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F r a n k U sa r sk i

Constituintes
da Ciência
da Religião
Cinco ensaios em p ro l de
uma disciplina autônoma
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Prefácio
U sarski, Frank
C o n stitu in te s d a C iência d a R eligião : cinco ensaio em pro l de u m a
d is c ip lin a au tônom a / F ran k U sarski. — São Paulo: P au lin as, 2 006.
— (C oleção rep en san d o a religião) É um a alegria e um a honra poder apresentar ao público brasileiro
B ibliografia.
a mais nova obra da série “Repensando a Religião”, da autoria do dr.
IS B N 85-356-1777-9 Frank Usarski, pesquisador do Program a de Estudos Pós-graduados
1. E d u c a ç ã o relig io sa 2. R e lig iã o - E stu d o e en sin o I. T ítu lo . em Ciências da Religião da PUC-SP. Radicado no Brasil há alguns
II. S érie.
anos, Usarski é hoje um dos teóricos que m ais vêm se destacando na
06-2 9 7 9 C D D -200.71 academia brasileira na condução de um a discussão epistemológica
índice para catálogo sistemático: acerca do estatuto da Ciência da Religião.
1. C iência da R eligião : E stu d o e ensino 200.71
Neste livro, que se som a aos dois prim eiros volumes da coleção
- O que é Ciência da Religião? e O crescimento do cristianismo - há
pouco lançados no m ercado, Frank Usarski detém -se na defesa des­
se estatuto e propõe o que deveriam ser os Constituintes da Ciência
da Religião como disciplina autônom a. Com respeito ao tem a e
ao enfoque, tanto a nova obra quanto a coleção em que foi inseri­
da aproxim am -se da conhecida coleção “Religião e C ultura” (tam ­
D ireção-geral: F lá via R eginatto
Editores: L u zia Sena e A fon so L ig o rio S oares bém de Paulinas Editora) e da revista hom ônim a produzida pelo
Copidesque: M ônica E laine G. S. d a C osta
Coordenação de revisão: A ndréia Schw eitzer
D epartam ento de Teologia e Ciências da Religião da PUC-SP. Aliás,
Revisão: M arina M endonça na m encionada coleção já fora publicada, há alguns anos, um a obra
D ireção de arte: Irm a C ipriani
G erente de produção: F elício C alegaro Neto pioneira que discutia precisam ente o estatuto teórico das ciências da
C apa e editoração: Telm a C ustódio
religião no Brasil* A diferença básica é que este projeto pretende ser
um a série fechada, focada na discussão epistemológica da Ciência da
Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida ou transmitida
por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico,
Religião.
incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou
banco de dados sem permissão escrita da Editora. Direitos reservados. Em nossos anos de devotam ento à causa da pesquisa da religião
no Brasil, tem os percebido o crescimento da dem anda, em nossas aca­
demias, por obras que esclareçam as devidas distâncias entre o estudo
científico da religião e as produções propriam ente teológicas, em que
o com ponente confessional é explicitado ou pressuposto nas entreli­
Paulinas
nhas do discurso. A oportunidade da iniciativa pode ser m edida pelas
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0 4039-000 - S ão Paulo - SP (Brasil) recentes e pendentes discussões acerca do Ensino Religioso nas es-
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Telem arketing e SAC: 0800-7010081 * F. (o rg .). A (s) ciência(s) da religião no Brasil. São P aulo: P a u lin a s, 2001. A o b ra é resu ltad o de
T e ix e ir a ,

© P ia S ociedade F ilhas de São P aulo - S ão P aulo, 2006 se m in á rio realiza d o em Ju iz de F o ra, p ro m o v id o p elo D e p a rta m e n to de C iên cia d a R eligião d a UFJF,
e q ue re u n iu pro fesso res e a lu n o s de p ro g ra m a s de p ó s -g ra d u a ç ã o em C iên cias da R eligião d e o u tra s
u n iv e rsid ad es d o país.

5
C o n s t i t u i n t e s da C i ê n c i a da R e l i g i ã o P r e f á c i o

colas públicas, que pressupõem um profissional qualificado, não em educadores, pesquisadores e pós-graduandos tanto de Ciências da Re­
um a determ inada teologia confessional, mas justam ente na - pouco ligião como de áreas afins (Filosofia, Teologia, Ciências Sociais, Semió­
conhecida entre nós - Ciência da Religião. tica, Literatura, Psicanálise etc.). Abrindo a coleção e, justam ente por
Em seguidos encontros entre representantes do Fonaper (Fórum isso, dando o tom do que vem pela frente, está o renom ado cientista da
Nacional Perm anente do Ensino Religioso) e pesquisadores do religião, professor Hans-Jürgen Greschat, com o seu já clássico opúscu­
D epartam ento de Teologia e Ciências da Religião da PUC-SP, temos lo O que é Ciência ãa Religião? Para fechá-la, já está em preparação, do
constatado um a expectativa de que nossa Universidade ajude a dar não m enos reconhecido dr. Rodney Stark (em co-autoria com William
o tom da discussão mais acadêmica. O Program a de Estudos Pós- S. Bainbridge), o inovador e polêmico estudo: Uma teoria da religião.
graduados em Ciências da Religião da PUC-SP tem -se esforçado por O trabalho que ora prefaciamos reúne um a série de ensaios do
construir um pensam ento científico de fato em ancipado do discurso autor, cujo eixo principal assenta-se na afirmação da autonom ia de
confessional, em bora em diálogo com os variados discursos teológi­ um a Ciência da Religião que, justam ente em virtude de tal prerrogati­
cos. Por essa razão, avançando num a parceria entre Paulinas Editora e va, pode apresentar-se em todo o seu potencial de crítica às ideologias
PUC-SP, que já começara com a revista Religião & Cultura e se conso­ vigentes na sociedade e nas corporações religiosas. A abordagem será
lidara na recém-lançada coleção “Temas do Ensino Religioso”, convi­ com plem entada em breve, num a obra organizada pelo mesmo profes­
dam os como principal interlocutor para este novo projeto o professor sor Usarski, que trará a contribuição de diversos autores para traçar o
Frank Usarski, tradutor do livro que abre a coleção, além de autor e Espectro disciplinar da Ciência da Religião, em suas interações com a
co-autor de outros dois. Etnologia, a Antropologia, a História, a Sociologia, a Psicologia, a Geo­
grafia, a Estética, as Ciências Naturais, a Teologia e a Filosofia.
Com a colaboração precisa e erudita do professor Usarski, a quem
aproveitamos para agradecer publicamente a generosa disponibilidade Enfim, nossa expectativa é oferecer ao público um a coleção sucin­
e a dedicação que dispensou ao projeto original, o desenho da nova co­ ta, compacta e esclarecedora. E o presente livro dá um a contribuição
leção foi-se configurando com m aior nitidez. Escolhemos como preo­ relevante nessa direção, pois nos provoca em nossos lugares comuns
cupação de fundo das obras desta série a demarcação do que constitui e força o pensam ento a desinstalar-se a fim de arriscar novos vôos e
- ou poderá constituir - a Ciência da Religião. Insistimos, para tanto>, insights, sem os quais a ciência não mereceria o lugar que pleiteia nas
na im portância de um a aproximação científica ao m undo religioso, veredas do saber.
que garanta a devida autonom ia a essa disciplina em relação às leituras Resta-nos aguardar a reação crítica do público, estabelecendo um a
teológicas. Entre os temas e enfoques visados, citamos: a descrição dos saudável interlocução que só poderá ser benéfica ao progresso dos Es­
contextos históricos e socioculturais em que surge a pesquisa científica tudos de Religião em nossas universidades e centros de pesquisa.
da religião; um esboço da história dessa disciplina; um a síntese da si­
tuação atual no âm bito internacional e, especificamente, brasileiro; os
D r. A fo n so M a r ia L ig o r io S o a r e s *
grandes temas e/ou problemas típicos da pesquisa. Enfim, queremos
averiguar e discutir com a academia nacional em que sentido essa dis­
ciplina contribui para um estudo o mais completo possível do m undo
religioso em todas as suas facetas.
Os livros aqui previstos, em bora não herméticos, pressupõem lei­ * P ro fesso r A sso ciad o d o P ro g ra m a de E stu d o s P ó s-g ra d u ad o s em C iên cias d a R eligião n o D e p a rta m e n to
tores bem inform ados e já familiarizados com os assuntos tratados: d e Teologia e C iên cias da R eligião d a PUC-SP.

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Introdução

Esta coletânea reúne cinco ensaios publicados entre 2001 e 2005,


dois como capítulos em antologias, os outros como artigos em perió­
dicos. Cada texto representa um raciocínio coeso sobre determ inado
aspecto da complexa problem ática da constituição m etateórica e do
status institucional da Ciência da Religião. Diferentemente da sua p u ­
blicação em fontes separadas, a apresentação dos ensaios nesta coletâ­
nea, agora organizados conform e sua inter-relação lógica, facilita um a
leitura com plem entar dos textos e a identificação do seu “denom inador
com um ”, que consiste na hipótese de que a Ciência da Religião é um a
disciplina autônom a que deve ocupar um lugar institucional especí­
fico no m undo acadêmico. As implicações dessa pretensão tornam -se
mais claras m ediante a referência à teoria de Niklas Luhmann.
A teoria de Niklas Luhm ann sensibiliza pelo fato de que a Ciência
da Religião com partilha com outras disciplinas universitárias caracte­
rísticas que a qualificam como um sistema social. O term o sistema vem
da palavra grega “synhistamein”, composta por “sys” (junto) e “hista-
m ein” (estar). A expressão, portanto, refere-se a algo que “está junto”,
um significado em que Luhm ann concorda, mas com o qual não se
contenta, porque o olhar etimológico não dá conta do fato de que um
sistema necessariamente representa um a seleção de certos elementos da
totaljdade dos fenômenos identificáveis no m undo. Por isso diz: “Um
sistema não é um a entidade ontológica. Seu status consta em um a atri­
buição”.1
Niklas Luhm ann não se cansa de salientar a im portância da reci­
procidade entre o “sistema” e o “am biente” e do papel ativo do próprio
sistema social na demarcação entre si e o horizonte “fora” das suas de­
limitações. Enfatiza que sistemas “são estruturalm ente orientados por
seu ambiente e sem ele não poderiam existir”, um a vez que “consti-
tuem -se e sustentam-se pela criação e m anutenção de um a diferença

Cf. Lu h m a n n , N ik la s. Soziale system e, p. 78.


C o n s t i t u i n t e s da C i ê n c i a da R e l i g i ã o I n t r o d u ç ã o

com o ambiente e usam suas fronteiras para a regulação dessa diferen­ Conform e a afirmação de que um a ciência pode apenas se enrai­
ça”.2 Tal diferenciação é um processo de auto-reflexão através do qual zar em um a cultura quando passa a ser mero conjunto de idéias e se
“sistemas produzem um a descrição de si mesmos”, algo que garante a torna um a instituição social,7 o prim eiro ensaio, O caminho da institu­
“identificação de um a unidade com si mesmo em distinção com algo cionalização da Ciência da Religião - Reflexões sobre a fase formativa da
diferente”.3 Em outras palavras, qualquer sistema, independentem ente disciplina, recupera algumas das etapas do processo de diferenciação
de seu alcance e do grau da sua complexidade, gera “identidade” m e­ no decorrer do qual o estudo das religiões, anteriorm ente difuso e de­
diante a fixação de limites entre seu “interior” e seu “exterior”. pendente das atitudes e interesses de pensadores individuais, ganhou
Com relação específica à categoria de sistemas sociais, é preciso perfil “sistêmico”.
levar em conta a ênfase de Luhm ann de que são sistemas autocriado- O segundo capítulo, Os enganos sobre o sagrado - Uma síntese da
res, ou seja, autopoiéticos. Isso significa que um sistema social consiste crítica ao ramo “clássico” da fenomenologia da religião e seus conceitos-
em “um complexo de operações capaz de se distinguir do seu am bien­ chave, dem onstra que a fixação da demarcação através da qual um sis­
te através da sua própria reprodução”,4 ou seja, em um a entidade que tem a social se m antém em distinção a um “horizonte exterior” é um a
possui “a faculdade de estabelecer relações com si mesmo e de diferen­ necessidade constante cum prida pela reconfirmação dos seus elemen­
ciar essas relações contra as relações com seu am biente”.5 Um sistema tos identidários e funções específicas e, se for o caso, pela exclusão de
social, portanto, deve sua existência à dinâm ica interna gerada por seus aspectos que colocam a autenticidade do sistema em cheque.
próprios constituintes. Uma ponte entre teoria de sistemas sociais e a O terceiro texto, sobre O perfil paradigmático da Ciência da Reli­
reflexão m etateórica sobre o status da Ciência da Religião encontra-se gião na Alemanha, começa com um a referência ao conceito de para­
na seguinte citação de Gerard Fourez: “A com unidade científica é um digma introduzido na discussão m etateórica po r Thom as S. Kuhn. A
grupo social relativamente bem definido. Estrutura-se em parte por abordagem de Kuhn aproxim a-se da teoria de sistemas no sentido de
si mesmo: é um a confraria onde os indivíduos se reconhecem como que a Ciência da Religião justifica-se como m atéria universitária autô­
m em bros de um m esm o corpo”.6 A partir dessa afirmação, pode-se nom a pela existência de um paradigm a no sentido duplo do conceito:
form ular a hipótese de que a Ciência da Religião existe como discipli­ pesquisadores treinados conform e os padrões da Ciência da Religião
na autônom a apenas na medida em que seus representantes com parti­ com partilham determ inadas atitudes diante dos seus objetos privile­
lham um consenso sobre a constituição específica e o lugar próprio da giados, baseiam seus esforços teóricos em um conjunto de axiomas
sua m atéria no m undo acadêmico em contraste com outras. consensuais no âm bito da sua disciplina e se subm etem a m étodos
Cada um dos artigos republicados nesta coletânea parte da base coletivam ente aceitos como “válidos”; ao m esm o tem po suas ativida­
conceituai acima esboçada e dedica-se à elaboração e problematização des profissionais criam “redes organizacionais” seja em form a de de­
de determ inados aspectos implícitos na leitura da Ciência da Religião partam entos e program as, seja de associações nacionais e internacio­
enquanto sistema social. nais, seja ainda de periódicos e outros órgãos de publicação especiali­
zados em tem as que refletem os interesses coletivos dos seus autores.
Os dois últim os ensaios abordam as duas dinâmicas sim ultanea­
2 Cf. ib id., p p . 33 e 35. m ente geradas pela diferenciação entre a Ciência da Religião e seu am-
3 Cf. ib id., p p . 25 e 26.
4 Cf. Z ir k e r , M ichael. W issen, Lernen, W irklichkeit, p. 29.
5 Cf. Lu h m a n n , op. cit., p. 31.
Fourez, G erard . A construção das ciências, p. 93. 7 Cf. W uthnow , R o b e rt. M e a n in g a n d M oral Order, p. 262.

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C o n s t i t u i n t e s da C i ê n c i a da R e l i g i ã o

biente exterior. Em prol de um m elhor entendim ento dessa temática,


tem de se levar em conta os seguintes aspectos da teoria de sistemas:
Niklas Luhm ann defende a hipótese de que a sociedade, por sua
vez caracterizada como sistema, é com posta e sustentada por subsis­
temas, cada um deles cum prindo funções específicas em favor do ma-
crossistema. Porém, a relação entre a entidade m aior e suas partes é
m útua: dependendo das contribuições dos subsistemas, a sociedade
põe recursos à disposição deles para garantir suas funções. Entre os
subsistemas considerados cruciais para a m anutenção do macrossis-
tema, Luhm ann não somente aponta para o direito, a política ou a
religião, mas tam bém para a ciência.8 Pode-se om itir aqui um olhar
mais detalhado nas tarefas específicas que a ciência cumpre em função
da m anutenção daquele macrossistema chamado “sociedade”. Basta
registrar que a obra de Luhm ann sensibiliza com o fato de que seria
inadequado conceber “a ciência” como se fosse um empreendim ento
em suspensão livre. Pelo contrário, a análise de qualquer subsistema
tem de levar em conta sua contextualização estrutural. O caminho da
A partir disso, surgem as questões: como a Ciência da Religião
deve tratar os “impulsos” que ela recebe de “fora” e quais as contribui­
ções que traz para seu ambiente? Essas duas perguntas inter-relacio-
institucionalização
nadas são abordadas pelo quarto e quinto capítulos desta coletânea.
Enquanto o texto Descendo a torre de marfim - O impacto do discurso
da Ciência
da Religião
público sobre “seitas” na Ciência da Religião na Alemanha ocupa-se de
processos de input, o capítulo O potencial da Ciência da Religião de cri­
ticar ideologias - Um esboço sistemático interessa-se por conseqüências
do output.
Espera-se que o conjunto dos textos apresentados a seguir con­
Reflexões sobre a fase
tribua para m elhor reconhecim ento e acentuação mais clara do perfil formativa da disciplina
disciplinar da Ciência da Religião.

Cf. Luhm ann, N iklas. D ie W issenschaft der G esellschaft, pp. 271-361.

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0 c a mi n h o da i n s t i t u c i o n a l i z a ç ã o da C i ê n c i a da Re l i g i ão

1. Problematização do tema
Em bora a Ciência da Religião represente “um dos frutos mais re­
centes na árvore do conhecim ento”, para citar um a formulação m etafó­
rica cunhada por Edm und Hardy,1 um capítulo form alm ente limitado
como este não abre espaço suficiente para recapitular adequadam ente
a história dessa disciplina. São especificamente três as razões que exi­
gem do leitor um a expectativa mais humilde.
Primeira, enquanto a Ciência da Religião como m atéria acadêmica
institucionalizada nas universidades européias estabeleceu-se somente
na segunda m etade do século XIX, um saber sobre religiões já era com ­
provado desde a antiguidade grega. No decorrer dos séculos, o proces­
so pelo qual o “saber sobre religiões” ganhou sucessivamente o status
de um conhecim ento digno da designação “Ciência da Religião” foi
extraordinariam ente complexo e diferenciado, e é evidente que seus
detalhes escapam de um ensaio que tem de se contentar com apenas
poucas páginas. Segunda, de acordo com um a afirmação de Rainer
Flasche que define a Ciência da Religião como a “ciência integral das
religiões”,2 ela precisa ser concebida como um ponto de intersecção
de várias subdisciplinas e matérias auxiliares. Cada um a delas, porém ,
possui sua própria história, que teria de ser levada em conta caso a ta­
refa fosse um a retrospectiva detalhada da disciplina principal em todas
as suas facetas. Terceira, do ponto de vista internacional a situação da
Ciência da Religião tem sido m uito complexa. Ela desenvolveu traços
específicos de acordo com as condições acadêmicas nacionais, o grau
de colaboração com outras disciplinas ou a presença de certas religiões
que cham am a atenção dos pesquisadores. Não seria adequado, pois,
recapitular o cam inho percorrido pela disciplina em um determ inado
país como se fosse um m odelo para a “carreira” da Ciência da Religião
em geral.
Diante dos problemas acima m encionados, o presente capítu­
lo opta por um a dupla redução da complexidade. Primeiro, a parte

1 H ardy, E d m u n d . Z u r Geschichte der vergleichenden Religionsforschung, p. 45.


2 Cf. F lasch e, R ain er. Religionsw issenschaft als integrale W issenschaft von den Religionen.

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C o n s t i t u i n t e s da C i ê n c i a da R e l i g i ã o O c a mi n h o da i n s t i t u c i o n a l i z a ç ã o da Ci ê n c i a da Rel i g i ão

principal deste ensaio interessa-se em especial pela fase form ativa da dependência institucional da sua disciplina-mãe nas universidades, o
Ciência da Religião academicamente institucionalizada. O seu foco, caráter “em ancipado” da Ciência da Religião m ostra-se, entre outros
pois, são as décadas por volta da virada do século XIX para o sécu­ aspectos, na vasta extensão da sua área de pesquisa e no seu ideal de
lo XX, quando a disciplina ganhou sua form a paradigmática, em bora neutralidade diante dos seus objetos.5 Diferentemente da Teologia,
nas décadas posteriores com unidades científicas em diferentes países cujos representantes são geralmente com prom etidos com o Cristianis­
tenham modificado esse perfil rudim entar de acordo com suas carac­ m o tanto como referência religiosa particular quanto como privilegia­
terísticas e necessidades. O período focalizado é demarcado por dois da m atéria de análise, a Ciência da Religião é virtualm ente irrestrita
dados simbólicos. O seu início é inequivocamente fixado pela instala­ quanto aos fenômenos considerados por ela dignos de investigação.6
ção da prim eira cátedra em Ciência da Religião no ano 1873. Seu fim Aproxima-se de seus objetos por um interesse prim ário isento de m o­
é marcado pela publicação da tese de Joachim Wach na Universidade tivos apologéticos ou missionários. A consciência da “relatividade” e a
de Leipzig, em 1924,3 ou seja, o lançam ento da famosa obra que enfa­ postura de um “não-etnocentrism o” diante das expressões múltiplas
tizou a com plem entaridade do lado empírico-histórico e do sistemá­ no m undo religioso, “a capacidade potencial de abstração religiosa de
tico como estrutura obrigatória da Ciência da Religião. A proposta de si m esm o” e “indiferença” a respeito das contraditórias pretensões
Wach tornou-se um m odelo norm ativo para a Ciência da Religião e da verdade com as quais o pesquisador é confrontado na realização de
desem penha esse papel até hoje. seus projetos, são competências-chave que caracterizam a Ciência da
Segundo, devido à impossibilidade de elaborar aqui as condições Religião.7 Porém, os resultados de um a pesquisa realizada a partir des­
que finalmente deram luz à Ciência da Religião propriam ente dita, a ses princípios variam segundo as preferências particulares dos cientis­
busca de fatores e processos constitutivos para a manifestação da m a­ tas da religião envolvidos. De acordo com Joachim Wach e sua visão
téria nas universidades torna-se mais econômica quando inovações de um a Ciência da Religião com posta por dois ram os funcionalm ente
acadêmicas são consideradas revelações de um “espírito do tem po” complementares, há autores que destacam, de m aneira universalista,
contem porâneo, cujas implicações passam a ser retrospectivamente as constituintes e estruturas com uns da religião como essência do real
compreensíveis à m edida que se refletem sobre os axiomas, atitudes e m undo religioso em suas manifestações múltiplas; enquanto outros
o repertório instrum ental da disciplina. O item seguinte concretizará enfatizam a im portância de um levantam ento empírico e histórico em
essas considerações ainda bastante abstratas. favor de um a reconstrução, a mais detalhada possível, de cada tradição
religiosa em sua singularidade.
Colocam-se aqui as seguintes perguntas: Quais fatores foram de­
2. Uma caracterização de tipo ideal cisivos para que religiões não-cristãs despertassem cada vez mais o in­
da Ciência da Religião teresse dos intelectuais europeus? O que fez com que um a nova ciência
dedicada à investigação do vasto m undo religioso tenha se “emanci­
como ponto de partida pado” diante da Teologia cristã? Que pré-requisitos foram necessários
para que o assunto até então tão polêmico da religião tenha-se tornado
De acordo com um a expressão m etafórica de Udo Tworuschka,
a Ciência da Religião é “a filha emancipada da Teologia”.4 Além da in-
5 Cf. H o lsten , W alter. Z u m Verhältnis von Religionsgeschichte u n d Theologie, p. 191.
6 C f. A n t e s, P eter. D er B eitrag d er R e lig io n sw isse n sc h aft z u m A lte rn a tiv -U n te rric h t. D er Evangelische.
3 Cf. W ach, Jo ach im . R eligionsw issenschaft. P ro leg o m en a zu ih re r isse n sc h a ftsth e o re tisc h e n G ru n d le g u n g .
Erzieher, p. 154.
4 Cf. Tw o r u sc h k a , U do, P artner a u f getrennten W egen. D ie R elig io n sw issen sch aft u n d d ie T h eo lo g ie, p. 191.
7 Cf. ib id ., pp. 191s.

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C o n s t i t u i n t e s da C i ê n c i a da R e l i g i ã o 0 c a mi n h o da i n s t i t u c i o n a l i z a ç ã o da Ci ê n c i a da Re l i g i ão

um “objetivo” de estudo? Como decorreu o desenvolvimento que levou ceito que se especificou num a posterior “história das religiões” do
ao caráter duplo da Ciência da Religião de acordo com as exigências ponto de vista secular.
metateóricas de Joachim Wach? Um outro ponto de partida da análise sobre as condições espirituais
que finalmente levaram ao pensam ento secular sobre a história da
religião encontra-se na obra de Hans Kippenberg.10 O autor concen­
3. Pré-requisitos espirituais e tra-se nos desenvolvimentos relevantes dentro da filosofia entre o fim
socioculturais para a institucionalização do século XVI e a prim eira m etade do século XIX, recapitulando as
posições que pensadores dessa época tom aram a respeito da religião e
acadêmica da Ciência da Religião suas manifestações. Enquanto pensadores como Thom as Hobbes, Da-
vid Hume, Jean-Jacques Rousseau ou Im m anuel Kant depreciaram as
Para que religião se tornasse um tema científico “objetivo”, foi
religiões históricas, Johann Gottfried Herder foi o prim eiro que reco­
necessário um processo de alienação dos intelectuais europeus da sua
herança religiosa tão a fundo enraizada na estrutura da plausibilidade nheceu a im portância de um estudo histórico delas para a própria filo­
contem porânea, que parecia ser um a “naturalidade cultural” longe de sofia. Por conseguinte, para Kippenberg o “descobrimento da história
ser intelectualmente questionada.8 Nesse sentido, o pensam ento sis­ da religião” - como o título do seu livro diz - começou com Johann
temático sobre religião é um produto da m odernidade, mais precisa­ Gottfried Herder (1744-1803), cerca de cem anos antes da inauguração
m ente um a conseqüência de m udanças ideológicas e sociohistóricas a da prim eira cátedra em Ciência da Religião.
partir do período pós-reform atório, mais tarde aceleradas no decorrer Q uanto à pergunta sobre os fatores que prom overam a diferen­
do m ovim ento iluminista. ciação com plem entar da Ciência da Religião entre os ramos empírico-
Segundo um a hipótese de O tto Brunner, as raízes desse processo histórico e comparativo-sistemático, vale lem brar que ela já se articu­
rem ontam ao século XII, quando se diferenciaram, dentro da Cristan­ lou, porém até o m om ento de m aneira rudim entar, nas discussões dos
dade, duas subculturas: a dos clérigos e a dos leigos intelectuais.9 Uma pensadores do Ilum inism o sobre a relação entre “religiões concretas”,
das características da prim eira era a ausência de consciência histórica. inclusive o polêmico cristianismo, e um a suposta “religião natural”. De
A m atéria que poderia alim entar tal consciência faltava no currículo certo m odo, o m odelo m etateórico de Joachim Wach e sua ênfase tanto
dos seus integrantes, um a vez que ela teria destruído a sua cosmovisão no levantam ento das múltiplas formas, em que fenômenos religiosos
fechada e desafiado a sua identificação do fluxo do tem po na terra se articulam, quanto nos padrões estruturais e na sistematização de
com o processo sucessivo de salvação. Em oposição aos clérigos e suas elementos típicos para qualquer religião, retom a essa dicotomia origi­
ideologias form ou-se gradualm ente a cultura de leigos. O riginalm en­ nalm ente cunhada por representantes do m ovim ento iluminista. Nes­
te vindo de ambientes cavalheiresco-cortesões, esse m ovim ento social se sentido, a Ciência da Religião não é somente “um a criança do Ilumi-
articulou-se na época pós-Reforma, dentro da burguesia prim itiva, nism o”11- para citar um a expressão de Kurt Rudolph, pelo fato de que
insistindo cada vez mais em sua emancipação completa da cultura os pensadores iluministas foram inspirados pela idéia da tolerância
clerical. Um resultado dessas aspirações foi a valorização da história religiosa12 e com partilharam com seus contem porâneos um a curiosi­
m undana como verdadeiro cenário do progresso hum ano, um con-
10 Cf. K ip p e n b e r g , H an s G. D ie En tdecku n g der Religionsgeschichte. R elig io n sw isse n sc h aft u n d M o d ern e.
8 Cf. Kohl, K arl H einz. Geschichte der Religionsw issenschaft, p. 218. 11 Cf. R udo lph , K u rt. H istorical F u n d a m en ta ls a n d the S tu d y o f Religions, p. 23.
9 Cf. M atthes, Joachim . Religion u n d Gesellschaft. E in f ü h ru n g in die R eligionssoziologie, v . 1, p . 3 3 . 12 Cf. L a n c z k o w s k i, G ü n te r. E in fü h ru n g in die Religionsphänom enologie, p. 18.

18 19
C o n s t i t u i n t e s da C i ê n c i a da R e l i g i ã o
O c a mi n h o da i n s t i t u c i o n a l i z a ç ã o da Ci ê n c i a da Re l i g i ão

dade de “culturas exóticas” mas tam bém um a busca da base geral em Uma vez que as prim eiras gerações de pesquisadores de religião
que todas as religiões históricas se encontram . Por conseguinte, procu- dedicaram-se sobretudo à investigação das tradições religiosas da Ásia
rava-se nessa época “a religião prim ordial isenta do dom ínio de padres do Sul e Sudeste, bem como do Extremo Oriente, lem bra-se nesse con­
e suas fraudes, a religião naturalis, que é com um para todas as religiões
texto especificamente do descobrimento por Vasco da Gama (1498) da
e que as antecede tanto histórica quanto psicologicamente”.13
via m arítim a para a India e a posterior elaboração náutica da cham a­
Uma visão semelhante, em bora desenvolvida num espírito oposto da “roda de especiaria”.17 Esses progressos inauguraram , para citar Urs
ao Iluminismo, encontra-se na famosa obra de Friedrich Schleierma­ Bitterli,18 a fase duradoura e perm anente de “relações entre as cultu­
cher, Über die Religion. Reden an die Gebildeten unter ihren Verächtern, ras”, substituindo os apenas esporádicos “contatos entre as culturas”.
publicada em 1798. Criticando o foco do Ilum inismo nas funções ex­ Possibilita-se a partir de então um intercâm bio que, devido a sua pro­
ternas das religiões concretas, o autor localizou a verdadeira fonte da fundidade e freqüência, era incomparável com todas as expedições e
religião no interior do hom em , ou seja, na sua psique. Trata-se de um a conquistas anteriores que tinham fornecido - já aos autores gregos e
abordagem unilateralm ente universalista que valoriza a constituição
rom anos - um conhecimento mais ou menos fragm entário sobre os
do ser hum ano precedendo a qualquer fenôm eno cultural ou histori­
costumes, ritos e idéias religiosos dos seus “vizinhos”.19
camente determ inado.14Mais tarde, a argum entação de Schleiermacher
foi retom ada por representantes da chamada “fenomenologia da reli­ Do ponto de vista da história da Ciência da Religião, as conse­
gião”, que serviu por algumas décadas do século XX como paradigma qüências im portantes dessa nova fase na história global para a futura
para o “ram o sistemático”, de acordo com o m odelo de Joachim Wach. Ciência da Religião deram-se na área da filologia. A curiosidade sobre
os países, agora acessíveis como nunca antes, despertou o interesse na
literatura religiosa dos seus povos e levou à coleção e tradução de tex­
4. Pré-requisitos instrumentais para tos sagrados de origem chinesa, zoroastriana, hinduísta e budista por
a institucionalização acadêmica da especialistas europeus. Para a história da Ciência da Religião na sua
qualidade de “filha emancipada da Teologia”, é im portante ressaltar
Ciência da Religião que nem sempre os eruditos filólogos dedicaram-se a um a tradução
por intenções m eram ente acadêmicas. Em vários casos os resultados
Segundo G ünter Lanczkowski, o estudo mais amplo e sistemáti­
de pesquisas filológicas foram “efeitos colaterais” em função da missão
co das religiões começou a manifestar-se no decorrer “da exploração
ou do colonialismo. Para citar somente dois exemplos, as prim eiras
geográfica e penetração econômica, técnica e política do espaço glo­
bal”.15 Em outras palavras: “Somente a época do descobrimento, que translações de clássicos confucianos foram feitas a partir de 1662 por
de repente deixou afluir a riqueza incrível das religiões das culturas missionários jesuítas, em razão de óbvios motivos religiosos. O orien-
elaboradas asiáticas e americanas, bem como as inúm eras religiões de talismo ganhou força na Inglaterra pelas atividades de m em bros da
povos indígenas, desperta um interesse que se [finalmente] articularia Asiatick Society ofBengal [sic!], fundada em 1784 por administradores
na form a de investigações científicas”.16
17 Cf. S a l e n t in y , F e rn a n d . D ie G ew ürzroute. D ie E n td e c k u n g des Seew egs n ac h A sien. P o rtu g a ls A ufstieg
z u r e rste n e u ro p ä is c h e n See u n d H an d elsm ach t.
13 R u d o l p h , K u rt. D ie Religionsgeschichte an der Leipziger U niversität un d die E n tw icklu n g der R eligionsw is­
senschaft. 18 Cf. B it t e r l i, U rs. A lte W e l t- n e u e W elt. F o rm e n des eu ro p ä isc h -ü b e rsse e isc h e n K u ltu rk o n ta k ts vo m 15.
b is z u m 18. J a h rh u n d e rt.
14 C f. E lsa ss, C h ris to p h . Selbstverständnis/F orschungsdiszipline/M ethoden der Religionsw issenschaft, p. 256.
19 N ão o b s ta n te , c rô n icas d a p ré -h istó ria d a C iê n cia d a R eligião a p re c ia m fontes de au to res co m o H e ró d o -
15 L a n c z k o w s k i , G ü n te r. E in fü h ru n g in die Religionsw issenschaft, p. 3.
to (4 8 4 -4 2 5 a.C .), T eo frasto (372-287 a.C .), C ícero (106-43 a.C .), C é s a r (101-44 a.C .) o u T ácito (55-120
16 S c h m i d t , W ilh elm . U rsprung u n d W erden der Religion, p . 17.
d .C .). Cf. E l ia d e , M ircea. D as Heilige u n d das Profane. V om W esen d es R eligiösen, pp. 127-136.

