte da educação.
A Pedagogia do Baobá é o resultado dessa fusão entre a filosofia da
terra e a filosofia do colibri em termos de filosofia da educação. Privilegio o
campo da educação e, nele, privilegio a sabedoria mais que o conhecimento,

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a atitude mais que a teoria, a ética mais que a metafísica. É na educação que
encontrei o modo como traduzir a ética como sabedoria. Com efeito,
conhecer tornou-se o ato de obter informações e interpretá-las.
A exigência da Pedagogia do Baobá é que o conhecimento advenha
tanto da informação/interpretação quanto da experiência. Não dissociar o
dito do vivido, a teoria da prática (que em minha opinião nunca estiveram
separadas, e não obstante, tornou-se um dos mais importantes falsos-
problemas da história da educação). Sabedoria não é coisa de letrados.
Assim, o mestre de capoeira, a iyalorixá, o babalawô, o mestre-de-
açúcar, a sambista, o brincante do maracatu etc, podem ser sábios sem
letramento formal escolar. A sabedoria ultrapassa o conhecimento, mas não
vive sem ele. O problema da educação no ocidente é que o conhecimento
classificado como acadêmico suplantou a sabedoria, hierarquizando os
saberes. Não se diz sábia uma atitude voltada apenas para o bem daquele que
a pratica. Sabedoria diz-se de práticas que provocam o bem-comum. Daí o
respeito pelos mais velhos nas culturas tradicionais (princípio da
senioridade). Sabedoria é uma atitude. Por isso a filosofia da terra é uma
ética. Por isso a Pedagogia do Baobá é uma pedagogia do movimento. É a
ética que responde aos desafios da existência. É a educação que educa para a
experiência do saber comunitário. A sabedoria é o conhecimento das
estruturas e das singularidades concomitantemente. Numa frase: sabedoria é
uma produção ancestral: um conhecimento coletivo!
Nesse escopo de formação, não resta dúvida que os três livros temáticos
sobre Cosmovisão Africana no Brasil: elementos para uma filosofia
afrodescendente; Ancestralidade na Encruzilhada; e Filosofia da
Ancestralidade: corpo, mito e rito na filosofia da educação brasileira,
configuram o núcleo da proposição por uma Filosofia Africano-Brasileira.
Eles foram antecedidos, no entanto, pelo livro Ética e Movimentos
Sociais Populares: práxis, subjetividade e libertação (2006), e seguidos pelo
livro Xirê: A brincadeira lírica (2016), simultaneamente meu segundo livro
de filosofia e meu primeiro livro de poemas, que encontrarão no Estética da
Libertação: Cartografias do Sol (filosofia) e Deriva(poesia) uma
continuidade sintética e criativa dessa trajetória que flerta, ora com a
filosofia, ora com a poesia e, ambiciona, talvez, unificar na linguagem as
duas verves que melhor me caracterizam.
Deriva, meu segundo livro de poesia, é onde desejo dizer como
poemas, o que pretendi dizer como filosofia, a respeito da Estética da

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Libertação, está dividido em duas partes: I) Deriva de Ancestralidade, onde
o universo da Capoeira Angola e das Religiões de Matriz Africana,
juntamente com poemas sobre a infância ocupam espaço nos quadrantes do
Cosmograma Bakongo, fazendo reverência tanto à descendência quanto à
ascendência, nessa relação circular com a Ancestralidade; II) Deriva de
Poesia onde constam os poemas de amor, a visão fragmentada do poeta
sobre o mundo, o encanto/compromisso com a poesia, a singularidade e os
sentidos ambivalentes e fluidos da deriva. Separando as duas partes (ou
conectando-as, como a linha da Kalunga no Cosmograma Bakongo) temos o
poema-manifesto poeta contemporâneo negro, valorizando o sujeito
coletivo dessa produção de conhecimento, posicionando-se, no que-fazer
poético, a respeito da poesia, da negritude, do mundo, da ancestralidade e da
deriva.
Já com Estética da Libertação: cartografias do sol lanço mão de uma
prosa mito-poética para dizer, poeticamente, uma filosofia seminal.
Dividida, a princípio, em cinco capítulos, a obra elege Exu como
personagem central do primeiro capítulo e trata da reapropriação simbólica,
através de seu ponto riscado (na contemporaneidade), fagocitando o plano
cartesiano (da modernidade); o cosmograma bakongo é nosso leitmotiv
metodológico, seguindo a proposta de uma epistemologia da liberdade que é
diagramada pela circularidade, a plena comunicação entre todas as partes de
um todo, que se enuncia criativo e não dado; no terceiro capítulo atento às
travessias do sol no cosmograma bakongo, passo a fazer uma cartografia do
sol, através da hermenêutica dos mitos de Oxum e Obaluaiê, para resultar
numa efetiva estética da liberdade que, no capítulo quarto, intitulado Deriva,
explora o mito de Oxaguiã, dele colhendo reflexões filosóficas sobre uma
experiência de liberdade.
Encerrando a publicação abordo o Sistema Ifá, através de um itã do
Odu Edjiogbe e, a partir dele, lanço um primeiro olhar filosófico sobre a
densidade e a complexidade da Sabedoria de Orumilá, potencializado como
narrativa de si mesmo, como um nós, um ubuntu à brasileira, com nossos
nós, idiossincrasias e delícias.
Fica, portanto, o desafio de habitar o passado e o futuro, de passar da
Encruzilhada às Travessias do Sol, de reeditar a Trilogia da Ancestralidade
e publicar dois inéditos (um de poesia, outro de filosofia) sabendo que o
tempo do agora - o tempo da redenção - apresenta-se como uma senda

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criativa. Feito o convite: aproxime-se desse calor para ser fustigado/a pelo
mistério, pela justiça, pela liberdade e pela beleza!
Eduardo Oliveira
Ativista, Filósofo, Antropólogo, Educador, Poeta, Babalawô...

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INTRODUÇÃO

Quanto mais acirra-se o sistema de exclusão social no planeta, mais


torna-se urgente encontrar outros caminhos para a organização da vida e da
produção que garanta o bem viver de todos e de cada um. O Sistema do
Capital, pretensamente universal e realmente imposto ao mundo todo, tem
como fundamento uma cosmovisão essencialista, excludente e
individualista, calcada no princípio da identidade, nos processos de
legitimação formal e na política de dominação. A exclusão econômica e
social é legitimada por princípios abstratos que, no plano do discurso,
justifica ideologicamente o estado de coisas que preserva e aumenta a
injustiça social em todo planeta e no Brasil particularmente.
Influenciados por uma cultura ocidental - judaico-cristã quanto aos
valores, helenocentrista quanto à concepção, elitista quanto à organização
social - somos levados a pensar alternativas para o futuro, reificando o
pensamento escatológico de encontrar o paraíso no devir. Essa armadilha
cultural tem-nos privado de reconhecer nossa própria história e modelos
criativos que inventamos ao longo do tempo e em diversificados territórios
do planeta. Reféns das dicotomias reforma-revolução, moderno-arcaico,
progresso-tradição, não valorizamos os modelos socioeconômicos e
políticos-culturais fabricados pela complexa tradição africana, que, não
obstante, espalhou-se por todo o planeta levando consigo uma cosmovisão
includente, imanente, dinâmica e alterativa.
Este livro tem como objetivo elucidar o que chamamos de cosmovisão
africana e sua atualização no Brasil, refletindo sobre suas consequências
políticas, sociais, econômicas e culturais na sociedade brasileira.
Pretendemos dar ênfase na cosmovisão africana e nos modelos decorrentes
dela, uma vez que são modos de organização social realmente existentes que
se erigem como manifestações históricas e contundentes que respeitam as
diferenças e promovem a alteridade.
Aproveitando das contribuições da filosofia quanto da antropologia, da
história quanto da sociologia, procuramos apontar paradigmas que
promovam o bem-estar social e não aqueles que lançaram nosso planeta
numa crise sem precedentes na história da humanidade. O motivo pela

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procura de novas formas de organização social são claros e aberrantes: ou
nos damos conta do momento de crise planetária que estamos passando e
descobrimos outros modelos de organização da vida e da produção que
sejam includentes - que respeitem a alteridade e não a aniquile, que seja ética
e não cínica, que prime pela qualidade da vida e não pela destruição do
ecossistema - ou encontraremos o fim da nossa espécie no modelo
capitalista. Estamos nos primeiros dias da guerra dos E.U.A. contra o
Iraque. Essa é uma guerra assentada na cosmovisão ocidental que prefere
aniquilar o outro a dialogar com ele. É o paradigma da destruição, da
vontade de potência, do desejo de dominação que engendra atitudes
desastrosas como a do governo americano. Estamos no limiar da história. Ou
valorizamos sistemas de inclusão e valorização da vida – como o são os
africanos e indígenas - , ou tornamo-nos reféns e cúmplices da concentração
do capital e da universalização da miséria e da violência.
O Sistema do Capital, CMI – Capitalismo Mundial Integrado, organiza-
se em torno de dois polos: produção econômica e produção subjetiva, sendo
que a última ocupa um papel fundamental para a acumulação do capital.
Geralmente privilegia-se a análise econômica em detrimento da análise
subjetiva. No entanto, o capitalismo vale-se dos agenciamentos dos desejos e
da produção de subjetividades massivas para reproduzir o sistema do capital,
introjetando nos indivíduos e grupos de indivíduos valores sociais próprios
do sistema, aumentando com isso sua eficácia de reprodução e adaptação a
novas realidades. Elegendo-se a si mesmo como Universo Único de
Referência, sobrecodifica os outros regimes valorativos e apresenta-se como
único caminho para a organização econômica e social – o que implica um
sistema político e cultural condizentes.
Acontece que o CMI não é o único regime de signos existente. Muito
pelo contrário, existe uma pluralidade de regimes semióticos tanto entre
culturas diferentes, quanto no interior de um mesmo território nacional.
Ocorre que o CMI hegemonizou o sistema socioeconômico e político-
cultural. Mas hegemonia não significa onipotência, predomínio não significa
existência exclusiva. Com efeito, a cosmovisão africana configura-se num
outro regime semiótico agenciando desejos e promovendo valores no
mínimo antagônicos aos agenciados pelo CMI. O Capitalismo Mundial
Integrado, na sua pretensa totalidade, não consegue evitar as linhas de fuga
que se desprendem de sua malha; linhas de fuga essas que potencializam a
criação de outros regimes semióticos.

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As linhas de fuga são vetores de subjetivação que não estão dominadas
pelo regime dominante de signos, e, portanto, pode criar outros regimes
semióticos. A máquina abstrata, espécie de categoria-potência, livre de
qualquer territorialização, é a base da existência das linhas de fuga e dos
vetores de subjetivação autorreferentes, contrastando com a semiótica
significante – que é a semiótica do CMI.
Os regimes subjetivos, então, nascidos ou gerados através das linhas de
fuga e das máquinas abstratas, opõem-se radicalmente ao CMI, uma vez que,
denuncia a flagrante falácia da semiótica significante (semiótica dominante),
que sempre redunda no próprio significante, jamais alcançando o
significado, instaurando, assim, a repetição do mesmo incessantemente e ao
infinito. É a absolutização do princípio de identidade.
O regime de signos dominante que originou o CMI é estruturado sob os
já referidos equivalentes gerais. Tais equivalentes se manifestam na
ontologia (SER), na linguística (SIGNIFICANTE) e na economia
(CAPITAL), sobrecodificando os outros universos valorativos. Esta lógica
cria as categorias binárias de certo e errado, bem e mal, deus e diabo,
sagrado e profano, puro e impuro, original e mestiço, etc., desqualificando as
diferenças singularizantes, vulgarizando a complexidade do real e atacando
as subjetividades éticas autorreferentes.
O problema dos regimes de signos significantes é que se auto-elegem
como os únicos possíveis, mas, como dissemos, as linhas de fuga dão
margem aos regimes subjetivos - que são polivalentes e diversificados,
promovendo a alteridade, respeitando as diferenças, reconhecendo os outros
universos valorativos.
Segundo esse raciocínio, se o regime de signos dominante é o CMI, ou
seja, a semiótica do capital como semiótica significante, as linhas de fuga
permitem-nos encontrar outros modelos semióticos que, ao contrário do
CMI, promovam a justiça social e a emancipação humana, bem como a
preservação do ecossistema planetário.
As linhas de fuga, portanto, dão margem para a criação de novos
modelos. Por isso fomos à África anterior à invasão europeia averiguar que
elementos estruturantes haviam lá que pudessem servir de modelos
dinâmicos para a organização da produção e da vida no início do século
XXI.
Esta discussão insere-se dentro de um contexto mais amplo, que é a
dimensão eminentemente política na qual este livro está inserido. Não

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queremos recair no romantismo dos séculos passados, muito menos nas
teorias naturalistas da Modernidade. Nosso intento é apontar caminhos
possíveis de organização da vida, mostrando, depois de uma crítica ao
Capitalismo Mundial Integrado, como é possível alternativas desde a
cosmovisão africana. Recuperar os elementos estruturantes dos Grandes
Impérios Africanos e verificar como na história do Brasil eles foram atuando
de maneira a estruturar a cultura negra brasileira não é tarefa das mais
simples, mas, de maneira sumária, procuraremos demonstrar como essa
leitura da história dos africanos e seus descendentes no Brasil é compatível
com a discussão sobre a globalização. Essa é uma perspectiva crítica no
sentido de colocar em crise o sistema do Capitalismo Mundial Integrado, e
propositiva, no sentido de apontar caminhos baseados na experiência
afrodescendente.
Este livro dedicar-se-á, portanto, a um desses universos de referência
que é a Cosmovisão Africana – construída com sabedoria e arte pela tradição
e atualizada com sagacidade e coragem por seus herdeiros. A herança da
cosmovisão africana altera a discussão sobre a identidade brasileira. Com
efeito, os afrodescendentes foram alijados de sua terra de origem, por um
lado, e menosprezados em suas terras de ocupação, por outro. Negados
ontologicamente em qualquer parte do mundo, suas culturas foram rotuladas
como atrasadas, animistas, folclóricas, bárbaras, primitivas, o que evidencia
o racismo a que foram historicamente submetidas a população africana e
seus descendentes. No Brasil, a teoria do branqueamento, a defesa
ideológica da democracia racial, o ocultamento da realidade desfavorável
aos afrodescendentes, denota a falácia da convivência harmoniosa entre as
raças e a mentira da ausência do racismo em terras brasileiras.
Seria um engano conhecer o Brasil sem conhecer a história dos
afrodescendentes. Seria um engodo compreender o Brasil sem antes
conhecer a África. Seria uma lástima procurar entender a realidade social
brasileira sem compreender a realidade racial do país. Combater a
discriminação racial não é tarefa exclusiva do poder judiciário. É preciso
repensar a história brasileira a partir do legado africano. Sem isso,
perderíamos em profundidade e qualidade o conhecimento sobre nós
mesmos. A brasilidade, em muito, é tributária da africanidade. As
africanidades re-desenham e re-definem a identidade nacional e, com isso, o
projeto político, econômico e social brasileiro. Ainda que o discurso
acadêmico e político tenha excluído, durante séculos, a experiência africana

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no Brasil, sua influência não deixou de exercer papel fundamental na
construção desse país. Chegou o tempo de ouvir quem foi calado. Chegou o
tempo, não de resgatar nossos conteúdos culturais, mais de fazer valer,
política e socialmente, nossos valores civilizatórios, nossa forma cultural,
nossos bens simbólicos, tão rica e criativamente reelaborados pelos
afrodescendentes. Em momentos agudos de crise urge ressaltar outros
modelos de organização da vida. Em momentos de rigidez diplomática e
totalitarismo beligerante, experiências de paz ganham força e raiam no
horizonte da humanidade. Em momentos de massificação e repetição de
sistemas autoritários, dinâmicas civilizatórias construídas sobre a
diversidade impõem-se com a força do imperativo da inclusão, da alteridade
..., da vida!
A identidade está inserida no jogo político que, por sua vez, está
enredado pelo mundo da cultura. Não há ingenuidade neste livro. Não há
romantismo. Escrevemo-lo no calor das lutas sociais, no ardor dos desejos
da construção da cidadania dos negros e não-negros, na esperança de um
mundo de paz, no compromisso com a causa dos afrodescendentes, no
empenho de fabricar, dia-a-dia e incansavelmente, um mundo governado
pela ética.
É assim que convidamos ao leitor para adentrar na aventura desse livro,
onde as fronteiras culturais são continuamente transpostas, onde a forma
convencional de pensar é frequentemente transgredida, onde persegue-se
obstinadamente o desejo de aprender com a diversidade das experiências
humanas. Convidamos ao leitor para ser parceiro na trajetória dos
afrodescendentes que souberam, num diálogo criativo com o sistema de
dominação, responder não com ódio, mas ternura, não com guerra, mas com
sistemas de inclusão, não com lamentos, mas com atitudes estético-sociais à
situação desumana a que foram submetidos. O convite está feito. Não apenas
humanizar-se, mas africanizar-se quanto a valores e formas de vida.

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COSMOVISÃO AFRICANA: A África antes da
invasão europeia

A Cosmovisão Africana não surge fora do espaço e do tempo. Pelo


contrário, é analisando a história da África que podemos identificar sua
dinâmica civilizatória e a formação de sua Cosmovisão. A África, entretanto,
é continente grande demais e múltiplo em demasia em suas expressões
culturais. Por isso nos limitaremos a algumas regiões daquele continente,
sobretudo ao Império do Gana, Mali e Songai que tiveram sua existência
entre o século X e XV de nossa era. Não é possível aprofundar um trabalho
como esse, sequer todas as nuanças destes impérios, quanto mais da África
como um todo. Assim, quando nos referimos à África, é a uma porção do
continente que nos referimos.
Consideremos, então, os três grandes Impérios Africanos que se
ergueram entre o século X e XV de nossa era. São eles: Gana (X a XII), Mali
(XIII a XIV) e Songai (XIV a XV), todos localizados entre o Saara e o
Sahel, obedecendo o deslocamento de ocidente para oriente. Politicamente
alternaram seu domínio na medida em que um entrava em crise e o outro
chegava a seu apogeu. Veremos, adiante, como estes impérios surgiram sob
o domínio de algumas etnias que hegemonizaram a política e a milícia da
época.
Por se tratar de um período histórico muito vasto, nossa pesquisa
utilizará o método macrossociológico. Privilegiando as macroestruturas,
intentaremos identificar os elementos estruturantes dessa sociedade,
consolidando sua história através de uma perspectiva socioestrutural. Na
medida em que perguntamos porque surgiram estes grandes impérios na
linha geográfica ocidente-oriente, durante os séculos X e XV, sob domínio
de etnias determinadas, e, qual o contexto internacional onde surgiram e,
ainda, como funcionavam suas dinâmicas políticas e sociais, estaremos
fornecendo as primeiras respostas à como se formou a Cosmovisão Africana.
Uma análise pormenorizada dos três grandes impérios africanos é
motivo para um trabalho de pesquisa que não cabe à esse livro e nem é seu
objetivo. A meta é, como dissemos, ressaltar os elementos estruturantes que

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nos permitem dizer que existia uma unidade cultural na África antes da
invasão europeia.
Há três barreiras epistemológicas que teremos de vencer antes de
entrarmos propriamente na caracterização dos três grandes Impérios Negros.
É notório o fato da África, durante séculos, ter sido excluída dos vários
saberes desenvolvidos pela academia. Esta exclusão é fruto de preconceitos
em relação ao continente, e não raras vezes, tal exclusão foi fruto da mais vil
discriminação racial. A inferiorização que a África e seu povo vem sofrendo
durante todos esses séculos constitui-se numa grande barreira epistemológica
para se desenvolver pesquisas a respeito do continente do Arco-Íris18. Não
obstante o preconceito e a discriminação racial que sofre este continente, seu
povo e descendentes, a África continua sendo um continente onde a
diversidade e a multiplicidade de culturas vem sendo respeitada e servindo,
inclusive, de modelo de organização para a vida. Para elucidarmos alguns
desses elementos, temos, portanto, que vencer algumas barreiras
epistemológicas.
A primeira barreira epistemológica, defendida até mesmo pelo
filósofo Hegel19, é que a África não tem história. Sendo um continente
primitivo, onde não ocorre mudanças, onde as estruturas sociais sempre
permaneceram “tribais”, e onde as inovações jamais existiram, muitos
autores, até o século XIX, consideraram que a África era um continente a-
histórico, vivendo no mais primitivo dos sistemas naturais.
A segunda barreira epistemológica é a ideológica, que se resume,
fundamentalmente, na tentativa de mostrar que o continente africano fica
fora da história. Ou seja, que monumentos bem como outras manifestações
artísticas, assim como estruturas arquitetônicas que revelavam bom nível de
desenvolvimento social e político em África, foram construídos por outros
povos que não africanos, e, de preferência, povos brancos advindos do
ocidente (fenícios, persas etc.). Ou seja, segundo essa concepção os
africanos são essencialmente passivos, incapazes de, por si mesmos,
construírem a história.
A terceira barreira é ainda mais racista. É o caráter da miscigenação,
que diz que a obra dos grandes impérios negros e seus grandes feitos
culturais e políticos foram realizados por sujeitos não negros, ou, pelo
menos, por sujeitos miscigenados. Ou seja, mesmo reconhecendo que a
África possui e construiu uma história, tal história, na visão dos defensores
da tese da miscigenação, só foi possível porque não foram os negros – ou

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pelo menos não foram eles sozinhos – que a construíram. Este preconceito
contra os africanos foi também formulado da seguinte maneira: os africanos
do norte, miscigenados com os árabes, povo de tez branca, possui história –
uma história islamizada, arabizada. Já os africanos ao sul do Saara seriam
povos totalmente primitivos, vista que sua miscigenação com povos brancos
era praticamente nula.
Não é de hoje que o continente africano e seus habitantes sofrem com
as teorias racialistas. Seja pela negação da autonomia dos africanos, seja pela
desqualificação de sua história, seja pela inferiorização de sua identidade, os
africanos e seus descendentes são sistematicamente negados em sua
existência. A mestiçagem, na África em geral e especialmente no Brasil,
tornou-se não apenas uma barreira epistemológica para a compreensão da
dinâmica civilizatória dos afrodescendentes, mas também uma ideologia que
embota as efetivas relações raciais neste país, que, sem dúvida, é marcado
por um racismo exacerbado. O argumento binário do puro/impuro,
original/mestiço, branco (puro)/ negro (impuro)/ mulato (mestiço) serviu
como uma poderosa arma de dominação da elite – em sua maioria branca,
masculina e católica.
Nos anos 70, diz KI-ZERBO (1980), muitos historiadores africanos
quanto europeus, voltaram-se a uma pesquisa mais científica da África, o
que equivale a dizer que buscaram superar os preconceitos acima
relacionados. Isso deve-se, pelo menos, a dois motivos: 1) subjetivo: pois
existe o desejo de encontrar uma identidade africana; 2) objetivo: pois a
independência de vários países africanos traz de volta ao cenário político
estas questões.
Estas mesmas questões são fundamentais para discutirmos a
cosmovisão de matriz africana no Brasil, pois o problema da identidade
africana e dos descendentes dos africanos bem como as questões políticas
que permeiam a história dos negros na África e no mundo estarão sempre
presentes no decorrer deste trabalho. Na verdade, esse texto estará sempre
em torno da questão cultural e da questão política. Se privilegiamos analisar
os três grandes Impérios Africanos foi porque eles nos dão uma exemplar
ideia da dinâmica cultural africana antes da invasão europeia.
Estrategicamente os escolhemos por se tratar de um exemplo histórico,
capaz de fornecer-nos dados suficientes para a tese da manutenção de uma
cosmovisão africana que, muito embora a distância no tempo, é atualizada
nas manifestações culturais dos afrodescendentes, bem como em seu modo

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de organizar suas instituições – atualizando, no cotidiano, sua cosmovisão
originária.

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Aspectos Históricos
Antes de falarmos dos Impérios Africanos, especificamente,
convém contextualizar a África ao Norte e ao Sul do Saara, a fim de termos
em mente a situação geográfica e política de onde surgiram os grandes
Impérios Negros.
O deserto do Saara é o que divide a África negra da chamada África
branca. O Saara está em constante expansão, e vai obrigando os povos do
Sul a recuarem.
Acima do deserto do Saara ocorreu a invasão islâmica. Estes povos, de
fenótipo mais claro, continuamente empurraram bolsões de população negra
para o sul da África. É por isso que divide-se o continente em África do
Norte (África Branca) e África Negra (ao Sul). Esta divisão ocorre, pelo
menos, desde o século XVIII. Vale dizer que a relação das duas Áfricas é,
por vezes, de confronto, e às vezes, complementárias.
Nesta região da África (da faixa que congrega tanto a região desértica
do Saara quanto a região de Savana do Sahel) a população, em sua maioria, é
nômade e se dedica ao comércio. É aí que os grandes impérios africanos irão
germinar e expandir-se.
Antes da invasão islâmica, havia a escravização dos africanos
abaixo do Saara, mas a escravização era diminuta. Com a invasão árabe este
processo se intensifica e ganha uma justificativa ideológica: a conversão dos
pagãos para o islamismo.
Com efeito, havia escravidão na África antes da chegada dos árabes e
europeus. Porém, há diferenças notórias entre o que se chama de escravidão
africana antes e depois da invasão islâmica e europeia. Antes da formação
dos grandes impérios, na região ao sul do Saara, tínhamos o deslocamento de
populações inteiras, que procuravam outros territórios para ocuparem, o que
provocava guerras étnicas entre os clãs, famílias-aldeia ou cidades-estados.
Desses confrontos resultavam os prisioneiros de guerra, que, dentro da visão
de mundo africana, não eram obrigados a rejeitar seus deuses, perder suas
línguas ou alterar seu modo de produção. O “escravo” se integrava ao clã,
família ou cidade-estado. Ou seja, havia o Patriarca, o Antepassado, os
Filhos, os Empregados e os “Escravos”.
A diferença da escravidão em África e na Euro-Ásia, é que na dinâmica
civilizatória europeia o escravo é coisificado em sua existência, passando a
ser tratado como coisa (“res”) - podendo ser, por isso, explorado como a um

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animal ou, como foi o caso do Brasil, explorado mais que a um animal20. A
experiência civilizatória europeia teve como propulsora uma cosmovisão de
mundo assentada em valores individualistas, burgueses e liberais, que
privilegiava o acúmulo de capital e não a distribuição de riquezas. Assim o
escravo era tido como uma mercadoria a mais na rede comercial que
sustentava o processo civilizatório ocidental. Na África, por outro lado, o
escravo ocupa outra função no interior do circuito escravocrata. Geralmente
sendo prisioneiro de guerra, o “escravo” é integrado na dinâmica da etnia
que dominou seu grupo de origem. Ele é incorporado dentro deste sistema.
Ele não é nadificado na valorização de sua existência. Ele não é
transformado em mercadoria ou instrumentalizado para aumentar o acúmulo
de capital. Há, inclusive, o caso de um “escravo” que chegou a Rei em uma
das monarquias africanas. Enfim, são culturas diferentes que tratam seus
subordinados de maneira diferentes, resultando num grande erro o emprego
equivalente da palavra “escravo” para a situação africana e para a situação
europeia.
Defendemos, a partir de uma leitura macrossociológica, que os
Impérios Africanos que se ergueram na faixa Saara, Sahel e Savana,
funcionou como “parapeito” para inibir a dominação do sul da África pelos
árabes. A formação dos Impérios foi uma estratégia de defesa e uma resposta
crítica à islamização imposta pelos berberes.
A população dessa região migrou massivamente em direção ao sul,
fugindo ao processo de homogeneização do islão, que no afã de sua cruzada
econômico-religiosa, dizimou muitas etnias. Era uma fuga da escravização.
Tanto em Gana, como no Mali e no Songai ocorreu a islamização. Acontece
que essa conversão ao islão fora superficial, pois apenas as elites
governantes se converteram. A maior parte da população, sobretudo a rural,
permaneceu fiel às religiões tradicionais africanas.
Cronologicamente os Impérios vão surgindo no sentido ocidente-
oriente, se contrapondo às rotas de escravização árabe. A dominação árabe, é
sabido, não tinha apenas uma motivação religiosa para invadir aquele
território, pois quem controlasse o comércio asseguraria a hegemonia
política e econômica da região.
A região do Sahel é uma zona de intensa troca de mercadorias. De um
lado, temos a influência da África Negra, que conserva as matrizes africanas,
de outro, temos a influência da África Branca21, predominantemente árabe.

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Não foi por acaso que os três grandes Impérios Africanos surgiram
entre o Saara e a Savana. Além dos interesses econômicos e religiosos, há
explicações político-culturais. Ao sul da África temos outros tipos de
organização social e política dada a tradição de povos como os yorubás, por
exemplo, que organizavam-se politicamente em torno de cidades-estados.
Urbanizados, os yorubás detinham a arte da metalurgia e podiam proteger-se
em unidades políticas menores e independentes. Já os povos da faixa Saara-
Sahel, habituados ao nomadismo, construíram os grandes impérios somente
quando foi necessário combater a progressão árabe.
Enquanto na África do Norte a formação dos impérios está imbuída da
concepção de mundo árabe, onde existe a imposição de uma verdade
religiosa (Islão) e econômica (modo de produção árabe), gerando uma
política de dominação, na África ao Sul do Saara ocorreu outro processo -
inédito -, onde as etnias de territórios circunvizinhos especializavam-se em
funções produtivas (agricultura, caça, pesca, pastoreio, metalurgia),
enquanto que a etnia autóctone era apenas dona da terra, dividindo o
governo político e militar com as etnias que chegavam. Isso gerava uma
política de cooperação.
Os Impérios Africanos ergueram-se como construções político-sociais
fundamentadas pela cosmovisão africana. Analisaremos os Impérios de
maneira a ressaltar apenas os aspectos relevantes para a elucidação da
cosmovisão africana, por isso não nos deteremos em detalhes ou
aprofundamentos históricos importantes. Nosso interesse, neste livro, é
compreender a dinâmica civilizatória africana e sua correspondente
cosmovisão, ficando para outro momento o estudo detalhado da história
africana22.
A primeira grande resposta dos negros ao processo de islamização
africana, iniciou no século VII com a soma de várias etnias para formar o
primeiro Império Africano que aflorou apenas no século X.

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Império do Gana
O Império do Gana surge num lugar privilegiado, pois situa-se no ponto
principal da travessia do Saara em direção ao Sul. A cidade principal é a
capital do comércio do Gana, Walata. No entanto, o Império Ganês não
surge apenas por causa da privilegiada localização geográfica e das rotas de
comércio, pois tais rotas existiam a pelo menos desde o séc. III de nossa era.
O surgimento do Império do Gana, portanto, como já afirmamos, surge
como reação ao domínio islâmico. Na verdade, a criação do Império é uma
das respostas dadas à expansão árabe, pois pode se verificar um grande
movimento migratório para o sul da África neste período. A hipótese é que
os povos que viviam ao sul do Sudão Ocidental fugiam do processo de
escravização, seja migrando para outras regiões, ou se organizando em
estruturas estatais como o Império do Gana.
O Império surge a partir da convergência de elementos geopolíticos.
Em termos políticos a localização do reino do Gana é bastante estratégica,
pois é onde se controla importantes rotas comerciais, que definem o
comércio entre o norte e o sul da África. O desenvolvimento aurífero da
região, possibilitou sua concentração de renda e também o domínio e
controle sobre regiões vizinhas através de cobrança de tributos e demarcação
de territórios na região. Além disso, ressalta-se a busca de mão de obra
escrava, empreendido pelos povos berberes que dominavam a região do
Saara. Após a islamização pelos árabes, há uma reordenação do Império do
Gana que passa a servir como uma “barreira” protetora, inibindo a expansão
islâmica para o sul da África.
Com sua localização privilegiada, Gana, situada na faixa do Sahel, tem
as condições para o desenvolvimento da agricultura e do pastoreio, que são
dinamizadas, criando um contingente de mão de obra especializada. Na Zona
do Sahel há uma forte produção de cereais. Essa produção especializada
permitiu que ocorressem dois fenômenos: 1) o surgimento das cidades; 2) as
estratificações sociais.
É claro que no cenário econômico existem outras rotas para o comércio.
Mas é em Gana que se hegemoniza esse processo, e, por isto, também o
controle político. Isto não impede que haja disputa política na região. A
oeste encontramos Takrur que rivaliza com Gana. Há também o império de
Bangug23, onde se hegemoniza a extração do ouro. Gana não se preocupou

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em anexar Bangug ou destruir Takrur; seu objetivo principal era controlar a
rota comercial.
O que a região do Sahel exportava para o norte da África era mais
valioso do que o que recebia, o que dá a ideia exata da fartura e da força do
Império Ganês. Apenas que a dinâmica civilizatória dos árabes privilegiava
a guerra, a destruição, o proselitismo e a universalização, enquanto a
cosmovisão africana privilegia a diversidade, a produção (riqueza), a lógica
própria de cada lugar e os valores culturais de cada clã.
São os mandinga (etnia majoritária), através dos soninke (subgrupo da
etnia), que criam o império do Gana. A cidade de Kumbi-Saleh, capital
política do Gana, chega a ter nesta época vinte mil habitantes. Como vivem
principalmente da agricultura e do pastoreio, numa região prodigiosa para a
produção, a população ganense experimenta certa fartura, não padecendo de
miséria e falta de estrutura social. O povo não passa fome - mesmo os
camponeses -, e os nobres se destacam da população por causa do controle
do ouro.
Quanto à organização social, são as relações de parentesco
consanguíneo que estruturam a sociedade, proporcionando uma conjuntura
política e ideológica que evidencia relações de produção e,
consequentemente, estratificações sociais. Antes, porém, da invasão
islâmica, a região do Gana estruturava-se em torno de uma organização mui
tradicional, ou seja, de acordo com as linhagens matriarcais – principalmente
- ou patriarcais. Com a formação do Império do Gana a estrutura social passa
a ser mista, coabitando o modelo tradicional e a organização “urbana” do
Império.
No cenário político o Imperador constitui-se na figura central do poder
administrativo e religioso. Além do mais era ele quem controlava a produção
e a comercialização do ouro. A riqueza do Estado provinha do comércio e da
tributação, o que permitia o bem-estar social relativo da população. A
política no Império está assentada numa organização central, com o poder
centralizado na figura do Imperador. A periferia do império, por sua vez,
ainda que considerada vassala em relação ao Imperador, tem uma estrutura
de poder descentralizada, e mantém suas tradicionais formas de organização.
No interior do Império (e dos reinos periféricos) não havia coerção
quanto a prática de religiões diferenciadas. O espaço imperial permitia a
convivência de diversas matrizes religiosas, ou seja, as etnias não
precisavam subordinar-se a uma religião hegemônica.

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Na região do Sahel há o cobre, a noz e o marfim. Estes produtos
interviram no modelo tradicional da estrutura social africana. Nas estruturas
tradicionais a divisão dos bens de produção era de acordo com os clãs, que
recebiam equanimemente, ainda que respeitando o princípio da
proporcionalidade, os produtos, pois o Rei precisava distribuir
igualitariamente a riqueza para manter sua autoridade e prestígio. Com a
intensificação do comércio, a distribuição da riqueza passou a não ser tão
igualitária e abalou a estrutura tradicional, pois chocou-se com os valores
tradicionais da comunidade que, outrora, pautava-se pela lógica da
abundância e, com a chegada dos árabes e o desenvolvimento do comércio,
passou a ser regida pela lógica do acúmulo e concentração da riqueza.
Cria-se aqui um conflito entre os nômades do deserto (pastores) e os
habitantes do Sahel (povos sedentários). A rota do comércio através do
Saara, com a utilização do uso do camelo, era domínio dos berberes – povo
africano islamizado -, que viviam segundo os modos de vida nômades, isto
é, não ocupavam território fixo, não criavam instituições estatais e viviam
basicamente do pastoreio. Já os povos do Sahel organizavam-se de forma
muito diferente: suas principais atividades econômicas era a agricultura –
principalmente de cereais -, e construíram instituições estatais, devido a sua
ocupação permanente de território.
Por vezes essa relação é complementária, e por vezes elas são
conflituosas. Com a invasão islâmica, entretanto, essa relação tensiona-se
cada vez mais. Os berberes são acostumados a armar estratégias de ataque ao
Sahel e voltar para o deserto. Essas são ações de rapinagem dos berberes. O
conflito entre os povos nômades (berberes) e os povos sedentários (da região
do Sahel) ocasionou um conflito político, pois dominaria política e
economicamente a região quem controlasse a rota do comércio. Daí surgiu o
Império do Gana, no entrecruzamento de interesses conflitantes de etnias
locais, de povos distantes e, também, como uma reação à expansão árabe,
que também tinha muito interesse na rota do comércio e no domínio da
extração do ouro, um pouco mais ao sul de Gana.
O Gana se afirma como Império no séc. X d.C., no mesmo período em
que os árabes consolidava o seu poderio. Ou seja, quando a poderio político
e militar dos almorávidas ficou mais forte, mais forte também ficou o
Império dos Malikes para lhe opor resistência.
O império era formado por diversas etnias, governados por um rei que
possuía o título de Ghana – senhor do ouro. Já a terra era propriedade de

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todos, cabendo ao rei a administração dos conflitos, cumprindo o papel de
mediador - cuja função principal era a de manter as diferenças étnicas, o que
permitia a relação de troca onde interesses comuns do reino era privilegiado,
não de forma consensual, mas na medida do possível garantido os princípios
de justiça.
Uma característica marcante do governo no Império do Gana é o
regicídio24. O rei é morto se ele se desvia do que foi comunitariamente
determinado pela sociedade. Pode acontecer dele ser morto quando atinge
uma idade avançada, quando já não consegue desempenhar eficazmente seu
papel de liderança. O regicídio é uma maneira de exercer o controle político
pela comunidade e obriga a seu governante cumprir o que está estabelecido
pelos conselhos de anciãos que apresentam os anseios da população ao
governo central. Se o governo do Rei volta-se contra o bem-estar da
população, então ele será o responsável pelo mal estar social e deverá, por
isso mesmo, ser eliminado.
O Império Ganês é uma organização política e culturalmente complexa.
Congrega uma grande diversidade étnica em torno de um objetivo político
comum: barrar o avanço dos almorávidas para o sul da África. Apesar da
elite do Império converter-se ao islamismo, todo o Império mantém suas
práticas religiosas tradicionais, o que nos faz crer que a islamização na
região do Gana foi superficial e atingiu sobretudo as elites dirigentes. O que
está em jogo, muito mais que as conquistas religiosas são as conquistas
econômicas. A formação de uma brigada militar, por parte dos árabes, para
dominar a exploração do ouro, as rotas de comércio do Saara e a produção
agrícola do Sahel sofreu uma resistência da população africana, que só foi
possível, graças às suas idiossincrasias culturais de congregação de etnias, de
solidariedade continental, de fidelidade às suas religiões e de promoção do
bem-estar social.
Mas o grande Império do Gana sucumbe aos ataques dos árabes. Eles
fortalecem o poderoso exército almorávida e investem maciçamente contra
os povos do Sahel, sobretudo a oriente de Gana. Os berberes – base do
exército dos almorávidas - não atacam de imediato a região do Gana, pois ali
se constitui um forte império. Estrategicamente eles investem no processo de
conversão religiosa e alianças militares. Eles intensificam as conversões
forçadas ao negro. Esta justificativa religiosa “legitima” os ataques dos
árabes, que buscavam hegemonia política e econômica na região. Todo o
séc. XI é o das investidas do exército almorávida, que, nesta época constitui-

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se de tribos berberes mais ocidentais: os azenegues, que controlavam o
tráfico de escravos para o Marrocos. Para os berberes o islamismo
representava a possibilidade de resgatarem a hegemonia perdida sobre os
Estados Africanos. Para Takrur a aliança com os almorávidas representou a
possibilidade de suplantar a hegemonia maninke e, por isso, converteu-se ao
islamismo, selando uma aliança política e militar com os árabes. Em 1042
Ibn Yacine organiza um exército de 30 mil homens e invade o Gana,
impondo a derrota ao Imperador. Em 1076, Abu Bakr invade e vence o Gana
ao mesmo tempo que os almorávidas marcham para o norte, rumo ao
Magrebe, graças à força proporcionada por largos contingentes negros do
Takrur e uma revolucionária organização militar. Em 1086 Yussuf lidera a
força islâmica, na Espanha, contra os cristãos. O exército almorávida é
formado de árabes e de negros convertidos. Com este contingente bélico
poderoso eles avançam em direção ao Sul, procurando consolidar seu
domínio no Sudão Ocidental.
No início do séc. XII o poder almorávida se estendia por todo litoral da
costa ocidental africana, abrangendo também o território que ia desde o rio
Senegal até a Espanha. Pela primeira vez na história os povos do deserto se
unificaram sob uma administração permanente.
A imposição do islamismo, no séc. XI, pelos almorávidas, intensificou
o deslocamento de etnias negras (os Serer, Volfo, Saracolé, Bambara) para o
sul do continente. Os deslocamentos populacionais impostos pelo islamismo
e o crescimento das disputas pela hegemonia na região levaram ao fim o
Império do Gana.

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Império do Mali
Com a decadência do Império do Gana, apareceu, no século XII, o
Império Sosso, também conhecido como Império do Mali, onde, é claro,
dominava a etnia sosso, porém, com o consentimento das outras etnias da
região. A formação dos grandes Impérios Negros obedecem ao mesmo
modelo: desenvolvem-se a partir da formação de Grandes Federações
Étnicas.
O sec. XII é conhecido como o século da turbulência. Os almorávidas,
além de seu poderio bélico, primam pela pureza religiosa e impõem a
conversão a todas etnias dominadas. Foram exatamente esses fatores que
levaram à derrocada o Império de Gana, a saber: 1) formação de um exército
islamizado, 2) conversões de populações negras ao islamismo.
O sossos se posicionam claramente contra o islamismo. Eles se
confrontaram com os berberes, que por conhecerem a rota do comércio e
pela convivência com os soninkes, quiseram dominar a política do ex-
império do Gana. Se em Gana a resistência foi camuflada, no Mali a
resistência foi explícita. No entanto há algo em comum na resistência à
invasão árabe: ela sempre é hegemonizada por uma grande etnia - os
mandingas e soninkes, no caso do Gana, e os sossos, no caso do Mali.
É importante notar que a demanda de escravização aumenta quando
aumenta-se as guerras em uma região. No ato da queda do Gana, que já
contava com uma grande população, a segurança torna-se frágil e a
escravização intensifica-se.
Nós temos dois tipos de reação aos árabes. 1) contraposição radical ao
islamismo (os sossos do Mali); 2) a assimilação superficial do islamismo (os
maninkes do Gana). Ou seja, no caso da assimilação têm-se, na verdade, a
estratégia da dissimulação, pois as populações negras se revestem de um
“verniz” islâmico para manterem suas práticas religiosas tradicionais.
Os Maninkes, Keitas, Camarás, Konatés e Tracrés uniram-se para
derrubar os sossos. Além de interesses comuns na região controlada por seus
adversários (sossos) eles se reconhecem pertencentes a uma mesma
linhagem, o que possibilitará relações inter-linháticas tendo, como
consequência, uma organização política única – o que os torna uma grande
potência na região. Eles se compõem basicamente de comerciantes, de
caçadores e de exotéricos. Por isso o interesse na região do Império do Mali
é imensa.

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Neste contexto, os maninkes – que foram islamizados pelos
almorávidas - entram em guerra contra os sossos para obter a hegemonia do
comércio e o domínio político na região. Na verdade, os sossos foram
suplantados pelos malinkes no intuito de “aliarem-se” ao islamismo como
estratégia para vencer as disputas regionais, e não para abraçarem
fervorosamente a ideologia do islã. É na batalha de Querino que os sossos
são suplantados pelo exército de Sundiata (Maninke).
A estrutura política do Mali está centralizada no Mansa - o rei dos reis.
Como no Império do Gana, existem os governos periféricos e os governos
aliados. A vida do reino se baseia principalmente na agricultura, abrangendo
também a pastorícia (criação de gado), as rotas comerciais do Saara e as
atividades agrícolas na Savana (Sahel).
O Império do Mali começa a entrar em decadência a partir do sec. XV.
Isto ocorre por causa de fatos políticos relacionados a eventos no interior da
própria corte. Mas há outros fatores, mais profundos, que explicam a queda
do Mali. Sem dúvida, o acirramento da disputa mundial entre islamismo e
cristianismo impeliu os árabes a dominar a região do Sudão, tornando mais
maciça a presença islâmica no continente africano. A disputa com o
cristianismo fez com que o Islão procurasse manter e expandir seu domínio
na região. No entanto, como há uma disputa entre essas culturas religiosas
monoteístas, também o cristianismo manifestará interesse em adentrar no
Sudão. O Império do Mali, não obstante, passa a ter que se defender não
apenas dos islâmicos pelo trajeto transaárico, mas também a se preocupar
com os portugueses, pois eles já sobrepujam a costa ocidental
africana. As brigas internas da corte aparecem como um epifenômeno, ou
seja, surgem por causa da instabilidade regional provocada pela conjuntura
mundial.
O séc. XV é outro século de turbulência. Os conflitos se acirram. O
Império do Mali resiste até o séc. XVI. Ocorrem novas brigas internas entre
as etnias na tentativa de hegemonizar o comando da região. Novamente,
neste período de guerras intensas, a África tornou-se uma grande
fornecedora de escravos para o Mediterrâneo. Desgastadas pelas brigas
internas e dilaceradas pelo tráfico de escravos, o Mali sucumbi.

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Império do Songai
O império do Songai representa três deslocamentos:
1º) Territorial: no Império do Mali a área ocupada era a do Sahel,
na linha da rota do comércio. Havia grandes cidades como Walata,
Tombuctu, Jao e Jenné. Na formação do Império do Songai, por sua vez,
houve a necessidade de avassalar os reinados do oriente.
2º) Organização do Império: o Império do Gana era muito
descentralizado e disperso. Com o Songai temos uma estrutura mais
burocrática e organizada. O poder queda-se, por vez, centralizado. Como há
uma intensificação da islamização da nobreza, aumenta-se as contradições
religiosas e culturais da população do Sudão. Frente às pressões externas há
a necessidade de uma estrutura burocrática e militar para defender-se da
invasão árabe.
3º) Miscigenação étnica e estratificação social: se no Gana
predominava os Soninkes e no Mali os Mandingas, no Songai já não há
predomínio de uma etnia sobre outra. Já não há a hegemonia de uma única
etnia, mas sim a estratificação da sociedade em “classes” sociais.
A tradição política, entretanto, segue a tradição africana. Os grandes
rituais que reforçavam a organização política continuavam sendo os das
religiões tradicionais da África. Mesmo com a intensificação das campanhas
de conversão para a fé islâmica, as elites convertiam-se superficialmente. Do
ponto de vista macrossociológico, há mais uma jogo de cena político nestas
conversões, do que propriamente adesões religiosas.
A base da organização social no Império do Songai é a família extensa
ou clã. Com essa estrutura de organização social explica-se porque não
houve grandes desigualdades sociais entre a população camponesa do
Império. Se na área urbanizada correspondente ao Império propriamente dito
havia a estratificação social, no campo a propriedade segue sendo coletiva,
tendo seu uso determinado pelas regras tradicionais das famílias. O que irá
desestruturar estes núcleos familiares serão as guerras.
Mais uma vez as guerras regionais e a conjuntura internacional vai
intensificar o número de escravizações na África, desta feita no Songai.
Agora a lógica própria da escravização africana transforma-se, uma vez que
“contaminadas” pela visão euroasiática de escravidão. Os escravizados
deixam de serem tratados como agregados das famílias para se tornarem
propriedades do Estado (rei). Adaptando-se a seu contexto e respondendo às

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suas necessidades o Império do Songai burocratizou suas atividades e
fortaleceu o Estado centralizado. Assim, a produção agrícola é controlada,
em grande parte, pelo Estado. Ele está imerso em uma rede de tributação, o
que o fará dono de um grande contingente de escravos.
Apesar das bases culturais (religião, transmissão do poder político,
estrutura social baseada no clã, etc.) permanecerem ligadas às tradições
africanas, o Songai precisou responder às exigências do desenvolvimento do
comércio, à antiga pressão árabe e à recente opressão europeia. O Império
torna-se um híbrido curioso: por um lado adapta-se às exigências do
comércio internacional, perdendo sua característica tradicionalista de
produção; de outro mantém a forma de vida tradicional da população
camponesa. Cria-se aqui um dilema que não se resolveu com a queda do
Império do Songai. Até que ponto é possível resistir às pressões
internacionais que impõem modelos de organização da vida e da produção
em escala mundial? Visto de outro ponto: em que medida essa imposição
destrói realmente as respostas que cada cultura dá a seus problemas sociais?
O hibridismo cultural, em algum momento, pode harmonizar essa tensão
contínua? Os dilemas entre formas tradicionais e atualizações modernas
seguirão problematizando a compreensão da história dos africanos em seu
continente e das respostas dadas pelos afrodescendentes em seus lugares de
ocupação depois da Diáspora Negra, e as categorias de puro/impuro,
original/misturado etc. seguirão armando armadilhas ideológicas para a
compreensão da cosmovisão africana...

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Aspectos Filosóficos
Os Impérios Africanos, no caso de Gana, se formaram em
contraposição à expansão árabe, no entanto, formavam-se de uma
confederação de etnias, que representava várias culturas africanas
organizadas em torno de um único Império dominado politicamente por
apenas uma etnia, que hegemonizou o poder na região. No momento de
constituição do Império do Gana a etnia dominante é a Soninke, do tronco
dos Mandingas, no Mali são os sossos que comandam a formação do
Império. É interessante notar que sob uma aparente unidade de etnia, existia
uma pluralidade de concepções religiosas.
Já em lugares que não houve a presença islâmica não foram
Impérios que se levantaram, mas cidades-estados ou outras formas de
organização social. Ou seja, o povo do Sudão Ocidental respondia às
condições históricas de acordo com as circunstâncias que se lhe
apresentavam. As cidades-estados eram centros de poder multidiversificados
e descentralizados.
Um importante elemento que encontramos na maioria das
populações africanas é a não separação entre natureza e política, poder e
religião, ou seja, não há uma estratificação entre estas camadas importantes
da vida da sociedade. Tudo é visto de acordo com o princípio da integração,
onde os vários elementos se comunicam e se complementam.
Outra realidade que gostaríamos de identificar é o caráter da integração
social que a visão de mundo africana possibilita. Exemplo disso é que a
urbanização não é antiecológica – veja que os palácios centrais se situavam
no meio das florestas sagradas -; outro exemplo, é que nesse tipo de
organização social-religiosa, o sujeito não é individuado – como vemos por
exemplo, no ocidente, a partir do esquadrinhamento da ciência -, mas faz
parte de um todo integrado, isto é, o sujeito é visto como parte do todo.
Os ritos de iniciação (socialização) são coletivos, e esta é uma
característica fundamental nos três Impérios Africanos pois aí, a construção
do sujeito dá-se fundamentalmente no processo religioso. A iniciação forma
coletivamente a pessoa para a sociedade africana.
Há, nisso tudo, uma sabedoria profunda. A força sagrada é eminente à
natureza. Os elementos (biorritmo) é determinado por essa conjugação.
Nestas sociedades não existe a dualidade homem/natureza. Tudo está
interligado, por isso tudo interage. O uno é o todo e o todo é uno. O profano

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tem sua dimensão sagrada como o sagrado manifesta-se no profano. Não há
escatologia. O tempo dos ancestrais é o tempo passado e o tempo do agora.
As cidades formadas nesse período segue o padrão político do Islã
mesclado à cosmovisão africana: 1) urbanização, 2) culto religioso, 3) um
bosque (floresta) sagrado (O palácio central instala-se na floresta). Esse
modelo de organização política no continente africano demonstra que: 1) há
um hibridismo cultural entre povos de matrizes culturais diferentes; 2) que a
lógica africana, dada a situação de dominação, sobrecodificou as instituições
políticas islâmicas, revestindo com a religiosidade nativa as instituições
estrangeiras; 3) o princípio ecológico fora preservado; 4)a resposta africana
é criativa e includente, pois utilizou-se das instituições alheias para manter
sua cultura de base e promover o bem-estar de seu povo; 5) que a criação das
cidades-estados não podem ser vistas como uma evolução da civilização, e
sim como uma forma diferenciada de organização como resposta a uma
determinada circunstância.
Quanto à educação, p.e., o rei do Gana adotava os filhos de outros reis
para prepará-los para o governo e serem seus conselheiros. Na ótica de
pensadores ocidentais isso tratar-se-ia de um sequestro. Acontece que o filho
de tal rei não era refém do soberano de Gana. Ele era um pupilo a ser
preparado para as funções de mando e poder. Na ótica africana, os inimigos
não são estaticamente definidos. Em tempos de guerra pode-se educar o filho
do adversário. Isto é realmente extraordinário, pois a lógica, aqui, não é a da
aniquilação do outro, mas a da valorização de suas potencialidades.
Um elemento de caráter mais geral, que refere-se a estrutura de
organização política da África é que existem diversos modelos de
organização política. Existem as cidades-estados, os clãs (ypós) e ainda
outras maneiras de organização como a da confederação das etnias no caso
do Império do Gana, mas também do Mali e em certa medida no Império do
Songai.
Gostaríamos, nesse sentido, de elencar alguns elementos que
permitirão, posteriormente, a afirmação de uma identidade negra trans-
histórica: Nas cidades yorubás há uma referência constante a uma
ancestralidade para explicar a origem de suas sociedades. A organização
dessa região é marcada por uma forte autonomia. Será, portanto, no sul do
Sahel, que encontraremos a maior parte dos elementos estruturais com os
quais deveremos montar nossa identidade étnica.

