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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

FACULDADE DE DIREITO

ILANA DE SOUSA QUESADO

OS TRIBUNAIS DA INQUISIÇÃO DA ESPANHA E DE


PORTUGAL NOS SÉCULOS XV A XIX

Fortaleza - Ceará
2006
ILANA DE SOUSA QUESADO

OS TRIBUNAIS DA INQUISIÇÃO DA ESPANHA E DE


PORTUGAL NOS SÉCULOS XV A XIX

Monografia apresentada como


exigência parcial para a obtenção
do grau de bacharel em Direito,
sob a orientação do Professor
William Paiva Marques Júnior.

Fortaleza – Ceará
2006
ILANA DE SOUSA QUESADO

OS TRIBUNAIS DA INQUISIÇÃO DA ESPANHA E DE


PORTUGAL NOS SÉCULOS XV A XIX

Monografia apresentada à banca


examinadora da Universidade
Federal do Ceará, adequada e
aprovada para suprir exigência
parcial inerente à obtenção do
grau de bacharel em Direito, em
conformidade com os atos
normativos do MEC,
regulamentada pela Resolução nº
028/99 da Universidade de
Fortaleza.

Aprovada em 11 de julho de 2.006.

William Paiva Marques Júnior.


Professor Orientador da Universidade Federal do Ceará

Maria Rafaela de Castro.


Professora da Universidade Federal do Ceará
A verdade é dura como diamante, e delicada como a flor
do pessegueiro.
Mahatma Gandhi
RESUMO

Relata a vida cotidiana dos tribunais da Inquisição da Espanha e de Portugal nos séculos XV a
XIX. Descreve a hierarquia dos tribunais e dos órgãos superiores do Santo Ofício. Analisa as
principais cerimônias realizadas pela instituição. Examina obras da literatura clássica que
condenaram os tribunais inquisitoriais, bem como a censura referente às mesmas. Enfatiza o
rito do auto da fé e a execução dos hereges após o mesmo. Apresenta um traçado da evolução
dos direitos humanos e faz um paralelo entre o processo penal moderno e o inquisitorial.
Conclui-se que a Inquisição não se justifica de forma alguma, bem como deve ser sempre
lembrada como um erro que jamais deve se repetir.

Palavras-chave: Inquisição. Santo Ofício. Inquisidor. Éditos. Auto da Fé. Tribunais.


Reconciliados. Relaxados. Dignidade da Pessoa Humana. Direitos Humanos.
SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO.................................................................................................................. 01

2. ORIGENS DO INSTITUTO DA INQUISIÇÃO............................................................. 05

3. FUNDAÇÃO NA ESPANHA E EM PORTUGAL......................................................... 07

4. ORGANIZAÇÃO HIERÁRQUICA................................................................................ 11

5. AS COMUNICAÇÕES, OS REGULAMENTOS E O ENRAIZAMENTO................. 14

6. AS VISITAS........................................................................................................................ 17

6.1. A inspeção dos tribunais................................................................................................. 18

6.2. O controle das pessoas.................................................................................................... 19

6.3. O controle dos livros....................................................................................................... 21

6.3.1. Censurados pela Inquisição............................................................................................ 22

7. OS ÉDITOS........................................................................................................................ 26

7.1. A publicação.................................................................................................................... 27

7.2. Éditos da graça................................................................................................................ 28

7.3. Éditos da fé...................................................................................................................... 29

7.3.1. O protocolo final: o anátema.......................................................................................... 30

7.4. Os éditos particulares..................................................................................................... 31

8. OS AUTOS DA FÉ............................................................................................................. 32

8.1. A publicação.................................................................................................................... 33

8.2. A encenação..................................................................................................................... 34

8.3. As procissões.................................................................................................................... 35

8.4. A celebração..................................................................................................................... 36

8.5. A abjuração..................................................................................................................... 37

8.6. A execução....................................................................................................................... 38

8.7. A memória....................................................................................................................... 41
8.8. Desestruturação do rito.................................................................................................. 42

9. DIREITOS HUMANOS: O PROCESSO, OS DELITOS E AS PENAS...................... 44

9.1. O processo........................................................................................................................ 47

9.1.1. A instauração do processo.............................................................................................. 49

9.1.2. Confissões...................................................................................................................... 50

9.1.3. Torturas.......................................................................................................................... 51

9.1.4. Testemunhas................................................................................................................... 52

9.1.5. Interrogatório do réu...................................................................................................... 52

9.2. Os delitos.......................................................................................................................... 54

9.3. As penas........................................................................................................................... 57

10. A ABOLIÇÃO.................................................................................................................. 60

11. CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................... 62

12. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................... 64

13. BIBLIOGRAFIA CONSULTADA................................................................................. 65


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1 INTRODUÇÃO

Faz-se mister esclarecer o motivo da restrição do tema à Inquisição da Espanha e


de Portugal. Isso se deve ao fato de que, em tais países, o Santo Ofício foi muito mais bem
estruturado e organizado do que em outros lugares. Na Península Ibérica, os tribunais da
Inquisição ocupavam um papel de grande destaque na esfera político-social, visto que eram
vinculados tanto à Realeza quanto à Cúria Romana.
Destacar-se-á o surgimento da Inquisição no século XIII, fundada pelo Papa
Gregório IX, e institucionalizada em 1.252, pelo Papa Inocêncio IV, ao editar a bula Ad
Extirpanda, sendo tal documento responsável também pela autorização do uso da tortura.
Em tal momento, explicar-se-á que o advento da Inquisição se fez necessário para
controlar a disseminação da heresia albigense, também conhecida como valdense ou cátara.
Esses hereges rejeitavam os milagres eclesiásticos e os festivais, as ordens religiosas, as
bênçãos, enfim, o estilo de vida das autoridades eclesiásticas. Afirmavam que toda essa
estrutura foi criada pelo clero apenas em favor de seus interesses; pregavam também que o
batismo de crianças não valia nada, visto que elas tão têm capacidade de crer. Ademais, os
valdenses e os albigenses não acreditavam que o sangue e o corpo de Cristo estavam na
eucaristia. Negavam o purgatório e o sacerdotalismo; enfim, não admitiam nenhum tipo de
intermediação entre o homem e Deus.
Essa era a Inquisição medieval. Posteriormente, nos séculos XV e XVI, foram
criadas as Inquisições de Espanha e Portugal, respectivamente. Surgiram no contexto das
monarquias absolutistas e foram usadas pelas Coroas desses países para alcançarem seus
objetivos. In casu, tanto a Espanha como Portugal estavam ciosos da prosperidade alcançada
pelos judeus em seus territórios. Em verdade, grande parte dos judeus era de comerciantes, o
que lhes conferia crescente prestígio, e seu poder econômico já lhes proporcionava certo
destaque na sociedade. Preocupados com essa concorrência, Portugal e Espanha perceberam a
necessidade da implantação dos tribunais inquisitoriais em seus Reinos.
Será feita análise acerca da natureza dúplice da instituição na Espanha e em
Portugal. De fato, a Inquisição ibérica apresentava um caráter dualista; os tribunais
conservavam sua natureza eclesiástica, mas faziam parte também da Coroa. Desse modo, a
Inquisição se instalava em palácios reais, sem mencionar que os reis intervinham diretamente
para solucionar disputas acerca de imóveis com os organismos da Igreja e do Estado em favor
do Santo Ofício. Além disso, os bens dos tribunais pertenciam à Coroa, que incumbia agentes
públicos estatais na realização da percepção e gestão de bens confiscados dos hereges.
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Examinar-se-á com bastante cautela a questão da censura, que se manifestava mais


fortemente na proibição de circulação, leitura, fabricação e posse de livros considerados
proibidos pela instituição. Dentre os autores de obras proibidas, podemos citar Erasmo de
Rotterdam, Voltaire e Montesquieu, inclusive serão transcritos alguns trechos de seus livros
que atacavam veementemente a Inquisição.
Outro aspecto que será abordado é a questão das solenidades. Tudo o que diz
respeito aos tribunais da Inquisição no mundo ibérico envolve a forma, que, na maioria das
vezes, era tão importante quanto o conteúdo. Nesse contexto, insere-se a teatralidade das
cerimônias. Para exemplificar, em Portugal, a maneira de saudar o inquisidor-geral chegou a
ser objeto de negociações entre o tribunal e o rei; na Espanha, o Consejo de la Suprema,
tribunal inquisitorial de última instância, criticava severamente os ministros que
desempenhavam suas funções ou assistiam aos eventos públicos do tribunal com vestimentas
de cor escarlate, sendo obrigatório o uso de capas negras, para destacar a sobriedade e a
autoridade dos ministros do Santo Ofício.
Mais um ponto que será explorado é a encenação da Inquisição. Veremos que o ato
público de execução dos hereges condenados à fogueira era um verdadeiro espetáculo, onde,
tal como um teatro, havia um palco, os atores principais (os condenados por crimes heréticos)
e a platéia. Observar-se-á, desse modo, que os hereges, por ocuparem posição tão humilhante,
eram sempre ridicularizados; exemplificando, muitas vezes os inquisidores impunham aos
acusados o uso de mordaças.
Serão analisadas também muitas questões concernentes ao processo, tais como as
testemunhas, os interrogatórios, os delitos, as penas, a problemática da total ausência de
respeito à dignidade da pessoa humana, postulado norteador do Estado pós-constitucional.
Convém ressaltar que, apesar de a exploração do tema ser bastante diferente do
que comumente se verifica, não se podem olvidar os aspectos religiosos e históricos, sem os
quais jamais se poderia compreender o surgimento e a natureza dos tribunais.
Em suma, a abordagem que será feita levará em consideração elementos históricos,
processuais, penais, constitucionais, jurídicos e sociológicos. Dessa forma, o tema será
explorado de maneira diversificada, sem ficar adstrito a apenas um aspecto, para se evitar uma
visão monocromática da matéria.
Neste momento, é importante elucidar o significado de algumas palavras utilizadas
no decorrer do trabalho. Inicialmente, destaca-se o emprego das expressões “Inquisição” e
“Santo Ofício”, que se referem à instituição composta pelo conjunto de toda a rede de
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tribunais inquisitoriais da Península Ibérica. Já a palavra “Igreja”, com inicial maiúscula e no