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O c a mi n h o da i n s t i t u c i o n a l i z a ç ã o da Ci ê n c i a da Rel i g i ão
C o n s t i t u i n t e s da C i ê n c i a da R e l i g i ã o

britânicos no serviço da Com panhia das índias Orientais, entre eles línguas indianas na Universidade de Copenhague, quando publicou
Charles Wilkins, que em 1785 publicou a prim eira e, por m uitos anos, sua tradução do D ham m pada do páli para o latim em 1855.
a única tradução do Bhagavad Gita. Apesar disso, cada um a das cola­ Enfatiza-se que as obras acima citadas representam somente um a
borações foi um marco im portante para as filologias extra-européias pequena seleção do vasto espectro de estudos filológicos, exemplifi­
que se tornaram cada vez mais independentes de intenções secundá­ cando o fato de que “as heranças escritas de culturas estrangeiras, por
rias. A longa lista de todos os colaboradores envolvidos nessas obras m uito tem po consideradas livros secretos, foram descobertas e come­
ultrapassaria os limites deste capítulo. Pode-se somente citar alguns çaram a divulgar seus conteúdos”.20 É evidente que esse rápido progres­
deles como exemplo. so filológico às vésperas da institucionalização da Ciência da Religião
Destacaram-se na fase inicial das filologias extra-européias os foi um fator constitutivo para a posterior formação da disciplina.
orientalistas franceses, entre eles Anquetil Duperron, professor na
École des Langues Orientales de Paris. Em 1762, depois de um a estadia
de cerca de um ano em Surat, índia, ele entregou para a biblioteca da
5. O papel de Max Müller para a
sua universidade a coleção de 180 m anuscritos pársis e védicos e publi­ consolidação da Ciência da Religião
cou em 1771 sua tradução do Avesta, livro sagrado dos zoroastrianos
escrito na língua zenda. Em 1793, Silvestre de Sacy, tam bém conhecido Ainda na época que antecede a institucionalização da disciplina,
como pioneiro nos estudos arábicos na França, completou sua trad u ­ teólogos, filósofos e filólogos europeus como, por exemplo, o suíço Jo­
ção das inscrições sassânidas da língua persa para o francês. Em 1822, hann Georg Müller, desde 1837 davam cursos na área da história de re­
o egiptólogo Jean François Cham pollion anunciou sua decodificação ligiões. Paralelamente, aqui e ali, o term o “Ciência da Religião” já havia
dos hieróglifos egípticos. Stanislaus Julien realizou entre 1824 e 1829 sido aplicado. Pelo que se sabe, os prim eiros dois autores que usaram
a tradução do livro clássico confuciano de Meng-tze para o latim. Em essa designação foram Abbé Prosper Leblanc (1852) e F. Stiefelhagen
1833, Franz Bopp, filólogo alemão e professor em Berlim, publicou sua (1858),21porém não no sentido estrito como no caso do orientalista ale­
abrangente gramática comparativa das línguas sânscrita, zenda, grega, m ão Max Müller, form ado em Paris por Eugène B urnouf e desde 1854
latina, lituana, gótica e alemã. Na mesm a época, Eugène B urnouf p ro ­ contratado pela Universidade de Oxford como indólogo e filólogo. Foi
videnciou a tradução do Bhagavad Purana. Brian H oughton Hodgson, ele quem, no prefácio do seu livro Chips from a German Workshop, p u ­
colega de Charles Wilkins e, entre 1821 e 1843, enviado britânico na blicado em 1867 em Londres, introduziu o term o Ciência da Religião
corte nepalês, trouxe vários m anuscritos em sânscrito para Londres e no sentido de um a disciplina própria. O que M üller esperava tornou-se
Paris, dessa m aneira estabelecendo a base lingüística para um estudo mais claro no título de um a outra obra lançada em 1870, Über die ver­
profundo do Budismo Mahayâna. Na área de pesquisa do Budismo gleichende Religionswissenschaft. Segundo ele, Ciência da Religião [Re­
Theravada, lembram-se os m éritos de George Tornour, por ordem ligionswissenschaft, em alemão] teria de ser um a disciplina comparativa
da coroa britânica encerrado na adm inistração colonial em Sri Lanka [vergleichend]. Porém, não era m uito concreto quanto à program ática
por alguns anos. Tornour era especialista na língua páli e publicou em dessa nova m atéria acadêmica. Mais do que isso, como representante
1837 a tradução do Mahavansa para o inglês. Entre 1847 e 1850, o do “paradigm a m itológico-natural”, defendeu um a abordagem cada
orientalista inglês Henry C. Rawlinson lançou traduções dos caracteres vez menos aceita à medida que o século XIX aproximava-se de seu fim.
cuneiformes do antigo persa e da antiga língua babilónica descober­
tos em Behistum. Mais um a contribuição im portante para a pesquisa 20 K ip p e n b e r g , o p . c i t . , p . 4 6 .

do Budismo Theravada foi oferecida por Viggo Fausbõll, professor das 21 Cf. E l ia d e , op. cit., p. 127.

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Essa “escola de pensam ento”, iniciada por Adalbert Kuhn no seu nas de referência”, entre elas a sociologia, a etnologia e a psicologia. A
livro Die Herabkunft des Feuers und des Göttertranks, publicado em prim eira cátedra de “Histoire des Religions” fora da Teologia foi criada
1859 em Berlim, referiu-se à filologia com parativa das línguas dos em 1873 na Facultè dês Lettres da Universidade de Genebra.24 Como
cham ados povos indo-europeus interpretando os seus resultados de professor foi convocado Théophil Droz, que além do seu papel pionei­
um a m aneira específica. No olhar da “escola m itológica-natural”, fi­ ro não deixou nenhum a m arca nas crônicas da disciplina.
guras mitológicas e religiosas teriam de ser interpretadas com o per­ Q uatro anos mais tarde, exatamente em l c de outubro de 1877, fo­
sonificações de objetos e fenôm enos naturais, especificamente das ram sim ultaneam ente inauguradas nas universidades de Utrecht, Gro-
grandes estrelas e eventos m eteorológicos com o a tem pestade ou a ningen, Leyden e Amsterdã cátedras em “Geschiedenes van den Gods-
chuva. Não som ente do ponto de vista de hoje tal paradigm a é ob­ dienst”, como os holandeses inicialmente designaram a matéria. Vale a
soleto. As teorias de seus representantes já sofreram fortes críticas pena alguns comentários sobre Cornelius Peter Tiele, convocado pela
de contem porâneos, e Max Müller, o grande popularizador da “es­ Universidade de Leyden, e Daniel Chantepie de la Saussaye, contrata­
cola m itológica-natural”, tornou-se o objetivo preferido de escárnio. do pela universidade de Amsterdã. Ambos são freqüentem ente cita­
Cada vez mais desafiado por um paradigm a alternativo, o da escola dos como pais da disciplina e form am junto com Max Müller a tríade
anim ista na linha de Edward B urnett Tyler, M üller precisou observar de fundadores da Ciência da Religião. Porém, tanto Tiele, especialista
a desm ontagem da sua abordagem .22 Não obstante, Max M üller é até em história da religião da Babilônia e do Egito, quanto Chantepie de
hoje apreciado como um dos mais im portantes pioneiros da Ciência la Saussaye, supostam ente “o verdadeiro fundador da fenomenologia
da Religião. Além de ter insistido no status próprio da disciplina, ele da religião”,25 são vistos como teoricam ente m uito mais im portantes
despertou, com suas teses polêmicas, enorm e interesse público por do que seu colega de Oxford. O autor alemão Karl Heinz Kohl, por
sua nova m atéria e “incentivou, em vários sentidos, o uso das fon­ exemplo, afirma no seu esboço da história da Ciência da Religião que
tes”23 com o base obrigatória do trabalho científico com as religiões. até a Primeira Guerra M undial as discussões dentro da disciplina fo­
Exatam ente por isso a contribuição mais duradoura e valorosa do ram dom inadas pelos estudos dos dois professores holandeses.26 Já em
filólogo alemão foi a organização dos famosos Sacred Books o f the 1876, Tiele havia publicado sua obra paradigmática, Geschiedenis van
Earth. Entre 1879 e 1898, dois anos antes da m orte de Müller, a série den godsdienst tot aan de heerschappy der wereldgodsdiensten. A sua lei­
chegou a 50 volumes. tura prova não somente um interesse profúndo pela história das re­
ligiões, mas tam bém , diferentemente de Max Müller, um a aversão a
especulações filológicas. Chantepie de la Saussaye exerceu influência
6. A institucionalização da internacional através do seu M anual da História da Religião, cujos dois
Ciência da Religião como volumes foram lançados em 1887 e 1889, e logo depois traduzidos para
o inglês, francês e alemão.
disciplina acadêmica autônoma Na França, no decorrer da secularização do ensino superior, foi
As últimas três décadas do século XIX foram para a Ciência da inaugurada em 1879, no Collège de France, Paris, um a cátedra em his-
Religião pelo menos tão decisivas como para várias das suas “discipli­
24 Cf. R udo lph , D ie Religionsgeschichte an der L eipziger U niversität..., op. cit., p. 25. T o davia, as in fo rm açõ es
de K ohl so b re essa p rim e ira c á te d ra d ife rem e m d e ta lh e s d as d e R u d o lp h . Cf. K ohl, op. cit., p. 241.
22 C f . S c h m i d t , o p . c i t . , p p . 3 7 - 3 9 . 25 R u d o l p h , D ie Religionsgeschichte an d er Leipziger U niversität..., op. cit., p. 21.
23 H a r d y , o p . c i t . , p . 1 9 3 . 2fi Cf. Kohl, op. cit., p. 249.

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C o n s t i t u i n t e s da C i ê n c i a da R e l i g i ã o O c a mi n h o da i n s t i t u c i o n a l i z a ç ã o da C i ê n c i a da Rel i g i ão

tória geral da religião. Foi contratado como professor Albert Réville, deles é o surgim ento de periódicos e publicações paradigmáticas re­
que se tinha form ado junto com Cornelius Peter Tiele e favoreceu, bem percutindo em comunidades científicas associadas. Um outro é a orga­
como seu colega, um a abordagem estritam ente histórico-empírica. O nização de congressos oferecendo oportunidades para pesquisadores
desenvolvimento da disciplina acelerou-se a partir de 1886, quando a da mesma área a fim de se reunirem e fortalecerem a consciência de
Faculdade de Teologia na Sorbonne foi fechada por decreto governa­ integridade da própria com unidade científica.
m ental e substituída pela Section dês Sciences Religieuses da École des
O prim eiro órgão de publicação relevante foi a Revue de Vhistoire
Hautes Études, explicitamente caracterizada como “centro de pesquisa
dês religions, fundada em 1880 em Paris por Maurice Vernes. A sua
crítica” pelo então m inistro responsável. No início conteve dez sub-
introdução esclareceu os ideais metateóricos, bem como as norm as
sessões, cada um a delas dedicada à investigação de religiões em um a
formais da revista, e chamou, entre outros aspectos, a atenção do leitor
determ inada região do m undo, por exemplo, da índia, do Extremo
para o caráter histórico da Revue, pelo fato de que a redação rejeitaria
Oriente ou do Egito. De acordo com esse modelo, foram posterior­
um m anuscrito que tratasse de qualquer religião de m aneira dogm á­
m ente acrescentadas mais dez subsessões.27
tica ou polêmica.28 Um outro periódico im portante na fase inicial foi
Q uanto à “carreira universitária” da disciplina em outros países, o Archivfür Religionswissenschaft, publicado a partir de 1898 em Frei-
as seguintes informações são suficientes: na Bélgica tem havido cur­ burg por Edm und Hardy e seus colegas. No caso do Hibbert Journal,
sos em Ciência da Religião desde 1884 e na Itália, desde 1886; porém ,
trata-se de um órgão escocês lançado em 1902. Três anos mais tarde foi
apenas em 1924, graças à insistência de Raffaele Pettazzoni, a discipli­
fundada a revista Anthropos, organizada por W ilhelm Schmidt.
na ganhou status independente da Teologia. Na Suécia a Ciência da
Quanto a publicações paradigmáticas, devem ser mencionadas,
Religião está institucionalizada desde 1893. Na Inglaterra a disciplina
além das já citadas Sacred Books o f the East, pelo menos dois exem­
ganhou status oficial em 1904, quando foi inaugurada na Universidade
plos: entre 1908 e 1923, J. M. Hastings organizou os 13 volumes da sua
de M anchester a prim eira cátedra em “comparative religion”, porém
dentro da Faculdade de Teologia. até hoje im portante Encyclopedia o f Religion and Ethics, e entre 1900
e 1913 foram publicados na sua prim eira edição os cinco volumes do
Na Alemanha, o interesse pelas religiões não-cristãs inicialmente
Die Religion in Geschichte und Gegenwart, atualmente relançado na sua
não levou a um a formação da Ciência da Religião, mas exigiu esforços
quarta edição.
de pesquisa no contexto da Teologia. Os departam entos de Teologia
nas universidades da Alemanha, já na década de 1880, ofereciam vá­ Uma curta rotina de congressos sobre assuntos da Ciência da Re­
rios seminários sobre outras religiões. Somente em 1910, a prim eira ligião estabeleceu-se somente por volta da virada do século XIX para o
cátedra da Ciência da Religião foi fundada na Universidade de Berlim. século XX, mais tarde interrom pida pela Prim eira Guerra Mundial. Há
Ainda na “fase de form ação”, no início deste capítulo definida como a questão sobre a história de conferências internacionais de cientistas
o período entre 1873 e 1924, form aram -se program as nas capitais da da religião ter realmente começado em 1897 com o congresso de Esto­
Dinam arca (1914) e da Noruega (1925). colmo ou somente com o congresso de 1900, por ocasião da exposição
m undial em Paris.29 Q uanto à situação nas prim eiras duas décadas do
Além dos dados da “oficialização” da Ciência da Religião em for­
século XX, as opiniões são m enos ambíguas: Basiléia (1904), Oxford
ma de cátedras, seções ou program as nas universidades, há outros in ­
dicadores para o progresso da disciplina no am biente acadêmico. Um
28 Cf. H je l d e , S ig u rd . D ie R eligionsw issenschaft u n d das C h risten tu m . E ine h isto risc h e U n te rs u c h u n g ü b e r
das V erh ältn is v o n R elig io n sw issen sch aft u n d T heo lo g ie, p. 135.
27 Cf. ibid., p. 241.
29 Cf. S harpe, Eric J. From Paris 1900 to Syd n ey 1985. A n Essay in R e tro sp e c t a n d P ro sp ect.

27
C o n s t i t u i n t e s da C i ê n c i a da R e l i g i ã o

(1909) e Leyden (1912) são geralmente considerados eventos “legíti­


m os”. O seguinte congresso, ou seja, a prim eira conferência depois do
intervalo causado pela guerra, ocorreu somente em 1929, em Lund,
Suécia, num m om ento que já foge da época que constituiu o foco de
análise neste capítulo.

Os enganos
sobre o sagrado
Uma síntese da crítica ao ramo
“clássico” da Fenomenologia da
Religião e seus conceitos-chave

28
Os e n g a n o s s o b r e o s a g r a d o

1. Introdução
H á cerca de trinta anos circulava entre cientistas da religião alemães
um a piada sintom ática sobre a briga de métodos que marcava a disciplina
nas universidades daquela época, não apenas na Alemanha, mas tam bém
em outros países.1A origem da brincadeira caiu rapidam ente no esque­
cimento, mas, por seu teor, é óbvio que o autor dela não fazia parte da
com unidade científica alemã. À pergunta “Por que os cientistas da reli­
gião na Alemanha deveriam urgentem ente consultar um médico?”, era
dada a seguinte resposta irônica: “Porque eles sofrem de um a numinose”.
A então “nova geração” de cientistas da religião alemães adota­
ram esse dito engraçado com prazer, um a vez que ele exprimia, de
m odo pragmático, a oposição crescente à Fenomenologia da Religião
“clássica”,2associada a autores como Nathan Sõderblom (1866-1931),
Geerardus van der Leeuw (1890-1950), Joachim Wach (1898-1955),
Friedrich Heiler (1892-1967), Gustav Mensching (1901-1978) e, so­
bretudo, Rudolf O tto (1869-1937).3 O tto foi o criador do neologismo
alemão numinoso, term o derivado da palavra latina numen4 e em pre­
gado para designar a form a mais “abstrata”5 do sagrado, tema central e
título da sua “obra magna”.
Quem se form ou na fase da briga dos métodos em um dos progra­
mas de Ciência da Religião na Alemanha foi “vacinado” contra a citada
“disfunção intelectual” e seus efeitos colaterais em debates teóricos e
projetos de pesquisa. Em bora referências isoladas a conceitos fenome-
nológicos e m esm o tentativas de restaurá-los como legítimas catego­
rias científicas6tenham provado a resistência da numinose a esforços de

1 Cf. T e r r in , A ldo N ata le. O Sagrado O f f L im its, esp ecialm en te o p rim e iro ca p ítu lo .
2 Q u a n to à s dife ren cia çõ es in te rn a s d a F en o m e n o lo g ia d a R eligião, cf. H o c k , K laus. E in fü h ru n g in die
R eligionsw issenschaft, pp. 56-78. A n o ç ã o F e n o m e n o lo g ia d a R eligião “clássica” a q u i u s a d a c o rre sp o n d e
à F en o m e n o lo g ia d a R eligião “no se n tid o e s tr ito ” n a te rm in o lo g ia d e H o ck .

3 Cf. A n t t o n e n , V eikko. S acred. In : B r a u n , W illi & M c C u t c h e o n , R ussell (o rg s.). G uide to the S tu d y o f


Religion, pp. 271-282. M c K e n z i e , P eter; O t t o , W ach & H e il e r , F rie d ric h . T ow ards a S ystem atic P h e n o m ­
en o lo g y o f R eligion. D isku s, pp. 29-41.
4 A p ro x im a d a m e n te , sig n ifica “v o n ta d e d iv in a ”, “a tu a ç ã o d iv in a ” o u “essên cia d iv in a ”. Cf. F eldtkeller,
A n d réas. N u m in o s . Religion in Geschichte u n d G egenwart, co lu n as 428-429.
5 Cf. O t t o , R udolf. D as Heilige. O tto a firm a (cf. pp. 5-8) q u e o te rm o num in o so d esig n a a esfera so b re n a ­
tu r a l d a ex istên cia a in d a ise n to de q u a lq u e r ideação , elem en to ra c io n a l o u im p lic ação ética.
6 Cf. K am per, D ie tm a r & W ulf, C h ris to p h (o rg s.). D as Heilige.

31
C o n s t i t u i n t e s da C i ê n c i a da R e l i g i ã o Os e n g a n o s s o b r e o s a g r a d o

colocá-la em quarentena, ela nunca mais recuperou seu caráter “epidê­ Com parado com a situação da disciplina em outras partes do
mico” e o vigor com o qual tinha contam inado as mentes dos autores m undo, especificamente na Alemanha, a freqüente citação do sagrado
anteriorm ente determ inantes no discurso disciplinar na Alemanha. por autores brasileiros em virtualm ente qualquer contexto é metateo-
É compreensível que, no complexo e fragm entado m undo con­ ricamente problem ática e exige a inclusão desse item na pauta da fu­
tem porâneo, nem todas as comunidades acadêmicas na área de Ciên­ tura discussão sobre a constituição e o caráter da Ciência da Religião
cia da Religião vêm acom panhando tal debate com o mesmo interesse neste país. O presente capítulo pretende contribuir para tal debate. O
vital, ou, se acom panham , têm chegado às mesmas conclusões obtidas próxim o item esboçará de m aneira sucinta a Fenomenologia da Reli­
na Alemanha. Isso vale especificamente para o Brasil, onde inúm eras gião de acordo com seus pressupostos do ponto de vista ontológico, na
indicações provam que, em um am biente propício, a numinose pode área da antropologia, com relação à sua delimitação do objeto princi­
se espalhar sem restrições e ganhar caráter quase invencível. Um si­ pal da pesquisa e no que diz respeito à metodologia. Esse resum o ser­
nal disso é o uso inflacionário ou mesmo aleatório da palavra sagrado, virá como base de um a discussão crítica mais detalhada, a ser realizada
que é aplicada à vontade para parafrasear algo que - de um a m aneira mais adiante.
ou outra - tem (mais ou m enos) a ver com religião. Dá-se tam bém o
contrário, ou seja, o term o sagrado é intuitivamente associado a um
2. As implicações ontológicas e
sentido mais específico do que o da palavra religião. Esse fato pode
ser exemplificado pela seguinte observação, feita por um a aluna que antropológicas da Fenomenologia da
acom panhou a defesa de um a dissertação sobre a relação entre budis­
m o e arte marcial: “Acho a obra do colega m uito bem-feita, mas me
Religião e as conseqüências para a
perguntei, durante todo o diálogo entre o candidato e a banca: em que abordagem ao mundo religioso empírico
parte do trabalho ele aborda o sagradoV’.7
Já em sua prim eira formulação, feita em 1913 por Nathan Sõder-
Em relação à suposição de sinoním ia da noção do sagrado com o
blom - ou seja, quatro anos antes da publicação do famoso livro de
term o “religião”, seria um a tarefa sem-fim listar todas as citações de tí­
Rudolf Otto - , o sagrado assum iu um significado ontológico que, de
tulos de livros, dissertações e teses, anúncios de encontros interinstitu-
acordo com um a cosmovisão dualista, representa a esfera “comple­
cionais, adfas magnas, eventos temáticos e ementas de cursos brasilei­
m entar” ao profano; ambos, por sua vez, constituem o ser em sua tota­
ros, apenas nos últimos anos, para provar a “naturalidade” com a qual
lidade. Do ponto do vista do profano, o sagrado é o “totalm ente outro”
o sagrado é adotado como term o técnico inequívoco e im ediatam ente
e representa um fenôm eno sui generis, ontologicamente independente
acessível para leitores, integrantes de bancas, ouvintes em auditórios
e autônom o.
e alunos em salas de aula. Damos um exemplo para indicar a referên­
Absoluto na sua essência, possui um a dinâm ica própria que faz
cia “ingênua” ao termo: no sistema de busca da biblioteca da PUC-SP,
com que se articule no relativo com o “um a força m isteriosa [...] re­
o verbete serve como categoria de classificação temática, m ostrando
lacionada a determ inadas formas de existência, objetos, eventos ou
mais de duzentos registros, m uitos deles de obras sem nenhum a rela­
ção literal à palavra “sagrado”. ações”.8Não obstante, trata-se de um a “manifestação de algo de or-

7 C itação de u m d iá lo g o n a o ca sião d a defesa d a d is s e rta ç ã o d o m e u o rie n ta n d o R o d rig o W o lff A p o llo n i, ‘ C f. G l a d ig o w , B u rk h a rd . R elig io n sg esch ich te des G eg en stan d e s - G eg en stän d e d e r R eligionsgeschichte.
em 5 de o u tu b ro de 2004. In : Z in s e r , H a r tm u t (o rg .). R eligionsw issenschaft. E ine E in fü h ru n g , p. 9.

33
C o n s t i t u i n t e s da C i ê n c i a da R e l i g i ã o Os e n g a n o s s o b r e o s a g r a d o

dem diferente, de um a realidade que não pertence ao nosso m undo C ontinuam ente “tocado” pela essência divina no decorrer da his­
natural, profano”.9 tória, o ser hum ano concretiza sua relação com o sagrado na vida atra­
Essas “hierofanias”, como Mircea Eliade cham ou as auto-revela- vés de símbolos, ritos e expressões estéticas culturalm ente pré-estrutu-
ções do sagrado, são um elemento-chave na história hum ana, em bora radas. Em bora as formas diversificadas e variáveis no tem po e espaço
o lado irracional do sagrado enfraqueça na m edida em que um a re­ constituam o m undo religioso empírico, elas não desviam a atenção
ligião concreta passa por um processo de racionalização. Em outras de um pesquisador com prom etido com o program a da Fenom enolo­
palavras: “O elemento racional supera o estágio original do ‘rudim en­ gia da Religião, um a vez que sua tarefa mais “digna” é a de transpas-
to’ e ‘esquematiza’ os m om entos irracionais por meio da moralização sar a multiplicidade dos fatos produzidos nos âmbitos de diferentes
e cultivo”.10 Ainda que essa “sublimação” tenha dim inuído o vigor do religiões para com preender a essência da religião. M elhor dizendo: na
num inoso, ele não deixa de repercutir nas formas posteriores. Pelo busca de compreensão do sagrado como fenôm eno universal, único
contrário: como Rudolf O tto afirma ainda no início da sua obra m ag­ e trans-histórico,14 os elementos culturais, sociais, filosóficos e práti­
na, “o num inoso vive em todas as religiões”.11 cos, constitutivos da plurivalência das religiões concretas, tornam -se
secundários ou, até mesmo, irrelevantes em relação ao objetivo final
Apesar de as conotações ontológicas serem constitutivas para o
da sua pesquisa.
conceito do sagrado, o foco de interesse dos representantes clássicos
da Fenom enologia da Religião está na experiência humana do n u m i­ Do ponto de vista metodológico, portanto, para a Fenomenologia
noso, ou seja, na reação do sujeito religioso aos “cham ados” do sa­ “clássica” da Religião não é suficiente estudar as “meras” manifestações
grado. M etaforicam ente falando, pode-se dizer que há um a instância religiosas. Pelo contrário, é preciso que o pesquisador não se perca na
própria no interior do ser hum ano que reage à esfera divina tran s­ complexidade dos fatos, mas abstraia-se do m undo empírico por ativar
cendental analogam ente a um a caixa de ressonância que, devido a seu próprio sensus numinis e “treine” sua em patia com o sagrado para
seu m aterial, vibra na m esm a freqüência de um som produzido p ró ­ se deixar penetrar em ocionalm ente pelo num inoso e experienciá-lo.
xim o a ela. A Fenom enologia “clássica” da Religião, portanto, parte
do axiom a antropológico de que o ser hum ano é equipado com um a
faculdade específica a qual o predispõe para a sensação da presen­
3. A crítica à Fenomenologia da Religião
ça do sagrado. Esse sensus num inis12 possibilita a sensação am bígua Devido à crítica detalhada ao ram o clássico da Fenomenologia
do sagrado como mysterium tremendum etfascinosum (“m istério tre-
da Religião nas últimas décadas, é hoje consensual que “no âmbito da
rrieüdo e fascinante”). Em outras palavras, o encontro do indivíduo
Ciência da Religião nenhum a outra noção tem sido mais polêmica do
com a essência divina nele provoca, sim ultaneam ente, “sentim entos
que a do sagrado”.15 A seguir será apresentado um levantam ento das
inexplicáveis de h o rro r e espanto, por um lado, e êxtase irresistível e
principais razões do ceticismo diante da abordagem fenomenológica
fascinação, por outro ”.13
em geral e do conceito do sagrado em particular.

9 Cf. D icionário Enciclopédico das Religiões, v. I, p. 1.265.


F ran k . R u d o lf O tto s “R eligiöser M e n s c h h e its b u n d ”. Z e itsc h rift f ü r R eligionsw issen­
10 O b e r g e t h m a n n ,
schaft, esp ecialm en te p. 98.
11 Cf. O tto, op. cit., p. 6.
12 Cf. C o lpe, C arste n . D ie w isse n sc h aftlich e B esch ä ftig u n g m it “d em H eilig en ” u n d “ d as H eilig e” h eu te.
In: K a m per & W ulf, op. cit., esp ecialm en te p. 44. 14 C f. C o lpe, op. cit., p. 50.
13 Cf. A nttonen, op. cit., p. 272. 15 G a n t k e , W olfgang. D er u m stritte n e B e g riff des H eiligen, p. 13.