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Os chefes são escolhidos de acordo com as linhagens. Essa é a estrutura
de poder nesta região. Na maioria das vezes essas linhagens organizam-se
em sociedades matrilineares. O exercício do poder administrativo do Rei ou
Imperador é controlado socialmente pela comunidade, através de seus
conselhos e sociedades secretas (como as Geledes, por exemplo).
O comércio desenvolveu-se nesta região, criando estruturas estatais
(cidades-estados). Mas as cidades-estados não foram as únicas respostas
políticas à realidade africana. Como a realidade é diversificada, diferentes
foram as respostas sociais. Com isso queremos dizer que as comunidades
africanas responderam contextualmente às necessidades e características de
cada região, tecendo uma variedade muito grande de organização política,
jamais impondo um modelo de organização econômico-social, mas
admitindo várias expressões organizativas no continente. A cosmovisão
africana, com efeito, prima pela diversidade e não pela imposição de
modelos únicos.
O exercício do poder é simbolicamente centralizado, no caso das
monarquias, no Obá (Rei) e nos chefes das aldeias de sua etnia. No entanto,
pragmaticamente, há uma certa descentralização do poder. Na realidade ele é
dividido entre etnias variadas que se submetem politicamente à etnia
preponderante, no intuito de exercer o poder político com maior eficácia.
Ora, já dissemos que a finalidade do exercício do poder é a promoção do
bem-estar da comunidade, havendo inclusive o regicídio como mecanismo
de controle social. Sendo assim, a organização tradicional da política
africana preserva a autoridade do Rei, criando uma unidade simbólica entre a
população, muito embora o exercício pragmático do poder esteja
descentralizado entre as etnias que compõem o reino. Aqui não há
dominação por eliminação, mas hegemonia por competência. Não há uma
política de destruição do outro. O que há é a promoção da alteridade.
A diversidade de formas de organização política é realmente
diversificada. Os Ibós, por exemplo, organizam-se em torno das aldeias,
constituindo-se, portanto, em uma política de povoação - onde a aldeia é
absolutamente autônoma, uma vez que não existe poder centralizado, isto é,
não há Estado.
Nesta região há uma grande complexidade de organizações políticas.
Quando, no séc. XV, os portugueses chegaram às cidades do Benin, tiveram
de reconhecer a superioridade da urbanização das cidades africanas. Porém,

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três séculos de comércio de escravos desmantelaram parte significativa de
sua estrutura política e de seu desenvolvimento econômico.
É interessante notar que não foram as sociedades estatais aquelas que
mais resistiram à colonização. Foram as organizações nômades que
resistiram com afinco à dominação europeia. Isto é um bom exemplo para
não valorizarmos apenas um modelo de organização política, como a estatal,
prestando atenção na potencialidade de outras formas de estrutura de poder.
Combatemos o pensamento evolucionista que enxerga um desenvolvimento
linear que vai das sociedades nômades – consideradas primitivas –, às
sociedades estatais – consideradas avançadas. Destacamos a conivência de
modelos políticos diferentes na perspectiva de demonstrar como a
cosmovisão africana prima pela diversidade e singularidade das experiências
do real, sem reificar o evolucionismo, valorizando o modo próprio de cada
organização política no contexto da lógica cultural de cada grupo.

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Elementos estruturantes das sociedades africanas
Feito um breve levantamento histórico dos Impérios Africanos,
interessa-nos, agora, destacar os elementos que, em nosso entender
estruturam aquelas sociedades africanas, que antes da invasão europeia tinha
condições de vivenciar sua cultura de maneira autônoma, apesar das muitas
influências estrangeiras e das fricções internas.
A identificação desses elementos é um dos eixos centrais deste livro,
pois são eles que nos permitem a afirmação de que, em África, há uma
estrutura comum que sedimenta a organização social, política e cultural.
Esses elementos compõem a cosmovisão africana, e, apesar das
modificações e rupturas, seguem estruturando as concepções de vida dos
africanos e seus descendentes espalhados pelo mundo depois da Diáspora
Negra.

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Universo
Para o africano “o visível constitui manifestação do invisível. Para além
das aparências encontra-se a realidade, o sentido, o ser que através das
aparências se manifesta” (RIBEIRO, 1996, p. 39). O universo está prenhe do
sagrado. O “segredo” faz parte do universo tanto quanto o revelado. Tudo
que se manifesta ou oculta-se, segundo a cosmovisão africana, compõe o
universo. Para estes povos o universo não pode ser entendido sem um
múltiplo de correspondências, analogias e interações com o Homem e com
todos os seres que compõem essa totalidade.
Para explicar a interdependência de todos os seres, Ribeiro recorre à
tradição bambara do Komo, no Mali, de onde extrai uma narrativa
mitológica que conta a origem do homem e do Cosmos pelo grande Deus
Maa Ngala.
Não havia nada, senão um Ser.
Este Ser era um vazio vivo
a incubar potencialmente
todas as existências possíveis.
O Tempo Infinito era a morada desse Ser-Um.
O Ser-Um chamou a si mesmo Maa-Ngala.
Então, ele criou ‘Fan,
Um ovo maravilhoso com nove divisões
no qual introduziu
os nove estados fundamentais da existência.
Quando o Ovo Primordial chocou
dele nasceram vinte seres fabulosos
que constituíram a totalidade do universo,
a soma total das formas existentes
de conhecimento possível.
Mas, ai!
Nenhuma dessas vinte primeiras criaturas reve-
lou-se apta a ser o interlocutor que Maa-Ngala
havia desejado para si.
Então, tomando uma parcela de cada uma dessas
vinte criaturas misturou-as.
E, insuflando na mistura uma centelha de seu hálito
ígneo, criou um novo ser – o Homem – a quem

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deu parte de seu próprio nome: Maa.
Assim, esse novo ser, por seu nome e pela cente-
lha divina nele introduzida, continha algo do
próprio Maa-Ngala. (RIBEIRO, 1996, p. 40-41)
Esse mito ilustra como o Homem é dependente e interligado a todas as
coisas existentes; ele é o resultado da interação de todos os elementos
vegetais, minerais e animais. Além disso, ele participa da natureza divina,
pois nele fora insuflado o hálito divino, ou seja, o Homem está intimamente
ligado a todos os elementos da natureza e ao seu criador. Essa relação
simbiótica com a natureza (mundo natural) e com o próprio Deus (mundo
sobrenatural) compõe a própria essência do Homem, que por sua vez divide
sua essência particular com a totalidade do universo. Dito de outra forma: o
Homem é a micro-síntese de todos os elementos que compõem o universo.
Ele é um microcosmos.
Ronilda Ribeiro, citando Erny25, refere-se ao universo africano
como uma imensa teia de aranha: “não se pode tocar o menor de seus
elementos sem fazer vibrar o conjunto. Tudo está ligado a tudo, solidária
cada parte com o todo. Tudo contribui para formar uma unidade (RIBEIRO,
1996, p. 41). Essa unidade fundamental do universo realça o cuidado com a
ecologia e com o bem-estar das pessoas. Tanto o mundo natural (ecologia)
quanto o mundo social (bem-estar das pessoas) estão em harmonia no que
tange a uma visão unificada do universo. Sem o respeito e a preservação aos
elementos naturais não é possível ter uma vida social saudável e,
inversamente, a vida social sã é impossível sem uma natureza salutar. Tudo
está em tudo. Tudo participa de tudo. Tudo influencia tudo. O todo é cada
uma das partes, cada parte participa do todo; é o todo. O todo é a unidade de
todas as partes. As diferenças, no esquema da autora, são respeitadas. O
africano tem sempre em vista o conjunto, o Universo do qual faz parte e do
qual é dependente/interdependente. Ele é o Universo na medida em que faz
parte de seu todo, e o Universo não existiria sem que o Homem participasse
dele.
O universo, segundo Yakemi26, é sincrônico e não linear. Contrapondo
ocidentais a africanos, atesta que os primeiros são lineares, pois separam o
subjetivo do objetivo, acreditam em linhas evolutivas e baseiam-se no
princípio da causalidade. Os africanos, ao contrário, são portadores do
“pensamento sincronístico” que guarda “uma peculiar interdependência de
eventos objetivos entre si, assim como dos estados subjetivos (psíquicos) do

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observador ou observadores” (JUNG27, 1970 citado por RIBEIRO, 1996, p.
42).
O pensamento sincrônico dos africanos constrói o universo, então,
como uma “teia de aranha”, onde eventos objetivos e subjetivos estão
interligados. À totalidade desses eventos corresponde a concepção de
universo na tradição africana, de acordo com a antropóloga. Me referi, a
pouco, que o sagrado e o profano – sempre de acordo com Ronilda Ribeiro –
não formam uma dicotomia, antes, uma unidade. O sagrado, na verdade,
permeia todos os espaços do universo africano. Ele impregna com sua força
vital qualquer esfera da vida comunitária dos negros, tanto em África como
nos outros continentes para onde tenham ido os negros da Diáspora. Esse
sagrado, porém, no caso da África, emana da ancestralidade. A
ancestralidade, então, está no cerne da concepção de universo. O universo
interliga todas as coisas. Logo, a ancestralidade permeia todos os seres que
compõem esse universo. Se a ancestralidade é a expressão do sagrado, este
sagrado manifesta-se através da força vital, como demonstramos a seguir.

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Força Vital
A Força Vital sempre foi associada aos bantos28. A importância dessa
categoria, porém, não se restringe a eles, podendo ser encontrada entre os
povos da África Ocidental e Setentrional. Fábio Leite, por exemplo,
pesquisou sobre a Força Vital entre os Agni - grupo Akan - e Senufos,
civilizações agrárias da África Ocidental, na região habitada pelos iorubás.
Segundo LEITE (1984, p. 34), Força Vital “refere-se àquela energia
inerente aos seres que faz configurar o ser-força ou força-ser, não havendo
separação possível entre as duas instâncias, que, dessa forma, constituem
uma única realidade”.
A Força Vital como vitalidade universal é capaz de individualizar-se
nas relações entre o homem e a natureza. A profunda relação daquele com
esta está nela sedimentada, uma vez que ela é a força capaz de gerir tal
relação. Essas relações não se restringem apenas à relação homem-natureza,
mas também incide sobre a realidade social bem como sobre a relação do
Homem com o sobrenatural. Enfim, como vimos, o universo é como uma
teia de aranha, onde todos os elementos estão interligados. Assim também a
Força Vital. Ela é o suporte comum para que todas as coisas se conectem e
formem um elo universal, que, sem ela, jamais poderiam manter sua unidade
- fundamental na concepção de mundo africana.
Ela é, portanto, uma das categorias mais importantes que estruturam a
cosmovisão africana, pois ela é tomada como fonte primordial da energia
que engendra a ordem natural do universo e atua de maneira específica em
cada sociedade deste continente. “A origem divina da força vital e a
consciência da possibilidade de sua participação nas práticas históricas
explicam a notável importância que lhe é atribuída e, não raro, a sacralização
de várias esferas em que se manifesta” (LEITE, 1984, p. 34).
A Força Vital não abrange apenas a relação do Homem com a natureza.
Ela abarca todos os seres, sejam eles minerais, animais ou vegetais e
“estabelece individualizações que se hierarquizam segundo as espécies e faz
a natureza povoar-se de forças ligadas aos seus mais variados domínios”
(LEITE, 1984, p. 35).
Segundo Fábio Leite deve-se ressaltar o fato de que o preexistente é
quem cria o mundo. Ao criá-lo, injeta nele sua sacralidade que é a Força
Vital. Assim, cada ser criado passa a possuir a Força Vital e deve mantê-la
no transcurso de sua vida individualizada. Tais desdobramentos, de certa

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forma, multiplicam a Força Vital inicial e dão vitalidade a todos os seres do
universo. Ela constitui-se, então, como a parte mais íntima da materialidade
dos seres criados pelo preexistente. Dessa forma, a “elaboração contínua do
mundo é também tarefa do homem nesse intercâmbio privilegiado entre
natureza e sociedade, exercendo ações transformadoras ao criar o ser
humano no âmbito de sua competência, assim como aqueles elementos
ligados à organização da sociedade” (LEITE, 1984, p. 35).
A Força Vital não atua apenas no abstrato; não é uma generalização.
Ela também age no plano imediato, cotidiano29, pois, segundo Fábio LEITE
(1984, p. 36), tal noção “não se limita às instâncias das formulações
abstratas, situando-se materialmente no interior das práticas históricas e da
explicação da realidade”.
Retornando à concepção de universo podemos dizer que ele forma uma
única rede de relações sustentada pela Força Vital. Nesta acepção, não há
lugar para a dicotomia entre espírito e matéria, entre profano e sagrado. O
sagrado permeia todos os espaços da vida dos africanos. “O valor supremo é
a vida, a força, viver forte ou força vital” (TEMPELS30, citado por
RIBEIRO,1996, p. 39). Explica RIBEIRO (1996, p. 39) que essa força “não
é exclusivamente física ou corporal e sim uma força do ser total, sendo que
sua expressão inclui os progressos de ordem material e o prestígio social”.
A Força Vital, como se viu, é a própria manifestação do sagrado
que sustenta o universo e permeia a relação entre os homens e entre eles e a
natureza. Presente na esfera da produção, da socialização e da família, é na
palavra que a Força Vital manifesta-se com toda sua vitalidade.

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Palavra
A palavra aparece visceralmente ligada à Força Vital. O detentor
primordial da palavra é o preexistente, assim como é ele o detentor daquela.
A palavra, com efeito, muitas vezes aparece nas cosmogonias africanas
como um subsídio fundamental para a criação do mundo e, neste caso, ela é
portadora da “força” que anima e vitaliza o mundo. O Homem, por sua vez,
ao ser criado, recebe a Força Vital e o poder da palavra, que são
equivalentes, visto que a palavra é concebida como uma energia capaz de
gerar coisas.
Dessa forma, “o conjunto força vital / palavra / respiração é elemento
constitutivo da personalidade, emergindo plenamente quando o homem
estrutura de maneira a criar a linguagem e o exterioriza através da voz”
(LEITE, 1984, p. 36-37). A respiração é tida como uma espécie de
manifestação da palavra, sobretudo quando estamos atados aos fatores
primordiais da criação, e, consequentemente, da viabilização e multiplicação
da vida. Portanto: “Sendo a palavra dotada de uma parcela da vitalidade do
preexistente, é necessariamente uma força inerente à personalidade total, daí
que sua utilização deve ser cuidadosamente orientada, pois que uma vez
emitida algumas de suas porções desprendem-se do homem e reintegram-se
na natureza” (LEITE, 1984, p. 37). Deve-se lembrar, entretanto, que a
palavra, uma vez proferida, é uma energia nem sempre controlável e
interfere na existência. Daí a necessidade de quem as pronuncia deter os
conhecimentos necessários para que faça bom uso da energia-palavra, posto
que ela é capaz de engendrar coisas, tanto construtivas quanto destrutivas.
Tal é seu poder que se for mal utilizada, pode, inclusive, voltar-se contra seu
proferidor.
Além de ser expressão do preexistente, a palavra está intimamente
ligada a uma dimensão histórica. É aqui que ela se liga ao conhecimento e
sua transmissão. É o caso, por exemplo, dos especialistas das transformações
(ferreiros e tecelões); das manifestações da vida espiritual (culto aos
ancestrais e às divindades); do domínio específico da própria palavra
(historiadores tradicionalistas); e das explicações de realidades determinadas
(conhecimento esotérico, jogos divinatórios). Existe, não obstante, uma outra
área de aplicação da palavra, onde ela joga um papel definitivo: a política. É
a palavra que tem a função de fazer cumprir a jurisprudência dos ancestrais

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nos conselhos de família ou nas assembleias comunitárias – lugares
privilegiados da prática política nas sociedades negro-africanas.
“A palavra - diz Fábio LEITE (1984, p. 38) - é dotada de origem divina,
mas encontra-se significativamente relacionada com as atividades humanas e
não deve ser considerada somente como fonte de conhecimento”. Para ele,
não há dúvida que a palavra é um instrumento do saber, porém “sua
condição vital lhe garante o estatuto de manifestação do poder criador como
um todo, transmitindo vitalidade e desvendando interdependências” (LEITE,
1984, p. 38).
A palavra atua como criadora do universo, expressão da Força Vital,
organizadora da esfera política, tanto em relação à comunidade quanto em
relação às famílias. Ela gera e movimenta a energia, o que demonstra seu
poder de transformação. É constituinte de quaisquer atividades no tempo,
seja ele sagrado ou profano. É a energia primordial para o transcorrer da
vida.
A vida não transcorre, no entanto, apenas no mundo visível (ayê) dos
homens. O universo africano correlaciona o sagrado e o profano. Sagrado e
profano são interdependentes, como tudo o mais. Há, portanto, uma
correlação entre o mundo dos “vivos” e o mundo dos “mortos”. O mundo
dos homens e o mundo dos antepassados. Cada qual possui o seu tempo,
que, não obstante, se relacionam.

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Tempo
Se nas sociedades modernas o tempo é orientado para o futuro, nas
sociedades tradicionais o tempo é orientado para o passado. É esse
precisamente o caso das sociedades africanas. Segundo Ronilda RIBEIRO
(1996, p. 50): “Tudo o que certamente ocorrerá ou tudo que compõe a ordem
dos fenômenos naturais, como o ritmo da natureza, por exemplo, pertence à
categoria de tempo potencial ou inevitável”. Esta concepção do tempo é
bidimensional, isto é, ele é “constituído pelo presente, um longo passado e
uma virtual ausência de futuro” (RIBEIRO, 1996, p. 50).
Dá-se mais ênfase ao passado que ao futuro quando se trata da
concepção de tempo na cosmovisão africana. A referência mor é o passado.
É nele que residem as respostas para os mistérios do tempo presente. É no
passado que está toda a sabedoria dos ancestrais. Somente no passado o
africano encontra sua identidade. A idade de ouro dos africanos é
diametralmente oposta à dos ocidentais, uma vez que para os últimos os
melhores tempos ainda estão por vir (no futuro), enquanto para os africanos
os melhores tempos encontram-se muito vivos no passado.
O passado como referência primordial da concepção de tempo africana
não dá margem à imobilidade das sociedades deste continente. Muito pelo
contrário! A concepção de tempo africana é dinâmica e sujeita a
reformulações e mudanças. Vive-se no tempo atual. A tradição é
continuamente retomada e atualizada. A “voz” do passado é ouvida e
merece muita atenção, mas sempre na intenção de orientar e organizar o
presente. Vive-se o agora, o hoje. O futuro tem alguma importância, é claro.
Mas é o tempo atual a base do tempo vindouro. Por sua vez o tempo presente
tem sua base no passado, assento comum de toda a concepção de tempo
africana (RIBEIRO, 1996).
Segundo Ribeiro, o tempo atual é a combinação do tempo passado com
o tempo presente. Percebe-se, então, que para o africano, a “esteira do tempo
move-se para trás mais do que para a frente” (RIBEIRO, 1996, p. 50).
É baseada nos estudos de Mbiti31 que Ronilda Ribeiro define o tempo na
cosmovisão africana. Com efeito, Mbiti utiliza dois conceitos do vocábulo
swahili para explicar a concepção de tempo. São elas: Sasa e Zamani. Sasa é
o tempo vivido, tanto pelo indivíduo como pela comunidade. É o período
mais significativo para a pessoa; é o tempo do agora e principalmente o
tempo já percorrido pelo indivíduo. É o tempo atual; o tempo vivido. “Sasa

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constitui em si, uma dimensão completa do tempo, incluindo futuro breve,
presente dinâmico e passado já experienciado” (RIBEIRO, 1996, p. 52).
Depois que a pessoa morre seu sasa continua se a lembrança dessa pessoa
permanecer entre seus familiares ou em sua comunidade. Sasa somente
interrompe-se quando a pessoa, nas gerações subsequentes, é completamente
esquecida. Neste momento ela entra para outra dimensão do tempo, a
Zamani.
Sasa pode ser descrito como o micro tempo, essencial para o
indivíduo e sua projeção, enquanto que zamani pode ser considerado como o
macro tempo, no qual mesmo sasa está contido. Zamani é o tempo dos
mitos. Nesta dimensão do tempo estão contidos o presente e o futuro. Os
mitos cosmogônicos pertencem ao tempo Zamani. Enganam-se os que
pensam que zamani é um tempo morto. Pelo contrário! Ele contém a
explicação para as coisas que estão acontecendo. Zamani está presente,
interferindo diretamente nas ações dos povos tradicionais africanos. Segundo
Ronilda RIBEIRO (1996, p. 53) “zamani é o tempo do mito, que propicia
firmeza e confere ‘segurança’. Todas as coisas criadas, vinculadas umas às
outras, encontram-se envolvidas pelo macro-tempo”.
De acordo com a antropóloga não há relatos de mitos que narrem o fim
do mundo dentre os povos tradicionalistas da África. O final do mundo para
o africano é impensável porque é impensável o final do tempo. A visão de
futuro geralmente é restrita para os dias subsequentes ao dia atual, no
máximo aos meses seguintes. Uma concepção de final da história é absurda
para o pensamento tradicionalista africano. Esta afirmativa pode ser
confirmada pelo fato de que os Griots32, segundo Obenga33, “dificilmente
trabalham com uma trama cronológica, interessando-se mais pelo homem
apreendido em sua existência, condutor de valores e agindo na natureza de
modo intemporal” (apud RIBEIRO, 1996, p. 56-57). Os griots, personagens
sociais que têm papel destacado nas sociedades africanas, narram as histórias
menos atentos à periodicidade e linearidade do tempo que à inclusão de
eventos vividos pela comunidade34.
Os griots não trabalham com o tempo linear dos ocidentais, tampouco
considera a noção de final da história tão repetida entre os europeus - que
disseminaram essa teoria para todo o mundo colonizado. Os griots inserem-
se dentro da dinâmica própria do tempo africano, procurando apreender o
significado de cada acontecimento para a pessoa ou população nele
envolvido. Essa concepção de tempo é dinâmica e funciona como uma

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esteira que se move, como já dissemos, da frente para trás - no sentido
inverso atribuídos pelos ocidentais.
O tempo mítico é reatualizado nos rituais, onde os personagens
heroicos dos mitos indica os comportamentos e atitudes que os indivíduos
devem tomar frente a uma determinada situação. Os indivíduos encontram
nos mitos o sentido da vida e descobrem como atuar frente aos mistérios que
se lhes vão aparecendo. É o tempo do sagrado iluminando o tempo profano.
O que diferencia o espaço sagrado do espaço profano é justamente os rituais
e os acontecimentos iniciáticos que transmutam o tempo profano em tempo
sagrado. Mas note-se que é o mesmo espaço, e não outro. Diferentemente,
por exemplo, das igrejas cristãs, que separam da vida profana o espaço
sagrado – a igreja = Casa de Deus. Nas comunidades tradicionais africanas o
mesmo espaço serve tanto ao tempo profano quanto ao tempo sagrado. E,
como disse Ribeiro, não existe distinção definitiva entre os dois tempos.
Aliás, como vimos, o universo é concebido como uma “teia de aranha”, onde
tudo está interligado; onde a parte e o todo estão profundamente conectados,
o que se dá com o universo também ocorre com o tempo: o tempo é um só,
porém guarda em sua unidade suas diferentes manifestações (sasa e zamani).
Característica importante da contagem do tempo africano é o fato
dele ser demarcado através dos fenômenos naturais. “A noite é separada do
dia e este é dividido em partes, relacionando-se as atividades à altura do sol”
(RIBEIRO, 1996, p. 60). As horas do dia são definidas por atos concretos.
“Em Burundi, por exemplo, amakana é a hora da ordenha (sete horas);
maturuka é a hora de saída dos rebanhos (oito horas); kuasase, hora em que
o sol se alastra (9 horas); kumusase, hora em que o sol se espalha sobre as
colinas (10 horas) ...” (RIBEIRO, 1996, p. 60). Nesta região, as formas de
cumprimentos estão baseadas - no transcorrer do dia - na luminosidade e na
posição das sombras. À noite, quando não se pode contar com a
luminosidade do sol, como é óbvio, o tempo é marcado através das “vozes”
dos animais. O trabalho, por sua vez, é definido a partir de tarefas e não por
unidades de tempo. “O relógio– diz RIBEIRO (1996, p. 60) - tem lugar
[apenas] como objeto de adorno”.
Ao insistir que o tempo africano não é um tempo linear e refletir
que essa concepção nada tem a ver com a projeção do futuro dos ocidentais,
a autora não quer dar razão às barreiras epistemológicas que sustentam que
as sociedades africanas são apáticas, estáticas e que não possuem história ou
dinâmica social. Ela defende a tese de que a concepção de tempo dos

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africanos é dinâmica e relacionada com mudanças que ocorrem em seu
mundo atual. “Para o africano o tempo é dinâmico e o homem não é
prisioneiro de um mecânico retorno cíclico, podendo lutar sempre pelo
desenvolvimento de sua energia vital” (RIBEIRO, 1996, p. 63). Ronilda
Ribeiro cita um poema do Songai para ilustrar tal concepção:
Não é da minha boca.
É da boca de A, que o deu a B, que o deu a C,
que o deu a D, que o deu a E,
que o deu a F, que o deu a mim.
Que esteja melhor na minha boca do que na dos
Ancestrais (RIBEIRO, 1996, p. 63).

A relação privilegiada com o passado tem sua razão de ser: ela


permite uma relação especial com os ancestrais. A preservação da memória
dos antepassados não é causa de estagnação para os africanos; ao contrário,
são essas as causas para o dinamismo característico de sua cultura, uma vez
que a atualização deve estar sempre assentada na sabedoria dos ancestrais.
Os ancestrais, no entanto, não são os atores do mundo atual. Os
protagonistas do tempo vivido são seus descendentes que, ouvindo-os,
respeitando e cultuando-os, devem abrir caminhos para novos tempos. A
tradição, neste caso, é o fundamento da atualização e da novidade.
O tempo africano é impregnado de Força Vital. É um tempo sagrado
(zamani) que envolve o tempo vivido (sasa). O passado é privilegiado, pois
esse é o tempo dos antepassados. O passado, no entanto, não é fossilizado.
Ele é potencialmente transformador, tal como a tradição – acúmulo de tempo
transcorrido. O tempo africano, tal como o universo africano, está prenhe de
ancestralidade. A mesma ancestralidade que permeia todos os seres do
planeta (universo africano) habita o tempo mitológico e atual. Assim como o
visível não se separa do invisível na concepção de universo iorubá, assim
também o tempo dos mortos não se encontra separado do tempo dos vivos.
Os antepassados regulam a vida de seus descendentes. A eles distribuem sua
“força”, e o conhecimento preservado pela tradição é transmitido através da
palavra. Esse universo e esse tempo não são vazios. Além de habitados pela
Força Vital (atributo do sagrado) e pela harmonizadora presença dos
antepassados (que vivem numa dimensão transcendente), o universo e o
tempo acolhem em suas entranhas a pessoa. A noção de pessoa, então, - de
acordo com nossos autores - tem uma importância singular no desenho da
cosmovisão africana.

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Pessoa
Ronilda Ribeiro está interessada em demonstrar, apesar de admitir que
cada clã ou grupo africano tem sua própria noção de pessoa, que existe uma
estrutura comum entre os povos africanos. A noção de pessoa - assim como
a de universo, força vital, palavra e tempo - não é uma exceção, e pode ser
compreendida como mais um elemento estruturante da cosmovisão africana.
Segundo Ronilda RIBEIRO (1996, p. 44): “A pessoa é tida como
resultante da articulação de elementos estritamente individuais herdados e
simbólicos. Os elementos herdados a situam na linhagem familiar e clânica
enquanto os simbólicos a posicionam no ambiente cósmico, mítico e social”.
O estudo da noção de pessoa não pode estar dissociado do estudo das
instituições e dos modos de organização social que propiciam a vida para os
indivíduos. Ou seja, é impossível dicotomizar indivíduo e sociedade, ou
pessoalidade e coletividade. Na verdade, o indivíduo é uno, singular, porém,
mesmo essa singularidade que o caracteriza é forjada no coletivo, no social.
Ronilda Ribeiro, baseando-se em Mauss e Leenhardt, afirma que “o pessoal
é indissociável do grupal, estudar a concepção de pessoa constitui um
recurso para compreender as instituições e as representações a ela
associadas” (RIBEIRO, 1996, p. 45).
Segundo a autora, “ao eu transcendental, intangível e invisível
associam-se componentes de ordem material formando um corpo tangível e
visível e outros componentes de ordem imaterial, intangível e invisível”
(RIBEIRO, 1996, p. 109). Segundo ela e de acordo com a tradição iorubá, o
ser humano é constituído dos seguintes elementos: “ara, ojiji, okan, emi e
ori” (RIBEIRO, 1996, p. 109).
Ara é o corpo físico, corpóreo. Ojiji “é a representação visível da
essência espiritual e acompanha o homem durante toda sua vida” (RIBEIRO,
1996, p. 109). O Ojiji pode ser traduzido como sombra. Okan é o órgão
intimamente relacionado com o sangue – o coração. Ele representa não
apenas o coração físico, mas também o okan imaterial, que representa a
inteligência, o pensamento e a ação. Já o Emi é o princípio vital – a
respiração. Não apenas a respiração corpórea, mas também o sopro divino, o
hálito de Deus. O Ori é a essência real do ser. “O sentido literal de ori é
cabeça física, símbolo da cabeça interior – ori inu” (RIBEIRO, 1996, p.
110). Daí a necessidade de os homens escolherem bem o seu ori e cuidar

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para que ele se conserve bom, pois o ori está sujeito a ações dos feiticeiros
que podem danificar a natureza da cabeça física e espiritual.
Marco Aurélio LUZ (1995) ao falar da concepção de pessoa na
“filosofia” nagô prefere referir-se ao orixá da morte – Iku. A tradição nagô
narra que Obatalá pediu a todos os orixás que procurassem por uma matéria
prima que constituísse o ara-ayiê (ser vivo). Depois de muita procura todos
concordaram que a melhor matéria prima fora a lama, encontrada por Iku.
Porém, ao entregar a lama para Obatalá, Iku lembrou-se de lhe dizer que a
lama havia chorado e se lamentado muito de sua perda. Assim, Obatalá
ordenou a Iku a restituição da lama do orun tomada para fazer o ara-ayiê.
“Daí por diante, Morte possui essa missão. De levar de volta matéria dos
ara-ayiê para o orun” (LUZ, 1995, p. 52).
Segundo o autor, a matéria com que são moldados os seres humanos
chama-se ipori ou oke ipori (LUZ, 1995, p. 52). A qualidade do ipori dará as
primeiras características ao indivíduo dela constituído. Porém, há um outro
elemento que marcará a pessoa constituída que é o egun ipori, ou seja, as
“matérias massas restituídas de seus antepassados, e agora renascido no
novo ser” (LUZ, 1995, p. 53). O Oke ipori é a matéria da qual é feita a
cabeça física e interna, o ori (LUZ, 1995, p. 53).
De acordo com a tradição nagô cada elemento que constitui o ara-ayiê
é encontrado no orun. Logo, é lúcido deduzir que existe um duplo do ara-
ayiê no orun. Os rituais estabelecidos no ayê para fortalecer o destino do ori
no ara- ayiê, chama-se ori-orun e ajuda a fortalecer o fluxo do destino
pessoal.
A cabeça (ori) é o centro das atenções dos povos nagôs. Segundo a
tradição são os próprios Homens que escolhem sua cabeça no orun antes de
descerem para o ayiê. Em terra devem sempre fazer oferendas para seus
orixás para que mantenham uma cabeça forte, boa e restituam para ela a
força através das oferendas, que, por sua vez, aumenta o axé dos oris. A
cabeça, em verdade, é o conjunto de partes complexas35 deste que é o
membro principal da pessoa segundo a tradição nagô.
A cabeça, apesar de ser a parte mais importante da pessoa, não é
autossuficiente. Ela necessita do bom funcionamento de todas as outras
partes do corpo para seu bem-estar. O ori depende muito do orixá
responsável pelo interior do corpo, que é exatamente Exu Bara, que significa
o Rei do Corpo. “Ele é o princípio de movimento e circulação das vias
internas” (LUZ, 1995, p. 56).

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Exu Bara é quem encarna no indivíduo e proporciona a este o
nascimento. Por isso mesmo, Exu Bara é também responsável pelo bom
fluxo do destino pessoal da pessoa. Presente nas cavidades do ser humano,
Exu Bara conhece nossas entranhas e conhece nosso destino, juntamente
com Ifá, o Orixá das adivinhações e da sabedoria.
Para Marco Aurélio LUZ (1995, p. 57): “os seres humanos são
resultado dos desprendimentos de matéria massas dos orixá e de seus
ancestrais místicos e familiares falecidos, de onde é retirado o egun-ipori e
que constituirá a pessoa no ayiê”.
A pessoa é o resultado de forças divinas como naturais. Sua essência
está indissociavelmente ligada às divindades como aos elementos da
natureza. Ela é a síntese de todos os seres que compõem o universo, como
vimos no mito de Maa Ngala. Ela é a expressão da vontade de Obatalá e
fruto da empreita de Iku. A pessoa, no entanto, não pode ser compreendida
como um ente individual. Com efeito, a pessoa é o resultado de uma ação
coletiva. Não se separa, segundo Ribeiro, pessoalidade de coletividade. A
identidade do indivíduo é forjada no interior das tramas sociais. Se a pessoa
é resultado da interação entre o sagrado e a natureza, é no meio-ambiente
social que ela encontra sua identidade. A formação da pessoa dá-se através
de processos de socialização, como veremos a seguir.

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Socialização
A socialização dentre os africanos é o processo de formação dos
indivíduos e suas personalidades de acordo com as normas tradicionalmente
estabelecidas em suas sociedades. Esse processo de formação dá-se,
geralmente, com ritos iniciáticos, que são coletivos e abrangem a totalidade
dos indivíduos viventes em cada comunidade. “A formação da personalidade
nas civilizações negro-africanas é encargo atribuído à sociedade como um
todo”. Esse humanismo, como afirma Leite, revela “que a sociedade propõe
a superação, pela consciência da realidade existencial, das limitações
materiais e instrumentais, harmonizando o homem com as práticas sociais
suficientes” (LEITE, 1984, p. 42).
As crianças, assim que têm idade, sujeitam-se aos ritos iniciáticos, o
que faz com que o grupo de pessoas chegue à maturidade ao mesmo tempo e
criem vínculos de solidariedade entre si, ocupando agora seu novo papel
social e, é claro, cumprindo rigorosamente suas novas funções diante da
sociedade a que pertencem.
Esses ritos são tão importantes que no caso de alguém se negar a passar
por eles sofrerá uma série de restrições e provavelmente ficará fora da
distribuição dos dotes de terra, da possibilidade de exercer algum cargo de
comando etc. Ou seja, somente são excluídos nestas sociedades aqueles que
se excluem do processo de socialização – sempre coletivo e sempre
garantindo o bem-estar social de seus membros.
A formação da pessoa africana, então, é um processo coletivo; uma
responsabilidade social. Os ritos iniciáticos irmanam todos os membros de
uma comunidade. A preparação da pessoa para viver no meio social é uma
tarefa assumida coletivamente, obedecendo as normas dos ancestrais. Com
efeito, os ritos iniciáticos responsáveis pela socialização da pessoa são
baseados na tradição dos ancestrais e obedecem às regras determinadas pelos
antepassados. Ou seja, a lógica que empreende a socialização dos
indivíduos, em África, é a da ancestralidade.
Esses ritos iniciáticos pautados no princípio da ancestralidade
introduzem os indivíduos – vivos – no seio de suas comunidades ou
famílias-aldeias. Há, entretanto, um outro rito, que ocorre entre os viventes,
mas dirige-se aos falecidos. São os rituais da morte ou, como são
comumente chamados, os ritos funerários.

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A morte é um evento de fundamental importância para os
africanos, e, para o que me interessa mais de perto, a ancestralidade, pois ela
é o mecanismo comunitário que cria os ancestrais e, como rito de passagem,
tem a função de harmonizar as tensões do grupo.

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Morte
A crença na imortalidade do homem explica, em grande parte, a
grande importância que a morte e os ritos funerários têm na cosmovisão de
mundo africana. Com efeito, “a morte apresenta-se como fator de
desequilíbrio por excelência, pois promove a dissolução da união vital em
que se encontram os elementos constitutivos do ser humano, estado esse que
faz configurar a existência visível” (LEITE, 1984, p. 43).
A morte abrange as esferas mais importantes da vida africana, pois
abarca a concepção de homem, a necessidade das restituições dos papéis
sociais mais importantes, como chefes de família ou governantes políticos.
Isto porque, uma vez ocorrido o evento da morte o equilíbrio da comunidade
está posto em questão, pois as personagens que morreram sintetizam as
ações históricas do grupo. É neste momento que os ritos funerários ganham
grande importância, pois eles são capazes de reorganizar rapidamente as
comunidades restabelecendo o equilíbrio social.
Os ritos funerários fazem ver aos africanos os elementos que
extrapolam a própria morte, ou seja, a participação do indivíduo morto no
plano do sagrado - no seio dos ancestrais. Além do mais, toda a sociedade
participa e é testemunha da distribuição da energia vital da pessoa que
morreu para os elementos naturais, como a terra que abrigará seu corpo. A
vitalidade da pessoa morta é transferida para os elementos naturais que vão
contribuir para a vida da comunidade. De certa forma, a morte de um
indivíduo é o aumento da força da comunidade já que sua energia volta-se
para ela fortalecendo os elementos naturais essenciais para a vida do grupo.
Quanto ao indivíduo que morreu ele passa, por causa da imortalidade, a fazer
parte de um outro plano onde estão os ancestrais – a não ser que ele volte
para a comunidade -, onde sua energia vital fará parte agora do zamani.
Segundo Fábio LEITE (1984, p. 44): “Esses fatores explicam a
notável importância conferida às cerimônias funerárias que, se em parte
podem ser consideradas como ritos de passagem, de outra se constituem em
ritos de permanência, pois delas nascem os ancestrais”. Os ritos funerários
têm importância fundamental no restabelecimento do equilíbrio social. Eles
não atuam somente no plano psicológico; mas revelam também “a
capacidade de a sociedade dominar a desordem provocada pela morte e dar
continuidade à vida ao elaborar o ancestral, fazendo com que a imortalidade

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do homem se configure de maneira precisa e em relação vital com o grupo
social” (LEITE, 1984, p. 44).
Para Marco Aurélio LUZ (1995) e BASTIDE (1989) os ritos
funerários do candomblé são os responsáveis pela geração dos ancestrais -
primeiro como ancestral individualizado, depois como ancestre coletivo.
Julio Braga, por sua vez, descreve a criação do ancestral através do culto dos
babá eguns, dando ênfase, também ele, aos ritos funerários e como esses se
tornaram a matriz referencial para o nascimento dos ancestrais. “É o ritual
funerário que dignifica o morto enquanto elemento indissociável da estrutura
religiosa e do próprio sentido da permanência e elaboração do sistema de
transferência do poder para a nova liderança que se instala na direção do
grupo religioso” (BRAGA,1992, p. 99). É o ritual funerário, ainda, que
permite “a elaboração social do ancestral coletivo”. Isto porque, de acordo
com Fábio Leite, citado por BRAGA (1992, p. 99), é nesse ritual que “a
sociedade manipula a imortalidade do homem com o pressuposto de inseri-
los no país dos ancestrais”.
Podemos ver que os ritos funerários são ao mesmo tempo de
passagem e de permanência. De passagem, pois direcionam o destino de
seus mortos para a imortalidade entre os ancestrais. Têm a função, portanto,
de harmonizar o desequilíbrio causado pela morte de um membro da
comunidade. O ritual funerário transforma o morto num ancestral - aqui
estamos diante de um ritual de permanência. Sua vida fora desfeita, mas sua
força vital, não. Ela volta para a comunidade, alimentando-a. Sua morte é
sinal menos de perda que de ganho. A comunidade, com efeito, perde um
membro, mas ganha sua energia vitalizante. O indivíduo desaparece; a
comunidade cresce. A força vital que dantes o habitava, reside agora na sua
família, entre os membros de sua linhagem. A família é, sem embargo, o
núcleo comum onde o africano pode vivenciar seu universo, alimentar sua
força vital, interagir no tempo com as pessoas e as divindades, aprimorar seu
sistema de socialização, dominar a palavra e preparar seus ritos, tanto
iniciáticos como de passagem ou permanência.

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Família
De acordo com Fábio LEITE (1984, p. 45): “A família negro-
africana típica, conhecida pela denominação de família extensa, é constituída
por um grande número de pessoas ligadas pelo parentesco”. As famílias se
organizam ou por linhagem matrilinear, ou por linhagem patrilinear. No caso
das linhagens matrilineares, que na África são maioria, é comum encontrar
no seio das famílias-aldeia as ancestrais-mulheres que lhes deram origem.
Para ele, “é devido a essa configuração do parentesco que os direitos e os
deveres são institucionalmente transmitidos de mãe a filha, de irmã a irmã,
de tia a sobrinha e, quanto aos homens, de irmão a irmão e de tio a sobrinho”
(LEITE, 1984, p. 45). Esse modelo organizativo dos grupos está baseado nos
laços sanguíneos e conferem grande autoridade às mulheres. A mãe é o pivô
da organização familiar, e é através de sua linhagem que os postos de poder
e responsabilidade são transmitidos.
Esse modelo é igualmente aplicado à sociedade. Assim, as funções do
governo, da administração geral dos interesses dos membros da comunidade
- interesses tanto materiais quanto espirituais - passarão necessariamente
pela linhagem matrilinear. “Sob o prisma de sua formulação sanguínea, a
família extensa de organização matrilinear transcende, portanto, o espaço
físico, abrangendo todos os indivíduos ligados pelo parentesco uterino a
ancestrais mulheres comuns” (LEITE,1984, p. 45).
Em relação à estrutura física, a família africana – família extensa -
“compreende a família do patriarca-chefe e as famílias conjugais a ela
ligadas” (LEITE, 1984, p. 45). A família do patriarca-chefe é formada por
ele, sua esposa(s), filhos, irmãos e mulheres dos irmãos com sua prole e
parentesco, enquanto as famílias conjugais comportam esposo, esposa e
filhos. O conjunto dessas relações familiares forma a família-aldeia, unidade
produtiva que se ocupa da sobrevivência da comunidade. Essa família-aldeia
é a unidade familiar que garante a existência do grupo. Ela está organizada
sob o modelo da matrilinearidade e tem sua estrutura baseada nas mulheres-
ancestrais que lhes conferem origem e sentido.
Segundo LEITE, a família é o locus privilegiado do africano
vivenciar sua cultura. Dela nascem suas divindades, bem como sua
subsistência. A família é o núcleo primevo da sociedade. É sua unidade mais
importante. A estrutura social africana é formada pelos clãs ou famílias-
aldeia e sua importância é tal que até os deuses obedecem às linhagens! Os

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ritos, por sua vez, refletem a organização singular de cada grupo; as etnias,
ao que lhes tocam, definem suas identidades no “útero” da sociedade (a
família). Útero que gesta tanto sua vida, digamos, espiritual, como sua vida
material, através da produção. A produção, no entanto, não é compreendida
como uma tarefa meramente material. Ela está intimamente ligada com a
concepção sagrada do mundo, principal característica da cosmovisão
africana. Por isso, mesmo na produção, uma vez mais a ancestralidade é o
princípio norteador da vida dos africanos.

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Produção
Nas sociedades tradicionais africanas “os processos de produção são
baseados essencialmente na suficiência destinada ao atendimento
comunitário de necessidades vitais e específicas” (LEITE, 1984, p. 46). Isto
explica o fato de em África não serem usados meios alternativos de
produção. De acordo com Fábio LEITE (1984, p. 46), “a natureza
comunitária da produção formula-se materialmente enquanto elemento
decisivo da realidade social”.
Como essas sociedades são basicamente agrárias, é lógico deduzir que a
terra é o principal elemento da produção dentre elas. A terra é considerada
“como uma divindade e sua fertilidade tomada como doação do
preexistente” (LEITE, 1984, p. 47). Sendo uma divindade e tendo íntimas
relações com o preexistente, o homem não pode apropriar-se da terra; ele
pode somente ocupá-la36.
Uma das principais características destas sociedades é a não
apropriação individual do solo e o dever de transmiti-lo da mesma forma às
próximas gerações. O homem deve ocupar o solo de acordo com os pactos
com a terra selados por seus ancestrais. Esses pactos demonstram o profundo
respeito e a importância arraigada na cultura desses povos no que se refere
aos ancestres. Esses pactos são respeitados, o que não impede que possa
ocorrer pequenas transformações nesse espaço, como por exemplo, a terra
pode ser repartida com terceiros (que não fazem parte da família) desde que
a unidade produtiva mantenha o sustento da família extensa. Essas
transformações, no entanto, não podem desestruturar o modelo
tradicionalmente existente.
Quanto aos instrumentos de trabalho, também eles devem ser
confeccionados da terra, ou seja, somente pode-se utilizar os instrumentos
que têm como matéria prima a própria terra e, por extensão, a natureza. Isso
também é fruto do pacto estabelecido entre o Homem (sobretudo os
ancestrais fundadores) e a terra (elemento natural fundamental e elemento
sagrado por excelência). Os instrumentos de trabalho assim concebidos
servem apenas para suprir o necessário à comunidade. Não há excedente na
produção africana. O meio de produção (a terra) e os modos de produção (os
instrumentos utilizados) destinam-se tão somente ao suprimento das
necessidades vitais do grupo. Isso impede o desenvolvimento de tecnologias
que favoreçam a acumulação do excedente a partir de técnicas artificiais de

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produção. O elemento natural, para Leite, é base para a manutenção de uma
sociedade em harmonia com o meio ambiente e com o meio social.
De acordo com o autor: “Das alianças seladas com a terra pelas famílias
nascem (...) as unidades de produção e a comunidade, elementos sintetizados
na família-aldeia” (LEITE, 1984, p. 48). Tudo está interligado e tudo é
interdependente. Esse é o segredo da harmonia social na África. Vê-se,
assim, que a concepção harmonizante de universo presente na cosmovisão
africana reflete-se na esfera da produção. O mesmo verifica-se com a noção
de trabalho, posto que “ele se traduz como ação comunitária por excelência”
(LEITE, 1984, p. 48). O trabalho transparece como mais um instrumento da
produção estando vitalmente associado às regras de interdependência
estabelecidas por fatores não meramente econômicos. As famílias conjugais
destinam dois terços de seu tempo de trabalho ao labor coletivo, sendo que
um terço de seu tempo de trabalho é ocupado em áreas privativas à família
conjugal. Já os jovens solteiros trabalham todo o tempo nas áreas coletivas,
até que chegue sua vez de constituir sua família conjugal.
Entre as sociedades africanas encontra-se também o trabalho em
mutirão, baseado na reciprocidade. Os jovens trabalham mais do que os
idosos, e as atividades são organizadas de modo a que os jovens possam
prestar ajuda aos mais velhos. Quando os anciãos já não conseguem
trabalhar, podem gozar sua velhice recebendo todos os donativos necessários
à sua sobrevivência até que chegue o dia de sua morte.
Toda essa estrutura produtiva impede que exista um grupo que
passe a usufruir mais direitos e a ter privilégios. A produção suficiente, os
instrumentos de trabalho forjados da natureza e destinados à produção do
essencial, impedem que se formem camadas mais abastadas em detrimento
de camadas desprovidas dos bens necessários à sobrevivência. Sendo o
trabalho um elemento da produção essencialmente coletivo e destinado para
toda a comunidade dificulta-se a formação de camadas sociais privilegiadas.
Com efeito, “nessas sociedades a força de trabalho faz parte da
personalidade e não se encontra separada da totalidade vital que configura os
indivíduos, não podendo, portanto, ser apropriada” (LEITE, 1984, p. 49). A
força de trabalho é um serviço. O trabalho é uma prática social que ajuda a
definir os papéis dos indivíduos nas sociedades africanas. É por isso que
LEITE (1984, p. 49) pode dizer que o “trabalho integra-se qualitativamente
nas práticas ligadas à produção enquanto fator de vida social total, fazendo

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emergir o indivíduo historicamente consciente das ações que deve à
sociedade”.
O trabalho é organizado dentro dos limites territoriais da família-
aldeia, seguindo o princípio da ancestralidade. A sociedade africana, porém,
não se restringe ao clã familiar. Com efeito, na África, existem sociedades
com e sem Estado, mas em qualquer caso o exercício do poder está centrado
no seio das famílias-aldeia, obedecendo a duradoura tradição africana que
tem por finalidade última o bem-estar de todos os membros dos vários
grupos africanos.

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Poder
Já sinalizamos que em África, segundo os autores referidos, pode-
se falar em sociedades com e sem Estado. Entretanto, num caso como no
outro o poder está concentrado nas unidades produtivas, ou seja, nas
famílias-aldeia. Em ambos os casos há mecanismos reguladores do poder,
seja ele emanado dos chefes das linhagens ou da corte do rei.
Tanto no caso das sociedades sem Estado como no caso das
sociedades com Estado o poder é moderado pela existência dos “conselhos
de família e de comunidade, as chefias de família, os encargos ancestrais
atribuídos a certos notáveis e ainda as gerações de iniciados que exercem
funções políticas” (LEITE, 1984, p. 50). Nos dois casos, observa Fábio
Leite:
“evidencia-se uma consciência ótima acerca do território ocupado, manifestando-
se a unidade cultural, dada especialmente por uma língua básica (não obstante
suas eventuais variações regionais), origens ancestrais comuns e organização
social e política semelhante” (LEITE, 1984, p. 50).

Quando se trata das sociedades sem Estado a ocupação dos


territórios é mais fragmentada, pois a ocupação se dá basicamente pela
ocupação das terras utilizadas pelas famílias-aldeia. No entanto, os grupos
conhecem as origens mitológicas e históricas de suas terras. A diferença para
com as sociedades com Estado é que nestas o rei administra e tem sob sua
responsabilidade o território que seu grupo ocupa, não obstante haja
diferenças entre eles. O rei, na verdade, é um administrador de conflitos. Ele
deve zelar pelo bem-estar de sua comunidade. Se ele não cumprir essa
norma pode pagar com sua própria vida, pois em certas sociedades, como a
dos três grandes impérios (Gana, Mali e Songai), se o rei não garantir
prosperidade a seus súditos ele sofre o regicídio.
De acordo com Fábio Leite, as mulheres e os homens ocupam
determinadas funções, que lhes conferem poder frente à sociedade. Quanto
às mulheres, elas “constituem fonte de legitimação na medida em que apenas
elas fazem configurar as descendências e as posições dos indivíduos na
estrutura da família para fins de sucessão e consequente acesso ao poder”
(LEITE, 1984, p. 51). Este é o caso dos conselhos de mulheres formados
pelas descendentes das mulheres-ancestrais, que determinam quem pode ser
indicado aos cargos de comando, inclusive ao posto do rei. Os homens,

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portanto, são aqueles que têm o comando político da comunidade. Enquanto
chefes mandatários, guardiões dos pactos selados com a terra
“são os zeladores da ordem e também os principais elementos de comunicação
entre a comunidade e os ancestrais, pois a eles cabe a direção e mesmo a execução
dos atos mais decisivos relacionados com os cultos aos antepassados” (LEITE,
1984, p. 52).

Temos, novamente, uma ordem tal, que apesar das diferenças entre
os elementos (masculino e feminino), vê-se claramente que são
complementários e fundamentais para o bom funcionamento do organismo
social, pois sem os quais não haveria o bem-estar da comunidade. As
funções de homens e de mulheres são complementares e benéficas à
sociedade como um todo.
O poder é um atributo dos viventes, mas emana dos antepassados.
Os que forem mais fiéis aos antepassados e seus pactos com a terra
alcançarão mais prestígio diante da comunidade. O poder é um exercício
calcado na tradição para garantir o bem-estar para a sociedade. Isso justifica
porque o rei, quando deixa seu povo às margens dos benefícios sociais, pode
sofrer o regicídio. O poder, portanto, é um instrumento da tradição dos
ancestrais para perpetuar no ayê a ordem do sagrado e a moralidade dos
ancestrais.

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Ancestralidade
Quando Olorun procurava matéria apropriada para criar o homem todos os
ebora partiram em busca da tal matéria. Trouxeram diferentes coisas mas
nenhuma era adequada. Foram buscar lama, ela chorou, derramou lágrimas e
nenhum ebola quis tomar da menor parcela. Então Iku, ojegbe-alaso-ona,
apareceu, apanhou um pouco de lama – eerupe – e não teve misericórdia de seu
pranto. Levou-a a Oludamare, e este pediu a Orisala e a Olugama que a
modelassem e foi Ele mesmo quem lhe insuflou seu hálito. Mas Olodumare
determinou a Iku que, por ter sido ele a apanhar a porção de lama, deveria
recolocá-la em seu lugar a qualquer momento. E é por isso que Iku sempre nos
leva de volta para a lama. (SANTOS37 citada por RIBEIRO, 1996, p. 158).

O culto aos ancestrais é um dos elementos mais constantes na


cultura africana. Pode-se mesmo dizer que é um fenômeno universal em
praticamente toda a África Negra. Conforme Marco Aurélio LUZ (1995, p.
93): “Um dos aspectos invariantes da religião negra é a existência do culto
aos ancestrais. Tanto a tradição nagô como a jeje e a congo-angola, que
cultuam as forças cósmicas que regem o universo, se complementam com o
culto aos ancestrais”. Essa constante na cultura africana e na cultura negra
em geral é a pedra fundamental da cosmovisão africana, pois o culto aos
ancestrais sintetiza todos os elementos que a estruturam. Aliás, aqui o
movimento é o inverso: a cosmovisão africana retira do culto aos ancestrais
praticamente todos os seus elementos.
Desde a complementaridade dos gêneros, até o caráter coletivo dos
rituais africanos, o culto aos ancestrais preserva e atualiza, da melhor
maneira possível a originalidade e a genuinidade dos elementos estruturantes
da cosmovisão africana. A concepção de universo, de poder, de pessoa, etc.,
estão nele contemplados. Sua dinâmica perpassa desde o caráter mais
eminentemente religioso até seu caráter de produção. A relação entre o ayê e
o orun é exemplar; a relação entre a vida e a morte é singular; a relação
entre o Homem e a natureza e entre o Homem e as divindades são
emblemáticas, ou seja, tudo o que se passa nos cultos aos ancestrais está
presente, de maneira geral, no que estamos chamando de cosmovisão
africana. O que equivale a afirmar que a cultura negra, em África ou fora
dela, deve muito de sua estrutura, de seu fundamento, ao culto dos orixás.
Em relação à tradição nagô no Brasil há três categorias de culto
aos ancestrais: Os Esa, os Egungun e as Iya-mi Agba. Segundo Marco
Aurélio LUZ (1995, p. 93) todos as três “estão englobados no conceito de
ara-orun, habitantes do orun, do além”.