singular, diz respeito à Igreja Católica Apostólica Romana. Já a expressão “cristãos-novos” se
refere aos convertidos ao catolicismo, que, outrora, eram judeus ou muçulmanos.
Sobre os vocábulos “inquérito” e “processo”, é fundamental esclarecer que o
inquérito conduzido pelas autoridades inquisitoriais correspondia apenas a uma simples
investigação preliminar, apenas para averiguar a plausibilidade da instauração de um
processo. De modo que, muitas vezes, a fase do inquérito e o processo se confundiam.
Portanto, quando se fala em acusado ou réu, está-se referindo às pessoas que eram, de alguma
forma, investigadas pela Inquisição, independentemente de tal diligência fazer parte de um
processo ou de um inquérito, pois, para as autoridades do Santo Ofício, “acusado” e “réu”
eram expressões empregadas sem distinção.
Será retratada a vida cotidiana dos tribunais da Inquisição da Península Ibérica,
desde o século XV até o XIX. Serão estudadas: a hierarquia dos tribunais, a tomada de
decisões, as atividades dos inquisidores, as cerimônias, dentre outros aspectos. Será dado
destaque também à figura dos acusados e dos condenados de crimes de heresia, como era o
seu comportamento perante o tribunal, o que lhes acontecia em casos de arrependimento e,
por fim, que preparativos eram feitos para a sua execução, bem como o que ocorria
posteriormente. Nesse contexto, será analisada a situação dos familiares dos condenados, que
tinham sua reputação quase tão abalada quanto a destes.
Especificamente, será demonstrado que os tribunais da Inquisição eram tribunais
como outros quaisquer, assim como o processo inquisitorial também era um processo
qualquer. Como hoje temos o processo civil, o penal, o trabalhista, naquele momento havia o
processo da Inquisição.
Constatar-se-á que, à época, apesar de não existir ainda a sistematização da teoria
dos direitos humanos, nem estar consolidado o princípio da dignidade da pessoa humana, o
Santo Ofício não se justifica de nenhuma maneira, pois era um verdadeiro tribunal de
exceção. Dessa forma, demonstrar-se-á que a Inquisição constitui uma página negra da
História e do Direito e, portanto, não deve ser esquecida.
Investigar-se-ão as atividades dos tribunais, sua ação, suas cerimônias, sua
hierarquia, o impacto e o terror que causaram em toda a sociedade. Analisaremos também de
que forma a Inquisição adquiriu legitimidade e acompanharemos o avanço do seu poder, que
acarretou a ampliação da jurisdição inquisitorial para apreciar delitos da competência dos
outros tribunais da Coroa e atos da alçada do Vaticano.
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Estudar-se-á o surgimento de opiniões e críticas à Inquisição, o que era feito


principalmente através da literatura. Dessa forma, serão analisados trechos de importantes
obras de Erasmo de Rotterdam, Voltaire, Montesquieu, Thomas Hobbes, dentre outras,
conforme acima ressaltado. Dessa forma, procuraremos abordar o tema de maneira
multidisciplinar, o que vem a enriquecer ainda mais o trabalho e despertar maior interesse.
Utilizar-se-á a consulta bibliográfica, ressaltando-se que as obras a serem
pesquisadas são as mais variadas. Desde livros específicos sobre o assunto até obras clássicas
da literatura que também abordam o tema.
Faz-se imprescindível também a análise da teoria do processo penal, bem como do
direito penal e constitucional, visto que, em alguns momentos, far-se-á um paralelo com o
processo penal e o direito penal vigentes. Além disso, apenas como complemento e para
enriquecer ainda mais o trabalho, serão feitas pesquisas em artigos publicados na internet.
Em suma, todo o estudo e o desenvolvimento do tema foram conduzidos com a
preocupação maior em retratar a verdade. Percebe-se que o assunto em questão é deveras
complexo e delicado, no entanto, antes de registrar quaisquer informações, buscou-se,
primordialmente, investigar acerca de sua veracidade, especialmente em respeito à memória
das vítimas da Inquisição.
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2 ORIGENS DO INSTITUTO DA INQUISIÇÃO

Na Alta Idade Média, período compreendido entre os séculos V e X, a Igreja


Católica se consolidou como a maior instituição feudal do ocidente europeu. Essa imponente
supremacia da Igreja teve como base sua desenvoltura no campo político, na aquisição de
feudos, bem como no prestígio junto aos reis e à nobreza, além de regular a mentalidade
religiosa do povo. Assim, muito da cultura medieval reflete o pensamento dessa poderosa
instituição, fenômeno conhecido como teocentrismo cultural, que consistia na submissão do
mundo às leis divinas.
Dessa forma, o clero e a nobreza dominavam o topo da pirâmide feudal, a eles
cabendo a tomada de decisões e a atribuição de direitos. O regime de sociedade estamental
característico da época impedia a mobilidade social, de maneira que, quem detinha poder
sempre se conservava em tal situação.
Sendo assim, observa-se que, em uma sociedade tão rigidamente organizada,
qualquer mera ameaça à sua estrutura deveria ser prontamente debelada. A Igreja Católica
teve de agir quando da propagação da seita albigense.
No século XI, período que compreende o início da Baixa Idade Média, surgiu na
Europa uma heresia intrigante como não houvera até então: o catarismo (do grego katharós,
puro), conhecido também como movimento albigense (com referência à cidade francesa de
Albi, onde os hereges se faziam presentes com maior intensidade).
O pensamento cátaro tinha como preceitos: a reencarnação do espírito; a negação
de qualquer tipo de intermediação entre o homem e Deus; a rejeição aos milagres
eclesiásticos, bem como às ordens e às bênçãos; não acreditavam que o sangue e o corpo de
Cristo estavam na eucaristia; não consideravam válido o batismo de crianças; denegavam o
sacerdotalismo e o legalismo. Além de se insurgirem contra a Igreja Católica, os albigenses
rejeitavam também instituições básicas da vida civil, como o matrimônio, a autoridade
governamental e o serviço militar.
No decorrer do século XI até 1.150, dispersos em bandos, os cátaros provocavam
tumultos e ataques contra igrejas na França, na Alemanha e nos Países Baixos. Em tal
momento, o próprio povo, com o apoio de autoridades civis, reprimia tais confrontos com
muita violência.
Não tardou, portanto, o surgimento de reações contra o movimento cátaro, visto
que sua doutrina afrontava cabalmente os pilares da sociedade feudal. É bastante interessante
notar que os albigenses não constituíam mera heresia, pois diversos preceitos de sua doutrina
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tinham cunho social, como, por exemplo, as críticas veementes contra o serviço militar e o
sistema governamental vigente.
Nos primórdios do século XII, os magistrados e o povo começaram a exigir que o
clero colaborasse mais vivamente para a contenção da heresia albigense. Dessa forma, em
1.163, o Concílio Regional de Tours determinou a caça aos seguidores da seita cátara.
Em 1.184, na Itália, a cidade de Verona foi cenário de uma assembléia que reuniu
o Papa Lúcio III, o Imperador Frederico Barba Roxa, vários bispos, prelados e príncipes. Em
tal ocasião, baixou-se um decreto que representava a união de forças dos poderes eclesiástico
e civil a fim de se obterem melhores resultados. Determinou-se, então, que os hereges seriam
procurados e punidos; cada bispo, por si ou por pessoas por ele indicadas, revistaria as
paróquias suspeitas uma ou duas vezes ao ano. Já os condes, barões e outras autoridades civis
tinham a obrigação de auxiliar essa atividade, caso contrário, perderiam seus cargos.
Para exemplificar, Henrique II, rei da Inglaterra, revelou bastante austeridade ao
reprimir a heresia em seu reino. Em 1.185, alguns hereges da região de Flandres se
refugiaram na Inglaterra; o monarca mandou prendê-los, marcá-los com ferro em brasa e
expô-los ao público nessa forma ultrajante.
Outro caso que convém relatar é o do Imperador Frederico II, do Sacro Império
Romano-Germânico, que, em 1.220, determinou que todos os oficiais de seu reino
prometessem expulsar os hereges de suas terras. Além disso, declarou a heresia crime de lesa-
majestade, sendo aplicada a pena de morte. Em 1.224, publicou um decreto cujo texto
estabelecia que as autoridades civis lombardas fossem obrigadas não apenas a lançar ao fogo
quem tivesse sido considerado herege pelo bispado, mas também deveriam cortar a língua
dos acusados a quem, por razões particulares, se houvesse poupado a vida.
Essa era a Inquisição Episcopal, a qual, devido ao seu caráter fragmentário e
desorganizado, mostrou-se insuficiente para deter os movimentos heréticos. Dentre as razões
de sua ineficácia, podem-se apontar a tolerância de alguns bispos e o fato de o seu raio de
ação se restringir às dioceses.
Em virtude disso, os Papas, já em fins do século XII, procederam à nomeação de
prelados especiais com plenos poderes para agir contra a heresia onde quer que ela se
encontrasse. Surgiu assim a Inquisição Pontifícia, que foi oficializada em 1.233, quando o
Papa Gregório IX designou aos dominicanos a função de inquisidores, que atuavam de
acordo com a jurisdição de cada distrito inquisitorial com o auxílio de vários funcionários,
como consultores, notários etc. Em tal momento, as normas do procedimento e dos tribunais
passaram a ser ditadas por Bulas Papais e decisões de Concílios.
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3 FUNDAÇÃO NA ESPANHA E EM PORTUGAL