35
C o n s t i t u i n t e s da C i ê n c i a da R e l i g i ã o Os e n g a n o s s o b r e o s a g r a d o

A crítica à negligência do contexto term o preferido por eruditos e poetas alemães no século XVIII. Um
deles foi Friedrich Gottlieb Klopstock (1724-1803), teólogo form ado
sociohistórico em que surgiu o termo
na Universidade de Jena, precursor do Rom antismo alemão e, então, o
e a falta de reflexão sobre m aior expoente do Sentim entalismo.18 Foi provavelmente a admiração
suas implicações confessionais da abordagem e do estilo de Klopstock que inspirou O tto a adotar as
expressões heilig e das Heilige em seu vocabulário.
Um prim eiro argum ento em desfavor do conceito de sagrado Não se questiona as nuanças semânticas inerentes à palavra em
surge da negligência do contexto sociohistórico em que o term o si. A crítica direciona-se à falta da consciência de que o uso afirm a­
ganhou im portância e da desatenção diante das implicações subs­ tivo do conceito do sagrado exprim e a conform idade do falante com
tanciais que delim itam sua validade com o conceito no âm bito da um a determ inada “escola de pensam ento” dentro do espectro m ú l­
Ciência da Religião. tiplo da Ciência da Religião, ou seja, com a abordagem rom ântica
Para iniciar a síntese da referente crítica, vale lem brar que Rudolf e sentim entalista paradigm aticam ente defendida por R udolf O tto
Otto lançou Das Heilige em 1917, em plena Prim eira Guerra M undial e po r seu grande referencial, Friedrich Schleiermacher. Suspeita-se
- ou seja, em um m om ento histórico marcado pelo desespero diante que a grande m aioria dos autores que atualm ente cita a noção do
da discrepância gritante entre as aspirações hum anas e o verdadeiro sagrado de m aneira quase natural não esteja consciente desse parti-
caráter das suas ações; em um ambiente cuja tensão foi intensificada cularism o.
pela incapacidade de as então tendências intelectuais oferecerem pers­ A referência não-refletida do term o é ainda mais problem ática
pectivas aptas para curar as profundas mágoas coletivas ao projetar em função da displicência em face da afinidade do conceito de sa­
um futuro mais auspicioso. Nesse clima, a obra de O tto foi recebida grado com um tipo específico de religiosidade resultante da origem
como um “livro de consolação”16 pelo leitor com um e como fonte de familiar e socialização prim ária dos precursores e pioneiros da Fe-
esperança para teólogos desiludidos pela ideologia do Liberalismo e nom enologia da Religião. Mais concretam ente falando, é o “esquema
da Teologia Dialética. Para ambos os públicos, Das Heilige serviu como protestante” no sentido da relação im ediata do ser hum ano diante do
“um a espécie de ‘compensação’ da racionalidade do pensam ento teo­ “seu” Deus que constitui o padrão básico de todas as interpretações
lógico e o desencantam ento do m undo”,17 um a vez que o livro reafir­ do term o.19Portanto, quem o emprega de m aneira afirmativa não está
m ou a existência universal do sagrado como entidade ontológica além apenas prom ovendo um a abordagem sentim entalista e rom ântica,
e independente dos m edonhos “fatos reais”, mas acessível para o indi­ mas tam bém sim patiza com o pensam ento evangélico característico
víduo no seu próprio interior. de autores como Schleiermacher, Sõderblom, van der Leeuw, Wach,
Uma retrospectiva da “trajetória” do adjetivo heilig na história es­ O tto ou M ensching.20
piritual alemã deixa claro que a idéia do sagrado assumiu seu potencial
de esperança tam bém porque os fenomenólogos da religião fortale­
ceram e re-contextualizaram determ inadas conotações que a palavra
18 Cf. Op. cit., p. 45.
tinha adquirido anteriorm ente. Na verdade, o sagrado já havia sido um C o lpe,

19 Cf. G l a d ig o w , op. cit., esp ecialm en te p. 8.


20 E n q u a n to o c ristã o o rto d o x o M irce a E liad e n ão se e n q u a d ra n essa lista, p o d e-se in c lu ir nela até m esm o
F ried rich H eiler, q u e, em b o ra cató lico p o r n a s c im e n to , é co n sid e rad o u m re p re s e n ta n te d o c h a m ad o
16 Cf. C olpe, op. cit., p. 45.
“ca to licism o evan g élico ”, u m a im ag em a d q u irid a p o r seu e n v o lv im e n to n a c h a m a d a “H o c h k irc h lic h e n
17 V o r g r i m m l e r , H e rb e rt. N eues Theologisches W örterbuch, p. 271.
B ew egung” (hoje E v a n g elisch -Ö k u m e n isch e V erein ig u n g [A ssociação E v a n g élico -E cu m ên ica ]).

37
C o n s t i t u i n t e s da C i ê n c i a da R e l i g i ã o Os e n g a n o s s o b r e o s a g r a d o

e qadosch, abertos para traduções alternativas como, po r exemplo,


A crítica à suposta universalidade do
ehrlich, (honesto, sério), züchtig (casto, pudico), ehrwürdig (respei­
significado do termo “sagrado” tável, venerável), from m (pio, devoto) ou erhaben (sublim e, solene).
Do ponto de vista lingüístico, portanto, o uso do adjetivo heilig na
Conforme Sõderblom, o sagrado é “um a categoria universal no
Bíblia alem ã não é obrigatório, m as reflete apenas os esforços para
m undo religioso mais essencial do que a palavra Deus”.21 Com essa
lim itar o espectro de possíveis significativos a um único term o em
afirmação, o autor prova estar consciente da relevância de um estu­
função da padronização da tradução. Por isso Colpe afirm a que
do da religião o mais amplo possível sem excluir crenças politeístas
“nem o uso nem o significado da palavra heilig são assegurados, mas
ou fenôm enos como o budism o prim itivo desinteressado em questões
apenas hábitos”.23
teológicas propriam ente ditas. Portanto, é preciso que o pesquisador
A partir dessas observações genéricas, o autor progride no seu
emancipe-se de um vocabulário que apenas representa conceitos fa­
raciocínio crítico ao term o sagrado por problem atizar a suposta ge­
vorecidos pelas religiões monoteístas. Além disso, o fato de o term o
neralidade da interpretação da noção de Rudolf Otto. Com o resultado
sagrado servir como denom inador com um no vasto campo religioso
da sua pesquisa comparativa, Colpe rejeita a universalidade do signi­
m ostra que o conceito prom ete a redução da complexidade empírica
do objeto. ficado da palavra e salienta que ela tem apenas um sentido análogo nas
tradições m onoteístas, nas religiões grega, rom ana e germânica, bem
Enquanto o caráter comparativo da disciplina está fora de qual­
como em algumas religiões paleolíticas. Em um tom irônico, Colpe
quer dúvida, assim como não se nega a necessidade de categorias ge­
afirma:
rais em função de um a pesquisa adequada do m undo religioso em sua
diversidade real, críticos à Fenomenologia da Religião, inspirados pelo Vamos imaginar que há tempos imemoráveis, em um jardim paradi­
paradigma interpretativo, confrontam o “realismo” do tratam ento do síaco [...] um germano, um ariano ou um grego, um melanésio, um
term o sagrado com o conceito construtivista, enfatizando as conse­ polinésio, um judeu ou um romano [...] conversem sobre seus com­
promissos religiosos, cada um usando as palavras da sua cultura. [...]
qüências de linguagens socialmente estabelecidas no sentido de que a Eles teriam se entendido? Foi necessário surgir o arrogante cientista
denom inação não aponta para algo independentem ente existente, mas dos nossos tempos para sintetizar suas posições.24
que esse “algo” é criado pelo ato da denominação.22 Sob esse ponto de
vista, o grau da plausibilidade da noção do sagrado depende do nível Resumindo: um a comparação de várias linguagens religiosas re­
da concordância de um grupo de pesquisadores a respeito de seu sig­ vela que a palavra heilig não é universalmente traduzível, mas apenas
nificado —ou seja, o term o ganhou seu “valor” em um determ inado desem penhou um papel particular conform e o consenso lingüístico
am biente sociocultural.
de um a geração dom inante de pesquisadores nas primeiras décadas da
C onfirm ando tal princípio, Carsten Colpe criou um a lista de história da Ciência da Religião como disciplina institucionalizada.
palavras usadas nas versões latina, grega e hebraica da Bíblia em lu ­
gares onde a tradução alem ã traz o adjetivo heilig. Encontrou como
correspondências diretas term os com o sacer, sanctus, hieros, hagios

21 Cf. S õ d e r b l o m , N a th a n . H o lin e ss. In: H a s t in g s *}am es(ed.). E ncyclopaediao fR elig io n a n d E th ics,p p .7 13 - 74 1 .


22 Cf. C o l p e , C arste n . W ie u n iv e rsa l ist das H eilige? In : K l i m k e i t , H a n s-Jo a c h im (o rg .). Vergleichen u n d 2J Cf. ibid., p. 4.
Verstehen in der Religionsw issenschaft, pp. 1-12, esp ecialm en te p. 7. 24 C o l p e , D ie w isse n sc h aftlich e B esch ä ftig u n g m it “ d em H eilig en ”..., op. eit., p. 54.

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C o n s t i t u i n t e s da C i ê n c i a da R e l i g i ã o Os e n g a n o s s o b r e o s a g r a d o

A crítica às implicações ontológicas e cas, se encontraria a palavra “Deus”. Em term os mais concretos, para
um leitor judeu, cristão ou m uçulm ano de Das Heilige, a “m ensagem ”
“criptoteológicas” da noção do sagrado principal da obra teria sido a m esm a se O tto tivesse substituído a ex­
pressão “o sagrado existe” por “Deus existe”, um a hipótese confirm a­
O utra dimensão da crítica ao term o sagrado consiste na acusação
da por Sõderblom na hora da sua m orte: “Eu sei que Deus vive. Posso
de que seu uso nas obras dos fenomenólogos da religião ignora a distin­
provar isso pela H istória da Religião”.29 Esta não foi um a frase solene
ção m etateoricam ente crucial entre a “linguagem teórica” e a “lingua­
m otivada por circunstâncias excepcionalm ente dram áticas, mas a ex­
gem no nível do objeto”,25 ou seja, de que os autores em questão negli­
pressão autêntica de um lema que tinha norteado a vida profissional
genciavam “a diferença entre afirmações científicas e as afirmações das
não apenas do citado autor, mas de um a geração inteira de acadêmicos
religiões”.26 Nesse sentido, a frase “é possível que um a verdadeira reli­
convicta de que “o pesquisador das religiões tem que ser um hom em
gião seja isenta de um a determ inada concepção da divindade, mas não
que foi encontrado e tocado por ‘seu Deus”.30 Nesse sentido é sinto­
da distinção entre sagrado e profano”27 pode parecer banal à prim eira
m ático que vários cientistas da religião daquela época - por exemplo,
vista, mas, do ponto de vista epistemológico, é altamente problemática,
Gerardus van der L eeu w - se auto-reconheciam com o “testem unhas”
um a vez que essa “identificação” do sagrado com o profano não se trata
das manifestações do sagrado.31 Afirmações com o a acima citada que
de um a representação das convicções subjetivas de determ inados “ob­
fizeram com que a Fenom enologia da Religião fosse acusada de re­
jetos” religiosos m eram ente registrados por um observador, porém de
presentar um a espécie de “criptoteologia”, um a abordagem incom ­
um a hipótese sobre a “natureza” e a “estrutura” ontológica da realidade.
patível com o ideal de um estudo da religião que “não deve com pro­
Em outras palavras: na tradição de Sõderblom, O tto e outros, a noção
m eter-se com m otivos religiosos, m as deve agir com ‘instrum entos
do sagrado não é apenas um a “citação” em um “relatório” de pesquisa
científicos’, renunciando a qualquer discurso religionista [...] que
de campo sobre a fé de m em bros de um a determ inada religião, mas ex­
possa servir de sustentação para a validade da experiência religiosa”.32
prim e a cosmovisão dos próprios acadêmicos. Portanto, reclama-se a
falta de diferenciação entre o term o sagrado na qualidade de um a “he- O próxim o item apontará para um a das conseqüências mais pro­
terodefinição”,28 no sentido de “os m em bros da com unidade ‘X’ acredi­ blemáticas da atitude “criptoteológica” implícita no ram o clássico da
tam em algo que pode ser categorizado como o sagrado”, por um lado, Fenomenologia da Religião.
e a confirmação da existência do numinoso como “autodefinição” de
um cientista da religião que postula que “o sagrado existe”, por outro. Reflexões críticas sobre o objeto
Ainda na m esm a linha de argum entação, os críticos à Fenome-
privilegiado pela Fenomenologia
nologia da Religião cham am a atenção para a estrutura sem ântica
analógica das frases “o sagrado existe” e “Deus existe” e salientam que, Como já foi dito, o m aior desafio que o m undo complexo das reli­
nas construções semânticas de autores como Sõderblom e O tto, o ter­ giões representa para um fenomenólogo “clássico” é o da abstração da
m o sagrado surge em lugares onde, em obras explicitam ente teológi-

29 Cf. B i e z a i s , H a ra ld . D ie h eilig e E n th e ilig u n g d es H eilig en . In : D ü r r , H a n s -P e te r (o rg .). A lcheringa oder


25 Cf. S e iw e r t , H u b e rt. R eligiöse B e d e u tu n g ’ als w isse n sc h aftlich e K atego rie. A n n u a l R e view fo r th e Social
Sciences o f Religion, pp. 57-99. die beginnende Z eit. S tu d ien z u r M ythologie, S ch a m a n ism u s u n d Religion, pp. 163-190, esp ecialm en te
n o ta d e ro d ap ö 21 n a p. 181.
26 Cf. idem . “R eligionen u n d R eligion”. A n m e rk u n g e n zu Jacques W a a rd e n b u rg s E in fü h ru n g in d ie R eli­
g io n sw isse n sc h aft. Z eitsc h rift f ü r M issionsw issenschaft u n d R eligionsw issenschaft, p p . 225-230, esp ecial­ 30 Cf. R atsc h o w , C a rl-H e in z . M e th o d ik d e r R elig io n sw issen sch aft. E n zyklopädie der geistesw issenschaft­
m e n te p. 229. lichen A rb eitsm eth o d en , pp. 347-400, esp e c ia lm e n te p. 347.
27 Cf. S õderblom , op. cit. 31 Cf. G l a d ig o w , o p. cit., p. 11.
28 Cf. C o lpe, D ie w isse n sc h aftlich e B esch ä ftig u n g m it “ d e m H eiligen”..., op. cit., p. 52. 32 Cf. T e r r in , op. cit., p. 18.

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C o n s t i t u i n t e s da C i ê n c i a da R e l i g i ã o Os e n g a n o s s o b r e o s a g r a d o

complexidade dos fatos reais para chegar ao “conhecimento” do sagrado A crítica à abordagem assim resum ida nasce de um a demarcação
o mais imediatamente possível, ou seja, da suposta essência de qualquer mais estrita dos limites epistemológicos da disciplina, um a com preen­
“verdadeira” religião que repercute no interior de um ser hum ano sensível são m etateórica que alimenta dúvidas sobre a legitimidade de afirma­
para tal “última realidade”. Conforme essa hierarquia dos constitutivos da ções metafísicas no âmbito acadêmico. Ao mesmo tempo, acusa-se a
religião, as obras de autores na tradição de Sõderblom, Otto e, mediado Fenomenologia da Religião de um reducionismo, porque a concentra­
pelo último, Schleiermacher, privilegiam dois aspectos considerados es­ ção exagerada na experiência religiosa negligencia a m aior parte das
pecialmente dignos de serem “pesquisados”: a) o numinoso na condição facetas fundam entais para o m undo religioso concreto.
de entidade ontológica absoluta; e b) a experiência espiritual como rea­ Em outras palavras: enquanto os fenomenólogos pretendiam ir
ção “autêntica” do indivíduo ao numinoso no nível dos seus sentimentos. além dos aspectos particulares que constituem um a religião no contí­
Segundo Gladigow, essas asserções são problemáticas, um a vez que nuo tem po-espaço, para chegar à essência da religião em si, as gerações
os fenomenólogos da religião não partem de um a definição nom inal posteriores dos cientistas da religião defendem o caráter multidiscipli-
da religião, mas tom am como certo que o estudioso e os virtuoses das nar dos seus estudos e a necessidade de um a colaboração entre especia­
religiões são inspirados pelo mesmo motivo: o encontro com o sagra­ listas formados em diferentes subdisciplinas e interessados em todas as
do. Com isso, o fenomenólogo não apenas entra em “ competição de dimensões que compõem qualquer religião concreta.
reconhecim ento’ como o sujeito religioso”,33 mas direciona sua atenção Confrontado com o esquema anterior, o seguinte gráfico visualiza
para um a dimensão extra-em pírica que não apenas é testem unhada a abordagem alternativa à Fenomenologia da Religião.
pelo “indivíduo religioso a-histórico”,34 porém tam bém ultrapassa os
limites de um a disciplina científica. As observações de Gladigow po­
dem ser esquematizadas da seguinte forma:

Cf. G l a d ig o w , o p . c i t ., p p . 6-7. Obs.: “D a-D n” apontam para a totalidade das “dim ensões” (psicológica,
Cf. A n t t o n e n , o p . c it ., p . 2 7 3 .
sociológica, estética etc.) a ser abordada pela pesquisa multidisciplinar.

42 43
Os e n g a n o s s o b r e o s a g r a d o
C o n s t i t u i n t e s da C i ê n c i a da R e l i g i ã o

É esse paradigma que norteia o trabalho da m aioria dos cientistas A crítica a essa abordagem considera a suposição da universa­
da religião contemporâneos. lidade do sagrado como resultado de um “efeito de protótipo”35 que
negligencia as nuanças em que a “última realidade” é concebida em
diferentes contextos históricos e socioculturais. Conforme Benson
A crítica à negligência das Saler, efeitos de protótipos são “modelos cognitivos idealizados”, ou
referências múltiplas à transcendência seja, “assimetrias de julgamentos referentes à universalidade de objetos
considerados representantes de um a determ inada categoria”. Para que
no mundo religioso empírico o leitor possa entender melhor o impacto de um efeito de protótipo, o
autor traz o seguinte exemplo: alguém solicita a um m orador da cidade
As dúvidas quanto à qualificação do sagrado como entidade sin­
de Massachusetts que cite um pássaro; é provável que esse m orador
gular não se esgotam nas observações acima elaboradas; elas im pli­
não pense em um pingüim , mas em um tordo americano.36 Em termos
cam, tam bém , a questão acerca da utilidade da categoria com relação
mais genéricos: protótipos representam “um a espécie de teoria que o
à diversificação com a qual diferentes religiões se referem à transcen­
indivíduo aplica para ganhar rapidam ente um a impressão holística do
dência. Como já foi dito, a Fenomenologia da Religião insiste na u n i­
versalidade e na unicidade do sagrado a serem descobertas sob as arti­ seu am biente”, um a vez que esses modelos “focalizam a percepção em
determ inados aspectos [...] e determ inam quais informações são regis­
culações religiosas socioculturalm ente determinadas, que são tratadas
como variações no contínuo espaço-tem po da religião como entidade tradas e quais são ignoradas”.37
suigeneris. Afirmando-se capaz de compreender a essência de qualquer Uma leitura minuciosa do livro Das Heilige indica que seu autor
religião, um representante do “velho” paradigma sente-se instigado a era um a vítima do “efeito de protótipo”. Apesar de várias viagens de
“provar” a existência do sagrado através da sua própria experiência. O estudo pela África do Norte, Egito, Rússia, índia, Birmânia, Japão e
seguinte gráfico visualiza essas idéias básicas: China - e independentem ente de afinidades com sua abordagem afir­
madas por representantes de outras religiões como, por exemplo, do
sikhismo - , 38 Rudolf O tto não se apropriou em sua obra m agna do seu
amplo conhecimento,39 mas deu ênfase desproporcional às “categorias
judaico-cristãs e premissas filosóficas transcendentais”.40
A discussão crítica à obra de Rudolf Otto fornece material sufi­
ciente para confirmar que o conceito do sagrado é “inadequado para
servir como categoria universal da história da religião”.41 Peter Antes,

Cf. ib id. , p. 274.


Cf. S a l e r , B e n s o n . C o n c e p t u a l i z i n g R e l ig io n : T h e M a t t e r o f B o u n d r i e s . In: K l i m k e i t , op. c i t . , pp . 27-35,
e s p e c i a l m e n t e p. 32.
Cf. T h o m a s, A l e x a n d e r . G r u n d r iß d er S o z ia lp s y c h o lo g ie , p p . 1 6 9 - 1 7 0 .
Cf. Si ng h, D a r s h a n . R u d o l f O t t o ' s A n a l y s is o f N u m i n o u s a n d S i k h i s m . S ik h S p e c tr u m .c o m M o n th ly .
Fenomenologia
^ A l g u m a s a lu s õ e s a le a t ó r i a s p a r a o u t r a s r e l i g iõ e s e n c o n t r a m - s e , p o r e x e m p l o , n o t e r c e i r o p a r á g r a f o d o
da Religião c a p í t u l o X II e n o i t e m 10 d o c a p í t u l o XV II.
1,1 Cf. G i.A D K io w , op. cit., p. 9 .
" Cf. ibid.

45
C o n s t i t u i n t e s da C i ê n c i a da R e l i g i ã o Os e n g a n o s s o b r e o s a g r a d o

por exemplo, aponta para as diferenças fundam entais entre as três segundo a análise de Otto, elas devam ser centrais para a religião em
“religiões proféticas” (judaísmo, cristianismo e islã) e “religiões m ísti­ geral. O budism o tântrico não parte do princípio de um a divinda­
cas” (como o hinduísm o e o budism o) e lem bra que, em contradição de criadora, o que, nesse sistema, impossibilita ao indivíduo a sen­
à hipótese da hom ogeneidade do m undo religioso, os levantamentos sação de ter sido criado. Em vez disso, defende um conceito onto­
de características de diferentes religiões feitos pelos próprios fenome- lógico m onista, isto é, um a cosmovisão que nega o dualismo entre
nólogos revelaram mais divergências do que coincidências. A tensão “absoluto”/ “nível divino” e o “relativo”/ “nível hum ano individual”
entre a “sugestão” da universalidade do sagrado e resultados de pes­ a favor da idéia da universalidade da “vacuidade”. Essa “últim a rea­
quisas comparativas intensifica-se quando se incluem religiões como lidade” perm eia tudo; é um a verdade que se im põe na consciência
as indígenas ou o xintoísmo. Para fazer justiça a tal diversificação, é do adepto tão logo sua m ente essencialmente “vazia” reconheça sua
preciso portar um instrum ental conceituai diferenciado, algo de que identidade com a totalidade da existência, algo que a tradição tântri-
Peter Antes se ressente em relação aos representantes clássicos da Fe-
ca metaforiza como “água lim pa que se confunde com água lim pa”.44
nom enologia da Religião, um a vez que eles “estavam convencidos da
Um elemento-chave do cam inho espiritual nessa direção consta do
existência da religião em todas as manifestações religiosas”. Todavia, os
uso do raciocínio como instrum ento da destruição do falso conceito
resultados produzidos por essa corrente disciplinar “eram pouco con­
da individualidade. A angústia experim entada nas práticas tântricas e
vincentes e justam ente criticados, porque a pesquisa empírica provou
iconograficamente simbolizada por seres sobrenaturais terríveis não
quão diferentes as religiões realmente são e, em m uitos casos, perdeu-
chega a ser a sensação do tremendum no sentido de Otto. Pelo contrá­
se a suposta e esperada harm onia entre elas”.42
rio, trata-se de reações passageiras do praticante à ameaça de se “per­
Uma crítica mais específica à hipótese da universalidade do sagra­
der” na vacuidade; um a sensação de m edo definitivamente superada
do encontra-se em um artigo de Donald S. Lopez, que problem atiza a
no m om ento da iluminação. Pode-se abstrair da lição comparativa
convicção de O tto de que o num inoso e a sensação dele são comuns
de Lopez que, quem não quer excluir o budism o tântrico da lista de
em todas as religiões. Em função disso, o autor elabora as fundam en­
objetos legítimos de um estudo no âm bito da Ciência da Religião, tem
tais diferenças entre as religiões abrâmicas e o teísmo hindu, por um
de assum ir que os critérios da religião estabelecidos por O tto não são
lado, e as doutrinas e práticas do budism o tântrico, sobretudo do ram o
universais, mas justificam-se apenas na m edida em que “religiões teís­
gelukpa, e o sistema madhyamika, por outro.43A argum entação de Lo­
pez pode ser resum ida da seguinte forma: religiões da prim eira catego­ tas” constituem o objeto de pesquisa.
ria enfatizam um divino qualificado como o “completam ente outro”, Tanto o artigo de Antes q u a n to a crítica de Lopez a R udolf
transcendente, majestoso, poderoso e inacessível pela razão. Diante O tto sustentam um a abordagem em oposição à Fenom enologia da
dessa entidade, o ser hum ano admite sua insignificância como criatura Religião. Em vez de “h o m o g en eizar” seus objetos p o r m eio de um
profana e torna-se um buscador da redenção. conceito supostam ente unificador, esse “co n trap arad ig m a” leva
O estudo do repertório espiritual do budism o prova que essa em conta o caráter fragm entado do m u n d o religioso e tra ta as su-
corrente não com partilha das características acima citadas, embora, bentidades do seu cam po de pesquisa com o sistem as p ró p rio s cuja
análise exige a reconstrução da sua lógica in te rn a im perm utável.
42 Cf. A n t e s , P eter. M y stisc h eu n d p ro p h etisch e R elig io n e n -E in e gü ltig e U n tersch eid u n g ? < h ttp ://relig io n .o rf.
a t/p ro je k t0 2 /relig io n e n /w eitere/fa ch artik el/re_ an d e re _ fa_ m y stisc h _ p ro p h etisc h l-9 8 .h tm >. A cesso em
15/2/2005.
43 Cf. L o p e z , D o n a ld S. A p p ro ach in g th e N u m in o u s : R u d o lf O tto a n d T ib e ta n T a n tra . Philosophy E a st an d
W est, pp. 467-476. 44 Cf. ibid., p. 471.

46 47
C o n s t i t u i n t e s da C i ê n c i a da R e l i g i ã o Os e n g a n o s s o b r e o s a g r a d o

religiosa, os fenomenólogos da religião têm desvinculado a sensação


do numinoso da m atriz social em que a experiência hum ana ocorre.47
As observações de Baetke apontam na mesma direção, afirmando que
o sagrado é apenas um a priori, no sentido em que se apresenta para o
sujeito religioso sempre como algo predefinido de acordo com a res­
pectiva tradição de um a dada com unidade - mas os fenomenólogos
têm negligenciado o impacto das mediações socioculturais sobre a ex­
periência.48
Dúvidas sobre a adequação da crítica form ulada por autores como
Comstock e Baetke podem ser confrontadas com argum entos deriva­
dos da discussão mais recente sobre o impacto da estrutura neurobio-
Ciência da Religião
lógica e do papel de fatores sociopsicológicos sobre sensações religio­
sas.49 A m aioria dos teóricos contem porâneos envolvidos nesse debate
A crítica à suposta singularidade da rejeita um m odelo que considera o “conteúdo” emocional de um a ex­
periência religiosa como um a sensação “pura” que precede qualquer
“experiência” do “sagrado”
pensam ento e crença e se impõe a um indivíduo “passivo” como um a
A crítica ao tratam ento não-diferenciado das múltiplas referências sensação imediata, pré-conceitual, privada e não-passível de correção.
à transcendência representadas por religiões diferentes é com plem en­ O paradigma alternativo, por sua vez, leva em conta o papel ativo do
tada pela negação da singularidade da experiência do sagrado suposta­ indivíduo na condição de ser sociocultural e parte da hipótese de que a
m ente universal no m undo religioso. Os respectivos aspectos, embora emoção hum ana é, pelo menos, cognitivamente mediada. Isso significa
sejam intim am ente associados ao raciocínio elaborado no item ante­ que “a especificidade de qualquer sensação implica alguma espécie de
rior, constituem um elemento-chave da argumentação contra Rudolf avaliação, apreciação ou julgamento com relação ao contexto em que
Otto, um a vez que seu livro Das Heilige oferece ao leitor um a “Fenome- a experiência ocorre”.50
nologia do objeto da experiência religiosa”, no sentido de que a religião As conseqüências para a Ciência da Religião são óbvias e con­
é basicamente um a reação à últim a realidade que se impõe a toda a firm am as observações feitas no fim do item anterior. Exige-se que o
hum anidade.45 pesquisador com preenda “seus” sujeitos de acordo com o sistema es­
Autores em oposição a esses pressupostos cham am a atenção para pecífico de crença em que eles são encontrados. Portanto, o cientista
o fato de que as “análises fenomenológicos partem da possibilidade de da religião tem de “decodificar” o “valor cultural” dos relatos sobre as
um acesso direto ao ‘objeto em s i portanto, optam por um a abordagem experiências religiosas promovidas pelo contexto cultural.
ignorante de relativizações por condições sociais”.46 Segundo Coms-
tock, enquanto emoções hum anas são pré-form adas pela socialização
47 Cf. C o m sto c k , W. R ic h ard . A B ehavorial A p p ro ach to th e Sacred: C ateg o ry F o rm a tio n in R eligious S tu d ­
ies. Journal o f the Am erica n A ca d em y o f Religion 49 (1981), pp. 625-643.
Cf. W eber, E d m u n d . D ie W ie d e rk e h r des H eiligen. R u d o lf O tto s h a g io z e n trisc h e G ru n d le g u n g ein er 4S Cf. B aetke, W alter. D as Heilige im G erm anischen.
a u to n o m e n R elig io n sw isse n sc h aft u n d R e lig io n sk u ltu r. Journal o fR elig io u s C ulture/Journal fü r Religi­ 49 A seguir, re firo -m e esp ecifica m en te a A z a r i, N in a P. & B ir n b a c h e r , D ieter. T h e R ole o f C o g n itio n an d
onskultur. A cesso em 15/2/2005. Feeling in R eligious E x p erien ce. Zygon> v. 39, n. 4 (D ezem b er 200 4 ), pp. 901-917.
Cf. Luh m ann, N iklas. D ie Religion der G esellschaft, p . 11. 5,1 Cf. ib id ., p. 905.