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Os Esa “são considerados os ancestrais coletivos dos afro-
brasileiros. Seu culto se refere à comunidade em geral e não se caracteriza
pela pertinência a uma família ou uma linhagem” (LUZ, 1995, p. 93).
Apesar de tanto em África quanto no Brasil a linhagem tradicional possuir
valor inestimável, os Esa se destacaram por seu trabalho junto às
comunidades, e é a elas que eles vão servir e ajudar, e não às suas famílias
de origem.
Enquanto os Esa têm manifestação coletiva os Egungun têm
manifestação individuada. Além dessa diferença há outra: a representação do
espírito individualizado, o Egungun, caracteriza-se pela aparição no aiyê. Os
Esa, por sua vez, não têm essa propriedade de espírito individualizado e não
se manifestam no aiyê.
O culto dos Egungun é o culto dos ancestrais masculinos,
“originário de Oyó, capital do império nagô, foi implantado no Brasil no
início do século XIX” (LUZ,1995, p. 95). Seus principais terreiros, e hoje
em dia praticamente os últimos, se encontram na Ilha de Itaparica, na Bahia.
Segundo Marco Aurélio LUZ (1995, p. 95-96):
“Os Egungun concretizam um valor característico da cultura negra, que é a busca
da expansão da existência pelo homem negro através das homenagens e lembrança
eterna mantida pelos seus descendentes, uma vez o espírito preparado e ritualizado
através da religião”.

A participação dos Egungun na vida dos seres humanos é ativa.


Eles constituem-se nos protetores da comunidade e os guardiões da tradição
e da moralidade. O culto aos Egungun inspira adoração, respeito e temor
(LUZ, 1995, p. 96).
Os iniciados no culto aos ancestrais Egungun têm a certeza de que tanto
a vida como a morte é uma e a mesma coisa. Eles acreditam que vão
continuar existindo em outro plano, e ligados sempre à sua territorialidade, à
sua família, à sua linhagem. Há uma cantiga retirada do livro de Joana
Elbein dos Santos e citado por Marco Aurélio LUZ (1995, p. 96) que
explicita bem o que acabamos de comentar:
Se awo ki’ku
Awo ki run
Nse é awo ma nlo so Itunla
Itunla ilê awo

Aqueles que fazem o mistério nunca morrem


Os iniciados nunca se corrompem

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Os iniciados vão somente para o Itunla (lugar da vida ilimitada
e verdadeira; da vida que se renova)
Itunla casa do mistério. (o ilê awo), de onde os Eguns também
são invocados.

Há uma grande diferença entre o culto dos Egunguns e o culto dos


orixás. Tanto que os ritos religiosos não se podem fazer ao mesmo tempo e
no mesmo lugar. Ancestrais Eguns e orixás estão radicalmente separados. No
entanto, há muita semelhança na estrutura desses cultos, tanto no que diz
respeito à ancestralidade tanto no que diz respeito à relação dessas
divindades com os Homens. Não é uma questão para se adentrar agora, mas
ancestrais e orixás têm relações antigas, mesmo antes da criação dos ara-
aiyê. A relação, no orun, entre elas, era estreita e complementar. Só para
citar um exemplo, há orixás que antes de sê-lo eram ancestrais divinizados.
Por sua vez, esses ancestrais eram líderes comunitários em seu território,
como foi o caso do Rei Xangô, que acabou tornando-se o orixá da justiça, do
trovão. Concluindo, podemos citar Ronilda Ribeiro que assim define a
diferença entre orixás e ancestrais: “Os orixás, associados a elementos
cósmicos ou à natureza, significam matérias simbólicas de origem enquanto
os ancestrais, significam princípios de existência genérica a nível social”
(RIBEIRO, 1996, p. 166)
As Geledes é o culto às ancestrais femininas. Marco Aurélio LUZ
(1995, p. 102) narra a seguinte história: “No começo do mundo, era o nada.
Com a criação da terra e das florestas, Olorun enviou ao aiyê sete pássaros.
Três pousaram na árvore do bem, três pousaram na árvore do mal, e um voa
de uma para outra árvore”. Esta história narra a ambiguidade do poder que
as ancestrais femininas, também chamadas de Iya-mi-Agba, receberam de
Olorun. Aqueles que não a respeitarem, morrerão; mas aqueles que a
agradarem e fizerem as devidas oferendas serão protegidos e agraciados por
elas.
Segundo Joana Elbein dos Santos, citada por LUZ (1995, p. 103):
“As aje ou Iya-mi constituem a representação da maternidade, fertilidade e
fecundidade relacionadas ao princípio feminino da existência e Oxun, Olori-iya
Agba Aje Eleye chefe suprema das mães ancestrais possuidoras de pássaros, as
apresenta coletivamente”.

Para LUZ (1995, p. 103):


“O que caracteriza o mistério e poder das Iya-mi é a capacidade de criação e
gestação da terra, Igba-nla, a grande cabaça ventre fecundada. Para tanto, ela deve

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ser constantemente ressarcida, restituída e umedecida, pois ela é constantemente
solicitada para gerar abundância de grãos”.

Ronilda Ribeiro, atenta ao culto das mães ancestrais como uma


maneira de restaurar a força pela restituição, afirma que as Iya-agba, “para
poderem cumprir sua função necessitam ser fecundadas, umedecidas,
restituídas. A terra, associada ao que é seco e quente, precisa ser umedecida
continuamente, recuperar o “sangue branco” para poder propiciar novos
alimentos” (RIBEIRO, 1996, p. 165).
De acordo com a autora, a sociedade das Geledes, simboliza
aspectos coletivos do poder ancestral feminino é dirigida
“pelas erelu, mulheres detentoras dos segredos e poderes de Iyami, cuja boa
vontade deve ser cultivada por ser essencial à continuidade da vida e da sociedade,
o culto tem por finalidade apaziguar seu furor; propiciar os poderes místicos
femininos; favorecer a fertilidade e a fecundidade e reiterar normas sociais de
conduta” (RIBEIRO, 1996, p. 159).

Por fim, vemos que o culto aos ancestrais representa de maneira


exemplar a cosmovisão africana, tanto porque compõe as camadas mais
importantes dessas sociedades (princípio masculino, princípio feminino e o
coletivo), quanto pela riqueza de funções que possuem os ancestrais.
Vivendo no tempo do passado, um tempo mitológico (zamani), os ancestrais
interferem e participam ativamente na vida de seus iniciados e de suas
comunidades, atuando e transformando o tempo sasa, construindo e
restituindo a força vital (ou axé) de seus descendentes, fazendo com que a
vida seja um continuum impregnada da energia dos entes sobrenaturais, que,
em outros tempos, já foram ara-aiyê, e que agora emprestam sua energia,
seu ser-força, às comunidades e seus membros, tornando o universo
africano um universo impregnado de energia e força.
Os elementos que estruturam a cosmovisão de mundo de que
estamos falando advém, quase em sua totalidade, das religiões yorubanas e
jêje localizadas na costa ocidental do continente. No entanto, a África abriga
centenas de milhares de religiões. Para exemplificar esta diversidade,
trataremos de tecer comentários sumários e tirar conclusões filosóficas
decisivas de religiões de outras regiões africanas e, ainda que sinteticamente,
retirar daí lições filosóficas que contribuam para a cultura brasileira e, quiçá,
mundial.

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Religiões Africanas
Certamente, na África, as religiões jogam um papel primordial na
organização da vida comunitária e na estruturação das sociedades africanas.
Por isso gostaríamos de fazer rápidas considerações a respeito de algumas
religiões da África tradicional, mas que existem até os dias de hoje. Tais
considerações serão traçadas sobre as seguintes religiões que foram
sumariamente analisadas: Religião Akan38, Banto39, Dinca40, Dogon41, Fon42,
Ganda43, Religião Iorubana44, Lovedu45, Mbona46, Mende47, Nilótica48, Nuer49,
Shilluk50, Shona, Zande e Zulu51 e a veneração africana aos Antepassados.
O melhor seria relacionar cada conclusão geral com cada religião em
particular. Este artifício, no entanto, deixaria ainda mais extenso o presente
texto e, de certa forma, ofuscaria nosso objetivo principal que é reter
justamente as conclusões de caráter mais genérico. Assim, elencaremos o
que consideramos as conclusões mais importantes a respeito da análise das
religiões tradicionais africanas, que vai desde a África Ocidental até o sul da
África negra.
As religiões africanas são eminentemente comunitárias. A dimensão
comunitária dessas religiões expressa sua concepção da vida e do universo.
O importante é o bem-estar de todos os membros da comunidade. Não existe
divisão de classes ou privilégios sociais. Os benefícios da religião e da
religiosidade são universais (para o grupo, família, clã, ou cidade).
As religiões africanas são, ainda, pragmáticas. Os cultos visam a
harmonia social e espiritual. Todo o bojo de concepções presente nestas
religiões estão orientadas para a satisfação das necessidades imanentes e
transcendentes de seus membros. A religião não é uma esfera desvinculada
da política e da economia. Muito pelo contrário, a religião sacraliza estas
esferas e com elas formam um todo. Esse todo deve ser administrado em
vista da satisfação das necessidades de seus membros – necessidades estas
que estão presentes tanto na esfera do sagrado como na esfera do profano.
Os resultados da eficácia da religião são medidas pragmaticamente. Se
a comunidade está passando fome, morre o rei. Como dissemos, o regicídio
é uma maneira de controlar o poder real, já que o rei não detém apenas o
poder político-militar sobre seu povo, mas também o poder religioso. Ele
não é absoluto em sua função. Seu poder é finito. Assim, se sua comunidade
não vai bem, o responsável é o Rei, devendo, em muitos casos, pagar com a
própria vida o preço de sua responsabilidade. Jean ZIEGLER (1972)

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analisou muito bem a dinâmica do poder das sociedades reais africanas ao
demonstrar como o rei está associado à lógica religiosa do grupo quanto à
esfera da produção, pois quando o rei morre a sociedade toda desiquilibra-se,
uma vez que o rei é a representação máxima do equilíbrio e estabilidade da
comunidade. Por isso a transição de poder será sempre traumática, pois o
poder é o elemento que harmoniza a comunidade, e tanto a sua estabilidade,
quanto sua instabilidade, serão celebradas pelo povo.
Não há salvacionismo. Não há pecado. Longe dos paradigmas cristãos,
as religiões africanas estão livres de noções como a culpa, paraíso e inferno
– todas tributárias da concepção de tempo ocidental, ou seja, de um tempo
futuro. As religiões africanas vivem sobretudo o tempo do passado, tempo
dos antepassados, tempo privilegiado do preexistente. São religiões que
sacralizam o tempo passado e o tempo presente. O futuro é uma categoria
ausente na maioria das sociedades africanas tradicionais. Nessas religiões
cada um tem uma função e uma responsabilidade. Excluir-se dessas
responsabilidades é excluir-se da comunidade e de seus benefícios. A
socialização dos africanos é coletiva e não individual, o que dificulta, entre
eles, a ramificação da ideia de culpa.
Com efeito, nas religiões africanas privilegia-se o respeito e a
importância dos ancestrais. Os ancestrais, como vimos, é a base das religiões
africanas; sem eles não haveria religião possível. Pedra angular dos cultos
religiosos os ancestrais são ou personagens históricos que por sua notável
presença no aiyê lograram um posto de antepassados divinizados
transformados por suas comunidades em ancestrais, ou aspectos naturais
(rios, árvores, mata, etc.) que foram divinizados por sua importância à
sobrevivência do grupo humano. É bom esclarecer que os antepassados
podem ou não vir a ser ancestrais, porém todo ancestral, um dia, já foi um
antepassado, seja em forma humana ou em forma natural. No culto aos
ancestrais, como já foi trabalhado anteriormente, está a maior parte dos
elementos que formam a cosmovisão africana.
O poder masculino e feminino são complementários nestas religiões. As
divindades dividem-se em masculinas, femininas ou andróginas. Há também
entidades que representam o coletivo, a comunidade. Porém, o princípio da
complementaridade52 e o respeito à diferença entre os gêneros está
contemplada nas religiões tradicionais da África, uma vez que em todo mito
de origem e em toda significação cosmológica a figura das divindades
masculinas e femininas estão presentes de maneira se não equitativa, pelo

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menos complementar – sendo que muitas vezes ressalta-se ou as entidades
femininas ou as entidades masculinas de acordo com o contexto cultural e
social de cada grupo.
As religiões africanas são fortemente marcadas por uma sacralidade
profunda e por uma habilidade secular exemplares. Todo o universo está
inserido dentro de uma dinâmica religiosa. Ela abarca todos os domínios da
vida – produção, cultura, vida privada, vida pública, etc. – o que configura a
profunda sacralidade dos africanos. Entretanto, essa sacralidade vivida em
sua radicalidade não impede, e mesmo favorece, uma habilidade secular
impressionante. A manutenção da tradição, por exemplo, é uma maneira de
preservar a identidade do grupo – única maneira de preservar o grupo -,
porém, quando é necessário transformações e modificações no seio desta
tradição, elas ocorrem pois o objetivo é manter o bem-estar da comunidade.
É a vida para a religião e a religião para a continuação da vida. Eis a fórmula
da dinâmica cultural africana!
Outra característica dos adeptos das religiões tradicionais da África é o
conhecimento profundo que detêm da realidade social e da natureza. Como
vimos insistindo, não há uma separação dos níveis religiosos e seculares.
Cada qual está impregnado um do outro. Assim, para que a religião seja
eficiente – como exige a comunidade religiosa africana -, é necessário que os
sacerdotes e os demais iniciados tenham um profundo conhecimento da
realidade social em que vivem, pois senão como fazer para manter o bem-
estar da comunidade? Na maioria dos casos, conhecimento social implica
também em profundo conhecimento da natureza, posto que estas sociedades
são dependentes dos elementos naturais. A natureza se constitui como fonte
da vida. A relação entre o sagrado e a natureza é simbiótica. Como diz um
velho provérbio africano: “Kosi ewé, kosi orisá”, isto é, “Sem ervas (lê-se
natureza) não há orixás (lê-se divindades).” Natureza e divindade, aliás,
muitas vezes, é o signo de uma e mesma coisa.
Em praticamente todas essas religiões existem divindades criadoras e
entidades organizadoras. Respeitando a diversidade cosmogônica de cada
uma delas, pode-se dizer, entretanto, que há uma estrutura comum que as
unifica, ou seja, há sempre uma divindade criadora do universo, dos
Homens, e criadora de divindades auxiliadoras, sendo que estas é que
gerenciam o mundo para o Criador.
Se no plano cosmogônico há uma comunidade hierarquizada, na esfera
secular há o controle social da religião em relação aos antepassados. Ou seja,

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as linhagens controlam o poder da hierarquia formada no seio das
sociedades. As linhagens tem um critério muito bem definido para
estabelecer as relações de poder, a saber: são os antepassados que legitimam
a moral e os costumes que esta ou aquela sociedade assumem. Logo, as
regras morais e os princípios éticos que norteiam as sociedades negro-
africanas são artefatos dos antepassados.
Em todas as religiões africanas acima citadas há sempre um mito de
origem (cosmogonia), rituais (sacrifícios, relações com a natureza) e
sacerdócio (reis ou cidadãos consagrados). Esses elementos são constitutivos
do que chamamos religião. Por isso rejeitamos as denominações de seita,
animismo, primitivismo, etc., por serem tributárias de uma ideologia
preconceituosa que, aliás, transformaram-se em barreiras epistemológicas à
compreensão das religiões africanas e suas correlatas no Brasil.
É constante, nestas religiões, a interpenetração de culturas e a
preocupação com a legitimidade. Não existe nenhuma religião pura em
África ou em qualquer outro lugar do planeta. Os vários movimentos
migratórios no território africano forjaram a fusão de muitos povos e muitas
culturas. Porém, caso peculiar da África, as religiões africanas, mesmo
sofrendo alterações, conservaram/atualizaram sua cosmovisão de mundo.
Veja, por exemplo, o caso já estudado dos três grandes Impérios Negros
(Gana, Mali e Songai). Apesar de ter havido uma forte influência islâmica
naquela região, inclusive com a utilização de força militar (os almorávidas),
as religiões africanas permaneceram fiéis a seus mitos de origem e a suas
divindades, preservando sua cultura e identidade, através, é óbvio, de fusões
culturais e releituras simbólicas. Muito embora houvesse a força das armas,
a dinâmica civilizatória africana soube preservar sua forma cultural.
Outra característica destas religiões é que são marcadas pela concepção
da dualidade do mundo: Os poderes “bem”, “mal”, se equilibram. Na
verdade a noção de bem e de mal são categorias da cultura judaico-cristã.
Em África, por oposição, falamos em energia construtiva e energia
destrutiva. Não existe o essencialmente mal e o essencialmente bom. As
energias estão espalhadas pelo universo. Dependendo da maneira pela qual
elas são manipuladas e para que fins sirvam, elas podem ser tanto
construtivas quanto destrutivas. Talvez, um critério interessante para se saber
se uma energia é ruim ou não, é saber quando ela prejudica a comunidade;
neste caso, tudo o que favorece o bem-estar da comunidade é “bom”,
enquanto que tudo aquilo que perturba a harmonia social é “ruim”.

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Além da complementaridade entre as divindades masculinas e
femininas na esfera sobrenatural, tal equilíbrio é refletido na estrutura
religiosa secular. No entanto, neste plano (secular) é possível destacar a
importância que as mulheres têm. Com efeito, as mulheres ocupam
importantes papéis nas religiões africanas. São sacerdotisas, ocupam postos
de comando político e interferem definitivamente na organização hierárquica
de suas comunidades – sobretudo quando são comunidades matrilineares. No
culto aos ancestrais, como já foi visto, há o culto às mães ancestres, cultuada
na sociedade das Geledes. A organização por gênero é uma possibilidade
muito antiga em solos africanos. Ora, a mulher está relacionada com os
grandes mistérios da vida e da morte; com a fertilidade, com a fecundidade,
com as divindades. Com efeito elas participam mais interinamente dos
mistérios da criação, porque elas mesmas são gestadoras. No continente
africano, as mulheres mereceram o devido reconhecimento social e cultural,
o que se reflete na cosmovisão africana.
O reconhecimento de personagens históricos importantes para seu povo
é outra característica das religiões africanas. Os antepassados que foram
significativos para sua gente são cultuados, tornando-se, inclusive, ancestrais
– merecedores de cultos e templos específicos. Esta dinâmica social
demonstra como os africanos valorizam àqueles que se dedicam à
coletividade e, de outro lado, reflete bem o respeito e a importância
conferida aos seus mais valorosos membros, que abrange reis, sacerdotes,
guerreiros, agricultores, caçadores, etc.
Da Ancestralidade nasce a moralidade nas religiões tradicionais
africanas. Como diz Basil DAVIDSON (1969, p. 74), em África o “bem-
estar do indivíduo era função do bem-estar da comunidade, e não o
contrário. A ordem moral era fortemente coletiva”. Conforme o autor, a
moralidade em África é pensada a partir da comunidade, pois se pautada no
bem-estar do indivíduo o que ocorreria – como ocorre nas sociedades
ocidentais – é uma acumulação para o indivíduo em detrimento do bem-estar
da comunidade. De acordo com ele: “Num mundo onde existe um ideal de
acumulação pessoal, o bem do indivíduo opõe-se ao bem da comunidade”
(DAVIDSON, 1969, p. 71).
Em sua maioria as religiões africanas são praticadas em comunidades
camponeses. Isto reforça o caráter comunitário e a vinculação atávica ao
Meio Ambiente. A cosmogonia e cosmologia adaptam-se à região (cidade-
estado ou território das famílias extensas) dos fiéis. Não são, portanto,

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religiões universais, mas religiões territorializadas, nascidas e forjadas pelos
membros dos grupos de origem e seus descendentes.
São religiões imanentes e não transcendentes as religiões africanas. Elas
não estão preocupadas com a metafísica - ao menos não na acepção
ocidental do termo. Elas se relacionam com os problemas concretos de sua
comunidade. Os seres sobrenaturais, sem exceção, tem relação visceral com
a natureza. A natureza é imanente. O transcendental – concepção
ocidentalizada - configura-se no tempo futuro. O futuro, para os africanos, é
menos importante que o passado. O futuro, na África, quase sempre refere-se
a cerca de dois meses depois do tempo do agora. O transcendental, algumas
vezes, tem uma dimensão atemporal, a-histórico, o que é impensável dentro
da cosmovisão africana. O imanente é o que é vivido. Mesmo que este
imanente seja sobrenatural, divinizado, ele está relacionado com a
comunidade, com a coletividade, com o social vivenciado, visto como
experimento concreto do real.
A diversidade é um dos principais aspectos das religiões africanas.
Como vimos afirmando, não existe a exclusão do diferente na cosmovisão
africana. Homem, mulher, homossexual (ou andrógeno) são acolhidos. A
diversidade é a dinâmica própria dessas religiões. Diversidade com
autenticidade. Diversidade com legitimidade. A diversidade é um princípio
sem o qual não haveria religião tradicional na África, posto que sendo a
África o continente do “Arco Íris”, isto é, o continente das diferenças
culturais, somente o princípio da diversidade poderia congregar tantas
culturas e preservar, de maneira estrutural, a identidade de um continente.
A integração é o princípio complementar da diversidade. A exclusão
gera a dominação. A diversidade a integração. Sem a integração, não poderia
haver harmonia social. O bem-estar social coletivo só é alcançado quando
dentro desta dinâmica os possíveis excluídos são integrados, deixando de ser
excluídos para serem partícipes da coletividade. A integração, também, é um
componente essencial da cosmovisão africana posto que evidencia que todos
os elementos do universo estão conectados, interligados, em processo
dinâmico de interação. A integração desses elementos demonstra como o
universo funciona tal qual uma teia de aranha, onde tudo se relaciona com
tudo, e a harmonia das partes depende da harmonia do todo.
Em suma, percebemos como na África tradicional existe uma
estrutura comum entre as sociedades, sobretudo dos três Impérios Negros
considerados: Gana, Mali e Songai. Mas tal estrutura se verifica também em

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outras regiões tanto ao sul do Sahel quanto a ocidente na África Negra, seja
nas regiões das savanas ou das florestas. Estas estruturas comuns das
sociedades africanas, foram aqui consideradas sob o prisma religioso, que
podemos dizer, hegemoniza as práticas culturais dessas populações.
Considerando também aspectos econômicos e políticos, bem como aspectos
da estrutura social, como a organização das famílias e o tipo de sociedade
em que vivem, sejam elas famílias extensas ou cidades-estados, podemos
evidenciar, apesar das flagrantes diferenças e da enorme diversidade, que
existe uma estrutura (forma cultural; dinâmicas civilizatórias) baseada em
princípios que sustentam a vida desse contingente negro-africano.
Tais princípios regem os vários elementos dessa estrutura, que, por
sua vez, dão fundamento à afirmação de que na África antes da invasão
europeia existe uma cosmovisão africana. Essa cosmovisão de mundo se
reflete na concepção de universo, de tempo, na noção africana de pessoa, na
fundamental importância da palavra e na oralidade como modo de
transmissão de conhecimento, na categoria primordial da Força Vital, na
concepção de poder e de produção, na estruturação da família, nos ritos de
iniciação e socialização dos africanos e, é claro, tudo isso assentado na
principal categoria da cosmovisão africana que é a ancestralidade.
Todos esses elementos, singularizados pela estrutura cognitiva do
africano de organizar a vida e a produção revelam princípios organizadores
de suas sociedades. São eles: princípio da diversidade, da integração, da
harmonia com a natureza, princípio da senioridade – ligado à ancestralidade
-, o princípio da complementaridade, da polaridade do mundo em energias
destrutivas e construtivas, e o princípio comunitário, tendo o comunitário
como estância maior do bem-estar social.
Como veremos, a identidade da população negro-africana é
tributária da manutenção de sua tradição e forma cultural, posto que todos os
elementos e princípios da cosmovisão africana são tributários da tradição
destes povos. Como foi analisado anteriormente, o passado é o ponto de
referência na organização da vida e da produção dessas sociedades. E, no
passado, a grande referência são os antepassados, os ancestrais – patronos e
fundadores da tradição africana.
Com o processo de escravização promovido pela Europa os filhos
da África viram-se obrigados a reestruturarem sua cultura e tradição em
várias partes do mundo. No Brasil, a partir - e sobretudo -, das organizações
religiosas, os negros africanos e seus descendentes recomporam as estruturas

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e princípios tributários de uma cosmovisão de matriz africana e, em solo
brasileiro, reconstituiram seu universo cultural-religioso preservando, não
sem rupturas e alterações, os princípios fundamentais de sua tradição, fonte
suprema de sua identidade cultural.

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II. COSMOVISÃO AFRICANA: A Forma Cultural
Africana no Brasil

Uma vez identificados os elementos e princípios da cosmovisão


africana, primaremos, neste capítulo, pela reflexão acerca da forma cultural
afro-brasileira nos dias atuais. É sempre bom lembrar, no entanto, que não
estamos querendo retornar a uma África idílica, que jamais existiu ou, se
existiu, que não existe mais. Não é nosso intento criar uma África mítica ou
romantizar a África real. No jogo de identidades, entretanto, está embutido
um jogo político e, na disputa pelo poder, está contida a disputa pela
representação de si. No jogo das representações identitárias no Brasil os
afrodescendentes foram ideologicamente representados como inferiores.
Negativizados desde a sua cor até sua condição social, os afrodescendentes
viram-se sempre alijados das vantagens sociais por consequência da negação
de sua cultura e história. Falar em cosmovisão africana, portanto, certamente
tem uma dimensão política, bem como uma dimensão social e econômica.
Não estamos apenas recuperando elementos culturais que ficaram sepultados
no passado. Todo resgate histórico é uma recriação. Toda recriação é
política. O fazemos conscientemente, visto que se a história oficial negou o
SER negro, nós, por nosso lado, fazemos ver não apenas suas edificações no
pretérito, mas os possíveis modelos econômico, político e culturais
derivados da cosmovisão africana, fruto da resistência dos negro-africanos,
da atualização de sua forma cultural e da recriação de sua cosmovisão.
Como vimos, no mundo africano há concepções singulares do universo,
de tempo, força vital, socialização, poder, pessoa, morte, oralidade/palavra,
produção, família e ancestralidade, bem como princípios que regem a vida
destas sociedades como o da integração com a natureza, a dimensão
comunitária da vida, estrutura cognitiva, o respeito e a relação estreita com a
tradição, o princípio de inclusão e o princípio da diversidade.
Esses elementos indicam caminhos estruturalmente diferentes dos
vivenciados na cultura ocidental. A África, durante muitos séculos tem sido
negligenciada em sua cultura, em suas contribuições para o planeta, tanto na
esfera econômica como na esfera cultural. Exatamente hoje quando
atravessamos uma crise planetária, que abrange não apenas o sistema da

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produção econômica, mas também o sistema de produção de subjetividades,
bem como a crise do meio ambiente – que ameaça seriamente o ecossistema
planetário, urge criar alternativas ao modelo excludente e depredador do
Capitalismo Mundial Integrado.
Os elementos que elencamos na África antes da invasão europeia,
principalmente aqueles destacados da esfera cultural-religiosa, mas
abrangendo também as esferas de produção material e da organização
política daquelas sociedades, são elementos que por si só sinalizam
alternativas ao modelo capitalista de organização da produção e da vida.
Porém, como não queremos cair num romantismo arcaico, a uma volta à
natureza idealizada, ou a uma ingenuidade política que em nada resolveria
nossos problemas atuais, uma vez que já se passou pelo menos meio milênio
desde que esses povos existiram em África. Assim, é que procuraremos
neste capítulo identificar as permanências – e rupturas – da cosmovisão
africana no Brasil, principalmente no complexo cultural-religioso.
Para tal analisaremos em rápidas linhas a escravidão e a cultura negra.
Em seguida refletirem sobre a questão de gênero e do Meio Ambiente no
candomblé. É assim que primamos por entender o papel de mulheres e
homens no interior do culto aos orixás e a relação dessa religião com a
ecologia. Tudo isso dá-se de maneira tal que estão incluídas no que
chamaremos de forma cultural de matiz africana, que recoloca a questão
da identidade nacional e o papel fundamental que exerceu e exerce o
contingente de afrodescendentes no Brasil.
Vale dizer que as práticas religiosas-culturais dos afrodescendentes têm
uma dimensão claramente política, e é esse alcance que pretendemos
destacar quando apresentarmos seus princípios como alternativa para se
construir maneiras diferentes e mais inclusivas de um sistema que critica e
combata o atual modelo capitalista.

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Escravidão no Brasil
A primeira experiência que povoa o imaginário social ao se pensar
o negro é a escravidão. A escravidão é um fator histórico básico para
compreender as várias facetas da vivência dos africanos e seus descendentes
no Brasil. A segunda grande experiência é a discriminação racial que essas
populações sofreram no transcorrer dos séculos. Estes dois pontos permeiam
nossa reflexão acerca da Cosmovisão Africana nos dias atuais.
Há aspectos da história da África que devem ser levados em conta.
Primeiro: há o engano de que os negros africanos trazidos para o Brasil eram
todos iguais; ou, segundo: que os negros africanos, de diferentes etnias, não
tinham nada em comum. É preciso manter uma posição equilibrada que
conjuga estas duas posições.
Do ponto de vista da Antropologia Cultural é evidente que as etnias são
distintas entre si. Ressalta-se, aqui, a diversidade cultural africana. Já do
ponto de vista dos Valores Civilizatórios, pensando em termos da forma
cultural, há uma unidade entre elas.
A escravidão sempre foi definida como uma dominação econômica:
escravos dominados pelos senhores. Ela sempre foi pensada do ponto de
vista funcional-econômico. O escravo foi visto como um ser desprovido de
propriedade, vontade e inteligência, tanto que era denominado como “coisa
que fala” (res vocabulun) ou como “instrumento de trabalho” (res
instrumentalliun).
Já os estudos históricos contemporâneos (dec. de 70 a 80) dizem que as
relações no escravagismo não eram monodirecionais. Esses historiadores
utilizavam-se do conceito de hegemonia, recuperado do pensamento de
Antonio Gramsci. Se a dominação não é monodirecional, ela é de mão
dupla. Como defendeu REIS (1988), há momentos de negociação entre
escravos e senhores, o que relativiza o poder dos senhores e deixa entrever a
liberdade restrita dos escravos. Não se pode esquecer, no entanto, que essa
negociação foi limitada por se dar no interior de um regime ostensivo de
opressão. O que é visto como concessão, do ponto de vista da hegemonia, -
dos senhores - pode ser também visto como estratégia dos escravos para
forjar seu próprio jeito de vida.
A hegemonia permite pensar o escravo não mais como instrumento ou
coisa, mas humaniza o cativo negro. Aqui existe espaço para a liberdade de

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pensamento e de expressão. Apenas, é bom lembrar, a liberdade ainda não é
material.
Foram as religiões negras que construíram o espaço da liberdade negro-
escrava no Brasil. A hegemonia está em ver este aumento da liberdade dos
negros no espaço de dominação. Mesmo sob o ponto de vista econômico,
temos nas Irmandades um exemplo de conquista material, uma vez que os
negros escravizados organizavam-se em torno das Irmandades, mantendo
uma caixa de pecúlio onde depositavam suas economias e, muitas vezes,
conseguiam comprar a carta de alforria para parcelas consideráveis de seus
membros.
Pode-se dizer, portanto, que a escravidão é uma dominação hegemônica
e não monodirecional. Ou seja, houveram espaços de negociação entre
escravos e senhores, e, nestes espaços de negociação53, a hegemonia do
senhor não eliminava as práticas negro-africanas que restituíam uma
cosmovisão de mundo de matriz africana e preservavam sua tradição,
adaptando-a às novas exigências que a vida no cativeiro brasileiro impunha.

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Cultura Negra
Cultura é um conceito extremamente utilizado para compreender os
fenômenos sociais, sobretudo aqueles que dizem respeito às singularidades
dos povos e às relações entre eles. É utilizado, ainda, para compreender tanto
as mudanças conjunturais no seio desses povos quanto para entender as
transformações estruturais no interior do qual estão alocados. Mas, como
disse GEERTZ (1989), o conceito de cultura tornou-se tão utilizado que
perdeu sua instrumentalidade como categoria explicativa do real. Utilizado
para tudo, acabou por se tornar uma generalização abstrata. Daí o
antropólogo norte-americano ter efetuado a redução do conceito de cultura a
fim de resgatar-lhe sua operacionalidade. Para ele a cultura é semiótica,
publica e contextual. É semiótica, porque é composta de signos. Pública
porque os signos são sempre produzidos coletivamente. Contextual porque
os signos ganham significados sempre territorialmente. Ao falarmos de
cultura negra, então, não poderemos nos furtar aos signos produzidos
historicamente pelos afrodescendentes, muito menos desconsiderar o
contexto em que surgiram seus múltiplos significados.
O conceito de cultura está intimamente ligado com o de história. Um
não se reduz ao outro, mas ambos se relacionam intrinsecamente. Não
querendo reificar o culturalismo que abstraiu da história para explicar como
vivem e se relacionam os povos, resgatamos a relação cultura-história para
pensar as formas pelas quais produzem seus significados e se relacionam
com o real. A produção de signos e significados, no entanto, não são
produtos abstratos. Eles advém da ação dos agentes sociais e dão-se no
interior de estruturas produzidas na história desses povos. Para não reificar,
também, o historicismo – que abstraiu do indivíduo para explicar estruturas
sociais, trabalhamos com o duplo vetor entre história e cultura, pois
consideramos, juntamente com SAHLINS (1990, P. 7)), que 1) a história é
ordenada culturalmente e, 2) esquemas culturais são ordenados
historicamente.
Ao considerarmos o duplo vetor entre cultura e história, estamos
afirmando que as ações criativas é o ponto de partida para se entender 1)
como a cultura é historicamente reproduzida na ação e, 2) como a cultura é
alterada historicamente na ação. Isto nos permitiria entender tanto as
transformações históricas quanto as mudanças sistêmicas.

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Durante todo este livro estamos nos referindo às estruturas do
pensamento negro-africano, às estruturas da dinâmica civilizatória africana,
à cosmovisão de mundo produzida naquele continente e ressignificada no
Brasil. Com efeito, essa abordagem é estrutural. Mas é estrutural não no
sentido de negar a história ou de apagar o indivíduo. Pelo contrário, o que
estamos fazendo é reconhecer o papel ativo e criativo dos sujeitos e impedir
o erro conceitual de opor estrutura e história; cultura e indivíduo. Sem
embargo, não há oposição entre história e estrutura já que as últimas são
produtos da primeira. A história, por sua vez, é construída tanto no interior
de uma sociedade (perspectiva cultural), quanto entre sociedades
(perspectiva estrutural). Ora, existe a interação dual entre a ordem cultural
enquanto constituída na sociedade e a ordem cultural enquanto vivenciada
pelas pessoas. Por isso também não existe a dualidade entre indivíduo e
cultura já que esta é fruto das ações dos sujeitos. Estas, por sua vez, ganham
sentido no jogo de significados produzidos pela cultura, fazendo com que
consideremos a relação interativa entre sujeito e indivíduo, entre história e
estrutura. Opor Ser (estrutura) e Ação (eventos) seria um engano, pois eles
são intercambiáveis. Os indivíduos criam suas regras em movimento e fazem
do fato social uma ficção frente a seus interesses. A relação de mútua
influência entre ser e ação e estrutura e evento ganha luz se considerarmos
que “ao nível do significado, que é o nível da cultura, ser e ação são
intercambiáveis” (SAHLINS,1990, p. 46), logo, a ação dos indivíduos não
pode ser segregada das estruturas que ela produz e que por ela é produzida.
Ao tematizarmos o sistema de pensamento, as categorias filosóficas, a
cosmovisão de mundo concomitantemente com as estruturas políticas, as
organizações sociais, o sistema de produção, estamos justamente defendendo
esta inter-relação entre cultura e história, entre indivíduo e estruturas. Pois se
não há oposição entre história e estrutura, também no-la-a entre cultura e
história ou entre indivíduo e estruturas. Pelo contrário, é sempre uma relação
de duplo vetor e complementação que se dá entre essas categorias
conceituais do pensamento socioantropológico.
A cultura é, com efeito, o manto que cobre as ações humanas. Nesse
sentido, o real é o conjunto de signos significados e ressignificados pela
sociedade que o produz. Sendo semiótica a cultura não é essencial. Ou seja,
ela é contingencial e dinâmica e não estática e formal. Acontece que as ações
imanentes dos agentes sociais estão intimamente relacionados a estruturas.
Essas estruturas, criadas historicamente, são semioticamente compreendidas

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pelos agentes sociais. Ora, o que está em jogo, em última análise, é a
compreensão do real. O real, por sua vez, é constituído por signos e coisas.
De acordo com SAHLINS (1990, p. 9), as coisas são, independentes do
que as pessoas fazem com elas. Elas são inevitavelmente desproporcionais
aos sentidos dos signos pelos quais são apreendidas, pois elas são
contextualmente mais particulares e potencialmente mais gerais que os
signos, uma vez que os signos são classes de significados e não estão
restritos como conceitos a um referente particular. Logo, as coisas são
relacionadas a seus signos enquanto emblemas empíricos para os tipos
culturais, porém são mais gerais que os signos por serem mais “reais” que
eles. Por isso Sahlins afirmará que a cultura é uma aposta com a natureza, no
sentido de que as denominações antigas recebem continuamente novas
significações, quedando-se distantes de seus sentidos originais. De outra
feita, os sentidos de novos signos são definidos por suas relações de
contraste com outros signos do sistema. Daí que o sentido do signo só é
completo e sistemático na sociedade como um todo (análise estrutural). No
entanto, qualquer uso real de um signo emprega apenas uma fracção do
sentido coletivo (análise subjetiva). Ou seja, o signo tem sentido se
confrontado com a estrutura social na qual ele é produzido, mas seu
significado será sempre parcial visto que ele é um signo e não uma coisa. A
coisa, por seu turno, só é passível de entendimento se mediada
semioticamente num discurso (representação). Logo, ela não pode ser
tomada como uma essência imutável, mas como uma existência dinâmica
que produz e acaba sendo produzida pela relação entre os signos. Nessa
trama dá-se o que chamamos de real, e o real, com certeza, é modelizado
pelo jogo da cultura.
As consequências da teoria de Sahlins para a análise antropológica são
muitas e fundamentais. Nosso interesse, no entanto, não é discutir em
profundidade a teoria antropológica, mas munirmo-nos de instrumentos
conceituais coerentes para entender os aspetos civilizatórios africanos.
Dissemos que na relação complexa entre coisas e signos encontramos o real.
Mas, o que é o real?
De acordo com Muniz SODRÉ (1988, p. 49): “O real é (...) aquilo que,
resistindo a toda caracterização absoluta, se apresenta como estritamente
singular, como único”. Definindo assim o real, Muniz Sodré nos ajuda a
entender melhor a relação entre as coisas e o signo e, de resto, poderá
avançar um pouco mais na conceituação de cultura. O real não é nem uma

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mônada existencial, imutável e estática, nem uma relatividade sígnica
absoluta. Ele é uma singularidade. Como tal não repete-se a si mesmo, não
se torna refém dos significados atribuídos por um indivíduo ou grupo de
indivíduos, mas também não se furta da relação concreta do grupo ou
indivíduo que o experimenta. Evita, dessa maneira, tanto o absolutismo
dogmático das análises estruturais quanto o relativismo alienante das
análises culturalistas.
A cultura, neste ínterim, passa a ser pensada como jogo da sedução
do real. Entrar em seu segredo é o objetivo. A isso Sodré chamará cultura,
isto é, adentrar no segredo da singularidade passa a ser a finalidade da
análise cultural. O conceito de cultura, para ele, valerá “como a metáfora de
jogos ou de dispositivos de relacionamento com o sentido e o real” (SODRÉ,
1988, p. 51). Contrapondo-se à psicanálise lacaniana, ele definirá,
finalmente, cultura, como
“a metáfora do movimento do sentido, não entendido como uma verdade mística
do além ou oculta em profundidades a serem sondadas, mas como busca de
relacionamento com o real, lugar de extermínio do princípio de identidade”
(SODRÉ, 1988, p. 53).

Exterminar o “princípio da identidade” é, com efeito, eliminar a


justificação filosófica do Mesmo e a política racista nela ancorada, para
defender a alteridade como critério ético da sociedade54. Muniz Sodré está
atento para a “singularidade misteriosa do real”55. Nesta feliz expressão
assenta-se toda uma filosofia africana e afro-brasileira calcada não na ordem
moderna – obcecada pela busca da Verdade e do Real, mas na ordem
tradicional – intrinsecamente ligada ao sentido e à troca ritualística56;
comprometida não com a “verdade universal” e “profunda”, próprias da
cultura ocidental, mas com a cultura das aparências, característica da
cultura negra.
Uma cultura das aparências não pode ser pensada pejorativamente,
como o foi na cultura ocidental57, pois “as aparências não se definem por
nenhuma linearidade acumulativa, característica do movimento histórico.
Elas se definiriam, antes, pela curva, uma espécie de realização cíclica que
não se pode memorizar segundo os princípios de irreversibilidade histórica”
(SODRÉ, 1988, p. 137). Não é que a cultura negra não seja histórica. Isto
nem se cogita. É que, na cultura negra, “a troca não é dominada pela
acumulação linear de um resto (o resto de uma diferença), porque é sempre
simbólica e, portanto, reversível: a obrigação (de dar) e a reciprocidade

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(receber e restituir) são as regras básicas. É o grupo (concreto) e não o valor
(abstrato) que detém as regras das trocas” (SODRÉ, 1988, p. 127). As trocas
simbólicas no seio do grupo concreto dá-se sob a lógica da ancestralidade,
respeitando o segredo, a luta e a regra58 – elementos constituintes da
dinâmica civilizatória dos afrodescendentes.
A filosofia subjacente à cultura negra afasta-se da concepção de
uma verdade metafísica, de uma lógica abstrata ou de um cientificismo
transcendental. Concebendo a cultura como um jogo de sedução do real,
como uma metáfora do sentido, a cultura negra não adotará o sistema linear
do historicismo ocidental posto que ele nega a reversibilidade. A cultura dos
africanos e seus descendentes no Brasil nega as relações baseadas no
princípio de causalidade, a concepção evolucionista de progresso contínuo, o
absolutismo formal e arbitrário das leis normativas, uma vez que são
processos abstratos e não-reversíveis. Tal cultura, pelo contrário, funciona
como um jogo que oporá “encadeamentos não causais, aleatórios, baseados
em relações de contiguidade (como na música ou na magia), arbitrados por
uma regra” (SODRÉ, 1988, p. 145). Essa regra se dará não como
ordenadora extemporânea da cultura, mas como parceira de uma dinâmica
civilizatória baseada no segredo e na luta, ou seja, baseado no mistério e na
resistência política, que garantem a reprodução do grupo e a transmissão de
seus conhecimentos, bem como a preservação e multiplicação de seu
encanto.
A cultura pensada como jogo de sedução, reafirma a
heterogeneidade e vai além do direito às diferenças; ela desafia ao contato,
ao encontro – e nisso está sua força de sedução. Como diz SODRÉ (1988, p.
180):
Cultura implica, portanto, num esvaziamento da unidade individual, no que faz
circular os termos polares da troca, no que reintroduz o acaso e o Destino, no ato
simbólico que extermina as grandes categorias da coerência ideológica, no que se
constitui em morte do sentido e da verdade universais, no que faz aparecerem as
singularidades, num ato de delimitação e de atração – em resumo, no movimento
do jogo.

A cultura negra é, portanto, um “lugar forte de diferença e de


sedução na formação social brasileira” (SODRÉ, 1988, p. 180). Talvez por
isso mesmo a elite brasileira, branca, católica e patriarcal, tenha engendrado
mecanismos de desqualificação e inferiorização do ser negro, produzindo a
ideologia do branqueamento num dado momento e, posteriormente, fazendo
a defesa da mestiçagem como engodo pra disfarçar a indisfarçável sedução

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que a cultura negra exerce sobre o contingente social brasileiro59. O
candomblé, protagonizado por mulheres – contra a ordem patriarcal –, por
negros – contra a hegemonia branca –, e por pobres (já que a maioria dos
afrodescendentes pertencem ao substrato social menos favorecido da
sociedade) – contrariando a elite nacional – pode ser tomado como um
modelo onde os aspectos civilizatórios africanos foram reinterpretados na
lógica da cultura negra, apresentando-se muito além de um mero exemplo
cultural para se tornar um modelo ético-político.

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Aspectos Civilizatórios
Na Diáspora africana o que vem para o Brasil não é a estrutura
físico-espacial das instituições nativas africanas, mas os valores e princípios
negro-africanos. É a isto que doravante chamaremos de aspectos
civilizatórios.
São aspectos civilizatórios característicos da cultura negra, re-
construída no contexto brasileiro, preservando, entretanto, sua matriz
africana. Pensamos aqui na perspectiva da herança, considerando a produção
dessa cultura na história do povo negro, pois não existe identidade inata. A
identidade de um povo também é uma indústria da história. Como a cultura
negra é marcada pela reversibilidade, afugentamos de nós o conceito linear
de história. É exatamente por operar restituições simbólicas tradicionais em
contextos históricos contemporâneos que a cultura negra exerce seu poder de
sedução sobre a sociedade brasileira, re-introduzindo elementos culturais
africanos no intricado cadinho da identidade brasileira.
Essas restituições simbólicas, essa re-definição identitária não se faz a
partir do princípio da identidade, da afirmação do Mesmo. É a partir da
diferença que se constrói os referenciais identitários. A identidade se
constrói com relação à alteridade. Com aquilo que não sou eu. É diante da
diferença do outro que a minha diferença aparece. No Brasil, entretanto, a
diferença do afrodescendente foi negada, porque ele foi negado em sua
integridade. Afirmar a diferença cultural do negro é, ao mesmo tempo, um
projeto político e social de restituição da dignidade negra negada pela
sociedade que, no entanto, foi preservada pela comunidade religiosa na sua
tríplice relação com a luta, o segredo e a regra.
Quando falamos em luta antirracista no Brasil nosso horizonte
histórico é a construção da liberdade. Não fomos nós, os afrodescendentes,
que inventamos o ódio racial e a segregação social por causa da cor da pele
ou da origem étnica. Nosso horizonte é a liberdade porque nosso projeto
político é ético.
Pensar a cultura negra é pensar a reterritorialização dos negros no
Brasil. O território afro-brasileiro não é o espaço físico africano, mas a
forma como os negros brasileiros singularizam o território nacional. O
espaço físico reterritorializado é um espaço simbólico-cultural. Este
território, singularizado pela cultura negra, por seu real vivido, por sua
filosofia imanente, por sua dinâmica civilizatória, marcou definitivamente a

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formação social brasileira. Foram os aspectos civilizatórios africanos que,
reinterpretados no Brasil, desenharam o projeto ético-político dos afro-
brasileiros.
É no candomblé que tais aspectos civilizatórios podem ser melhor
percebidos. Sendo assim, neste subitem, intentaremos mostrar a atualização
da cosmovisão africana no candomblé e sua influência na sociedade
brasileira.
Nosso objetivo é deslocar o eixo de compreensão das religiões de
matriz africanas, de uma perspectiva exótica-folclorizadora para uma
perspectiva histórico-compreensiva. Não se limitar apenas a saber como são
e como se estruturam, mas interpretar os seus significados mais profundos.
Para tal, buscamos abordar alguns aspectos estruturais no sentido de
compreender a inserção dessas práticas religiosas no âmbito da sociedade
brasileira, dando ênfase, sobretudo, aos seus significados e sentidos. Assim,
averiguaremos duas questões fundamentais para se entender os aspectos
civilizatórios africanos.

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1) A questão do conhecimento, da memória e sua transmissão
Não se pode falar de uma identidade africana única, onipresente em
toda parte do planeta. Contudo, há uma experiência histórica que irmana
todos os negros do mundo: a diáspora. O sequestro dos africanos de seu
continente, o tráfico escravocrata – crime contra a humanidade, a exploração
da mão de obra negra, o ataque etnocentrista à cultura e tradição africanas,
resultou numa experiência dramática que interliga, política e socialmente,
todos os africanos e seus descendentes espalhados pelo globo.
Acontece que a diáspora não irmana apenas pela desgraça comum
vivenciada pelas populações afrodescendentes. Ela irmana porque, através
da diáspora, símbolos outrora restritos às suas comunidades de origem,
desterritorializaram-se por causa do fenômeno histórico da diáspora,
transpondo fronteiras culturais e universalizando seus significados. A
universalização de seus significados não se deu por motivos de proselitismo,
como o cristianismo e o islamismo. Deu-se como consequência da
imposição de um regime de dominação que atacou violentamente a base
social da sociedade africana: a família.
Ao universalizar seus signos culturais, os africanos e descendentes deu
uma resposta criativa ao regime de dominação, pois não reproduziram em
suas organizações sociais as estruturas de dominação europeia. Ao invés de
introjetar o ódio do dominador, recriaram instituições baseadas em sua
cosmovisão, muito embora não pudessem levar consigo, cruzando os
oceanos, a base material de sua cultura política. A resposta criativa dos
africanos traduziu-se numa multiplicidade de invenções sociais que
permitiram manter algum nível de coesão entre os negro-africanos e seus
descendentes e, também, uma fidelidade possível às tradições.
A diáspora ao mesmo tempo que significou uma ruptura violenta com
os valores civilizatórios africanos, serviu para que esses valores
espalhassem-se mundo afora, não por proselitismo dos negros, mas pela
imposição artificial de viverem em terras estrangeiras. De qualquer maneira,
seja alimentando dores historicamente contraídas, seja constatando a
multiplicidade de respostas criativas que deram, a diáspora negra segue
sendo um ponto comum no entrecruzamento complexo dos caminhos
trilhados pelos africanos nos recantos do planeta.
Como não puderam transladar suas instituições sociais, os
afrodescendentes preservaram em sua memória os mitos e os ritos de suas

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tradições. Marcada pela cultura oral, a sociedade africana criou centenas de
milhares de mitos para preservar e transmitir seu conhecimento ancestral. A
riqueza mitológica e ritualística africana, sem dúvida, é um dos principais
elementos para se entender o sucesso da recriação da vida nas várias partes
do planeta. A cosmovisão africana, temos dito, é fortemente marcada pela
religiosidade. A religiosidade é plenamente dependente dos ritos e mitos
criados pela tradição africana. A religiosidade escapa da dimensão restrita do
religioso e invade todas as esferas do cotidiano. Numa palavra: a vida é
sacralizada na cosmovisão africana. Se ela é sacralizada, e se a religião não
se separa dos ritos e mitos da tradição, pode-se afirmar que a vida é
ritualizada continuamente no cotidiano das sociedades negro-africanas.
Essa riqueza de mitos e ritos é que permitiu uma atualização criativa
das instituições negro-africanas em terras alheias. Exemplo disso é o
candomblé. Todo terreiro de candomblé é um microcosmo, uma síntese de
várias instituições sociais africanas. Ressemantização criativa dos símbolos
da tradição africana, foi também uma ressemiotização das organizações
políticas estatais e familiares. Se cada cidade-estado africana cultuava
apenas uma divindade, por exemplo, Oxum, no Brasil o panteão africano da
tradição dos orixás cultua pelo menos 16 orixás que, em África,
encontravam-se espalhados pelos territórios políticos, sendo, muitas vezes,
inimigos de vizinhança. No Brasil não foi possível manter a mesma estrutura
organizacional, uma vez que a situação era de escravidão e não de liberdade.
Juntando, inclusive, várias etnias que outrora viviam em conflito e agora,
diante de um mesmo mal (a escravidão) recriam laços sociais e forjam uma
solidariedade diante da situação opressiva das senzalas brasileiras. Porém,
não foi apenas a opressão que pairou sob os africanos em solo brasileiro.
Laços solidários, outrora impossíveis, foram traçados sob o jugo da
escravidão e recriaram as relações entre nações e etnias adversárias ou
desconhecidas. O candomblé, com efeito, é uma constelação de etnias,
nações, línguas, culturas, ideologias e divindades. É um microcosmo
brasileiro que reflete o macrocosmo africano. É uma síntese reelaborada
pelos afro-brasileiros das sociedades negro-africanas. É uma instituição
social que, em situações adversas, soube manter e recriar os valores
civilizatórios de seu lugar de origem, ao mesmo tempo que incorporou os
valores civilizatórios dos nativos do Brasil, bem como admitiu em sua
cosmogonia aspectos da cultura europeia. A umbanda, as Irmandades

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Negras, são exemplos dessas respostas criativas que as instituições calcadas
na cosmovisão africana deram à sociedade brasileira.
Dada a situação absolutamente nova em que se viram os africanos foi
preciso selecionar os ritos e determinados aspectos mitológicos, uma vez que
a fragmentação das famílias extensas fora uma estratégia utilizada pelos
senhores de engenho para evitar a organização e a resistência negra.
Portadores de religiões diferentes, línguas diferentes, costumes diferentes, os
negro-africanos selecionaram, ao longo da história, ritos e mitos que
respondiam melhor à situação de servidão e, é claro, inventaram outros
tantos, recriaram antigos ritos ancestrais e, numa síntese que ainda hoje está
se processando, criaram um corpo mitológico e ritualístico que estrutura o
território do sagrado das religiões de matriz africana no Brasil.
Dada a importância dos ritos e mitos na tradição negro africana, sua
recriação criativa em território brasileiro, a atualização das instituições
socioculturais e a seletividade de aspectos mitológicos e ritualísticos, tudo
isso em situação de adversidade e opressão, os afrodescendentes souberam
proteger e preservar seu legado cultural-religioso através do uso controlado
da palavra. Como vimos, a palavra para os africanos é portadora da força
vital. Portanto seu uso é vital para a promoção de sua tradição. A palavra,
sendo parte do pré-existente, deve ser controlada ritualisticamente. Por isso
existe o processo de iniciação e os princípios que o regem, como o da
ancestralidade, para garantir acesso controlado aos segredos do culto. Com
efeito, o segredo é utilizado como arma na tradição dos orixás. Quem detém
o conhecimento detém o poder. A palavra é o principal meio para adquirir
conhecimento, e, como para se ter poder é preciso ter conhecimento, todo
processo de iniciação e toda a vida de santo será regida por rígidas normas
religiosas que visam manter o segredo e apenas revelá-lo aos poucos, para
um grupo restrito de iniciados, nos mistérios dos orixás.