A Inquisição Medieval nunca foi muito enérgica na Península Ibérica e, além


disso, encontrava-se inerme na segunda metade do século XV.
Em tal período, Espanha e Portugal lutavam para consolidar o Estado Nacional no
contexto de suas monarquias absolutistas. No entanto, nesses países, a unidade política era
frágil, existiam diversidades regionais, persistiam velhos hábitos feudais e havia a presença
de várias religiões, como o islamismo, o judaísmo e o catolicismo. A Realeza percebeu a
imperiosa necessidade de tomar medidas visando à unidade nacional em todos os aspectos.
Primordialmente, os reis usaram a Igreja Católica, grande pilar do sistema feudal,
como arma política. Através da Inquisição, combateram-se o mercador judeu e o artesão
muçulmano, que eram vistos como concorrentes ameaçadores ao poder real, devido à
ascensão social que alcançavam.
De fato, tanto Espanha como Portugal estavam ciosos da prosperidade alcançada
pelos judeus, especialmente, em seus territórios. Em verdade, grande parte da comunidade
judaica era composta por comerciantes, o que lhes conferia crescente prestígio, e seu poder
econômico já lhes proporcionava certo destaque na sociedade. Preocupados com essa
concorrência, Portugal e Espanha perceberam a necessidade da implantação, o mais rápido
possível, dos tribunais inquisitoriais em seus Reinos.
Dessa forma, em 1º de novembro de 1.478, o Papa Sisto IV assinou a bula Exigit
sincerae devotionis affectus, fundando uma nova Inquisição na Espanha. Tal documento foi
redigido pela cúria romana como réplica às petições dos próprios reis católicos; em linhas
gerais, espelhava os argumentos régios sobre a propagação da doutrina e das cerimônias
mosaicas entre os judeus convertidos ao catolicismo em Castela e Aragão.
Essa bula atribuía a difusão da heresia judaizante à tolerância episcopal e,
prontamente, autorizava os reis a nomear três inquisidores para cada uma das cidades ou
dioceses. Os inquisidores deveriam ser, necessariamente, ligados à Igreja, tais como clérigos
seculares, prelados e religiosos com mais de quarenta anos, bacharéis ou mestres em
Teologia, licenciados ou doutores em Direito Canônico.
É importante observar que o poder concedido à Realeza de nomear inquisidores
era uma ocorrência inédita até então, visto que tal matéria sempre houvera sido reservada ao
Papa. Ademais, nota-se também outro aspecto peculiar na Inquisição ibérica: pela primeira
vez, estabelecia-se um vínculo formal entre a jurisdição eclesiástica e a jurisdição civil, pois a
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intervenção dos príncipes na nomeação dos inquisidores teve como conseqüência principal a
alteração das relações de fidelidade desses agentes.
Apenas em setembro de 1.480, os reis católicos nomearam os inquisidores, que
iniciaram seus trabalhos em dezembro, na cidade de Sevilha. Neste momento, observa-se
relativa simplicidade nos ritos de fundação da Inquisição na Espanha. A posição dos
primeiros inquisidores é tímida; inicialmente, são auxiliados por conselheiros régios para
apresentarem suas cartas de investidura às autoridades da cidade. Em tal ocasião, os reis não
se fazem presentes e o arcebispo nem sequer é mencionado na relação.
Entretanto, a simplicidade da criação da Inquisição na Espanha opõe-se à
determinação da ação dos inquisidores, que agiam com extrema arbitrariedade. Apenas no
primeiro mês de atividade, efetuou-se a prisão de centenas de acusados, dentre os quais
diversos cristãos-novos poderosos (ricos e politicamente influentes). Tais acontecimentos
provocaram grande terror e impulsionaram a fuga de milhares de pessoas para Portugal, Itália
e Norte da África.
Surgiram, então, resistências à fundação dessa nova Inquisição, no entanto, o
resultado sempre acabava sendo o enraizamento do tribunal. Neste ensejo, foram expedidos
vários recursos a Roma, que, inicialmente, foram recebidos pelo Papa, este, por sua vez,
sofreu protestos constantes dos reis católicos e de Carlos V, até que a Coroa conseguiu da
cúria romana a delegação ao inquisidor-geral da competência para apreciar todos os recursos
de última instância.
As inúmeras críticas à ação dos inquisidores não alteraram em nada as suas
atividades, mantinha-se a arbitrariedade, bem como o segredo do processo e o confisco dos
bens dos acusados. No entanto, em 1.485, passou-se das palavras aos atos. A oposição ao
tribunal de Saragoça propiciou o desenvolvimento de uma conjuração que culminou no
assassinato do inquisidor Pedro de Arbués. O homicídio foi consumado dentro da catedral,
enquanto o inquisidor, também cônego, rezava.
Desse modo, a opinião da cidade, até então adversa à Inquisição, alterou-se
completamente. Na manhã do dia seguinte, a população saía às ruas protestando contra os
assassinos e desejando que os mesmos fossem atirados à fogueira.
Os responsáveis pelo homicídio foram executados e esquartejados, enquanto o
inquisidor assassinado se tornou um santo mártir. Neste azo, destaca-se que tal ato consignou
o fim do processo de fundação do Santo Ofício na Espanha. O sacrifício do inquisidor
proporcionou o ingrediente que faltava para a sagração do tribunal: o sinal da aprovação
divina. De fato, naquele momento, o assassinato de um juiz eclesiástico ter ocorrido no
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interior de uma catedral onde ele rezava era um acontecimento que podia ser utilizado como
uma indicação do caráter demoníaco dos opositores dos tribunais da fé.
Destaca-se, portanto, a importância desse episódio que marcou categoricamente a
necessidade da ação inquisitorial. As autoridades eclesiásticas argumentavam que, sem a
Inquisição, toda a cristandade seria contaminada; a heresia pervertia os costumes e a
sociedade, provocava inquietação e perturbação mental, estimulando a desobediência e a
rebelião.
A fundação da Inquisição em Portugal não se mostrou muito diversa do caso
espanhol, mas apresentou algumas peculiaridades. A bula de estabelecimento, Cum ad nihil
magis, foi assinada pelo Papa em 1.536 e nomeava três bispos como inquisidores-gerais,
outorgando ao rei D. João III a possibilidade de nomear um quarto inquisidor-geral. A bula
apontava como crimes heréticos o judaísmo dos cristão-novos, o luteranismo, o islamismo, as
proposições heréticas e os sortilégios (bruxaria).
No caso da Inquisição portuguesa, observa-se uma proeminente particularidade,
qual seja a intervenção do rei, que é consultado acerca dos mínimos detalhes, inclusive sobre
a organização cerimonial do primeiro auto da fé realizado em Lisboa, em 1.540. Além disso,
desde o início, esteve presente o total apoio das autoridades civis, o que contrasta com as
resistências do caso espanhol.
Quanto à legitimidade, os manuais escritos por inquisidores utilizavam passagens
da Bíblia para demonstrar a remotíssima ancestralidade da Inquisição. Partindo da premissa
de que Adão e Eva cometeram pecado de heresia, os juízes inquisitoriais declaravam que
Deus foi o primeiro inquisidor, que interrogou Adão e o sentenciou à expulsão do Paraíso – o
que originou a prática do confisco de bens dos acusados de heresia.
Segundo os inquisidores, nos Evangelhos, o primeiro inquisidor teria sido Jesus
Cristo, que veio anunciar a fundação de uma nova igreja. Posteriormente, teriam sido também
inquisidores São Pedro, São Paulo e os demais apóstolos, os quais passaram o cargo aos
pontífices e bispos.
Sendo assim, verifica-se que a fonte de legitimidade é sempre a mesma, ou seja,
trata-se de um tribunal eclesiástico, criado por delegação de poderes do Papa, tendo como
objetivo a perseguição aos acusados de heresia. Neste contexto, destaca-se que os tribunais da
Inquisição na Espanha e em Portugal tinham natureza mista: eram eclesiásticos, mas faziam
parte também da Coroa, devido aos mecanismos de nomeação e enquadramento
administrativo. Convém mencionar, neste aspecto, que a Inquisição se instalava em palácios
pertencentes à Realeza.
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Mais um fenômeno deve ser assinalado a respeito dos tribunais inquisitoriais


ibéricos – trata-se de certa autonomia em relação à Santa Sé. Isso se deve ao fato de os reis
terem conseguido, paulatinamente, o alargamento da competência dos ministros da
Inquisição. Para exemplificar, os reis obtiveram para os inquisidores-gerais a atribuição
exclusiva da apreciação dos recursos das sentenças, a extensão da jurisdição inquisitorial a
todas as ordens religiosas e, em geral, a limitação impetuosa das possibilidades de
intervenção romana nos assuntos do Santo Ofício no mundo ibérico.
Outro aspecto importante consiste no fato de os reis espanhóis e portugueses
terem imposto a jurisdição inquisitorial a todas as pessoas, independentemente de seus
privilégios e posição social.
Por fim, deve-se registrar que a Inquisição, como toda eminente instituição
daquela época, também possuía símbolos que distinguiam suas bandeiras, seus escudos, seus
documentos e as insígnias da indumentária dos seus funcionários. Além disso, a emblemática
era muito importante para uma organização que sempre zelava demasiado pela forma.
Em virtude disso, a Inquisição estabeleceu que suas armas fossem compostas por
três elementos: uma cruz ao centro, um ramo de oliveira à direita e uma espada à esquerda. A
cruz simbolizava a morte de Cristo e a redenção da humanidade; o ramo de oliveira
representava a misericórdia; a espada, o castigo. Deve-se perceber que a cruz explicitava
tanto a condição de tribunal delegado do Papa, como a fonte de legitimidade da atividade
inquisitorial, além de ser símbolo do sacrifício do redentor, supostamente menosprezado
pelos hereges. Já o ramo de oliveira e a espada significavam o duplo sentido do Santo Ofício
– por um lado, o perdão e a reintegração dos arrependidos, por outro, a exclusão e o castigo
dos hereges convictos e contumazes.
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4 ORGANIZAÇÃO HIERÁRQUICA

Portugal e Espanha conseguiram estruturar sua rede de tribunais logo no momento


de sua fundação, o que garantiu o bom funcionamento das atividades inquisitoriais desde o
início. Dessa forma, havia os tribunais de distrito, com jurisdição em cada cidade ou diocese,
e os Conselhos da Inquisição, os quais eram verdadeiras cortes que apreciavam qualquer
matéria concernente às heresias, como tribunais de última instância.
Na Espanha, o órgão máximo de decisão era o Consejo de la Suprema,
verdadeiro tribunal de última instância, constituído por seis membros, sendo cinco
conselheiros eclesiásticos e um fiscal – os primeiros eram nomeados pelo rei a partir de três
nomes indicados pelo inquisidor-geral, o qual nomeava diretamente o fiscal.
Havia também um secretário régio que se encarregava das relações
administrativas com a Coroa. Interessante destacar que o Consejo mantinha regularmente um
agente em Roma para sustentar suas posições junto ao Papa.
A ingerência do rei é intensa. Desde o início, ele estabelece a tradição de nomear
dois membros leigos do Conselho de Castela como membros do Consejo de la Suprema, o
que provocou protestos dentro deste órgão. Porém, tudo se resolveu: organizavam-se três
sessões matinais por semana, das quais participavam apenas os membros eclesiásticos, visto
que os assuntos apreciados diziam respeito apenas aos casos de heresia; havia também duas
sessões vespertinas abertas aos outros dois membros do Conselho de Castela, onde eram
examinadas as questões administrativas e judiciárias.
A intervenção régia, por sua vez, tornou-se ainda mais forte quando, em 1.614, a
Coroa criou um cargo perpétuo para um dominicano, no caso o confessor do próprio rei, que
ocupava o segundo lugar da hierarquia, ficando abaixo apenas do conselheiro mais velho. No
entanto, apesar desses pequenos conflitos, o grande poder alcançado pelo Consejo provinha
justamente do apoio irrestrito fornecido pelo monarca, de tal modo que o status do Conselho
era equiparado ao dos outros tribunais na monarquia e, nas cerimônias de Estado, sua posição
ficava logo depois do Conselho Real e do Conselho de Aragão.
Havia no Consejo uma figura imprescindível – o inquisidor-geral. Para a cúria
romana, como ele tinha recebido a delegação de poderes do Papa, era a única entidade
reconhecida por ele. Segundo o Papa, a legitimidade do Conselho emanava apenas da
delegação de poderes feita pelo inquisidor-geral, de modo que tal organismo não poderia se
sobrepor sobre seu superior. Já o ponto de vista do rei divergia. Para ele o Conselho não era
apenas um organismo da monarquia com uma atividade constante, que podia agir em nome
12

do inquisidor-geral em sua ausência, mas era também considerado, em muitas situações,