48 49
C o n s t i t u i n t e s da C i ê n c i a da R e l i g i ã o Os e n g a n o s s o b r e o s a g r a d o

parede estreita um relicário alto e, no meio, um altar pequeno com


A crítica às implicações normativas na um púlpito largo. Para me trazer até aqui, Chajjim el Malek tinha pas­
abordagem da Fenomenologia da Religião sado comigo por labirintos do gueto e por duas escadas assustado­
ras e apertadas: uma sinagoga antiga, ainda intocada pelo Ocidente.
Há cerca de quarenta sinagogas aqui, em sua maioria fruto de doa­
Além dos problemas acima elaborados, o axioma da existência ções de particulares e localizadas em casas privadas, mantidas
universal do único sagrado implica o risco de um a hierarquização das como capelas domésticas atendidas por rabinos e gente da classe
religiões concretas de acordo com o grau de sua proximidade com um a tradicional. Sào lugares ao mesmo tempo de oração e de ensino do
Talmude. É sábado, e já no corredor incrivelmente sujo escutamos o
suposta “religião prototípica”, capaz de deixar repercutir o numinoso da murmúrio de rezas e recitações, aquela cantilena nasal que a sina­
m aneira mais “direta” e “pura” possível. Críticos da Fenomenologia da goga transmitiu tanto à igreja quanto à mesquita. O som é eufônico
Religião argum entam que tal idéia representa um a perspectiva norm a­ e, logo, é possível distinguir certas modulações rítmicas e cadências
que se seguem e alternam como temas. Inicialmente não se conse­
tiva que pode gerar a “expectativa de que a Ciência da Religião possa
gue ouvir palavras distintas; já se está a ponto de desistir quando,
decidir quais das religiões concretas representam seu ‘objeto’ mais ade­ de repente, surge o vozerio. Com um sobressalto solene que corre
quadam ente do que outras”.51 pelo corpo ouve-se, inequívoca, clara e harmonicamente, a entoa­
ção Kadosh Kadosh Kadosh elohim Adonai tzevaot male'u hashamajim
Essas preocupações são alimentadas, entre outras fontes, de cita­ wahaarez kevodo - essas são as palavras mais solenes que jamais
ções equívocas de publicações de Rudolf Otto, inclusive do Das Heilige, ouvi sair dos lábios humanos, sempre de forma emocionante, reper­
onde é confirmado, bem no início do livro, que a emoção do sagrado cutindo no mais fundo da alma, comovendo de maneira estremece-
dora o segredo do supramundano que lá dorme. Ao mesmo tempo
está presente em todas as religiões, mas que ela vive com um a força ex­ impôs-se com força na minha alma a tragédia daquele povo, cujos
traordinária nas religiões semíticas, especificamente nas bíblicas. Mais membros, depois de terem rejeitado todos os bens mais autênticos
adiante se encontra até mesmo o julgamento de que o cristianismo é e sublimes de seu folclore e do seu espírito, agora lamentam sobre
sua religião mumificada, preservando suas crostas e seus trajes.53
superior às outras formas de piedade.52
A qualificação de um fenôm eno empírico como expressão mais
Um julgamento desqualificador de práticas religiosas desse tipo
ou menos “autêntica” do sagrado, ou seja, da base metafísica univer­
explica-se pela convicção do seu autor de que um a tradição religiosa
sal de um a verdadeira religião, levou Otto não apenas a um a distinção
corre o risco de perder, no decorrer do tempo, o vigor com o qual o sa­
problemática entre o cristianismo e religiões não-cristãs, mas tam bém
grado originalm ente se impôs no meio da respectiva comunidade. Essa
a um a comparação duvidosa entre manifestações atuais de um a reli­
afirmação pode ser lida da seguinte maneira: a m elhor religião é aquela
gião e sua suposta form a original. Isso é provado pela seguinte citação
que não apenas conseguiu conservar a experiência original do num i­
de um artigo escrito na cidade m arroquina de M agador e publicado
noso da m aneira mais autêntica possível, mas tam bém preservá-la de
em 1911, ou seja, seis anos antes do lançamento de Das Heilige:
tendências posteriores de diluição da sua verdadeira substância. Com
Uma sala pequena e meio escura, com menos de dez metros de isso, Rudolf O tto reprovou o caráter a-histórico da sua abordagem e o
comprimento e menos de cinco metros de largura. Uma luz ofuscan­ privilégio dado ao estudo das chamadas “grandes religiões”.
te vinda de cima. Lambris marrons nas paredes, enegrecidos pela fu­
Como teria sido a postura do fenomenólogo alemão diante da cha­
maça de candeeiros de azeite. Junto às paredes, bancos com assen­
tos separados, como cadeiras de coro para frades mendicantes. Na m ada “Santa na janela”, que cham ou tanta atenção pública no Brasil,
na segunda metade de julho de 2002? Provavelmente m uito diferente
51 Cf. G l a d ig o w , o p . c i t . , p . 7.

52 Cf. O t t o , o p . c it ., p p . 6 e 7 2 -7 3 . ^ Id. V om W ege. D ie christliche W elt, pp. 708-709.

50 51
C o n s t i t u i n t e s da C i ê n c i a da R e l i g i ã o Os e n g a n o s s o b r e o s a g r a d o

da de um cientista da religião brasileiro contem porâneo, grato po r ter aqueles “incom petentes” têm ainda alguma chance de se tornar m em ­
encontrado, na m ultidão que se aglomerava diante de um a suposta bros “m aduros” da com unidade científica, se forem adequadam ente
aparição de Nossa Senhora na vidraça da casa de um a família humilde, treinados? Porém, treinados em quê?
na Diocese de Mogi das Cruzes, um objeto paradigmático para um É provável que um fenomenólogo da religião se referisse à cha­
estudo sobre a religiosidade popular do seu país. m ada “redução eidética”, que prom ete capacitar o pesquisador a “pôr
Além do “elitismo” de Rudolf Otto, a leitura de seu relato citado entre parênteses” os aspectos “secundários” do “fenôm eno religioso”
revela um segundo problem a a ser elaborado no subitem seguinte: o para finalmente revelar sua essência. Infelizmente, até hoje não foi en­
autor ficou devendo ao leitor os critérios a partir dos quais ele chegou contrada nenhum a “fórmula” que deduzisse da descrição erudita des­
a sua avaliação tão negativa das práticas encontradas na sinagoga de se “m étodo” um roteiro prático cujos passos fossem inequivocamente
Magador. definidos, a fim de que um pesquisador realmente chegasse ao objetivo
proclam ado e os program as em Ciência da Religião pudessem instruir
seus alunos naquela abordagem. O fato de que um a espécie de “inicia­
Críticas à metodologia da ção ao m étodo de pesquisa fenomenológica” não existe é sintomático
Fenomenologia da Religião para o caráter esotérico da Fenomenologia da Religião, no sentido de
que seu verdadeiro objeto consiste em um a experiência individual e
Do ponto de vista da Fenomenologia da Religião, o numinoso é irracional, portanto incomunicável entre os m em bros de um a com u­
um a categoria a priori, irreduzível e não-explicável, porém acessível nidade científica.
por um a faculdade com a qual um bom cientista da religião tem de Resumindo: enquanto a ciência é, por definição, um em preendi­
estar equipado para fazer justiça a seu objeto. Para se “qualificar” como m ento público, por isso exotérico 55 os representantes da Fenom enolo­
um pesquisador digno, ele deve cultivar seu sensus numinis, ou seja, gia da Religião exigem do leitor um acordo com seus procedimentos,
um a modalidade própria de compreensão intersubjetiva do sagrado.54 substituem um a discussão metodológica séria por um a “contemplação
As prim eiras frases freqüentem ente citadas do terceiro capítulo do Das sobre o fenôm eno” e om item a questão-chave: “Como um observador
Heilige provam quão im portante Rudolf O tto considerava esse pré-re­ distingue a religião de um a m aneira que pode valer tam bém para outros
quisito metodológico. Apelou ao leitor para que se lembrasse de sua observadores e que se poderia distinguir de simples atitudes da fé?”.56
própria exaltação religiosa e solicitou aos incapazes dessa lem brança
que não progredissem com a leitura.
Uma vez que o público da obra magna de O tto divide-se em duas 4. Conclusão
frações, ou seja, leitores suficientemente sensíveis para entender a m en­
Já foram indicadas diversas conseqüências da Fenomenologia da
sagem da Fenomenologia e “os outros”, que não possuem essa quali­
Religião. Por merecerem m aior destaque, duas serão repetidas nesta
dade, surge a pergunta sobre o “destino” acadêmico dos últimos. Por
conclusão.
não ter mais nenhum a perspectiva de contribuir para o progresso da
Primeiro, espera-se um uso mais consciente e cuidadoso da no­
disciplina, deve-se recom endar que eles não percam mais tem po com
ção do sagrado. Como foi mostrado, trata-se de um a palavra altamente
um estudo malfeito no âmbito exclusivo da Ciência da Religião? Ou

55 Cf. G l a d ig o w , op. cit., p. 10.


54 C f. C o lp e , C a r s te n . D ie wissenschaftliche B eschäftigung ..., o p . c it., p p . 4 4 -5 5 . 56 Cf. Luh m ann, op. cit., p. 12.

53
C o n s t i t u i n t e s da C i ê n c i a da R e l i g i ã o

problem ática se aplicada como um term o teórico supostam ente con­


sensual ou até mesmo auto-explicativo. Porém, não se tem nada contra
um a citação da expressão em prol da descrição de um a determ inada
crença com partilhada por m em bros de dada com unidade religiosa.
Encontram-se, no m undo religioso, “livros sagrados”, sim. Contudo,
afirmando-se isso em um contexto acadêmico, não deve significar um a
confirmação de que tais textos são “realmente” manifestações do nu-
minoso no m undo relativo. Mas, se for usado como referência a crentes
que acreditam na qualidade sagrada da sua tradição escrita, o recurso
à palavra é legítimo.
Segundo, recomenda-se a integrantes de um a disciplina que há dé­
cadas tem buscado um lugar próprio nas universidades levarem a sério
a crítica à insuficiência da discriminação entre a Ciência da Religião e
a Teologia nas publicações de fenomenólogos da religião. Preocupa­
ções desse tipo assumem formas diferentes, inclusive irônicas —como
por exemplo no caso de Edm und Husserl, afirmando que em vários
m om entos “o teólogo Otto levou em suas asas o fenomenólogo Otto
em bora” - , 57 ou metafóricas, como na observação de Rainer Flasche,
O perfil
diagnosticando um a “síndrom e de profecia” nos fenomenólogos.58
Esses comentários sensibilizam para o preço “político-acadêmico”
paradigmático da
a ser pago por um a Ciência da Religião que continua a cultivar retori-
camente um a linha de pensam ento que teve seu auge na prim eira parte Ciência da Religião
do século XX, mas que perdeu sua confiabilidade devido a um a “briga
de m étodos”, cujos resultados foram apresentados de m aneira sucinta
no capítulo anterior. Caberá ao leitor a avaliação do seu possível im ­
na Alemanha
pacto sobre a futura discussão a respeito de um a Ciência da Religião
brasileira metateoricamente fundada de m aneira adequada.

77 A p u d Schütte, H a n s W alter. Religion und C h risten tu m in der Theologie R u d o lf O ttos, p. 141.


38 C f . F l a s c h e , R ain er. R eligionsm odelle u n d E rk e n n tn is p rin z ip ie n d e r R elig io n sw issen sch aft in d e r W ei­
m a re r Z eit. In: C a n c i k , H u b e rt (org,). Religions u n d Geistesgeschichte der W eim arer R ep u b lik, esp ecial­
m e n te pp. 262 e 271.

54
0 perfil p a r a d i g má t i c o da Ci ênci a da Rel i gi ão na Al emanha

1. Introdução
Há várias indicações de que dentro da Ciência da Religião no Bra­
sil vem se intensificando o interesse por um a reflexão m etateórica da
própria disciplina. Houve, por exemplo, debates correspondentes por
ocasião do simpósio docente na PUC de São Paulo sobre “O Científico
nas Ciências da Religião”, no prim eiro semestre de 1999, e no contexto
do encontro anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pes­
quisa em Teologia e Ciências da Religião (ANPTER), em novembro
de 1999, em Porto Alegre. Tal discussão não se restringe às conversas
“esotéricas” na esfera de professores, mas faz parte do cotidiano acadê­
mico dos alunos, um a vez que, graças a um núm ero crescente de p u ­
blicações associadas ao tema, há material “didático” suficiente e capaz
de estimular e alimentar reflexões sobre o perfil e o status da Ciência
da Religião.1
Com o objetivo de contribuir para o debate no Brasil, este capítulo
coloca em pauta a discussão correspondente na Alemanha, um a vez
que nesse país, especialmente a partir de um a intensa briga de métodos
nos anos 1960 e 1970, a metarreflexão disciplinar tem sido bem acen­
tuada. O raciocínio se iniciará com base na abordagem de Thomas S.
Kuhn associada a seu conceito de paradigma, term o técnico cunhado
no início da década de 1960 e, desde então, disputado por vários au­
tores e criticado por razões diferentes. Não obstante, a idéia de para­
digma cum pre um a im portante função heurística. Trata-se de noção
ideal que aponta para um estado de alta m aturidade de determ inada
ciência e, ao m esm o tem po, possibilita perceber o distanciamento da
constituição real das disciplinas, entre as quais se encontra, sem dúvi­
da, tam bém a Ciência da Religião.

1 Cf. F il o r a m o , G io v a n n i & P r a n d i, C ario . A s C iências das Religiões; o u Souza, B eatriz M u n iz de et alii


(o rg s.). Sociologia da religião no Brasil, p a ra m e n c io n a r ap e n as d o is exem plos.

57
C o n s t i t u i n t e s da C i ê n c i a da R e l i g i ã o O perfil p ar a d i g má t i c o da Ci ênci a da Rel i gi ão na Al emanha

2. O conceito de paradigma e suas Nesse sentido, o estágio contem porâneo de um a disciplina tam ­
bém não é autom aticam ente um ultrapassar qualitativo de estilos
implicações metateóricas cognitivos de gerações anteriores ou de povos em outras regiões do
m undo. Estilos que do ponto de vista eurocêntrico da filosofia analíti­
ca devem ser considerados pouco racionais ou, até mesmo, irracionais.
A teoria de paradigmas como
Mais propriam ente, o livro de Kuhn leva em conta a plausibilidade
paradigma metateórico inerente de qualquer sistema de conhecimento e a não-possibilidade
de abstrair tal sistema das suas condições históricas e das predisposi­
“Considero ‘paradigmas’ as realizações científicas universalmente
ções culturais dos seus representantes. Não se encontram muitas obras
reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e solu­
com um a repercussão comparável à de Kuhn, e o fato de que a vagueza
ções modelares para um a com unidade de praticantes de um a ciência”,
do term o paradigm a tenha sofrido várias críticas sob perspectivas di­
assim escreve Thomas S. Kuhn no prefácio do seu livro A estrutura das
ferentes, não causou prejuízo ao sucesso do autor e de sua abordagem.
revoluções científicas.2
Pelo contrário, reagindo construtivamente a seus adversários, escla­
Segundo essa definição, o próprio livro de Kuhn deve ser conside­ recendo e reform ulando suas idéias-chave em publicações seguintes,
rado como contribuição paradigmática para sua área.3 Até a publica­ ele consegue m anter a discussão do seu conceito m etateórico até hoje.
ção da prim eira edição da obra em 1962, a metarreflexão científica era O que faz a abordagem de Kuhn metateoricamente tão atraente é o
dom inada pela filosofia analítica, representada pelo chamado “Círculo tratam ento sintético que dá às três dimensões da integridade de um a
de Viena”. Nessa escola prevalecia um interesse lim itado pela estrutura ciência: a filosófica, a sociológica e a histórica.
interna de teorias, na relação lógica entre teoremas e m étodos capazes
de prová-los. Com o lançamento de A estrutura das revoluções científicas,
um a nova perspectiva se impôs valorizando a im portância da dim en­ A dimensão filosófica de um paradigma
são histórica e sociológica da ciência. Conseqüentemente, a ideologia
Q uanto à dimensão filosófica, a aceitação de um a “realização cien­
implícita na abordagem filosófico-analítica torna-se visível.
tífica passada” como paradigm a efetua um a homogeneização intelec­
Enquanto os m em bros do Círculo de Viena tratavam “ciência”
tual, ou seja, um a padronização do pensam ento dentro de certa disci­
como um em preendim ento em suspensão livre, Kuhn acentua o papel
plina. Na fase pré-paradigmática, várias escolas alternativas coexistem
de forças não-intelectuais e as condições sociais para o desenvolvimen­
lado a lado. Contudo, com a aceitação de um paradigma, a m ultiplici­
to de um a disciplina, problem atizando a teleologia da filosofia analíti­
dade de abordagens dá espaço a convicções uniformes sobre o campo
ca. Com o Kuhn m ostra por meio de vários exemplos, um status atual
de estudo, os métodos de investigação e a term inologia técnica que
de um a ciência não é o resultado interm ediário de crescimento contí­
direciona a comunicação científica.
nuo e cumulativo do conhecimento. Pelo contrário, a história das ciên­
cias é caracterizada por um a dinâm ica cíclica, ou seja, por movim entos Depois que um paradigma é aceito, as discussões sobre problemas
axiomáticos desaparecem, pois um paradigma surge como solução plau­
periódicos de aum ento e de declínio da produtividade intelectual.
sível de tais problemas. A partir daí o trabalho disciplinar é caracteriza­
do pela aplicação e pelo aperfeiçoamento do instrum entário teórico e
2 Ku h n, T h o m as S. A estrutura das revoluções científicas, p. 13.
metodológico oferecido pelo paradigma. Kuhn chama a totalidade des­
3 Cf. B ayertz, K u rt. W issenschaftstheorie u n d Paradigm abegriff. sas atividades comprom etidas com um paradigma de “ciência norm al”.

59
C o n s t i t u i n t e s da C i ê n c i a da R e l i g i ã o O perfil p a r a d i g má t i c o da Ci ênci a da Rel i gi ão na Al emanha

No sentido mais geral, esse autor caracteriza um paradigm a como teúdo singular de percepção e um embasamento conceituai a priori, o
predisposição sensorial que condiciona a compreensão do objeto ou qual o cientista traz e aproxima do seu campo de estudo, é ilustrado
do campo de estudo. Assim, pode ser entendido como perspectiva es­ pelo modelo abaixo.
pecífica, como filtro através do qual o m undo empírico é percebido, Kuhn teve na sua m ente um a
não na totalidade, porque alguns aspectos se apresentam mais relevan­
tes do que outros. Assim escreve Kuhn: “Os paradigmas determ inam
A constelação deste tipo, quando desta­
cou: “Teoria e fato científicos não são
[...] grandes áreas da experiência”.4 “A ciência não se ocupa com todas categoricamente separáveis”.8 Basea-
as manifestações possíveis no laboratório. Ao invés disso, seleciona
aquelas que são relevantes para a justaposição de um paradigm a com a
12 13 14
do nessa hipótese epistemológica da
interconexão entre teoria e fato, o au­
experiência imediata, a qual, por sua vez, foi parcialmente determ inada tor salienta a chamada incomensura-
por esse m esm o paradigma.”5 De acordo com essa metateoria, não há bilidade. “Por exercerem sua profissão
nenhum a “hipotética visão ‘fixa’, mas a visão através de um paradigma”.6 em m undos diferentes”, escreve ele,
Kuhn exemplifica sua idéia por meio “dois grupos de cientistas vêem coisas
da associação entre paradigm a e Gestalt, diferentes quando olham de um mesmo ponto para a mesma linha”.9
um a figura dupla que m ostra, dependendo Segundo a abordagem radical de Kuhn, não há nenhum a possibi­
da perspectiva particular do espectador, ou lidade de mediação entre esses m undos diferentes. Em outras palavras,
um pássaro ou um coelho. não há nenhum tertium comperationis, um a instância fora de dois para­
Esclarece ele: digmas em competição que ofereceria um critério para levar à conclu­
são de que um a visão do m undo é mais adequada do que a outra.
Os cientistas não vêem uma coisa como se fosse outra diferente -
eles simplesmente vêem. Além disso, o cientista não retém, como o Para corresponder à complexidade do livro A estrutura das revolu­
sujeito da Gestalt, a liberdade de passar repetidamente de uma ma­ ções científicas, não é suficiente considerar somente a dimensão filosófica
neira de ver a outra. Não obstante, a mudança de forma perceptiva do paradigma. Isso o próprio Kuhn deixa claro, escrevendo: “Muitas de
(Gestalt), sobretudo por ser atualmente tão familiar, é um protótipo
m inhas generalizações dizem respeito à sociologia ou à psicologia so­
elementar útil para o exame do que ocorre durante uma mudança
total de paradigma.7 cial dos cientistas. (Ainda assim, pelo menos algumas das m inhas con­
clusões pertencem tradicionalm ente à Lógica ou à Epistemologia.)”10
O exemplo dem onstra que um em preendim ento científico não
pode ser entendido como ato de m era reconstrução da “verdadeira n a­ A dimensão socióloga de um paradigma
tureza” de um objeto de estudo, mas como ato construtivo do cientista
que dá sentido a certo segmento do m undo empírico, dentro do qua­ Q uanto à dimensão sociológica, é óbvio que um paradigma no
dro referencial que o paradigm a oferece. Essa dialética entre um con­ sentido filosófico não é imaginável sem se supor, ao m esm o tempo,
a existência de um corpo social portador de cognições, ou seja, um a
4 K u h n , o p . c it ., p . 1 6 5 .

5 Ib id ., p. 162.
8 Ib id ., p. 26.
6 Ib id ., p. 164.
9 Ib id ., p. 190.
7 Ib id ., p. 116. 10 Ib id ., p . 28.

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C o n s t i t u i n t e s da C i ê n c i a da R e l i g i ã o O perfil p a r a d i g má t i c o da Ci ênci a da Rel i gi ão na Al emanha

com unidade científica que representa e defende certa visão do cam ­ m aneira de assegurar esse princípio com m aior sucesso possível é ela­
po do estudo, um conjunto de conceitos, teorias, term os, m étodos e borar currículos universitários e materiais de ensino capazes de tornar
instrum entos de pesquisa. O surgim ento de um a realização científica, um a nova geração de estudantes em comprom etidos “habitantes do
servindo como m odelo cognitivo, influencia tam bém a relação entre m undo”,13 no qual já vivem os m em bros mais velhos da disciplina.
membros de um grupo de cientistas. Em outras palavras, o paradigm a
tem efeito hom ogeneizador tanto na dimensão filosófica de um a disci­
plina quanto no sentido sociológico. Nas palavras de Kuhn: 3. A Ciência da Religião e suas
Quando, pela primeira vez no desenvolvimento de uma ciência [...],
predisposições metarreflexivas
um indivíduo ou grupo produz uma síntese capaz de atrair a maioria
dos praticantes de ciência da geração seguinte, as escolas mais anti­ A Ciência da Religião está sofrendo um a crise perm anente, em ­
gas começam a desaparecer gradualmente. Seu desaparecimento é bora seja institucionalizada como m atéria autônom a nas universida­
em parte causado pela conversão de seus adeptos ao novo paradig­ des? Pode-se ter esta impressão quando se faz referência à idéia da
ma. Mas sempre existem alguns que se aferram a uma ou outra das
chamada ciência normal, conceito cunhado por Kuhn, indicando o
concepções mais antigas; são simplesmente excluídos da profissão
e seus trabalhos são ignorados.11 estado m aduro de um a disciplina, ou seja, situação dentro de um a
sociedade acadêmica caraterizada pela ausência de reflexão contínua
sobre a adequação de seus procedim entos e a legitimidade da sua pró­
Segundo o autor, a aceitação intelectual de um paradigm a é norm al­
m ente acom panhada por certo grau crescente de institucionalização da pria existência.
comunidade científica correspondente, por exemplo, pelo lançamento Segundo tal critério, a Ciência da Religião está longe da normali­
de jornais especializados, pela fundação de sociedades de especialistas dade, não somente nos países onde a disciplina é relativamente nova e
e por ‘reivindicação de um lugar especial” no m undo universitário.12 ainda busca seu lugar no m undo universitário, mas tam bém em países
nos quais está oficialmente estabelecida há décadas e de onde têm sur­
gido fortes impulsos intelectuais para o desenvolvimento internacio­
A dimensão histórica de um paradigma nal da matéria.

Tudo isso já diz que paradigma é um a entidade dinâm ica que se Na Alemanha, por exemplo, um a leitura de “hipóteses sobre a
desenvolve com o decorrer do tempo. Kuhn propõe como regra que a compreensão básica da Ciência da Religião”,14de ensaios sobre diferen­
disciplina passe por movim entos cíclicos de três fases: a subida de um ças entre Teologia e Ciência da Religião15 e de manuais como o intitu­
paradigma, a fase da ciência norm al rotineira e o declínio de plausibi­ lado O que é Ciência da Religião?,16 é tão obrigatória para os estudantes
lidade, ou seja, da validade do paradigm a até a revolução científica, atra­ como livros sobre as religiões m undiais ou introduções à sociologia e
vés da qual novo paradigm a se im põe como sujeito do mesmo proces­ à psicologia da religião.
so histórico. Por outro lado, atua determ inada força de inércia no meio
de qualquer com unidade científica preocupada com a m anutenção do 13 Ib id ., p. 146.
senso comum acadêmico, que garante a integridade do próprio grupo. A 14 Cf. E lsa ss, C h ris to p h . S e lb s tv e rstä n d n is /F o rs c h u n g s d is z ip lin e n /M e th o d e n d er R elig io n sw issen sch aft.
In : L o tt, Jü rg en (o rg .). Sachkunde Religion II, pp. 2 5 3 -2 8 2 .

15 C f . G r e s c h a t , H an s-Jü rg e n . W ie u n te rsc h e id e n sich R elig io n sw isse n sc h aftler vo n T h eo lo g en ? Z eitsch rift


" Ib id ., p. 39. f ü r M issionsw issenschaft u n d Religionsw issenschaft, pp. 259ss.
12 Ibid. 16 Id. W as ist Religionsw issenschaft?

63
O perfil p a r a d i g m á t i c o da Ciênc ia da Rel ig ião na Al e m a n h a
C o n s t i t u i n t e s da C i ê n c i a da R e l i g i ã o

Até a defesa de sua dissertação, o candidato é repetidam ente ad­ nais obrigações de pensam ento e a prom oção do princípio de igualda­
vertido por seus professores para não diluir a identidade da disciplina. de de todos os seres hum anos estimularam um interesse mais amplo
e imparcial pela religião e suas múltiplas expressões. Nesse contexto,
Em M arburg, um dos centros alemães da Ciência da Religião, Hans-
a abordagem crítica dos iluministas quanto ao cristianismo, especial­
Jürgen Greschat destacou: “Os cientistas da religião sempre quiseram
m ente a suas manifestações institucionais em favor da m anutenção do
de m aneira autônom a colocar suas tarefas específicas. Devem ser ques­
poder secular, era um elemento-chave, pois a distância da própria cul­
tões relativas aos objetivos da própria disciplina, questões que n in g u ém
tura am pliou a perspectiva para se olhar para outros povos. Todavia, a
aborda nas outras”.17 Semelhantemente, Holsten salientou que qual­
lógica implícita dessa argum entação m ostraria sua últim a conseqüên­
quer cientista da religião deve “abster-se de pressupostos e ‘preconcei­
cia teórica quando pensadores como D urkheim e Freud conceberam
tos’ teológicos”, para ser capaz de “pesquisar e descrever cientificamen­
religião, em geral, como um produto hum ano. Abordagens desse tipo
te com neutralidade”.18 O mesmo acha Tworuschka, quando exige que
têm em com um a religião como um a variável dependente, destituída
um bom cientista da religião deva excluir da pesquisa a questão sobre
a verdade religiosa.19 de substância própria e completam ente explicável com referência a fa­
tores não-religiosos.
Por que tanta aflição? Quais são os motivos que levam cientistas
Em tensão com tal corrente reducionista na tradição iluminista,
da religião a participar freqüentem ente e com paixão de um a metadis-
um a segunda linha ideológica, isto é, o Romanticismo,21 tornou-se
cussão cuja extensão não tem paralelos em outras ciências humanas?
visível no contexto da Ciência da Religião, quando Schleiermacher
(1768-1834) localizou os fundam entos da religião no sentimento. Na
4. Motivos da metarreflexão no contexto tradição teórica correspondente, incluindo pensadores como Nathan
Sõderblom, Rudolf Otto, Joachim Wach, Gerardus van der Leeuw,
da Ciência da Religião na Alemanha Friedrich Heiler, Gustav Mensching ou G ünther Lanczkowski, religião
é vista como um a constante antropológica, em seus aspectos sutis mais
A tensão entre tendências reducionistas básicos do que a m ente racional e independentes de qualquer manifes­
tação social. Dessa m aneira, a linha fenomenológica m ostra-se como
e fenomenológicas como motivo modelo contra o reducionism o e seu foco oposto.
da metarreflexão Pelo menos dois motivos de metarreflexão têm raízes nessa am bi­
güidade da herança espiritual. O prim eiro tem a ver com a definição
Na literatura especializada é consensual que o Ilum inism o foi um
do autêntico foco disciplinar, ou seja, se a religião, entidade singular, ou
impulso decisivo para o desenvolvimento da Ciência da Religião.20
as religiões, pluralidade de entidades, representam o últim o campo do
Além do conhecimento crescente de regiões remotas a partir da época
estudo. O segundo motivo é relacionado ao problem a de como um a
do descobrimento, esforços iluministas de se em ancipar de tradicio­
Ciência da Religião não-fenomenológica que depende do instrum en-
tário de outras disciplinas consegue m anter sua autonom ia e identida­
17 Id. R elig io n sw isse n sc h aft h eu te: K o n tra ste u n d A lte rn ativ en . D er Evangelische E rziehen p. 520.
“ H o l s t e n , W alter. Z u m V e rh ä ltn is von R eligionsgeschichte u n d T heologie. In : R udo lph , K u rt (o rg .). Fest-
de no m undo universitário.
sch rift f ü r W alter B aettke, p. 191.
19 Cf. T w o r u s c h k a , U do. P a rtn e r a u f g e tre n n te n W egen. D ie R elig io n sw issen sch aft u n d d ie T heologie.
Lutherische M onatshefte, p. 193.
21 Cf. K ip p e n b e r g , H a n s G. E in leitu n g : R elig io n sw issen sch aft u n d K u ltu rk ritik . D ie Z eit d es G e ra rd u s v an
20 Cf. R u d o l p h , K u rt. D ie relig io n sk ritisc h e n T ra d itio n e n in d e r R elig io n sw issen sch aft. In : K ippen be r g ,
d e r Leeuw (1 8 9 0 -1 9 5 0 ). I n : ---------- & Lu c h e s i, o p . eit., p p . 1 3 -2 8 .
H an s G. & L u c h e s i , B rigitte (o rg s.). Religionsw issenschaft u n d K u ltu rk ritik , p p . 149-156.

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C o n s t i t u i n t e s da C i ê n c i a da R e l i g i ã o O perfil par a d i g má t i c o da Ci ênci a da Rel igi ão na Al emanha

A religião ou as religiões? sido relativam ente vagas é expressão de um dilem a que não foi resol­
vido de m odo satisfatório e continuará a estim ular a m etarreflexão
A questão do próprio objeto de estudo entre cientistas da religião.
Na Alem anha, norm alm ente não há nenhum a dúvida articulada
sobre a nom enclatura. Trata-se de um a Ciência da Religião. Todavia, A relação problemática entre
com o um a disciplina que, na fase pós-fenom enológica, insiste em
seu caráter em pírico pode justificar tal opção lingüística? R udolf
a Ciência da Religião e a Teologia
O tto, em seu livro O Sagrado, argum enta em favor da universalidade
Enquanto os três aspectos acima m encionados - a tensão entre
do sagrado e da relevância secundária das expressões que o encontro
o reducionismo e a fenomenologia, o problem a do próprio objeto de
entre a alm a hum ana e o ser transcendental produziu. A denotação
estudo e a questão “disciplina ou campo disciplinar” - referem-se aos
“a religião” não im plica esses m esm os pressupostos metafísicos? Tal­
problemas paradigmáticos no sentido filosófico, o seguinte - a relação
vez seja possível reconhecer que na nom enclatura am bivalente da
problem ática entre a Ciência da Religião e a Teologia - é mais relacio­
disciplina a fenom enologia da religião tivesse sobrevivido à briga de
nado à dimensão sociológica da vida acadêmica.
métodos e perm anecesse um desafio para novas gerações de cientistas.
A história da relação entre a Teologia e a Ciência da Religião é um
processo de tensões e animosidades. Tal situação é m enos um resultado
A Ciência da Religião - das abordagens diferentes do que um a reação da Ciência da Religião à
disciplina ou campo disciplinar? história problem ática da própria disciplina.24A sua institucionalização
começou nos últimos trinta anos do século XIX. A prim eira cátedra foi
A discussão sobre a relação entre a autonom ia disciplinar e a estabelecida na Suíça em 1873. Logo depois outros países como H o­
m ultiplicidade m etodológica da Ciência da Religião não é lim itada landa, França e Bélgica a seguiram. Todavia, na Alemanha, o interesse
à Alemanha. Isto dem onstra, p o r exemplo, o livro dos autores ita­ pelas religiões não-cristãs inicialmente não levou a um a formação da
lianos Giovanni Filoram o e Cario Prandi, traduzido em português Ciência da Religião, mas exigiu esforços de pesquisa no contexto da
sob o título significativo: As Ciências das Religiões.22 Nessa obra, os Teologia. Os departam entos de Teologia nas universidades da Alema­
autores caracterizam a m atéria com o cam po disciplinar, destacam nha, já na década de 1880, ofereciam vários seminários sobre outras
sua estrutura aberta e dinâm ica e o pluralism o de suas técnicas religiões. Somente em 1910, a prim eira cátedra da Ciência da Religião
de pesquisa e aproxim ações empíricas. Todavia, não deixam claro foi fundada na Universidade de Berlim. Mas a história da disciplina
com o tal m ultiplicidade m etodológica se tornaria algo m ais do que continua bastante instável. Como exemplo, um grande desafio para
um apanhado de procedim entos da pesquisa existentes em outras um a Ciência da Religião autônom a foi a Religionsgeschichtliche Schule.25
disciplinas. Já em 1981, Peter Antes, professor da Universidade de Essa escola da história da religião na Universidade de Gõttingen foi
H annover e atual presidente da International Association for the influente nas prim eiras décadas do século XX. Todos os seus represen­
H istory o f Religions, colocou a m esm a questão, criticando o status tantes eram teólogos, formados nos métodos da história e da filologia,
enciclopedista da disciplina.23 O fato de suas contribuições terem dos quais eles se aproveitaram para investigar as culturas antigas ao re­

22 Cf. F il o r a m o , G io v an n i & P r a n d i , C ario. A s C iências das Religiões. 24 Cf. Kohl, K arl H ein z . G esch ich te d er R elig io n sw issen sch aft. In : C a n c ik , H u b e rt et alii (o rg s.). H a n d -
23 Cf. A n t e s , Peter. S ystem atische R elig io n sw issen sch aft - E ine N e u o rie n tie ru n g . Z eitsc h rift f ü r M issions­ buch religionsw issenschaftlicher G rundbegriffe, pp. 217-262.
w issenschaft u n d Religionsw issenschaft, pp. 214-221. 25 Cf. Lüdem ann, G erd & Schrõder, M a rtin . D ie Religionsgeschichtliche Schule in G õttingen.