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2) Sincretismo religioso
Sob o manto do que se convencionou chamar de “sincretismo
religioso” ocultou-se, no Brasil, uma série de fenômenos sociais e religiosos
tributários de uma lógica religiosa ainda hoje pouco explorada pelos
cientistas sociais. Ao se falar em sincretismo tem-se a ideia de uma
convivência harmoniosa entre religiões diferentes. Passa-se, também, a ideia
de uma fusão de culturas diferentes resultando numa síntese que equilibra as
influências de ambas culturas envolvidas.
No Brasil colonial a hegemonia, sem dúvida, era mantida pela
religião do senhor do engenho. O catolicismo, com efeito, foi declarado
como religião oficial do Estado. Qualquer religião que não fosse a católica
era considerada heresia. A religião dos negros escravizados, então, sequer
era considerada religião, mas práticas de feitiçaria, mandinga, culto ao
demônio e tudo mais que o preconceito racial e a ignorância da cultura negra
levaram os senhores de engenho a pensar. Como estratégia de sobrevivência
e resistência cultural, os negros escravizados tomaram os símbolos da
religião do senhor para cultuar seus próprios deuses. Assim que, prostrados
frente a uma imagem de Santa Bárbara estavam, na verdade, cultuando
Yansã, divindade africana transladada para o Brasil. Na verdade houve uma
“malandragem” por parte dos afrodescendentes: o “sincretismo” religioso foi
uma estratégia de dissimulação para manter os cultos às divindades africanas
sob a máscara dos santos católicos. Mais que uma fusão de culturas houve
uma estratégia de preservação de um código religioso que, por estar
subordinado a uma estrutura de dominação econômica e social, só poderia
sobreviver fingindo assimilar a cultura do senhor quando, na verdade, a
partir da artimanha da dissimulação, preservava os aspectos civilizatórios e a
cosmovisão de seu grupo de origem.
O sincretismo religioso não foi, com certeza, uma convivência
harmônica entre religiões diferentes. Foi uma relação conflituosa a que se
processou entre catolicismo e o nascente candomblé. Proibido de manifestar-
se livremente, de expressar suas facetas religiosas de maneira espontânea, o
candomblé foi perseguido e vetado pelo Estado. Mesmo assim, dissimulando
seu culto sob o verniz dos rituais católicos, o candomblé firmou-se em terras
brasileiras, redesenhando sua identidade e preservando a dinâmica
civilizatória africana.

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Esse processo de resistência pautado na dissimulação, sem
embargo, modificou as religiões africanas imigradas para o Brasil. O
candomblé, nesse sentido, não é uma religião africana, mas uma religião
brasileira pautada nas matrizes culturais da África. É uma religião brasileira
visto que foi forjada em território brasileiro sob as agruras da escravidão.
Esse contato com a religião dos brancos veio modificar substancialmente a
religião dos negros bem como a própria religião católica. Houve o que Roger
BASTIDE (1989) costumava chamar de interpretação de culturas. Não
uma terceira religião. Não o predomínio de uma sobre a outra. Mas a
convivência conflituosa de dois códigos religiosos, havendo mútua
influência entre ambos, coabitando rituais religiosos diferentes, cosmovisão
diferentes que, muito embora as diferenças, modificaram a cultura do outro,
levando a um processo dinâmico de novas sínteses e recriações originais de
suas culturas nativas.
As religiões são veículos privilegiados de manifestação da estrutura
mental de pensamento de um povo. Comparar, analiticamente, a estrutura
mental africana e ocidental é uma estratégia de compreender os aspectos
civilizatórios de diferentes povos e pode, ainda, elucidar as características
filosóficas da cosmovisão africana.
Uma das categorias fundamentais da estrutura mental ocidental é
pensar por contradição. Ou seja, privilegia-se um ponto identitário. É-se
puro quando se é igual ao Mesmo. O princípio da identidade é aquele que
elege como equivalente geral não a diferença, mas a minha própria cultura.
Ser igual a si mesmo é o axioma valorizado. Encerrar-se na totalidade da
minha identidade, sem assimilar a novidade da cultura alheia é o mecanismo
próprio do etnocentrismo.
A estrutura mental ocidental ao pensar a diferença - do ponto de
vista cultural – reproduz o sistema de pensamento do séc. XIX. Ou seja, a
referência é a ideia de originalidade e pureza, desvalorizando as misturas e
os processos híbridos. Por exemplo: você é negro se você é “apenas” negro;
se você é igual a você mesmo. Elevar a diferença a um grau absoluto é cair
no discurso naturalista que combatemos. Pensar assim é pensar por
contradição. Pensar assim é pensar excludentemente.
As populações africanas não pensam por contradição: não faz
parte da estrutura cognitiva da população africana o princípio identitário. Ali
se pensa por analogia e participação, não por pureza e contradição, diz
BASTIDE (1989).

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Para explicar o que é analogia recorreremos a um exemplo retirado da
tradição dos orixás. Ogun, divindade do panteão afro-brasileiro, pode ser
considerado como um eixo de classificação: nele participa tanto o ferro
quanto a planta (makino), ou seja, Ogun é uma divindade que tem nos
elementos minerais e vegetais a sua essência. Ora, na cosmovisão africana
não há contradição entre mineral e vegetal. Tudo está interligado a tudo, mas
cada elemento simbólico tem sua função. A estrutura do simbolo é
analógica. Quase sempre a analogia é uma analogia por função: função
Ogun, por exemplo. Pode-se dizer, então, que para os afrodescendentes
ligados à tradição dos orixás as divindades funcionam como estruturas de
classificação das coisas e ordenação do mundo (cosmologia), baseadas numa
rica cultura mitológica (cosmogonia).
A estrutura mental africana revela-se nas relações sociais
historicamente travadas na sociedade. Sendo resultado da dinâmica
civilizatória africana, a estrutura mental dos afrodescendentes reflete-se nas
relações de gênero no seio dos candomblés, bem como nas relações Homem-
Natureza que permeia toda prática religiosa afro-brasileira. Apresentamos, a
seguir, não apenas uma reflexão pontual sobre as relações de gênero no
candomblé ou sobre as relações com o Meio-Ambiente, mas um modelo
alternativo ao sistema do Capitalismo Mundial Integrado, apresentando um
modelo econômico-político-social de inclusão e complementaridade,
promovendo a diferença do outro e o respeito à diversidade, operando num
universo interligado, compreendido por analogias e funcionando no plano
das funções simbólicas, com o objetivo de promover o bem-estar de todos e
de cada um.

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Relações de Gênero e Candomblé
Até o momento nos preocupamos em identificar elementos
estruturantes da África Pré-Colonial que tecem o emaranhado da
Cosmovisão Africana e de como ela chegou ao Brasil, sobretudo através das
religiões de matriz africana. Cumpre neste momento, atualizar a discussão a
respeito de duas questões: 1) Quais os principais conteúdos que diferenciam
a visão de mundo expressa pelo candomblé quando comparado com os da
cultura hegemônica e, 2) Como estes conteúdos se manifestam na concepção
de gênero presente no candomblé.
A partir destas questões principais, trataremos de problematizar
uma gama de questões pertinentes a este livro, tais como as dificuldades de
se fazer uma crítica à cultura hegemônica; ou ao grande problema de, ao
intentarmos fazer uma crítica ao modelo ocidental, não recair nas mesmas
estruturas que esse modelo propaga. O objetivo é destacar os traços mais
importantes da visão de mundo africana, presentes no candomblé, e atentar
para as consequências que esta visão de mundo traz à discussão sobre a
questão de gênero, e, posteriormente, sobre o mundo globalizado.
Ao depararmo-nos com a questão de gênero no candomblé, optamos
por destacar como a cosmovisão africana permeia o candomblé e favorece a
inclusão e não a exclusão; mostrar como as diferenças são aceitas e como o
princípio de complementaridade é essencial para a organização da vida e da
produção. Com referência à África tradicional temos, por exemplo, a
organização política a partir das linhagens matrilineares. Quem governa são
os homens, mas quem dá legitimidade são as mulheres. Ora, há uma
complementaridade entre o masculino e o feminino que garante a
estabilidade política da comunidade. Como vemos, o princípio de
complementaridade cunhado no candomblé é um princípio que administra o
bem-estar social de toda a comunidade.
Por extensão, então, a partir da questão de gênero, abordamos
também as diferenças dos aspectos civilizatórios presentes no candomblé
com os da cultura hegemônica.
Privilegiaremos a tensão que se torna explícita entre a visão de
mundo do candomblé e a visão de mundo ocidental. O candomblé, síntese de
valores civilizatórios africanos, ora está em conflito com o modo de vida
ocidental, ora o absorve. Este processo, mais concomitante que paralelo,
permite-nos apontar duas questões: 1) em que medida a visão de mundo

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inerente ao candomblé é capaz de apontar alternativas para a crise do modelo
ocidental, e 2) em que medida o candomblé, ao absorver elementos da
cultura ocidental, não perde justamente os elementos estruturais de sua
cosmovisão africana.
Segundo Sueli CARNEIRO e Cristiane CURY (s/d a, p.176):
Quando a sociedade capitalista , através das relações sociais de produção que
estabelece, reifica o indivíduo, desumanizando suas relações; quando propõe uma
visão individualizante de mundo, destituindo núcleos comunitários remanescentes
de outros momentos históricos; quando fundamenta uma ciência que tem como
função a dessacralização da cultura, forjando seu reino na terra, parece
significativo o fato do candomblé se expandir vertiginosamente, levando-nos a
crer que este se coloca como uma forma de resistência à fragmentação da
existência do homem brasileiro, seja no plano concreto, seja no plano ideal da
explicação ontológica.

Podemos afirmar que o candomblé é uma religião de matriz


africana porque reúne diversas divindades de etnias diferentes africanas num
só panteão, preservando, entretanto, uma estrutura mítica semelhante aos
cultos africanos. Na diáspora africana, etnias distintas, sob a hegemonia ora
dos yorubás, ora dos jêjes, ora dos bantos, criaram em solo brasileiro o que
hoje chamamos de candomblé. Esta religião possui um sistema mítico que
contrasta e conflitua com a ordem racionalista e excludente do mundo
ocidental.
O sistema mítico do candomblé não é fragmentário nem
excludente; é sistêmico - no sentido de compreender a existência como um
todo -, e integrativo. Os mitos, os processos de iniciação, os rituais, enfim,
toda a estrutura mítica do candomblé obedece a uma lógica própria. Lógica
essa que concebe o tempo diferentemente do pensamento racional. Enquanto
o que regula a sociedade capitalista é o tempo cronológico e evolutivo,
medido sempre pela produção do capital, no candomblé prevalece o tempo
mítico. Enquanto o primeiro é fragmentado e linear o segundo se realiza
plenamente dentro de um ciclo que abarca a totalidade da existência.
A racionalidade do tempo cronológico aprisiona o homem,
estabelece a perda da identidade, sustenta a particularização e especialização
da cultura ocidental. Com efeito, a ciência moderna e a filosofia
racionalista/empirista esquadrinha o ser humano através da especialização
dos saberes científicos. Surge as ciências humanas, cada qual especializada
em compreender uma faceta do sujeito; o sujeito, categoria central no
discurso filosófico da modernidade, aparece como uma identidade

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particularizada, autodeterminante e absoluta, no entanto, sempre permanece
como um projeto ou como um objeto de estudo para as ciências. Ora,
podemos facilmente perceber que na cosmovisão do povo-de-santo, mais
que “santificar” a visão de sujeito, é “sacralizada” a noção de comunidade; o
sujeito, por sua vez, aparece em sua plenitude, individuado, mas não isolado
ou reificado; faz parte do universo, do todo, e como parte do todo, traz em si
esta dimensão sistêmica, isto é, a noção de pessoa carrega consigo a
compreensão ontológica da qual faz parte. Os ritos e preceitos do candomblé
lhe dá condição de assumir essa dimensão cosmogônica.
Segundo as autoras, o candomblé recupera o indivíduo em vários
aspectos:
1. Inscreve-o numa ordem metafísica, propondo-lhe um ser mitológico indivisível;
2. articula esse ser ontológico, essa singularidade, a um universal expresso por
um panteão; promove assim sua elevação espiritual;
3. restitui-lhe sua dimensão natural, pois é estreita a correspondência entre os
elementos da mitologia e os elementos da natureza. Portanto, ao inseri-lo nesta
mitologia, inscreve-o ao mesmo tempo no reino da natureza, recuperando assim a
unidade entre homem e natureza;
4. a mitologia, ao referir-se a todas as ações humanas significativas, explica e
compreende suas contradições sociais e individuais, propondo caminhos
alternativos para sua ação sobre o real;
5. em oposição ao projeto individualista da sociedade global, oferece-lhe uma
opção comunitária” (CARNEIRO; CURY, s/d a, p. 179).

Com Ronilda Ribeiro, vimos que a noção de pessoa na África Negra, e


consequentemente no candomblé, é tida como resultante da articulação de
elementos estritamente individuais herdados e simbólicos, sendo que os
elementos herdados o posicionam na linhagem familiar e do clã enquanto os
simbólicos a situam na esfera cósmica, mítica e social (RIBEIRO, 1996,
p.43-44). Essa concepção de pessoa apesar de reconhecer a importância do
indivíduo não aparta-o da vida social; pelo contrário, um dos elementos que
o compõe é justamente o social, a dimensão coletiva e comunitária de sua
existência.
Além da noção de tempo, espaço, pessoa, palavra, força vital,
poder, dentre outros elementos já por nós estudados, há também os
princípios de senioridade, da bipolaridade dos elementos, da unidade dos
contrários e da sexualidade. A estes últimos dedicaremos mais atenção nesta
reflexão.
A dualidade dos elementos não é negada no candomblé. Pelo
contrário, a bipolaridade é assumida. Não existe o “bem” e o “mal”, existem
forças, energias, que podem ser manuseadas tanto negativa como

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positivamente, ou melhor dizendo, que podem ser manipuladas tanto para a
construção como para a destruição, como já dissemos. É significativo
perceber que nas religiões africanas é comum a existência de divindades
duplas, isto é, uma divindade feminina e outra masculina, ambas possuindo o
mesmo poder. Essa característica estruturante das religiões africanas chegou
ao Brasil através do candomblé, e é por isso que podemos dizer que o
princípio da sexualidade estrutura todo o sistema desta religião de matriz
africana.
O sistema do candomblé é dialético e interligado. A
interdependência é a primeira coisa que se aprende no sistema. Há uma
divisão social e sexual do trabalho, mas ninguém é absoluto numa função
pois existe a interdependência. Não há um trabalho mais importante que o
outro. Há uma tensão entre os sexos. O candomblé reconhece, mitifica, e
assume essa tensão. A mulher não é o equivalente do homem, não é a
“costela de Adão”.
Vimos que o ser humano agenciado pela visão de mundo
ocidental, queda-se, cada vez mais, preso às teias da racionalidade e
fragmenta-se com a consequente fragmentação do mundo. Dessa forma
experiencia um vazio existencial, uma vez que a racionalização dá a
impressão de a tudo dominar e controlar a todos, quando, na verdade, é o
sujeito que é por tudo dominado. Max Weber já dizia que a racionalização
característica do mundo moderno acabaria por criar o desencantamento do
mundo. Diante deste quadro apresentado pela cultura ocidental, o candomblé
surge como uma alternativa não apenas religiosa, mas também política e
social, pois nele estão sintetizados outros modelos de organização social.
Talvez isto explique porque cada vez mais indivíduos cuja cultura
originária é ocidental tem se aproximado do candomblé. “Em oposição ao
anonimato da vida social moderna, o candomblé propõe uma existência
personalizada, nominalizada, propiciando ao indivíduo sua inserção numa
ordem comunitária como resposta específica ao vazio existencial decorrente
de sua fragmentação individual no social” (CARNEIRO; CURY, s/d a, p.
176).
Ao problematizarmos como as mulheres inserem-se no candomblé,
estamos à volta, novamente, com a sociedade abrangente em que o
candomblé está inserido. Ou seja, mais uma vez identificamos aí elementos
de contraste com a visão de mundo, e consequentemente de gênero do

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candomblé, ora rivalizando, ora absorvendo elementos da cultura ocidental -
que agora qualificamos de patriarcal ou machista.
Enquanto o princípio que estrutura a sociedade ocidental é o
patriarcalismo, o machismo e o falocentrismo, nas comunidades de terreiro o
que estrutura o sistema é o princípio da unidade dos contrários, o princípio
da sexualidade.
O princípio da sexualidade estrutura todo o sistema religioso e
social do candomblé. Aqui a bipolaridade entre os sexos é um princípio. O
conflito entre os sexos é assumido, e não descartado. Não subjuga-se um
sexo em favor do predomínio do outro. Existe a reciprocidade entre eles.
Mas claro, como há disputa pelo poder, existe conflito. Gesta-se, assim, uma
política de gênero que não prima pela dominação da alteridade, mas pelo
controle mítico-social dos elementos diacríticos de cada sexo. Nas roças de
candomblé os trabalhos são divididos sexualmente, obedecendo
fundamentos mítico-religiosos assentados na tradição africana. As funções
obedecem à idade de iniciação do filho(a)-de-santo (princípio da
senioridade), bem como à condição sexual dos iniciados (princípio da
sexualidade). Uma mulher menstruada, por exemplo, não poderá jamais
tocar em alguns objetos sagrados por causa do seu estado, assim como os
homens da “roça” não poderão jamais conhecer os segredos de funções
exclusivamente femininas. Mas o que é importante destacar é que as funções
femininas e as funções masculinas se complementam, isto é, uma não existe
sem a outra. É essa reciprocidade que é fundamental para a estruturação do
sistema mítico e social do candomblé.
Se na sociedade capitalista a mulher é tida como mera reprodutora,
subjugada pelo falocentrismo e machismo que permeiam as relações sociais,
no candomblé sua importância social será reconhecida tanto material quanto
simbolicamente. Ruth LANDES (1967) já demonstrara nos anos 30 como o
candomblé é um espaço social predominantemente de mulheres. Não apenas
elas formam o maior número de crentes, como também hegemonizam a
administração econômica e ritual das comunidades de terreiro. São elas que
ocupam as funções religiosas mais prestigiadas pela comunidade. Serão
yalorixás (mães de santo), êbómis, mães-pequena (yakekerê), etc. São elas
também que detém o poder e o reconhecimento comunitário para organizar e
cuidar da vida dos adeptos e simpatizantes que frequentam o espaço
sagrado/profano dos terreiros de candomblé. Nos terreiros mais tradicionais,
inclusive, apenas as mulheres podem receber os orixás. Somente elas

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poderiam ter essa relação íntima de simbiose com os deuses. Apenas elas,
por serem seres constituídas pelo mistério de gerar a vida, é que poderiam
receber o mistério insondável dos “santos”. Como dizem CARNEIRO E
CURY (s/d b, p. 19):
Acreditamos residir fundamentalmente no mistério da concepção da vida a
associação da mulher ao segredo, ao temor do desconhecido, à natureza selvagem,
às profundezas das águas e suas turbulências, à terra, ventre fecundo onde tudo
nasce e para onde tudo retorna, e ao fogo sensual que conduz ao encontro.

A importância da mulher tanto nos rituais das religiões brasileiras


de matriz africana, quanto na sustentação da vida social da família, tem
motivos históricos. A mulher negra, após a “abolição” da escravatura, viu-se
frente a uma estrutura social onde o homem negro, alijado do mercado de
trabalho, expropriado de sua força de trabalho e marginalizado por sua
condição racial, já não podia manter o núcleo familiar como outrora. Diante
deste quadro a mulher negra assume a responsabilidade de encontrar
alternativas de sobrevivência para a família e em última instância, para a
sobrevivência do grupo.
Ao homem negro, despreparado e marginalizado do processo de industrialização
nascente, restam as tarefas sociais mais humilhantes e a marginalização. Neste
contexto, a mulher negra tomará a si a responsabilidade para manter a unidade
familiar, a coesão grupal e preservar as tradições culturais, particularmente as
religiosas. Apesar das condições subumanas que a escravidão/ “liberdade” deixou
a população negra, as mulheres negras lograram encontrar maiores opções de
sobrevivência do que o homem negro. Elas foram para as cozinhas das patroas
brancas, foram para os mercados vender quitutes, desenvolveram todas as
estratégias de sobrevivência; assim criaram seus filhos carnais, seus filhos de
santo abrigaram seus candomblés, adoraram seus deuses, cantaram, dançaram, e
cozinharam para eles (CARNEIRO; CURY, s/d b, p. 26).

A mulher negra, assim, encontra no candomblé não apenas plenas


possibilidades de realizar-se religiosamente, como também política e
socialmente. A mulher que quotidianamente vive em conflito, porque
relegada a um plano inferior da existência na sociedade capitalista, encontra
nos ritos do candomblé a forma de ritualizar este conflito60. Assim, se
cozinhar é uma tarefa menosprezada, sem valorização social, no candomblé
será uma função de valor inestimável. A realização de tarefas domésticas é
um privilégio que não cabe a todos. Essa valorização redimensiona o papel
da mulher tanto no plano místico do candomblé, quanto no plano social.
Maria de Lourdes SIQUEIRA (1995, p. 443) vai dizer que:

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Este sentimento de intimidade da mulher negra com a mitologia e com a
ritualidade religiosas afro-brasileiras abre caminhos para que ela vai conhecendo,
ampliando, recriando e transformando, numa forma de poder socialmente
construído, assumindo papéis que vão se redefinindo a cada passo: ora mãe, ora
educadora, ora curadora, estabelecendo relações sociais, políticas e mesmo
diplomáticas.
Como a mulher, no candomblé, comumente dirige os “terreiros” na figura da
yalorixá, ela conhece todos os rituais e segredos da mística religiosa afro-
brasileira, além de ser a responsável pela administração da “roça”. Ora,
“aprendendo e ensinando a religião dos orixás, a mulher negra desenvolve suas
próprias capacidades administrativas, políticas-sociais, humanas e religiosas”
(SIQUEIRA, 1995, p. 444).

A valorização da mulher não implica a dominação dos homens.


No candomblé, apesar dos conflitos, não existe esta pulsão de eliminação do
outro. Como vimos insistindo, o que existe é a complementaridade das
funções, e não o predomínio de um gênero sobre o outro. Isto só é possível
porque na cosmovisão que permeia o candomblé, a “existência dos orixás
essencialmente femininos, de orixás essencialmente masculinos e de orixás
ambivalentes ou andróginos, expressa uma compreensão profunda da própria
sexualidade humana” (CARNEIRO; CURY, s/d b, p. 24).
Notamos, assim, que a cosmovisão implícita ao candomblé está
em conflitos estruturais com a cosmovisão ocidental. Seja pela valorização
da mulher em sua dimensão política, religiosa ou social, seja pela rejeição de
compreender o ser humano pelo binarismo, o candomblé apresenta-se com
valores civilizatórios mais coletivos, mais integrativos, mais humanos que os
modelos ocidentais. Daí, Sueli Carneiro e Cristiane Cury afirmarem que “a
organização social do candomblé procurará reviver a estrutura social
hierárquica de reinos africanos (especialmente de Oyó) que a escravidão
destruiu, porém na diáspora esta forma de organização visará reorganizar a
família negra, perpetuar a memória cultural e garantir a sobrevivência do
grupo e, ainda, a transmutação nos deuses africanos será a fonte de
sustentação dessas mulheres para o confronto com uma sociedade hostil”
(CARNEIRO; CURY, s/d b, p. 26).
Diante desta sociedade hostil aos afrodescendentes, perguntamos
novamente: 1) em que medida a visão de mundo inerente ao candomblé é
capaz de apontar respostas para a crise do modelo ocidental; 2) em que
medida o candomblé, ao absorver elementos da cultura ocidental, não perde
os elementos estruturais de sua cosmovisão africana?
Como possíveis respostas a estas questões pensamos ter
desenvolvido alguns elementos que se constituem como alternativas ao

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sistema capitalista. A visão de mundo do povo-de-santo, é integrativa e não
excludente; é humanista e não tecnicista; é polivalente e não totalitária;
constitui uma unidade dos elementos, e não uma fragmentação dos mesmos.
Como as pessoas advindas de culturas não-africanas não encontram em suas
culturas de origem os valores capazes de lhes proporcionar uma vivência
digna e justa, elas encontram nas religiões de matrizes africanas um outro
sistema de valores e princípios que não estão aprisionados pelo
racionalismo, pelo cientificismo ocidental, pelo individualismo liberal. Ao
contrário, o inesperado, o desconhecido, são esferas presentes nas religiões
de origem africana. O afeto, a emoção, a dança, a festa, a dor, o prazer, são
esferas que se complementam, são dimensões que abarcam toda a
complexidade humana.
O vínculo estreito do povo-de-santo com a natureza, e o estreito
vínculo destes com as divindades, fazem do candomblé uma religião
imanente, longe das abstrações metafísicas das religiões transcendentais.
Num mundo onde o artifício domina o natural, onde o controle procura
desesperadamente conter o irracional, onde as pessoas e os saberes são
fragmentados, onde os interesses individuais subjugam os interesses
coletivos, a religião comunitária do candomblé representa uma alternativa
viável, representa uma volta simbólica à natureza, representa uma relação
íntima e corporal com os “deuses” (orixás), representam uma vivência
coletiva, em sociedade, representa uma potencialização da sexualidade
humana e a valorização do feminino num mundo predominantemente
masculino. Assim, esses elementos estruturantes do candomblé apontam
respostas concretas para a crise dos modelos ocidentais.
Porém, em que medida o candomblé, ao absorver elementos desses
modelos ocidentais, ao permitir o ingresso de pessoas não tributárias da
origem africana, ao se situar no seio do capitalismo, não perde a
caracterização de seus elementos estruturantes. A pergunta, de fato, é a
seguinte: como atualizar a tradição? Como vivenciar uma religião
eminentemente natural num mundo predominantemente artificial? Como
vivenciar uma cultura africana se vivemos na cultura ocidental, sendo
influenciados por seus parâmetros de pensamento?
Aqui aparecem problemas que muitos teóricos têm abordado, sem, no
entanto, lograrem resultados satisfatórios. De nossa parte, queremos apenas
apontar chaves-de-leitura para possíveis aprofundamentos no devir. A
questão da linguagem, da cultura, das estruturas de pensamento, tornam-se

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limites para o problema levantado. Gostaríamos de avançar na discussão de
maneira a não recair em redundâncias semânticas ou em totalitarismos
políticos, muito menos em ramificações religiosas.
O uso de códigos binários, bem-mal, certo-errado, céu-inferno,
masculino-feminino, direito-esquerdo, não contempla a pluralidade do ser
humano e suas sociedades. O real é muito mais dinâmico do que
pretenderam os metafísicos do séc. XVII e os iluministas do séc. XVIII; é
mais contingente do que imaginou a ciência moderna e muito mais sedutor
do que imaginaram os racionalistas e empiristas do nosso tempo.
Talvez a física contemporânea, juntamente com a biologia e a
química, sejam os ramos da ciência que começam a detonar os antigos
paradigmas cartesianos-newtonianos. A interdependência, a interação e a
flexibilidade que esses saberes apresentam em muito lembra os princípios
tradicionais das religiões de matrizes africanas - em especial o candomblé.
A condição humana, por exemplo, não é expressa pelo binário
homem-mulher. No panteão do candomblé existem orixás eminentemente
femininos, eminentemente masculinos, e orixás andróginos, isto é, feminino
e masculino ao mesmo tempo. Essa trindade, esse terceiro, é a possibilidade
de várias expressões do humano sem reduzi-lo à binaridade calcificante. O
terceiro elemento não é apenas um elemento a mais no par binário. O
terceiro elemento é a abertura para o infinito, para a diversidade, para o
mistério do Outro.
Também no candomblé a flexibilidade do sistema é notável. Sua
cosmovisão é sempre redefinida e atualizada, mantendo, entretanto,
princípios estruturantes como a interação, a interdependência, o
comunitarismo, a ecologia, etc.
Isto permite dizer ao menos que existem elementos tanto em
ciências consagradas, como a física, a biologia e a química, como em
religiões tradicionais, como o candomblé, que permitem-nos afirmar que não
existe um único universo de valorização, uma única teoria interpretativa,
um único modelo de pensamento. A crítica ao eurocentrismo, ao
falocentrismo, ao etnocentrismo já foram feitas várias vezes. É preciso, no
entanto, aprofundar tais críticas, a fim de mostrar, seja no âmbito ontológico
(SER), econômico (CAPITAL), linguístico (SIGNIFICANTE) ou religioso
(DEUS), que todos esses elementos são erigidos como equivalentes gerais
modelizando todos os outros universos de valorização, reduzindo a realidade
a uma repetição e adequação a esses signos dominantes.

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Assim, falar em cultura ocidental é perceber no conjunto de
regimes de signos que se organizam seguindo uma lógica comum, de acordo
com os mesmos signos dominantes - os equivalentes gerais – com pretensão
de dominarem todos os outros regimes semióticos. Esta dominação, porém, é
apenas ideológica, pois além do regime dominante dos signos existem os
regimes passionais e os pré-linguísticos. Com efeito o Capitalismo Mundial
Integrado utiliza-se do truque semiótico de apresentar-se como única forma
de organização social, política e econômica. Promovendo universalmente
seus princípios, procura sobrecodificar os modos de vida de qualquer cultura
a fim de potencializar sua própria lógica interna (a acumulação de capital). A
globalização da economia, a planetarização da política e a mundialização da
cultura são tentativas de universalização dos modelos ocidentais. No entanto,
apesar das estratégias de dominação, a diversidade de culturas e,
consequentemente, dos modos de organização da vida e da produção, gestam
diferentes modelos sociais, obedecendo à lógica do lugar próprio,
respondendo singularmente aos desafios surgidos em contextos sócio-
históricos bem definidos. Desvendar a armadilha dos Universais Gerais de
Referência como única possibilidade de interpretação e fabricação do mundo
é tarefa que cabe a qualquer intelectual que se pretenda crítico. Porém, além
da crítica, é necessário apresentar alternativas e a fundamentação filosófica
dessas outras possibilidades. Já o fizemos conquanto às relações de gênero.
Agora o faremos privilegiando a relação Homem-Natureza.

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Meio Ambiente e Candomblé
O Candomblé é, por assim dizer, uma religião brasileira com heranças
africanas. Com essas heranças, diferentes formas de cultuar, de viver e de
encarar a vida (e a morte!) ultrapassaram o caráter estritamente religioso,
propondo uma maneira própria de viver na sociedade brasileira.
Essa maneira de viver singular à experiência religiosa do povo-de-
santo é tributária da forma cultural africana que, não obstante, foi recriada no
contexto nacional dos afro-brasileiros. A forma cultural negra privilegia a
relação homem-natureza. É uma forma cultural ecosófica pois não
compreende a natureza como um elemento passivo. Ao contrário, ela não
reifica a separação binária homem-natureza ou natureza-cultura. O homem é
natureza. Forma com ela um elo indissociável. Há aqui um holismo
filosófico com consequências políticas. E este é o ponto “chave”, o motivo
no qual reside a resistência da cosmovisão africana num espaço onde os
valores cristãos/capitalistas privilegiam a instrumentalização da natureza e
sua consequente exploração, onde a ênfase cultural recai sobre o
extraordinário e não sobre o ordinário, sobre o pós-morte, o pecado, a culpa,
a moral e não sobre o imanente, a liberdade, o prazer e a ética. Nas
comunidades de Candomblé as organizações se dão a partir de experiências
religiosas de caráter mágico, o irracional é racionalizado, sendo passível de
ser controlado e transformado.
Um Babalorixá nos disse uma vez: “o candomblé tem o veneno e o antídoto para
tudo”. Daí advém a capacidade da comunidade de candomblé para absorver o
comportamento “anti-social”. Explicando-se assim a ausência em seu âmbito de
um conceito de loucura ou anormalidade (“o indivíduo estava louco até fazer o
santo, até entrar no candomblé”), assim também como a grande quantidade de
marginalizados sociais que participam dessas comunidades: mulheres, negros,
homossexuais etc. (BARROS, 1994, p. 33).

As representações materiais e simbólicas utilizadas pelo


candomblé são heranças africanas, que vindas para o Brasil, foram mantidas
ou por vezes recriadas. Estas representações transparecem na cosmovisão
africana que possibilita um modo particular de relações sociais, políticas e
econômicas. Elas possibilitam a emergência de elementos estruturantes das
sociedades negras tradicionais como por exemplo os orixás, que simbolizam
suas existências.
No Candomblé, como já foi dito, existe uma relação dialética, uma
interação entre homem e natureza, e esta relação é responsável pelo processo

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de socialização dentro de um contexto ecológico. E este aspecto ecológico é
um “elemento formador de identidade cultural nesta tradição religiosa”
(BARROS, 1994, p.33).
Porém, o grande dilema que se apresenta todas as vezes em que se
discute visões de mundo diferenciadas, onde uma única visão procura
prevalecer, é como que a visão de mundo de uma cultura não hegemônica e
marginalizada poderia florescer em meio à cultura predominante.
Especificamente falando, o problema está em compreender como que a visão
de mundo advinda da cultura africana poderia sobreviver e se expressar no
interior de uma cultura “capitalística”61, que não apenas não reconhece seu
valor, como também insiste em marginalizar e banir tais expressões culturais
de seu território hegemônico. Como que a visão de mundo africana,
integradora, inclusiva, diversificada, flexível, humanizadora – no sentido de
que se preocupa com a emancipação humana -, ecológica, dentre tantos
atributos, poderá conviver com a visão de mundo de uma cultura que é
excludente, destrutiva, egoísta, redutora, entre outras tantas características
contrastantes com a visão de mundo africana?
Nós, os seres humanos, somos animais culturais. Somos
determinados por nossa cultura, isto é, nosso modo de vida é construído de
acordo com o contexto do qual fazemos parte, nossa relação com o mundo é
sempre tributária da maneira como essa relação foi construída histórica e
culturalmente. Não existe a origem primeva; não existe o inato. A cultura
constitui-se num processo profundamente complexo e diversificado, sendo
impossível identificar aí traços que permaneçam idênticos e intactos: a
cultura é sempre passível de ressignificações e reinterpretações. Estas
considerações exigem uma reflexão profunda e extensa, que, infelizmente,
não temos tempo de desenvolver aqui. Gostaria, entretanto, de destacar que
como seres culturais, nossa constituição enquanto seres humanos dá-se
estreitamente com relação à cultura na qual nascemos e da qual nos
alimentamos. Esta é uma dificuldade para desenvolver nossas questões, pois,
se somos produtos do nosso meio, como não ser capitalista vivendo num
país capitalista; como não ser ocidental, habitando o ocidente do mundo?
Especulando, poderíamos dizer que o ser humano forma seu “arsenal”
simbólico utilizando-se das “armas” que lhe estão à disposição. Ou seja, os
referenciais de uma pessoa, ou grupo de pessoas, formam-se, apesar da
diversidade que aí encontramos, dos referenciais que sua cultura lhe oferece.
Já foi dito que só podemos pensar o que conhecemos. Não podemos, com

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efeito, pensar como um indiano, uma vez que não somos indianos.
Retornemos, entretanto, à nossa questão original: como viver de acordo com
uma visão de mundo africana se estamos “condenados” a referenciais
simbólicos da cultura ocidental?
Considerando o candomblé, como poderíamos integrar sua visão
de mundo diante de um sistema cultural que lhe é hostil? Como pensar uma
religião africana que conjuga sagrado e profano, enquanto que a ideologia
religiosa dominante no ocidente relega o ordinário em privilégio do
extraordinário. Dito de outra forma, a igreja cristã privilegia os aspectos
relacionados ao tempo sagrado, discursando sobre a morte, o pecado, a
salvação etc., enquanto que nas religiões de matriz africana o sagrado e o
profano se interpenetram. O imaginário social está marcado pelos ícones
religiosos do cristianismo: o diabo, a santa, o paraíso, o inferno. Neste
sentido, como lograr ser uma religião autêntica, que privilegia a
ancestralidade, se a cultura em que ela está inserida constitui-se em torno de
símbolos cristãos que, por sua vez, estruturam os pilares da cultura
ocidental?
Um caminho podia ser o da adaptação, ou seja, o candomblé assimilaria
os códigos simbólicos da sociedade capitalista a fim de, de alguma forma,
manter-se como uma religião de matriz africana. Ora, isto não resolve o
problema, apenas o recoloca, pois como as religiões de matriz africana
manteriam seus códigos se assimilassem símbolos alheios?
A adaptação ou “modernização” do candomblé agudiza nossos
dilemas, pois quando eu transformo as práticas de candomblé em práticas
comerciais, quando me afasto do espaço natural (espaço-mato) para recriar o
candomblé em espaços artificiais (urbe), corremos o risco de perder
elementos essenciais da prática religiosa de matriz africana. Pessoa de
BARROS (1994, p. 36), entretanto, ao abordar esse tema, diz que:
A crença nas formas naturais foi, e continua sendo, a responsável pela reprodução
e manutenção de um estilo de pensar e ser, de estar no mundo. O impacto da
urbanização não altera significativamente a visão de mundo do povo-de-
santo; pelo contrário, propicia o surgimento de estratégias para a manutenção de
seu patrimônio religioso e cultural62.

Mas é o próprio Pessoa de BARROS (1994, p. 36) quem dirá que o


“exercício da fé nas divindades afro-brasileiras exige uma relação direta e
estreita com o meio ambiente natural e puro”. Ocorre aqui um paradoxo,
que está justamente na afirmação de que a urbanização não altera

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significativamente a prática ritual do povo-de-santo, de um lado, e que é
essencial para o candomblé a manutenção dos espaços naturais, de outro. O
problema é ainda maior se considerarmos o meio ambiente em sua
totalidade, uma vez que está ameaçado pela visão de mundo instrumental
(ocidental) e sua consequente prática destrutiva, que privilegiou a
industrialização em detrimento do ecossistema.
Sob este último aspecto, gostaria de ressaltar que os problemas
aqui levantados ultrapassam o âmbito privado do candomblé; o problema
exige uma reflexão em âmbito planetário. É preciso, por isto, recolocar sob
outros parâmetros, as questões. Para além do político, a ética. Para além da
preservação da minha cultura, a preocupação é com a preservação do
planeta. Refletir sobre as relações entre público e privado, entre indivíduo e
coletivo, entre local e universal, só faz sentido quando inseridos nessa
contextualização dilatada que, muito embora universal, não se constitui
como abstração metafísica, mas como necessidade. A pergunta que paira,
então, é a seguinte: que elementos existem nas religiões de matriz africana
capazes de posicionarem-se frente a este quadro complexo que se nos
apresenta?
Antes, entretanto, de ensaiar uma resposta, gostaríamos de
problematizar outro aspecto. Todos sabemos que o capitalismo é um sistema
semiótico extremamente competente em recuperar os signos que se lhe
opõem. Ágil em capturar as práticas subversivas e ressemantizar os símbolos
que se lhe contrapõem, o capitalismo encontra mecanismos de assimilação e
sobrecodificação complexos, difíceis de serem combatidos. Este é um
problema muito sério, pois sem uma resolução aceitável do problema,
estaremos condenados ao papel de “inocentes úteis”, ou, o que é pior, à
função de reformadores do sistema, e até mesmo ao quixotismo delirantes
em luta inútil e infinita contra moinhos de vento... Para ser eticamente
responsáveis e politicamente consequentes teremos que pensar uma práxis
que não possa ser capturada pela semiótica capitalista? Formulando o
problema de jeito: como não reproduzir uma posição alienante ou passiva
frente aos acontecimentos, visto que o mundo apresenta-se, dentro desta
perspectiva, sem esperanças; e, por outro lado, como encontrar uma prática
de vida que não recaia no ostracismo e no fundamentalismo, mas que,
considerando a complexidade da realidade, cônjuge desejos pessoais com os
interesses comuns da humanidade?

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É a partir da cosmovisão africana que intentaremos dialogar com
esses problemas/dilemas ditados pela contemporaneidade.
Mesmo o pensamento europeu não assume a noção de história
evolutiva. Aliás, já está na hora de dar fim a essa dicotomia
“ocidental/africano”. Se estamos operando com ela, é porque decidimos nos
contrapor, para fins de contradiscurso, ao sistema de dominação engendrado
pelo capitalismo que, de resto, foi arquitetado na Europa. Mas ao falarmos
em cosmovisão de mundo, não estamos nos remetendo a uma realidade
geográfica homogênea. Não estamos reféns do historicismo ou do
romantismo. Não estamos atados ao inatismo e ao atavismo. Falamos de
cosmovisão de mundo como um regime de signos próprios de uma dinâmica
civilizatória e, neste sentido, rompemos com a ideologia capitalística da
existência de um único modelo organizativo da vida e da produção. Ao
referendarmos nossos argumentos na cosmovisão africana queremos
justamente demonstrar que há muitos regimes de signos e, inclusive, muitos
deles se opõem ao regime dominante – e este é precisamente o caso da
política da africanidade no Brasil.
Retornemos, então, ao início do parágrafo anterior, quando dizíamos
que a noção linear de história é criticada também pelos europeus. Com
efeito, desde Foucault, sabemos que a história não é evolutiva e que, em seu
desenrolar surgem brechas de tempo, como dizia Walter Benjamim, por onde
o passado pode irromper no presente e antecipar o futuro. Nietzsche dizia
que não existe verdade histórica mas interpretação da história, pois há uma
infinitude de possibilidades para a interpretação dos acontecimentos. Isto nos
remete a um enfoque mais plural e ampliado do universo social em que
vivemos. Quando consideramos a diversidade de culturas em nosso mundo,
ou mesmo, a diversidade de cultura dentro de um mesmo país já não
poderemos falar em cultura brasileira, por exemplo, pois seria uma
generalização massificadora. Se nos remetemos, constantemente, à cultura
negra, à cosmovisão africana, é para ressaltar aspectos culturais importantes
para a construção do nosso projeto político e não para reificar uma ontologia
essencialista do ser negro-africano.
Vale dizer que a visão que apresenta o mundo a partir de uma
cultura dominante, é própria da visão de mundo dominante desta mesma
cultura. Se analisarmos o sistema capitalista com o mesmo olhar do
capitalista, estaremos apenas reificando este sistema de dominação. A
realidade, com efeito, não se comporta como uma definição binária de isto e

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aquilo, dominante e dominado, escravo e senhor, mas ela é uma dinâmica
complexa de relações sociais e ambientais. Será preciso lançar mão de outras
visões de mundo, com referenciais em outras experiências de vida, para se
fazer uma crítica ao sistema capitalista, até porque a recuperação que o
mesmo faz dos signos que procuram subverter sua ordem, não é passiva, mas
ativa, isto é, ele não sai impune desta operação; se por um lado ele recupera
e ressignifica as ações que se lhe opõem, por outro lado seus códigos e
estruturas também podem ser ressemantizados por seus opositores. Além do
que trabalhamos muito mais numa perspectiva de possibilidades híbridas e
variadas, do que na posição antiquada de uma bipolarização sistêmica.
Falar em cultura ocidental é tão generalizante quanto falar em cultura
africana, já foi dito. O que existem são culturas ocidentais, assim como
existem culturas africanas. Pensando assim, passamos a ter um gama muito
maior de possibilidades para a compreensão da realidade, o que favorece
intervenções e ações mais diversificadas. Voltar aos métodos de abordagem
universalistas seria recair em abstrações que não dizem nada de coisa
alguma. É preciso considerar cada caso – sem perder, é claro, a visão de
conjunto -, e, daí, enriquecer nossa análise.
As comunidades de terreiro apresentam uma outra maneira de
organização social que extrapolam seu caráter meramente religioso. Melhor
dizendo, o caráter religioso das comunidades de terreiro concebem o espaço
religioso integrado às outras esferas da vida, que na concepção africana, é
um todo orgânico e não esferas específicas e particularizadas. Esse caráter
organizativo das comunidades de terreiro marcam distinções importantes
frente ao colonizador europeu: enquanto o colonizador marcava o seu tempo
pelo relógio, pelo tempo da produção, obedecendo a lógica do capital, os
terreiros marcavam o tempo pelo sistema lunar. Esse jeito de contar o tempo
é exatamente contrário ao do colonizador, pois enquanto esse artificializa o
tempo, valorizando-o ao inventar um sistema produtivo, a comunidade de
terreiro concebe o tempo a partir de um referencial natural (os ciclos da lua),
o que caracteriza bem a relação dos últimos com a natureza. Ao invés de um
tempo instrumentalizado pela produção, temos um tempo sacralizado na
natureza. A natureza é o princípio.
A organização espacial das comunidades de terreiro congregam o
espaço público e o privado. A disposição das casas – espaço doméstico,
cotidiano, ordinário – em volta do terreiro, e o terreiro – espaço do sagrado,
do coletivo, da celebração da vida – ao centro demonstram bem a visão

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orgânica do povo-de-santo. O espaço privado – mas que está
institucionalizado no espaço público -, e o público – a dimensão da
comunidade, interagem organicamente, e se confundem, por exemplo, nos
momentos em que no terreiro não se está realizando algum ritual, ele serve
como espaço recreativo para as crianças, como reunião da comunidade para
resolver assuntos domésticos etc. Em toda roça de candomblé o espaço-mato
é considerado o lugar mais importante. Lá vivem os orixás. Lá eles serão
alimentados. É na natureza que os orixás encontram os elementos que lhe
dão existência. A natureza é a essência do orixá. A essência do candomblé.
Como dizem os nagôs: “kosi ewé, kosi orisá” (sem folhas não há orixás).
Um sacerdote de Ifá, outrora filho-de-santo de Yemanjá, certa feita
me confiou a seguinte história63. Dizia ele que, defronte ao mar, quis saber
da origem da vida. Tomado de emoção, ouviu a resposta de Olokun e Aziri
Tobossi. A água, diziam as Yamis, é a origem da vida. Dela tudo emerge e
pra ela tudo retorna. Olodumare, antes que o mundo humano existisse,
retirou pedaços de seu próprio corpo e jogou no mar. Depois soprou sobre
as águas, criando-lhe movimento. O movimento do mar em ondas fez com
que os pedaços de seu corpo se misturassem e formassem os primeiros seres
vivos. Olokun disse que o segredo da vida está contido no movimento do
mar. As ondas, no seu movimento de leva e traz inaugura a dinâmica da
vida. As ondas prepararam parte dos seres marinhos para viverem na terra.
Ela os levava à terra e os trazia, constantemente, periodicamente... Aos
poucos, e com paciência, os seres adaptaram-se à vida terrestre e passaram
a habitar este novo ambiente. Viver neste novo ambiente. Desde o início o
princípio da vida é a diversidade. A natureza é diversidade. Aziri Tobossi e
Olokun ensina que a face de deus é a face da natureza, e que a face da
natureza é a diversidade. Esse é o princípio da vida. A diversidade. A
diversidade é a vida. O movimento gera a vida. No ventre da mãe Yemanjá
(o mar) o mistério da existência foi gestado. Na vida tudo vem e tudo vai. O
candomblé não é uma religião. Candomblé é o princípio de submissão ao
princípio da vida. Submissão como condição para a participação.
Participar da vida é submeter-se a ela e a seu princípio: a diversidade. Por
isso tudo começa na natureza e termina na natureza. O que é o orixá? Orixá
é a proteção do princípio fundamental que é a diversidade. É ele quem
garante a presença do princípio fundamental da diversidade. Eles sustentam
a diversidade por que interagem entre si. É vento, folha, raio, trovão,
árvore, terra, água. Todo um círculo de elementos naturais que, integrados,

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movimentam a vida. As danças no candomblé são em formato de roda. A
roda representa o movimento cíclico do mar ocasionado pelas ondas. As
rodas de candomblé representam o sentido da vida que está expresso nas
ondas do mar. Ifá, protetor da ética, ensina que a natureza de deus é a
natureza das folhas. Ensina que o homem não é um ser acima dos outros
seres. O homem é parte da natureza. Faz parte do todo orgânico. É um ser
vivente entre outros. Quando o ser humano se colocou acima da planta, do
mineral, do animal, iniciou a destruição. A causa dos males humanos foi sua
separação da natureza. A natureza é o início e o princípio de tudo. O
princípio de tudo são as águas profundas de Aziri Tobossi e a respiração de
Olodumare. As águas gesta a vida, a respiração a dinamiza. Dinâmica e
sentido, água e respiração, eis o princípio da vida. Tudo é vibração.
A história do babalawo é mui significativa. Há aqui uma filosofia
profunda e um conhecimento sagrado. É sabedoria! A vida só é possível por
causa da diversidade. A diversidade não é apenas a expressão da vida. Ela é
a vida. É a possibilidade da própria vida. A origem da vida não partiu de
uma essência única. Foi a água de Yemanjá e a respiração de Olodumare que
criaram a vida. Lembramos dos itãs de Oxalá onde narram-se histórias de
criação do mundo e dos orixás. Há sempre a complementaridade de
elementos naturais nos itãs. No caso, Oxalá é o ar - a respiração vital e
Yemanjá a água, o ventre do mundo. Na história do Babalawo esses
elementos se repetem. Entretanto há um elemento dinâmico: o movimento
das ondas. O movimento dinamiza a vida. Viver é movimentar-se. Como
veremos adiante, a filosofia banto já dizia que a vida é energia. A Força Vital
é a energia que movimenta o universo africano. Axé é a energia vital que
dinamiza a vida! O leva e traz das ondas do mar é como as ondas do tempo
que levam e trazem ensinamentos. Aqui está contido todo o princípio da
ancestralidade. O tempo não é estático, mas dinâmico. Sua dinâmica está
engendrada pela lógica dos ancestrais. A sabedoria é resultado da passagem
do tempo. Essa é a dinâmica da cosmovisão africana. O leva e traz das ondas
do mar lembra-nos do movimento do leva e traz erótico, amoroso -
movimento originário do início da vida. A relação sexual é o movimento de
corpos se amando em ritmos de onda. A fecundação de um ventre é a
introjeção da semente da vida no ventre materno. Ventre é a casa da água da
vida. É o mar. As mulheres, como vimos, são portadoras desse mistério. Por
isso podem ter intimidades com os deuses. Por isso são celebradas no mundo
da cultura africana. Intimidade é o movimento de seres que se amam. Não há

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intimidade na solidão. Intimidade é uma experiência só passível de ser
vivida em comunhão. A comunhão é uma diversidade. Só há comunhão se
há diversidade. Só há vida se há comunidade (diversidade). Água e
respiração, homem e mulher, são os pares entrelaçados para a gestação da
vida. A vida é movimento da diversidade. Diversidade é o movimento da
comunhão.
A diversidade, princípio da vida, sustenta-se apenas porque existe o
princípio da integração. A diversidade não leva ao relativismo porque ela
está articulada pelo princípio da integração. A integração reúne numa
unidade sagrada toda a matéria do mundo. É reunião de diversidade o que
chamamos unidade. Toda integração e toda diversidade está baseada na
sabedoria ancestral. Assim, ancestralidade, diversidade e integração revelam
a face de Deus.
A relação do candomblé com o meio ambiente é, portanto,
essencial. Não há candomblé sem meio ambiente, exatamente porque não há
vida sem natureza. O candomblé é um princípio de vida ligado
essencialmente à natureza. É a religião da vida! É o culto que sacraliza na
vida cotidiana de seus fiéis os segredos e encantos da natureza. O candomblé
é o movimento da natureza ritualizado nas festas religiosas para o culto dos
orixás. Orixás são a natureza. O Homem é natureza. Logo, somos deuses!
As relações de gênero no candomblé e a dinâmica da integração
com a natureza são resultados da cosmovisão africana que, baseada na
dinâmica civilizatória africana, criou e expressa suas próprias formas
culturais. Na forma cultural africana a vida (Yemanjá) não se separa da ética
(Ifá), assim como o movimento não se separa da diversidade. Em todo caso,
é do princípio da vida que estamos a falar.