como interlocutor privilegiado para a tomada de decisões.
O inquisidor-geral manteve suas atribuições exclusivas de nomear inquisidores e
outros funcionários, até mesmo nos tribunais de distrito, assim como a competência de
comutar penas. Em linhas gerais, preservou a capacidade de nomear e de perdoar.
A composição intermediária, por seu turno, apresentava um poder formidável,
sendo constituída por dois ou três inquisidores em cada tribunal de distrito, controlando um
aparelho burocrático formado pelo promotor fiscal, secretários, meirinho, alcaide, porteiro,
solicitador, consultores, qualificadores, juiz de bens, receptor, contador, médicos, notário de
seqüestro, sem falar dos comissários e familiares.
Em Portugal, a estrutura intermediária é inspirada no modelo espanhol, com
algumas nuances específicas. Primeiramente, a nomeação dos membros do Conselho Geral
da Inquisição, tribunal de última instância equivalente ao Consejo de la Suprema, era de
competência direta do inquisidor-geral, sendo o rei apenas consultado. A intervenção régia
restringia-se, oficialmente, a tal consulta.
Assim como na Espanha, também em 1.614 criou-se um lugar perpétuo para um
dominicano no Conselho, porém sua escolha era feita pelo inquisidor-geral.
Quanto ao plano intermediário, não existia a figura do consultor. Em
contrapartida, havia os deputados remunerados, um para cada tribunal de distrito, com
funções semelhantes às dos consultores, mas em uma posição mais definida e estável. Os
deputados, desde o início, ocupavam posição imediatamente abaixo dos inquisidores. Em
verdade, os deputados eram verdadeiros “estagiários”, pois, em Portugal, ninguém ocupava
diretamente o cargo de inquisidores, sendo necessário, antes disso, passar pela função de
deputado.
No que concerne ao número de inquisidores, geralmente havia três em cada
tribunal de distrito, sendo o mais antigo o presidente do mesmo.
Neste momento, deve-se dar destaque à figura dos inquisidores, cujos atos e
decisões eram imprescindíveis para o bom funcionamento da Inquisição.
Enquanto decisões estratégicas eram tomadas em nível superior, era competência
dos inquisidores decidir sobre a prisão de acusados, a instauração de processos, a publicação
de livros. Tais atividades eram fiscalizadas pelos superiores e, como tinham consciência
disso, sua responsabilidade era ainda maior, pois sua conduta era meticulosamente analisada
no momento de uma promoção futura. Em suma, o bom funcionamento de toda a máquina
inquisitorial estava sujeito, em grande parte, aos atos e decisões dos inquisidores.
13

Esses profissionais, no caso ibérico, estavam sempre em contato com os altos


funcionários da Coroa, porém, o que lhes conferia uma posição destacada na sociedade era a
sua estratégia de ação relativamente autônoma. Dependendo dos seus interesses, invocavam
sua condição de juízes do Papa ou de juízes do rei. Ademais, os tribunais da Inquisição foram
utilizados pelos inquisidores como impulso para ascensão na carreira. De fato, grande parte
dos inquisidores foi nomeada bispos, especialmente no século XVI. Além disso,
principalmente no mundo hispânico, ocupavam certo papel político, inclusive acumulando
outros cargos nos principais conselhos das duas monarquias (Castela e Aragão).
Quanto à escolha dos inquisidores, sua nomeação era reservada aos inquisidores-
gerais. Na Espanha, eram escolhidos, na maioria, entre os filhos da pequena nobreza,
proprietários rurais e funcionários de administração que freqüentavam as universidades de
Salamanca, Alcalá de Henares e Valladolid. Em Portugal, a origem social era semelhante e
quase todos estudaram Direito Canônico na Universidade de Coimbra.
Um evento que promoveu ainda mais a proeminência dos inquisidores foi a
obtenção, no início do século XVII, da exclusividade dos inquéritos de fé entre a população
eclesiástica. Desse modo, a Inquisição adquiriu mais uma arma a seu favor – passou a ter
domínio sobre o comportamento do clero.
Os inquisidores eram o rosto do tribunal, de modo que os Conselhos
diligenciavam sempre no sentido de vigiá-los e controlar seu comportamento público e
privado, impondo regras até mesmo sobre o convívio com amigos. Em verdade, o
distanciamento consistia em importante instrumento de trabalho. Sendo assim, os
inquisidores não deviam sair de suas residências sem razões importantes; não deviam fazer
visitas a membros de outros tribunais, cônegos ou bispos, sem que estivesse antes garantida a
reciprocidade; não deviam comparecer a eventos festivos nem a outras cerimônias públicas,
civis ou religiosas, sem que lhes estivesse assegurado um lugar compatível a seu estatuto.
Observa-se, portanto, que os inquisidores tinham também a função de manter as aparências e
defender a honra da instituição.
Para finalizar, é importante especificar uma anomalia quanto à função dos
inquisidores. De fato, efetuavam prisões, instruíam processos, eram responsáveis pelos
inquéritos e investigações e, por fim, julgavam as causas. Fazendo uma analogia com o
processo penal moderno, os inquisidores eram, ao mesmo tempo, policiais, delegados e
juízes.
14

5 AS COMUNICAÇÕES, OS REGULAMENTOS E O ENRAIZAMENTO

Na Espanha e em Portugal, havia um fluxo vertical de comunicações nos tribunais


da fé desde o início. De fato, já estava determinado nos regulamentos e nas instruções
internas como ocorreria o envio de informações dos tribunais de distrito aos organismos
superiores.
O Consejo de la Suprema, na Espanha, e o Conselho Geral da Inquisição, em
Portugal, eram verdadeiros tribunais de última instância, que fiscalizavam e regulavam as
atividades dos tribunais de distrito.
No caso espanhol, o Conselho exigia, pelo menos uma vez ao ano, a expedição de
resumos de processos, denominados relaciones de causas. Essa prática, corriqueira já no
início do século XVI, persistiu até o XVIII. No que concerne a esse grandioso trabalho, é
importante mencionar que tudo o que dizia respeito à detenção de personalidades influentes
ou de clérigos deveria ser apreciado pelo Consejo. Além disso, os superiores hierárquicos
deveriam analisar com mais tenacidade situações mais delicadas, como os casos de pena
capital e de penas públicas de fustigação ou de envio dos condenados ao trabalho forçado nas
galés.
Entretanto, as comunicações entre os organismos centrais e os tribunais de distrito
não se limitavam apenas a informações sobre os processos penais e a conclusão dos mesmos.
Existiam também muitas consultas e instruções sobre a preparação de autos da fé, sobre a
maneira de solucionar conflitos de jurisdição envolvendo autoridades civis e eclesiásticas,
sobre questões de etiqueta concernentes à participação dos inquisidores em cerimônias locais,
sobre as visitas de distrito e sobre a situação financeira dos tribunais.
No que concerne aos regulamentos da Inquisição, as primeiras instruções
espanholas datam de 1.484. Definem os ritos de fundação dos novos tribunais de distrito,
regulam a prática da tortura, estabelecem o segredo do processo, dispõem sobre o confisco
dos bens dos acusados e estipulam regras sobre o comportamento moral e profissional dos
funcionários.
As segundas instruções foram redigidas em 1.488, em Valladolid. As principais
questões apreciadas foram a uniformização do processo penal, o reforço do segredo
processual em todos os níveis e o envio de relaciones de causas para o Consejo. Dez anos
depois, as terceiras instruções tratavam, dentre outras coisas, da ética profissional dos oficiais
da Inquisição, das formas de proceder para com os mortos, da comutação de penas, dos
castigos aplicados aos falsos testemunhos e da proibição de nepotismo. Em 1.561, foram
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elaboradas as últimas instruções espanholas, que disciplinavam ainda mais detalhadamente a


uniformização do processo penal.
Em Portugal, as primeiras instruções foram redigidas em 1.541. Essencialmente,
repetiam restrições à atividade inquisitorial contidas na bula de fundação Cum ad nihil magis,
que excluía o segredo do processo, o qual voltou a fazer parte da ação dos tribunais em 1.547,
com a bula Meditatio cordis.
Em 1.552, foi expedido um regimento que dispunha sobre a estrutura dos
tribunais, as visitas de distrito, a maneira de agir com os penitentes e os acusados, as formas
de reconciliação, a detenção, a instrução dos processos, os recursos das sentenças e a
condenação à pena de morte, dentre outras estipulações.
O Conselho Geral da Inquisição de Portugal elaborou, em 1.570, um regimento
que destacava o papel de tal organismo como tribunal de recurso, passando a ampliar sua
competência ao conhecimento de todos os casos outrora apreciados apenas pelo inquisidor-
geral, ao controle dos processos e dos autos da fé, às decisões sobre comutação de penas e às
apelações.
O regimento de 1.640 trouxe uma definição mais primorosa do processo penal e
sistematizou melhor as cerimônias. No entanto, o que se destaca mais nesse diploma legal é a
exigência explícita, inédita até então, da condição de nobreza para a nomeação ao cargo de
inquisidor.
Apenas em 1.774, já no final do governo do marquês de Pombal, surgiu o último
regimento. Tal documento implantou quatro importantes alterações: o fim do segredo do
processo, ou seja, os acusados deveriam conhecer o teor das denúncias, bem como os nomes
de quem testemunhou contra eles e as circunstâncias espaciais e temporais referentes ao
delito; proibiu-se a condenação à morte com base nos relatos de apenas uma testemunha;
criticou-se e amenizou-se bastante a prática da tortura para a obtenção de confissões;
extinguiu-se a inabilitação dos condenados e de seus descendentes.
Na análise do enraizamento dos tribunais da Inquisição, destacamos,
primeiramente, que o estabelecimento dos tribunais de distrito com um aparelho burocrático
sediado em um local central, geralmente uma sede episcopal importante quanto ao aspecto
urbano, não era satisfatório para o controle territorial. Para tanto, o Santo Ofício tomou duas
medidas: as visitas de distrito (que serão minudenciadas adiante), sobre as quais,
preliminarmente, pode-se dizer que consistiam em inspeções realizadas por dois inquisidores,
que se deslocavam durante parte do ano para vistoriar a região sob sua jurisdição; e a
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organização de um corpo de oficiais e auxiliares civis não remunerados, dentre os quais se


destacaram os familiares e os comissários.
Os familiares eram membros civis não remunerados que apoiavam a atividade dos
tribunais, em troca de privilégios, como licença para porte de armas, isenção de impostos e
dispensa do serviço militar. Desempenhavam, sobretudo, funções de representação, sendo
chamados apenas para prender e transportar presos, bem como acompanhá-los quando da
realização dos autos da fé.
Já os comissários eram encarregados dos mais diversos inquéritos, referentes não
somente a processos criminais, como também a processos de habilitação a um cargo no
tribunal, situação que exigia uma investigação preliminar acerca da pessoa do candidato.
Além disso, os comissários eram responsáveis pelo recolhimento de denúncias, oitiva de
testemunhas, controle de livros nos portos e fiscalização do comportamento dos familiares.
Eram, em sua maioria, clérigos, o que conferia mais seriedade à sua reputação e propiciava
mais eficácia aos seus meios de ação.
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6 AS VISITAS