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C o n s t i t u i n t e s da C i ê n c i a da R e l i g i ã o
O perfil p a r a d i g m á t i c o da Ciência da R eli giã o na Al e m a n h a

dor de Israel com o objetivo de entender as influências dessas culturas


do para um perfil paradigmático desta disciplina e dando um grau su­
no judaísm o e no cristianismo.
ficiente de coesão ao trabalho daquela sociedade acadêmica.
A tensa relação entre a Teologia e a Ciência da Religião traz preo­
cupação aos cientistas da religião na Alemanha quanto ao perigo do
enfraquecimento do status institucional da disciplina, bem como do 5. O perfil paradigmático da
decorrente equívoco relacionado a sua designação. Kurt Rudolph, por
exemplo, hoje professor emérito na Universidade do M arburg, adver­ Ciência da Religião na Alemanha
tiu n um artigo publicado em 1988:
Faz cerca de quarenta anos que a Ciência da Religião na Alemanha
Nos últimos anos tornou-se comum no público introduzir e apro­ começou a se distanciar de propostas e princípios da Fenomenologia
veitar o plural "Ciências da Religião". [...] Isto só pode se basear na da Religião até então predom inantes. O que ocorreu foi um a orienta­
ignorância ou na tentativa premeditada de enterrar o caráter desta ção pelas norm as das Ciências Sociais, salientando o caráter empírico
disciplina sob o domínio da Teologia [...]. Dessa maneira, Teologia e
da própria disciplina. Com isso a linha ilum inista vem se im pondo ao
Ciência da Religião são institucionalizadas sob um único nome, sem
reflexão profunda.26 ram o romântico. Nos subitens seguintes são elaboradas as implicações
mais acentuadas desse desenvolvimento.
Citações desse tipo dem onstram que a metarreflexão é ponto cru­
cial das atividades acadêmicas dentro da Ciência da Religião. A exclusão de categoria do “sagrado” do
repertório conceituai
Resumo intermediário
No decorrer da briga de m étodos dos anos 1960 e 1970, intensi­
Quais são as conseqüências das ambigüidades disciplinares ante­ ficou-se a rejeição da categoria do sagrado, term o-chave introduzido
riorm ente elaboradas do ponto de vista da m etateoria de Kuhn? Antes por Rudolf O tto na sua obra Das Heilige, publicada em 1917.28 A in­
de tudo, seria incorreto negar categoricamente o caráter paradigm áti­ tenção dos críticos desse conceito não era questionar a existência ou
co da Ciência da Religião. Os subitens apresentados podem ser lidos não da dim ensão transcendental da vida. Todavia, as últimas gerações
mais como confirmação da crítica de Kuhn por Stephen Toulmin,27 sa­ de cientistas da religião excluíram a categoria do sagrado por razões
lientando que o prim eiro exagerou a estrutura hom ogênea e o grau de epistemológicas e metodológicas de acordo com um a concepção que
coesão intelectual de um a com unidade científica. Segundo Toulmin, definia a Ciência da Religião como um em preendim ento estritam en­
na verdade, um a disciplina é mais abrangente e heterogênea do que o te empírico. Uma disciplina desse tipo exige que seus m em bros se
conceito de paradigm a sugere. restrinjam aos fatos reais, ou seja, concentrem -se em manifestações
Assim, relativizando a abordagem de Kuhn, o próxim o item pre­ concretas nas dimensões de espaço e de tem po. Dem arcando dessa
tende caracterizar os traços predom inantes da situação da Ciência da m aneira o campo da Ciência da Religião, é óbvio que o sagrado, ou
Religião atualmente na Alemanha: elementos metateóricos, apontan­ seja, um a categoria que se refere à esfera extra-em pírica, é m etateo-
ricam ente excluído como conceito ilegítimo e disfuncional para pes­
K urt. Texte als relig io n sw isse n sc h aftlich e “Q u e lle n ”. In :
26 R u d o l p h , Z in se r , H a r tm u t (o rg .). Religionsw is­ quisa e teoria.
senschaft, p. 38.
27 Cf. T o u l m in , S tephen. K ritik der kollektiven V ernunft.
28 Cf. O t t o , Rudolf. Das Heilige.
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Além do m ero fato da inacessibilidade empírica do sagrado, outro sensibilizam para a idéia de que religiões devem ser entendidas como
problem a era discutido no contexto da briga de métodos: o da suposta sistemas de sentido, os quais contêm elementos inter-relacionados que
universalidade do chamado sagrado. Para Rudolf O tto e seus seguido­ não são autom aticam ente constituídos com o propósito de ser isolados
res, a categoria era tão central porque designava o coração, a últim a e transferidos para um outro contexto em que obtêm denotações e
essência, a raiz com um e objetivo principal de cada religião. Represen­ conotações diferentes.
tantes do paradigm a atual na Ciência da Religião rejeitam essa propos­ Se um cientista da religião não tiver internalizado certo grau do
ta por pelo menos dois motivos. relativismo no sentido da sociologia de conhecimento ou da etnologia,
Primeiro, como o estudo de Carsten Colpe dem onstrou, o sagrado e se não possuir determ inado conhecimento lingüístico, a referência
é um a construção lingüística que surgiu etimologicamente somente nas a citações de textos já traduzidos para a própria língua corre o risco
religiões m onoteístas e em traduções nas regiões mediterrâneas.29 Não de intensificar a distorção de seus conteúdos, ou seja, de legitimar a
é por acaso, pois, que Rudolf Otto, na sua reflexão sobre sua categoria- ingenuidade de um tradutor que intuiu semelhanças e concordâncias
chave, referiu-se extensamente aos term os gregos, latinos e hebraicos, entre sua religião e um a outra, simplesmente por não ter repensado
ou aos textos da tradução judaico-cristã. Uma leitura crítica do famoso seus filtros internos de interpretação e sua determinação lingüística,
livro de Otto, por exemplo do ponto de vista do budism o,30 leva a d ú ­ ou seja, as conseqüências etimológicas da pré-form ação cultural da
vidas graves sobre a universalidade do sagrado como ele a caracterizou. própria consciência.
Segundo, o m étodo de “provar” a hipótese da existência cultural­
m ente independente do sagrado por meio de citações de textos m ísti­ A opção pela pesquisa indutiva
cos de diferentes tradições, inclusive as do Oriente, é problemático na
m edida em que as referências se restringem às fontes traduzidas do A decisão de redefinir a Ciência da Religião como um a discipli­
original para um a língua européia, por exemplo, o português. Textos na estritamente empírica levou tam bém a um a nova resposta à ques­
estrangeiros com diferentes especificidades, especialmente os religio­ tão que indagava se a pesquisa deveria partir do geral ao particular
sos, precisam de um tratam ento sensível e responsável, um a vez que ou vice-versa. A esse respeito o novo paradigm a optou pela indução
tais fontes são compostas por códigos cujos significados são enraiza­ e substituiu a abordagem fenomenológica com prom etida ao procedi­
dos em um am biente cultural particular. Por isso, currículos de pro ­ m ento dedutivo.
gramas da Ciência da Religião na Alemanha salientam o papel de um a O paradigma anterior, metaforicam ente form ulado, se aproxim a­
formação filológica, sobretudo um conhecimento de línguas clássicas va de religiões singulares como se fossem “tim bres” da últim a reali­
da disciplina, como sânscrito, páli, árabe ou chinês, para que o pes­ dade transcendental, repercutindo em povos diferentes como ecos de
quisador seja apto o bastante para fazer justiça ao caráter especial de um trovão que se multiplicam em um a serra escarpada. Para Günter
um a dada religião. Além disso, a fim de evitar generalizações precoces, Lanczkowski, por exemplo, fatos religiosos deveriam ser tratados como
candidatos alemães da Ciência da Religião são intim ados a estudar p u ­ cifras, ou seja, manifestações e realizações do sagrado.31 Essa idéia
blicações como as de Peter Berger ou de Clifford Geertz. Tais obras culm inou na definição da religião como um fenôm eno sui generis,32
como entidade ontologicamente independente e não-condicionada.
29 Cf. C o l p e , C arste n . W ie u n iv e rsa l ist das H eilige? In: K l im k e it , H a n s-Jo a c h im (o rg .). Vergleichen u n d
Verstehen in der Religionsw issenschaft, pp. 1-12.
30 Cf. L o p e z , D o n ald S. A p p ro ach in g th e n u m in o u s : R u d o lf O tto a n d T ib e ta n T a n tra. Philosophy E a st a n d 31 L a n c z k o w s k i , G ü n ter. E in fü h ru n g in die Religionsw issenschaft, pp. 47 e 48.

W est, pp. 467-476. 32 Ib id ., p. 23.

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Conseqüentemente, a Fenomenologia da Religião se aproxim ou de­ Pode-se pensar aqui, por exemplo, na proposta de Charles Glock,35
dutivamente do m undo religioso empírico. Devido ao suposto axioma que caracterizou um sistema religioso como um conjunto de cinco di­
do sagrado como um a priori, o campo de pesquisa revelou quase na­ mensões: a ritualista, a da fé, a da experiência religiosa, a do conheci­
turalm ente traços do sagrado. Em outras palavras, os fenômenos das m ento e a da ética. Modelos desse tipo são heuristicam ente instrutivos,
religiões foram analiticamente tratados como se fossem rubricas do sa­ um a vez que representam construções auxiliares capazes de estimular
grado. Nesse sentido, era possível catalogar as manifestações religiosas análises comparativas sem ofuscar os caracteres específicos de cada
sob títulos como “lugares sagrados”, “instituições sagradas”, “objetos um a das tradições religiosas às quais a pesquisa se refere.
sagrados” e assim por diante. Tudo isso tinha como objetivo fazer um
inventário de características da religião.
O destaque da integridade
Representantes do paradigm a atual da Ciência da Religião princi­
piam o trabalho disciplinar de m aneira oposta. Destacam a necessida­ substancial da disciplina
de de um depósito amplo de conhecimentos empíricos sobre o m aior
Cientistas da religião na Alemanha preferem a designação Ciência
núm ero possível de religiões singulares como pré-requisito de um a
da Religião, no singular, não somente por motivos políticos, de acordo
obra comparativa. Em bora no caso da Ciência da Religião contem po­
com a citação de Kurt Rudolph na nota 26 supra, mas tam bém para sa­
rânea a sistematização de dados tam bém implique um a abstração da
lientar a integridade substancial de sua disciplina e o seu status particu­
multiplicidade de fatos reais, ela não transcende a esfera racional por
lar no ambiente acadêmico, por concentrar-se em um conteúdo deter­
meio da suposição de um a dimensão extra-em pírica da vida, onde to­
m inado de form a mais profunda e abrangente do que qualquer outra
das as manifestações religiosas concretas encontram sua últim a instân­
matéria. Dessa maneira, a Ciência da Religião, acostum ada a combinar
cia. Todavia, para citar Alfred Rupp, o lado comparativo da disciplina
várias técnicas de outras disciplinas para investigar o m undo religio­
se contenta com esforços de organizar um dado m aterial de acordo
so em suas múltiplas facetas históricas e empíricas, ganha identidade
com “unidades e características objetivas”.33
apesar de não ter desenvolvido técnicas autênticas de pesquisa, aspecto
A partir desse ponto de vista, o conceito da hom ogeneidade no esse freqüentem ente questionado por autores que negam o status par­
m undo religioso não procede de m era identificação da ordem im a­ ticular da Ciência da Religião e argum entam em favor da nom enclatu­
nente nos fenômenos, mas resulta da projeção construtivista de cate­ ra Ciências da Religião.
gorias comparativas sobre a diversidade de fatos empíricos. O que se
Nesse sentido, a situação da Ciência da Religião é igual à da peda­
apresenta sob tal perspectiva não é, como no caso da fenomenologia,
gogia. Embora essa disciplina tam bém não possua um a metodologia e
a “essência de objetos”, porém , dependendo do interesse específico do
apareça como ponto de interseção de diversas matérias, como a psico­
pesquisador, são estruturas, funções e elementos que certas religiões
logia da educação, a sociologia da educação, a filosofia da educação e
têm em comum. Diferentemente da fenomenologia que concebia re­
assim por diante, não está em pauta designá-la pedagogias. Em outras
ligiões como substancialmente iguais, representantes da Ciência da Re­
palavras: não se questiona a m udança do nom e pedagogia só porque
ligião atual vêem as tradições religiosas singulares como cosmovisões
concentra o tem a educação em um quadro acadêmico que, ao mesmo
formalmente idênticas.34
tem po, serve como reservatório intelectual disposto a integrar qualquer
resultado de pesquisa direta ou indiretam ente vinculado à educação,
33 R u p p , A lfred. Religion, P hänom en u n d Geschichte, p. 91.

34 T w o r u s c h k a , o p . c i t . , p . 1 9 2 . äS Cf. G lock, C h arles Y. & Stark , R odney. Religion a n d Society in Tension.

73
C o n s t i t u i n t e s da C i ê n c i a da R e l i g i ã o O perfil p a r a d i g má t i c o da Ci ência da Religião na Al emanha

independentem ente da questão de um saber relevante ter sido produ­ Departamentos

zido originalmente dentro da própria disciplina ou em qualquer outra.


O mesmo vale para a Ciência da Religião, que sempre tem apro­
veitado os conhecimentos e métodos de suas subdisciplinas e discipli­
nas auxiliares mais im portantes, isto é, das filologias, da história, da so­
ciologia da religião e da psicologia da religião, mas tam bém de outros
conjuntos acadêmicos, por exemplo, da etnologia, da antropologia ou
da geografia. Tal multiplicidade de referências não é um amorfo con­
junto de métodos e abordagens, porém - análogo ao caso da pedagogia
- constitui o perfil adequado de um em preendim ento intelectual que
se devota a entender de m odo o mais abrangente e profundo possível o
complexo m undo religioso em suas manifestações históricas e expres­
sões contemporâneas.
Ante o fato de que se trata de um a ciência metodologicamente in-
tegrativa, a caracterização da disciplina como campo disciplinar perde
relevância para a questão da nom enclatura adequada. Em outras pa­
lavras: a falta de um a m etodologia própria não é razão suficiente para
Tanto em Berlim quanto em M arburg, o nom e do departam ento com ­
negar a legitimidade do singular no term o Ciência da Religião.
põe-se de dois campos de estudo, isto é, Ciências da Cultura e Filoso­
fia. Na Universidade de Hannover, o program a de Ciência da Religião
Os lugares institucionais da constitui um a subentidade dos departam entos de Filosofia, História e
Ciências Sociais; em Feipzig a disciplina vincula-se aos departam entos
Ciência da Religião como indicadores de História, Ciências da Cultura e Ciências do Oriente. Somente em
do caráter da disciplina dois casos, ou seja, em Jena e M unique, a Ciência da Religião é adm i­
nistrativam ente relacionada ao departam ento de Teologia.
Q uanto à pretensão da autonom ia da Ciência da Religião, espe­
Resumo: a situação institucional pode ser entendida, em grande
cialmente em relação à Teologia, é elucidativo olhar os contextos uni­
parte, como conseqüência da tradicional tendência de a Ciência da
versitários nos quais os program as relevantes são institucionalizados.
Religião na Alemanha se estabelecer como disciplina autônom a e in ­
O quadro a seguir m ostra universidades alemãs em que a Ciência da
dependente da Teologia. Ao mesmo tem po, os contextos universitários
Religião é estabelecida. A rubrica vertical da lista traz cidades onde refletem e influenciam o caráter e o conteúdo do trabalho acadêmico
alunos podem estudar a matéria. As rubricas horizontais representam dos próprios cientistas da religião. Por exemplo, diferentemente das
as designações de departam entos nos quais a Ciência da Religião faz universidades de M arburg ou de Leipzig, que têm tradição im portante
parte organizatória. de disciplinas que se dedicam ao estudo de culturas não-européias, in­
Em Bonn, bem como em W ürzburg, a Ciência da Religião localiza- clusive suas filologias, faltam na Universidade de Hannover programas
se no departam ento de Filosofia, ao passo que em Bremen e Bayreuth, desse tipo. Por isso, a Ciência da Religião nesta cidade concentra-se
a m atéria é estudada no contexto institucional das Ciências da Cultura. de prim eiro nas religiões da Europa e nos novos movimentos religio-

74 75
O perfil p a r a d i g má t i c o da Ciência da Rel igi ão na Al emanha
C o n s t i t u i n t e s da C i ê n c i a da R e l i g i ã o

sos. Sendo assim, a vinculação institucional tanto à História quanto às Todos os program as da Ciência da Religião nas universidades ale­
Ciências Sociais é intelectual e organizacionalmente fundamental. mãs m ostram um a organização desse tipo. Diferenças somente exis­
tem ou nas especializações das equipes ou no contexto institucional
do programa.
A estrutura dupla da Ciência da Religião Em Bayreuth, por exemplo, é inevitável para candidatos se form a­
como herança disciplinar rem em um a das línguas clássicas, como grego, latim, páli ou sânscrito.
Nessa área, a Ciência da Religião colabora com outros program as da m es­
Sete anos depois do lançam ento do livro Das Heilige de Rudolf m a universidade. Todavia, qualquer estudo de um a religião singular es­
Otto, Joachim Wach publicou sua tese sobre a fundação m etateórica da colhido pelo aluno como tema central é acom panhado por cursos siste­
Ciência da Religião.36 Esta obra argum entou em favor de um a estrutu­
máticos, um a vez que apenas a dupla formação perm ite que ele passe por
ra dupla da Ciência da Religião de acordo com seus dois ram os distin­
um exame que faça justiça à riqueza disciplinar da Ciência da Religião.
tos, mas inter-relacionados: o ram o empírico-histórico e o sistemático.
Ainda na época da predom inância da Fenomenologia da Religião, a Na m edida em que o ram o sistemático é realizado como busca
proposta de Wach tornou-se modelo norm ativo para a Ciência da Reli­ para estruturas gerais, elementos típicos e traços comuns no m undo
gião e não a deixou desem penhar este papel até hoje. A organização in­ religioso empiricamente dado, não faz mais sentido colocar a dúvi­
terna da disciplina, pois, não tem sido atingida pela briga de métodos da se o objeto da pesquisa é mais bem caracterizado pelos verbetes as
dos anos 1960 e 1970, porém continua a ser vista como constitutiva religiões ou a religião. Com o toda ciência, tam bém a Ciência da Reli­
para a identidade da Ciência da Religião. gião deve ser entendida como em preendim ento coletivo organizado
de acordo com o princípio de divisão de trabalho. Nesse sentido, a dis­
O esquema abaixo exemplifica a perm anência dessa dupla estru­
ciplina abre espaço suficiente e legítimo para dois tipos de pesquisado­
tura disciplinar de acordo com o currículo do program a da Ciência da
res: por um lado, há cientistas cujo interesse por fatos históricos e em­
Religião na Universidade de Bayreuth:
píricos contribui para o crescimento de conhecimento sobre religiões
Ciência da Religião em Bayreuth particulares; por outro, existem colegas que, apaixonados pela teoria,
se referem ao m aterial já divulgado dentro da com unidade científica e,
História de Religião Comparação sistemática
por vezes, estimulam, m ediante interpretações sistemáticas e com pa­
Europa: Antigüidade e Cristianismo, rativas, pesquisas mais detalhadas capazes de verificar ou falsificar os
contatos religiosos na Idade Média entre
Cristianismo, Judaísm o e Islamismo
supostos conceitos e hipóteses.

índia: Hinduísmo clássico


e Budismo original, Neo-Hinduísmo,
Budismo moderno 6. Conclusão
África: Novos movimentos religiosos;
religiões africanas tradicionais e sua Nos itens anteriores foram apresentadas reflexões sobre um a situa­
relaçáo com o Cristianismo
ção disciplinar num país específico. Não seria adequado generalizar, de
m aneira precoce, tais descrições a outros contextos nacionais. Não há
nenhum a dúvida de que outras constelações institucionais e distintas
Cf. W a c h , Jo a c h im . Religionsw issenschaft. P ro le g o m e n a zu ih r e r w is s e n s c h a fts th e o re tis c h e n G r u n d -
heranças intelectuais levam a preferências e preocupações acadêmicas
leg u n g.

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76
C o n s t i t u i n t e s da C i ê n c i a da R e l i g i ã o

diferentes. Mesmo assim, talvez estas reflexões possam contribuir para


um debate metateórico mais intenso e amplo entre cientistas da reli­
gião no Brasil.
Tal discussão deve se referir, entre outros pontos: ao uso freqüen­
te, para não dizer inflacionário, do term o sagrado; ao costume de apro­
veitar o plural para designar a própria disciplina Ciências da Religião;
ou ao fato de que a m aioria dos program as é institucionalm ente loca­
lizada em departam entos de Teologia.
Todavia, não é oportuno para um autor alemão, que tem o prazer
de trabalhar há poucos anos como professor da PUC em São Paulo,
antecipar as respostas a essas questões relevantes. Isso será, acima de
tudo, um a tarefa coletiva da sociedade acadêmica brasileira.

Descendo
a torre de marfim
O impacto do discurso público
sobre “seitas” na Ciência da
Religião na Alemanha

78
D e s c e n d o a t o r r e de m a r f i m

1. Introdução
No decorrer das preparações para o congresso bienal da Associa­
ção Alemã de H istória das Religiões,1em setembro de 2003, circularam
diversas sugestões para temas de painéis.2 Entre os vários pesquisado­
res que se engajaram nesse contexto encontra-se H ubert Seiwert, pro­
fessor catedrático da Universidade de Leipzig, que propôs incluir na
pauta do program a do congresso um a sessão sobre a relevância social
da Ciência da Religião.
O fato de a proposta ter sido bem -vinda pelos colegas aponta para
m udanças im portantes pelas quais a Ciência da Religião alemã passou
no decorrer dos últimos trinta anos, como m ostra a citação abaixo for­
m ulada em 1971, pelo então presidente da International Association
for the History of Religions, Zvi Werblovsky: “Enquanto eu puder jul­
gar, não há nem um motivo nem um a justificativa para um a Ciência
da Religião aplicada”.3
É difícil imaginar que Werblovsky tenha enfrentado, no seu amplo
ambiente acadêmico, algum protesto contra sua posição. Pelo menos
não por parte de cientistas da religião da Alemanha, onde, já em 1965,
Ernst Benz tinha caracterizado o espírito típico da sua comunidade
científica com as seguintes palavras: “A reserva da Ciência da Religião
em se engajar na busca de solução de questões religiosas atuais, é, às
vezes, tão acentuada que se tem a impressão que alguns cientistas da
religião preferiram apenas religiões [...] extintas”. Não se interessam
por “religiões vivas que são representadas po r instituições elevadas,
um a missão e um a propaganda sensível contra crítica e talvez através
de um engajamento político com todas as possibilidades implícitas de
conflito”.4

1 Isto é, a D eutsche Vereinigung f ü r Religionsgeschichte.


2 As id éias fo ra m d e b a tid a s n a lista d e d iscu ssão de c ien tistas d a relig iã o alem ães n a in te rn e t, c h a m a d a
YGGDRASILL.
3 A pud Tw o r u sc h k a , U do. K a n n m a n R elig io n en b ew erten ? P ro b lem e aus d e r S icht d e r R elig io n sw issen ­
sch aft. I n : _______ & Z il l e s s e n , D ietrich (o rg s.). T h em a W eltreligionen, p. 51.
4 A pud H o h e is e l , K u rt. R ü ck w irk u n g e n a b e n d lä n d is c h e r R elig io n sfo rsch u n g a u f n eu e re E n tw ick lu n g e n
in d e n W e ltrelig io n e n . In : Steph enso n, G. (o rg .). D er Religionsw andel unserer Z e it im Spiegel der Religi­
onsw issenschaft, pp. 262-263.

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C o n s t i t u i n t e s da C i ê n c i a da R e l i g i ã o D e s c e n d o a t o r r e de m a r f i m

Como a proposta de H ubert Seiwert anteriorm ente citada indica, 2. Retrospectiva: a Ciência da Religião
a posição de Werblovsky e Benz não é mais considerada tão inequivo­
camente como o era na época dos dois autores m encionados. Embora alemã diante do surgimento de
ainda se encontrem , entre os representantes contem porâneos da Ciên­
novos movimentos religiosos
cia Religião, “puristas” que rejeitam exigências de um a funcionalidade
social mais imediata da disciplina, há um núm ero crescente de pesqui­
sadores, em especial os que surgiram a partir da segunda metade dos A falta de interesse por novos movimentos
anos 1970, os quais redefiniram o próprio conceito metateórico em religiosos e a exclusão da CRE da
favor de um a eficácia mais acentuada, e até um engajamento político,
da Ciência da Religião. discussão pública sobre “seitas”
A m esa-redonda desse congresso sobre “O contexto cultural na A partir dos anos 1970, o campo religioso alemão passou por um
consolidação da(s) Ciência(s) da Religião” abre um espaço para resu­ processo de diversificação, especificamente pelo surgim ento de novas
m ir o processo de m udança da disciplina na Alemanha, um a vez que religiões, como a ISCKON, a Igreja de Unificação do Reverendo Moon,
foram , sobretudo, fatores extra-acadêmicos que prom overam aquelas os Meninos de Deus ou a Missão da Luz Divina. Em poucos anos, esse
modificações. Os dados a serem colocados referem-se a um debate p ú ­ fenôm eno tornou-se assunto público absolutamente polêmico. Foi em
blico sobre novos m ovim entos religiosos, pejorativamente chamados especial a Igreja Luterana que agiu de m odo ativo no combate a esses
de “seitas” na linguagem popular. A reconstrução de tal debate e seu grupos por interm édio de seus chamados “encarregados para seitas”.
impacto na Ciência da Religião serão tratados no item seguinte. O item Como fruto de forte cam panha através de artigos, palestras e petições,
3 dedicar-se-á a um a reflexão mais abstrata do m aterial concreto, o que e apoiados por associações de pais, que reclamavam a “perda” de filhos
perm itirá passar por um a análise geral de princípios que constituem que tinham aderido a um dos grupos polêmicos, líderes de opinião
qualquer “contexto cultural na consolidação da(s) Ciência(s) da Reli­ obtiveram sucesso quando convenceram o governo alemão a levantar
gião”. Nessa base é finalmente apresentado um m odelo como referên­ a voz nesse debate sobre “seitas”. Assim, um a declaração do M inistério
cia sistemática para futura comparação entre as situações da disciplina Federal para Juventude, Família e Saúde feita em julho de 1978, em
na Alemanha e no Brasil. um a entrevista coletiva, conferiu à discussão outra qualidade, confir­
m ando oficialmente um sentimento negativo contra novas religiões.
Em 11 de julho de 1978, os jornais alemães publicaram um a n o ­
tícia com o título: “Seitas põem jovens em risco. Já quase 150.000 ado­
lescentes são dependentes”. No fim da própria notícia houve, por parte
do governo, um a valorização dos teólogos como autoridades com pe­
tentes para a solução do problem a das seitas. Nesse contexto, entre as
entidades as quais “o m inistério federal atribui im portância significa­
tiva” foram explicitamente mencionadas “as duas grandes Igrejas” com
seus especialistas, em outras palavras: especificamente se valorizaram
os teólogos, luteranos e católicos, no combate aos novos movimentos
religiosos em questão. Não foram citadas pelo governo nem a Ciência

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C o n s t i t u i n t e s da C i ê n c i a da R e l i g i ã o D e s c e n d o a t o r r e de m a r f i m

da Religião nem a Sociologia da Religião, como potenciais áreas acadê­ vez que a disciplina, institucionalizada desde 1910 e, nos anos 1970,
micas que poderiam contribuir, em nom e do governo, ou melhor, em já estabelecida em várias universidades alemãs, estava num a situação
nom e de toda a sociedade, para a solução de tal conflito. relativamente estável e confortável nessa época. Atrás desse não-enga-
jam ento no estudo sobre novas religiões encontravam-se duas outras
Depois da declaração do governo em favor da Teologia, quase ne­
razões principais: a prim eira, simplesmente, era a falta de consciência
nhum representante da Ciência da Religião reclamou um papel ade­
quado da própria disciplina na discussão sobre novas religiões. Ao da relevância do fenôm eno em questão. Tem-se de lem brar o seguin­
contrário, excetuando alguns casos raros, ainda nos anos 1980, cientis­ te: o representante típico da Ciência da Religião dessa geração nascera
tas da religião nem ao menos se engajaram na pesquisa sobre os novos num a família luterana, fato que pré-form ou um conceito de religião o
grupos espirituais. qual levou a certo tratam ento privilegiado das tradições escritas. Além
disso, a então Ciência da Religião possuía, m uito mais do que hoje, um a
Essa lacuna tinha a ver com a orientação dom inante da disciplina,
orientação nas filologias estrangeiras, sobretudo as das línguas orien­
pois, apesar de atuante na pesquisa, por exemplo, sobre o hinduísm o
tais como páli, sânscrito, japonês ou chinês. Fenômenos religiosos fora
ortodoxo, o budism o tradicional ou outras grandes tradições filosofi­
desse padrão foram, pelo m enos implicitamente, desvalorizados.
camente elaboradas, não apresentava estudos sobre m inorias religio­
sas contem porâneas, inclusive sobre os novos m ovim entos religiosos A segunda razão, mais sutil, referia-se à herança metodológica da
ativos nas sociedades industriais ocidentais. Na verdade, somente três disciplina, ou melhor, ao compromisso com a atitude de neutralidade
cientistas da religião na Alemanha haviam se interessado mais intensi­ diante de seus objetos de estudo. É obvio que é m uito mais fácil cum prir
vamente por fenômenos desse tipo. Em 1971, Ernst Benz publicou um esse princípio metodológico quando se estuda religiões estabelecidas e
livro intitulado Novas religiões;5 em 1974, foi lançado o livro de Günter socialmente aceitas, do que quando se ocupa de fenômenos “politica­
Lanczkowski, As novas religiões,6 e, em 1977, Peter Gerlitz apresentou m ente incorretos”, com formas extraordinárias, m uitas vezes provocan­
sua obra Deus acorda no Japão. Novas religiões no Extremo Oriente e sua tes, ou seja, aspectos que desafiam o senso com um de um pesquisador
mensagem de felicidade.7 Um ano mais tarde, o cientista da religião de que, na sua vida particular, está enraizado num ambiente convencional.
Frankfurt, Heinz Rõhr, precisou admitir: “O que ainda falta é a con­ Foram esses fatores que causaram grande indisponibilidade dos
tribuição dos cientistas da religião”.8 Em 1980, G ünter Kehrer, cientis­ cientistas da religião para se engajarem na pesquisa sobre novos m o­
ta da religião na Universidade de Tübingen, afirm ou que as múltiplas vim entos religiosos na prim eira fase do debate relativo a “seitas”, e os
atividades de pesquisadores anglo-americanos com relação a novos poucos representantes da disciplina com interesse considerável pelo
m ovim entos religiosos não deixaram nenhum a marca na Ciência da tema, como Rainer Flasche, da Universidade de M arburg, e Günter
Religião.9 Kehrer, da Universidade de Tübingen, eram raras exceções naquela
A indiferença da Ciência da Religião na área de pesquisa sobre n o ­ época. Diante das restrições do principal concorrente no m ercado do
vos movim entos religiosos nada tinha a ver com falta de recursos, um a saber, a Teologia desfrutava de um a situação favorável. Não só pelo fato
de vários teólogos terem-se tornado afamados com publicações sobre
5 Cf. B enz, E rn st. N eu e Religionen. as “seitas”, mas tam bém alguns deles aproveitaram seu status para ne­
6 Cf. L a n c z k o w s k i, G ü n ter. D ie neuen Religionen.
gar a competência de cientistas da religião a respeito da investigação da
7 G e r l it z , Peter. G o tt erw acht in Japan.
8 R o h r,H ein z. G ö tte r z u m A nfassen. D ie s o g e n a n n te n “Ju g en d relig io n en ” in d e r Sicht d e r v erg leich e n ­ nova religiosidade. Tal estratégica objetivava assegurar o “m onopólio
d e n R elig io n sw issen sch aft. Inform ationen zu m R eligionsunterricht, p. 41. de definição” atual e proteger contra um a possível entrada de não-teó-
9 Cf. K e h r e r , G ü n ter. S oziale B ed in g u n g en fü r n ic h t-k irc h lic h e religiöse G ru p p e n in d e r B u n d e s re p u ­
b lik . I n :_______ (org.). Z u r Religionsgeschichte der B undesrepublik D eutschland, p. 96. logos no debate público sobre o tema.