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Formas Culturais
As formas culturais negro-africanas constituem-se politicamente como
antítese à cosmovisão greco-romana, ao mesmo tempo que aparece como um
dos modelos possíveis para a reorganização das relações da vida no mundo
dito globalizado. Ao mesmo tempo aparece como proposta universal, pois
tem uma perspectiva universalizante, no mesmo instante em que se
diferencia por ser uma cosmovisão pautada na pluralidade e não na unidade.
A forma cultural é o que permite e dá condição para o tecido da ética,
logo para o terreno da política e da economia. Exu é a entidade
mítico/religiosa, produto cultural da cosmovisão africana, que melhor
representa a forma cultural negro-africana da qual nos fiamos para tecer esse
estudo.
Entendemos por forma cultural as condições que possibilitarão toda
relação baseada em troca, reciprocidade, dádiva ou mesmo individualismo.
Formas culturais é uma categoria que visa entender o padrão cultural no qual
as diversidades se expressam; é menos o conteúdo expressado e mais o
“lugar” onde este conteúdo é expressado. É mais as condições da expressão
que a obra propriamente dita. Se comparássemos à criação artística, diríamos
que é mais a tela onde a obra vai ganhar corpo que o corpo da obra de arte.
Utilizamo-nos da categoria forma cultural para pensar tanto as condições
estruturantes de um povo quanto as expressões singulares que lhes dão
identidade64. Como identidade elas formam um território identificável e
criam uma ideologia a partir de representações sociais forjadas pelo próprio
grupo. No entanto, elas funcionam também como alteridade, na medida em
que não existem formas culturais sem a presença e o mistério do outro. A
forma cultural é tanto a configuração da cultura de um povo quanto a
transformação da cultura de uma comunidade.
A forma cultural greco-romana privilegiou o estatismo e a
imutabilidade como padrão de compreensão do real; a forma cultural negro-
africana privilegia a dinamicidade como categoria para a compreensão do
real e suas significações. Por isso escolhemos Exu para elucidar como
funciona o padrão cultural africano e suas ressemantizações ocorridas no
Brasil.
Exu é um orixá que tem como característica o princípio de
comunicação e interliga tanto os homens com as divindades, quanto o
homem entre os homens, os homens consigo mesmos e os homens com o

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meio ambiente. Exu é o princípio dinâmico do universo africano. Exu existe
antes mesmo da existência, pois como forma cultural ele dá a possibilidade
da existência da forma cultural, e, enquanto tal, ele está presente em cada
uma das materializações/singularizações da forma cultural que se
individualiza em cada objeto de cultura produzido pela comunidade. Exu, é
assim, onipresente e absolutamente individualizado. É ele, em si mesmo, o
princípio fundamental da individualização. Mas, sendo individuação em
todos os seres, ele representa objetivamente o que teologicamente Olorum é
para a religião dos orixás, ou seja, a personificação da existência genérica.
Exu é a existência individualizada, mas enquanto existência onipresente é
universal; enquanto realidade fática, é singular em cada uma de suas
expressões.
Exu é a unidade presente nos múltiplos seres que constituem o
universo. De fato há um Exu para cada modalidade de seres: divindades,
homens, animais, plantas, pedras etc. Exu, é assim, como que a força
dinamizadora capaz de não apenas interligar todos os seres, mas de os
fazerem existir. Não há existência sem Exu porque não há existência sem
uma forma cultural que lhe dê sentido. Exu dá sentido ao interligar todos os
seres. Os seres são porque são interligados. Exu é o princípio de
comunicação e como toda comunicação é pública, logo política, Exu é o
princípio mais dinâmico da cultura afro-brasileira na medida em que coloca
todos os seres em intercâmbio relacional conferindo-lhe a existência
individualizada e, principalmente, o sentido que faz com que as coisas sejam
o que são, isto é, o sentido que confere a inteligibilidade e a possibilidade de
inteligibilidade sobre as coisas. Exu está mais para significante do que para
significado. Ele, em última análise, é o signo de referência que dá
significado aos outros signos. Mas não é um signo déspota que se comporta
como equivalente único de significação nem como modelo último da
realidade. Exu é, em si mesmo, múltiplo. Possui ele não uma regra, mas o
mistério – que detona com a regra; possui múltiplas funções, não apenas a
função sobrecodificadora de signos. Ele é um símbolo mutável porque se
comporta como a natureza mesma do signo, representando sempre
parcialmente os objetos por ele referenciados e a eles referidos. Exu é
muitos, por isso pode inventar novas regras e preservar outras. Pode, como o
real, ser criativo, devastador, imperativo, compreensivo e até mesmo
violento. Exu não responde exatamente pela ética, mas, o que parece
paradoxal, é a condição para a ética negro-africana.

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Exu é o portador do axé. É ele o encarregado de distribuir o axé. O axé
é a força vital que alimenta os seres. Sem axé não há vida. Sem vida não há
existência. Exu, como princípio de comunicação, é também o portador do
axé que alimenta a própria existência e, como tal, é também o responsável
pela transformação das coisas existentes. Daí sua ligação estreita com Ogum,
senhor dos caminhos, e Yansã, senhora da transformação. Exu é irmão de
Ogun e com ele divide o reinado sobre os caminhos. Yansã é a orixá das
transformações, e, com Exu, defende o princípio da mutabilidade. Na
cosmovisão africana a mudança é para a inclusão e não para a exclusão. Está
excluído aquele que não aceita e não vive a regra comunitária que, tem em
Exu, a possibilidade para sua criação. Ou seja, exclui-se aquele que quer
excluir outrem. Exu é outrem. É a própria personificação da alteridade. É ele
feito da natureza do mistério, do insondável, muito embora seja da matéria
do real, do presente do cotidiano. Assim como a alteridade Exu é uma
presença incontornável e ao mesmo tempo indefinida. É um mistério que
açabarca a existência de todos e tudo. Ele é todos e tudo, assim como a
alteridade.
Por ser preexistente à ordem do mundo é que Exu pode ser cada um e
todos ao mesmo tempo. Não é ele o criador do mundo. Ao contrário,
também ele é criatura. Mas, enquanto criatura, participa de qualquer coisa
que tenha existência dando-lhe consistência de existência, ou seja,
conferindo ao existente o status de dinâmico, isto é, de vivente. Sendo
criatura, no entanto, também ele se submete a seu criador. Seu criador é
Olorun, representação da existência genérica. Ele também segue os ditames
de Ifá, gerador de toda ética da cosmovisão africana. O que vemos aqui é
uma relação complexa entre criador e criatura, entre Ética e Forma Cultural.
Com efeito criador e criatura se confundem, ou melhor, um complementa a
existência e o motivo da existência do outro. O criador orgulha-se de sua
criação viva. Se tal criação quedar-se estática, a beleza do que foi criado fica
relegada ao plano da memória, da rememorização. Exu dinamiza o existente
enchendo de vida a criação do criador. De outro lado, (Exu) não poderia
dinamizar a criação não fosse ele criatura. Muito embora produto do criador,
ele agora pode, enquanto criatura, recriar o mundo e o próprio criador na
medida em que sua voracidade criativa dá novas formas àquilo que foi
criado. Com isto estamos dizendo que a forma cultural é, em si mesma,
dinâmica e não estática, reinventando a si mesma, sem no entanto abandonar

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o que ela é, a saber: uma forma cultural na qual as relações entre os seres
existentes são travadas.
A forma cultural negro-africana é, em si mesma, uma ética. É uma ética
porque composta da experiência coletiva dos afrodescendentes que
produziram uma cosmovisão que integra uma dinâmica civilizatória
orientada para a promoção da liberdade de todos e de cada um. A
experiência africana, como vimos no estudo dos três grandes impérios
(Gana, Mali e Songai) assenta-se numa prática política de integração de
diversidades e promoção do bem comum. Permeado por valores religiosos,
ela ritualiza e sacraliza o cotidiano a fim de manter a unidade do universo
africano. A economia tem por função organizar a produção para garantir o
bem-estar material da comunidade, ao mesmo tempo que preserva a
memória (ética) dos antepassados ao respeitar o pacto com a terra. A forma
cultural, portanto, é o solo comum onde enraízam-se as experiências
políticas e econômicas das sociedades africanas. Tais experiências só
puderam ser éticas, isto é, includentes, tolerantes, diversificadas, comunais
etc., porque derivaram da forma cultural africana.
O candomblé, no Brasil, é fruto da forma cultural africana porque
mantém sua ética. Melhor dizendo, o candomblé é a atualização da
experiência ética africana em terras brasileiras. Atualização que só foi
possível dado o caráter singular da cultura negra, dada à memória coletiva
dos afrodescendentes que preservou a forma da experiência africana.
O conceito de forma cultural vai além do conceito de estrutura, pois
ela não é apenas um conjunto de elementos que estruturam um sistema; ela é
a possibilidade da existência do sistema. Não é, com certeza, um conceito
apriorístico ou metafísico. É mais a expressão conceitual de uma experiência
coletiva que soube sobreviver na história de seus cismas e crises, atualizando
seus elementos, criando suas categorias e inovando em suas expressões.
Forma Cultural Negro-Africana, Cultura Negra e Cosmovisão de Matriz
Africana são os conceitos pilares que sustentam a argumentação
desenvolvida neste livro.
A forma cultural negro-africana atualizada pelos afro-brasileiros
produziu sistemas filosóficos complexos. Esse sistema de pensamento,
obviamente, não é único no Brasil muito menos na África. Com o intuito de
análise, exporemos uma rápida apresentação da filosofia banto, a fim de
exemplificar como uma forma cultural pode produzir uma filosofia original
que, por sua vez, fundamenta conceitualmente essa forma cultural. O fato de

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expormos a forma cultural a partir de uma divindade yorubá (Exu)65, e
apresentarmos uma filosofia localizada na região banto66, não deve espantar o
leitor. Busca-se, aqui, estrategicamente, apresentar elementos africanos em
seu conjunto e não privilegiar apenas a cultura nagô (yorubá) ou angola
(banto) que foram os dois principais povos africanos que influenciaram a
formação da cultura brasileira.

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A Filosofia Banto
A filosofia banto é uma filosofia da energia. Focada mais no
movimento que na racionalidade, os bantos dão ênfase ao movimento do ser,
não ao ser metafísico. A existência é o movimento da Força Vital. O que
constitui o mundo são energias. A matéria não é nada em si mesma senão o
acúmulo de energia. É uma espécie de metafísica da energia a filosofia
banto. Placide Tempels67, missionário belga na República do Zaire, afirmava
que o pensamento banto é constituído por “uma filosofia fundamentada
numa metafísica dinâmica e numa espécie de vitalismo que fornecem a
chave da concepção do mundo” (TEMPELS apud LOPES, 1988, p. 122)
para esta população cultural.
Pensar a filosofia banto em termos de uma metafísica dinâmica é pensar
de outro modo que a racionalidade construída pela filosofia europeia - da
clássica à moderna. Não é preocupação para o pensamento banto o problema
da origem, da finalidade, da essência, do ser. Utilizando-se dos termos da
própria filosofia europeia, pode-se dizer que a filosofia banto é mais uma
ontologia dinâmica que uma metafísica do ser. Na verdade a noção de “Ser”
não tem correlato na cultura banto. Lá fala-se em força. De acordo com o
missionário: “a noção de força toma o lugar da noção de ser, e assim, toda a
cultura banta é orientada no sentido do aumento dessa força e da luta contra
a sua perda ou diminuição” (TEMPELS apud LOPES, 1988, p.122).
Para os bantos a realidade última das coisas é a Força-Vital que anima a
vida. Ela é a própria vida. Por isso o critério primevo e o valor supremo é a
Força-Vital. Assim, o imperativo fundamental da filosofia banto é a
afirmação categórica de que todo ser é força.
Em qualquer circunstância devemos aumentar a Força Vital. Tudo que
aumenta a Força Vital é benéfico para a comunidade, promovendo seu bem-
estar. O pensamento banto não é um pensamento de punição e restrição, de
culpa e de escassez; ao contrário, é uma filosofia da abundância e da
generosidade, da liberdade e da comunhão. O único mal é a diminuição da
Força-Vital.
Os adivinhos e sacerdotes conhecem as palavras e os ritos que
aumentam e reforçam a vida. De certa forma, eles são os “manipuladores” da
energia vital presente no mundo. Munidos de sabedoria ancestral, os
sacerdotes utilizam-se do princípio máximo da filosofia banto que é a
reprodução da vida. Já os feiticeiros, que também conhecem os ritos de

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manipulação da energia vital, utilizam-se desse conhecimento para tirar
proveito próprio, esquecendo-se da comunidade. Utilizar a Força Vital em
benefício próprio é diminuir a Força Vital, posto que ela é um fenômeno
eminentemente social. Por isso os feiticeiros são afastados da comunidade e
passam a ocupar lugares ermos, uma vez que não aceitam as regras
comunitárias ditadas pela sociedade. Se seu trabalho beneficia apenas a si
mesmo, viverá consigo mesmo, em solidão, isolado da convívio social.
A relação sexual é um ato de reprodução da vida. Talvez por isso o
vigor sexual do homem e da mulher seja tão festejado. No sexo está presente
uma fração da força que faz crescer a vida, daí a fertilidade ser muito
valorizada entre os bantos.
Morrer é diminuição da Força. A morte é indesejada pois ela seria a
interrupção da Força Vital. No entanto, os ritos funerários funcionam como
rito de permanência e não de passagem, como dissemos anteriormente.
Quando morre um membro da comunidade, sua energia vital pode ser
reconstituída através do funeral ritualizado que tem a função de transformar
a energia vital deste indivíduo em Força Vital para a comunidade. A energia
transmuta-se do âmbito pessoal para a esfera social. A morte é apenas uma
etapa do círculo da vida. Vida e morte sucedem-se num movimento contínuo
de circulação da Força Vital. Vida e morte são etapas de perda e restituição
da energia que anima o universo. O pensamento banto busca compreender e
experimentar essa movimentação da vida. Por isso, os ritos funerários não
enterram defuntos, mas geram ancestrais. O nascimento de um ancestral é
um aumento qualitativo de Força Vital no mundo. Os rituais manipulam a
Força Vital numa relação de troca contínua. O sacrifício de animais, a
utilização de folhas, o uso dos minerais são elementos simbólicos
constantemente ofertados porque plenos de energia vital. Um pacto de
restituição e promoção da vida foi selado entre os ancestrais e seus
descendentes. Vida é movimento. Para que haja movimento é preciso haver
troca. Os sacrifícios e oferendas são as trocas essenciais para a restituição da
energia vital. As trocas simbólicas são ritualmente controladas para que seus
efeitos sejam pragmaticamente sentidos pela comunidade.
A Força Vital não é um atributo exclusivo dos humanos. Ela é a fonte
de toda a vida. O universo africano, como vimos dizendo, é integrado e seus
elementos são interdependentes. Para que a integração exerça o seu papel de
conectar os seres, é necessário que todos os seres estejam animados pela

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Força Vital. Ou seja, a concatenação dos seres no movimento de integração é
já o que chamamos de energia fundamental da vida: a Força Vital.
Na cultura banto, da região do antigo Reino do Congo, a Força Vital é
um elemento tão integrado no cotidiano do africano que seu nome recebe as
insígnias desta força. Seu primeiro nome lhe dá a identidade social, isto é,
em seu primeiro nome identificamos sua linhagem, qual sua aldeia de
origem etc.; do segundo nome em diante ele será identificado pelos feitos
relevantes que fez na vida, ou seja, quando ele passar pelo rito de iniciação,
quando fizer uma boa caça, quando se casar, se se tornar chefe do conselho
de anciãos, se vencer uma disputa esportiva... terá incorporado em sua
identidade (seu nome) os feitos que o destacam no meio social. O primeiro
nome é indicativo de sua identidade inata, fornecida pela comunidade, sem
que ele tenha feito esforço algum para isso. O primeiro nome é, por assim
dizer, o recebimento da dádiva da Força Vital. Do segundo nome em diante
será acrescentado em sua identidade tudo o que ele fez para aumentar a
Força Vital recebida da comunidade e do Preexistente. O indivíduo só terá
outros nomes se realizar atividades que aumentem a energia vital do grupo e,
consequentemente, de si mesmo.
Com esse esboço da filosofia banto, podemos avançar na direção
de caracterizar os principais elementos estruturantes das sociedades banto.
Esses elementos estruturantes, portadores de uma cosmovisão africana,
permaneceu entre os afrodescendentes no Brasil. Em síntese, pode-se
afirmar que as sociedades banto estruturam-se de acordo com o que Pe.
Altuna68 chamou de PIRÂMIDE VITAL.
A Pirâmide Vital dos bantos segue a seguinte ordenação:
Ser Supremo: Nzambi, Zambiapungo, Mulunga, Unkululu;
Fundadores do primeiro clã humano;
Fundadores dos grupos primitivos;
Heróis civilizadores;
Espíritos tutelares e gênios da natureza;
Antepassados qualificados;
Antepassados simples;
Humanos vivos.

A Pirâmide Vital dos povos bantos privilegia os antepassados. O culto


aos ancestrais, como estamos insistindo, é a base da cosmovisão de mundo
africana. Os bantos encontram em sua estrutura social, tanto produtiva
quanto cultural, a presença marcante dos antepassados e do culto aos
ancestrais.

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É bom notar que na Pirâmide Vital aparece vários itens que se relaciona
somente com os antepassados, e não com os ancestrais. Como em todas as
religiões africanas consideradas neste livro, entre os bantos existe sempre o
preexistente, aquele que antecede a criação do mundo. Porém, quanto à
criação do universo temos a impressão de que os bantos não estão muito
preocupados com isso, e sim como esse mundo se estrutura. A estruturação
cosmológica desse mundo está baseada, sobretudo, na figura dos
antepassados - seja na forma dos fundadores do primeiro clã, dos fundadores
dos grupos primitivos, seja na forma dos heróis civilizadores. O respeito e a
repetida referência aos antepassados demonstra como esses povos valorizam
sua cultura e a atuação dos membros que marcaram as comunidades e sua
história.
Existem os antepassados qualificados e os antepassados simples. Os
qualificados são aqueles que conseguiram ascender, por causa de seus feitos
notáveis, a uma condição de divindade, tornando-se ancestrais. Os simples
são aqueles antepassados que se preservaram humanos, porém destacados
pelo empenho em aumentar a Força Vital de suas famílias e comunidade.
A concepção da vida, dentre esses povos, é cíclica. Como vimos, a
morte é a diminuição da Força Vital, mas ao nascer uma criança a restitui.
Ao se realizar um rito funerário, translada-se a energia do defunto para a
Força Vital da comunidade. Diminui a Força no sasa, mas aumenta a energia
no Zamani. Toda essa dinâmica está centrada no culto aos antepassados e
aos ancestrais.
Não apenas os antepassados são referendados na estrutura cultural dos
bantos. Também a natureza é referendada. Os espíritos tutelares e os gênios
da natureza é a própria natureza divinizada. Elementos essenciais para a
sobrevivência do grupo como os rios, as ervas, etc. são divinizados e a eles
são rendidos cultos plenos de oferendas e sacrifícios. O que se convencionou
chamar de animismo é, na verdade, uma forma sofisticada de culto à
natureza.
Vale lembrar que a população banta veio em maior número para o
Brasil na época da Diáspora Negra. Se sua filosofia ainda não foi bem
estudada, se sua história ainda não foi bem contada, é porque sofreram uma
discriminação racial mais acirrada que qualquer outra etnia no Brasil.
Mesmo os adeptos de terreiros de candomblé ketu ou nagô relegaram as
manifestações culturais-religiosas dos bantos para um segundo plano. Tanto
quanto ou mais que o povo-de-santo das nações de língua yorubá, os

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intelectuais ligados organicamente aos terreiros nagôs criaram o que se
convencionou chamar de nagocentrismo. Os bantos foram desvalorizados
mesmo entre seus irmãos de Diáspora. Já é tempo de reconhecer a enorme
importância desses povos que, mesmo inferiorizados e desprestigiados,
souberam responder criativamente e afortunadamente, aos desafios
civilizatórios que se lhe apresentaram. Ninguém mais que os bantos
souberam viver os princípios que assentam a cosmovisão africana, a saber:
integração, diversidade e ancestralidade.

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Integração
Na cosmovisão africana as coisas não apresentam-se segregadas.
Não há um isolamento dos elementos, necessitando de especialistas para
conhecer suas características, independente do contexto em que esses
elementos se encontram. Na visão de mundo africana, tudo está em tudo,
isto é, tudo se complementa. As coisas são classificadas por categorias, por
funções. Elas sempre estão interligadas em um todo. O sistema é, todo ele,
operacional.
A integração possibilita a conjugação das diferenças. A integração
na visão africana supõe um todo orgânico que contempla as diferenças. Não
há diferenças que possibilitam a desagregação do conjunto, do todo
orgânico. O que há são possibilidades diferenciadas de arranjos sociais,
culturais, etc., sempre flexíveis, sempre passíveis de novos arranjos... O que
há são várias facetas que compõe uma mesma rostidade (chamaria também
de identidade), um mesmo organismo. Vale o princípio da inclusão!
Consideraremos muito sumariamente o caso de integração no que
se refere à doença e à saúde, e no que diz respeito ao meio ambiente. Basta
dizer que quanto às questões relacionadas com a vida e com a morte, com a
saúde e com a doença, a visão do povo-de-santo é mais sistêmica e
harmônica do que a visão ocidental. Os fenômenos de doença/saúde não
estão dissociados de todo um contexto social. As doenças não são apenas
anomia do corpo, mas são também desequilíbrios da realidade social,
política, econômica e cultural. A relação com as divindades responsáveis
pelo manejo de ervas que curam (principalmente Obaluaiê ou Omolu)
mostram bem essa relação: se você reverencia a divindade, mostrando
respeito e temor, você é agraciado por seus poderes; mas se você mostra
desprezo e descaso para este orixá, sofrerá as agruras do infortúnio advindos
da ira do orixá. Note que o plano da doença/saúde não está reificado apenas
nas relações com o próprio corpo, mas extrapola este plano e interage com
os outros constitutivos de seu horizonte cultural.
A questão do meio ambiente, da ecologia, não é um problema que
está ligado apenas ao ambiente natural. O problema ecológico atinge todas
as esferas da vida humana e de seu mundo. Com efeito há autores que falam
em uma ecologia ambiental, mental e social69. Ou seja, a esfera da ecologia
toca transversalmente todas as outras esferas do planeta, e como elas estão
interligadas, seus efeitos se comunicam, seja positiva ou negativamente.

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É importante ressaltar que quando falamos em integração não é
possível falar de uma espécie de elevação de um elemento como o mais
importante. Não é porque Ogun abre o xirê que ele é o mais importante, isto
é, não é porque Ogun está relacionado com as atividades da guerra, da
metalurgia, da tecnologia, que esses elementos são os mais importantes.
Tudo é importante na medida em que tudo está interligado com o todo. O
conjunto é importante e não o particular. O organismo é importante, e não a
parte. Melhor dizendo, a parte é importante justamente e na medida em que
ela é integrante do todo.

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Diversidade
A integração supõe uma abertura, uma flexibilidade, uma vez que seu
modo operacional é dinâmico e não estático. O sistema integrado das
religiões de matrizes africanas está o tempo todo se remodelando, o que
evidencia seu caráter flexível e diversificado.
A diversidade é, com efeito, aquela que permite que a cosmovisão
africana tenha as características de ser pluriforme, polifônica e aberta. A
diversidade é o grande conceito que reúne a pluralidade das representações.
Neste sentido é interessante perceber como no candomblé há espaço para
todos: homens, mulheres – e as mulheres ocupam papéis de protagonistas em
sua estrutura religiosa -, homossexuais, brancos, negros, enfim, todas as
raças, ricos, pobres etc. No terreiro de candomblé há espaço para todo
mundo, não importando sua posição social, racial, econômica, política, etc. É
evidente, porém, que toda essa diversidade encontra lugar no candomblé
porque sua estrutura orgânica contempla todos esses aspectos, mas não se
reduz a eles, pois o candomblé tem sua própria maneira de organização. O
candomblé inclui a diferença e promove a diversidade dentro da lógica do
lugar próprio – por isso mantém sua identidade e seus traços diacríticos. A
aceitação da diferença não transforma o candomblé num espaço anárquico,
mas num espaço de inclusão.
É a diversidade que permite uma ética da diferença, um sistema
integrado. Ela instaura uma organização diferenciada que contempla uma
constante mutação. Essa mutação, porém, não é desterritorializada. Ela está
baseada em princípios bem estruturados, como o da ancestralidade por
exemplo.
Em um sistema integrado não é a homogeneidade que dá a tônica
da organização social, mas a heterogeneidade. Percebe-se, assim, que o
distinto é contemplado; o diferente é desejado e não apenas aceito. A
diversidade é mãe da flexibilidade. É neste sentido que podemos dizer que a
diversidade possui uma grande capacidade de adaptação e de re-significação,
características que qualquer estudioso das religiões de matrizes africanas
identifica facilmente.

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Tradição (Ancestralidade)
De nada adiantaria falar em integração, em identidade se não
falássemos em ancestralidade. A ancestralidade é o que estrutura a visão de
mundo presente nas religiões de matrizes africanas. Sem o princípio de
senioridade a organização social das comunidades de terreiro estariam
esfaceladas. Sem a ancestralidade não haveria tradição. Sem a tradição não
haveria identidade.
A preocupação com a identidade e a legitimidade é uma das
características mais notórias das religiões de matrizes africanas, não apenas
para caracterizar o povo-de-santo, mas sobretudo para manter a originalidade
da tradição. É aqui que a autenticidade exige a tradição.
Essa autenticidade, no entanto, não significa a reificação da
essência. Esta originalidade não significa unidade fechada de interpretação.
Esta identidade não é uma totalidade arbitrária. A tradição africana
atualizada pelos afrodescendentes é autêntica na medida em que fiel à sua
forma cultural, original na medida em advém da experiência (ética) coletiva
dos africanos. A tradição cria identidades pois ela é o manancial dos valores
civilizatórios e dos princípios éticos (filosóficos) que singularizam a história
dos afrodescendentes. A legitimidade da tradição africana dá-se, exatamente,
por ela não ser uma memória fossilizada no passado, mas uma experiência
atualizada no calor das lutas dos afrodescendentes.
A tradição africana tem sua própria lógica. Tem sua forma cultural
que lhe dá desenho e contorno. Com efeito, a tradição não existe sem a
ancestralidade. Note-se o caráter integrativo desta cadeia de raciocínio. A
ancestralidade, por sua vez, não é a afirmação do eu, egóico, narcisista; na
ancestralidade o que conta é a história de um povo, o arsenal simbólico
adquirido por este durante os percursos do tempo. Quem conta a história do
eu é sua tradição. A história do eu está vinculada à história de seus
ancestrais. O eu faz parte de um todo e é importante justamente na medida
em que compõe esse todo, e não o contrário. É por isso que podemos dizer
que sem ancestralidade não há identidade. A identidade é encontrada na
tradição e não no olhar narcisista.
A construção da tradição é coletiva. Não importa se esta
construção é cultural, isto é, que ela sofre modificações ao longo da história.
O que importa é que ela é capaz de identificar os elementos que congregam e
caracterizam uma certa visão de mundo. A cosmovisão africana é resultado

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da construção da ancestralidade pelo povo que construiu as matrizes das
religiões africanas.
A cosmovisão de matriz africana é capaz de engendrar modelos
alternativos ao CMI na medida em que concebe sob a luz de sua própria
cultura as relações entre os seres. Já a filosofia banto sustentava que a força
vital é a energia que movimenta a realidade. Aumentar a força vital é saúde,
prosperidade, fertilidade, ética etc. Diminuir a força vital é doença,
corrupção, miséria, guerra. Sendo energia a matéria que compõe as artérias
do real, as interações entre os seres no tecido social são mais dinâmicas e
baseadas em relações de troca, dádiva e reciprocidade. Historicamente
vivenciada na trajetória civilizatória dos afrodescendentes a cosmovisão
africana é portadora/reveladora de uma experiência ética concretamente
experimentada que pode ser, destarte, universalizada enquanto contraponto
ao sistema de exclusão capitalista.
Geradora de princípios como o da diversidade e da inclusão, imbuída de
concepções singulares sobre o tempo, o universo, a palavra, a política
(socialização) e a economia (produção), a cosmovisão africana encontra no
princípio da ancestralidade sua concatenação interna e a força de sua
expressão externa, manifesta na tradição dos afrodescendentes. A
atualização de sua forma cultural através das diversas manifestações de
matriz africana no Brasil, por sua vez, permite-nos entrar no debate sob a
identidade nacional e sobre a globalização, munindo-nos de uma experiência
civilizatória que colocando-se a-si-mesma-como-valiosa é capaz de dialogar
crítica e criativamente na perspectiva de colocar em crise o sistema de
acumulação do capital (capitalismo) e apontar caminhos alternativos
baseados em realizações efetivas da população afrodescendente no Brasil e
no mundo.

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III. CULTURA BRASILEIRA E AFRODESCENDÊNCIA:
Sobre o Jogo das Identidades e a Política da
Africanidade no Brasil

Não há prática humana que não seja precedida por um modo de


compreensão da realidade. Toda práxis é precedida por uma determinada
visão de mundo. A visão de mundo que temos informa nossa prática política,
econômica, cultural e social. A história das civilizações ocidentais
consolidaram o paradigma da representação, dando ênfase à racionalidade,
valorizando a análise e a síntese para a compreensão da realidade, banindo
para as margens as dimensões afetivas, perceptivas e energéticas. A Filosofia
da Libertação, que surgiu nos anos 60 no bojo da filosofia latino-americana,
se desenvolveu enquanto reflexão teórica nos anos 70 e 80. Refletindo
filosoficamente os problemas da América Latina (AL), esteve, desde o seu
nascedouro, comprometida com as lutas populares, não apenas criticando a
realidade de opressão, mas propondo caminhos de libertação. Como
filosofia, não toma para si o papel do político, mas pensa a política através
da categoria: libertação. Como movimento organizado de intelectuais,
defendeu suas teses ao longo da história da AL, ampliando sua reflexão para
o território do humano e não apenas do latino-americano. É filosofia, por
isso pensa o universal. Mas esse universal emerge desde um solo, um lugar:
a AL. É desde os latino-americanos que pensamos uma geo-política
(DUSSEL,1974,1977,1993,2000; ROIG,1993) e uma geo-cultura
(KUSCH,1953,1975, 1978; ZEA, 1953, 1970, 1971, 1974). É desde os
movimentos sociais organizados em nosso solo e em nossa cultura, que
pretendemos fazer uma reflexão filosófica comprometida com a ética a
respeito dos movimentos sociais populares no Brasil. É desde o Movimento
Negro e as comunidades de candomblé que postulamos uma cosmovisão
africana e seu modelo sócio-político-cultural.

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Movimentos Sociais Populares, Práxis e Subjetividade70
Os Movimentos Sociais Populares – MSPs- também se utilizam do
modo predominante de análise do real, reificando a racionalidade
instrumental e técnica, não dando margem, na compreensão da realidade,
para a dimensão estética e subjetiva que permeia qualquer ação humana. Por
isso postulamos que uma abordagem da história deve levar em conta os
aspectos subjetivos-estéticos, superar a lógica da significação, ultrapassar o
paradigma da representação e adentrar na lógica do sentido71.
A categoria práxis constitui-se no cerne da filosofia da história. Ao
abordarmos os problemas a ela referidos, precisamos nos questionar em que
medida nossos conceitos são realmente satisfatórios para compreender a
complexidade histórica e mediar uma efetiva ação transformadora. Se
analisando a história nos deparamos com a reflexão sobre estruturas
duradouras por largos períodos e conjunturas em constante processo de
modificação, cabe entretanto destacar que as diversas dimensões de
subjetividade envolvidas nestes processos não se reduzem àquilo que
objetivamente podemos avaliar. Mais que isso, nos complexos processos
contemporâneos em que intervenções semióticas sobre o inconsciente
produzem tendências históricas - não apenas modas ou movimentos de
consumos, mas adesões políticas e construções de hegemonias ativas - cabe
investigar tais elementos subjetivos dificilmente captáveis pelas
metodologias históricas desenvolvidas até recentemente. Perceber como as
subjetividades são modelizadas em suas dinâmicas e como as singularidades
podem emergir é reconstruir a categoria práxis para que seja potente o
bastante a fim de elucidar os complexos movimentos históricos
contemporâneos no Brasil e no mundo, sobretudo aqueles relacionados à
experiência dos africanos e seus descendentes.
Partimos do pressuposto que a práxis integra dialeticamente a teoria e a
prática em uma ação efetivadora, portanto histórica, que possibilita a
realização de fins premeditados. Contudo, a práxis integra muito mais que
isso. Envolve também dimensões de subjetividade como o desejo, paixões,
angústias e sentimentos inerentes às ações humanas. Compreendê-la
significa também desvendar os inúmeros elementos agenciadores de tais
intensidades que, por sua vez, promovem a elaboração de teorias, conjuntos
de representações interpretativas e ações históricas. O modo de pensar a
prática não pode desconsiderar tais vetores sobre o risco de falsear sua

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explicitação, centrando-se em aspectos parciais. Despreocupados com a
elaboração de leis que desvendem regularidades substantivas nos processos
históricos, interessa-nos compreender como as tendências históricas vão se
constituindo em um emaranhado de agenciamentos mediados por semióticas
que passam a ser modelizadas, de modo cada vez mais intenso pelos códigos
do capital - que modeliza inclusive grande parte dos códigos religiosos,
éticos, estéticos e afetivos. Interessa-nos, pois, entender como intensidades
subjetivas são capturadas sob códigos variados confluindo na emergência de
complexos processos históricos que possuem inúmeros sentidos somente
compreensíveis sob uma metodologia capaz de identificar conjuntos de
transversalidades que articulam intensidades subjetivas em movimentos
coletivos.
A práxis que visa realizar a cidadania somente pode resultar de um
movimento dinâmico que possa compreender e transformar os códigos e os
princípios da sociedade capitalista em que se produz mercadorias - objetos
sígnicos: um produto e sua marca, um político e sua imagem -, e
subjetividades produtoras e consumidoras de mercadorias. Com efeito a
sociedade capitalista obedece a um dinâmico movimento de recuperação dos
signos subversivos a ela, o que a reafirma em sua posição dominante (e
opressora) diante da realidade vigente. Tal recuperação que desterritorializa
os signos, os esvazia de seu conteúdo subversivo, capturando as intensidades
a eles vinculados no jogo do acúmulo do capital72. Ora, nosso modo de
teorizar a sociedade no sentido do exercício de compreensão dos seus
mecanismos não comporta amplitude e flexibilidade o suficiente para
detectar essas recapturas de tendências históricas sob os códigos capitalistas,
fugindo de nossa análise as dimensões do desejo e da sedução73, uma vez que
são privilegiados, em nossos métodos, o uso analítico da razão que não a
percebe como mediação de necessidades, paixões e desejos. Para
desvencilharmo-nos dessa armadilha propomos que o modo de pensar a
teoria e a prática seja transversal ou composto, ou seja, que leve em conta
aspectos afetivos da dimensão emocional da subjetividade e os aspectos
racionais dessa mesma subjetividade, abordando-os de maneira teórico-
analítica, mas também de maneira estético-intuitiva, para que nossos signos
interpretantes não percam a complexidade do real e não caiam em
configurações binárias.
A teoria e a prática capitalista codifica e sobrecodifica os signos dando-
lhes sentidos alheios a eles próprios visando o seu objetivo de movimento,

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expansão e acúmulo de capital. Outras vezes recupera teorias sem alterar-
lhes os códigos, mantendo-as como um subsistema cultural de suporte.
Cabe-nos usar uma metodologia que dê conta de efetivar o conceito de
práxis - movimento dialético que promove uma prática refletida e uma
reflexão sobre a prática - desmascarando as armadilhas capitalistas a partir
da compreensão complexa das modelizações semióticas que efetua; por
outra via, isso só é possível se nosso movimento teórico tiver flexibilidade e
dinâmica suficientes para desvendar essas recapturas e subverter tal
apropriação dos signos realizada como mediação para a expansão e
concentração de capital.
Linguagem e cultura são duas dimensões de uma mesma condição de
pensamento e ação. A mediação sígnica da construção das identidades
torna-se instrumento de produção de subjetividade, de territorialização de
intensidades. Na era dos meios de comunicação de massa a subjetividade é
perpassada por jogos semióticos que resultam em balizamentos do pensar, do
agir econômico, político e interpessoal. Interferindo nos domínios mais
íntimos da vida privada os Meios de Comunicação Social modulam
vontades, desejos, angustias e anseios, mobilizando diversas formas de
práxis e construindo hegemonias. Compreender como os signos são
capturados nos diversos imaginários, como operam inversões entre a fantasia
e o efetivo, como os discursos e práticas subversivas são modelizados com a
finalidade de manter estruturas excludentes é um desafio urgente colocado à
filosofia da práxis. Como produzir códigos subversivos que não permitam
capturas semióticas sob a modelização das linguagens dominantes? Uma vez
que todo signo é polissêmico, será possível tal produção sígnica
incapturável? Haverá a possibilidade real de uma cosmovisão africana que se
oponha ao CMI e não seja ressignificada por ele?
O capitalismo amplia seus domínios configurando-se não apenas como
um sistema de produção de mercadorias, mas também de subjetividades. As
máquinas de produção capitalista agenciam o desejo das pessoas em função
do acúmulo de capital. Em outras palavras, o sistema produz ou cria uma
realidade virtual que, mobilizando os desejos e anseios dos indivíduos, os
predispõe ao consumo, à reprodução do capital, assumindo as regras que
apontam para a realização de sua humanidade. Tal processo se dá em
detrimento, contudo, da realidade existente na qual os indivíduos estão
inseridos e na qual sofrem a violência do sistema, a exploração e a
expropriação de seu domínio cultural.

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As consequências desse processo são a mistificação da realidade e o
aprisionamento do desejo dos indivíduos em função de algo que não os
satisfaz e não os realiza.
Tais processos de subjetivação visam reforçar as estruturas sociais
capitalistas. Os indivíduos tornam-se mais facilmente controlados, são
domesticados por tais estruturas e passam a reproduzir as relações sociais
capitalistas que, por sua vez, viabilizam a reprodução das forças produtivas
capitalistas.

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Ética dos Movimentos Sociais Populares
A interação com os signos é simultaneamente estética e cognitiva. A
dimensão estética envolve os perceptos - sem os quais seria impossível haver
agenciamentos - mas também os afetos - aquilo que é provocado em nossa
subjetividade passional, desejante, etc. sem os quais não haveria mobilização
do sujeito. Deste processo resulta um signo ou representação cognitiva que
evoca a identidade do objeto e do processo a ele associados.
A dimensão afetiva da práxis é, em geral, desconsiderada pelas análises
políticas. Contudo, desejos e outras intensidades acabam politicamente
aflorando em atitudes que desconsideram os interesses coletivos ao visar
apenas objetivos particulares ou que arrojam pessoas na defesa de objetivos
coletivos em detrimento de interesses particulares.
O pensamento de Leopoldo Sedhar Senghor, tributário da cosmovisão
africana, indica novos conceitos filosóficos para pensar a práxis não apenas
dos afrodescendentes, mas de todos os ativistas dos MSPs. Fundamentando
sua teoria do conhecimento na cultura africana, afirma SENGHOR (apud
AZOMBO MENDA-KOSSO, 1978, p.30):
Eis então o negro-africano, o qual simpatiza e se identifica, o qual morre a si para
renascer no outro. Ele não assimila. Ele se assimila. Ele vive com o outro em
simbiose, ele co-nhece o outro... Sujeito e objeto são, aqui, dialeticamente
confrontados no ato mesmo do conhecimento, que é ato de amor. “Eu penso,
então eu existo”, escrevia Descartes. A observação já foi feita, pensa-se sempre
alguma coisa. O Negro-Africano poderia dizer: “Eu sinto o Outro, eu danço o
Outro, então eu sou”. Ora, dançar é criar, sobretudo quando a dança é dança do
amor. É este, em todo o caso, o melhor modo de conhecimento.

De acordo com SENGHOR (apud AZOMBO MENDA-KOSSO, 1978,


p. 29-42), consideramos que o afetivo é uma característica fundamental do
ser humano e que, desenvolvida adequadamente, possibilita ampliar e
qualificar o resultado dos processos cognitivos. A ideia de assimilar-se ao
outro em um sim-pático movimento de mudança de ambos resulta em uma
relação que produz uma unidade comum ao mesmo tempo que resguarda a
singularidade de cada qual no exercício de sua liberdade. Este
ultrapassamento de uma identidade singular que se modifica, movida por
uma intensidade de transcendência que encontra no outro humano a
possibilidade de seu renascimento, poderia ser expresso como um desejo de
comunhão. Pensamos que o Desejo de Comunhão pulsa vivamente no seio
do ser humano, e que este desejo é um fator potencialmente subversivo,

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agregador, que promove a interação da subjetividade de pessoas que se
agregam em coletivos. Este movimento afetivo - de comunhão com o outro -
é capaz de gerar uma práxis comprometida com o coletivo e com o pessoal,
na medida em que a comunhão é sempre uma relação singular e plural ao
mesmo tempo. O Desejo de Comunhão, efetivando-se pelo processo de amar
(e de conhecer pelo amor) agenciaria uma práxis ética que leva ao encontro
do outro. É um “outro modo que ser”74. É um modo de africanizar-se. É um
modelo de vida forjado pela experiência africana.
Toda práxis possui um telos, uma finalidade. Tanto na vida privada
quanto na pública, a realização histórica de qualquer finalidade envolve
exercícios de poder. Por trás de toda práxis há algum interesse. As
finalidades que orientam as condutas podem ser aquelas socialmente
dominantes, como podem brotar de modo singular da criatividade humana,
sempre relativamente determinada pelos meios e condições que a tornam
viável. A política da africanidade visa justamente exercer o poder para a
promoção de um sistema de comunhão econômica e inclusão social, baseado
na lógica própria de cada cultura. A finalidade da práxis dos Movimentos
Negros e das comunidades de terreiro é exatamente a realização do bem
viver de todos e de cada um. Para realizar tal política é preciso ser
consequente quanto à práxis que efetuamos. Cumpre, pois, distinguir uma
práxis alienada de uma práxis ética.
A práxis alienada pode configurar-se como práxis de dominação. Deve-
se observar, entretanto, que a palavra dominação sugere coerção, no entanto,
a sedução dos desejos das pessoas, que por sua vez mobilizam suas
práticas, também é um jogo de poder utilizável na práxis de dominação.
Neste caso, o problema é a direção que a sedução lhes dá, pois as ações dos
indivíduos podem ser direcionadas às práticas que os mantenham cativos das
relações opressoras e alienantes, ou por outro lado, podem orientar a prática
para ações éticas no encontro subversivo das subjetividades maduras, que
desenvolveram adequadamente suas dimensões analíticas e afetivas,
cognitivas e estéticas. Esse é precisamente o caso da práxis ética.
Poderíamos chamar de singularizante a práxis ética, já que ela é
condensadora das subjetividades. Ela diferencia-se da práxis alienada na sua
raiz, ou melhor, no que tem de novo na relação com o outro, em quem eu
posso me reconhecer humano, convidado ao infinito ultrapassamento, ao co-
nhecimento como afirma Senghor.

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Ainda que abortados pelo poder de massificação da mídia, esses desejos
transcendentes e singularizantes de ultrapassamento, produzidos
culturalmente, estão constantemente presentes. Talvez a própria negação do
desejo ou do movimento em busca de sua contínua satisfação na condição do
“ser aqui” promova essa mistificação atual advinda da privação da própria
realização da condição humana minimamente cidadã. Por outro lado, o
sistema se apropria também disso, modelizando tal desejo, revertendo em
seu benefício tais intensidades.
O desejo de ser infinitamente outro, de transcendência, de
ultrapassamento, que é agenciado em inúmeras linguagens modelizantes -
religiosas, políticas, econômicas, etc. -, sobrevive, entretanto, a toda
modelização, podendo ser reapropriado em outros jogos. A questão parece
ser como singularizá-lo e ressignificá-lo, libertando-o desses jogos de
linguagens que o mediatizam em processos de poder dominantes, para
agenciar movimentos coletivos de subversão que redundam em modelos
sociais de inclusão e justiça social, como vislumbramos nos Impérios
Africanos (Mali, Gana e Songai) ou na política da africanidade no Brasil.
Tanto as finalidades desejadas que, invariavelmente, se revestem de
signos, como as intensidades subjetivas que são, ambas, produzidas
coletivamente, podem ser subjetivadas singularmente. Distinguir entre
modos éticos e alienantes implica não apenas compreender se o outro é
tomado como mediação do processo que lhe é imposto pelo mesmo, mas
entender como os processos de sedução mobilizam as pessoas a escolherem
“livremente” finalidades que realizam seus interesses particulares e daqueles
que a mobilizam, mas que simultaneamente excluem aos demais do
exercício da cidadania, exclusão essa que não percebem mobilizados nos
jogos de sedução.

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Subjetividade Subversiva e Alteridade
Alguns agenciamentos provocam subjetivações, desmonte de códigos
éticos e políticos dominantes. Não sendo recapturados nas lógicas de
dominação, podem molecularizar grupos agregadores de mudança, de
afirmação de diferenças. Tais movimentos podem avançar em perspectivas
éticas ou alienantes. Quando mobilizados por um desejo alterativo, a
irrupção subversiva tende a produzir utopias coletivas não apenas
singularizantes, mas também abertas e desejosas de se transformarem a
partir de outras subjetividades que se molecularizem. Quando a identidade
do grupo se fecha, passando a laminar ou territorializar a subjetividade dos
novos participantes que devem assumir os códigos anteriores de maneira
inquestionável, então ele vai perdendo o caráter subversivo, passando a ser
conservador.
Assim, o diferente que renega o desejo alterativo não pode fecundar um
movimento molecular; por outro lado, a diferença que não nega o desejo
alterativo, fecunda o movimento e a práxis libertadora. Já o grupo que
subverte o código dominante, mas estabelece uma nova identidade
territorializadora, torna-se conservador e busca negar o diferente afirmando a
identidade alienante do coletivo.
Se a subversão, portanto, parte do desejo alterativo - desejante do outro
em sua diferença - é preciso avançar em direção ao desejo de comunhão -
afirmação desejante da identificação (sem laminação) com o outro em um
movimento de ultrapassamento molecular no “ser aqui”. Desejo de
comunhão como sentido das revoluções moleculares e ponte transversal para
a efetivação cotidiana da revolução molar.
A práxis resulta de um movimento cultural. Nenhuma linguagem ou
objetivo escapam de determinações históricas. Determinação não implica
fim inexorável, mas qualidades essenciais que o contexto impregna na ação.
A subjetividade é um produto tecido no seio das relações de poder em todas
as esferas de convivência. Em cada ação entrelaçam-se o pessoal e o
coletivo. No Capitalismo o movimento de laminação de subjetividade é cada
vez maior. Os espaços são quase todos recuperados sob a territorialidade
dominante dos valores de troca.
De outra parte, os movimentos coletivos que visam promover
transformações na ordem vigente em cada situação compõem um processo
envolvente de aglutinação de subjetividades particulares que podem resultar

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em identidades coletivas duradouras como desagregar-se atingidos os
objetivos privados.
Para compreender a práxis de um movimento social ou de um grupo
étnico é necessário compreender como o coletivo recria a subjetividade
pessoal, singularizando-a ou laminando-a, isto é, possibilitando a vazão de
fluxos de desejo desterritorializados sob as linguagens até então dominantes
que são agora modelizadas por aquele grupo, possibilitando revoluções
moleculares ou criando novos códigos que se impõem sobre o coletivo,
promovendo novos processos de alienação militante na reprodução de
normas e códigos que subvertem a ordem vigente, mas constituem uma
outra ordem similarmente laminadora.
Concordes com o pensamento africano de SENGHOR (apud AZOMBO
MENDA-KOSSO, 1978, p.32), pensamos que é preciso ir em direção ao
outro. Ir ao seu encontro, mas não apenas desejando-lhe a diferença, mas
desejando-lhe a comunhão, um movimento de assimilação coletiva, de
renovação de subjetividades, que mantém a liberdade e a singularidade de
todos. Assim, eu transformo a mim mesmo para renascer no outro. Deixo de
ser um ser sozinho (individual) para ser um ser comunitário (social). Essa
mudança do eu para nascer como outro afirma a minha identidade e não a
dissolve, posto que é a subjetividade madura que pode transformar-se de
uma flor para um fruto. Em outras palavras, só quando há vazão para fluir a
subjetividade é que ela aflora em sua vivacidade. Tal movimento,
singularizador sem dúvida, não cabe em si mesmo, pois o homem maduro é
um ser social e não egocêntrico. O homem maduro deseja o encontro com o
outro em um movimento de renascimento. Aprender é um ato de amor,
porque conhecer é um ato amoroso. Amor é o ato do encontro. Uma das
formas de amor é a alegria da comunhão, é o sentimento da participação no
coletivo, de ser amado. É o sentido da própria vida, fonte do movimento do
eu ao outro, do indivíduo ao social, do particular ao coletivo.
Contudo, os indivíduos se relacionam com o coletivo também por
inúmeros interesses. Isto porque sobreviver é viver no mundo. Viver no
mundo é estabelecer inúmeras relações por inúmeros interesses, que são
mediações necessárias a esta própria sobrevivência. O sentido fundamental
da vida para o homem maduro, entretanto, é amar e ser amado. Assim, o
amor é a necessidade fundamental, o desejo a partir do qual o homem
maduro reconstrói sua utopia. O entrelaçamento do indivíduo com o
coletivo, na perspectiva da comunhão utópica e transversalmente real, tira a

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ética do domínio do privado e a política do domínio coletivo, afirmando uma
ética na política e uma política na vida cotidiana (micropolítica).
Como a práxis é mediada por signos de libertação e como eles também
são modelizados pelas linguagens dominantes, os participantes dos
movimentos podem ser afetados por essas comunicações; há, aqui, uma
disputa simbólica não apenas de destruição de identidades, mas de captura
de devires agenciados a novas tendências históricas.
O sistema sempre captura os signos que são subversivos, destruindo
seus significados moleculares e sobrecodificando-os (ou modelizando-os)
para a interação de sua própria rede de significações com o objetivo de
direcionar, via sedução, os desejos dos indivíduos na direção que lhes
convêm.
É preciso, portanto, que possamos pensar se é possível e como produzir
signos não facilmente capturáveis pelo sistema capitalista. Não se trata
apenas de produzir novos signos - posto que eles podem ser
sobrecodificados pelo sistema - e sim de lhes imprimir uma dinâmica capaz
de livrar-se da captura de si mesmo, e ainda, subverter os próprios signos
dominantes. Mas o que não pode ser capturável se os signos são
polissêmicos?
A lógica capitalista é uma lógica acumulativa que visa a expansão de
seus próprios limites (uma lógica egocêntrica), expandindo seu domínio
coercitivo-sedutor sobre os indivíduos das sociedades. Contra essa lógica
egocêntrica, individualista, propomos uma lógica transversal ou composta.
Trata-se de uma lógica que supõe a subjetividade madura, o desejo de
comunhão, que funda uma outra sociabilidade (não egocêntrica). Não
propomos esta outra sociabilidade apenas como proposta escatológica;
primamos por experiências histórias – como a dos afrodescendentes – que
foram capazes de gerir, desde o princípio da inclusão e da diversidade,
sistemas sociais dinamizados pelo desejo de comunhão e pelo desejo
alterativo.
Outrossim, pensamos que não é possível capturar o infinito desejo de
ultrapassamento humano - posto que é infinito - e sendo assim, o desejo de
comunhão também não pode ser recapturável enquanto se recria
continuamente. Noutras palavras, o que afirmamos é que as intensidades de
transcendência - entendida aqui como mobilizações da subjetividade madura
que se transforma a si mesma para ir ao encontro do outro - não são
capturáveis posto que são singulares a cada ser humano (ainda que sejam

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uma necessidade cultural), embora possam ser sobrecodificadas. Ocorre,
porém, que a subjetividade madura, ou a maturidade subjetivada em
movimentos moleculares cotidianos não se deixa capturar pelo egocentrismo
dos valores e artimanhas da semiótica capitalista.
Sob a égide de um novo paradigma: o ético-estético, vislumbra-se que
toda ação tem um móbile, e que este móbile tem como agente um desejo. A
relação que temos com a realidade é simultaneamente estética e cognitiva, o
que implica em dizer que os perceptos, os afectos e nosso campo energético
deve ser igualmente contemplados com o do cognitivo na análise do real.
Dessa forma, indicamos que o móbile da práxis dos agentes dos movimentos
sociais populares e da experiência dos afrodescendentes é o Desejo
Alterativo e o Desejo de Ultrapassamento. Desejos que articulados pela
lógica da diferença, não apenas respeita a diferença do outro, mas a deseja.
O critério passa a ser a inclusão e não a exclusão. A solidariedade e não o
egocentrismo.
Essa fenomenologia dos desejos nos dá a possibilidades de lidar com as
semióticas do capital de maneira a não reificar seus signos de dominância e,
pelo contrário, desvendar a armadilha dos sistemas únicos de referência, que
se apresentam como o equivalente geral para qualquer significação; de outro
lado, pode-se demonstrar que existem vários regimes significantes, e que
aqueles que estão ligados à práxis dos movimentos sociais populares estão
impregnados dos signos que levam a ações de solidariedade, de comunhão e
ultrapassamento, no sentido da realização da cidadania de cada um e de
todos nós.
A práxis dos afrodescendentes, envolvidos em movimentos negros,
encantados pelo fascínio dos candomblés, acaba por produzir subjetividades
autoreferentes porque celebram sua identidade a partir da cosmovisão
africana ressignificada no Brasil. Essa identidade celebrada é ao mesmo
tempo uma arma ideológica na disputa pelo poder, e uma disputa política
pela universalização de seus valores civilizatórios. Os valores civilizatórios
negro-africanos foram gestados no ventre da forma cultural africana. A
forma cultural africana é já uma ética. A ética é uma atitude e, por isso
mesmo, relê a história dos afrosdescendentes sob a ótica de sua cultura, por
nós definida e defendida como uma cultura da ética.
Os valores gerados por essa cultura foram o da interação, diversidade e
ancestralidade. Os três princípios, extraídos da experiência histórica dos três
Grandes Impérios Africanos e das comunidades-de-terreiro, revelam, em

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conjunto, a face de Deus. Olodumare, segundo a tradição africana, é então a
existência na diversidade, a diversidade na integração, a diversidade e a
integração regidas sob a lógica da ancestralidade. Ele é a alteridade infinita,
posto que diversidade sem fim. Alteridade suprema, visto que nunca
totalmente revelada. Ele não é uma abstração, mas um fundamento. No
candomblé o fundamento não é conceitual; é prático. O fundamento não é
uma categoria, é vida. Vida é movimento. Vento, trovão, raios, folha, pedras,
metal e água são o corpo dos orixás. A natureza é os orixás. Os orixás são a
natureza. Eles garantem o princípio da integração porque são integrados. É a
partir da experiência dos orixás que os afrodescendentes revigoram o
princípio da integração, criando uma cultura de síntese exatamente porque
sua cosmovisão informa que a existência só é possível se a diversidade não
for totalidades relativas, mas unidades integradas. A unidade não é uma
essência. A essência, por assim dizer, é a Força Vital que, por ser energia,
jamais é igual a si mesma – gerando, por isso mesmo, a diversidade. O
princípio, por ser princípio, permanece: gerar e manter a vida. As formas
pelas quais a vida será promovida e gestada dependerá do contexto de cada
grupo. Cultura não é um conceito. É uma experiência. A experiência dos
afrodescendentes tem gerado subjetividades éticas e mobilizado desejos
alterativos e de comunhão75.
A integração permite a unidade do cosmos – cosmovisão. A diversidade
permite a expressão das diferenças – multiplicação. A ancestralidade permite
a reprodução da experiência – tradição. Os princípios da experiência africana
alteram a experiência no mundo. Comover é a finalidade. Comoção é o
verbo da transformação em ação. Comover é verbo que se conjuga em
comunhão. A natureza nos comove, a relação com a alteridade nos co-move,
move-nos a um compromisso ético com a vida. A ética é a pragmática
africana. A cosmovisão é a cosmogonia, comover é uma ontologia e
ancestralidade a cosmologia. A cosmogonia não narra a origem dos deuses,
mas a unidade dos princípios do mundo. A comoção é uma ontologia porque
a finalidade da ética é a mudança pragmática. A comoção é uma práxis. A
ancestralidade é cosmologia porque é a lógica que engendra a práxis ética
dentro da unidade dos cosmos. A cosmovisão é um princípio filosófico
porque fundamenta o sentido; comover é um princípio prático porque a ética
é um acontecimento da experiência; a ancestralidade é o princípio lógico,
porque engendra a unidade e a ética, porque dá sentido à diversidade e à
experiência.