Conforme foi mencionado supra, as visitas constituíram elemento essencial para o


enraizamento dos tribunais da Inquisição. É imprescindível, neste azo, delinear o significado
do termo “visita” no que se refere ao Santo Ofício.
Primeiramente, deve-se destacar que a palavra visita, no contexto da Inquisição,
denota “inspeção”. Consistia em verdadeiro policiamento comandado pelos próprios
inquisidores, que, durante certo período do ano, deslocavam-se para regiões sob sua
jurisdição no intuito de vistoriar o comportamento das pessoas e suas atividades.
É interessante enfatizar a natureza das visitas, que equivaliam a um verdadeiro
policiamento, como já foi acima explicado, porém, ao contrário da atividade policial, que age
principalmente quando acionada pela população, as visitas dos inquisidores não eram
provocadas por ninguém em grande parte dos casos. Pelo contrário, os inquisidores
procuravam e, de fato, perseguiam os suspeitos de crimes heréticos onde quer que se
encontrassem.
No entanto, é importante esclarecer que, normalmente, as suspeitas dos
inquisidores não possuíam nenhum fundamento. É certo que a população fazia denúncias,
mas a função primordial do visitador era procurar as heresias. Assim como acontecia na
Inquisição medieval, eles saíam à procura de hereges fazendo uma verdadeira devassa na vida
das pessoas, adentrando suas casas a qualquer hora, invadindo os estabelecimentos dos
comerciantes, recolhendo objetos e documentos para serem investigados e efetuando prisões.
Tudo isso ocorria da forma mais arbitrária possível e sem nenhum aviso prévio, visto que, de
acordo com o que foi acima apontado, não era a população que acionava os inquisidores,
estes conduziam suas atividades apenas a seu próprio modo.
O que foi exposto refere-se à ação inquisitorial em relação à população, pois havia
também inspeções no âmbito dos próprios tribunais, cuja natureza se distingue sensivelmente
das visitas à população.
Em verdade, a inspeção dos tribunais tinha como propósito a fiscalização do
funcionamento dos mesmos, bem como do comportamento e da atividade dos funcionários,
conforme será analisado a seguir.
18

6.1 A inspeção dos tribunais

Na Espanha, surgiram certos problemas que logo incomodaram o Consejo de la


Suprema, tais como desvios de comportamento dos oficiais da Inquisição e conflitos entre
funcionários. A solução encontrada foi uma prática de inspeção realizada nos tribunais de
distrito organizada e controlada pelo Consejo.
O visitador era nomeado por uma comissão do inquisidor-geral e prestava um
juramento perante o Conselho. Quando chegava a um tribunal de distrito, mostrava aos
inquisidores e oficiais a sua nomeação e exigia segredo de todos acerca do inquérito que iria
presidir. Não podia o visitador se instalar nas residências dos membros do tribunal, nem
reunir-se com os mesmos ou deles receber presentes.
Imediatamente após a cerimônia de apresentação da carta de nomeação, o
visitador iniciava o seu inquérito, interrogando todos os funcionários seguindo a ordem
hierárquica. Posteriormente, podia visitar as prisões, onde interrogava os encarcerados sobre
as condições de sua detenção e a instrução dos processos.
Em seguida, analisava registros em que constavam denúncias, acusações e
inquéritos, bem como livros de contabilidade e nomeações de funcionários.
Eram também examinadas as relações internas, ou seja, se existia harmonia ou
intrigas, quem encetava as discórdias, quem era indisciplinado etc. Observa-se, portanto, que
o comportamento dos funcionários também era objeto do inquérito.
O visitador também investigava a aplicação das normas de processo penal. Neste
momento, é importante destacar que eram averiguadas apenas questões de ordem formal, ou
seja, não se apreciava, por exemplo, se os presos estavam sendo submetidos a tratamentos
cruéis, visto que a tortura e a arbitrariedade eram corriqueiras na atividade inquisitorial.
Dessa forma, o visitador examinava apenas se o processo estava sendo conduzido de acordo
com as regulamentações do Conselho.
Os familiares, a observância dos procedimentos administrativos e a atividade dos
funcionários responsáveis pelos bens confiscados dos hereges constituíam também objeto das
investigações do visitador.
Dentre as contravenções constatadas através do inquérito, encontravam-se
violações ao segredo do processo, negligência administrativa, descumprimento de normas
processuais, desvios de dinheiro, concussão e extorsão, esta ocorria principalmente no que
dizia respeito à nomeação de familiares.
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Os inquéritos dos visitadores geralmente possuíam milhares de páginas com


vários depoimentos de funcionários e testemunhas e com relatórios das pesquisas feitas nos
arquivos do tribunal, dentre outras provas. Os inquéritos eram, então, apresentados ao
Conselho, que analisava as punições, as quais, em sua maioria, eram de caráter pecuniário.
Em Portugal, as visitas foram mais concentradas e menos regulares. A primeira,
realizada em 1.571, em Lisboa, teve caráter experimental. O formulário do inquérito
compreendia, dentre outros itens, quesitos sobre problemas de disciplina e de comportamento
dos funcionários e sumário das acusações.
Já a segunda, ocorrida sete anos depois, proporcionou considerável ampliação do
questionário, que apresentava itens sobre os problemas do iter processual, sobre a nomeação
de familiares e o controle da entrada de livros proibidos nos portos.
No caso português, os inquéritos constatavam principalmente comércio ilegal dos
bens confiscados; apropriação pelos inquisidores de bibliotecas inteiras e bens apreendidos
dos hereges; a ocupação de imóveis confiscados pelos próprios agentes do Santo Ofício.
As visitas, em Portugal, não produziram resultados palpáveis. As acusações
diziam respeito, em sua maioria, a problemas menores de organização e, quando apareciam
denúncias mais sérias envolvendo um agente superior, não se aplicavam sanções vigorosas;
pelo contrário, o agente podia até mesmo desfrutar uma carreira brilhante.
Em virtude do que foi acima revelado, pode-se perguntar de que serviram as
inspeções aos tribunais, se os resultados dos inquéritos não acarretavam sanções mais
veementes aos agentes que cometiam faltas graves. A resposta é simples: de fato, admite-se
que as visitas aos tribunais não sanavam as ilicitudes ocorridas nos mesmos, porém elas
serviam, por um lado, para definir o nível de irregularidade aceitável, por outro, eram
utilizadas como instrumento de reafirmação do poder do inquisidor-geral ou dos Conselhos
Gerais.

6.2 O controle das pessoas

As instruções espanholas de 1.498 impunham visitas aos locais do distrito que


ainda não tinham sido submetidos à ação inquisitorial. Essas instruções estabeleciam que a
visita consistisse no deslocamento dos inquisidores da sede do distrito durante boa parte do
ano, geralmente de quatro em quatro meses, conforme se estabeleceu em 1.517.
Os inquisidores possuíam bastante autonomia, podendo castigar pequenos delitos
no local, prender suspeitos de crimes mais graves e instaurar processos. As multas e confiscos
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de bens desempenhavam papel muito importante no contexto das visitas, pois representavam
verdadeiro instrumento fiscal para manutenção financeira da instituição.
Posteriormente, em 1.561, as atribuições dos inquisidores foram limitadas, visto
que não podiam mais tomar a decisão de prender um suspeito sem consultar seus colegas
previamente. Além disso, os presos deviam ser transportados de imediato para a sede do
tribunal, onde deviam ser processados e julgados pelos juízes reunidos. Dessa forma, o
visitador ficava apenas com a competência de punir os delitos menores.
O sistema de visitas não perdurou muito na Espanha, principalmente devido ao
aumento dos custos das mesmas e às dificuldades financeiras que isso acarretava aos cofres
dos tribunais. Desse modo, constatou-se o declínio dessa prática já em 1.580. É importante
ressaltar que não foram apenas os problemas financeiros que impediram as visitas, mas
também a recusa dos inquisidores de saírem da sede do tribunal, bem como a sedentarização
deste através do implemento da rede de familiares e comissários. Tornou-se, portanto,
desnecessária a visita, em virtude dessa mudança administrativa no tribunal.
Quanto às visitas em Portugal, inicialmente, destaca-se uma diferença com o
sistema espanhol. Neste, a responsabilidade de realização da visita recaía nos inquisidores,
embora sob o controle e a fiscalização do Consejo. Em Portugal, a responsabilidade da
organização das visitas é centralizada pelo Conselho Geral da Inquisição. Apesar de pouco
intensas em comparação ao ritmo espanhol, as visitas portuguesas abragiam praticamente
todo o território. Os visitadores, no caso português, não eram inquisidores, e sim jovens
funcionários em início de carreira.
Durante o período de estabelecimento dos tribunais, as visitas funcionaram como
uma ferramenta para acumulação rápida de grande número de informações, o que permitiu o
desencadeamento das primeiras perseguições.
Em suma, o sistema de visitas decaiu muito antes do enfraquecimento da própria
Inquisição. Mas, ainda assim, tiveram a sua importância. Em primeiro lugar, um dos
objetivos principais das visitas não era diretamente o controle das crenças e do
comportamento populares, e sim o impacto que causavam na sociedade, bem como tinham a
finalidade de exprimir e consolidar a preeminência dos visitadores, que, em cada local onde
atuavam, estavam representando a própria Inquisição. Dessa forma, as visitas simbolicamente
fixavam na mente das pessoas que os tribunais do Santo Ofício significavam o advento e a
consolidação de um novo poder, ao qual ninguém podia se subtrair sem sofrer dura repressão.
21