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Mais do que isso, em 1983, o “encarregado para seitas” em Vestefá- tatos diretos com alguns dos novos m ovim entos religiosos, entre eles
lia, o pastor luterano Rüdiger H auth, por exemplo, preocupou-se com com a Igreja da Unificação de Reverendo M oon, um a das comunidades
obras mais objetivas sobre novos m ovim entos religiosos, classificando mais polêmicas dos anos 1970 e 1980. Porém, enquanto essas relações
seus autores como “segunda frente” na luta contra as “seitas”.10 Em sua imediatas com representantes da nova religiosidade foram considera­
opinião, a situação era ameaçadora, inclusive pelo fato de que alguns das altamente suspeitas pelos encarregados confessionais para “seitas”,
daqueles pesquisadores já haviam começado a “dar cursos e pales­ alguns dos grupos religiosos estigmatizados consideraram as publica­
tras, segundo seus pontos de vista, sobre os movim entos polêmicos”.11 ções de Rainer Flasche como um a das mais objetivas daquela época
Além disso, autores independentes que não seguiram as interpretações e começaram por sua vez a intensificar o contato com o professor de
teológicas foram acusados de “banalização perigosa”12 do verdadeiro M arburg.
problem a e de “com panheirism o com as seitas”.13 Com o mesmo tom Um dos resultados desse intercâm bio foi que a Sociedade Inter­
agressivo, Gottfried Küenzlen, porta-voz da Agência Central Evangé­ nacional para a Meditação Transcendental solicitou que ele escrevesse
lica para Questões Ideológicas,14 rejeitou um a das pesquisas mais vo­ um parecer sobre o grupo, a fim de que o m ovim ento usasse essa ava­
lumosas e substanciais na prim eira fase do debate sobre “seitas”, por liação para sua defesa em um a disputa jurídica com o governo alemão.
essa obra ter supostam ente tom ado partido dos grupos polêmicos.15 Rainer Flasche atendeu ao pedido, tratou o grupo como qualquer ou­
Mais tarde, essas e outras citações levaram M artin Baum ann à seguinte tro objeto de estudo, de acordo com as regras da Ciência da Religião,
conclusão: e chegou, para a infelicidade dos adversários de seitas, a um resultado
que questionou a substância das imagens pejorativas que circulavam
Através da reconstrução do debate tem-se a impressão de que, por entre o público e haviam causado a intervenção do governo. Todavia,
razões de propaganda e por interesse profissional, as abordagens
e os estudos de cientistas sociais e cientistas da religião foram es­ por ter aceitado a redação daquele parecer, Rainer Flasche precisou
tigmatizados [...]. Os objetivos eram marginalizar representantes de agüentar mais críticas e até mesmo no ambiente da sua disciplina, pas­
disciplinas não-teológicas e assegurar as pretensões ao tradicional sou por um a fase difícil.
monopólio eclesiástico.'6

Um dos alvos da crítica a cientistas mais neutros foi Rainer Flas- Estímulos construtivos extradisciplinares
che, que, em sua busca de material prim ário, tinha estabelecido con­ e a virada para uma pesquisa própria de
novos movimentos religiosos
10 Cf. H auth, R üdiger. D ie n eu e sten E n tw ick lu n g e n b e i Ju g en d sek ten , G u ru b e w e g u n g e n u n d P sy ch o k u l-
te n . In: K ohrer, H e lm u t K. (org.). Jugendsekten - Eine G efahr f ü r Kirche, S ta a t u n d Gesellschaft?, p . 115.
Em bora a Sociologia da Religião tenha m antido certa passividade
11 Ibid.
12 Cf. E im u t h , K u rt-H e lm u t. D ialog m it d e r M oon-B ew egung? M a te ria ld ie n st der E Z W , p. 238. na área da empiria, ela começou a desem penhar um papel conceitual-
13 Cf. H u m m e l , R e in h a rt. G efäh rlich e V erh arm lo su n g . T h e o lo g en als M itw irk e n d e b e i M u n -V e rab n stal- m ente construtivo na discussão interdisciplinar sobre novas religiões.
tu n g e n . Lutherische M onatshefte, pp. 347-348.
14 Isto £, a Evangelische Z entralstelle fü r W eltanschauungsfragen em B erlin, a n te rio rm e n te lo c alizad a em
Em oposição a tendências exclusivistas ainda dom inantes na então
S tu ttg a rt. Ciência da Religião, sociólogos trabalhavam com um a inclusão teórica
G o ttfrie d . A u fk lä ric h t - N o ch ein m al: W ien er S tu d ie ü b e r Jug en d lich e in “N eu en R eligiösen
15 K ü e n z l e n ,
B ew egungen”. M a te ria ld ie n st der E Z W , p. 161.
desses novos fenômenos no campo da pesquisa. Tais esforços culm ina­
16 B a u m a n n , M a rtin . M erk w ü rd ig e B undesgenossen u n d , n aiv e S y m p a th isa n te n - D ie A u sg re n z u n g d er ram na sugestão, feita em 1978 num artigo program ático, de substituir
R elig io n sw issen sch aft aus d er b u n d e s d e u tsc h e n K o n tro v erse u m n eu e R eligionen. Z eitsc h rift fü r Religi­
onsw issenschaft, p. 115.
o nom e tradicional da disciplina, Sociologia da Religião, por “socio­

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C o n s t i t u i n t e s da C i ê n c i a da R e l i g i ã o D e s c e n d o a t o r r e de m a r f i m

logia de sistemas de conhecimento e da interpretação”.17 A proposta Porém, pelo poder institucional da geração anterior e sua in ­
baseou-se na afirmação de que, perante as múltiplas manifestações de sistência contínua nas religiões clássicas, sobretudo extra-européias,
novas formas de espiritualidade, o term o “religião” perdera seu sentido com o objetos dignos de um “verdadeiro” cientista da religião, os pes­
convencional. Ainda que a proposta de renomeação da disciplina não quisadores recém -form ados não tiveram acesso à carreira acadêmica
tenha ocorrido, refletiu um a crescente disponibilidade de conceber convencional. Sob essas condições, um candidato considerado auspi­
novos m ovim entos religiosos como objetos de pesquisa tão legítimos cioso po r seus contem porâneos m ostrou-se extrem am ente decepcio­
quanto religiões tradicionais e socialmente aceitas. nado pela falta de oportunidades profissionais, lam entando de m a­
Essa m udança conceituai passou a influenciar tam bém um a nova neira metafórica: “Subi todas as escadas da torre de marfim. Q uando
geração de cientistas da religião form ada a partir da segunda metade finalm ente cheguei ao últim o andar, bati em todas as portas, mas
dos anos 1970. Isso aconteceu especificamente em universidades como nenhum a se abriu”.
a de Hannover e a de Bremen. Nestas, por falta das filologias orientais e Todavia, um pequeno grupo de ex-alunos em M arburg, cons­
de outras matérias constitutivas para a disciplina de cunho tradicional, ciente da potencialidade da sua especialidade provada por disserta­
como a japanologia, tibetologia, indologia ou sinologia, a Ciência de ções e teses excelentes, opôs-se ao destino supostam ente inevitável
Religião tinha assumido um caráter mais aberto para a interdisciplina- e decidiu estabelecer-se com o cientistas da religião fora das insti­
ridade com as Ciências Sociais e a História, com um foco na pesquisa tuições convencionais. Fundou, assim, em 11 de m arço de 1989, a
da Europa e da contem poraneidade. associação REMID, um serviço de inform ação e de m ateriais sobre
Os alunos desse tipo de program a de Ciência da Religião distin­ fenôm enos religiosos contem porâneos. Livres das obrigações univer­
guiram-se da geração anterior ainda em um outro sentido: a m aioria sitárias, os m em bros da iniciativa não se viram mais com prom etidos
não representava mais o cientista da religião padrão, proveniente de com as norm as acadêmicas de um a Ciência da Religião politicam en­
um a religiosidade luterana ou pelo m enos cristã. Foram pessoas cujas te abstinente e com eçaram a desenvolver, entre outras, atividades em
biografias corriam em paralelo com as transformações e rupturas do função da crítica ao senso com um quanto aos novos m ovim entos
campo religioso, com a revolução psicodélica e com o posterior boom religiosos.
das novas religiões. Q uem não participou ativamente nesses processos A página da internet do REMID não deixa dúvida nenhum a so­
ou era amigo ou parente de alguém que participara. O que parecia bre sua orientação, quando diz: “Um dos motivos da fundação da as­
estranho ou até assustador do ponto de vista dos cientistas da reli­ sociação era a insatisfação com a apresentação de religiões”. Era e é
gião convencionais foi considerado pela nova geração de pesquisado­ óbvio que, em m uitos casos, especialmente as reportagens na mídia
res como manifestação do próprio cotidiano, pelo m enos de m aneira e a discussão pública influenciada por elas não são caracterizadas por
mediata. Por conseguinte, tornou-se mais natural e freqüente a opção informações objetivas e diferenciadas. Exatamente esse tipo de infor­
por um projeto de m estrado ou doutorado com um tem a que tivesse mações, porém , é capaz de dim inuir preconceitos e mal-entendidos,
algo a ver com a nova religiosidade. Não foi incom um que a adesão de
algo para o que a Ciência da Religião pode contribuir.
um candidato ao novo m ovim ento religioso o levasse à pesquisa do
As conclusões das reflexões sobre essa situação exprimem-se nos
próprio grupo m etodologicamente justificado em term os de um a ação
participativa. estatutos da associação. Segundo eles,

[...] REMID tem como objetivo ampliar e aprofundar para o público o


17 Cf. F i s c h e r , W o lfram . V on d e r K irchensoziologie z u r Soziologie d er W issen s u n d D eu tu n g ssy stem e . Ein conhecimento sobre religiões e movimentos religiosos. Isso ocorre
L ite ra tu rb e ric h t z u r R eligionssoziologie. Theologia Practica, pp. 124ss. a partir da posição da Ciência da Religião. Seus resultados devem ser

88 89
C o n s t i t u i n t e s da C i ê n c i a da R e l i g i ã o D e s c e n d o a t o r r e de m a r f i m

publicamente acessíveis para promover a convivência tolerante dos ou M artin Baumann, serem internacionalm ente conhecidos deixa cla­
homens e das religiões diferentes, possibilitando empatia e respeito
mútuo.18
ro que a Diagonal, em bora desvinculada de qualquer program a oficial
de Ciência da Religião, é considerada por representantes da disciplina
institucionalizada nas universidades como “editora doméstica”. O pas­
Atualmente, mais de 150 pesquisadores na área da Ciência da Re­
so mais im portante nessa direção ocorreu no congresso da Associação
ligião, contratados ou não por um dos program as das universidades
Alemã de História das Religiões, em 1994, em Bremen. A assembléia
alemãs, são associados ao REMID e apóiam suas atividades múltiplas.
geral dessa associação tom ou a decisão de lançar um a revista acadê­
Essa instituição depende de tais subsídios, um a vez que “financia seu
mica própria e optou pela Diagonal como editora. A revista tem sido
trabalho exclusivamente através das mensalidades dos seus m em bros e
publicada semestralmente e é o órgão oficial da Associação Alemã de
de doações. Não é vinculado a nenhum a organização, seja ela religiosa
História das Religiões.
ou não, o que garante um alto grau de independência”.19
O utra área de atividades em que o REMID assumiu papel im ­
Não dem orou m uito para que o REMID deixasse de ser um a ini­ portante foi a de organizações de congressos, dos quais especialistas
ciativa de ex-alunos e se transformasse em um a entidade profissional. internacionais participam e cuja abordagem corresponde ao espírito
Com o serviço de informação e de materiais sobre fenômenos religiosos crítico da iniciativa. Com certeza o evento mais polêmico até hoje foi
contem porâneos, tornou-se um sério desafio para a já citada Agência a congresso sobre o tema “Crítica a religiões”, de 24 a 26 de novembro
Central Evangélica para Questões Ideológicas, um a instituição form al­ de 1995, em M arburg. Com o objetivo de aprofundar o diálogo entre
m ente semelhante, porém enraizada na Igreja Luterana, que a m antém teólogos e cientistas da religião interessados por novos movimentos
m aterialm ente em term os de pessoal, de recursos digitais e no uso da religiosos, foram convidados tam bém dois representantes de institui­
sua infra-estrutura eclesiástica. ções eclesiásticas especializadas no assunto. Todavia, depois da distri­
Foi interessante observar, durante os anos da sua existência, a buição da lista completa dos palestrantes, os dois teólogos cancelaram
crescente reputação do REMID pela disciplina institucionalizada. Um sua participação, m ostrando-se indignados com a “tendência ideoló­
fator im portante nesse processo foi o estabelecimento da editora Dia­ gica” do evento; um a acusação várias vezes repetida por setores como
gonal pelos fundadores do REMID. A Diagonal obteve um status for­ o Materialáienst, órgão da Agência Central Evangélica para Questões
m almente independente, mas até hoje a editora é program ática e tec­ Ideológicas. A partir de um a leitura mais profunda, porém , essas notí­
nicam ente um projeto do pessoal do REMID. Uma das prim eiras ati­ cias revelaram a verdadeira razão da reação de não-cooperação. O pro­
vidades da editora foi o lançamento da revista Spirita, posteriorm ente gram a do congresso, entremeado com participantes eruditos, inclusive
publicada de form a digital sob o nom e e-spirita, que regularmente traz palestrantes reputados dos Estados Unidos, provou que um a associa­
artigos sobre temas relativos a novos m ovim entos religiosos e o debate ção capaz de realizar um congresso daquele nível não era mais uma
polêmico sobre estes. “iniciativa estudantil”, mas um adversário sério no mercado do saber.
No decorrer dos anos, a Diagonal editou um núm ero considerável O fim do m onopólio de teólogos na discussão sobre novos m ovi­
de livros escritos ou organizados por cientistas da religião. O fato de m entos religiosos tornou-se mais claro na segunda metade dos anos
vários deles, como Michael Pye, Hans G. Kippenberg, H ubert Seiwert 1990, quando o governo alemão instalou um a comissão com o objetivo
de avaliar o potencial ameaçador das seitas. A comissão foi composta
18 Cf. < h ttp ://w w w .u n i-le ip z ig .d e /~ re lig io n /re m id _ v e re in _ k u rz .h tm >.
por m em bros de todos os partidos do parlam ento e cada um deles teve
19 Ibid. o direito de convocar um especialista na área. Os verdes optaram por

91
C o n s t i t u i n t e s da C i ê n c i a da R e l i g i ã o
D e s c e n d o a t o r r e de m a r f i m

H ubert Seiwert, hoje presidente da Associação Alemã de História das seu progresso do que constelações internas. Isto se tornará mais claro
Religiões e já naquela época um dos representantes mais proem inentes no subitem seguinte.
da Ciência da Religião institucionalizada, com fortes laços profissio­
nais com o REMID e seu pessoal. A m era participação de um repre­
sentante “oficial” da disciplina na comissão, e ainda mais o fato de que Um olhar sistemático sobre estímulos
o relatório final daquele órgão governamental reflete em várias partes transformadores na história recente da
a argumentação objetiva de H ubert Seiwert, pode ser vista como sinal
para o novo status da Ciência da Religião como instância reputada e Ciência da Religião na Alemanha
motivo da sua atual influência política no debate público sobre novos
O raciocínio deste subitem segue a hipótese de que o progresso
m ovim entos religiosos.
de um a disciplina é função dos estímulos intelectuais que se im põem
num a sociedade acadêmica na form a de problemas científicos. Per­
3. Problematização gunta-se, pois, de onde surgem problemas científicos. A seguir, serão
discutidas cinco possibilidades.
Pode-se deduzir a partir da exposição acima que a Ciência da Re­ A prim eira opção de gênese de problemas científicos encontra-se,
ligião, como qualquer outra disciplina, não opera num vácuo, mas está entre vários outros livros, na obra de Gordon W inter.21 O autor asso­
intim am ente inter-relacionada tanto a outras esferas da vida acadê­ cia o grau de inovação disciplinar ao potencial criador inerente a um
mica quanto a setores sociais fora da universidade. Por conseguinte, am biente acadêmico. Para que determ inado grupo de pesquisadores
o exemplo elaborado no item 2 é incompatível com um a abordagem avance, tem de chegar a definições homogêneas tanto em relação aos
m etateórica que reduz - como ainda nos anos 1960, o chamado “Cír­ objetos de pesquisa quanto ao tratam ento que lhes é dado, de acordo
culo de Viena” em nom e da filosofia analítica - a ciência a um em preen­ com princípios metodológicos com os quais a com unidade científica
dim ento virtualm ente livre de qualquer contexto sociocultural. se compromete. A seleção de “novos” objetos nasce do conhecimento
Especificamente no caso das H um anas, entre elas a Ciência coletivo de um status quo de saber disciplinar e do éthos profissional de
da Religião, o caráter atual de um a disciplina não é “som ente um a ultrapassá-lo. Essa abordagem é confirmada por Karl Popper, quando
questão da lógica com pletam ente independente tanto das circuns­ identifica os problemas científicos na “fronteira” entre saber e não-sa-
tâncias históricas da sua gênese quanto dos m otivos psicológicos de ber em função da expansão sistemática do “território” do conhecim en­
seus criadores e dos seus efeitos sobre as condições de vida h u m a ­ to definido de acordo com padrões mfradisciplinares.22
na”.20 Pelo contrário, um a análise adequada da vida acadêm ica tem
Esse tipo de gênese de problemas científicos representa o padrão
de levar em conta tanto a dinâm ica intra-universitária, inclusive a
da vida acadêmica rotineira, fato que levou Thom as S. Kuhn a associá-
com petição ou cooperação de diferentes disciplinas, quanto a rela­
la à chamada ciência normal, por sua parte definida como “realizações
ção bilateral entre um a determ inada com unidade científica e fatores
científicas [...] que fornecem problemas e soluções modelares para
extra-acadêm icos.
um a com unidade de praticantes de um a ciência”.23 Todavia, a obra de
Às vezes, como no caso da Ciência da Religião na Alemanha, fato­
res que atuam fora da própria disciplina são mais construtivos para o 21 Cf. W in t e r , G o rd o n . G rundlegung einer E th ik der G esellschaft, p p . 86-97.
22 Cf. P o pper, K arl. D ie L ogik d e r S o zialw issen sch aft. In : A dorno, T h e o d o r et al. D er P ositivism usstreit in
der deustchen Soziologie, pp. 103ss.
20 B ayertz , K u r t . Wissenschaftstheorie und Paradigmabegriff, p . 9.
23 K u h n , T h o m a s S. A estrutura das revoluções científicas, p. 13.

93
C o n s t i t u i n t e s da C i ê n c i a da R e l i g i ã o D e s c e n d o a t o r r e de m a r f i m

Kuhn questiona o potencial inovador da ciência normal, um a vez que No mesmo sentido vale a recapitulação de um a terceira opção de
serve mais para a diferenciação de um saber preestabelecido do que gênese de problemas científicos enfatizada por B. Vetter,25 autor que
para um a verdadeira expansão do território do conhecimento. produziu sob as condições acadêmicas da antiga Alemanha Oriental e
Um a interpretação da situação da Ciência da Religião alem ã por reflete, de certa m aneira, um m odelo de ciência prom ovido pela ideo­
volta dos anos 1970, em term os de ciência normal, cham a a atenção logia comunista. A base conceituai do raciocínio de Vetter é a distinção
para a preocupação dos seus então representantes com a m an u ten ­ entre “problemas de acesso” e “verdadeiros problemas científicos”. Os
ção da já “provada” herança intelectual da disciplina. Foi m encio­ prim eiros representam somente um a falta de oportunidade de apro­
nado que os cientistas da religião daquela época perseveraram em priar-se de um elemento de saber já estabelecido, ou seja, de um seg­
religiões tradicionais extra-européias com o objetos de estudo mais m ento de propriedade intelectual do povo inteiro gerada no decorrer
relevantes. Essa insistência, porém , deixou a m aioria da com unida­ da evolução do Estado comunista. Problemas científicos propriam ente
de científica insensível para fenôm enos contem porâneos ocidentais ditos surgem através do reconhecim ento de um a lacuna no depósito
igualm ente dignos de um a investigação. Foi necessária a atuação de conhecimento e a necessidade coletiva de com pensar essa falta. Sem
com plem entar de outras opções de gênese de problem as para que confirmar todas as implicações da abordagem de Vetter, ele traz um
a Ciência da Religião se “m odernizasse”, entre elas a intim idade que aspecto interessante ao apontar para a possibilidade de que nem um
candidatos da disciplina com eçaram a desenvolver com a “nova reli­ lim itado grupo profissional de pesquisadores, nem um representan­
giosidade”, a p artir da segunda m etade dos anos 1970, p o r interesses te individual de um a disciplina a partir de um a experiência cotidiana
particulares. particular, introduzem um problem a científico na área de pesquisa,
A possibilidade de que a inovação de um a com unidade científica mas um a instância política em nom e da população.
tenha seu ponto de partida na esfera extra-em pírica é constitutiva para Exatamente isso ocorreu quando, em 1995, o governo alemão ins­
a abordagem de A. W. Gouldner,24 fundador da chamada sociologia re­ titucionalizou a m encionada comissão parlam entar para oficialmente
flexiva. Sua análise, que faz especificamente sentido nas ciências hum a­ esclarecer acusações públicas contra seitas. O fato de que um cientista
nas, representa, de certo m odo, um contram odelo da prim eira opção da religião fez parte desse grêmio composto tanto por políticos quanto
de Gordon W inter já resumida. Enquanto W inter destaca a dinâm i­ por especialistas teve efeito im portante para a redefinição da Ciência
ca do ambiente profissional de um grupo de pesquisadores, Gouldner da Religião institucionalizada, um a vez que a convocação de um m em ­
chama a atenção para os estímulos intelectuais que se originam da vida bro da própria com unidade científica foi geralmente entendida, até
pessoal de representantes de um a disciplina. Para G ouldner é absolu­ mesmo por representantes mais conservadores, como um a expressão
tam ente pensável que um pesquisador dedique-se profissionalmente a da crescente reputação pública da disciplina.
um problem a que nasceu de seu interesse vital cotidiano e cuja solução Há ainda outros dois contextos de onde um a disciplina poderia
ajuda-o a vencer um a constelação inequívoca ou até existencialmente
receber inspirações em term os de colocação de problem a científico na
crucial no seu am biente particular. A sua obra, pois, ajuda a entender
própria pauta acadêmica. Primeiro, a discussão controversa sobre o
m elhor a dinâm ica que perm itiu com que a Ciência da Religião alemã
pensam ento transdisciplinar aponta para a possibilidade de que pro­
ampliasse seu campo de pesquisa e ganhasse relevância social além da
blemas identificados dentro de um a dada disciplina podem ultrapas-
esfera acadêmica.

25 Cf. V etter, B. D as F o rsc h u n g sp ro b lem . In : F r ie d r ic h , W. & H e n n in g , W. (orgs.). D er sozialw issenschaft­


24 Cf. G o uldn er , A lin W. Die westliche Soziologie in der Krise II, p p . 5 6 5 -5 6 8 . liche Forschungsprozeß, pp. 151ss.

94 95
C o n s t i t u i n t e s da C i ê n c i a da R e l i g i ã o D e s c e n d o a t o r r e de m a r f i m

sar os seus limites originais e ganhar tam bém relevância em outros aspectos são im plicitam ente atingidos quando se fala, de acordo com
ambientes acadêmicos. Do ponto de vista da Ciência da Religião ale­ o título relativamente vago da nossa mesa-redonda, sobre “O contex­
mã, essa opção de gênese de problemas científicos tornou-se relevante to cultural na consolidação da(s) Ciência(s) da Religião”. O esquema
quando, na sociologia da religião, surgiu a proposta de um a re-no- pretende exemplificar a discussão sobre as cinco opções de gênese de
meação da disciplina em “sociologia de sistemas de conhecimento e problemas científicos.
da interpretação”, expressão de crescente disponibilidade no ambiente Segundo esse modelo, um a disciplina, em nosso caso a Ciência da
acadêmico capaz de exercer certa função legitim adora para a inclusão Religião, é encaixada em um quádruplo horizonte do qual impulsos
de novos m ovim entos religiosos como objetos de pesquisa tam bém inovadores podem influenciar o caminho intelectual de um a com u­
por parte de um a nova geração de cientistas da religião. nidade científica. Porém, é provável que, dependendo do país em que
Com o últim a opção de gênese de problemas científicos é pensável a disciplina é analisada, o esquema revele diferenças culturais nas re­
que porta-vozes de um potencial objeto de estudo entrem em conta­ lações entre a Ciência da Religião e os quatro campos que constituem
to com representantes de um a disciplina, cham ando a atenção para seu ambiente. Nesse sentido, valeria a pena um a futura comparação
novos fenômenos de estudo. Um exemplo para esse tipo de estímulo detalhada entre “o contexto cultural” alemão e o brasileiro “na conso­
extra-acadêmico é o anteriorm ente m encionado parecer que Rainer lidação da(s) Ciência(s) da Religião”. Espera-se que esta comunicação
Flasche escreveu sobre a Sociedade para a Meditação Transcendental, tenha preparado o solo para tal discussão.
depois de ter sido contatado pelo grupo.

4. Conclusão
Abstraindo das considerações mais específicas apresentadas nos
itens anteriores, apresentamos um m odelo para esquematizar quais

97
O potencial da
Ciência da Religião
de criticar ideologias
Um esboco
# sistemático
0 p o t e n c i a l da Ci ênc i a da Re l i g i ã o de c r i t i c ar i d e o l o g i a s

1. Introdução
Entre cientistas da religião na Alemanha é consensual que a crítica
à ideologia faz parte do repertório da própria disciplina. O debate so­
bre esse assunto foi instaurado por um artigo de Kurt Rudolph, publi­
cado em 1978.1Nesse ensaio, o autor tratou da critica à ideologia como
conseqüência de um estilo cognitivo do cientista da religião, um a ati­
tude caracterizada como agnosticismo metodológico.2
No seu artigo de 1978, bem como em publicações mais recentes, o
próprio Kurt Rudolph identificou as raízes do potencial crítico da Ciência
da Religião na herança espiritual da disciplina, derivada do m ovimento
inglês e francês do Iluminismo. Segundo ele, o espírito daquela época
deixou a disciplina se desenvolver de acordo com estilos cognitivos típi­
cos e valores não só como o da curiosidade em relação a culturas não-
européias, mas tam bém como o do distanciamento do cientista de pers­
pectivas estabelecidas no próprio contexto social e do protesto contra a
intolerância religiosa.3A partir dessa compreensão da história da disci­
plina, os resultados da pesquisa de cientistas da religião abrem possibili­
dades para um a crítica à ideologia, cujos destinatários são religiões par­
ticulares, e para um a problematização de seus mecanismos internos e de
seus efeitos tanto sobre o indivíduo quanto sobre a sociedade em geral.4
Em bora sem negar a argum entação de Kurt Rudolph, Hans Kip-
penberg enfatizou o Rom antismo como outra raiz espiritual da Ciên­
cia da Religião e um a segunda fonte do potencial crítico da disciplina.
O autor destacou o papel histórico desse m ovim ento como um a con-
tracrítica às tendências exageradas de racionalismo, que colocavam a
religião sob o risco de ser percebida de certa perspectiva funcionalista
ou reducionista. Nesse sentido, encontra-se um a linha de pensam ento
que pode ser lida como tentativa de resgatar a essência da religião, ante
processos espiritualm ente destrutivos em sociedades cada vez mais se-

1 Cf. R udo lph , K u rt. D ie id e o lo g ie k ritisch e F u n k tio n d er R elig io n sw issen sch aft. N u m eri, pp. 17-39.
2 Cf. Sm art, N in ia n . T h e Science o f Religion a n d the Sociology o f Knowledge.
3 Cf. R u d o l p h , K u rt. H istorical F u n d a m en ta ls a n d the S tu d y o f Religions.
4 Cf. Id. D ie re lig io n sk ritisc h e n T ra d itio n e n in d er R elig io n sw issen sch aft. In : K ip p e n b e r g , H a n s G. &
L u c h e si, B rig itte (o rg s.). R eligionsw issenschaft u n d K u ltu rk ritik , pp. 155-156.

101
C o n s t i t u i n t e s da C i ê n c i a da R e l i g i ã o O p o t e n c i a l da C i ê n c i a da R e l i g i ão de cr i t i car i d e o l o g i a s

cularizadas e céticas a respeito de manifestações religiosas.5 Sob esse O raciocínio deste capítulo tom a como ponto de partida essa si­
ponto de vista, a crítica à ideologia se refere a outro objeto, não a um a tuação deficitária. O objetivo é integrar as duas opções, já elaboradas e
religião que é problematizada, mas a um a sociedade cujos m em bros m encionadas, da crítica à ideologia e, ao mesmo tempo, apontar para
fazem parte da construção social de um a realidade na qual fenômenos três outros aspectos relevantes, ainda não suficientemente considera­
religiosos são tratados como pré-m odernos e disfuncionais. dos. Tais tentativas se baseiam conceitualmente na doutrina de “ído­
los” de Francis Bacon, um a abordagem que, em bora pareça simples
à prim eira vista, representa um a das prim eiras articulações de crítica
2. Problematização explícita à ideologia.