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A identidade negra foi assim colorida e repintada nas cores da tradição
afrobrasileira. Identidade que se afirma como projeto político e como
construção cultural. Identidade que é ao mesmo tempo resgate e criação.
Ipseidade e alteridade. A contínua construção da identidade afrodescendente
é uma necessidade da experiência da forma cultural afro-brasileira. Mas, a
identidade, é um terreno pantanoso e cheio de armadilhas. A mestiçagem, foi
uma das artimanhas de dissimulação da identidade negra no Brasil.

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O Mito da Mestiçagem
É preciso pensar a identidade brasileira desde os atores envolvidos
na complexa trama do tecido identitário brasileiro. Pensar a identidade
nacional é pensar o híbrido. Não há raças puras, como não há essência
cultural. Pensar, desde a práxis dos movimentos populares, o cadinho de
etnias que teceram o que chamamos de identidade nacional é um desafio
enfrentado por poucos intelectuais, e que, modestamente, pretendemos
efetivar. Os movimentos sociais populares, mormente o movimento negro,
tem se esmerado para compreender a trama política implícita no discurso
nacional sobre a identidade brasileira. Como vimos insistindo, não é
suficiente fazer análises racionais da situação brasileira. Para muito além, é
preciso considerar os aspectos estéticos e políticos. Para se entender a
identidade nacional, é necessário, antes, compreender a dinâmica política na
qual ela se define e se recria continuamente. Os argumentos biológicos sobre
pureza racial há muito foram superados. Comecemos, então, pela ideologia
da mestiçagem, ou, em outros termos, pela realidade sociológica do
hibridismo étnico no Brasil.
A mestiçagem sempre fora um tema tratado ideologicamente. As
variáveis de sua discussão sempre passou pelo crivo da ideologia. É assim
que desde a Antiguidade a mestiçagem é um tema fundamental para
compreender as representações que os homens fazem da alteridade e
determinam, para este outro, representações sociais que favoreçam ou
desfavoreçam a situação social do representado. O jogo de representações
em torno da mestiçagem é só uma das matizes dos jogos de identidade que
foram travados na história humana.
De fato a identidade é uma representação social determinante nas
relações travadas entre os Homens e nas suas relações com o Meio
Ambiente. O conjunto de representações associadas à identidade geralmente
são as mesmas que influenciam no jogo das representações políticas e,
consequentemente, nos móbiles e normatizadores das relações sociais, como
o desejo e a ética/moral.
O desejo como força energética, como libido, como energia não é em si
mesmo ideológico, mas pode ser ideologizado a partir das significações que
a ele são dados nas relações sociais determinadas. Assim o desejo pode ser
mobilizado ideologicamente para a reificação de representações sociais que
favorecem indivíduos ou grupos de indivíduos. Dessa forma pode-se

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entender, por exemplo, tanto a atração incontinente dos europeus brancos
aos negros africanos e, principalmente, a repulsa dos mesmos brancos para
com os mesmos negros. Os desejos que aí estão em voga são mobilizados
não de acordo com a lógica própria do desejo, mas a partir das
representações ideológicas que são construídas a respeito da alteridade.
Da mesma forma a ética – princípios norteadores das ações coletivas –
pode ser significada pelas representações sociais/ideologias. A ética não é
um conjunto de princípios normativos estanques no tempo e no espaço. Pelo
contrário, ela é o próprio tecido das relações travadas entre indivíduos no
tempo e no espaço. Como as relações são sempre mediatizadas por
representações construídas a priori ou a posteriori, a ética de um grupo é a
expressão mais significativa das representações construídas coletivamente.
Logo, não existe ética sem ideologia, como não existe a possibilidade de um
desejo que são seja mediatizado por representações. Esta é a matiz de toda a
discussão a respeito da identidade, da mestiçagem (identidades misturadas) e
da ética e moral delas consequentes.
A mestiçagem, portanto, não é nem um fato biológico, nem uma
vontade divina. Ela é uma representação das identidades historicamente
construídas. Tais identidades foram construídas ao longo do tempo e da
diversidade de espaços atendendo interesses diferentes, nem sempre
coerentes e sempre e sempre parciais. Para se compreender as nuances de tal
jogo de representações sociais é mister entender, não a especificidade de
cada uma das matizes da discussão sobre a mestiçagem, mas a(s)
cosmovisão (ões) que deu-lhe a possibilidade da existência. Trata-se,
portanto, e em primeiro lugar, de traçar as características gerais desta
cosmovisão a fim de não se perder na diversidade infinita das matizes
culturais das identidades raciais.
A cosmovisão que sustenta a ideologia da mestiçagem nega, sempre, a
integridade da alteridade. Ora ela pauta-se pela pureza – o argumento ainda
vigente das purezas étnicas ou raciais -, ora pauta-se pela mistura. Ou a
alteridade está presa à totalidade da representação da pureza, que é a mesma
representação do Uno, do Único, da Essência, ideias que constituem o
núcleo mesmo do conceito de identidade, ou ela queda-se refém da
relatividade das misturas que, muito embora dependam conceitualmente da
representação das essências, escapa delas por considerar a diversidade racial/
étnica predominante no mundo. Bem, a cosmovisão que assegura a ideologia
da mestiçagem está ancorada, fundamentalmente, na visão essencialista da

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vida e do mundo, dando ênfase às ideias de origem e finalidade. A origem
como lugar comum do nascimento de uma raça, ideia, povo, deus, é o lugar
que legitima a pureza como critério máximo de avaliação do real. Origem
como verdade. Verdade como unidade. Unidade como pureza. Quem habita
o território da origem habita o território da verdade, e aqui está o germe da
representações que tornaram-se dominantes em todo o mundo. Ao contrário
do que possa parecer, esta cosmovisão não afirma a alteridade. Ela a nega de
maneira cabal! Existe apenas o Eu. O Outro é apenas a imagem, distorcida
ou não, deste Eu. Alteridade que se reflete no espelho do Eu. Alteridade
como reflexo do Si-Mesmo. Ou seja, o Outro não existe por si mesmo,
apenas como reflexo/corrupção da imagem do realmente existente: o Eu.
A cosmovisão que assegura a existência da identidade e relega a
identidade como mero jogo de imagens do Eu, procura diluir a existência da
alteridade na ideologia da mestiçagem. A mestiçagem é, sem embargo, um
simulacro que articula as imagens da identidade e diluem a alteridade num
jogo complexo de representações incoerentes e sem fundamento em si
mesmas. A alteridade passa a ser algo confuso e diluído num conjunto de
representações sobre pureza e não-pureza que acabam por perder-se no
buraco negro da mestiçagem. É nessa confusão proposital de representações
que as relações de poder se exercem sobre indivíduos ou grupos de
indivíduos que foram capturados pela lógica das representações ideológicas.
Desta forma valorizar-se-á as representações positivas dos grupos
dominantes e prejudicar-se-á as coletividades vítimas dessas representações.
É por isso que, p.e., brancos são valorizados como “raça” superior, enquanto
negros são taxados de “raça” inferior, ou mulheres como seres meramente
emocionais, enquanto os homens possuem a qualidade da racionalização e
assim por diante. Todo racismo e todo machismo estão assentados nessas
representações sobre a alteridade enredada ou nas representações de pureza
ou de mistura. Em ambos os casos ela é negada em sua própria lógica e
existência.
A mestiçagem é, portanto, resultado da negação da alteridade. Ao
“misturar” matizes raciais diferentes e qualificá-las como mestiças, essa
ideologia pauta-se na cosmovisão essencialista do mundo que para
sobreviver precisa da representação da verdade, da unidade, da origem e da
finalidade. Até aqui falamos da origem. Falar-nos-emos agora da finalidade.
A ideia de finalidade é a que dá o sentido para as operações ideológicas
travadas sobre o outro, negando-lhe a possibilidade de existência íntegra e

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digna. Integridade e dignidade não como discurso moral, mas como modos
de existência. Ou seja, é íntegro aquilo que existe por inteiro, e é inteiro
aquilo que é. O Outro é um mistério para o Eu, pois sendo Outro jamais
poderá ser capturado pela lógica da identidade. O Outro não se mostra como
é, a não ser quando é compreendido em sua dimensão de mistério e mistérios
não se mostram como conteúdos identificáveis, mas como formas de
existência que escapam às armadilhas da identidade e das representações
únicas. É digno aquilo que existe dando significações próprias a respeito
daquilo que é e é reconhecido como tal diante de uma coletividade
significadora. Assim dignidade está associada tanto à ipseidade quanto à
alteridade, muito embora a ideologia da mestiçagem tenha reforçada a
primeira e negado a segunda.
A finalidade funciona como a escatologia da ideologia dominante. É
preciso ter não apenas uma fonte de pureza no território da origem para
legitimar os discursos de dominação, mas também o discurso moral da
finalidade para justificar as ações presentes em vista de um futuro de ouro de
recompensas a ser encontrado por aqueles que mantiveram-se fiéis às
representações ideológicas do grupo dominante. É assim que a ideia de
paraíso, de céu, de bom futuro, de salvação etc. nasceram entre nós. A
finalidade é o que está no futuro muito embora controle e dê sentido as
relações travadas no agora. Ela é uma ideologia moral disfarçada em
escatologia. A finalidade apresenta-se como única, logo, determina o
caminho a ser percorrido para se alcançar o sentido profundo de uma ação
incompreensível no presente, mas iluminada pela clareza escatológica da
ideia de finalidade.
A finalidade, com efeito, é a significação última da origem, ou seja,
porque aquilo que é, é desta forma e não de outra. A origem é uma
justificativa que remonta ao passado. A finalidade uma justificativa que
remete para o futuro. Ambas formam o escopo da ideologia que sustenta a
mestiçagem que, por sua vez, ancora o discurso e a prática de dominação
que temos visto na história da humanidade, particularmente em relação às
representações criadas sobre negros e brancos.

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A Negação do Negro Brasileiro
A Dra. Gislene Santos, em seu livro, bem como o Dr. Kabengele
Munanga, revisitam as matrizes teóricas que favoreceram a proliferação das
ideias e práticas racistas no mundo e, sobretudo, no Brasil.
O livro da Dra. Gislene Aparecida dos SANTOS (2000) perfaz “um
percurso das ideias que naturalizaram a inferioridade dos negros”. Se o Dr.
David Brion Davis76 elucidou as ideias que corroboraram com a escravidão
dos africanos e seus descendentes na América do Norte, a Dra. Gislene,
guardada as devidas proporções, realizou a mesma empreita em relação aos
africanos e seus descendentes no Brasil.
A autora dá uma contribuição preciosa para o conhecimento do
pensamento social brasileiro ao analisar, sob o prisma da identidade afro-
brasileira, importantes aspectos sociais do Brasil, denegados ao longo da
história, e autores fundamentais para entendermos a formação da identidade
nacional. Filosoficamente bem fundamentada, ela analisa as obras de José
Bonifácio, Louis Couty, Joaquim Nabuco, Nina Rodrigues e Gilberto Freyre.
No Iluminismo a autora encontra a genealogia das ideias e conflitos
que, por um lado, consolidarão a ideologia racialista no mundo, e, de outro
lado, a filosofia que servirá para a crítica do racismo. Este é precisamente o
que ela chamou de “enigma do Iluminismo”, pois se foi neste período que a
tolerância e os direitos humanos foram politicamente defendidos e
filosoficamente justificados, concomitantemente foi também o tempo em
que se forjou a ideia de homem (universal) que, no entanto, era apenas o
protótipo do homem europeu, dando margem à formulação do racismo como
negação do Outro. Analisando sobretudo as ideias monistas de Diderot e
poligenista de Voltaire, crê a autora sintetizar o principal debate no seio do
Iluminismo a respeito do sistema filosófico que fundamentaria o racismo
mundial. Perspicaz, Gislene dos Santos envereda-se pelos (des) caminhos do
Iluminismo e traz à tona detalhes absolutamente relevantes na discussão a
respeito das diferenças raciais, morais, geográficas entre os povos. Como é
óbvio, não esquece de tratar do tema fundamental da sociabilidade e da
educação, tudo isto agenciado pelo exercício da razão, principal instrumento
dos iluministas para a compreensão do mundo e o domínio da natureza. Sem
abandonar pensadores como Turgot, D’Holbach, Buffon, esmiúça o tema do
Progresso Social e, de certa forma, está sempre nas fronteiras da definição
do conceito de cultura e de civilização, correlatos nesta época.

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Ao mapear as principais discussões a respeito das diferenças raciais no
Iluminismo, a autora se debruça na compreensão da ideia de raça. Para tal,
vale-se de clássicos como Todorov e Banton. Aqui a autora demonstra seu
domínio sobre o tema e consegue captar as discussões mais relevantes a
respeito do problema fundamental, ou seja, compreender o sistema de ideias
que naturalizaram a ideia de inferioridade do negro. Ela deslinda uma síntese
das ideias racialistas e racistas do século XIX e XX, passando pelo
darwinismo social, pela dita inferioridade negra e, com Cohem, busca
responder o que é o negro, analisando tanto a biologia de Lamarck, passando
pela análise crítica da estética branca até culminar com a posição de Hannah
Arendt que, lucidamente, afirmara: “Toda ideologia que se preza é criada,
mantida e aperfeiçoada como arma política e não como doutrina teórica”
(ARENDT apud. SANTOS, 2002, p. 60).
A Dra. Gislene submetendo a uma leitura que se não é original, é, sem
dúvida, singular, a obra de José Bonifácio, Louis Couty e Joaquim Nabuco
conseguiu adentrar na gêneses da invenção do ser negro brasileiro. Se
escolhe Bonifácio e Couty, é porque são autores que sintetizam o
pensamento e as problemáticas da época. Nabuco, de forte erudição, de
posição intelectual incontestável no cenário da abolição, é utilizado para
demonstrar como o pensamento social brasileiro sempre reificou as bases do
pensamento racista cunhados no calor do Iluminismo europeu.
Bonifácio e Couty são representantes da elite brasileira. É deste lugar
que falam sobre a escravidão e o negro no Brasil. Segundo SANTOS (2002,
p. 66), p.e., as ideias de Bonifácio “tornam evidente o caráter do movimento
emancipacionista ligado aos interesses da elite burguesa e distante dos
verdadeiros ideais populares”. Partidário das teses do liberalismo, Bonifácio
atribui aos negros a responsabilidade pela decadência moral brasileira ao
mesmo tempo que defende a abolição da escravatura. Motivo: é que
desenvolvimento industrial – principal tese econômica do liberalismo – não
rima com escravidão. Toda a argumentação filosófica deste abolicionista está
pautada no direito natural. É Assim que o Andrada humaniza o escravo.
“Desta forma, ele pode, simultaneamente, defender o direito à propriedade e
ao trabalho livre como forma de garantir a estabilidade sociopolítica e a
prosperidade econômica” (SANTOS, 2002, p. 71). É por questionar se a
escravidão estaria de acordo com o direito natural, que os abolicionistas da
época se colocam contra a subjugação dos negros. Ora, o direito natural é a
pedra fundamental da filosofia liberal. O que temos é uma tríade

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argumentativa baseada nos referenciais teóricos do liberalismo. Em primeiro
lugar está a liberdade individual, pois segundo o direito natural, todo homem
é livre. Segundo, a escravidão que se opõe ao direito natural é inútil, pois
(terceiro) a escravidão é nociva à economia nacional. Para Gislene Santos
não há dúvidas de que o terceiro argumento é o mais importante na obra de
José Bonifácio.
Louis Couty defende as mesmas teses, mas arregimenta seus
argumentos de maneira diferente. Diversamente de Bonifácio, Couty
argumenta que a escravidão brasileira sempre fora a mais amena das
Américas. Com isso, reforçava a ideia da debilidade moral dos negros e,
principalmente, a necessidade da imigração europeia para o Brasil. Subjaz a
este argumento a ideia de que apenas os brancos possuem cultura. Os negros,
em quaisquer sociedades, são fatores de degenerescência e corrupção.
Estudando os costumes afro-brasileiros e a produção econômica no Brasil,
decidi que a solução é a imigração europeia. Ou seja, Couty engendra uma
análise cultural baseada no moralismo liberal para explicar o
subdesenvolvimento da economia brasileira, e aponta uma solução política
para o problema, a saber: a imigração de mão-de-obra europeia. Se a
escravidão, no Brasil, é amena, resulta que aqui não há um problema
humanitário, mas apenas político e econômico. Por isso dar ênfase à
economia era mais importante que enfatizar o regime de escravidão. A
escravidão, enquanto sistema econômico em si, não era um problema. O
problema era a falta de habilidade e qualidade morais dos negros. “O
trabalho escravo é inferior não por obra e graça do processo escravista, mas
pela inabilidade do próprio escravo. É este, e não a escravidão, que deve ser
suprimido” (SANTOS, 2002, p. 93). O negro é preguiçoso, inútil, inválido.
O progresso (noção forte do Iluminismo) só advém com uma população
culturalmente mais evoluída. Vê-se em Couty a síntese perfeita dos ideais
liberais (desenvolvimento econômico) e iluministas (progresso, civilização)
que, numa perspectiva evolucionista, justificam “filosoficamente” a
escravidão e, no caso de Couty, a ideia – que se tornará muito forte no Brasil
– de eliminação dos negros.
José Bonifácio e Louis Couty não eram abolicionistas tão
comprometidos com a causa quanto foi Joaquim Nabuco. Dono de grande
erudição, empregou sua inteligência brilhante e voraz contra o sistema
escravocrata. Mas, mesmo Nabuco, não deixou de ser homem do seu tempo
e com ele partilhar o racismo que lhe era inerente. Como jurista Nabuco

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condenou cabalmente o sistema escravocrata. Mas, se tratada como matéria
jurídica, este abolicionista sem dúvida foi seu principal porta-voz, ao
considerarmos a validade do seu discurso a favor dos interesses dos
escravos, definitivamente ele não ocupa a mesma posição. Nabuco não
acreditava que o escravo poderia, ele mesmo, ser o agente de sua libertação.
Motivo: incapacidade e inferioridade dos negros. Outro fator explicativo
dessa ideologia era o medo que Joaquim Nabuco tinha da possível revolução
dos negros, medo, aliás, compartilhado por toda a elite brasileira. De acordo
com SANTOS (2002, p. 117) “esse autor condenava uma escravidão geral,
ele debatia com uma teoria geral da escravidão de modo que pouco
importava quem ou porque este ou aquele povo era ou foi escravizado”. Na
esteira dos outros abolicionistas, o que interessava para Nabuco era livrar o
Brasil da ferida da escravidão – ferida econômica – e não livrar os negros da
subjugação branca. Isto é, “o cativeiro do qual o Brasil deveria livrar-se não
era, necessariamente, o do povo negro, mas o do sistema escravista que
aprisionava a nação” (SANTOS, 2002, p. 117). Nabuco foi muito mais um
defensor do Estado Republicano do que um defensor da causa dos negros.
Para ele, o fim da abolição era a condição para vigorar o Estado Liberal.
Se até aqui a filósofa analisa o período brasileiro antes da abolição
da escravatura, ela não deixará passar incólume o período pós abolição e a
peculiaridade do racismo à brasileira no período republicano. Emblemáticos,
neste período, foram os pensamentos de Nina Rodrigues e Gilberto Freyre.
Cada qual em sua época, teve forte influência sobre o pensamento social
brasileiro no que diz respeito à justificação/fundamentação da inferioridade
negra. Submetidos à análise crítica da autora, seus textos deixam entrever a
grande influência do pensamento racista mundial. Com isto denuncia o
racismo explícito do médico baiano e o racismo implícito da teoria da
democracia racial no pensamento de Gilberto Freyre, dedicando especial
atenção à teoria do branqueamento que explicita uma simpatia pelo negro,
sem que, com isso, consiga disfarçar o racismo contra o negro, igualmente
explícito. Com Rodrigues e Freyre a autora acredita ter compreendido toda a
gama de pensadores da primeira metade do século passado que tornaram
justificável as ideias que naturalizaram a inferioridade do negro brasileiro.
O que está em discussão, com esses autores, é a formação do povo
brasileiro. Se para Couty o povo brasileiro não existe, Nina Rodrigues tem
uma posição mais amena quanto à identidade da nação e mais radical quanto
aos africanos e seus descendentes. Para ele a questão (que não é nova), “é a

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inferioridade inata da raça negra, inapta à civilização e a qualquer forma de
desenvolvimento” (SANTOS, 2002, p. 130). O discurso biologizante de
Nina Rodrigues, segundo a autora, corrobora a ideia de que a morosidade
brasileira advém dos negros e que são eles os principais fatores do
subdesenvolvimento do país. Numa palavra, o negro, inatamente inferior, é a
causa do não progresso da civilização brasileira. Fazendo uma taxinomia dos
tipos raciais, Nina Rodrigues hierarquiza as raças segundo critérios de
pureza biológica e superioridade social, moral e religiosa.
Se os autores que foram anteriormente analisados assumiam-se
como liberais e ilustrados, Nina Rodrigues será o grande evolucionista de
sua época, e fará escola. Pautado na ciência positiva (positivismo) ele vai
dizer que: “1) as raças apresentam graus de evolução, desenvolvimento,
cultura e inteligência diferentes; 2) a cada grau evolutivo compreende uma
moral, portanto, não há valores universais, atemporais e uniformes que
possam servir como sustentáculo para um direito universal e uma noção
única de justiça; 3) uma lei universal pressupõe uma identidade total entre
todos os indivíduos que compõem a sociedade; 4) não existe o livre-arbítrio”
(SANTOS, 2002, p. 134). Vê-se, assim, que Nina tem sua filosofia da
natureza assentada numa biologização dos homens. Ele é defensor da
filogênese como explicação científica para a evolução cultural dos seres, o
que equivale dizer que ele transfere os padrões científicos da biologia para
explicar os fenômenos sociais e culturais. Assim, como nos homens, as
sociedades obedecem a lentos processos evolutivos. Existe uma igualdade
abstrata entre os homens, mas se não são iguais no transcurso da história, é
porque as sociedades brancas são moral e socialmente mais evoluídas que as
dos negros. Dessa forma o médico baiano poderia relativizar as noções de
direito natural, de justiça universal e de igualdade entre as raças. Em suma,
um negro jamais será um branco. “Dessa forma, igualdade e liberdade
passam a ser elementos metafísicos e o direito deixa de ser um campo da
ética para pertencer ao rol das ciências naturais” (SANTOS, 2002, p. 138),
ou seja, deve-se sempre observar o criminoso (o escravo) e não o crime (a
escravidão). Se os iluministas partiam de princípios metafísicos como a
igualdade e a liberdade, os evolucionistas partem da ciência positiva e
opõem direito natural e ética. Dessa forma, o negro, é inferior tanto do ponto
de vista evolucionista quanto ilustrado, visto que sua inferioridade é inata e
que os princípios metafísicos não dialogam com a história evolução das
civilizações.

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Gilberto Freyre, por seu turno, buscou fugir do dogmatismo
científico predominante em sua época. Para tal vale-se do lusotropicalismo e
cria o importante conceito de mestiçagem. Com o pernambucano não se trata
mais de negar que o Brasil tenha povo (Couty), ou que uma fatia do povo
brasileiro deva desaparecer com o correr dos anos por ser inatamente inferior
(Nina Rodrigues). Para ele o “ponto de equilíbrio da sociedade brasileira
passaria a ser o mestiço e o caráter miscigenado de nossa população é posto
em foco como meio de um engrandecimento inigualável” (SANTOS, 2002,
p. 150). Aqui estaria o germe da teoria da democracia racial.
Uma longa citação de Gislene dos SANTOS (2002, p. 150) pode
ser apropriada para revelar, em síntese, a análise que ela efetua sobre o
pensamento de Gilberto Freyre:
Embora a contribuição africana seja avaliada fora da perspectiva racista de
outrora, isso não significou a elevação do sujeito negro à mesma categoria do
branco. Ele ainda é o outro, diferente e estranho, portador de uma cultura exótica.
Mas agora é o estranho desejado por essas mesmas características. Em Freyre, o
negro continua sendo objeto, complemento para o branco que se sobrepõe a ele do
alto dos casarões, das casas-grandes e que olha, a distância, para as senzalas.
Passa-se, então, a uma apologia da mestiçagem, não na prática, mas na teoria, na
qual ela é reconhecida como elemento básico da composição do povo brasileiro.

Diria eu que o negro é sempre a alteridade negada. Negada


substancialmente, juridicamente, ontologicamente, historicamente e é
negada até mesmo quando é “valorizada” e, com isso, transforma-se no
exótico, no folclórico. Ou ele é negado positivamente por ser negro, ou é
negativamente negado por ser negro. “Positivamente” quando lhe é
reconhecida a humanidade negra, muito embora por isso seja inferiorizado.
Negativamente quando sua própria humanidade é negada. Dessa forma, o
negro é o Outro demonizado. Um Outro desumanizado, mesmo quando lhe
reconhecem a humanidade.
Kabengele MUNANGA (1999), em sua tese de livre docência:
“Rediscutindo a Mestiçagem no Brasil” também percebe as armadilhas que o
conceito de mestiçagem arquitetou para os afrodescendentes. A mestiçagem
como signo de inferioridade, colocando, de qualquer maneira e em quaisquer
combinações, os elementos da cultura africana em situação de
desvalorização. Ora utilizada para exaltar o “mulato” e desvalorizar o negro,
ora utilizada para desvalorizar o negro e o mulato, ou utilizada para valorizar
a mistura de índio e branco em flagrante desmerecimento da mistura negro e
branco, o conceito de mestiçagem, sempre manipulado ideologicamente e

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não no plano da biologia, ou seja, sempre ideologizando a biologia, serviu
sempre como arma de ataque do ser negro. Como a Dra. Gislene Santos77,
MUNANGA (1999) volta aos pensadores iluministas para encontrar a
gênese do pensamento racista no mundo. Aliás, seu retorno “às origens” é
mais profundo, na medida em que, sumariamente, revisita não apenas o
conceito biológico e sociológica de mestiçagem, como passeia pela história
da mestiçagem na Grécia Antiga, no Egito e no Império Romano, ao mesmo
tempo em que revisa o pensamento de Buffon e Voltaire, por serem eles
pensadores ilustrativos da monogenia e da poligenia, que marcaram a
discussão sobre raça no século XIX e primeira metade do XX. Se Buffon é
filogenético e Voltaire ontogenético, isso interessa-nos para melhor conhecer
as posições dos pensadores brasileiros que se colocaram o problema da raça
no Brasil, pois ao “abordar a questão da mestiçagem no final do século XIX,
os pensadores brasileiros se alimentaram sem dúvida do referencial teórico
desenhado pelos cientistas ocidentais, isto é, europeus e americanos de sua
época e da época anterior” (MUNANGA, 1999, p. 50).
A perspectiva da unidade das raças ou da pluralidade delas marcou,
também no Brasil, o debate sobre mestiçagem. De acordo com o autor:
a ideia da mestiçagem tida ora como um meio para estragar e degradar a boa raça,
ora como um meio para reconduzir a espécie a seus traços originais; as ideias
sobre a degenerescência da mestiçagem, etc., todo o arcabouço pseudo-científico
engendrado pela especulação cerebral ocidental repercute com todas suas
contradições no pensamento racial da elite intelectual brasileira
(MUNANGA,1999, p. 50).

Certamente por isso Kabengele Munanga vai analisar criticamente


– sinal diacrítico de sua obra – pensadores como Sílvio Romero, Euclides da
Cunha, Alberto Torres, Manuel Bonfim, Nina Rodrigues, João Batista
Lacerda, Edgar Roquete Pinto, Oliveira Viana e Gilberto Freyre. Para além
da dissertação de Gislene Santos, a pesquisa de Kabengele Munanga
investiga não apenas os pensadores que reificaram as explicações
estrangeiras, mas considera também as vozes lúcidas de pensadores originais
como foram Alberto Torres e Manoel Bonfim. Como bom antropólogo, o
professor uspiano considera as várias vozes e os diversos olhares sobre o
tema, fazendo os autores dialogarem no interior de sua pesquisa.
Não é o caso de passar em revista toda a análise efetuada pelo
professor africano. Interessa-nos, sobretudo, complementar os argumentos já
elucidados pela lavra da Dra. Gislene. Se ela concentrou-se na análise do
pensamento de José Bonifácio, Louis Couty, Joaquim Nabuco, Nina

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Rodrigues e Gilberto Freyre, nós, por outro lado, daremos atenção ao
pensamento de Silvio Romero e Euclides da Cunha, de um lado, juntamente
com a análise de Oliveira Viana – privilegiada por Kabengele Munanga -; de
outro lado, consideraremos os olhares de Alberto Torres e Manoel Bonfim
como contraponto as ideias, já rapidamente explicitadas de Nina Rodrigues e
Gilberto Freyre.
Sílvio Romero é desses pensadores que vê na mestiçagem do povo
brasileiro apenas uma etapa de transição para uma sociedade racial e
culturalmente branca. Segundo ele, o tipo genético caucasoide iria
prevalecer frente aos genótipos negroides. De acordo com MUNANGA
(1999, p. 52), Romero acreditava:
no nascimento de um povo tipicamente brasileiro que resultaria da mestiçagem
entre as três raças e cujo processo de formação estava ainda em curso. Mas, desse
processo de mestiçagem do qual resultará a dissolução da diversidade racial e
cultural e a homogeneização da sociedade brasileira, dar-se-ia a predominância
biológica e cultural branca e o desaparecimento dos elementos não brancos.

Apesar das contradições inerentes ao pensamento de Sílvio


Romero, a tônica de suas posições recai sobre a unicidade da raça na
formação do povo brasileiro e na consequente unidade da identidade
nacional. À sua época, Romero atribuía ao negro o atraso brasileiro, o que
lhe põe em parceria com Louis Couty, José Bonifácio dentre outros, que
responsabilizava o negro pelo fracasso social do Brasil, fórmula, aliás,
também presente na obra de Nina Rodrigues que atacava o “criminoso” e
não o crime, ou seja, responsabilizava o escravizado e não a escravidão.
Fórmula, aliás, presente - por diferentes vias -, na obra de abolicionistas
como Joaquim Nabuco.
A depreciação do negro é praticamente uma regra em todos os
pensadores da elite brasileira do final do XIX e início do XX. O que se
diferencia são os argumentos que justificam essa depreciação. Em
decorrência da diferença de argumentos, existe a diferença de posições. Se
Romero é um epígono do embranquecimento do brasileiro, defendendo a
tese da unidade racial no Brasil no porvir, Euclides da Cunha se contrapõe a
ele defendendo a heterogeneidade racial do povo brasileiro. Essa
heterogeneidade está longe de ser uma apologia da mestiçagem; longe de
valorizar as diferenças raciais. Ao contrário, Euclides da Cunha pensa que “o
mestiço, traço de união entre raças, é quase sempre um desiquilibrado, um

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decaído, sem a energia física dos ascendentes selvagens e sem a atitude
intelectual dos ancestrais superiores” (MUNANGA, 1999, p. 57).
Seguindo a escola do pensamento atávico de Nina Rodrigues,
Euclides da Cunha acredita que o mestiço é um ser que vive em constante
instabilidade pois tem a tendência de remontar às características originais de
sua raça. Se preserva algumas “qualidades” da raça superior, volta
inexoravelmente às características atávicas da raça inferior. Para ele, “a
ideia de que a mestiçagem entre raças superiores e inferiores apaga as
qualidades das primeiras e faz reaparecer a das últimas” (MUNANGA,
1999, p. 58). A pluralidade considerada por Euclides ataca a ideia de uma
unidade nacional. Na verdade, o jornalista e escritor dá-se conta de que no
Brasil não existe homogeneidade cultural, muito menos racial. Os tipos
puros, p.e., índio puro é mais valorizado que o mestiço, no caso o mameluco.
Mas esse último, nos sertões brasileiros, formam uma unidade cultural – o
que é valorizado por Cunha. De fato, no pensamento do autor de “Os
Sertões”, há uma gradação valorativa dos mestiços. A raça superior sendo a
referência de qualquer axioma, ao cruzar-se com índios é mais valorizada
que a cruza com os negros. Negros e índios miscigenados entre si ocupariam
as últimas posições no ranking do autor, sendo que os mestiços negros
amargam as piores posições nesse escalonamento axiomático. Ora, esse
pensamento, em sua arquitetura é a repetição das gradações estabelecidas
por Nina Rodrigues, no final do século XIX e início do XX, quando
defendia, também ele, uma gradação valorativa entre os negros mestiços,
onde era mais valorizado aquele que estivesse mais próximo ao padrão
europeu de genótipo caucasoide. Posterior a Nina, mas harmônico com suas
ideias, Euclides da Cunha defendia que o negro, em relação às três raças no
contexto de mestiçagem no Brasil, era um desequilibrado incurável, pois
“Na tríade da mestiçagem, o português, apesar de demonstrar que já era
mestiço, não deixa de ser a raça superior, aristocrática. O próprio índio que
ele ressaltava não tinha a capacidade de se afeiçoar às mais simples
concepções de um mundo mental superior. Quanto ao africano, não há
esforços que consigam aproximá-lo sequer do nível intelectual do indo-
europeu” (MUNANGA, 1999, p. 59).
Se Sílvio Romero sentenciava o branqueamento da população
brasileira, defendendo a tese da unidade racial no Brasil, Euclides da Cunha
defendia a heterogeneidade das castas raciais em território nacional e
preconizava um pessimismo quanto ao futuro brasileiro, advertindo as

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diferenças regionais entre o sul e o norte brasileiros, onde na região
meridional era mais desenvolvida por conta do tipo europeu predominante
na região, enquanto na parte setentrional do país imperaria o desiquilíbrio
social pelo fato da predominância de índios e negros miscigenados. Euclides
da Cunha não defendeu explicitamente o branqueamento da população
brasileira, muito embora fosse adepto do pensamento racista que defendia
que os brancos eram de uma raça superior. Já Nina Rodrigues, em flagrante
contraste com Sílvio Romero, defendia não o branqueamento dos brasileiros,
mas seu enegrecimento.
Não que Nina Rodrigues fizesse apologia ao enegrecimento da
população canarinha. Pelo contrário, em contato com pesquisas
demográficas da época, via a tendência à africanização (em termos de cor)
da população nativa e se contrapunha à tese – defendida por Romero – de
um paulatino branqueamento do território nacional. Esse enegrecimento
anunciado pela miscigenação negra no Brasil apontava para a decadência
moral do povo brasileiro. Quanto maior a presença do africano e seus
descendentes no contingente populacional maior seria a degeneração do
povo. Nina Rodrigues pauta seu pensamento na filogenia, ou seja, ele
considerava que o indivíduo (ontogenético) era mera reprodução e evolução
das características impressas em sua raça. Esse atavismo do pensamento do
médico baiano é que o levou a propor a solução via legislação e
institucionalização do problema da identidade nacional. Ou seja, dada a
inferioridade da raça negra e a consequente corrupção da raça branca
(superior) ao miscigenar-se com os negros, rebaixando assim o nível de
moralidade da população, restava apenas a solução legal, isto é, alterar o
código penal adequando-o à realidade racial brasileira que, por ser atávica,
não mudaria jamais. É dessa forma que Nina Rodrigues vai atuar no campo
das responsabilidade penais.
Sendo dadas as desigualdades entre as raças, seriam necessárias modificações na
responsabilidade penal. A regra do contrato na sociedade brasileira, que considera
todos os indivíduos iguais perante a lei, que é uma medida de defesa social,
converte-se em pura repressão: índios, negros e mestiços não têm a mesma
consciência do direito e do dever que a raça branca civilizada, porque ainda não
atingiram o nível de desenvolvimento psíquico, seja para discernir seus atos, seja
para exercer o livre-arbítrio (MUNANGA, 1999, p. 54).

De acordo com o médico-legista, então, era necessário tomar uma


medida jurídica já que as características raciais são inatas aos povos. Dever-
se-ia, sem embargo, ratificar socialmente o que é um dado da natureza, a

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saber: a inferioridade dos negros. Com o enegrecimento da população, era
urgente, para ele, a mudança das leis penais pois uma ameaça rondava o
Brasil, uma vez que não apenas ocorria o enegrecimento da pele do
brasileiro mas uma africanização de sua cultura.
Oliveira Viana será o autor mais citado, segundo MUNANGA
(1999, p. 65), no debate sobre o branqueamento da população brasileira. É
certo que foi a ideologia do branqueamento a que imperou no primeiro
decanato do século XX, encontrando, depois, nos argumentos de Gilberto
Freyre, argumentos mais afinados com o desenvolvimento da antropologia
cultural de seu tempo. Não que Oliveira Viana fosse um autor original e
defendesse teses inéditas sobre a questão. Mas fora ele quem melhor
sintetizou as ideias racistas de seus predecessores e quem mais as divulgou.
Contrariamente à tese de unidade racial de Sílvio Romero, Viana
não acredita na homogeneidade racial. Apesar de serem homônimos na
defesa da tese do branqueamento, Oliveira Viana percebe uma
heterogeneidade entre os mulatos. Para ele o cruzamento entre negros e
brancos “deu origem a uma variedade correspondente de mestiços. O que
torna absurda a procura da unidade psicológica do mulato e a fixação de sua
unidade antropológica” (MUNANGA, 1999, p. 67). Há mulatos inferiores e
superiores no escalonamento valorativo de Viana. “O primeiro, resultado do
cruzamento do branco com o negro do tipo inferior, é um mulato incapaz de
ascensão, degradado nas camadas mais baixas da sociedade. O segundo,
produto do cruzamento entre branco e negro do tipo superior, é ariano pelo
caráter e pela inteligência ou, pelo menos, é suscetível de arianização, outro
modo capaz de colaborar com os brancos na organização e civilização do
país” (MUNANGA, 1999, p. 67).
Se se distancia de Silvio Romero quanto ao tema da unicidade
antropológica da população brasileira, aproxima-se de Euclides da Cunha
quanto à heterogeneidade dos mestiços. Tal como o jornalista, Viana acredita
que os mestiços de brancos com índios são mais superiores que os mestiços
de brancos e negros. Tanto quanto aquele, apesar de depreciar as qualidades
morais dos mamelucos, os têm em melhor conta que os mulatos, pois
aqueles, ao menos, parecem ter melhores condições físicas, sendo mais aptos
para a guerra. Ou seja, apesar da malícia e malandragem que denotam
fragilidade de caráter, são mais astutos em questão de luta – o que os
colocam em melhor posição que os mulatos, tidos como preguiçosos,
lascivos e burros.

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Se Nina Rodrigues diverge de Euclides da Cunha quanto ao
branqueamento da sociedade brasileira, Oliveira Viana se aproxima de Nina
Rodrigues, pois ambos acreditam no atavismo, ou seja, “numa lei
antropológica inevitável que faz com que os indivíduos resultantes da
mestiçagem tendam a retomar as características físicas, morais e intelectuais
das raças originais” (MUNANGA, 1999, p. 68). É claro que o fator de
degenerescência é atribuído unicamente à raça negra, visto que a raça
superior, a branca, possui superioridade mental e física, enquanto o mulato,
como já foi referido, é um tipo preguiçoso e incapaz intelectualmente.
A leitura de Kabengele Munanga de Oliveira Viana atesta que, para
este, tanto o mulato considerado inferior ou superior é assim classificado
mais pelo fenótipo do que pelo genótipo. Ou seja, Oliveira Viana seria o
precursor do que, mais tarde, Oracy Nogueira chamou de preconceito de
“marca” e preconceito de “cor”. Ora, no Brasil o racismo evidencia-se ligado
mais à aparência que à origem do indivíduo. Não importa sua mistura de
sangue, ascendência etc., mas a cor da sua pele. É a coloração da tez da
pessoa que vai ser matriz de sua classificação social. Oliveira Viana é
precursor, também, da ideia de harmonia racial presente na sociedade
brasileira. Segundo ele, no Brasil, há uma igualdade e harmonia entre todos
os segmentos raciais, o que não coloca nenhum tipo de problema a nenhum
desses segmentos no campo político e econômico. Mas se não há problemas
políticos e econômicos por causa da igualdade entre as raças o mesmo não se
dá no plano psico-antropológico. Diz MUNANGA (1999, p. 71):
Se a diversidade racial brasileira não cria nenhum problema do ponto de vista
político, graças à igualdade de oportunidade entre todos no plano sócio-
econômico, diz Viana, surgem gravíssimos problemas do ponto de vista
antropológico e psicológico, devidos às diferenças inconfundíveis entre as três
raças.

Apesar da crescente miscigenação da população brasileira com os


afrodescendentes, Viana acredita numa progressiva arianização da sociedade
visto que o aumento da imigração de europeus levaria a uma “purificação”
da população nacional. Neste sentido Viana segue de perto a doutrina do
darwinismo social, acreditando que a raça superior (branco) haveria de
imperar sobre a raça inferior (negros e índios), se não completamente na cor
da pele ao menos em suas características morais e intelectuais. O que o
eminente sociólogo deixa de mencionar é “o fim do tráfico negreiro desde
1850, a alta mortalidade da população negra devido às adversas condições de

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vida e a eliminação do índio pelas doenças europeias, álcool e arma de fogo”
(MUNANGA, 1999, p. 75). Ou seja, todo o discurso de Oliveira Viana é
ideológico, pois ao anunciar a arianização da sociedade brasileira ele
desconsiderara os fatores sociais que determinaram a diminuição da
população negra, índia e mestiça, dando ênfase simplesmente à imigração
europeia.
Se Oliveira Viana permaneceu ligado ao atavismo de Nina Rodrigues e
sua escola, ao darwinismo social do final do XIX, à taxonomia euclidiana
dos mestiços brasileiros, mantendo, assim, os preconceitos do evolucionismo
e a base teórica do iluminismo, Gilberto Freyre deu um passo significativo
para fora dessas matrizes de pensamento, muito embora tenha reificado,
também ele, o preconceito e a discriminação racial em relação ao negro e
foi, sem dúvida, o autor que melhor fundamentou a tese da “democracia
racial” em terras brasileiras.
Para Kabengele, que dá mais atenção ao pensamento de Oliveira Viana
que ao do pernambucano, “A grande contribuição de Gilberto Freyre é ter
mostrado que negros, índios e mestiços tiveram contribuições positivas na
cultura brasileira; influenciaram profundamente o estilo de vida da classe
senhorial em matéria de comida, indumentária e sexo” (MUNANGA, 1999,
p. 79). Se para o conjunto de autores analisados até agora a mestiçagem é um
signo negativo, em Gilberto Freyre ela será positivamente avaliada. Isso dá
margem à defesa da tese da harmonia racial em território canarinho. O mito
da democracia racial, em Freyre, está baseado na mestiçagem cultural e
biológica – o que marca profundamente a sociedade brasileira. Ao exaltar a
ideia de convivência pacífica e harmônica entre todos os segmentos étnico-
raciais no Brasil, Gilberto Freyre permitiu às elites dominantes “dissimular
as desigualdades” e impedir que “os membros das comunidades não-brancas
de terem consciência dos sutis mecanismos de exclusão da qual são vítimas
na sociedade” (MUNANGA, 1999, p. 80). No fundo Freyre faz uma dupla
operação argumentativa. Primeiro admite a diversidade étnico-racial no
Brasil, valorizando o até então denegado elemento negro e indígena. Com a
tese da democracia racial cria uma unidade antropológica que confere
identidade ao “o brasileiro”. Acima da diversidade racial existe a identidade
cultural desse povo. Segundo: ao considerar socialmente a presença de
diversificados grupos étnicos no Brasil para em seguido abstrair das
diferenças em prol de uma identidade nacional, consegue encobrir os
conflitos sociais realmente existentes na sociedade brasileira. De um lado

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reconhece a contribuição do negro na formação do Brasil – sobretudo quanto
as aspectos folclóricos: comida, indumentária e sexo, esquecendo-se da
contribuição econômica e tecnológica dos africanos e seus descendentes -,
de outro lado, oculta os conflitos sociais onde o negro está em flagrante
desvantagem no sistema social. O truque é simples: reconhece o valor da
cultura negra, folclorizando-a, para, em seguida, manter a dominação social
e econômica a que os negros se vêm submetidos durante séculos.
Exemplos notáveis de crítica ao pensamento vigente na elite dominante
da época são as obras de Alberto Torres e Manoel Bonfim. É de Alberto
Torres, por exemplo, as seguintes palavras:
Nenhum dos povos contemporâneos é formado de uma raça homogênea e isto não
lhe impediu de formar uma nação, moral, política e socialmente (...) Se os
indígenas, os africanos e seus descendentes não puderam “progredir e aperfeiçoar-
se” isto não se deve a qualquer incapacidade inata, mas ao abandono “em vida
selvagem ou miserável, sem progresso possível” (TORRES apud MUNANGA,
1999, p. 61).

De fato, Alberto Torres muda drasticamente o eixo da discussão


sobre a questão nacional. Ao problematizar a nação brasileira, o autor não
atribui à diversidade racial os problemas do país. Segundo ele são as
instituições nacionais que são frágeis por não entenderem sua cultura, e não
seus compatriotas. Como diz Munanga, referindo-se a Alberto Torres: “O
grande problema nacional, segundo ele, não está na diversidade racial, mas
sim na inadequação entre a realidade do país e as instituições tomadas de
empréstimo das nações antigas, o que resulta na alienação da realidade
nacional” (MUNANGA, 1999, p. 61). Além do mais, para Torres, a nação
não é um conglomerado homogêneo de tradições comuns, mas uma unidade
política composta de heterogeneidades culturais. Antenado com a
antropologia cultural da época, Alberto Torres sabe que a nacionalidade é
um construto social e não a derivação atávica de características de raças
humanas originárias. O deslocamento que ele opera é tanto político quanto
cultural. Político pois vê os problemas sociais do Brasil decorrentes de sua
alienação enquanto instituição governamental, uma vez que copia modelos
alheios e não volta-se para os reais problemas brasileiros. Culturais pois não
atribui à características inatas das raças os desajustes sociais do Brasil, pois
entende que o atavismo é uma teoria frágil para explicar a formação das
identidades nacionais.
Já Manoel Bonfim analisa não apenas o Brasil mas a América
Latina. Uníssono com Alberto Torres, ataca a fragilidade das instituições

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latino-americanas – incluindo as brasileiras – por copiarem modelos
estrangeiros e não se apropriarem em suas próprias culturas. Sua análise para
entender o atraso relativo da América Latina é pautada por uma avaliação
histórica e não racial. “Os problemas herdados da era colonial –
mentalidade de ficar rico depressa, ausência de tradição científica ou
empírica, combinadas com uma cultura hiperlegalista, arraigado
conservadorismo político e ausência de organização social – figuram entre
os elementos que explicariam esse atraso”, diz MUNANGA (1999, p. 62) ao
comentar sobre Manoel Bonfim.
Completamente na contramão do pensamento de seu tempo, o
baiano realizou uma crítica inédita – e perspicaz – do processo de abolição
da escravatura, que deixou os africanos e seus descendentes largados à sua
sorte, sem nenhum tipo de política de inclusão para essa população, que,
aliás, figurava como a mais numerosa no Brasil. Como solução dos
problemas sociais brasileiros pedia uma reforma institucional e, sobretudo,
uma atuação contundente e eficaz no campo da educação. É ele mesmo
quem diz; “A despeito do parasitismo, os latino-americanos poderiam ainda
vencer o seu atraso. Seria preciso apenas corrigir, educar ou eliminar os
elementos degenerados. A real inferioridade da América Latina estava na
sua falta de habitação e educação78. Mas isso é curável, é facilmente
curável” (BONFIM apud MUNANGA, 1999, p. 62).
Manoel Bonfim, Alberto Torres, foram felizes exceções na
produção intelectual de sua época. Munidos de uma teoria antropológica
culturalista, atentos às causas históricas, bem municiados conceitualmente
para realizarem análises políticas, conseguiram escapar dos paradigmas que
marcaram seus colegas contemporâneos, isto é, do darwinismo social –
herança do evolucionismo do século XIX-, do liberalismo – herança do
iluminismo do século XVIII e XIX -, do atavismo – principal corrente
“científica” que estruturou o pensamento médico e jurídico dos autores
brasileiros. Livres das teorias essencialistas, que privilegiam a origem e o
inatismo, a permanência e não a mudança, a unidade e não a diversidade,
estes autores (Manoel Bonfim e Alberto Torres) apontaram caminhos de
reflexão absolutamente inéditos onde não se criminalizava a vítima (o
escravizado) e se absolvia o crime (a escravidão). Mesmo Gilberto Freyre,
apontado como um divisor de águas no campo dos estudos negros no Brasil,
reificou, com sua tese de democracia racial, o preconceito e a discriminação
racial contra os afrodescendentes. Alberto Torres e Manoel Bonfim, graças à

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sua lucidez política, não apenas abandonaram os paradigmas racistas do
XIX, mas entenderam que a discussão racial e a social são facetas de um
mesmo problema político-ideológico.

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Identidade Africana no Brasil
A discussão sobre uma identidade negra no Brasil é um tema
polêmico e que traz em seu bojo outras problemáticas como a da
discriminação racial e da situação social à qual o negro foi submetido neste
país, tanto na época da escravidão como nos dias atuais.
Assim, discutir a identidade negra num país formado a partir da
mistura (seria melhor dizer conflito) entre várias raças, provindo de diversas
regiões geopolíticas diferentes e, consequentemente, de culturas díspares,
não é um problema meramente cultural, mas de alcance político e social
relevantes. Até porque o que define a identidade racial são as relações de
poder entre os povos. Não existe uma substância geográfica, biológica ou
cultural que define identidade racial. São as relações de poder que a definem
(relações de dominação).
Buscar a identidade como se ela fosse alguma coisa inata que
caracteriza a essência de um povo é, no mínimo, uma falta de senso do
razoável. O mundo – a população mundial – se formou através de vários e
imensos movimentos migratórios que originaram a formação das nações no
decorrer dos séculos. Aliás, a formação histórica dos povos-nações é algo de
muito recente na história humana mundial. Não existe uma raça pura, um
povo puro, uma religião pura. Não existe no âmbito das sociedades humanas
uma essência, imutável, que caracteriza um grupo e somente aquele grupo. O
homem é um ser cultural. A cultura é construída, forjada de acordo com os
acontecimentos da história e criada a partir das contingências, sempre muito
singulares, das comunidades humanas.
Seguindo esse raciocínio, podemos afirmar que a identidade de um
povo só pode ser reconhecida quando consideramos sua história e as
singularidades desta história. Se podemos falar em uma identidade negra é
porque existe uma história deste povo, que comunga experiências comuns,
singulares, e que enfrentaram problemas semelhantes no decorrer do tempo,
e que solucionaram estes problemas de formas diferentes ou equivalentes,
mas que, no entanto, permite uma aproximação existencial destes grupos. É
o caso, por exemplo, da escravidão dos africanos. Apesar deste fenômeno ter
espalhado os negros por diversas partes do globo, e, em cada parte, a
escravidão ter sido implantada de maneiras diferentes, há o acontecimento
escravidão que reúne todos os negros escravizados em uma experiência
existencial única – ainda que vivenciada de maneiras diferentes, e, por isso

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mesmo, sob condições diferenciadas. No entanto, o que é comum a eles,
fosse nos EUA, em Cuba ou no Brasil era o fato de viverem numa condição
de dominação, sendo obrigados a um trabalho não remunerado – o trabalho
escravo -, e sendo utilizados como instrumentos de trabalhos, sendo seres
privados de liberdade. Essa experiência, de certa forma, unia as diversas
etnias negras escravizadas dentro de um mesmo universo cultural. Neste
universo foram forjadas um sem número de estratégias de sobrevivência, o
que passou a integrar o universo cultural dessas populações subjugadas.
Cultura, portanto, é um modo de organizar a vida e as relações
para mantê-la, seja em condição de liberdade ou de escravidão – até porque
ninguém é totalmente escravo e ninguém é totalmente livre.
A discussão sobre a identidade, levando em conta essas
considerações, deve portanto ter um alcance político e social. A identidade
de um povo normalmente é pesquisada quando este povo passa por
problemas de afirmação social ou, pelo contrário, quando determinado povo
procura ascendência ao poder social. Tanto num caso como no noutro, ou
seja, tanto num contexto de dominador ou de dominado, a identidade joga aí
um papel fundamental: o de conferir legitimidade.
Como falar de identidade negra, se os negros foram povos
massacrados durante séculos por “movimentos civilizatórios” que intentaram
destruir suas culturas no seu continente de origem? Como falar em
identidade africana, se o processo de escravização em África interrompeu
toda uma dinâmica histórico-cultural daqueles povos antes da invasão
europeia? Como buscar elementos de identidade negro-africana se as várias
etnias negras espalharam-se pelo mundo, sendo forçados a processos cruéis
de desagregação familiar e muitas vezes religiosa? Enfim, como falar em
identidade africana, se o que sobrou da cultura africana, ao menos em seu
território de origem, foram fragmentos distribuídos de forma não coerente
pelos quatro cantos do mundo?
Todas essas intrigantes questões ao invés de refutar uma teoria que
procure demonstrar a identidade negra de matriz africana apenas ressalta a
importância de se fazer tal discussão, visto que em relação às populações
negras no Brasil e no mundo, o tema identidade sempre ocupou um papel de
destaque, e visto que o momento brasileiro exige não apenas uma releitura
da identidade nacional, mas também uma releitura crítica da construção das
identidades étnicas que construíram a identidade brasileira.