6.3 O controle dos livros

Desde 1.521, o controle de livros pela Inquisição espanhola tornou-se corriqueiro,


engendrando-se formas de vigilância dos locais de impressão, importação e distribuição dos
exemplares proibidos. Em Portugal, as visitas começaram em 1.551. Periodicamente, os
Conselhos da Inquisição, tanto o espanhol quanto o português, publicavam o Index Librorum
Prohibitorum – o catálogo dos livros proibidos.
Nas décadas seguintes, o Consejo nomeou vários agentes para a inspeção de
livrarias. A atividade desses agentes consistia no seguinte: sem prévio aviso, ocupavam,
concomitantemente, todas as livrarias da cidade, selavam-nas e impediam a entrada de
qualquer pessoa, até mesmo do proprietário. Em seguida, um comissário pedia ao livreiro,
sob juramento, um memorando dos seus livros, interrogava-o sobre suposta circulação de
exemplares proibidos e, por fim, vasculhava os fundos do estabelecimento. Quando o
comissário deparava com algum volume que não constava no índex, mas cujo conteúdo era
suspeito, imediatamente lacrava-o e enviava-o ao Conselho. Mais tarde, em 1.558, as visitas
foram ampliadas às tipografias; em Portugal, isso aconteceu em 1.575. As bibliotecas
também eram alvo dessas inspeções.
Além disso, a intensidade da censura ficou marcada também pela decisão dos
inquisidores-gerais de exigir a apresentação de uma lista de livros de todas as pessoas que os
possuíssem, independentemente de comercializá-los ou não.
Na década de 1.550, Portugal e Espanha impuseram o controle de livros também
nos navios. Dessa forma, os agentes da Inquisição interrogavam o capitão e os oficiais da
embarcação sobre eventual circulação de obras proibidas.
Em linhas gerais, os exemplares especificados no índex eram livros luteranos,
calvinistas, científicos, dentre outros. Quanto aos autores mais censurados podem-se citar
Maquiavel, Erasmo de Rotterdam, Voltaire, Montesquieu, Rousseau, Thomas Hobbes,
Miguel de Cervantes e Giordano Bruno.
Nesta ocasião, é imprescindível enfatizar que não importa quantas edições
desapareceram ou quantos exemplares foram conservados clandestinamente e quantas
pessoas os leram. O maior problema era a impetuosidade da censura, ou seja, por mais que a
população adquirisse tais livros, estes não tinham aptidão para ser produtivos.
Individualmente, podiam ser lidos e compreendidos, mas jamais seriam comentados no
cotidiano nem citados em textos, em outras palavras, não podiam nunca fazer parte da
opinião pública.
22

6.3.1 Censurados pela Inquisição

Dentre milhares de obras proibidas pela Inquisição, citar-se-ão algumas que


tiveram importância tanto na sua época quanto atualmente. Trata-se de “Elogio da Loucura”,
“Leviatã”, “Do Espírito das Leis” e “Dicionário Filosófico”.
Erasmo de Rotterdam, considerado o “príncipe dos humanistas”, usava uma
linguagem bastante simples, elegante e, muitas vezes cômica, para esclarecer problemas
teológicos de sua época. Em várias passagens de “Elogio da Loucura”, escrito em 1.509, faz
críticas perspicazes e irônicas à Igreja. Declara que não existem pessoas mais irreligiosas do
que os que se dizem religiosos e compara-os a “aves de mau agouro”. Critica também que os
membros do clero nada fazem e julgam que sabem demais quando conseguem decorar pelo
menos os números dos salmos. Revela também que alguns membros de ordens mendicantes
usam camisas finas por baixo do hábito de penitência. Por fim, o holandês afirma que nada
que o clero faz tem valor algum, pois Jesus Cristo só julgará cada ser humano pela sua
caridade. Neste sentido, transcrevemos:

Depois desses, segue-se imediatamente a espécie melhor do gênero animal, isto é,


os que vulgarmente se chamam monges ou religiosos. Seria, porém, abusar
grosseiramente dos termos chamá-los, ainda hoje, por tais nomes. Com efeito, por
via de regra, não há pessoas mais irreligiosas do que essas e, como a palavra monge
significa solitário, parece-me não se poder aplicá-las mais ironicamente às pessoas
que se encontram em toda parte, acotovelando-se a cada passo. Sem o meu socorro,
que seria desses pobres porcos dos deuses? São de tal forma odiados que, quando
por acaso são vistos, costuma-se tomá-los por aves de mau agouro. Isso não impede
que cuidem escrupulosamente da sua conservação e se considerem personagens de
alta importância. A sua principal devoção consiste em não fazer nada, chegando ao
ponto de nem ler. Sem dar-se ao trabalho de entender os salmos, já se julgam
demasiado doutos quando lhes conhecem o número, e, quando os cantam em coro,
imaginam enlevar o céu com a asnática melodia. Entre esse variegado rebanho,
alguns se encontram que se gabam da própria imundície e da própria mendicidade,
indo de casa em casa esmolar, mas com uma fisionomia tão descarada que parecem
mais exigir um crédito do que pedir a esmola. Albergues, botequins, carros,
diligências, todos, em suma, são por eles importunados, com grande prejuízo dos
verdadeiros necessitados. É dessa forma que pretendem ser, como dizem eles, os
nossos apóstolos, com toda a sua imundície, toda a sua ignorância, toda a sua
grosseria, todo o seu descaramento. Nada mais ridículo do que a ordem exata e
precisa que observam em todos os seus atos: tudo é feito por eles a compasso e à
medida. Os sapatos devem ter tantos nós, o cíngulo deve ser de tal cor, a roupa
composta de tantas peças, a cinta de tal qualidade e de tal largura, o hábito de tal
forma e de tal tamanho, a coroinha de tantas polegadas de diâmetro. Além disso,
devem comer, a tal hora, tal qualidade e tal quantidade de alimento, dormir somente
tantas horas, etc. Ora, todos podem compreender muito claramente que é
impossível conciliar tão precisa uniformidade com a infinita variedade de opiniões
e de temperamentos. Pois é nessa metódica exterioridade que os monges encontram
argumento para desprezar os que eles chamam de seculares. Muitas vezes, dá causa
a sérias contendas entre as diferentes ordens, a ponto de essas santas almas que se
vangloriam de professar a caridade apostólica se destruírem mutuamente. E por
quê? Por causa de um cíngulo diverso ou da cor mais carregada da roupa.
23

Alguns desses reverendos mostram, contudo, o hábito de penitência, mas


evitam que se veja a finíssima camisa que trazem por baixo; outros, ao
contrário, trazem externamente a camisa, e a roupa de lã sobre a pele. Os mais
ridículos, a meu ver, são os que se horrorizam ao verem dinheiro, como se se
tratasse de uma serpente, mas não dispensam o vinho nem as mulheres. Não podeis,
enfim, imaginar quanto se esforçam por se distinguirem em tudo uns dos outros.
Imitar Jesus Cristo? É o último dos seus pensamentos. Muito se ofenderiam se lhes
dissésseis que obtiveram isto ou mais aquilo deste ou daquele instituto. Julgais que
a enorme variedade de sobrenomes e de títulos não deleite muito os seus ouvidos?
Há os que se gabam de chamar-se franciscanos, tronco que se subdivide nos
seguintes ramos: os reformados, os menores observantes, os mínimos, os
capuchinhos; outros se dizem beneditinos; estes se chamam bernardinos e aqueles,
de Santa Brígida; outros são de Santo Agostinho; estes se denominam guilherminos
e aqueles, jacobitas, etc. Como se não lhes bastasse o nome de cristãos. Quase
todos confiam tanto em certas cerimônias e em certas tradiçõezinhas humanas, que
um só paraíso lhes parece um prêmio muito modesto para os seus méritos. No
entanto, Jesus Cristo, apesar de todas essas macaquices, só julgará os homens
pela caridade, que é o primeiro dos seus mandamentos. Em vão, tremendo no
dia do juízo final, apresentarão eles a Deus um corpo bem nutrido por tudo quanto é
peixe; em vão lhe oferecerão o canto dos salmos e os inúmeros jejuns; em vão
sustentarão que arruinaram a barriga com uma única refeição; em vão produzirão
uma porção de práticas fradescas, capazes de carregar pelo menos sete navios; em
vão se gabará este de ter passado sessenta anos sem tocar em dinheiro, a não ser
com dois dedos muito sujos; em vão mostrará aquele o seu hábito tão sórdido que
até um barqueiro se recusaria a vesti-lo; em vão se gabará outro de ter vivido
cinqüenta e cinco anos sempre encerrado em seu claustro, como uma esponja; em
vão aquele fará ver que perdeu a voz de tanto cantar, e este, que a longa solidão lhe
perturbou o cérebro; em vão dirá um outro que o perpétuo silêncio entorpeceu-lhe a
língua. Interrompendo todas essas gabolices (pois do contrário seria um nunca
mais acabar), Jesus Cristo dirá: - De que pais vem essa nova raça de judeus?
Pois não dei aos homens uma lei única? Sim, e somente essa eu reconheço
como verdadeiramente minha. E esses malandros não dizem sequer uma
palavra a respeito? Abertamente e sem parábolas, eu prometi, outrora, a
herança do meu Pai, não às túnicas, nem às oraçõezinhas, nem à inédia, mas à
observância da caridade. Não, não reconheço pessoas que apreciam demais as
suas pretensas obras meritórias e querem parecer mais santas do que eu
próprio. Procurem, se quiserem, um céu à parte. Mandem construir um
paraíso por aqueles cujas frívolas tradições eles preferiram à santidade dos
meus preceitos. (01, grifos nossos)

Já o inglês Thomas Hobbes, apesar de ser um filósofo absolutista, chegou a


criticar a Igreja e a Inquisição de forma sutil em “Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um
Estado Eclesiástico e Civil”, escrito em 1.651:

A missão dos ministros de Cristo neste mundo, não obstante, é levar os homens a
crer e ter fé em Cristo. A fé, porém, não tem qualquer relação ou dependência
com a coerção e a autoridade, mas apenas com a certeza ou probabilidade de
argumentos tirados da razão ou de alguma coisa em que se acredita. Os ministros
de Cristo neste mundo, enfim, não recebem com esse título qualquer poder
para punir alguém que não acredite ou contradiga o que dizem, quer dizer, o
título de ministros cristãos não lhes dá o poder de punir a ninguém. (02, grifos
nossos)

O francês Montesquieu também execrou a Inquisição. Em “Do Espírito das Leis”,


escrito em 1.748, apresenta um discurso pronunciado por um judeu após a execução em um
auto da fé, em Lisboa, de uma jovem de sua nação. Esse texto destaca muito bem as
24

incoerências da Igreja na perseguição religiosa e denuncia a violência como uma afronta aos
direitos humanos e à filosofia iluminista. Montesquieu considera a Inquisição uma
manifestação de suprema ignorância e grosseria, bem como de intolerância. Vamos, então, ao
texto, que se intitula “Exortação muito humilde aos inquisidores da Espanha e de Portugal”,
cujas passagens, em alguns momentos, são carregadas das emoções do autor, que faz um
verdadeiro desabafo contra a intolerância da Igreja:

Uma judia de dezoito anos, que foi queimada em Lisboa no último auto-da-fé, deu
motivo a essa pequena obra; e acredito ter sido esta a mais inútil entre todas que já
foram escritas. Quando se trata de provar coisas tão claras, estar-se-á certo de não
convencer.
O autor declara que, apesar de ser judeu, respeita a religião cristã, e que ele a ama
bastante para retirar aos príncipes que não são cristãos um pretexto plausível para a
perseguir.
Diz ele aos inquisidores: Vós vos queixais de que o imperador do Japão mandou
queimar lentamente todos os cristãos que estavam em seus Estados; mas ele vos
responderá: “Nós vos tratamos, a vós que não tendes a mesma crença que nós, do
mesmo modo que vós próprios tratais os que não acreditam no mesmo que vós
acreditais; vós só podeis vos queixar de vossa fraqueza que vos impede de nos
exterminar, e que faz com que nós vos exterminemos”.
Mas é preciso confessar que sois muito mais cruéis do que esse imperador. Vós
nos fazeis morrer, a nós que só acreditamos naquilo que vós acreditais, apenas
porque não acreditamos em tudo o que vós acreditais. Seguimos uma religião que
vós sabeis, vós próprios, ter sido outrora a religião querida de Deus; e pensamos
que Deus ainda a ama; e vós acreditais que ele deixou de amá-la; e, porque vós
assim o julgais, fazeis passar pelo ferro e pelo fogo os que se encontram nesse
erro tão perdoável, de acreditar que Deus ainda ama aquilo que antes amou.
E sois cruéis a nosso respeito, sois ainda muito mais quanto a nossos filhos; vós os
mandai queimar porque seguem as inspirações que lhes são dadas por aqueles que
a lei natural e a lei de todos os povos lhes ensinam a respeitar como deuses.
Privais-vos da vantagem que vos deu sobre os maometanos, a maneira pela qual
sua religião está estabelecida. Quando eles se vangloriam do número de seus fiéis,
vós lhes respondeis que foi à força que o conseguiram, e que propagaram sua
religião com auxílio do ferro; por que então estabeleceis a vossa pelo fogo?
Quando quereis nos aproximar de vós, nós vos objetamos uma origem da qual vós
vos vangloriais de descender. Respondeis que vossa religião é nova, mas que é
divina, e isso o provais porque ela se alastrou com a perseguição aos pagãos e
com o sangue dos vossos mártires; mas hoje assumis o papel dos Dioclecianos, e
nos obrigais a assumir o vosso.
Nós vos conjuramos, não pelo Deus poderoso que nós e vós servimos, mas pelo
Cristo que dizeis ter tomado a forma humana, a fim de vos propor exemplos que
pudésseis seguir; nós vos conjuramos a agir para conosco como ele próprio agiria
se ainda estivesse sobre a terra. Quereis que sejamos cristãos e não o quereis ser
vós próprios.
Mas, se não quiserdes ser cristãos, sejais, pelo menos, homens. Tratai-nos assim
como faríeis se, não possuindo esses fracos lampejos de justiça que a natureza
nos dá, tivésseis uma religião para vos conduzir e uma revelação para vos
esclarecer.
Se o céu vos tem amado o bastante para fazer-vos conhecer a verdade, ele vos deu
uma grande graça; mas compete aos filhos que receberam a herança de seu pai
odiar os que não a receberam?
E, se possuís essa verdade, não a oculteis de nós pela maneira pela qual ela nos é
apresentada. O caráter da verdade será o seu triunfo sobre os corações e os
espíritos, e não essa impotência que revelais quando quereis fazê-la reconhecer
por meio de suplícios.
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Se fordes razoáveis, não deveis nos matar, pois não queremos vos enganar. Se o
vosso Cristo é o filho de Deus, esperamos que ele nos recompense por não termos
querido profanar os seus mistérios; e acreditamos que o Deus a que servimos,
tanto nós como vós, não nos punirá por termos padecido a morte por uma religião
que ele outrora nos deu, porque acreditamos ainda que a tenha dado a nós.
Viveis em um século em que a luz natural é mais viva do que nunca, em que a
filosofia esclareceu os espíritos, em que a moral de vosso Evangelho é mais
conhecida e em que os direitos respectivos dos homens uns para com os outros – o
império que uma consciência tem sobre outra consciência – estão melhor
estabelecidos. Se, portanto, não abandonais vossos antigos preconceitos que, se
não vos resguardardes, tornar-se-ão vossas paixões, será forçoso confessar que
sois incorrigíveis, refratários a toda luz e a toda instrução; e será bem infeliz
uma nação que outorga a autoridade a homens como vós.
Quereis que vos declaremos simplesmente nosso pensamento? Vós nos considerais
mais como vossos inimigos do que como inimigos da vossa religião, pois, se
amásseis vossa religião, não consentiríeis que fosse corrompida por uma
ignorância grosseira.
É preciso que vos façamos uma advertência: se alguém na posteridade ousar
dizer alguma vez que no século em que vivemos os povos da Europa eram
civilizados, vós sereis citados como prova de que eles eram bárbaros, e a idéia
que será feita a vosso respeito será tal que aviltará vosso século e fará recair o
ódio sobre todos os vossos contemporâneos. (03, grifos nossos)

Em 1.764, o francês Voltaire, em “Dicionário Filosófico”, fez veementes críticas


aos dogmas eclesiásticos e à doutrina cristã. Mesmo vivendo em um período em que a
atividade inquisitorial já se encontrava em decadência, Voltaire sempre foi um autor
amaldiçoado pela Inquisição. Todas as suas obras constavam no índex. Para ilustrar,
transcrevemos um trecho de seu “Dicionário Filosófico”:

Jesus nasceu sob a lei mosaica, segundo esta lei foi circunciso, dela cumpriu todos
os preceitos e celebrou todas as festas. Só pregou moral. Não revelou o mistério da
própria encarnação nem disse aos judeus haver nascido de uma virgem. Recebeu a
bênção de João Batista nas águas do rio Jordão, cerimônia a que muitos judeus se
submetiam, conquanto ele próprio jamais tenha batizado ninguém. Não falou dos
sete sacramentos. Humanamente não se colocou em nenhuma hierarquia
eclesiástica. Ocultou a seus contemporâneos ser filho de Deus, eternamente gerado,
consubstancial a Deus, e que o Espírito Santo procedia do Pai e do Filho. Não disse
que sua pessoa se compunha de duas naturezas e de duas vontades. (04)

Observa-se, dessa forma, que Voltaire ameaçava seriamente a legitimidade da


Inquisição, visto que desmistificava tudo aquilo que lhe servia de base, prejudicando a
autoridade e o poder da própria Igreja. Em verdade, analisando o trecho acima, percebe-se
que Voltaire tentou demonstrar que a Igreja católica, com todas as suas ordens, o clero e os
dogmas, não foi criação de Jesus Cristo. Portanto, quem não quisesse se submeter a tal
instituição, não estava praticando nenhuma ilicitude.
26

7 OS ÉDITOS

Os éditos elaborados pelo Santo Ofício representavam peças fundamentais na ação


inquisitorial. Em linhas gerais, demarcavam publicamente as atividades da Inquisição,
estabelecendo períodos de denúncia e de graça, controlando a vida da sociedade com avisos e
proibições, obrigando a população a se manter em constante estado de alerta.
A matéria abrangida pelos éditos era a mais vasta possível, pois, basicamente,
continha as classificações e a tipologia de todos os delitos submetidos à jurisdição
inquisitorial. Periodicamente, essas listas classificatórias eram atualizadas na medida em que
surgiam novos movimentos heterodoxos, ou, quando se deliberava reforçar a repressão a
determinadas práticas heréticas.
Quanto aos tipos, os éditos eram bastante diversificados. Havia os éditos da graça,
os éditos gerais da fé e os particulares. Os locais e o momento de sua publicação variavam.
Geralmente eram publicados em igrejas ou praças públicas durante a Quaresma.
É importante esclarecer que, apesar de, em alguns momentos, os éditos terem se
mostrado relacionados aos grandes eventos inquisitoriais, como os autos da fé e as visitas de
distrito, sua existência sempre foi independente desses elementos, de modo que sua
publicação subsistiu até a abolição do Santo Ofício.
27

7.1 A publicação

A publicação dos éditos nunca foi objeto de regulamentação organizada. Quando


da fundação da Inquisição em Espanha e Portugal, os primeiros éditos foram submetidos à
apreciação régia, tendo sido, em seguida, controlados pelo inquisidor-geral e pelos
Conselhos.
O período de publicação dos éditos da fé recaía, na maioria das vezes, na
Quaresma, momento crucial para os católicos, quando se renova para todos os fiéis a
obrigação anual de confissão e de comunhão. Dessa forma, o intuito da Inquisição era que os
verdadeiros cristãos, ao fazerem um exame de consciência, denunciassem os hereges.
Quanto ao rito da publicação, inicialmente, era feito o anúncio por pregão, ocasião
em que toda a comunidade era convocada a comparecer às igrejas no domingo seguinte para
que ouvisse a leitura do documento.
O pregão era realizado na sexta-feira ou no sábado, em nome dos inquisidores, por
um cortejo do qual participavam a cavalo, caso a cidade fosse sede de tribunal, o secretário
do mesmo, um meirinho e um grupo de familiares escolhidos.
Toda essa comitiva partia do palácio da Inquisição e percorria as principais ruas
da cidade, fazendo o anúncio nos lugares habituais. Durante todo o trajeto, o cortejo era
acompanhado por som de instrumentos musicais, tais como acontecia em ocasiões festivas. O
pregão obrigava, sob pena de excomunhão, todas as pessoas maiores de doze anos a
comparecer à missa maior no domingo seguinte, onde seria lido o édito e pregado o sermão
da fé.
No dia da tão aguardada missa, os inquisidores saíam de seu palácio em procissão
até a catedral. Quando lá chegavam, eram recebidos pelos cônegos, que os saudavam e
acompanhavam-nos até os seus lugares no altar-mor. Depois que todos estivessem
acomodados, a missa era iniciada.
Depois do Evangelho, a missa era suspensa para que fosse lido o édito. Neste azo,
é de grande relevância registrar que, em algumas cidades, no intuito de marcar sobremaneira
a solenidade da cerimônia, era determinado às autoridades civis e à população presente um
juramento de fidelidade à religião, de apoio ao Santo Ofício e de perseguição aos hereges ou
denúncia dos mesmos. Esse juramento era feito logo após o Evangelho ou depois do sermão
da fé.
Lido o édito, procedia-se à pregação do sermão da fé, cujo conteúdo era
cuidadosamente delineado pelo tribunal e, algumas vezes, era objeto de instruções. O sermão
28

da fé tinha a função de interpretar os artigos do édito, justificar a obrigatoriedade de


denunciar as heresias, elucidar os benefícios da ação inquisitorial e enfatizar a misericórdia
do tribunal. Por fim, depois da missa, o édito era fixado à porta da igreja.