Graças a essa discussão metateórica, foram elaboradas várias im ­


plicações da função da crítica à ideologia da Ciência da Religião. Toda­ 3. A doutrina de ídolos de Francis Bacon
via, tanto por causa de um a justificativa prim eiram ente histórica desse
aspecto, quanto devido à falta de reflexão mais pragm ática do ponto de
como base conceituai da reflexão
vista de pesquisas concretas sobre temas atuais, o debate chegou a um sobre o potencial da crítica à ideologia
estágio não completam ente satisfatório. Nesse contexto especialmente
dois aspectos precisam ser destacados. da Ciência da Religião
Primeiro, o debate tem m ostrado a tendência de seus participan­
tes em associar as mencionadas duas linhas da crítica à ideologia a Esboço da doutrina dos ídolos
determ inadas “escolas de pensam ento”. Em outras palavras: a crítica
à ideologia apareceu alternadam ente ou como dedução do ram o “re- No contexto da sua argum entação em favor do m étodo experi­
ducionista” ou como derivada da Fenomenologia da Religião. E, em m ental e indutivo como único recurso legítimo nas ciências exatas, o
qualquer dos casos, com pré-requisitos teóricos diferentes e resultados filósofo inglês Francis Bacon (1561-1626), um dos pioneiros do Em­
específicos, até contraditórios, se não inconciliáveis, em função da for­ pirismo, identificou quatro tipos de obstáculos que dificultam ou até
te briga de métodos nos anos 1960 e 1970, quando as duas abordagens mesmo im pedem um conhecimento adequado da realidade. Segundo
foram discutidas como distintas e incompatíveis em vários pontos. ele, esses “ídolos”, como os chamou, estão “firmem ente enraizados” na
Nesse sentido, encontra-se, dentro da com unidade de cientistas da re­ m ente hum ana e ocupam -na, a não ser que “se tenha cautela com eles
ligião na Alemanha, um a leitura quase dicotômica não só da história e se proteja deles na m edida do possível”.6 Bacon deu a “seus” ídolos
da própria disciplina, mas tam bém da função que a Ciência da Religião nom es metafóricos, assim distinguindo entre o ídolo da tribo, o ídolo
pode exercer a respeito da crítica à ideologia. da caverna, o ídolo do mercado e o ídolo do teatro.
Segundo, a perspectiva sobretudo histórica levou a certa desaten­ Com a expressão ídolo da tribo, o filósofo inglês destacou que
ção de outras dimensões do assunto. Foi negligenciada especialmente seres hum anos são incapazes de conceber a realidade em todos os
a interpretação adequada da Sociologia do Conhecimento ou da So­ detalhes, em função de suas condições antropológicas, ou seja, devi­
ciologia da Ciência. do a lim itações do seu instrum entário natural que som ente perm ite

5 Cf. K ip p e n b e r g , H an s G. E in leitu n g : R elig io n sw isse n sc h aft u n d K u ltu rk ritik . I n : _______ & L u c h e s i , B ri­ 6 B acon, F rancis. D ie Id o le n leh re. In: Lenk, K u rt (o rg .). Ideologie, Ideologiekritik, W issenssoziologie, esp e­
g itte (orgs.). Religionsw issenschaft u n d K u ltu rk ritik , pp. 20-21. c ia lm e n te p. 50. N esta fo n te, e n c o n tra m -s e ta m b é m to d a s as o u tra s citaçõ e s d este item .

103
C o n s t i t u i n t e s da C i ê n c i a da R e l i g i ã o O p o t e n c i a l da Ci ên c i a da R e l i g i ão de c r i t i c a r i d e o l o g i a s

acesso a certos segmentos e a certas camadas da complexa existência Discussão


empírica. Para ilustrar os efeitos desse ídolo, com parou a m ente h u ­
m ana a um espelho, cuja superfície desigual desvia os raios da luz e O subitem anterior m ostrou que já foram abordadas por Francis
leva a certa representação distorcida da verdadeira natureza dos fatos Bacon as duas linhas de crítica à ideologia destacadas por cientistas
refletidos. da religião contemporâneos. Ao m esm o tem po, a articulação pioneira
Enquanto o prim eiro ídolo é o mais geral e aponta para restri­ da crítica à ideologia pelo filósofo inglês aponta para aspectos com
ções da espécie hum ana, o segundo, o ídolo da caverna, é mais con­ freqüência om itidos no debate metateórico atual. Assim, ele contribui
creto, um a vez que se refere aos requisitos, fisiológicos e psicológicos, indiretam ente para um a reflexão mais abrangente sobre essa função da
com os quais o indivíduo nasce, bem com o às condições, biográficas Ciência da Religião.
ou sociais, nas quais ele cresce. Trata-se aqui, po r exemplo, de talen­ O ídolo do m ercado é um dos dois aspectos da doutrina de Ba­
tos e de interesses, com o tam bém de lim itações e restrições p articu­ con que pode ser im ediatam ente interpretado como antecipação de
lares que, como Bacon escreveu, deixam o indivíduo aparecer como argum entos aproveitados no debate dos últimos anos sobre a crítica
se vivesse “em um a caverna ou gruta que desvia e obscurece a luz à ideologia como função da Ciência da Religião. Como já foi dito, de­
natu ral”. senvolveu-se, associada à Fenomenologia da Religião, um a variação da
crítica à ideologia, focando condições sociais que tendem a negar a le­
Os dois outros ídolos resultam do intercâm bio social do sentido
gitimidade de manifestações religiosas no seio de um a sociedade m o­
ou da com unicação cotidiana, ou ainda da discussão sobre teorias,
derna. Em seu texto, o filósofo inglês cham ou a atenção para distorções
conceitos e term os científicos e sua adoção pelo público de leigos.
da consciência devido a processos de comunicação cotidiana com pos­
Segundo o m esm o autor, o terceiro ídolo perm eia a m ente hum ana
ta por term os e conceitos pré-teóricos, mas que, do ponto de vista da
“devido ao contato m útuo e à com unidade de gênero hu m an o ” no
m aioria da sociedade, são im ediatam ente “plausíveis”. A história prova
am biente da sociedade, um a constelação a respeito da qual cunhou
a validade de tais processos e seus efeitos coletivos.
a noção de ídolo do mercado. Este ídolo consiste tipicam ente em
Q uanto ao atual discurso público sobre religião, pelo m enos em
construções lingüísticas, frases e designações inadequadas, particu ­
vários países europeus, freqüentem ente se encontra um vocabulário
larm ente no nível da fala cotidiana, um a vez que “palavras violam o
carregado de rótulos como “atraso”, “pré-m odernidade”, “superstição”,
intelecto, perturbam tudo e seduzem os indivíduos a inúm eras e vãs
“irracionalidade” ou até “fanatism o”. Em prim eiro lugar, essas desig­
desavenças e ficções”.
nações pejorativas aplicam-se a fenômenos religiosos fora de padrão
Sob a categoria do ídolo do teatro, Bacon concebe os “princípios e do Estado secularizado. O fato de que esses preconceitos estejam pro ­
teoremas [...] que ganharam validade por tradição, credulidade e ne­ fundam ente enraizados na opinião pública não só justifica retrospecti­
gligência”, ou seja, conceitos incorretos que exigem autoridade ilegíti­ vamente a competência analítica de Bacon, mas tam bém a posição de
m a somente pelo fato de que se têm infiltrado na m ente hum ana, con­ cientistas da religião que argum entam em favor de um a crítica à ideo­
tribuindo para um a incongruência entre a consciência e a verdadeira logia de um espírito de época que corre o risco de escavar, por m eio de
natureza da realidade empírica. tendências anti-religiosas, princípios fundam entais do Estado liberal.
Sob todas essas circunstâncias, Francis Bacon enfatizou a necessi­ As reflexões de Francis Bacon sobre o ídolo do teatro são tão re­
dade de evitar os efeitos negativos dos ídolos: “Com intenção firme e levantes como as sobre o ídolo do m ercado para a discussão recente a
solene, a m ente tem que ser liberada e expurgada deles”. respeito da função da crítica à ideologia da Ciência da Religião. Elabo­

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C o n s t i t u i n t e s da C i ê n c i a da R e l i g i ã o O p o t e n c i a l da Ci ênc i a da Re l i g i ão de c r i t i c ar i d e o l o g i a s

rando as implicações de tal ídolo, ele exprim iu forte ceticismo a “p rin ­ obra famosa de Thomas S. Kuhn, A estrutura das revoluções científicas,7
cípios e teoremas [...] que perturbam a m ente” e se referiu explicita­ W eingart distinguiu cinco denotações principais com as quais o term o
m ente a “seitas”, à religião e à Teologia como entidades responsáveis é usado nesse livro. Segundo ele, a noção de paradigm a representa,
para a produção de “fábulas” que “ganharam validade por tradição, entre outros significados, a idéia de um a cosmovisão com partilhada
credulidade e negligência”. Dessa m aneira, encontra-se já na aborda­ por determ inada com unidade científica, condições intelectuais que
gem desse filósofo um a perspectiva crítica para mecanismos internos prefiguram as teorias e pesquisas dessa comunidade. Com base nessa
da religião e seus efeitos individuais e sociais. Em outras palavras, com interpretação, um paradigma pode ser fonte de ideologia porque serve
seu ídolo do teatro, antecipou um segundo elemento que se tornaria como “filtro” de percepção que destaca certos segmentos da realidade,
central na discussão contem porânea dentro da Ciência da Religião a mas ofusca outros ao negligenciá-los como cientificamente “irrelevan­
respeito de suas fimções disciplinares. tes”. Nesse sentido, o conceito de paradigma implica a idéia de certa
Todavia, o com entário dele a respeito de seu quarto ídolo revela “distorção” da mente. Isso vale para qualquer em preendim ento cientí­
um m om ento adicional em relação às duas linhas predom inantes de fico, inclusive o da Ciência da Religião. Correspondentem ente se pode
tal discussão. É notável que identificasse o ídolo do teatro não somente exigir que cientistas da religião devam institucionalizar, como um a de
com fenômenos do m undo religioso, mas ainda com “certos princí­ suas rotinas acadêmicas, o costume de auto-reflexão crítica da própria
pios e ensinam entos científicos”. É evidente que essa alusão se referiu abordagem para entender m elhor as limitações da sua disciplina.
a hipóteses, a teoremas e a m étodos típicos de abordagens que não Apesar de esse ponto não estar incluído na doutrina de ídolos,
correspondiam com seu próprio ideal de ciência exata. Nesse sentido, Francis Bacon m ostrou um a sensibilidade para outro aspecto que, na
Bacon argum entou em favor de um a instância crítica sobre pesquisas discussão atual sobre a função crítica da Ciência da Religião, tam bém
e teorias localizadas em círculos científicos não-em piristas. A lógica não foi ainda suficientemente refletido. Tal aspecto se deduz a partir
dessa idéia abre espaço para a interpretação de que um a das maneiras dos dois prim eiros ídolos, ou seja, do ídolo da tribo e do ídolo da caver­
de a Ciência da Religião desenvolver seu potencial crítico é m ediante a na. Referem-se a distorções da m ente que cada cientista traz consigo
reflexão de implicações ideológicas de outras disciplinas. Sendo assim, devido a suas condições físicas e mentais, biográficas e familiares. Na
há, além de discursos públicos sobre fenômenos religiosos e de m e­ Ciência da Religião, esses fatores são am plamente discutidos com base
canismos internos da religião e seus efeitos individuais e sociais, um na preocupação de que valores e convicções particulares podem atra­
terceiro “destinatário” da crítica à ideologia: comunidades científicas palhar o ideal da neutralidade com a qual o pesquisador se com prom e­
engajadas no estudo sobre questões religiosas de acordo com norm as te quando exerce sua profissão.
metateóricas diferentes das da Ciência da Religião. A discussão freqüente sobre a relação precária entre o cotidiano
Não se encontra, porém , no texto de Francis Bacon, um a reflexão e o científico reflete a necessidade intradisciplinar de dim inuir inter­
crítica de nenhum em preendim ento científico. O Empirismo, o seu fa­ ferências ideológicas que tenham origem na vida pessoal do cientista.
vorito, não foi tematizado como portador potencial de distorções da Todavia, a perspectiva se reverte quando se coloca a questão de como
mente. O insight de que nenhum contexto acadêmico é livre de inter­ um a formação intelectual que promove um a atitude de neutralidade
ferências ideológicas surgiu mais recentemente. É, em especial, m érito influencia o pensam ento do cientista da religião na sua esfera privada.
da Sociologia do Conhecimento e da Sociologia da Ciência. Espera-se que a imparcialidade assumida por um cientista da religião
As implicações de tais abordagens se tornam claras a partir da
definição de paradigma sugerida por Peter Weingart. Referindo-se à 7 Kuhn, T h o m a s S. A estrutura das revoluções cien tífica s, p . 13.

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O p o t e n c i a l da Ci ên c i a da Re l i g i ã o de c r i ti car i d e o l o g i a s
C o n s t i t u i n t e s da C i ê n c i a da R e l i g i ã o

em sua função acadêmica im ponha-se, gradativamente, tam bém como Um aspecto, porém , falta na doutrina de ídolos: certo olhar crítico
atitude cotidiana, fazendo com que esse indivíduo distancie-se de si de Bacon para seu próprio paradigma. Nesse ponto, a Ciência da Reli­
mesmo e desenvolva a capacidade de avaliar conceitos e m odos de vida gião recebe impulsos de abordagens sociológicas mais recentes.
alternativos, inclusive os de outras religiões, de m aneira mais racional
e objetiva. 4. Exemplificação do potencial crítico
da Ciência da Religião
Resumo
A doutrina de ídolos de Francis Bacon, um a das prim eiras ar­
A sociedade como destinatária
ticulações críticas à ideologia, contribui para a discussão da Ciência de uma crítica à ideologia
da Religião sobre o tema. Com seus comentários relativos ao ídolo do
mercado e ao ídolo do teatro, ele antecipou, ainda que de m aneira rudi­ Em artigo de H ubert Seiwert8 há um a reflexão diferenciada so­
m entar, as duas linhas hoje predom inantes no debate correspondente bre a função crítica da Ciência da Religião no sentido de correção de
preconceitos e julgamentos irracionais enraizados na opinião pública
entre cientistas da religião. Todavia, diferentemente da tendência atual
sobre certos fenômenos religiosos. Ele justifica um engajamento de
de dicotomizar essas duas linhas como opções alternadas, a abordagem
cientistas da religião em debates políticos relevantes e aponta, através
de Bacon trata os dois ídolos como variações equivalentes de um pro­
do exemplo do tratam ento pejorativo dado a novos m ovim entos re­
blem a mais abrangente. Além disso, as demais implicações do ídolo do
ligiosos em alguns países europeus, para a responsabilidade social da
teatro apontam para um papel crítico da Ciência da Religião, em geral
Ciência da Religião.
negligenciado pela discussão contem porânea. Nesse sentido, a disci­
plina pode desenvolver, no contexto de discussões interdisciplinares O fato de que o próprio Seiwert fora convocado com o especialista
pela comissão do governo alemão sobre seitas, prova que seu raciocí­
sobre assuntos relativos à religião, um a função crítica a elementos ideo­
nio elaborado no artigo m encionado é mais do que um a articulação
lógicos introduzidos por outras ciências.
idealista de um status desejado da disciplina. Na verdade, depois de
Um quarto aspecto, tam bém com freqüência relegado nas refle­ décadas nas quais a Ciência da Religião manteve-se ausente do debate
xões metateóricas acerca da Ciência da Religião, resulta de com entá­ polêmico sobre novos m ovim entos religiosos, a disciplina, pelo m enos
rios de Francis Bacon tanto sobre o ídolo da tribo quanto sobre o ídolo na Alemanha, desem penha atualmente papel im portante e em inen­
da caverna. Foi proposto que a necessidade de um cientista da religião tem ente político nessa controvérsia. A participação construtiva nesse
“disciplinar” suas preferências e convicções particulares, quando tra ­ discurso e seu efeito tranqüilizante a respeito da indignação pública
balha de acordo com as regras da sua com unidade científica, pode ter sobre fenômenos religiosos fora de padrão é um bom exemplo da ca­
repercussões em sua vida privada. Tratar-se-ia de efeito colateral no pacidade da Ciência da Religião de assumir o prestígio de um a instân­
cotidiano individual de um estilo de pensam ento propagado na esfera cia crítica a ideologias m antidas pela m aioria social.
acadêmica. Pode-se conceber esse efeito em term os de crítica à ideolo­
gia, na m edida em que a atitude de neutralidade, cultivada através da 8 S e iw e r t , H . O p ro b le m a d as “seitas”: a o p in iã o p ú b lica, o c ie n tista e o E stad o . In : R ever, 2 0 0 1 ,1 ,2, p p . 21-
prática da Ciência da Religião, possibilita que o indivíduo ganhe m aior 45 < h ttp ://w w w .p u c s p .b r/re v e r/rv 2 _ 2 0 0 1 /t_ h u b e rt.h tm .>. O te x to o rig in a l e m alem ão , “E in leitu n g :
D as ‘S ek te n p ro b lem ’, ö f fe n tlic h e M ein u n g , W isse n sc h a ftle r u n d d e r S ta a t”, é a in tro d u ç ã o [pp. 9-38]
objetividade tam bém no seu cotidiano, quando confrontado com al­ ao liv ro d e M assim o In tro v ig n e: Schluß m it den Sekten ! D ie K ontroverse über “S e k te n ” u n d n eue religiöse
B ew egungen in Europa. M a rb u rg , D iag o n al, 1998.
ternativas que diferem de suas próprias preferências.
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C o n s t i t u i n t e s da C i ê n c i a da R e l i g i ã o O p o t e n c i a l da Ci ên c i a da R e l i g i ão de c r i t i c ar i d e o l o g i a s

O utro exemplo provando a competência crítica da disciplina refe­ às matérias chamadas “conhecimento sobre religiões”, “norm as e valo-
re-se ao ensino religioso não-confessional, institucionalizado nas esco­ res ou e tic a .
las alemãs sob nomes como “conhecimento sobre religiões”, “norm as e Um m anual didático escrito por Udo Tworuschka trabalha essa
valores” ou “ética”. Trata-se de ofertas alternativas para alunos que não questão de form a mais concreta e detalhada.10 Encontra-se nessa p u ­
querem participar de aulas de orientação cristã (católica ou luterana). blicação um capítulo que problem atiza o uso de classificações polêm i­
Os conteúdos dessas m atérias exigem referência a diferentes discipli­ cas e term os prejudiciais em discursos cotidianos sobre religiões. Os
nas auxiliares, entre elas a Filosofia e a Ciência da Religião. Q uanto à exemplos que esse autor discute exercem, em prim eiro lugar, função
última, a pretensão de contribuir o m elhor possível para tal desenvol­ didática. Além disso, dem onstram de m odo exemplar como a Ciên­
vim ento curricular estimulou entre cientistas da religião um a reflexão cia da Religião cum pre sua aspiração de servir como instância críti­
m etateórica correspondente. ca a ideologias enraizadas na consciência coletiva e lingüisticamente
Nesse contexto, encontra-se um artigo de Peter Antes tem atizando desdobradas. A m aneira com a qual ele aborda esse assunto desperta
o potencial crítico da Ciência da Religião no âmbito escolar, a partir do associações com o ídolo do mercado descrito por Francis Bacon. Tal
qual podem se desenvolver, a longo prazo, efeitos para a sociedade in­ capítulo relevante enum era vários term os negativamente conotados,
teira. Ele argum enta que um curso sobre religiões não-cristãs, dado em por exemplo, rótulos como pagão ou seita, e explica, do ponto de vista
determ inada atmosfera não-m issionária e liberal, e didaticam ente rea­ da Ciência da Religião, por que designações desse tipo devem ser ex­
lizado com empatia para “o outro”, é não somente capaz de induzir o cluídas do vocabulário popular.
aluno a um a apreciação da riqueza do m undo religioso, mas, também, Ainda mais instrutivo, porém , é o item que trata de expressões
sensibilizá-lo para o fato de que seus sentimentos e pensam entos sejam referentes a manifestações religiosas, expressões ingenuam ente apro­
determinados por certa tradição religiosa. Dessa m aneira, desenvolve, veitadas como metáforas para manifestações seculares. Tworuschka
no decorrer do curso, a capacidade de pôr em dúvida a plausibilidade escreve: “Já faz tem po que algumas palavras entraram em nossa lín­
“natural” da sua própria cosmovisão. gua e agora se torna difícil excluí-las. Por exemplo, se nós queremos
suprim ir certas instituições estabelecidas, dizemos que abatemos ‘va­
É justam ente nesse ponto que se revela a relevância política da
cas sagradas’, e com isso ofendemos o hinduísm o”.11 Problemáticas são
Ciência da Religião. Peter Antes afirma que:
tam bém frases como “O M aracanã é o templo do futebol” ou “Imola
A contribuição da Ciência da Religião consiste em possibilitar compa­ é a Meca da Fórmula 1”. O autor reclama o costume de utilizar essa
rações contrastantes entre sistemas de referência. Aprende-se que palavra como banalidade: “Deve-se ter consciência de que tal term o
nenhum ser humano que tem sua língua, seus pensamentos e seus designa o santuário central do Islã. A fala sobre Meca [...] é repugnante
valores, pode viver sem nenhum sistema de referência. Aprende-se
para m uçulm anos, para não dizer que, nestes casos, o term o assume
também que nenhum sistema de referência pode ou deve reclamar
validade absoluta. Com isso, desmascara-se qualquer forma de um um a conotação de blasfêmia”.12
eurocentrismo como uma ilusão perigosa.9 Ao criticar essa escolha lexical inadequada, a Ciência da Religião
resgata valores de m inorias religiosas e contribui para a diminuição de
O artigo de Antes traz um a reflexão básica sobre o potencial críti­ tensões entre grupos que constituem um a sociedade multicultural.
co que a Ciência da Religião introduz em currículos escolares relativos
10 Cf. Tw o ru sc h k a , U d o . M ethodische Zugänge z u den W eltreligionen.

9 A ntes, P eter. D er B eitrag der R elig io n sw issen sch aft zum A lte rn a tiv -U n te rric h t. D er evangelische E rzie­ 11 Ib id ., p. 126.
her, p. 163. 12 Ibid., p. 127.

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Religiões como destinatárias trina bíblica de criação seja “apenas” um a imaginação simbólica de
eventos cósmicos.
de uma crítica à ideologia
Exemplos desse tipo apontam para o fato de que comunidades re­
No decorrer da história da disciplina, a problematização de cons­ ligiosas estão envolvidas em um processo perm anente de intercâmbio
tituição de comunidades religiosas, ou do caráter da religião em geral, com outros subsistemas sociais. Nesse sentido, religiões exercem influên­
é a opção mais acentuada dentro do espectro das cinco possibilidades cia em vários segmentos da sociedade e recebem, ao mesmo tem po, im ­
de realizar um a crítica à ideologia do ponto de vista da Ciência da pulsos do ambiente, inclusive de subsistemas da esfera acadêmica. As­
Religião. Aspectos como a organização hierárquica de instituições re­ sim, um insight da Ciência da Religião em certos mecanismos internos
ligiosas, o poder de sacerdotes sobre leigos ou a função da religião a de um a dada religião pode repercutir na com unidade investigada. Os
respeito da legitimação de regimes políticos têm sido freqüentem ente resultados da pesquisa podem levar a esforços de corrigir os aspectos
analisados. problemáticos. Um dos exemplos mais evidentes nesse sentido se refe­
re às atividades de orientalistas britânicos na índia e a prova filológica
Inúm eras obras correspondentes dem onstram que se trata aqui de
que um a prática tão cruel como a incineração de viúvas não era san­
um dos temas clássicos da disciplina. Segundo Jacques W aardenburg, a
cionada pela literatura sagrada hindu. A identificação, ou seja, a desva­
Ciência da Religião possui, entre outras,
lorização desse rito como m ero costume popular se tornou argum ento
[...] a tarefa importante de indicar casos nos quais a religião, em im portante dentro do chamado neo-hinduísm o. Abriu cam inho não
contextos concretos, foi, ou ainda é, usada contra homens e mulhe­ só para reformas internas, mas tam bém para intervenções políticas que
res. Muitas vezes, a religião tem a função de disfarçar, ou seja, por oficialmente proibiram essa prática e prom overam um a emancipação
sua causa certos fatos são representados de forma que situações e
processos reais ficam dissimulados. Em princípio, todas as religiões
social de viúvas através de um a série de leis votadas entre 1829 e 1856.14
podem ser usadas por certos interesses e podem causar compor­ Um segundo exemplo, porém de outro tipo e mais recente, tem a
tamentos destrutivos. A Ciência da Religião, pois, não deve aceitar ver com um projeto realizado pelo Centro de Estudos sobre Religião
ingenuamente articulações religiosas como aparecem à primeira
vista, mas tem que investigar os motivos que estão na sua base, nas e Sociedade, na Universidade de Victoria, no Canadá.15 Tratou-se de
suas interpretações e suas práticas.13 um a tentativa de unir, sob a égide da Ciência da Religião, não somente
especialistas de várias disciplinas, mas ainda representantes de diversas
Análises sobre assuntos m encionados po r W aardenburg podem religiões. O objetivo desse projeto era desenhar cenários futuros em
ter efeito nas próprias religiões, do m esm o jeito que resultados da reação a problemas globais como o do efeito estufa. Harold Coward,
pesquisa filológica, histórica ou astrofísica causavam revisões e rein- coordenador do projeto, relatou que se tornou evidente, no decorrer
terpretações na Teologia cristã. Tem sido difícil para representantes da pesquisa, que “em nenhum a religião pudem os encontrar um a res­
do cristianism o continuar, de form a tradicional, com a pretensão de posta já pronta à problem ática m últipla e complexa”. Segundo ele, “este
fazer parte de um a religião m eram ente baseada na revelação divina, desafio exigia um a Teologia verdadeiramente nova do ponto de vista
ante descobertas dos contatos e interferências culturais entre Israel e de cada religião” envolvida no projeto.16
seus vizinhos desde tem pos pré-bíblicos. Da mesm a m aneira, é inevi­
tável aceitar, devido à popularidade da teoria do big bang, que a dou- 14 Cf. M üller, H an s-P e ter. D te K m akrishna-B ew egung, p. 2.
15 Cf. < h ttp ://w e b .u v ic .c a /c s rs >.
16 C o w a r d , H aro ld . T h e c o n trib u tio n o f relig io u s stu d ie s to pu b lic policy. S tudies in Religion/Sciences R eli­
13 W a a r d e n b u r g , Jacques. Religionen u n d Religion, p. 59. gieuses, p. 492.

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Assim, o Centro de Estudos sobre Religião e Sociedade criara um a Porém, um m elhor exemplo para a função crítica que a Ciência
situação de laboratório cuja dinâm ica não somente facilitou a com u­ da Religião pode exercer em diálogos interdisciplinares refere-se nova­
nicação entre religiões diferentes, mas tam bém dentro de comunidades m ente à discussão sobre seitas na Alemanha - já m encionada antes, sob
particulares. Nesse sentido, a Ciência da Religião desem penhou o pa­ outra perspectiva, no subitem A sociedade como destinatária de uma
pel de “anfitriã” e conseguiu estimular, por parte de religiões que par­ crítica à ideologia (p. 109). Em um a prim eira fase, até o início dos anos
ticiparam da pesquisa, um a auto-reflexão crítica sobre o inventário teo­ 1980, essa discussão foi dom inada, tanto na esfera pública quanto na
lógico com a qual cada um a das tradições havia entrado no projeto. acadêmica, por declarações e publicações de teólogos, especialmente
os da Igreja luterana. Os artigos e livros produzidos em grande núm ero
nessa prim eira fase desenhavam, de m aneira estereotipada e por meio
Outras disciplinas como destinatárias de um vocabulário carregado de conotação negativa, um perfil extre­
de uma crítica à ideologia m am ente restrito e pejorativo de vários novos m ovim entos religiosos.
Por falta de estudos detalhados sob um ponto de vista neutro, tais p u ­
O projeto relacionado ao problema do efeito estufa não foi o único blicações eram as únicas fontes de referência, não só para leitores co­
realizado pelo Centro de Estudos sobre Religião e Sociedade, na U ni­ m uns, mas tam bém para representantes de outras ciências, sobretudo
versidade de Victoria, nos últimos anos. Houve tam bém , por exemplo, para psicólogos, sociólogos e pedagogos. Membros dessas com unida­
um a pesquisa sobre o potencial de várias religiões para promover a des científicas reagiram à forte repercussão desse tema na sociedade
paz. O utro exemplo é a investigação sobre as contribuições de religiões alemã e se sentiram atraídos por assunto tão “relevante”.
diferentes a respeito de problemas que o sistema canadense atualmente De acordo com abordagens típicas das disciplinas mencionadas, a
sofre com relação a seu processo penal. imagem negativa de seitas se desdobrou. Psicólogos, por exemplo, tema-
Todos esses projetos tiveram caráter interdisciplinar e em cada um tizaram o fenôm eno de acordo com a teoria de narcisismo ou da hipó­
dos casos a Ciência da Religião agiu como quadro referencial quanto à tese freudiana de compensação. Sociólogos levantaram como hipótese
coleta de dados, à sistematização de resultados e à divulgação de suas à adesão a um a seita “fechada” o desejo do indivíduo de fugir da com ­
conclusões. Justamente nesse papel, o Centro de Estudos sobre Religião plexidade da pós-m odernidade. Reflexões do ponto de vista da pedago­
e Sociedade cum priu im portante função acadêmica. Integrou-se num gia m ostraram um interesse de prevenção e de correção de certo com ­
contexto universitário m ajoritariam ente composto por pesquisadores portam ento “pseudo-religioso” fora de padrão e destacaram a necessi­
cujos campos de especialidade, norm alm ente, não colocam em posi­ dade de terapia e reintegração social de ex-membros desses grupos.17
ção de destaque o papel construtivo de religiões no m undo m oderno. Até hoje, a discussão alemã sobre novos m ovim entos religiosos não
O coordenador do Centro, o próprio Howard Coward, enum era como está livre dessas tendências. Todavia, em comparação com a prim eira
ciências envolvidas algumas extremamente “secularizadas”, como D i­ fase, a situação m udou consideravelmente. Em grande parte, tem sido
reito, Economia ou Biologia. Ao cham ar a atenção para a atualidade de m érito de cientistas da religião, pois, com poucas exceções, eles en­
tradições religiosas na busca de respostas a problemas globais urgentes, traram relativamente tarde no debate, mas se tornaram cada vez mais
o Centro de Estudos sobre Religião e Sociedade alargou as perspecti­ ativos a partir da segunda metade dos anos 1980. C ontribuíram , em
vas de representantes de outras disciplinas. Mostra-se aqui um a opção três sentidos, para o debate acadêmico interdisciplinar sobre o tema.
particular de crítica à ideologia, pelo m enos quando se propõe que
certa perspectiva restrita assemelha-se à “distorção da m ente” causada 17 C f . U s a r s k i , F r a n k . D ie Stig m a tisieru n g neuer spiritueller B ew egungen in der B undesrepublik Deutschland-,
por um dos ídolos descritos por Francis Bacon. pp. 15-30.