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Tal destaque deveu-se, em grande parte, ao que parecia impossível.
Mesmo com todos esses fatores adversos à identidade negro-africana, os
negros espalhados pelo mundo, e, - o que mais nos interessa- sobretudo no
Brasil, conseguiram reconstituir e reconstruir a identidade negra com matriz
africana a partir da tradição iniciada muito tempo antes da invasão europeia
no continente africano.
A tradição, com base sobretudo no culto aos ancestrais e nas
ramificações dos princípios ligados a este culto na esfera da política e da
organização da produção e da sociedade, tornaram-se elementos
estruturantes da identidade dos povos africanos genericamente espalhados
pelo mundo e, especificamente, situados no Brasil.
O candomblé é um exemplo vivo do que temos afirmado. Síntese
de várias expressões religiosas africanas, nele reuniu-se várias cosmovisões
de etnias diferenciadas e acabou por se estruturar uma cosmovisão de matriz
africana dos principais aspectos civilizatórios que existia na África
tradicional. Esses elementos atravessaram o Atlântico e apesar de estarem
em novas terras e sob novas condições, preservaram os elementos
estruturantes daquelas sociedades, mantendo sua tradição e afirmando sua
identidade.
Não seria exagero dizer que o candomblé, durante muito tempo,
foi o principal foco de resistência cultural dos negros brasileiros. Não apenas
uma resistência religiosa ou cultural. Mas uma resistência também política e
social. E muito mais que mera resistência, mas forma de preservação e
continuidade do modo de organizar a vida e a produção de um povo,
permeada por ressignificações simbólicas e sínteses criativas.
Não é a cor da pele ou a língua de uma população que lhe confere
sua identidade. Nem mesmo os aspectos geográficos naturais e políticos que
lhe dão uma unidade. Tampouco a institucionalização de um povo através da
unidade política e jurídica de um Estado. A identidade é o que assegura a
unidade cultural de um povo. Como tal ela é uma arma política.
A tradição, por sua vez, é o que sustenta, o que fundamenta tal
identidade. Como vimos, a tradição africana não é estática; pelo contrário a
dinâmica social em África deve muito à sua maneira de experienciar a
tradição. Os elementos estruturantes desta tradição são flexíveis e
renováveis. Como dizia aquele adágio africano: “Que esteja melhor em
minha boca do que na dos ancestrais” (Poema Songai). O tempo presente
cobra atuações emergentes no tempo presente. Em África essas atitudes são

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tomadas, mas não em vista de um futuro incerto e improvável, mas
assentado na sabedoria dos ancestrais.
A cultura negra no Brasil ultrapassa a esfera religiosa. Poderíamos
considerar vários fatores do esporte, da música, da literatura, da dança e das
artes em geral, da economia, da política, das organizações populares etc. No
entanto, por uma questão de limitação de tema, procuramos ao longo deste
texto ressaltar alguns elementos principalmente ligados à religião a fim de
apontar uma cosmovisão de mundo de matriz africana presente no Brasil e
que, por sua vez, é o conteúdo desta tradição da qual nos referimos, que, por
seu turno, é o fundamento último da identidade negra brasileira.

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Princípio do Corte e Memória Coletiva
Muito embora os afrodescendentes recriem sua identidade na
lógica de sua tradição, eles vivem numa sociedade muito mais abrangente
que os territórios por ele habitados. Com efeito, vivem em mundos distintos.
Se de um lado o candomblé, por exemplo, é um espaço privilegiado da
vivência da cultura de matriz africana, a sociedade envolvente não o é, pois
vive sob os códigos do capitalismo mundial integrado. Essa dicotomia de
mundos, foi resolvida, segundo BASTIDE, através de um princípio forjado
pelos afro-brasileiros que permite sua dupla inserção na sociedade brasileira:
no mundo dos brancos e no mundo dos negros. Esse princípio é o que ele
denominou como princípio do corte.
O princípio de corte permitia que o negro vivesse em mundos
contraditórios sem, no entanto, esfacelar-se sua cultura de origem e sem
impedir sua ascensão na sociedade que lhe era hostil. Assim, pôde preservar
seus valores culturais nas novas estruturas que criou – o candomblé, por
exemplo -, ao mesmo tempo que conseguiu canais de ascensão social na
estrutura do mundo capitalista que se desenhava no Brasil após a abolição da
escravatura. O princípio de corte, traço generalizado entre os negros que
permaneceram “fiéis à África”, não se aplicaria ao “negro alienado do sul do
Brasil”79. Somente os primeiros foram capazes de viver “com toda
tranquilidade nas duas culturas simultaneamente, sem que essas culturas se
choquem, se interfiram ou se misturem” (BASTIDE, 1989, p. 238). Seria o
princípio de corte o que evitaria, para os negros fidedignos à suas tradições,
“o choque de valores bem como as exigências, no entanto contraditórias, das
duas sociedades” (BASTIDE, 1989, p. 517).
O princípio de corte se constituiu no Brasil como uma espécie de
“reação instintiva ou automática, um ato de defesa contra tudo quanto
pudesse perturbar a paz dos espíritos” (BASTIDE, 1989, p. 529). Foi a
resistência cultural perpetrada pelos negros que possibilitou o surgimento
dessa forma peculiar de resistência. Dessa forma o negro escapava às
armadilhas, ao mesmo tempo social e cultural e igualmente fatais para sua
existência: se de um lado assimilasse a cultura do dominador, estaria
aniquilando a sua própria, ainda que aumentasse a possibilidade de ascensão
social - o que lhe permitiria viver no interior da sociedade capitalista, sendo,
entretanto, frequentemente inferiorizado por ser da “classe” negra; se, de
outro lado, mantivesse sua cultura original, quedaria por terra sua

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possibilidade de ascensão social, visto que a sociedade envolvente
desvalorizava e repudiava suas práticas culturais autênticas. Mas o princípio
de corte teria feito do negro brasileiro “um fervoroso patriota, tão ligado à
sua pátria americana, quanto à sua cultura ancestral” (BASTIDE, 1989, p.
529). É assim que vemos os negros participarem, “do mesmo modo que os
brancos”, das lutas sindicais, das ações políticas, do mundo do trabalho etc.,
ao mesmo tempo que é membro de “uma seita religiosa africana” tomando
parte de um mundo onde “são outros os valores que predominam”
(BASTIDE, 1989, p. 530). No mundo dos brancos, então, o princípio de
corte permite que o negro ocupe estrategicamente lugares de ascensão social;
no mundo dos negros, permite que ele viva autenticamente seu universo de
valores culturais. “Num deles, trata-se de ‘papéis’ a representar; em outro, de
mundos mentais interiorizados” (BASTIDE, 1989, p. 530). No primeiro
caso, o negro viveria num mundo moldado pelo “espírito capitalista”; no
segundo, num mundo delineado pelo “espírito comunitário” (BASTIDE,
1989, p. 540).
Na memória coletiva estariam preservados os valores tradicionais
africanos. Entre eles está embutido o princípio de corte. Os valores africanos
preservados na memória coletiva teriam gerado as estruturas sociais para que
pudessem vigorar. Quando falta a matéria é preciso que o espírito a invente
para nela se encarnar. “O espírito não pode viver fora da matéria e, se essa
lhe falta, ele faz uma nova” – eis a fórmula de Roger BASTIDE (1989, p.
32).
É na memória coletiva que teríamos a solução para o problema da
relação entre as estruturas sociais e os valores religiosos. No Brasil este
problema se intensifica pois, segundo Bastide, sempre estamos diante de
“múltiplas estruturas” e de “subculturas diferentes” (BASTIDE, 1989, p.
541). As representações coletivas, os símbolos culturais de um grupo, não
subsistem sem estruturas sociais que as recebam e sustentem. Isso não
significa, entretanto, que são essas estruturas que criam as representações
coletivas. Ao contrário, ao menos no caso dos candomblés, foram os valores
culturais que “secretaram” as novas estruturas sociais. A criação, por outro
lado, não se queda refém da memória coletiva tradicional. “Ao lado dos
valores conservados, há novos valores que nascem” (BASTIDE, 1989, p.
542). As religiões em geral, e o candomblé em particular, são “coisas vivas”.
Elas não são apenas mantenedoras de valores tradicionais, mas também
geradoras de valores novos que retroalimentarão a memória coletiva,

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criando-se um círculo de conservação e atualização de tradições vigoroso e
coerente, ao mesmo tempo tradicional e moderno.

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Filosofia Africana
No jogo das identidades a política da africanidade tem papel
relevante. Já vimos como o CMI preparou sua estratégia e armou sua
armadilha. Apresentando-se como Único Universo de Referência quis
convencer-nos que era o único modelo real para a organização da vida e da
produção. No entanto, há múltiplos regimes de signos, dos quais estamos
destacando aquele gestado na dinâmica civilizatória africana. Os MSPs, no
Brasil, tornaram-se importantes agentes na produção de subjetividade que
escapem da armadilha capitalista e recriem outros mundos possíveis80,
realizando a utopia de um mundo de justiça social, de tolerância entre os
diferentes, de solidariedade entre os povos, de inclusão, de respeito e
promoção da alteridade. As comunidades de terreiro, o Movimento Negro –
também ele herdeiro da forma cultural africana – têm-se se esmerado na
produção de um outro pensamento assentado sob as bases da experiência
afrodescendente, revitalizando a forma cultural negra e atualizando a
cosmovisão africana.
Da cosmovisão da matriz africana nasce a filosofia de matiz
africana. Pensamento que se re-pensa, é certo, mas também vai além de seus
domínios. Transborda as fronteiras do Si-Mesmo para encontrar a
Alteridade. Reconhece que a filosofia é antes de tudo uma atitude. Uma
Ética. Uma atitude ética baseada na sabedoria dos ancestrais. Por isso mescla
racionalidade com encantamento; logos com mito; magia com ciência. A
filosofia de matizes africanas é criativa e dinâmica. Cria seus próprios
princípios e dinamiza sua experiência civilizatória para além do eterno
retorno da tradição, para manter, atualizar e re-inventar sua forma cultural,
para implementar seus projetos políticos.
Uma política da africanidade está fundamentada por uma ética
(filosofia) africana. No jogo das diferenças quem ganha é a diversidade
integradora e não a unidade massificadora. O diagrama da filosofia africana
é construído no plano horizontal da solidariedade e não na verticalidade
opressiva da dominação.
As identidades, sabemos, são definidas contextualmente,
obedecendo aos imperativos do acontecimento. A filosofia africana é uma
filosofia do acontecimento uma vez que critica a filosofia ocidental
fundamentada no pensamento abstrato-transcendental (metafísico) e elege,
em contrapartida, o imanente como território do pensamento. No plano

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imanente aloja-se o real. O real é a singularidade. Vivemos, no Brasil, um
momento muito singular onde a discussão da identidade nacional já não
pode passar ao largo da identidade afrodescendente. O negro brasileiro
erigiu-se não como uma categoria racial-biológica, nem apenas como uma
categoria científico-sociológica, mas como uma conquista política e, dessa
forma, com finalidades propositivas na disputa pelo poder. Poder esse que
tem razão de ser, segundo a cosmovisão africana, para assegurar o bem-estar
da comunidade.
Contra a negação do ser negro, a identidade africana recriada no
Brasil assume sua dimensão política, valendo-se da memória coletiva dos
afrodescendentes e assumindo sua herança civilizatória. Os Movimentos
Sociais, especialmente o Movimento Negro, têm pragmaticamente
implementado várias atitudes na direção da edificação de outros modelos
sociais. Mas chegou o momento de pensar na filosofia que fundamenta essas
atitudes. É o que intentaremos fazer a seguir. Não se trata, como é óbvio, de
desenvolver toda uma filosofia de matriz africana no Brasil. A intenção é
iniciar uma reflexão acerca da possibilidade dessa filosofia, de refletir sobre
suas fontes e de apresentar, seminalmente, alguns de seus desdobramentos
conceituais.

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Filosofia Africana como Filosofia do Encantamento
Por tudo o que foi visto é preciso recolocar a questão das
essências. Não há dúvida que não há matérias que não sofrem a influência
dos territórios culturais. Somos o que vemos. Vemos o que produzimos.
Muito embora não possamos negar a realidade das coisas, as coisas não
podem negar que são vistas senão pelos olhos da cultura. Não há nada que
pode subtrair-se aos olhos da cultura. Agora, a cultura não pode subtrair-se
de suas formas de expressão. As formas de expressão não são imateriais,
muito menos seus modos de apreensão. Somos o que vemos e o que
fazemos. Somos também o que fomos. A cultura local não se furta da
história mundial. Pensar em longos períodos de tempo é necessário para
compreender a intensidade do tempo presente. Só é possível relativizar em
curtos espaços de tempo. Em longas escalas de tempo pode-se perceber a
maneira pela qual as formas culturais podem ser constituídas. Toda mudança
ocorre num padrão de estabilidade. Nenhuma estabilidade se mantém sem o
processo dinâmico das mudanças culturais.
Fora sempre um problema para a antropologia entender como se
deram as mudanças culturais e, para a filosofia, o problema é compreender a
diversidade alojada na unidade. Se a antropologia ocupou-se da diversidade
e a filosofia da unidade, é necessário atentar para os processos de inversão,
mas também os de reciprocidade. A reciprocidade, a lógica da dádiva é,
então, absolutamente importante para a compreensão das vias de mão dupla
das configurações das identidades étnicas que são solo de uma filosofia que
mesmo que universal nasce e dialoga em primeiro lugar com o território
identitário, num primeiro instante, mas, sobretudo, como a forma que
delineia este terreno identitário no sentido mais profundo, no plano de
intensidade mais efetivo e efusivo.
As essências não são coisas. São as condições (culturais) para as
coisas serem. As coisas são construtos dentro de determinadas balizas
culturais que, outrora, chamaram estruturas e que, doravante, prefiro chamar
de formas culturais. As formas culturais são construções civilizatórias que se
originam das tradições. A tradição, no entanto, não é a história dos antigos.
A tradição é só uma categoria capaz de englobar os valores forjados por um
povo. Agora, a tradição é dependente, para se expressar, das formas culturais
existentes. Expressão é igual a existência. Só existe aquilo que se expressa.
Mas a existência não é tudo! A existência também depende das condições

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para que ela possa se expressar. Esta forma de expressão só pode ser
entendida a partir das formas culturais que, muito embora não exista como
ente, existe como possibilidade do ente. Uma possibilidade de condição da
criação do ente e de sua existência e que se comporte como forma cultural é
o encantamento.
O olhar encantado não cria o mundo das coisas. O mundo das
coisas é o já dado. O Olhar encantado re-cria o mundo. É uma matriz de
diversidade dos mundos. Ele não inventa uma ficção. Ele constrói mundos. É
que cada olhar constrói seu mundo. Mas isso não é aleatório. Isso não se dá
no nada. Dá-se no interior da forma cultural. O encantamento é uma atitude
diante do mundo. É uma das formas culturais, e talvez uma das mais
importantes, dos descendentes de africanos e indígenas. O encantamento é
uma atitude frente a vida. É do encantamento que nasce a filosofia africana.
Roger Bastide só pode tornar-se uma autoridade nos estudos de candomblé
porque passou pelo encantamento. Pierre Verger passou pelo encantamento.
Estrangeiros que para compreender esse mundo tiveram que tomar a forma
cultural do grupo estudado, aí então, converteram-se. Talvez seja isso que
Juana Elbeins dos Santos, Marco Aurélio Luz, dentre outros, defendam que a
pesquisa deva acontecer “desde dentro”81.
O encantamento não é objeto de estudo como fosse uma coisa. Ele
é a condição para submeter objetos de estudo a uma pesquisa. A
antropologia racionalizou a magia. O encantamento pode encantar a
antropologia e fundamentar a filosofia. O encantamento é uma atitude. É da
ordem do acontecimento. Por isso a filosofia do acontecimento pode
entender o encantamento. Como atitude o encantamento está na ordem da
escolha. A escolha não é infinita, mas também não se dá de maneira
absoluta. Ela sempre dá-se dentro de uma forma cultural. É possível,
entretanto, escolher outras formas culturais que não a nossa, muito embora,
nossa forma cultural originária não nos abandone. Dá-se aqui um hibridismo
de formas culturais. No mundo moderno, as fronteiras identitárias foram
suplantadas. Quanto mais complexas as sociedades, mais híbridas tendem a
ser as formas culturais. As formas culturais, no entanto, não são
relativizantes em excesso, pois como formas elas dão contorno aos
conteúdos. O TAO, os hindus, dentre outros, já perceberam isso a dezenas de
séculos. Também as sociedades pré-coloniais da África. Também as
sociedades indígenas da América do sul.

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Forma Cultural e Filosofia Africana
As formas culturais contém energias e não matérias cristalizadas.
Energias são forças. Forças são a possibilidade das ações, das atitudes. Por
isso o poder é o exercício da força. A força só é limitada pela forma. A
forma e a força não se dissociam. A força é o de dentro da forma. A forma o
de fora da força. A energia se dissipa no espaço. O espaço não é vazio.
Apesar do espaço ser um conceito, esse conceito existe porque há a
possibilidade/condição desse conceito existir. O espaço é um construto
simbólico mediado por signos. Os signos fazem a mediação entre as forças e
as coisas. As coisas são signos. A força é signo. A forma é o invólucro do
signo. Por exemplo, a forma jêje está baseada no princípio da ancestralidade
e no solo. Na terra está a forma do jêje. Nada fora da terra pode ser
entendido. Essa forma cultural pode ser alterada. Ela é construída. No
entanto, é em seu interior que qualquer alteração pode ser dada. A forma não
é propriamente um signo. Ela é a condição para o signo. Pode ser
significada, mas extrapola o signo, porque lhe dá a condição de existência. A
existência não é tudo. A forma também não. A possibilidade está aquém e
além do ser. A possibilidade é a matéria do devir. O devir é o quanta e não a
matéria organizada. A matéria organizada é a territorialização da molécula.
A desterritorialização é a potência. Só há potência se há energia. A energia é
força. A força é a mãe da possibilidade.
A forma cultural africana, que sustenta a dinâmica civilizatória dos
afrodescendentes e que permite a manutenção/atualização da Cosmovisão
Africana no Brasil dá a possibilidade de um pensamento africano. Sem
dúvida a filosofia não paira além nem aquém da história. Ela é um seu
produto. Como tal, ela é definida nos contornos do solo de onde emerge. Se
a filosofia é universal enquanto saber autônomo e produtora de conceitos, ela
é também contextual, visto que os significados de seus conceitos são
determinados de acordo com a lógica do lugar próprio. Isto não impede, no
entanto, que os produtos singularizados pelo solo cultural de onde emerge
tenha validade e pretensões universais. A fórmula já fora dada: quanto mais
regional, mais universal. Assim, pautamos a filosofia africana desde suas
estruturas sociais e, desde esse território político, econômico e cultural.
Como vimos, toda a estrutura social africana é permeada pelo
sagrado, pela Força Vital que emana do preexistente ou dos ancestrais. A
Força Vital não é uma coisa, mas uma energia. Ela perpassa todo o universo

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africano. O universo é um conjunto de interações de seres (minerais,
animais, vegetais) interligados, como se formasse uma imensa teia de aranha
entre fenômenos visíveis e invisíveis. A palavra flui como portadora de uma
“força” divina, e por isso mesmo capaz tanto de destruir como de construir,
tornando-se, ademais, um meio de transmissão de conhecimento sagrado ou
profano. O tempo, para os africanos, é o tempo dos antepassados. Tempo
voltado para o passado - “idade de ouro” dos africanos. Tempo sagrado
envolvendo o tempo presente; tempo dos mortos vivificando o tempo dos
Homens. Tempo zamani82 dando sentido ao tempo sasa83. O tempo africano é
o tempo dos ancestrais, seja no passado, seja no presente. A pessoa é a
síntese dos elementos que compõem o universo. Resultado dos elementos
naturais e sagrados, o “homem” não está dissociado da sociedade. A
dicotomia ocidental indivíduo/sociedade é rechaçada pela concepção
integralista da pessoa africana. Como o universo, a pessoa é o resultado da
integração de todos os seres que vivem indissociavelmente interligados. A
pessoa é forjada nos processos de socialização, que tecem a identidade dos
indivíduos ao mesmo tempo em que constroem o tecido social. A
socialização é sempre responsabilidade da comunidade, o que fornece o
controle social da produção da subjetividades dos indivíduos africanos.
Quando o indivíduo morre e uma tensão é criada na comunidade africana, a
harmonia prevalece ao se realizar os ritos funerários capazes de
restabelecer para o grupo a “energia” que se alojava no defunto. Essa energia
ou Força Vital passa agora ao domínio da comunidade, e se o morto fora
uma personagem significativa da vida comunitária poderá passar de
antepassado a ancestral. A “força” dos ancestrais alimenta o núcleo comum
de convivência dos africanos – a família. Locus da morada dos ancestrais, a
família cuida da produção para garantir o bem-estar material da comunidade.
Pautada na tradição dos ancestrais, a família matrilinear africana zela pela
inclusão e pelo equilíbrio, ao invés de promover o conflito e a exclusão –
como no caso dos ocidentais. Ela, então, centraliza não apenas a produção,
mas também o exercício do poder – que deve garantir o bem-estar social da
comunidade.
A ancestralidade é a fonte de onde emergem os elementos
fundamentais da tradição africana. Ela mesma é um princípio capaz de
organizar a vida e as instituições dos africanos e seus descendentes. É a
categoria principal da “dinâmica civilizatória africana”, pois para além das
relações de parentesco consanguínea, a ancestralidade tornou-se o princípio

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organizador das práticas sociais e rituais dos afrodescendentes no Brasil. É a
partir dela que se entende a lógica capaz de organizar os elementos
estruturantes dessa cultura, pois tanto a força vital, o universo, a palavra, o
tempo, a pessoa, os processos de socialização, os ritos funerários, a
família, a produção e o poder são estruturados a partir da ancestralidade.
A filosofia africana está baseada no princípio da ancestralidade, da
diversidade, da integração e da tradição. A ancestralidade responde pela
lógica que articula o conjunto de categorias e conceitos que revelam a ética
imanente dos africanos. A diversidade, enquanto princípio, respeita a
diversidade étnica, cultural e política dessas comunidades, valorizando as
singularidades que emergem de cada território africano. A inclusão permite
que a diversidade não se torne um cordão de isolamento, um motivo para o
niilismo, mas submete as singularidades territorializadas a um critério ético
maior: o do bem-estar das comunidades. Não existe bem-estar sem inclusão.
A tradição, por sua vez, é a malha que sustenta todos esses princípios
historicamente produzidos. Trata-se aqui de uma tradição dinâmica, capaz de
se moldar aos novos tempos e responder aos desafios contemporâneos.
A filosofia africana, assim, não é nem estruturalista, apesar de
pensar-se desde os pontos comuns que lhes dão corpo, nem relativista, na
medida em que apesar de valorizar as singularidades, preocupa-se com as
questões estruturais do bem-estar da comunidade. Na mescla entre estrutura
e singularidade, dinamismo e estabilidade, encontramos uma filosofia
pungente - lamentavelmente negligenciada - e portadora de uma força
criativa que tem poucos paralelos na história. Filosofia tradicional que nos
traz as novidades para o mundo contemporâneo. Aprender as novidades dos
antigos é sempre uma sabedoria atual. E filosofia é sabedoria em qualquer
tempo.

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Ética e Moralidade
Rodolfo Kusch (1975, 1978)84, sabiamente, dizia que a filosofia é
produzida desde a geocultura. Geocultura que engloba a geopolítica, a
economia, a sociedade... De acordo com Kusch a filosofia como produto
cultural não pode ser pensada fora de seu solo. Este solo não é apenas uma
fronteira geográfica. Ele é uma delimitação identitária. Mais que delimitação
identitária, ele é o mundo mesmo. Mundo que pode ser perscrutado pela
ótica da tradição. Mundo tecido de símbolos que encontram seu significado
profundo no terreno onde é engendrado. Mundo encantado, onde uma
paisagem é mais que uma imagem; onde a paisagem é já a revelação
profunda dos signos constituidores da riqueza cultural de um povo. É a
essência revelada na aparência. O ser inteiramente presente no fenômeno.
Os signos produzidos nos solos de cultura podem, por serem
signos, serem interpretados por quaisquer povos de quaisquer culturas.
Podem ser transmutados, ressemantizados, reelaborados em qualquer
contexto. Mas é desde o solo de sua produção que a riqueza de seus
significados tornam-se, por assim dizer, mais fortes. Não porque o signo é
uma essência em si mesmo. Mas porque o significado de um signo é sempre
contextual (GEERTZ, 1989). Ele nasce dos jogos interacionais de indivíduos
ligados pelo mesmo código de comunicação cultural. A significação cultural
é simultaneamente semiótica e pública. Semiótica porque composta de
signos. Pública porque todo significado é produzido coletivamente. Assim, a
produção de signos obedece sempre a um limite territorial - o que chamarei
de territorialização do momento nascente do signo cultural, ao mesmo tempo
que possui uma linha de fuga para fora de seus limites identitários – o que
chamarei de desterritorialização do momento ondulatório do signo.
A territorialização é fundamental para a estruturação do signo. Sem ela
é muito difícil localizar o signo no tempo e no espaço. É o corpo do signo.
Sua carne que sustenta sua identidade. É a consistência do signo. A
possibilidade do seu vir a ser. A desterritorialização, por sua parte, permite
que o signo cultural não se torne um signo despótico. Sendo do plano das
linha de fuga, torna-se os planos de consistência desterritorializados. Leva os
signos para além dos territórios identitários e permite que sua consistência
original possa ser atualizada ad infinitun. É quando um signo pode vir a
tornar-se outro. Quando ele perde sua circularidade identitária e passa a ser a
matéria da alteridade.

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Na África foram produzidos muitos signos que, por efeito da ondulação
desterritorializada dos signos, tornou-se no Brasil fonte primordial da
formação da identidade brasileira. Pensar uma filosofia africana é, na
verdade, pensar uma filosofia brasileira com base na matriz africana. A
filosofia é antes de tudo uma ética, uma conduta frente aos outros, uma
atitude frente ao mundo e a nós mesmos. Na África de língua yorubá e no
Brasil afrodescendente, a filosofia não está apartada do sagrado. Não há a
dicotomia sagrado/profano. Não há a delimitação ciência (saber racional) e
religião (saber da fé). Assim a filosofia de matriz africana abrange essas
dimensões em seu espectro. As divindades, neste contexto, são princípios ao
mesmo tempo religiosos, políticos, econômicos e sociais.
Oxalá e Exu são duas dessas divindades que podem ser interpretadas
como categorias fundamentais do pensamento social africano e
afrobrasileiro. Oxalá é o pai da criação. A representação máxima da moral
africana. O caráter (Íwà), a bondade (Oore), a paciência (Sùúru) e o respeito
(`Qwò) são características diretas dessa divindade funfun. A justiça, a
sinceridade, a prática da caridade (Olóòdodo), assim como manter-se uma
pessoa verdadeira (Olòótóo), são outras virtudes atribuídas a esse orixá e,
por isso mesmo, se perpetuam como valores culturais de seu povo.
Poderíamos identificar Oxalá como a força conservadora na cosmovisão
africana. É uma força criativa a força conservadora. Ele conserva a vida ao
mesmo tempo que a cria. Criar é conservar; conservar é criar. Numa palavra,
é a energia criativa que conserva o universo africano.
Exu, de acordo com alguns mitos, é filho de Oxalá. Se o pai detém os
valores morais, o filho é o portador dos princípios éticos. Ele é o fiscalizador
do axé, a força vital dos yorubás. Segundo BENISTE (2002, p. 207), Exu “é
a efetiva regra do universo, o princípio de ordem e de harmonia, e o agente
de reconciliação”. Mas Exu não é comportado como o pai. Sopra onde quer.
É o mais autônomo das divindades do panteão africano. Faz tudo que lhe
pedem; destrói e constrói com a mesma força e empenho. Todos temem Exu.
Exu foi sincretizado com o diabo, tamanho o temor que inspira. Mas Exu
não tem os atributos de Lúcifer, pois ele não está em oposição com Deus.
Pelo contrário, é ele quem mantém viva a chama da ética. Ele rege os
princípios da harmonia e do bem-estar, ainda que para mantê-los precise
destruir e ser enérgico. Exu é a força dinâmica do universo de matriz
africana. Exu é o próprio princípio ético, por isso ele não é submetido a
ninguém. Ele submete! Exu interliga todas as coisas, orum e aye, homem e

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divindade, “bem” e “mal”, força e fragilidade. Tudo que faz é para manter o
equilíbrio dinâmico do universo africano. Nisso reside a força de Exu, e a
isso se resume a ética africana. Ética que não se opõe à moral, mas é dela um
complemento. É quando se encontram, no seio da mesma cosmovisão,
tradição e atualidade, movimento e estabilidade, moral e ética. A lógica da
cosmovisão africana privilegia a complementaridade e a integração. Oxalá e
Exu, assim, são expressões da mesma cultura, cada qual com sua intensidade
e cada qual com sua função. Um não existe sem o outro. Um e outro são
dinamicamente confrontados no jogo de interação social produzido desde a
matriz africana. Oxalá produz os signos territorializados, que dão
consistência à comunidade e forma para elas um terreno seguro de
identidade tradicional. Exu, enquanto princípio dinâmico, é o signo
desterritorializado, que atualiza a tradição e permite que a África não se
torne uma prisão para os signos ali produzidos e, pelo contrário, faz dela
solo fértil para a produção simbólica dos africanos em todas as partes do
planeta, especialmente no Brasil. Essa operação semiótica está no bojo
mesmo da concepção filosófica do povo africano e de seus descendentes.
Essa filosofia africana, é, portanto, filosofia universal, pois, graças a Oxalá,
ela emerge de um solo e pode ter o designativo “africana” e, graças a Exu,
ela é universal, pois desterritorializada que é, pode oferecer os princípios
produzidos contextualmente em solo cultural africano para o mundo todo,
pois a vida – e o equilíbrio dinâmico que a sustenta – é uma prerrogativa de
todos os humanos.
Voltando à questão da ética e dos princípios que são a fonte da forma
cultural negra, pode-se dizer que a ética africana não é normativa nem
prescritiva. Ela é educativa. Ela é erótica e estética ao mesmo tempo. Por ser
a ética a primeira filosofia, é a filosofia antes que tudo uma ética85. A ética é
da ordem do acontecimento e, por isso tudo, ela é uma categoria que se
relaciona antes que tudo com as atitudes. Somos condenados à escolha, e a
escolha pode-nos lograr a liberdade. A ética não é a ciência da liberdade,
muito menos as regras que conduzem à liberdade. A ética é uma atitude!
Como toda atitude só pode ser significada a partir de um território cultural, a
ética está condicionada aos contextos culturais que lhes dão significação. A
Ética visa mais o respeito às significações culturais que à liberdade em si
mesma. O fim da ética, no caso africano, é manter a forma cultural e não
normatizar a liberdade.

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A ética é uma atitude que se tem diante do outro: outro animal; outro
vegetal; outro mineral; outro divindade. Essa atitude é organizada de acordo
com a forma cultural do grupo. A ética é precisamente esta atitude frente à
comunidade. É ética a atitude que preserva as formas culturais. Não é ética
as atitudes guiadas contra os interesses/cultura do grupo. Assim, pode-se ter
inovações na tradição sem romper com a ética. Inversamente, pode ocorrer
que o tradicionalismo quebre com a ética do grupo, ao, p.e., engessar uma
norma que já não responde à forma cultural do grupo.
A ética não é uma moral. A ética é mais que princípios que
orientam as ações. Ela é, em si mesma, uma atitude. Atitude que terá como
instância de avaliação as formas culturais – que foram coletivamente
construídas por gerações. Por isso a ética de matriz africana não queda-se
submissa aos filósofos de gabinete, aos chefes de estado, ao sacerdócio
religioso, etc. Ela é um patrimônio coletivo fabricado em uma larga escala
de tempo.
Para entender a ética africana é preciso que nos dediquemos a
compreender a atitude dos personagens míticos e estabelecer relações
possíveis desses personagens com a forma cultural africana.
Há pouco, elegi EXU como o personagem que personifica a própria
ética africana. Elegi também a Oxalá. O primeiro para tratar da ética e o
segundo para compreender a moral africana. É que a ética é a
desterritorialização das normas e, para além dos princípios, resolve-se no
calor dos acontecimentos. Por isso admite a surpresa, o acaso, a incerteza, a
sedução, o perigo, a violência e até mesmo a violação. Já a moral é o espaço
da criação, da territorialização dos sentidos, da fabricação dos significados –
territorialização sem a qual não existe materialização – que é a base da
existência. Oxalá cria a existência. Exu a dinamiza. Oxalá constrói, Exu
interliga. Oxalá é a pragmática. Exu a sintaxe e a semântica. Na gramática da
forma cultural africana ética e moralidade formam um conjunto inseparável.
A filosofia africana, como dissemos, é antes de tudo uma ética
(LEVINÁS, 1980, 1982). Desenquadrada dos moldes da filosofia clássica,
medieval e moderna, a filosofia de matiz africana abre-se para várias
possibilidades. Longe do paradigma da representação, é uma filosofia do
sentido. Dissonante com a filosofia da totalidade, intenta ser uma filosofia da
alteridade. Discordante com a filosofia da identidade, enviesa-se por uma
filosofia da diversidade86. Diversidade de estilos, de temas e de solos. A
filosofia emerge sempre desde um solo. Por ser filosofia não é filosofia de

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um lugar, mas desde um lugar. É filosofia, portanto, com pretensões de
conjunto e fundamentação, mas sua matéria está embotada do solo de onde
emerge...
A ética que emerge da filosofia da atitude está assentada na
aderência da pele do real: nos acontecimentos. Não é uma norma abstrata
reguladora das ações humanas. Não deixa de ser normativa, mas não é uma
norma. O código ético africano está baseado em princípios. Esses princípios
não são deduzidos de uma metafísica, mas de uma ontologia encontrada na
textura das coisas. As “coisas “das quais falamos são compostas de
“energia”, nos mesmos moldes que falamos da Força Vital. A ontologia
africana lida menos com coisas que com forças. Ela está impregnada do
conceito de força, e, a base da ética e da moral é exatamente a ontologia da
forças. Oxalá e Exu são forças que tem função no universo. Enquanto forças
eles podem criar e transcender territórios; destruir e forjar identidades. É
uma ética do acontecimento. Uma ética mais fundamentada no sentido (que
não tem um fundamento) que na representação. Uma ética onde o bem-estar
da comunidade tem mais peso que os privilégios individuais. O que vai dizer
o que é “bem-estar” para a comunidade é o seu contexto, isto é, a própria
comunidade. Isso é o único universalizável, a saber: o princípio. As normas
variam de comunidade para comunidade, de contexto para contexto. O
princípio, apesar de sofrer mutações, permanece como o território de onde
nascerão os signos culturais que darão consistência às regras da comunidade
– neste caso, regras comunitárias – que tem como finalidade garantir o bem-
estar social. O princípio é a territorialização dos signos culturais africanos e
as normas a singularização desses princípios nas diferentes comunidades. A
ética é assim a territorialização da tradição, terreno-mor de onde emergem os
princípios da forma cultural africana. Mas, atentem. Não são princípios
estabelecidos como conteúdos fixados pela tradição. São princípios de
formas de organização que ganham conteúdos diferentes, conforme
diferentes são os contextos sociais. A ética é menos um conjunto de
princípios axiomáticos, e mais uma forma de vida. A ética africana é já sua
forma cultural. A forma cultural africana manifesta-se como uma ética
étnica. Essa forma de vida é perpetuada e ressemantizada pela tradição. Não
é a tradição que impõe a continuidade dos valores cunhados pelos ancestrais.
Na ética africana, interessa mais a forma ancestral do repasse da tradição.
Digo: a ancestralidade é já uma ética. É a sua forma (cultural), o seu lado de
fora que delimita enquanto território a possibilidade de seus conteúdos, estes

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sim, mutáveis de acordo com as cores regionais. Por isso a ética africana está
associada a Exu, pois ele é o princípio dinâmica do universo simbólico
africano (yorubá).
A moral africana que encontra seu ícone em Oxalá, é complementaria
da ética. Há, porém, uma singularidade na moral africana. Ela é criativa e
não apenas normativa. Derivada da ética, a moral normatiza a vida, isto é,
cria a possibilidade do bem viver. Por isso o código moral africano é
implacável com aqueles que não obedecem a forma ancestral de repasse do
conhecimento e da vida comunitária. Por isso ela regula a convivência social
para garantir a inclusão, a diversidade, a complementaridade e o bem-estar
do grupo. Bem-estar do grupo que depende das boas relações com a natureza
– da qual o grupo humano se sente parte e não à parte – e com as divindades.
Moral, então, é questão de responsabilidade social e comunitária. Moral é
criar as condições para a vida de cada um e de todos. A moral, neste caso, é
o lado de dentro da ética. Sendo criativo, muta-se constantemente ao sabor
das transformações do real. É signo desterritorializado que por causa de seus
movimentos ondulatórios proporciona a criação da novidade; esta criação,
no entanto, segue a forma da ancestralidade, que rege da mesma forma, mas
com diferentes normas, os conteúdos normativos de cada comunidade.
A forma cultural, ela mesma, é mutável. Não enquanto substância, mas
por sua característica de modelar o real. Sendo a filosofia africana uma
filosofia do acontecimento, penso tanto a organização do acontecimento a
partir das regras comunitárias (moral) como a forma que envolve essas
regras (a ética!). Não existe moral sem ética e ética sem moral. Se existe o
dentro existe o fora. Tudo está em tudo, diz a tradição nagô. O universo se
comporta como uma teia de aranha: cada singularidade – regra da vida
individual e comunitária – define sua forma no confronto com a forma que
lhe define os contornos. É assim que a forma cultural africana, definida
como ética, traz no bojo de sua cosmovisão um emaranhado de experiências
que apontam outros caminhos para a organização da vida e da produção,
sendo, portanto, na razão mesma de sua existência, uma crítica ao
Capitalismo Mundial Integrado e uma alternativa ao sistema de exclusão,
visto que os princípios que sustentam sua dinâmica civilizatória estão
assentados na inclusão, na interação e na diversidade. A ética é, com efeito,
a construção da liberdade de mim mesmo e do outro. Essa construção pode
dar-se, não apenas como fundamentação filosófica coerente, mas, sobretudo,

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se a experiência coletiva de um povo fornecer-lhe os elementos para tal. Essa
é, exatamente, a situação da África e de seus filhos espalhados pelo mundo.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os afrodescendentes sempre foram negados pela representação


dominante da história do Brasil. Considerados máquinas de trabalho na
escravidão, estigmatizados como vagabundos no período pós-abolição e
folclorizado em seus aspectos culturais no Brasil contemporâneo, teve sua
alteridade negada pelo sistema de dominação. Desde os tempos em que se
duvidava da existência de suas almas até nossos dias, onde se duvida de sua
competência e capacidade civilizatórias, o negro brasileiro fora
desumanizado, inferiorizado e discriminado, reduzido à uma identidade
atribuída por outréns (seus algozes). Identidade como armadilha ideológica
de aprisionar o negro num ciclo vicioso de repetição de estereótipos e
preconceitos que reificam o racismo no Brasil. Já dizia Malcon X que não
existe capitalismo sem racismo. Com efeito, o CMI ao eleger-se como
universo único de referência e sobrecodificar os outros regimes de signos,
fossilizou uma representação negativa da população afrodescendente.
Condenou os negros a viverem alheios a seus próprios códigos culturais, na
tentativa malograda de força-los a reproduzir o sistema de dominação que
lhes mantinham cativos.
Ora, a história não possui apenas uma direção e, mesmo subordinados a
um sistema de dominação, os afrodescendentes souberam dar respostas
criativas a essa situação de opressão. Não obstante o jugo da escravidão, os
africanos e seus descendentes preservaram e recriaram suas manifestações
socioculturais por todo o território nacional. Se eram vistos como máquinas
(“res instrumentaliun”) pelos senhores de engenho, se foram tidos como
“marginais” no período pós-abolição, se são estigmatizados como resíduo
folclórico de cultura no presente, isto não significa que assim o sejam e se
comportem. A dinâmica civilizatória africana transladada para o Brasil
gestou uma cosmovisão que pode ser potencializada como modelo sócio-
econômico e político-cultural não apenas para os afrodescendentes, mas para
todo o planeta. Não se trata aqui apenas de defender uma representação
positiva dos afrodescendentes para diminuir os efeitos nefastos das
representações negativas a que foram submetidos durante os últimos séculos.
Trata-se, isto sim, de demonstrar a falência do CMI que danifica todo o

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planeta e apontar outros caminhos para a humanidade. Paradoxalmente, é
justamente no contingente civilizatório ao qual foi negada a humanidade que
agora surge os modelos que re-humanizam nossa espécie. Alguém poderia
pensar que esse é um discurso megalomaníaco, grandiloquente e
apaixonado. Sem dúvida é um discurso carregado de afeto, posto que
tomado de paixão, mas, também, lúcido, pois evita as soluções fáceis e os
discursos românticos. O modelo econômico do Capitalismo agrediu de tal
modo o Meio Ambiente que coloca em risco a vida no planeta. O sistema do
capital exclui cerca de 2/3 da população dos benefícios de seu modo de
produção. O sistema político tornou-se refém dos interesses privados das
grandes corporações empresariais, chegando ao absurdo de ficar subjugado,
por exemplo, à indústria bélica – como é o caso recente dos E.U.A. A
segregação entre homem e natureza acabará por destruir a humanidade e o
ecossistema. O acúmulo do capital acabará por reproduzir apenas capital87 –
como já acontece no sistema financeiro -, sem preocupar-se em produzir os
bens necessários à manutenção da vida da nossa era e das gerações futuras.
Enfim, vivemos o colapso de um sistema de exclusão que teima afirmar-se
como único caminho para a organização da vida e da produção. A falácia
dessa semiótica significante já foi desvendada. A armadilha dessa ideologia
dominadora já foi desfeita. Para além da crítica, no entanto, apontamos
outros caminhos.
Novos caminhos, entretanto, exige a discussão acerca dos paradigmas
necessários para organizar a vida e a produção, sem que as diferenças sejam
massacradas, sem que a diversidade seja massificada na unidade de um
único referencial significante. Ao contrário, o paradigma que desenhamos é
aquele do arco-íris, capaz de conter numa unidade estética a diversidade e
beleza das várias matizes de cor. Da mesma maneira, o paradigma ecosófico
que surge da África e de seus filhos integrados em todo o mundo, congrega
uma unidade política e social capaz de gerir o bem-estar de todos e de cada
um, sem reduzir a diversidade – fonte da pluralidade cultural que inspira
novos paradigmas includentes.
Desta forma, buscamos nos três Impérios Africanos e nas religiões
afro-brasileiras elementos que estruturaram estas sociedades e que
apresentam modelos concorrentes ao capitalismo (CMI). Não obstante, não
basta simplesmente resgatar a cosmovisão de uma população tradicional.
Isso seria recair no mito do bom selvagem. Não interessa-nos nem o
naturalismo primitivo, nem o romantismo ingênuo. Primamos, isto sim, por

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uma abordagem política do fenômeno cultural, uma vez que a discussão da
identidade de um povo é antes de tudo a discussão de um projeto societário.
Os ritos de iniciação, por exemplo, equivalem a processos de
socialização. São ritos coletivos que iniciam os jovens nas responsabilidades
da vida adulta, no caso da África, ou ritos de ingresso na comunidade dos
orixás, no caso dos candomblés. Ou seja, a construção dos sujeitos é uma
responsabilidade da comunidade. O social é organizado para lograr o bem-
estar da comunidade e de cada indivíduo, mantendo seus segredos e suas
normas coletivas de controle.
A relação com o Meio Ambiente também é exemplar. A natureza é
divinizada pelos africanos e seus descendentes. “Kosi ewé, kosi orisá” (“sem
folhas não há orixá”), dizem os nagôs. Ou seja, se não houver uma relação
digna com a natureza não existe nem os deuses, nem os homens. Não há
separação entre homem e natureza, entre cultura e civilização. Os africanos
inventaram a civilização da natureza, ou seja, uma civilização assentada na
relação interativa com o Meio Ambiente e não contra ele.
A ancestralidade é a maior e mais importante referência destas
sociedades. Ela é o coração vigoroso da cosmovisão africana. Ela é a lógica
que engendra e organiza os outros elementos do pensamento africano
recriado em nossas terras. É o epicentro do regime semiótico
afrodescendente que engendrou, concretamente, as formas culturais
africanas e sua dinâmica civilizatória. A ancestralidade é a referência no
tempo, no espaço, no orun88 e no aiyê89. Ela é portadora privilegiada da Força
Vital, é o centro da família, quem dá a direção na produção e a fonte máxima
de poder. Os ancestrais, com efeito, é a representação genérica da sociedade
africana.
A cosmovisão africana redefine as concepções filosóficas a partir de
sua própria dinâmica civilizatória, de acordo com o escopo de sua forma
cultural. Assim, o universo é pensado como um todo integrado; a
concepção de tempo privilegia o tempo passado, o tempo dos ancestrais, e
sustenta toda a noção histórica da cosmovisão africana; já a noção de pessoa
é vista de modo muito singular, cada qual possuindo seu destino e
procurando aumentar a sua Força Vital, o seu axé; a Força Vital que é a
energia mais importante dentre esses povos, insufla vitalidade ao universo
africano. A palavra, por sua vez, é tida como um atributo do preexistente, e
por isso mesmo, promovedora de realizações e transformações no mundo,
veículo primordial do conhecimento. A morte, por seu turno, não significa o

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fim da vida, mas parte do processo cíclico da existência que tem como
referência maior os ancestrais. A morte é a restituição à fonte primordial da
vida, a lama que está situada no orun. A família é a base da organização
social. Os processos de socialização forjam coletivamente o indivíduo,
fundamentando o objetivo a ser atingido socialmente: o bem-estar da
comunidade. Por fim, o poder, que é vivido coletivamente, tem o objetivo de
promover a comunidade e garantir a ética africana.
As religiões tradicionais da África congregam todos esses elementos
em seu bojo. Elas são imanentes e comunitárias. Pragmáticas, norteiam-se
pela eficácia e pela realização do crescimento da força vital de suas
comunidades, o que se traduz em bem-estar social. Organizadas em torno do
culto aos ancestrais e aos orixás, são controladas socialmente, uma vez que a
religião não está desvencilhada da política e da economia. Aliás, a
integração e a diversidade são outras características marcantes das religiões
tradicionais da África. Nelas, há uma sacralidade profunda e uma manifesta
habilidade social. Sagrado e profano coabitam o mesmo plano, o que
equivale a dizer que o cotidiano é sacralizado e que o religioso é imanente.
Ao refletir sobre estas características culturais quisemos rediscutir a
identidade nacional no seio de um cenário político ideológico em que estão
inseridos as comunidades de terreiro e a práxis dos MSPs, especialmente dos
Movimentos Negros organizados. Discutir a identidade é crucial para se
estabelecer um diálogo acerca da falácia da globalização e de possíveis
alternativas frente ao Capitalismo Mundial Integrado. As políticas, por mais
globalizadas que sejam, sempre erigem um polo de referência que estão
vinculadas à identidade de um povo, nação ou etnia. Não quisemos, como
dissemos muitas vezes, propor a inversão dos polos de dominação, propondo
um sistema negro-africano de dominação ao invés de um sistema branco-
europeu de opressão. Intentamos, isto sim, demonstrar como a cosmovisão
africana não polariza as dicotomias de dominação, efetuando planos
diagramáticos em que se cruzam, transversalmente, o negro e o branco, a
natureza e a cultura, a vida e a morte, o sagrado e o profano, o poder e o
serviço, a ética e a moral. Não se trata de inverter os polos de dominação,
mas de combatê-la. Não se trata de globalizar a cultura negra, mas
universalizar seus valores. Não se trata de conquistar a hegemonia política
negro-africana, mas de promover sua experiência civilizatória a fim de criar
novos regimes sociais fundados na solidariedade e na justiça. Cumpre
reconhecer que os móbiles da práxis dos africanos e seus descendentes

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brasileiros (especialmente aqueles participantes dos MSPs) foram o desejo
de comunhão e o desejo alterativo – verdadeiros articuladores da cosmovisão
africana no Brasil.
Oxalá a cosmovisão de matriz africana seja, contemporaneamente, um
suporte para a busca de alternativas reais ao Sistema do Capital Globalizado,
que até agora globalizou apenas a miséria humana, tanto em sentido real
quanto figurativo. Que existem práticas condizentes com os princípios
estruturais da cultura africana foi o objetivo subjacente deste livro que
preocupou-se em apontar realizações concretas dos povos que materializam,
em seu cotidiano, a cosmovisão de matriz africana. Esses princípios
vivenciados na dinâmica civilizatória dos afrodescendentes não são
experiências condenadas a habitar o círculo desse contingente populacional.
Eles extrapolam as fronteiras da cultura negra para africanizar a política, a
economia e os sistemas socioculturais em qualquer parte do mundo.
Africanizar, neste sentido, não é reduzir as diferenças ao equivalente geral da
forma cultural africana. Africanizar é dignificar, é abrir-se à alteridade, é
desejar a diferença, é promover a ética, valorizando a expressão de todos e
de cada um, sem massificação ou imposição de modelos, mas
fundamentando as múltiplas respostas criativas num sistema ético que, por
princípio, define-se pela liberdade. Liberdade esta que está longe de ser a
liberdade formal cunhada pelos ocidentais. Buscamos tenazmente os
processos de libertação efetivos, includentes, que não fiquem esvaziados por
discursos abstratos e sob lógicas transcendentes. Viver sob um regime ético,
que promova a justiça social e a emancipação humana, bem como a
preservação e valorização do planeta, ao mesmo tempo que não se imponha
modelos políticos totalitários, que se evite o etnocentrismo, o machismo e o
racismo são desafios que não se encerram neste estudo, mas que, a partir
deles, convidamos os leitores a seguir para além das fronteiras deste livro, na
aventura da construção da CIDADANIA!