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Primeiro, autores como Rainer Flasche18 e G ünter Kehrer19 de­ ou culto destrutivo. A literatura mais recente, produzida por cientistas
m onstraram a base preconceituosa do debate e apontaram para os de disciplinas diferentes, m ostra que essa crítica lingüística teve efeito.
interesses extra-acadêmicos de teólogos que tinham inaugurado o de­ Além disso, cientistas da religião introduziram reflexões gerais a res­
bate contra seitas e que dominavam, nessa época, tam bém a discussão peito da relação entre líderes espirituais e seus discípulos. Peter Antes,
interdisciplinar. por exemplo, indicou que a simbiose entre um “guru” de um a nova
Segundo, surgiram, na segunda m etade dos anos 1980, em núm e­ religião e seus discípulos, considerada típica de novas seitas, tem para­
ro crescente, publicações escritas sob a perspectiva da Ciência da Reli­ lelo em religiões tradicionais e respeitadas.21 O utros autores argum en­
gião, que abordaram o assunto sobre novos movim entos religiosos de taram que em inúm eros casos se encontra o financiamento de um a
m aneira comparativa. Assim foram elaborados traços idênticos ou se­ com unidade religiosa através de atividades econômicas “m undanas”.
melhantes entre os grupos contem porâneos estigmatizados como sei­ Tais casos não devem ser autom aticam ente associados a tentativas de
tas e outras comunidades socialmente toleradas. Outras obras destaca­ certos grupos contem porâneos de assumir o rótulo “religião” para evi­
ram até m esm o estruturas comuns na história da religião e indicaram tar o pagamento de impostos.22
que, em m uitos aspectos, novos movim entos religiosos não diferem de Os dois exemplos referidos neste subitem apontam para duas va­
princípios e elementos característicos para religiões em geral. riações de um a crítica à ideologia cujas destinatárias são outras ciên­
Terceiro, conforme já m encionam os no capítulo anterior, m ani­ cias. No caso do Centro de Estudos sobre Religião e Sociedade, na Uni­
festou-se no seio de um pequeno grupo de estudantes da Universidade versidade de Victoria, a antecipação da Ciência da Religião em diálogos
de M arburg o Religionswissenschaftlicher M edien-unä Informations­ interdisciplinares am pliou o horizonte de representantes de disciplinas
dienst [REMID],20 que se com prom etia com as norm as metateóricas em que os estudos norm alm ente não promovem a reflexão sobre o
da Ciência da Religião. Mais tarde, foi fundada pelas mesmas pessoas a papel construtivo de religiões no m undo contemporâneo.
editora Diagonal, form alm ente independente, mas praticam ente asso­ Q uanto à discussão sobre seitas na Alemanha, m ostrou-se a im ­
ciada com o REMID. Entre vários outros projetos, a editora Diagonal portância da abordagem comparativa representada pela Ciência da
publica a revista Spirita, que regularmente traz artigos sobre temas re­ Religião. Dessa maneira, o debate acadêmico não se lim itou a repetir
lativos a novos m ovim entos religiosos e o debate polêmico sobre eles. o que já fora discutido pelo público, mas abriu novas perspectivas de
Ao se transform ar em um a entidade profissional, o REMID tornou-se discussão interdisciplinar.
um desafio para o Evangelische Zentralstelle fü r Weltanschauungsfragen
[EZW], um a instituição semelhante ligada à Igreja luterana.
Tudo isso aum entou a influência da Ciência da Religião no debate
O cientista da religião em sua vida privada
interdisciplinar sobre novos movim entos religiosos. Cientistas da re­ como destinatário de uma crítica à ideologia
ligião problematizavam freqüentem ente o uso de term os pejorativos
quando se falava de novas religiões, especialmente palavras como seita O aspecto teórico chave a respeito da questão abordada neste su­
bitem é a hipótese de Alfred Schütz de que a esfera da ciência é predo­
m inada pela consciência de seus representantes que difere qualitati-
18 Cf., p o r ex e m p lo , F l a s c h e , R ain er. Ju g en d relig io n en zw ischen V e ru n g lim p fu n g u n d V erfolgung? G ew is­
sen u n d Freiheit, p p. 50ss.
19 Cf., p o r ex em plo, K ehrer, G ü n ter. K irch en , S ekten u n d d er S taat. Z u m P ro b lem d er relig iö sen T oleranz, 21 Cf. A ntes, P eter. D er H in d u is m u s u n d h in d u istis c h e Ju g en d relig io n en in D eu tsch lan d . In: M en sen ,
ln : G l a d ig o w , B u rk h a rd (org.). S ta a t u n d Religion, pp. 142ss. B e rn h a rd (o rg .). fugendreligionen (Vortragsreihe 1979/80). pp. 23ss.
20 Cf. < h ttp ://w w w .u n i-le ip z ig .d e /~ re lig io n /re m id .h tm >. 22 Cf. U s a r s k i, o p . c i t . , p p . 123-125.

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vãmente do estilo cognitivo típico do cotidiano. Schütz enfocou essas fenômeno como simplesmente existentes, ausentes da necessidade de
duas maneiras de tratar o m undo m ediante a dicotomia “atitude teóri­ explicação”.25 Com isso, exigiu que um cientista institucionalize, como
ca” versus “atitude natural”. instância interna, a chamada dúvida metodológica. Essa dúvida se refe­
Peter L. Berger e Thomas Luckmann, os dois mais reputados re­ re a qualquer segmento da realidade, até mesmo aqueles aspectos que
presentantes da Sociologia do Conhecimento e discípulos de Alfred parecem não-problem áticos do ponto de vista de um a atitude natural
Schütz, conhecido como fundador da Sociologia Fenomenológica, na vida particular do cientista.
descrevem a atitude natural da seguinte maneira: Uma aplicação da idéia de tensão entre atitude natural e atitude
teórica no campo da Ciência da Religião encontra-se no livro O que é
A atitude natural é a atitude da consciência do senso comum [...]. Ciência da Religião?, escrito por Hans-Jürgen Greschat, professor na
A realidade da vida cotidiana é admitida como sendo a realidade.
Universidade de M arburg. Essa obra traz, de m aneira exagerada, a se­
Não requer maior verificação, que se estenda além de sua simples
presença. Está simplesmente aí, como facticidade evidente por si guinte caracterização da vida cotidiana, inclusive a de um pesquisador
mesma e compulsória. Sei que é real. Embora seja capaz de empe­ da religião:
nhar-me em dúvida a respeito da realidade dela, sou obrigado a sus­
pender esta dúvida ao existir rotineiramente na vida cotidiana.23
Nossos mecanismos de defesa funcionam automaticamente. Algo
dá o alerta e o resto acontece quase autonomamente. Nós reagi­
Deve-se destacar que a atitude natural não se restringe a consti­ mos como robôs, rotineiramente, pois nós somos programados.
[...] Alguns deles determinam nosso comportamento desde nossa
tuintes m eram ente cognitivos. Trata-se de um a posição na vida cotidia­ infância, outros são assumidos mais tarde. Identificados com nossos
na que depende da personalidade de hom ens e mulheres em todos os programas, reagimos robotizadamente. Aquilo com que nos identi­
seus aspectos, inclusive crenças e valores religiosos. ficamos, esforça-nos, diminui nossa liberdade de reagir de maneira
diferente.26
Tanto Alfred Schütz quanto Peter L. Berger e Thomas Luckmann
caracterizam a vida cotidiana como esfera coletiva: “A realidade da vida
cotidiana [...] apresenta-se a m im como um m undo intersubjetivo, um O que esse autor indica com suas palavras metafóricas correspon­
m undo de que participo juntam ente com outros [...]. De fato, não pos­ de, bem como o conceito de atitude natural introduzido por Alfred
so existir na vida cotidiana sem estar continuam ente em interação e Schütz, às reflexões de Francis Bacon sobre o ídolo da caverna. Como
comunicação com os outros”.24 Como todos os outros indivíduos, um Schütz e sua categoria de atitude teórica, tam bém Greschat aponta para
cientista da religião na sua vida privada faz parte da rede de plausibili- um a possibilidade de vencer, ou pelo menos relativizar, as determ ina­
dades descrita anteriormente. ções que lim itam a flexibilidade na vida cotidiana. Nesse sentido, ele
defende a hipótese de que um indivíduo pode se distanciar de “pro­
Em oposição à atitude natural, ou seja, ao estilo cognitivo predo­
gramas autom áticos” na m edida em que estabelece em si mesmo um a
m inante no cotidiano, Schütz aproveitou a categoria de atitude teórica
instância chamada observador imparcial:
para designar o ideal de um a consciência disciplinada com a qual um
cientista exerce sua tarefa de acordo com as regras metodológicas da
O observador imparcial é igual a um pesquisador que persistente e
sua disciplina. Nesse sentido, a atitude teórica é caracterizada pela dis­ pacientemente observa algo, talvez um formigueiro ou uma cons­
posição do indivíduo de “não aceitar nenhum a condição e nenhum telação de estrelas. Esta "testemunha" percebe tudo o que aconte-

23 B e r g e r , P eter L. & L u c k m a n n , T h o m as. A construção social da realidade, pp. 40s. 25 S c h ü t z , A lfred . D er sin n h a fte A u fb a u der sozialen W elt, p. 15.
24 Ibid-, p. 40. 26 G r e s c h a t , H an s-Jü rg e n . Was ist Religionsw issenschaft, p. 137.

119
C o n s t i t u i n t e s da C i ê n c i a da R e l i g i ã o O po t e n c i a l da Ci ê n c i a da Re l i g i ã o de c r i t i c ar i d e o l o g i a s

ce, sem avaliar nada. O observador imparcial desliga o seu ego ativo, Entre as abordagens im portantes cham ou a atenção, no fim dos
pois o ego quer o que não tem e teme perder o que tem.27
anos 1970 na Alemanha, um a análise de Wolffam Fischer sobre o de­
senvolvimento recente da Sociologia da Religião,30 como um a das dis­
É obvio que Greschat sugere um a investigação de fenômenos reli­ ciplinas principais da Ciência da Religião. O autor identificou como
giosos de m aneira neutra, independentem ente da simpatia ou antipatia prim eira fase de pós-guerra um a forte tendência de se referir, na pes­
com a qual o cientista da religião encontra esses fenômenos como cida­ quisa, a problemas institucionais de grandes igrejas e um a religiosida­
dão enraizado na vida cotidiana. A partir disso, levantou a hipótese de de associada a elas. A fase posterior, porém , m ostrou um a expansão
que o costume de um cientista da religião de tom ar posição radicalm en­ de campo do estudo e os objetos de investigação em dois sentidos. Por
te imparcial pode tam bém ajudar o indivíduo no cotidiano a transcen­ um lado, a Sociologia reagiu à relevância de novos movim entos espi­
der seus limites ideológicos. Sendo assim, ele propôs que um a m etodo­ rituais. Por outro lado, fenômenos seculares como os do comunismo
logia, originalmente exercida como técnica profissional, torne-se parte e do nacionalismo-social foram incluídos na área de pesquisa, com a
do repertório prático da vida particular do cientista. E, ainda, que o argum entação de que essas manifestações exercem várias funções nor­
mecanismo com o qual um pesquisador da religião deve com bater seus m almente relacionadas a religiões no sentido estrito.
preconceitos enraizados na sua atitude natural é caracterizado assim:
Sob tais condições, o term o religião, desde sempre um a catego­
Nossas identificações se tornam evidentes em nossos valores e nos­ ria polemicamente discutida em círculos acadêmicos, tornou-se ainda
sas avaliações. Nós nos reconhecemos naquilo com que nos identi­ mais problem ática quanto à necessidade de m arcar as competências e
ficamos; se nos investigamos como nos avaliamos, isso nos mostra o limites da própria disciplina. Por isso, Fischer argum entou em favor
observador imparcial. Trata-se de uma função de nossa consciência.
de um a nova designação da matéria. Sugeriu a substituição do nom e
Quando fazemos algo automaticamente, nossa consciência dorme.
[...] Quem quer se tornar consciente, tem que despertar sua consciên­ Sociologia da Religião por Sociologia de Sistemas de Conhecimento e da
cia e se esforçar em mantê-la alerta.28 Interpretação. Essa designação não se impôs, mas a idéia de desenvol­
ver perspectiva mais abrangente a respeito do campo da pesquisa tem
relevância para a reflexão sobre a competência crítica não somente da
Sociologia da Religião em particular, mas tam bém da Ciência da Reli­
A Giência da Religião destinatária de gião em geral. A relevância consiste no fato de que, quando a Ciência
uma crítica à ideologia da Religião define como objetos de estudo quaisquer sistemas de co­
nhecim ento e da interpretação, abre espaço para um a auto-reflexão,
Considerações sobre a função crítica de auto-reflexão da Ciência
pois ela mesma é, afinal de contas, nada mais do que um sistema que
da Religião ganham inspirações de várias fontes. Encontram-se idéias
produz e reproduz conhecimento e interpreta realidade.
relevantes, por exemplo, na obra de Thomas S. Kuhn, quando o autor
Um olhar crítico sobre si m esm a se realiza na m edida em que a
leva em conta a plausibilidade inerente de qualquer sistema de conheci­
comunidade científica está consciente das determinações culturais da
m ento e a não-possibilidade de abstrair esse sistema das suas condições
própria disciplina. Nesse ponto a Ciência da Religião deve aprender
históricas e das predisposições culturais dos seus representantes.29
com a Etnologia, um a disciplina caracterizada pelo hábito de pôr em
27 Ibid.
28 Ibid. 30 Cf. F is c h e r , W o lfram . V on d er K irch en so zio lo g ie z u r Soziologie d e r W issen s- u n d D e u tu n g ssy ste m e .
29 Cf. Kuhn, op. cit. E in L ite ra tu rb e ric h t z u r R eligionssoziologie. Theologia Pracica, pp. 124-139.

121
C o n s t i t u i n t e s da C i ê n c i a da R e l i g i ã o

dúvida os seus princípios epistemológicos ante a multiplicidade de


cosmovisões que se encontram em tem pos anteriores ou regiões dis­
tantes, e que são representadas por grupos, tribos e povos diferentes.
Com base nisso, Wolfdietrich Schmied-Kowarzik form ulou a seguinte
premissa do ponto de vista etnológico:

Muitas pessoas acreditam que nossa compreensão científica da rea­


lidade é definitivamente válida em comparação a uma cosmovisão
mágica ou mística que se prova pré-lógica. Mas essa fé na ciência
se transforma imediatamente em uma superstição se refletirmos e
olharmos metateoricamente para os critérios que qualificam nossa
compreensão da realidade como válida. Sob esta condição, se torna
visível que nossas ciências não são capazes, em nenhum ponto, de
atingir a realidade como tal. Fica óbvio que todas elas nos oferecem
"jogos de linguagem" [...], regras de estruturação, de acordo com
as quais integramos nossas experiências numa rede, mas que não
representam, de jeito nenhum, a realidade como tal. [...] Nossa ra­
cionalidade científica é, entre outras, também somente uma manei­

Apêndice
ra de interpretação de realidade, mas não é a forma privilegiada de
compreensão.31

Pode-se exigir de um cientista da religião que ele deva internalizar


esse insight. Somente se for capaz de questionar as regras da sua com u­
Algumas considerações
nidade acadêmica e relativizar sua m aneira de interpretar o m undo, sobre as interações
9
terá o direito de exercer função crítica no sentido que foi visto neste
capítulo. entre ciência e religião

51 Cf. S c h m ie d - K o w a r z ik , W o lfd ietrich . P h ilo so p h isch e Ü b erleg u n g e n zu m V ersteh en fre m d e r K u ltu re n


u n d zu e in e r T h e o rie d e r m e n sc h lic h en K u ltu r, i n : ______ & Stagl, Ju stin (orgs.). G rundlagen der E th ­
nologie, pp. 368-369.

22
A p ê n d i c e

Entrevista com alunos do Programa de Pós-Graduação


em Ciências da Religião, da PUC-SP,
em julho de 2002.

Como você define “religião”?


O que chamamos de “religião” tem-se manifestado, no decorrer
da história e em todas as partes do m undo, em diversificações e dife­
renças múltiplas. De acordo com essa complexidade, não é adequa­
do pensar em um a definição fechada de religião, mas optar por certo
conceito aberto capaz de superar um entendim ento pré-teórico que
generaliza fenômenos religiosos, sobretudo os de origem cristã, com
os quais estamos culturalm ente acostumados. Isso é somente neces­
sário porque, por exemplo, para chineses, hindus e m uçulm anos nem
existem sinônim os em suas línguas que correspondam exatamente a
nosso term o religião.
A partir dessas considerações, dividimos o conceito de religião em
quatro elementos:
Primeiro, religiões constituem sistemas simbólicos com plausibili-
dades próprias.
Segundo, do ponto de vista de um indivíduo religioso, a religião
caracteriza-se como a afirmação subjetiva de que existe algo transcen­
dental, algo extra-empírico, algo maior, mais fundam ental ou mais
poderoso do que a esfera que nos é im ediatam ente acessível através do
instrum entário sensorial hum ano.
Terceiro, religiões se compõem de várias dimensões: particular­
m ente temos de pensar na dimensão da fé, na dimensão institucional,
na dimensão ritualista, na dimensão da experiência religiosa e na di­
mensão ética.
Quarto, religiões cum prem funções individuais e sociais. Elas dão
sentido à vida, alimentam esperanças para o futuro próxim o ou re­
m oto, sentido esse que algumas vezes transcende o da vida atual,
e com isso possui a potencialidade de compensar sofrimentos imedia­
tos. Religiões podem ter funções políticas, no sentido ou de legitimar
e estabilizar um governo ou de estimular atividades revolucionárias.
Além disso, religiões integram socialmente, um a vez que mem bros de

125
C o n s t i t u i n t e s da C i ê n c i a da R e l i g i ã o A p ê n d i c e

determ inada comunidade religiosa com partilham a mesma cosmovi- comparada. Isso leva ao entendim ento das semelhanças e diferenças
são, seguem valores comuns e praticam sua fé em grupos. de religiões singulares a respeito de suas formas, conteúdos e práticas.
O reconhecimento de traços com uns do cientista da religião permite
deduzir elementos que caracterizam a religião em geral, ou seja, como
Como você define “ciência”?
um fenômeno antropológico universal.
Ciência é um a m aneira específica de se aproxim ar da “realidade”
e de adquirir conhecimento sobre ela. De acordo com o princípio de A Ciência da Religião tem estrutura multidisciplinar. Trata-se de
divisão de trabalho, ciências diferentes têm enfoques particulares, ou campo de interseção de várias subciências e ciências auxiliares. A His­
seja, elas são especializadas em investigar certos segmentos da “reali­ tória da Religião, a Sociologia da Religião e a Psicologia da Religião são
dade”. Para disciplinas como a Ciência da Religião é preciso que a “rea­ as mais referidas. Mas há outras, por exemplo, a Geografia da Religião
lidade” científica se restrinja à esfera empírica. Em outras palavras: o ou a Economia da Religião, m atéria que atualm ente ganha força na
que conta como “realidade” são somente aquelas camadas da existência Universidade de Tübingen, Alemanha. No Brasil, na área da Ciência
extraídas da observação. Essa observação pode ser direta (através dos da Religião são freqüentemente citados as teorias e os resultados da
sensos, inclusive suas ampliações artificiais) ou indireta (por exemplo, Etnologia e da Antropologia.
a partir de um a dedução com base em estatística). Temos de lem brar
que ciência é um em preendim ento coletivo. A vida acadêmica se orga­ Um cientista pode ser religioso? Por quê? De que forma a religião
niza em sociedades científicas. O cientista individual faz parte de um influencia no encaminhamento que o cientista dá a sua pesquisa?
conjunto de outros cientistas que se com prom etem com as mesmas
Houve época na história da nossa disciplina em que se defendia
regras epistemológicas, referem-se ao mesmo vocabulário de term os
a tese segundo a qual um verdadeiro cientista da religião deveria ser
técnicos e têm como pressupostos os mesmos pontos de partida.
hom em religioso ou m ulher religiosa. O famoso livro de Rudolf Otto,
O sagrado, elabora essa idéia já no seu prim eiro parágrafo. O livro traz
O que é “Ciência da Religião”? a analogia de um crítico de música, para quem a capacidade de avaliar
Ciência da Religião é a disciplina empírica que investiga sistemati­ a qualidade de um a obra depende do seu senso musical. O mesmo
camente religião em todas as suas manifestações. Um elemento-chave valeria para a religião cuja essência se revela somente para um inves­
é o compromisso de seus representantes com o ideal da neutralidade tigador que possui “senso religioso”. Achamos que a analogia de Otto
ante os objetos de estudo. Não se questiona a “verdade” ou a “qualida­ é inadequada, pois um cientista da religião nada se assemelha a um
de” de um a religião. Do ponto de vista metodológico, religiões são “sis­ crítico de música. Ele se parece mais com um historiador da arte, que
temas de sentido form alm ente idênticos”. É especificamente esse p rin ­ não tem como referência o nível estético de um a pintura, mas se baseia
cípio m etateórico que distingue a Ciência da Religião da Teologia. em questões do tipo: Quem era o pintor? Em que circunstâncias ele
O objetivo da Ciência da Religião é fazer um inventário, o mais produziu tal obra? Que papel esta obra desempenhava no contexto da
abrangente possível, de fatos reais do m undo religioso, um entendi­ produção artística do pintor? Esta pintura é um a obra típica desse pin­
m ento histórico do surgim ento e desenvolvimento de religiões par­ tor? Que influências estilísticas se observam nesta obra? A obra é típica
ticulares, um a identificação e seus contatos m útuos, e a investigação de um a época da arte? De m odo semelhante o cientista da religião quer
de suas inter-relações com outras áreas da vida. A partir de um estu­ entender os fatores que influenciaram o surgim ento e o desenvolvi­
do de fenômenos religiosos concretos, o material é exposto a análise m ento da religião investigada. Ele tem o intuito de classificar seu ob­

126 127
C o n s t i t u i n t e s da C i ê n c i a da R e l i g i ã o A p ê n d i c e

jeto de estudo ao compará-lo histórica e sistematicamente com outras No Brasil, a Ciência da Religião é um a disciplina relativamente
religiões. Para fazer isso, precisa de um a formação científica adequada, nova. Em comparação a outros países, o perfil da m atéria é menos
um conhecimento geral da história espiritual do m undo, um instru- acentuado ainda. Mas deve-se ficar otimista a respeito do futuro da
m entário analítico. disciplina em âm bito internacional. O Brasil é conhecido como campo
Se um cientista for ateu ou um indivíduo religioso, será um a op­ religioso extremam ente dinâmico, porém , segundo cientistas da reli­
ção particular feita na sua vida privada. Mas, quando exercer sua ta ­ gião da Europa e dos Estados Unidos, falta um saber detalhado sobre
refa profissional, deve controlar e disciplinar as próprias preferências a história e a situação religiosa atual. Ao mesmo tem po, há um con­
ideológicas tanto quanto possível. Nunca se consegue isso totalmente, tingente enorm e de especialistas brasileiros que poderiam contribuir
contudo não invalida a im portância do ideal da neutralidade, da ob­ m uito mais para a divulgação m undial dos seus conhecimentos. É pre­
jetividade. Tem-se de prestar a atenção aos fatos e verificar se estão ciso esforçar-se para que haja intercâm bio mais amplo, mais freqüente
apresentados adequadamente. Por exemplo, seria fácil desvalorizar com colegas norte-am ericanos e europeus. Há pelo menos as seguintes
um a religião como o Islã ao se concentrar somente nos traços que es­ áreas nas quais cientistas brasileiros desem penharão um papel im por­
tão em tensão com os valores ocidentais e cristãos. Há um a tendência tante na discussão internacional: as chamadas religiões mediúnicas
nas mídias de identificar o Islã com a Guerra Santa, mulheres reprim i­ (candomblé, um banda, kardecismo), as religiões de ayahuasca (santo-
das e movim entos “fundam entalistas”. Um cientista da religião que vê, daime, barquinha e união do vegetal) e o pentecostalismo, a considera­
do ponto de vista da sua religiosidade particular em sua vida pessoal, da “religiosidade popular”. Por outro lado, sob perspectiva internacio­
o Islã como um desafio religioso tem de se concentrar para não usar nal, são urgentes projetos sobre as grandes religiões não-cristãs como,
sua autoridade profissional e desdobrar ainda mais os preconceitos já por exemplo, o judaísmo, o islã, o baha’i e até mesmo sobre o budismo,
enraizados na consciência coletiva. É m elhor que ele se dedique a um religião tão freqüentem ente citada nas mídias.
assunto mais distante de seus interesses cotidianos.
Tendo em vista que o conhecimento religioso é dogmático,
Qual é o estado atual da arte das pesquisas nessa área de Ciência não-testável, depende de crença/fé e que o conhecimento científico
da Religião no Brasil? E no mundo? é replicávei, fidedigno, generalizável, na sua opinião, ciência e reli­
A situação internacional é m uito complexa. Cada país tem traços
gião são divergentes ou convergentes? Por quê?
específicos de acordo com vários fatores que dependem da história na­ Em geral, concordam os com a hipótese implícita na pergunta.
cional da disciplina, do grau de colaboração com outras disciplinas ou O u seja, a divergência mais m arcante é que cientistas empíricos não
da presença de certas religiões. Por exemplo, a Ciência da Religião na trabalham com conceitos metafísicos. Q uer dizer, eles não levam em
Alemanha tem tradicionalm ente foco nas filologias e forte interesse conta um nível extra-em pírico. Isso não significa que neguem a exis­
nas religiões orientais, especialmente na índia. Atualmente vivem cer­ tência dessa dim ensão do “ser”, mas tom am a posição m etodológi­
ca de três milhões de turcos no país, fato que levou a nova geração de ca em que se considera cientificamente irrelevante a questão sobre a
cientistas da religião a um a investigação do Islã no ambiente europeu “últim a realidade”, sobre “o absoluto”, sobre algo que transcende as
ocidental. Nos Estados Unidos, a Ciência da Religião é bastante in­ esferas “relativas”.
fluenciada pelas Ciências Sociais e, devido ao grande núm ero de novas Mas além de divergências há várias convergências. M encionare­
religiões que têm florescido num ambiente social liberal, as teorias e mos aqui somente alguns aspectos de um a constelação m uito com ­
pesquisas nesta área são bastante desenvolvidas. plexa.

28 129 i
■ C o n s t i t u i n t e s da C i ê n c i a da R e l i g i ã o A p ê n d i c e

Religião e ciência são ambas sistemas de compreensão e interpre­ m uito interessante a hipótese de Max Weber, que diz que as ciências
tação do m undo. A teoria do big bang e a doutrina cristã de criação m odernas têm raízes na tradição judaico-cristã e, por isso, se desen­
têm o m esm o objetivo: responder a questão de onde vem nosso u ni­ volveram especificamente na Europa, onde as duas religiões haviam
verso. No decorrer do processo de secularização, isto é, à m edida que deixado suas marcas. Weber apontou para a cosmovisão dualista, para
a ciência como form a específica de com preensão do m undo ganhou a idéia de um Deus transcendental, totalm ente diferente do m undo,
cada vez mais aceitação coletiva na cultura ocidental, a interpretação que, um a vez criado, segue seus mecanismos invariáveis. Segundo
cosmológica religiosa tem perdido sua plausibilidade para a m aioria ele, esse conceito provocou certa divisão na área intelectual. Por um
da população dos países correspondentes. Devido ao “triunfo” das ciên­ lado, acentuou-se a Teologia ocupada do lado divino do “ser”. Por ou­
cias exatas na m odernidade, é inevitável aceitar, do ponto de vista de tro lado, as ciências exatas se articularam propondo um a integridade,
um indivíduo religioso, que a doutrina bíblica de criação seja “apenas” certa autonom ia do m undo distante de Deus exposto a investigação
um a imaginação simbólica de “verdadeiros” eventos cósmicos. Nesse própria. Nesse sentido, podem os dizer que a religião, em vez de inibir o
sentido, podem coexistir na consciência m oderna os dois referenciais, desenvolvimento da ciência, estimulou-o. Mais especificamente deve­
ou melhor, os relevantes textos bíblicos e as teorias astrofísicas atuais. mos pensar, por exemplo, em vários grandes físicos que eram hom ens
Agora, se im aginarm os um aluno que começa sua formação uni­ religiosos e sua religiosidade não impedia que chegassem a novos pa­
versitária na área de astrofísica, qual é sua situação? Ele não tem com ­ radigmas em suas áreas. Devemos tam bém lem brar o caso da Igreja
petência nem “reputação” para negar as teorias com as quais seus p ro ­ Cristã dos Santos dos Últimos Dias, ou seja, dos chamados M órm ons.
fessores o confrontam . A fim de crescer dentro do sistema, ele precisa Motivados pela doutrina de que mem bros da Igreja podem contribuir
aceitar a m atéria apresentada nas aulas. Os conteúdos são tão abstra­ para a salvação de seus parentes já falecidos, ou melhor, como conse­
tos, tão distantes da sua experiência cotidiana, que não lhe resta outra qüência da prática do batism o de antepassados, há grandes especialis­
opção a não ser “crer” no que está escrito nos m anuais impostos pelos tas em pesquisa na área de genealogia nessa Igreja. Este exemplo tam ­
mestres daquela disciplina. Ele necessita ter confiança na fala das grandes bém indica que religião não deve ser reduzida ao seu papel inibidor a
autoridades dentro da comunidade acadêmica da qual quer participar respeito do progresso científico.
no futuro. Talvez, depois de estudos de vários semestres, desenvolva a
potencialidade de causar um a revolução científica, um a reforma no de­
A religião pode ser considerada responsável pela dificuldade
pósito de conhecimento estabelecido e não seja mais questionado pela
que a sociedade tem de aceitar novas idéias propostas pela ciência?
geração anterior. Mas isso só acontece excepcionalmente. A regra é o
aluno de ontem se tornar representante de um a tradição já estabelecida. Sim, mas a pergunta mais relevante é: como avaliar esse efeito?
Não é assim que as possibilidades oferecidas pela ciência correm ris­
As palavras grifadas ressaltam algumas palavras-chave para indi­
cos? Quem garante que um a inovação é aproveitada de m aneira res­
car de que ângulo sociológico há mais convergências entre religião e
ciência do que se pensa norm alm ente. ponsável e realmente contribui para um a vida melhor? A discussão
sobre a biotecnologia é um bom exemplo para entender que é preciso
ter um a instância de controle, pelo menos no sentido de um apelo para
Você vê a religião como inibidora no processo de desenvolvi­ a consciência coletiva e a responsabilidade ética de pesquisadores que
mento da ciência? propagam a hipótese de que tudo o que é cientificamente possível tor­
A história prova que religião pode ter esse efeito. Isso é bem ilus­ na-se autom aticam ente legítimo. Nos debates desse tipo, instâncias re­
trado pelo famoso caso de Galileu Galilei. Todavia, neste contexto acho ligiosas desem penham geralmente papel fundam ental, lem brando-nos
131
C o n s t i t u i n t e s da C i ê n c i a da R e l i g i ã o

dos limites do ser hum ano. Mesmo se houver provas de que em ambas
as áreas não houve nenhum a razão para tais preocupações e, em bora Referências citadas
a história m ostre que as religiões não podem deter o desenvolvimento
científico, precisamos continuam ente de mentes críticas refletindo so­
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Descendo a torre de marfim
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surgim ento de novos movim entos religiosos...........................83
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3. A doutrina de ídolos de Francis Bacon como base
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entre ciência e religião.............................................................................123
Referências citadas...................................................................................133

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