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ENSAIOS DE FILOSOFIA AFRICANA: Trilogia da
Ancestralidade

À guisa de um ensaio biográfico 90


Eduardo David de Oliveira é um ser do caminho. Dos encontros, das
definições, das mudanças, simbioses e metamorfoses como fluxos que se
complementam. Sua trajetória pessoal é multifacetada, vivida na
multiplicidade de sentimentos, experiências e transes. A uma primeira vista,
pode parecer dispersiva, pois há em seus caminhos de formação muitos
momentos nos quais se sobrepõem facetas que revelam um homem de seu
tempo, enfrentando os dilemas da vida de uma família da classe
trabalhadora, num país com oportunidades desiguais, uma busca por
respostas existenciais na fé, na espiritualidade, na militância social, nos
afetos vividos com largueza de expressão. É uma itinerância coerente com a
opção de inquirir-se e inquirir à vida e tudo que nela se mostra para ser
conhecido.
Nessa aventura de tornar-se o que é, não deixou de ser militante,
filósofo, antropólogo, educador, poeta, religioso, cidadão. Tornou-se pai de
Davi, é amigo/parceiro/companheiro, em relações sempre travadas numa
busca de si e do outro, incessante e intensa, às vezes, às custas do que pode
ser chamado de apaziguamento.
Essas faces, diacronicamente, correspondem simplesmente à
formalidade de sua formação (Graduação em Filosofia, Especialista em
Cultura Africana, Mestrado em Antropologia Social, Doutorado em
Educação Brasileira, Pós-doutorado em Filosofia Africana e Latino-
americana, Professor Visitante Sênior na Universidade Pedagógica de
Moçambique, Pesquisador do Centro de Estudos Africanos da Universidade
Eduardo Mondlane em Maputo). No entanto, anacronicamente, estar nessas
encruzilhadas corresponde à materialidade dessa mesma formação, en train
de se faire, vivida cada uma delas de modo diferente, a depender das
mudanças que ocorreram por dentro e fora de si.
Suas opções teóricas estiveram associadas aos diversos contextos que
vivenciou. A infância, a juventude e o início da vida adulta na humildade

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que imprimiu o arrojo e a disposição para mudar, a militância nos
movimentos sociais e no partido dos trabalhadores, a criação do IFIL –
Instituto de Filosofia da Libertação, do IPAD – Instituto de Pesquisa da
Afro-descendência, o trabalho no MEC/SECAD – Ministério de Educação
do Brasil/ Secretaria de Alfabetização Continuada e Diversidade, a docência
(ensino básico, superior e na educação popular), o teatro, todos eles
determinaram, em grande medida, seus interesses epistemológicos e sua
forma de produzir hermenêutica. Entretanto, foi a ética que transversalizou
sua tessitura íntima, e deu os contornos dessa urdidura que se fez pública
como frutos de seus empenho intelectual e existencial.
Duda, como é carinhosamente conhecido, Eduardo Oliveira, fez seus
estudos da Filosofia latino-americana e filosofia da libertação com interesse
particular nos povos originários da Ameríndia e no entorno da polêmica
entre Salazar Bondy e Leopoldo Zea, acerca da originalidade da filosofia
latino-americana, passando pelo período de ditadura militar na América
Latina até chegar aos Diálogos Norte-Sul, na virada do século XX para o
XXI. Foram três as vertentes teóricas que lhe interessaram particularmente: a
geopolítica, protagonizada por Enrique Dussel; a geocultura, de Rodolfo
Kusch; e a semiótica, protagonizada pelo grupo do IFIL.
A geopolítica dá conta de pensar as relações de dominação/libertação a
partir da realidade latino-americana, compreendendo as facetas ideológicas
da opressão que historicamente o continente vem sofrendo ao longo dos
séculos. A ênfase recai, obviamente, nas relações políticas que englobam as
dimensões da erótica, da pedagógica, o âmbito da política propriamente dita,
a religião anti-fetichista e a dimensão ética. Dussel mantém o esforço de
pensar a filosofia como um conhecimento universal, porém, desde o
território político latino-americano. Eduardo reconhece dever a ele a leitura
que fez, mais tarde, de Emmanuel Lévinas, visto que o projeto dusseliano, na
primeira fase, inspira-se fortemente no pensador lituano.
Iniciamos nosso diálogo, em mais uma aventura nas encruzilhadas nas
quais nos reencontramos, olhamos adiante e ao largo nessa conversa.
Rita Dias.: Quais as correntes teóricas com os quais você mais
dialogou, quais foram as contribuições para o seu pensamento filosófico?
Eduardo Oliveira.: Basicamente as análises históricas em vistas de uma
reflexão filosófica que propõe processos efetivos de libertação, com uma
ética da libertação com rosto latino-americano, vale dizer, com o rosto do
índio, da mulher, do trabalhador, do negro... A discussão filosófica sobre

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subjetividade e desejo. Aquela que abdica do projeto filosófico da
modernidade, ancorado na razão e, por conseguinte, na representação, para
edificar uma filosofia outra, que abandone o primado do Ser e volte-se para
o Outro, negado histórica e metafisicamente pelo pensamento ocidental. A
radicalidade está na ética. Na senda da ética que permite construir mundos
possíveis ancorados por conceitos como justiça, desejo, solidariedade,
ancestralidade, natureza, liberdade e beleza, uma filosofia como uma
geocultura. Mas também a junção da ética com a estética, ou seja, uma
filosofia que fosse uma verdadeira “ciência da sensibilidade”, que o
pensamento fosse fruto da interação entre os afetos, os perceptos e o
cognatos, um pensamento de corpo inteiro onde a corporeidade e a oralidade
fossem protagonistas. Por isso, me interessei pela filosofia da libertação
latino-americana, pelo pensamento andino, pelas redes de colaboração
solidária, mas também pela interculturalidade, pelo afrocentrismo, pela
subalternidade, decolonialidade, orientalismo, ecologia, feminismo negro e
mulherismo afrikana, pelos movimentos da negritude e o pan-africanismo,
pelos estudos culturais, pela antropologia das populações africanas no Brasil,
pela antropologia política, pela filosofia da diferença, a semiótica, o
pensamento social brasileiro, sobretudo com recorte étnico-racial e, claro,
pelas filosofias africanas, sem esquecer, em nenhuma hipótese, o impacto
que tiveram sobre mim a literatura – particularmente a literatura africana e
afro-brasileira – e as outras artes do universo negro-africano seja do
Continente, seja da Diáspora.
É bem verdade, ainda, que as influências sobre meu pensamento não se
restringiram à filosofia, pois tenho um diálogo permanente com a
antropologia – especialmente o que se convencionou chamar de antropologia
social brasileira, e a educação, com ênfase na Educação das Relações
Étnico-raciais e História e Cultura Africana e Afro-brasileira, e devo muito à
Educação Popular, tal como a pensou e a praticou o grande filósofo da
educação Paulo Freire.
A diversidade da produção de Kusch encantou-lhe, posto que além de
filosofia, escreveu peças de teatro, roteiros para o cinema e ensaios literários,
uma produção intelectual que lhe servia de inspiração e desafio. Concentrou-
se nas obras onde Kusch desenhou sua antropologia filosófica, tratando do
tema da cultura, como seu problema central. A compreensão de que a
unidade latino-americana não pode ser vista apenas como a negatividade da
dominação política, mas sim, a partir de sua positividade fundante que é a

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cultura dos povos que habitavam o continente antes da investida europeia,
pontos-de-partida distintos que inspiram suas obras América Profunda e
Esboço de uma Antropologia Filosófica Latino-Americana, nelas
reivindica, com uma força e inocência que brota de tempos imemoriais, uma
filosofia oriunda do pensamento seminal latino-americano.
Àquela época, início dos anos 1990, Eduardo Oliveira, vivia em uma
ocupação urbana, em Curitiba-PR, e estava envolvido na militância social.
Precisava de uma filosofia que para além dos nativos ancestrais latino-
americanos desse conta dos movimentos sociais da atualidade. Encontrou
em Arturo Andrés Roig as primeiras pistas rumo a equacionar essa questão.
RD: Com quais aspectos Roig contribuiu na sua formulação filosófica?
EO: [...] Roig apresenta os filosofemas, que são pensamentos filosóficos
germinais presentes nas enunciações dos atores sociais em processo de
libertação. Não se constituem, ainda, como sistemas filosóficos, mas
acomodam em seu seio os elementos fundamentais para uma filosofia. O
filósofo da libertação, além de acompanhar a práxis do movimento social,
teria a responsabilidade de formular essa filosofia que está em potência nos
filosofemas. Com efeito, Roig desenvolve uma metodologia que considera a
dinâmica dos movimentos sociais, principalmente urbanos. No cenário da
filosofia da libertação, Arturo Andrés Roig figura como um historiador das
ideias, daí seu interesse em incluir na história do pensamento a formulação
dos movimentos populares. Dussel me deu o contexto político; Kusch
forneceu a reflexão crítica sobre a cultura; Roig forjou o método de uma
filosofia oriunda das classes populares. Precisava, entretanto, costurar essas
teorias, compreendendo seus limites e, inclusive, as críticas mútuas que
travaram entre si. Enquanto a geopolítica avizinha-se de uma análise
estruturalista, a geocultura aproxima-se do culturalismo. A mim não
interessava essa dicotomia.
No caudal dessa auto-formação político-filosófica, já como integrante
do grupo de estudos que deu origem ao IFIL, participou da elaboração de um
texto que teve como suporte teórico a análise semiótica da realidade. Para
além das análises de Pierce, estudaram a semiótica na perspectiva de
Guattari e Deleuze, ultrapassando assim, o campo da semiologia (estudo dos
signos linguísticos) para adentrar na análise dos regimes semióticos
presentes na sociedade contemporânea, através do conceito de práxis.
RD: Qual a contribuição da experiência do IFIL para lastrear seus
estudos?

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EO: O IFIL converteu-se rapidamente na minha residência filosófica.
Como minha morada era também meu lugar de afeto. A dívida intelectual e
afetiva que tenho com Euclides Mance, por exemplo, é um sinal inequívoco
das marcas do Instituto em minha trajetória. Parceiros(as) como Giselle
Schnorr, Alécio Donizete, Marcilene Garcia, Vanderlei Trindade, Domenico
Costela, Celso Ludvig e tantos outros me dão, ainda hoje, abrigo afetivo e
ambiente intelectual crítico e criativo, um lar onde aprendi as delícias e
dissabores da autonomia intelectual.
[...] Em contrapartida, nós, do IFIL, no texto que você mencionou,
resolvemos privilegiar a ação dos movimentos sociais a partir da sua
trajetória no Brasil após a abertura democrática. Havia a formulação dos
eixos de luta, sobretudo da Reforma Urbana e da Reforma Agrária proposta
pela Central de Movimentos Populares. Os partidos de esquerda ascenderam
a espaços importantes na política representativa brasileira. O cenário
nacional exigia uma avaliação criteriosa do que ocorria no país e, ao mesmo
tempo, a construção de projetos sociais para o Brasil. A filosofia, então, ao
contrário do que preconizava o hegelianismo, não precisava esperar a
história acontecer para, então, realizar uma síntese filosófica dos
acontecimentos. Pelo contrário, nós concebemos a filosofia como aquela que
nasce da práxis dos movimentos sociais populares (cunhamos esse termo
para unificar as lutas sociais e conferir-lhes uma unidade ao mesmo tempo
política e filosófica), que surge ao raiar do dia e não no crepúsculo, daí nosso
símbolo ser o colibri, que nasce com a manhã, e não a coruja de minerva que
protagoniza os voos noturnos na filosofia da história de Hegel. [...]
Entendemos, finalmente, que a fonte da ética não é a razão, mas o desejo. O
Desejo do Outro, o Desejo de Alteridade, destacamos duas formulações: o
desejo de ultrapassamento e o desejo de alteridade.
A despeito desses avanços teóricos, e até mesmo, por causa deles,
subjazia o grande incômodo: quem era o Outro abordado pela Filosofia da
Libertação, de forma, o mais das vezes, generalista, involucrado na
identidade nacional/territorial? Eduardo Oliveira sentencia: “Eu buscava um
solo cultural para desde aí formular um pensamento que pudesse dialogar
com o mundo. Não uma América-Latina, mas os sujeitos culturais da latino-
américa”.
RD.: Quais os aspectos da sua vida pessoal-familiar conectam filosofia-
ancestralidade- formação emancipacionista?

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EO.: Eu sou a resultante de uma família multirracial e migrante. Então,
os conflitos de origem racial sempre estiveram muito presentes na minha
infância e adolescência, mas nunca foram nomeados como racismo ou
discriminação. O fato de eu ser descendente de nordestinos, em Presidente
Prudente (SP), onde nasci e vivi até os 12 anos, e no Paraná vivendo minha
juventude, também era um aspecto que pesava, mas nunca esse preconceito
foi diretamente nomeado. Passei por situações de humilhação e exclusão
pela minha pertença racial e frequentemente era chamado de “negro de
boca”, por essa característica física associada à negritude. Minha família
paterna era estigmatizada por vir da Bahia, os rótulos associados à preguiça,
em suma, à inferiorização eram recorrentes. Portanto, de muitas maneiras
vivenciei o racismo, a discriminação de gênero, as rotulações sexualizantes.
Vivi também, eu mesmo, minha fase de migrações pelo país, conheci sob
outros prismas o que é viver como diferente a diferença encarnada.
Finalmente, eu ter assumido minha face de militante social, assumindo
igualmente minha identidade étnica, fez tudo que eu já tinha vivido antes,
começar a tomar nome, causa e consequência.
O movimento social apesar dessa alcunha “social” foi para mim um
tempo de descoberta do eu, sendo então, para mim, formação pessoal.
Preciso fazer a observação que fui de vários movimentos e grupos – da
Associação de Moradores, Movimento Nacional de Meninos e Meninas de
Rua, do Fórum popular de saúde, da Central de Movimento Popular e
finalmente, do Movimento Negro, todos esses movimentos estavam
produzindo um discurso de identidade baseados nas diferenças e nas
subjetividades. Então, minha formação pessoal está eivada de uma formação
social, pois esta era a narrativa do movimento social da época.
O pensar filosófico me acompanha desde a mais tenra idade. Com 5-6
anos de idade, em conversas que eu tinha com a minha avó Mariana, para
quem fazia perguntas sobre a morte, o infinito, o sentido da vida, temas que
depois vieram a ser os assuntos de meu primeiro semestre no curso de
graduação em Filosofia na UFPR. A junção de uma inquietude pessoal com
um tempo de renovação social no Brasil, do fim da ditadura militar e a
consequente abertura democrática, do Fora Collor, do qual participei, entre
outros, entrelaçaram minha vida pessoal com a social.
O resultado desses fluxos é que o país vivia um tempo de abertura e
organização social. Os movimentos multiplicaram-se, os partidos
clandestinos de esquerda voltaram à luz, outros foram criados (como o PT),

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participei de ambos, tanto no PCdoB quanto no PT. A atmosfera em que eu
vivia era de uma busca incessante pela liberdade. Na transição de minha
adolescência para a juventude, a crítica e as aspirações libertárias faziam
parte de minhas aspirações sociais e pessoais. A liberdade passou a ser o
princípio aglutinador de minha atuação pública, tanto estatal quanto civil, e a
política passou a ser o terreno onde eu buscava viver estes princípios.
Durante essa trajetória também pude vivenciar frustrações tanto políticas,
quanto pessoais. Na juventude vivi numa geração libertária, mas em minha
maturidade aqueles que foram os paladinos da liberdade e da ética foram
convertidos por uma narrativa conservadora no apanágio da corrupção e da
falta de ética no país. Vivi, assim, a liberdade em vários lugares de atuação –
o movimento social popular, o partido político, o sindicato, a universidade, a
arte, a religião. Nunca deixei nenhuma dessas esferas, mas a ênfase da minha
atuação foi mudando no tempo. E nesse aspecto, foi na espiritualidade (nas
Religiões de Matriz Africana) onde eu pude refazer uma síntese entre o
privado e o político-social.
Pode-se dizer que sempre rejeitei o dogmatismo; busquei
incessantemente associar conhecimento com libertação - de modo
inconsciente, no passado, e absolutamente convicto disso, hoje.
Em síntese, eu poderia dizer que a minha formação privada foi/ é uma
faceta da vida social do país em que vivo, porém entre aqueles que ousaram
sonhar, refletir, criticar e criar.
A leitura das realidades que primava por uma contextualização, pela
generalização política ou pela simplificação cultural atinge Eduardo em
limites do desconforto, da revolta, e no contexto racial e social do Brasil, a
presença das matrizes africanas e afro-brasileiras, a existência e a vida real
de seus/suas descendentes na construção da história, evocavam a sua própria
identidade étnico-racial.
RD: Como se dá a sua aproximação com a Filosofia Africana?
EO.: Enveredei, então, pela pesquisa da filosofia subjacente à
experiência civilizatória de matriz africana no Brasil, tendo em vista que esta
era uma lacuna na filosofia da libertação latino-americana. A Ética é a
primeira filosofia, dizia Lévinas. A Estética é a primeira filosofia, digo eu,
sobretudo quando relacionada ao contexto da experiência africana pré-
colonial e re-inventada em solo brasileiro. Desse modo busquei evidenciar
essa tese nos estudos que efetuei, primeiro, sobre a história africana e afro-
brasileira, depois, sobre a cultura lá e cá e, finalmente, partir para uma

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síntese filosófica que tinha na ética o seu primado e na educação o seu
destino. Pode-se dizer que a maior parte de minhas publicações, palestras,
conferências, oficinas são um esforço nessa direção. Eu encontrava, pela
primeira vez, uma referência histórica e cultural capaz de articular estruturas
e singularidades. Falar do lugar da singularidade era explorar as experiências
próprias de um povo, de uma cultura, considerada em sua multiplicidade de
expressão. As estruturas, em contrapartida, permitiam-me compreender não
apenas a realidade reduzida a negros e negras, mas desde aí, dialogar com o
mundo numa perspectiva polilógica e pluricultural, isto é, considerando não
apenas a voz do Outro, mas também as condições culturais e políticas para o
enunciado da voz do Outro. O outro agora tinha história, cultura, corpo, rito,
mito, subjetividade, desejo, contradições, fracasso, vitória, engano, ginga,
mandinga, vertigem, medo, mistério, sabor, cor, tato. Acreditei ter sido
possível superar, então, a análise meramente culturalista ou estruturalista. A
tentativa era a de apresentar uma interpretação que fosse ao mesmo tempo
estruturalista e singularizada [...] Demorei certo tempo para ter sucesso nessa
análise, mas quando finalmente compreendi que a forma cultural africana é
estética e que essa estética encerra em si mesma uma ética, esse
empreendimento tornou-se possível e vislumbrei aí um projeto de vida muito
mais que um plano de estudos. Foi assim que publiquei três livros nesta
temática: Cosmovisão Africana no Brasil: elementos para uma filosofia
afrodescendente; Ancestralidade na Encruzilhada, e Filosofia da
Ancestralidade: mito e corpo na filosofia da educação brasileira.
É assim que Eduardo Oliveira vislumbra na cultura africana o que
Guattari chamara de Paradigma Ético-Estético, e pode então, materializar a
partir da re-criação da experiência africana no Brasil, modelos estéticos de
organização da vida que se configuravam como uma ética. Ele se entregou
com alma e ânimo à pesquisa sobre o candomblé, a capoeira, o corpo
africano em movimento, o movimento negro, a educação afrodescendente, a
dança, os quilombos, História da África, a partir da forma estética,
compreendendo a ética como uma forma cultural africana, não como
conteúdo normatizador ou regulador da sociedade. Almejando uma ética
para além da ideologia.
RD.: Como você estabeleceu as conexões entre a Filosofia e a
Educação das Relações Étnico-raciais?
EO.: Na área das Ciências Humanas a Filosofia é aquela que tem
maiores dívidas com as questões étnico-raciais no Brasil. A Filosofia é

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refratária à Educação das Relações Étnico-raciais, pois é a mais
conservadora e eurocentrada dos componentes curriculares da área de
humanidades. No entanto, para a produção de um discurso que consiga dar
unidade à ERER/HCAA, a Filosofia é primordial, pois é sua especificidade e
característica elaborar discursos conceituais que produzam narrativas de
unidade sem eliminar as diversidades. Então, eu juntei a minha biografia de
ativista à minha formação em Filosofia - lembrando que a minha última
etapa de formação em filosofia foi paralela ao Curso de Filosofia, no IFIL,
portanto, na Filosofia latino-americana, junto à militantes e ativistas
reunidos no que chamamos hoje Paradigma da Libertação. Para mim, então,
o amálgama entre a Filosofia e a ERER/HCAA foi “natural”, ainda mais
pelo fato que fui desafiado a atuar na gestão pública para as Políticas
Afirmativas na SECAD/MEC, e precisei articular a face teórica com a
dimensão prática parar formar o Plano Nacional de Implementação da Lei
10.639/03, ou seja, junto com o compromisso com o Movimento Social, a
formação acadêmica, houve, também, uma demanda profissional.
Após a conclusão dos estudos do Doutoramento na Universidade
Federal do Ceará, sob a orientação do Prof. Henrique Cunha Júnior, uma
outra travessia se anunciou, a mudança para a Bahia, em 2006.
RD.: Você é um professor universitário, com 15 anos de exercício
docente, primeiro na UFRB, no Recôncavo da Bahia, onde teve importante
papel na implantação das políticas afirmativas, e atualmente, na UFBA,
como docente das licenciaturas e bacharelados interdisciplinares. Como
tornou a Filosofia da Ancestralidade algo prático e mais objetivo na
formação?
EO.: Eu me apresentei a partir de várias metamorfoses: militante –
filósofo- antropólogo- educador-poeta-pai-babalawô, mas poderia dizer do
ponto de vista social que todas estas transformações se deram na minha
condição de educador. Esta é minha principal faceta pública.
Para o/a professor/a do ensino de filosofia se apresenta rapidamente o
desafio das linguagens. O/a educador/a deve ser capaz de transduzir uma
linguagem cifrada, como é a da Filosofia, dirigida a um público hiper
especializado, para um público mais amplo e com ares de conhecimento
diverso, sem perder entretanto, a complexidade, a profundidade e a extensão
dos conteúdos, isso se resolve então, pela forma, pelo método.
A Filosofia sempre fez a pergunta essencialista: “o que é?” Na minha
opinião porém, a pergunta fundamental da Filosofia e de outras áreas de

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conhecimento, é “como fazer?” A área da Educação foi que me forneceu os
principais subsídios para essa reflexão e prática. É necessário modelar o
conhecimento de acordo com as idiossincrasias do público, sem torná-lo
simplório, o que deve sempre aspirar o rigor e o entendimento complexo.
Então, passei a ensinar a Filosofia Africana a partir das experiências do
povo negro, recriadas no Brasil, utilizando largamente a linguagem corporal
e as tradições culturais negro-africana, como as religiões de matriz africana,
a capoeira angola e os quilombos. Para além de autores clássicos da
Filosofia Africana, Latino-americana e da Filosofia Europeia passei a me
reportar aos sujeitos coletivos de Produção do Conhecimento (os
capoeiristas, o povo-de-santo, os quilombolas, etc.) que produzem uma
empatia imediata com os/as educandos/as, seja na universidade, no ensino
fundamental ou nos movimentos sociais, com a educação popular, e que
recolocam a autoria da produção do conhecimento na comunidade de
aprendizagem constituída por educandos/as, professores/as, funcionários e, a
sociedade abrangente.
A produção de Eduardo Oliveira, nas incontáveis interlocuções que tem
promovido com representantes de várias expressões da cultura negra
(artísticas, religiosas, culturais etc.), da cultura latina e indígena, tem
fomentado uma produção larga e diferenciada como consequências do seu
papel formador e fomentador de câmbios entre intelectuais nos grupos
sociais e culturais e, na universidade.
RD.: Sua obra tem se valido das matrizes africanas, afro-brasileiras e
latino americanas. Como elas entram na negociação da elaboração da
Filosofia da Ancestralidade, como princípios?
EO.: A antropologia relativizou praticamente todos os conceitos, mas
não o de mito. Então, foi preciso revisitar o conceito de mito a partir da
experiência negra no Continente africano e na Diáspora para se produzir
uma Filosofia Africana. Mito é preservação e criação de memória, tendo a
capacidade de ser uma narrativa sempre no presente, porém eivada da
experiência dos antepassados, ou seja, é através dos mitos que os
antepassados vivem. Então, o rito e o corpo atualizam no agora, as
experiências dos antepassados, criando um elo indissociável entre vivos e
mortos.
A cultura africana é uma cultura que venceu a morte, e o corpo literário
dos mitos é o corpo mais visível desse acontecimento extraordinário.

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Esse acontecimento extraordinário não é privilégio da cultura africana,
pois é também largamente presente nas culturas indígenas, com quem divide
tecnologias aproximadas de memória e corporeidade. Se o movimento é a
flexibilidade do corpo, o mito é a flexibilidade do conhecimento.
Como a Filosofia africana é produção de conhecimento sobre a
realidade, nada melhor que utilizar a tecnologia dos mitos para produzir uma
unidade narrativa sobre uma multiplicidade de experiências. As regras
culturais africanas e indígenas são distintas entre si e para si, portanto, não
há equivalência de conteúdo, mas há a semelhança na escolha cultural de
eleger a memória coletiva (mito) como principal referencial para a produção
do conhecimento.
A Filosofia da Ancestralidade91 é a superação da dicotomia entre
geocultura e geopolítica. Com efeito, a Filosofia da Libertação (no seu
momento emergente) forjou a dicotomia entre cultura e política, produzindo
inclusive rivalidades entre os autores. Essa contenda jamais me interessou,
pois a perspectiva que me animava era a das relações, também me
incomodava que os autores da Filosofia da Libertação latino-americana se
referissem ao indigenismo, quando se referiam ao passado e ao trabalhador
(classe social), ao se referir ao presente, negligenciando discussões de raça,
gênero e sexualidade na América Latina.
A América latina negra foi praticamente invisibilizada e, de maneira
semelhante, os autores da negritude invisibilizaram as experiências
indígenas no Brasil e em toda a região. Reequilibrar esses pontos de maneira
tensiva e criativa foi um dos propósitos da Filosofia da Ancestralidade.
A utopia andina e sua metafisica imanente guardam muitos pontos de
convergência com o pensamento africano e sua metafísica da experiência. A
escolha por estas convergências é uma opção ética e de largo alcance
filosófico, um plano de realização de uma vida inteira.
E assim, se faz o itinerário, mudando as paisagens nesses “caminhos do
sol”, na junção entre filosofia da libertação latino-americana, a filosofia da
diferença, a filosofia africana no conjunto da filosofia africano-brasileira e
seus novos desafios.
EO.: O mundo é uma sobreposição de narrativas e nenhuma delas é
melhor que outra. Quando uma se impõe, temos o advento do colonialismo e
toda sorte de discriminação, como as de gênero, raça e sexualidades.
A Filosofia da Ancestralidade jamais se apresentou como a única
referência cultural, mas como uma referência cultural a mais e nesse sentido,

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ela é um discurso para todas as pessoas, mas foi pensada e direcionada para
a população negra brasileira. E ser negro não é uma questão que se reduza à
epiderme, ainda que não se negue o impacto do fenótipo, mas a negritude
passa pelo pertencimento, pela criação da subjetividade, pelo manejo das
linguagens corporais e verbais e pela adoção de princípios civilizatórios que
orientam a vida da comunidade e do sujeito.
A Filosofia da Ancestralidade é uma crítica radical à ideia de
democracia racial, ao ideal de branqueamento da sociedade brasileira e uma
afirmação contundente da população negra como constituinte e constituidora
da Nação. Então, nós reivindicamos o conceito de identidade plural.
Criticamos o conceito de mestiçagem, sem produzir hierarquizações e
assimetrias. Estabelecemos como uma regra cultural possível a
ancestralidade africana, uma vez que em termos “técnicos” somo todos
afrodescendentes, e a partir da experiência do africano - do Continente e da
Diáspora - que viveu sobre o regime da escravidão, há a condição ética e
histórica de propor regimes de liberdade para todos os povos.
Não há dúvida que a população brasileira é resultado de encontros
étnicos os mais diversos, e isso não pode corroborar o equívoco de que não
existe racismo no Brasil. Justo o contrário. Combater o racismo significa
compreender as dinâmicas específicas de cada conjunto étnico no país, seu
legado para a cultura nacional.
O desafio está em relacionar equanimemente esses legados e
contributos que sempre produziram desnivelamentos econômicos, políticos e
culturais no Brasil.
A Filosofia da Ancestralidade é um discurso sobre a realidade brasileira
reconhecendo a sua diversidade, interpretando-a a partir da cosmovisão
africana no Brasil, que nem filosófica, nem historicamente se apresentou
excludente.
Aqueles que sofreram sistematicamente a violência do escravismo e do
sistema colonial, frequentemente responderam a essa violência com
criatividade e tecnologias de inclusão (vide o Candomblé, a Umbanda, os
Quilombos, a Capoeira, o Maracatu, o Cavalo-Marinho, o Samba etc.). A
Trilogia da Ancestralidade é simplesmente o reconhecimento dessas
trajetórias invisíveis e que, no entanto, é a graça, a potência, o carisma e a
criatividade de nosso país, relacionados às culturas indígenas de toda a
América Latina, numa trajetória à deriva, afirmativa, entrelaçada aos saberes
da terra, à sabedoria da natureza e à generosidade dos recursos culturais que

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espelham a vida como uma roda, uma gira de caboclagem, onde todo mundo
tem seu direito ao sol.

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Salvador: Centro Editorial e Didático da UFBa: Sociedade de Estudos
da Cultura Negra no Brasil, 1995.
MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a Mestiçagem no Brasil. Petrópolis:
Vozes, 1999.
RIBEIRO, Ronilda Yakemi. Alma Africana no Brasil. Os Iorubás. São
Paulo: Oduduwa, 1996.
REIS, João José (org.). Escravidão e Invenção da Liberdade. São Paulo:
Brasiliense, 1988.
ROIG, Arturo A . Rostro y Filosofía de America Latina. Mendoza, 1993.
SAHLINS, Marshall. Ilhas de História. Rio de Janeiro: Zahar, 1990.
SANTOS, Gislene Aparecida. A Invenção do “Ser Negro”: um percurso das
ideias que naturalizaram a inferioridade dos negros. São Paulo:
Educ/Fapesp; Rio de Janeiro: Pallas, 2002.
SIQUEIRA, Maria de Lourdes. Iyámi, Iyá Agbás: dinâmica da
espiritualidade feminina em templos afro-baianos. In: Estudos
Feministas, N. 2. 2º semestre de 1995.
SODRÉ, Muniz. A Verdade Seduzida. 2 ed. Rio de Janeiro: Ed. Francisco
Alves, 1988.
ZEA, Leopoldo. América como conciencia. México, 1953.
_____. América en la Historia. Madrid, 1970.
_____. La Esencia de lo Americano. Buenos Aires, 1971.
_____. Dependencia y Liberación de la Cultura Latinoamericana. Mexico,
1974.
ZIEGLER, Jean. O Poder Africano: elementos de uma sociologia política da
África Negra e de sua Diáspora nas Américas. São Paulo: Difusão
Européia do Livro, 1972.

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SOBRE O AUTOR

Eduardo Oliveira é um investigador autor em metamorfoses: de Ativista


Social para Filósofo; da graduação em Filosofia para Especialista em

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Culturas Africanas; de Especialista em Africanidades para Mestre em
Antropologia; de Antropólogo para Educador; de Doutor em Educação para
Poeta; de Poeta, sem jamais negar o ativista, o acadêmico e o artista, para
Babalawô. Duda Oliveira enveredou pela produção autoral nas áreas de
Filosofia da Libertação Latino-americana e da Filosofia Africana, sendo
sócio-fundador do IFIL – Instituto de Filosofia da Libertação, do IPAD –
Instituto de Pesquisa da Afrodescendência, da AFYL-Brasil – Associação de
Filosofia da Libertação, do GT Filosofia da Libertação, Latino-americana e
Africana da ANPOF, da Área de Filosofia Africana da ABPN. Está ligado ao
CEA – Centro de Estudos Africanos da Universidade Eduardo Mondlaine
(Mz) como pesquisador internacional, possuindo Pós-Doutorado pela
UFABC e Estágio como Professor Visitante Sênior na Universidade
Pedagógica de Moçambique. É Professor da Faculdade de Educação da
UFBA e Professor Permanente do DMMDC (Doutorado em Difusão do
Conhecimento), sendo criador da Linha de Pesquisa Conhecimento e Cultura
e Coordenador do Grupo de Pesquisa Rede Africanidades.

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Bibliografia do Autor:

OLIVEIRA, Eduardo. Cosmovisão Africana no Brasil: elementos para uma


filosofia da educação brasileira. Fortaleza: LCR, 2003.
OLIVEIRA, Duda. Ética e Movimentos Sociais Populares: práxis,
subjetividade e libertação. Curitiba: Editora Gráfica Popular, 2006.
OLIVEIRA, Eduardo. Filosofia da Ancestralidade: corpo e mito na filosofia
da educação brasileira. Curitiba: Editora Gráfica Popular, 2007.
OLIVEIRA, Eduardo. Ancestralidade na Encruzilhada. Curitiba: Editora
Gráfica Popular, 2007.
OLIVEIRA, DÚ. Xirê: a brincadeira lírica. (um livro de mito-poema).
Salvador: Editora Ogum”s Toques Negros, 2016.

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Conselho editorial

Ana Luisa Rocha Mallet - Universidade Estácio de Sá


Carolina Magalhães de Pinho Ferreira - Universidade Federal do Rio de Janeiro
Carlos Dimas Martins Ribeiro - Universidade Federal Fluminense
Cinara Maria Leite Nahra - Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Cristiane Maria Amorim Costa - Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Daniel Abreu de Azevedo - Universidade de Brasília
Diana I. Pérez - Universidad de Buenos Aires
Diogo Gonçalves V. Mochcovitch - Universidade Federal do Rio de Janeiro
Fabio Alves Gomes de Oliveira - Universidade Federal Fluminense
Guilherme Dias da Fonseca – Université Clermont Auvergne | França
Jefferson Lopes Ferreira Junior - Universidade Federal do Rio de Janeiro
Maria Clara Marques Dias - Universidade Federal do Rio de Janeiro
Martina Davidson - Universidade Federal Fluminense
Manuel Villoria Mendieta - Universidad Rey Juan Carlos | Espanha
Maria Andréa Loyola - Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Michelle Cecille Bandeira Teixeira - Universidade Federal Fluminense
Murilo Mariano Vilaça - Fundação Oswaldo Cruz
Paula Gaudenzi – Fundação Oswaldo Cruz
Rafael Ioris – University of Denver | EUA
Rafael Haddock-Lobo - Universidade Federal do Rio de Janeiro
Renata Ramalho Oliveira Ferreira - Instituto Nacional de Câncer
Rita Leal Paixão - Universidade Federal Fluminense
Suane Felippe Soares - Universidade Federal do Rio de Janeiro
Vanessa Neitzke Montinello - Instituto Nacional do Câncer &
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Wallace dos Santos de Moraes - Universidade Federal do Rio de Janeiro

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Copyright desta edição ©2021 by Ape’Ku Editora e Produtora Ltda
Foi feito o depósito legal conforme Lei 10.994 de 14/12/2004
Proibida a reprodução parcial ou total desta obra sem autorização da editora
Produção gráfica: Ape’Ku Produções
Imagem de capa: Kleyson Rosário Assis, (Otun Elebogi)
Revisão por conta do autor.
Direitos desta edição reservados à
Ape’Ku Editora e Produtora Ltda
Rua Jornalista Orlando Dantas, 4, PV 3 - Botafogo
Rio de Janeiro – RJ – CEP: 22.231-010
contato@apeku.com.br
www.apeku.com.br
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)

O48c Oliveira, Eduardo


Cosmovisão africana no Brasil: elementos para uma filosofia
afrodescendente / Eduardo Oliveira. Coleção X (Organização: Rafael
Haddock-Lobo) – 1 ed. Rio de Janeiro: Ape’Ku, 2021.
p. 220 ; 23 cm.
ISBN 978-65-86657-52-4 versão impressa
Inclui bibliografia.
1. Filosofia. 2. Filosofia Africana. 3. Cosmologia. I. Título. II. Autor.
CDD 113
Impresso no Brasil
Printed in Brazil

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Notas

[←1]
  A filosofia não é solipsista e, portanto, não se reduz apenas ao âmago de um autor, até porque as imagens da ‘pessoa’ e da ‘comunidade’ isoladas são fantasias ideológicas,
pois ambas sustentam-se apenas quando em relação.

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[←2]
  GLISSANT, Edward. Poética das Relações. Porto: Porto Editora, 2011.

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[←3]
 Que fique claro: compreendo-me como filósofo da libertação e autor da filosofia africana e se denomino o que produzo como filosofia africano-brasileira é apenas para
marcar um traço diacrítico na multicolorida aquarela das Filosofias Africanas, sem fazer com ela nenhuma ruptura, mas apenas acrescentar nuances nessa galeria de arte,
assumindo o risco e a responsabilidade de pensar africanamente desde a América Latina, como um todo, e no Brasil, particularmente.

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[←4]
  Não apenas menciono a dimensão poética, como a incorporo em uma obra inédita de poesia que compõe esses Ensaios, a saber: Deriva que, a seu tempo, diz poeticamente
o que não sou capaz de dizer filosoficamente.

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[←5]
  Vale lembrar que o movimento de síntese (o estado da arte do nosso tema), da crítica (a necessária desconstrução das bases epistemológicas engendradas nesta síntese) e da
criação (nossa proposição frente a essas críticas e desafios) é um movimento contínuo, que tanto abarcam obras já publicados quanto a produção ainda inédita, não
encontrando para esse movimento um fim, mas encontrando no próprio movimento sua razão de ser.

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[←6]
  BONDY, A. Salazar. Existe una filosofía de nuestra América?. ll° ed. México: Siglo XXI Editores, l988.
ZEA, Leopoldo. La filosofía americana como filosofía sin más. 3° ed. México: Siglo XXI Editores, l975.

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[←7]
 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia.RJ: Ed. 34, 1995.

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[←8]
  Para minha surpresa, o livro esgotou sua primeira edição e ganhou rapidamente outras duas edições que também se esgotaram. O livro viajou o Brasil e depois o mundo
(particularmente os EUA, América Latina -Cuba, Argentina, Venezuela, México, Uruguai e Equador-, parte da Europa central e dois países africanos). Destinou-se a
públicos variados: é utilizado desde a educação infantil até cursos de doutorado, por militantes de diversos segmentos sociais e por gestores/as governamentais. Enfim, tendo
sido o livro mais rápido que eu já tenha escrito, e tendo sido considerado o mais “panfletário”, foi o que obteve maior êxito de venda e circulação.

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[←9]
  Obviamente datas consideradas desde a publicação do livro em 2007.

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[←10]
  Intitulado: Corpo, subdividido em três subcapítulos: Corpo Ancestral; Ética do Corpo, e Auto-Poiéses do Corpo Negro.

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[←11]
11

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[←12]
  Exu e Orumilá, eu atualizaria. Sobre Orumilá trataremos no livro inédito sobre Estética da Libertação.

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[←13]
  Só quero atentar para o fato que a soma do todo não é tudo.

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[←14]
  O dono do corpo é um dos muitos títulos de Exu, que tem 21 faces, ou seja, faces infinitas. Com efeito, na Nigéria, já se cartoriou mais de 1500 nomes de Exu.

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[←15]
 DELEUZE; GUATTARI. O que é filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.

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[←16]
  Não foi isso que fizeram Platão, Aristóteles, Plotino, Agostinho, Tomás, Averróis, Okhan, Descartes, Spinoza, Hobbes, Rousseau, Kant, Hegel, Marx, Nietzsche, dentro
outros? Cada qual a seu modo, mas pode-se dizer, efetivamente, que existe um mundo platônico, aristotélico, nitzscheano etc.

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[←17]
  Sobretudo o Negro e a Negra como um Outro.

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[←18]
 Fazemos questão de nos remeter à África como o continente do Arco-Íris posto que este último é uma imagem que representa bem a diversidade e a beleza da
multiplicidade cultural existente em solo africano e carregada por seus descendentes em todas as partes do mundo.

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[←19]
  “No seu Curso sobre a Filosofia da História, em 1830, declarava Hegel: ‘A África não é uma parte histórica do mundo. Não tem movimentos, progressos a mostrar,
movimentos históricos próprios dela. Quer isto dizer que a sua parte setentrional pertence ao mundo europeu ou asiático. Aquilo que entendemos precisamente pela África é
o espírito a-histórico, o espírito não desenvolvido, ainda envolto em condições de natural e que deve ser aqui apresentado apenas como no limiar da história do mundo’. In:
KI-ZERBO, j. História da África Negra. Ed. Biblioteca Universitária, 1980.

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[←20]
  Haja visto que o trabalho escravo, considerado o mais atrasado pela elite rural, foi substituído pelo trabalho de tração animal. Comenta-se que as condições de trabalho para
uma res era mais favorável do que para o africano escravizado.

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[←21]
  As designações “África Branca” e “África Negra” são completamente ideológicas. A chamada ‘África Branca” não é branca, mas negra. Ocorre que ali predomina a
cultura árabe, depois de séculos de ocupação, muito embora interpenetrada com as culturas de origem.

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[←22]
  O IPAD – Instituto de Pesquisa da Afrodescendência, tem um projeto de publicar livros didáticos sobre a História da África, onde teremos a possibilidade de escrever obras
especializadas sobre a África para orientar os educadores.

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[←23]
 Povos pastoris, que não constituem estruturas estatais e não ocupam um território determinado.

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[←24]
  Sobre o regicídio e a lógica política de governos africanos, vide: ZIEGLER (1972).

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[←25]
  ERNY, P. L’enfant dans la penséé traditionnelle de l’Afrique noire. Paris: Le livre Africain, 1968.

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[←26]
  Yakemi é o nome-de-santo da antropóloga Ronilda Ribeiro.

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[←27]
  Prefácio de Jung ao I Ching – O Livro das Meditações – tradução de Richard Wilhelm. São Paulo: Ed. Pensamento, 1987. 21a. edição.

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[←28]
 Sobre Força Vital entre os bantos vide a obra clássica: TEMPELS, R.P.P. La Philosophie Bantoue. Paris: colléction Présence Africaine, 1949. Vide também no subitem:
Filosofia Banto, p. 74, Cap. II.

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[←29]
 Segundo LEITE (1984, p. 35), essas relações tem como exemplo os “processos de socialização,
com suas etapas iniciáticas – que fazem configurar o homem proposto pela sociedade em sua
dimensão social -, e também das atividades relacionadas com outras instâncias históricas, onde
as ações humanas complementam a obra inicial do preexistente, colocando-a – com o cuidado
e conhecimentos exigidos pela vitalidade que anima os seres – em estreita relação com a
sociedade, como ocorre, para citar outro exemplo, com a manipulação da terra, fator básico da
produção”.

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[←30]
  TEMPELS, R.P.P. La Philosophie Bantoue. Paris: Colléction Présence Africaine, 1949.

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[←31]
  MBITI, J. S. African Religions and Philosophy. London; Nairobi; Ibadan: Heinemann, 1969.

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[←32]
  Os Griots são contadores de história africanos. São os responsáveis pela transmissão do conhecimento dos antepassados para as novas gerações. São tradicionalistas,
expressam-se através de crônicas, armam genealogias e são incumbidos de transmitir oralmente a tradição histórica.

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[←33]
  OBENGA, T. “Fontes e Técnicas específicas da história da África. Panorama geral”. História Geral da África: I. Metodologia e pré-história da África. São Paulo:
Ática [Paris]: UNESCO, 1982. Páginas 91-104.

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[←34]
  “O griot praticamente deixa de lado os afloramentos e emergências temporais denominados em outros lugares “ciclo”(ideia de círculo), “período”(ideia de lapso de
tempo), “época” (ideia de momento marcado por algum acontecimento importante), “idade” (ideia de duração, de passagem do tempo), “série”(ideia de sequência,
sucessão), “momento” (ideia de instante, circunstância, tempo presente) etc. É claro que ele não ignora nem o tempo cósmico (estações, anos), nem o passado humano, já
que o que ele relata é, de fato, passado” (OBENGA citado por RIBEIRO, 1996, p. 57).

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[←35]
  “A cabeça é composta da fronte, oju ori, que se relaciona com o iyo-orun, nascente do mundo; do occiptal, ikoko ori, que se relaciona com o iwo-orun, o poente; e dos
lados direito, apa-otun ori, e esquerdo, apa osi-ori, que se relaciona com a direita e a esquerda do universo; e finalmente, do centro, que reúne todos os apectos” (LUZ,
1995. p. 55).

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[←36]
  “Dotada dessa energia vital que a sacraliza, a terra não pode ser apropriada pelo homem, que, entretanto, está potencialmente habilitado a ocupá-la segundo as normas
ancestrais” (LEITE, 1984, p. 47).

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[←37]
  SANTOS, Juana Elbein dos. Os Nagô e a Morte: Pàdè, Asèsè e o culto Égun na Bahia. 3 ed. Petrópolis: Vozes, 1984.

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[←38]
  Da região sudanesa.

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[←39]
  De toda região austral da África.

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[←40]
  Do Sudão.

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[←41]
  Da costa ocidental da África.

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[←42]
  Região do antigo Daomé, hoje Benin e partes da Nigéria.

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[←43]
  Sudeste da África.

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[←44]
  Sobretudo da Nigéria.

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[←45]
  Região de Angola.

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[←46]
  Região da África Central.

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[←47]
  Região entre a África Central e Angola.

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[←48]
  Região ao longo do Rio Nilo, incluindo o Egito.

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[←49]
  Região oeste do Sudão.

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[←50]
  Sul da África.

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[←51]
  Região do Zimbábue, que abarca toda a África do Sul e seus vizinhos.

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[←52]
  Sobre o Princípio da Complementaridade atualizada nos candomblés brasileiros vide o subitem: Relações de Gênero e Candomblé, p. 57, Cap. II.

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[←53]
  É claro que era a negociação possível dentro do contexto escravocrata da época.

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[←54]
  Ao menos é assim que entendemos suas proposições.

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[←55]
  SODRÉ, Muniz. A Verdade Seduzida. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988, p. 53.

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[←56]
  Cfe. SODRÉ, Muniz. A Verdade Seduzida. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988, p. 131.

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[←57]
  Cfe. SODRÉ, Muniz. A Verdade Seduzida. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988, p. 133.

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[←58]
  Sobre o segredo, a luta e a regra dos afrodescendentes consultar: SODRÉ, Muniz. A Verdade Seduzida. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988, p. 137-148.

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[←59]
  Sobre a ideologia do branqueamento e sobre a mestiçagem vide: O Mito da Mestiçagem, p. 91, Cap. III.

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[←60]
  “O conflito constantemente vivido entre aquilo que é socialmente imposto se ritualiza todo o tempo” (CARNEIRO;CURY, s/d b, p. 26).

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[←61]
  Cultura “capitalística” é aquela cultura própria do Capitalismo Mundial Integrado, ou seja, não se refere apenas à sistemas formalmente capitalistas, mas a todas as
sociedades que se organizam de acordo com o sistema do capital, obedecendo e reproduzindo sua lógica.

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[←62]
  O grifo é meu.

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[←63]
  Trata-se de Willian Madson Calhoun Jr. (Bill), que, no momento em que eu estava escrevendo este texto sobre meio ambiente e candomblé em Icapuí - CE, surgiu em na
minha frente, transfigurado, e me narrou a história que Yemanjá lhe contava num ouvido, e Ifá ponderava no outro.

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[←64]
  Dessa maneira aprofundamos a definição de cultura negra através da reflexão sobre as formas culturais gestadas pelos afrodescendentes. Estaremos a falar, então, de
formas culturais produzidas pela cultura negra, procurando evitar tanto as análises abstratos-universalizantes – que redundaram em sistemas totalitários, quanto o relativismo
absoluto – que redunda em paralisia política.

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[←65]
  Costa ocidental da África.

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[←66]
  Região centro ocidental e sul do continente africano.

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[←67]
  TEMPELS, P. La Philosophie Bantoue. Paris: Présence Africaine, 1949.

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[←68]
  Pe. Altuna citado por LOPES (1988).

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[←69]
  Referimo-nos a GUATTARI, F. As Três Ecologias. 4 ed. – Campinas, SP: Papirus, 1993.

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[←70]
  Este texto e fruto, originalmente, de uma pesquisa coletiva sobre a Práxis e Subjetividade nos Movimentos Sociais Populares, no seminário: Movimentos Sociais
Populares: os desafios da práxis., ocorrido em Passo Fundo – RS.

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[←71]
  Para se entender o paradigma ético-estético e a lógica do sentido, vide: DELEUZE (1974,1992); GUATTARI (1992, 1993); DELEUZE/GUATTARI (1995 a,
1995b,1996,1997 a, 1997b).

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[←72]
  Como discutimos no capítulo anterior ao tematizarmos as relações de gênero no candomblé e a relação deste com o meio ambiente.

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[←73]
  Cumpre lembrar que definimos, com Muniz Sodré, a cultura como a sedução do real.

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[←74]
  Trata-se aqui de uma reelaboração do conceito de Emmanuel Lévinas desenvolvido pelo autor em: LEVINAS, E. De Otro Modo Que Ser, o mas alla de la Esencia,
Salamanca: Editora Sígueme, 1987.

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[←75]
  É certo que nem toda práxis dos afrodescendentes gera vida, muito menos comunhão e equilíbrio social. Não queremos criar idealismos! Destacamos, entretanto, apenas os
elementos filosóficos que apontam para uma sociedade que tenha princípios e valores distintos do CMI, por entender que a cosmovisão africana erige-se como uma proposta
de mais vida para a humanidade.

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[←76]
  DAVIS, David Brion. O Problema da Escravidão na Cultura Ocidental. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

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[←77]
  A obra citada de Gislene SANTOS (2002) foi prefaciada por Kabengele Munanga.

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[←78]
  Os grifos em negrito são meus.

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[←79]
  “O ‘princípio de corte’ só tem um valor limitado. Supõe, com efeito, um certo equilíbrio entre os dois movimentos de ‘enculturação’, africano e ocidental (...). Razão
porque ele age sobretudo nas famílias tradicionalmente ligadas ao candomblé, nas classes baixas da sociedade onde a influência da escola multirracial permanece confinada
a alguns anos da primeira infância e nas comunidades onde os preconceitos de cor são mínimos. Quando, ao contrário, as inversões das estruturas sociais arrastam a luta das
etnias para o mercado de trabalho e, como consequência, a intensificação dos estereótipos ou das discriminações, mesmo larvadas ou disfarçadas, como meio de os brancos
manterem o comando da sociedade global, então a crise revela as contradições dos mundos justapostos e as ideologias negras substituem as religiões africanas, ou as
penetram com valores novos” (BASTIDE, 1989, p. 531). (O grifo é meu).

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[←80]
  “Um Outro Mundo é Possível” foi o slogam das três edições do Fórum Social Mundial que ocorreu em Porto Alegre em 2001, 2002 e 2003.

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[←81]
  Cfe SANTOS, Juana Elbein dos. Os Nagô e a Morte: Pàdè, Asèsè e o culto Égun na Bahia. 3 ed. Petrópolis: Vozes, 1984. P. 16.

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[←82]
  Zamani é o tempo dos mitos. Tempo dos Ancestrais. Tempo inesgotável.

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[←83]
  Sasa é o tempo dos viventes. Tempo da experiência. Tempo limitado.

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[←84]
  Rodolfo Kusch é filósofo da libertação. Nascido na Argentina fez um trabalho pioneiro na interface filosofia/antropologia, trazendo novos elementos conceituais a partir da
mescla da pesquisa de campo com a investigação filosófica.

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[←85]
  Emmanuel Levinás, filósofo lituano, já defendia a tese da Filosofia como uma Ética. Vide: LEVINÁS, E. Ética e Infinito. Lisboa: Ed. 70. Concordes com Levinás, cremos
que a filosofia é antes de tudo uma ética posto que baseada na relação com a alteridade. Sobre a Ética de Levinás vide: LEVINÁS (1980, 1982, 1984).

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[←86]
 Diversamente da tradição predominante da filosofia tradicional (período clássico, medieval e moderno), a filosofia da diferença é uma atitude. Se a pretensão da tradição da
filosofia é uma explicação/compreensão do mundo, esta filosofia é uma atitude frente à filosofia e ao mundo. Como atitude ela é da ordem do acontecimento. Por princípio
não busca a unidade na diversidade mas a diversidade da unidade. Reconhece o universal e o transcendental. A questão não é negar ou afirmar o universal. A questão é de
ênfase e de guinada de perspectivas. A perspectiva da filosofia da diferença é atuar visando a diversidade do real e não a unidade dos fenômenos. Na diversidade dos
fenômenos encontra-se as diferenças do real. A ênfase, agora, recai sobre a singularidade e não sobre a transcendentalidade. Busca-se, então, compreender a complexidade
do real e não desvendar seus complexos códigos em fórmulas simplificadas de filosofia. Compreender as dobras do real, os interstícios dos contatos, o não dito, o diluído.
Mais acompanhar que compreender. Mais criar que explicar. Mais movimento que ossificação. Mais filosofia como vida, menos filosofia como alheamento. Mais
participação, menos observação. Mais desejo, menos interpretação. Mais usina, menos teatro. Mais tolerância, menos rejeição. Mais diferença, menos repetição. A filosofia
da diferença é antes de tudo uma ética. Por ser uma filosofia que explicita sua atitude diante do mundo ela é, em primeiro lugar, uma ética. Sua atitude estética diante da vida
é a expressão de uma atividade ética diante do mundo. Estética aqui não é compreendida como a vertente da filosofia que estuda a arte, o belo. É a “ciência da
sensibilidade”, que opera com os afetos, os perceptos, os energéticos e o cognitivo. É fazer filosofia não apenas com a razão. É ampliar a definição mesma de filosofia,
superando a máxima de que a filosofia é o pensamento racional. Daí incorporar no tecido mesmo da filosofia, as categorias do desejo, da libido, dos afetos e das sensações
que nos ata ao mundo e sua complexa diversidade.

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[←87]
  A isso dá-se o nome de capital especulativo, ou seja, capital que ao invés de produzir bens e serviços, produz apenas capital.

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[←88]
  Mundo invisível, sagrado.

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[←89]
  Mundo visível, tangente.

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[←90]
  Texto elaborado a partir de entrevista concedida em 12/06/2020 à Profa. Rita de Cássia Dias (UFRB). Profa. Associada Cecult/UFRB Docente Permanente do Mestrado
Profissional em História da África, da Diáspora e dos Povos Indígenas (Cahl/UFRB); Mestrado em Estudos Interdisciplinares sobre Universidade (IHAC/UFBA), Membro
do NEAB Recôncavo. Líder do grupo de pesquisa CNPq ForCCult; Tutora Pet Acesso, Permanência e Pós-permanência na UFRB.
E:mail: rcdias@ufrb.edu.br

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[←91]
  Importante notar que quando EO fala, aqui, sobre a Filosofia da Ancestralidade, não está se reportando ao livro específico intitulado com o mesmo nome, mas ao conjunto
de sua obra e de obras afins que foram construindo uma narrativa da Ancestralidade no Brasil.

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Table of Contents
TRILOGIA DA ANCESTRALIDADE: Ensaios de Filosofia Africana
Ética da Alteridade e Ontologia da Diferença: por uma estética da
libertação
INTRODUÇÃO
COSMOVISÃO AFRICANA: A África antes da invasão europeia
Aspectos Históricos
Império do Gana
Império do Mali
Império do Songai
Aspectos Filosóficos
Elementos estruturantes das sociedades africanas
Universo
Força Vital
Palavra
Tempo
Pessoa
Socialização
Morte
Família
Produção
Poder
Ancestralidade
Religiões Africanas
II. COSMOVISÃO AFRICANA: A Forma Cultural Africana no Brasil
Escravidão no Brasil
Cultura Negra
Aspectos Civilizatórios
1) A questão do conhecimento, da memória e sua transmissão
2) Sincretismo religioso
Relações de Gênero e Candomblé
Meio Ambiente e Candomblé
Formas Culturais
A Filosofia Banto
Integração

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Diversidade
Tradição (Ancestralidade)
III. CULTURA BRASILEIRA E AFRODESCENDÊNCIA: Sobre o Jogo
das Identidades e a Política da Africanidade no Brasil
Movimentos Sociais Populares, Práxis e Subjetividade
Ética dos Movimentos Sociais Populares
Subjetividade Subversiva e Alteridade
O Mito da Mestiçagem
A Negação do Negro Brasileiro
Identidade Africana no Brasil
Princípio do Corte e Memória Coletiva
Filosofia Africana
Filosofia Africana como Filosofia do Encantamento
Forma Cultural e Filosofia Africana
Ética e Moralidade
CONSIDERAÇÕES FINAIS
ENSAIOS DE FILOSOFIA AFRICANA: Trilogia da Ancestralidade
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
SOBRE O AUTOR
Bibliografia do Autor:
Conselho editorial

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