7.2 Éditos da graça

A publicação do édito era seguida da proclamação de um “tempo de graça”,


período de até um mês em que todos os praticantes de crimes heréticos podiam se apresentar
espontaneamente para confessar suas faltas perante os inquisidores, obtendo com isso alguns
benefícios. O tempo de graça, quando previsto, era consignado no final do édito. Nesse caso,
era denominado “édito da graça”.
Conferia, em linhas gerais, os seguintes benefícios para quem se apresentasse
espontaneamente: perdão da pena de morte ou da prisão perpétua e o perdão da pena de
confisco de bens.
Neste momento, deve-se fazer uma análise mais detalhada acerca do édito da
graça, pois essa aparente misericórdia era apenas um mecanismo para esconder uma
verdadeira armadilha. Em verdade, a confissão só era considerada se os inquisidores
verificassem sua sinceridade, apurada mediante critérios eminentemente subjetivos. Ademais,
a confissão, nesse caso, não era um ato simples, pois era seguida de interrogatórios que
tinham em vista averiguar todos os detalhes concernentes aos atos narrados pelos hereges.
Ocorre que, através desses interrogatórios, a Inquisição concretizava o seu
propósito de identificar os cúmplices desses atos. Em suma, o édito da graça era
verdadeiramente uma emboscada, que ensejava a produção de inúmeras denúncias. Desse
modo, tratava-se de um estratagema que contribuiu para a formação de um rico arquivo de
suspeitos, que, posteriormente, foram submetidos a inquérito. Até mesmo quem se
apresentava espontaneamente podia se submeter a penas menores.
No que concerne aos delitos especificados nos éditos da graça, verifica-se, em
especial na Espanha, que o alvo eram os cristão-novos de origem hebraica. Segundo a
Inquisição, eles eram judeus que se converteram ao catolicismo, mas mantinham ainda certos
ritos e hábitos de sua antiga religião, fato que configurava grave crime de heresia.
Em seguida, os éditos passaram a dar destaque à comunidade mourisca. Porém,
devido ao fato de os muçulmanos serem mais discretos, inclusive por motivos religiosos, os
éditos a eles referentes não alcançaram muita eficácia.
29

Outros delitos que se faziam constantemente presentes nos éditos da graça eram a
feitiçaria e as correntes espiritualistas. Já no período de declínio da atividade inquisitorial,
houve uma preocupação muito grande também com a maçonaria.

7.3 Os éditos da fé

A estrutura desses éditos consistia no protocolo inicial, no texto e no protocolo


final. No protocolo inicial, constava um espaço destinado à identificação da autoria do
documento, no entanto, os inquisidores apenas se designavam no plural, com a finalidade de
destacar o tribunal enquanto instituição. Ainda em tal protocolo, especificava-se a área
geográfica de atuação dos inquisidores. A parte dispositiva era o elemento central do édito da
fé e compreendia a classificação e a tipificação dos crimes da alçada inquisitorial.
Inicialmente, observa-se que os éditos apresentavam tipologias genéricas de
crimes, ou seja, apontavam, por exemplo, que as práticas judaizantes e islamizantes eram
delitos de heresia, mas não havia explicações muito detalhadas acerca dos elementos
tipificadores dos crimes.
Tal situação diz respeito apenas a uma fase bem inaugural do Santo Ofício. Já a
partir da década de 1.530, os éditos passaram a ter um texto bem mais esclarecedor. No
tocante ao judaísmo e ao islamismo, todas as práticas cerimoniais e os aspectos doutrinários
dessas religiões eram organizados e distribuídos em vários artigos, delineando dessa forma a
tipificação desses delitos. De fato, a Inquisição se empenhou em pormenorizar ao máximo
tudo o que se referia a tais religiões, dispondo até mesmo sobre suas festas, jejuns, orações,
livros sagrados e preparação de alimentos. O luteranismo e o calvinismo também passaram a
ser caracterizados em artigos específicos, bem como a magia, a adivinhação e a feitiçaria. Os
livros proibidos também eram especificados em éditos da fé.
No entanto, tais documentos não apenas dispunham sobre crimes relacionados
diretamente à pratica de heresias. Continham também especificações acerca de preocupações
constantes do Santo Ofício, referentes à sua atividade. Dessa forma, os éditos passaram a
estabelecer em seu texto a tipificação dos crimes de corrupção de testemunhas para a
produção de declarações falsas; embaraço à ação inquisitorial; não execução das penas
impostas; negação das confissões feitas perante o tribunal; simpatia pelos condenados, visto
por alguns como mártires.
Ao final, quando o Santo Ofício já se encontrava em fase de extinção, alguns
éditos retornaram à fórmula inicial, ou seja, tipificaram os delitos de maneira mais genérica.
Neste momento, destacam-se os éditos que concentraram seus ataques contra a filosofia das
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Luzes, contendo apelos à denúncia dos que adotavam as idéias iluministas, especialmente as
de Voltaire, Rousseau e seus discípulos.

7.3.1 O protocolo final: anátema

Em seu protocolo final, os éditos previam a excomunhão generalizada de todas as


pessoas que, cientes das práticas heréticas, não tivessem efetuado as respectivas denúncias
nem houvessem se apresentado para a confissão no prazo assinalado. Quem assim procedia
passava a ter a reputação de protetores dos hereges e eram considerados suspeitos de heresia,
sendo submetidos às censuras inquisitoriais.
Na Espanha, tais censuras se materializavam por meio de uma cerimônia solene
que consistia na revelação do anátema no dia em que findava o prazo concedido para
denúncias e confissões. É importante anunciar que tal solenidade não acontecia em Portugal.
A publicação do anátema era comunicada com um dia de antecedência, seguindo
os mesmos ritos do pregão do édito da fé. No domingo, que geralmente correspondia ao
término do prazo para denúncias e confissões, a carta era lida durante a missa em todas as
igrejas do distrito, sempre após o Evangelho e antes do sermão. Em tal cerimônia, fazia-se
um resumo de todos os delitos consignados nos éditos da fé, em seguida, todos os hereges e
seus “protetores” eram tratados como rebeldes contumazes e ameaçados de anátema caso não
comparecessem ao tribunal em novo período de três dias.
O anátema, propriamente dito, acontecia em data diversa daquela de sua
publicação. Tratava-se de uma cerimônia cheia de minúcias: no meio da missa, após o credo,
o padre organizava uma pequena procissão com outros religiosos desde a porta da igreja até o
altar-mor; o padre vestia um manto negro, enquanto os clérigos usavam sobrepeliz, as
cabeças cobertas por capuzes, todos eles segurando velas acesas e levando diante de si uma
cruz coberta por um manto negro, em sinal de luto, todos entoando o canto Kyrie Eleison
(“Senhor, tem piedade”).
Diante do altar-mor, paravam de acordo com a ordem hierárquica e entoavam
passagens de salmos. Por fim, advinha o anátema, que correspondia à excomunhão, seguida
do gesto de apagar as velas na água, representando o padecimento das almas dos rebeldes no
inferno. Logo após, os sinos da igreja tocavam em sinal de luto.
O anátema consistia, além da excomunhão, no lançamento de maldições aos
hereges e seus simpatizantes. Para exemplificar, citemos algumas delas proferidas pelo
tribunal de Córdoba, publicadas por volta de 1.630, traduzidas por Francisco Bethencourt:
31

Que a maldição de Deus Todo-Poderoso [...] e de todos os Santos do Céu venha


sobre vós e cada um de vós, assim como todas as pragas do Egito e as maldições
que caíram sobre o faraó e seu povo. [...] Que vossos dias sejam curtos e penosos.
Que vossos bens caiam nas mãos de estranhos que os possam gozar. Que vossos
filhos sejam órfãos e caiam na necessidade. [...] Que malditos sejam o pão, o vinho
e a carne que vós comeis e bebeis, a roupa que vestis, as camas onde dormis, que
vós sejais malditos com todas as maldições do Antigo e do Novo Testamento,
malditos com Lúcifer, Judas e todos os diabos dos Infernos, que eles sejam vossos
senhores e vossa companhia. Amém. (05)

Dessa forma, observa-se como o anátema representava uma violência simbólica


exacerbada, caracterizando significativamente o aspecto de coerção que fazia parte da
essência do Santo Ofício.

7.4 Os éditos particulares

Tais documentos possuíam a mesma natureza dos éditos da fé, podendo prever,
inclusive, um tempo de graça. A particularidade, in casu, diz respeito à especificidade desses
éditos. Ou seja, seu conteúdo era voltado à apreciação de um tipo específico de delito.
Na Península Ibérica, os éditos de proibição de livros eram os mais populares. O
que ensejou sobremaneira tal circunstância foram ordens papais incisivas acerca da proibição
de livros luteranos. Havia abundância de éditos que dispunham sobre livros específicos, não
apenas nos intervalos de publicação dos catálogos das obras proibidas, mas também após o
declínio destes. Em verdade, a elaboração desses catálogos era tão minuciosa que, às vezes,
demorava dezenas de anos para ser concluída, situação que propiciou a divulgação dos éditos.
Sobre o seu conteúdo, os éditos estabeleciam as obras que podiam livremente ser
lidas, comercializadas e produzidas, portanto sua função era de exclusão dos livros proibidos,
quais sejam os que não figuravam no respectivo documento.
Havia, porém, muitos outros éditos referentes a delitos bem específicos. A
maçonaria, por exemplo, foi objeto de éditos, assim como a feitiçaria. Quanto a este último, é
interessante notar que os éditos a ele concernentes previam a condenação à pena capital de
todos os feiticeiros que tivessem provocado a morte por intermédio de suas artes ou de pactos
com o diabo. Percebe-se a grande dificuldade, ou mesmo a impossibilidade de provar tal
crime. Ademais, observa-se certo disparate, visto que, se a Inquisição condenava quem assim
procedia, isso significa que ela mesma acreditava nos efeitos da feitiçaria e dos pactos com o
diabo, o que demonstrava que o próprio Santo Ofício era uma instituição que ainda
conservava resquícios de paganismo e superstições, práticas por ele mesmo execradas.
32

8 OS AUTOS DA FÉ

Antes de efetuar maior aprofundamento neste assunto, é imprescindível


conhecermos e analisarmos um interessante e popular texto de Voltaire, que se encontra em
uma das suas obras mais lidas e discutidas, “Cândido ou O Otimismo”. O trecho que será
transcrito contém elementos importantes da cerimônia mais pomposa e solene da Inquisição,
bem como expõe alguns traços característicos da Igreja da época:

Depois do tremor de terra que destruiu três quartas partes de Lisboa, os


sábios do país não encontraram meio mais eficaz para impedir a ruína total
da cidade do que dar ao povo um auto-da-fé. Fora decidido pela Universidade
de Coimbra que o espetáculo de algumas pessoas queimadas a fogo lento, em
grande cerimonial, era um meio infalível de impedir a terra de tremer.
Apoderaram-se, por conseqüência, de um biscainho acusado de ter casado com
uma comadre e de dois portugueses que tinham comido um frango tirando-lhe
primeiro a gordura. Depois do jantar, foram também prender o doutor Pangloss e o
seu discípulo Cândido, um por ter falado e o outro por tê-lo escutado com um ar de
aprovação. Foram ambos levados separadamente para compartimentos de muito
frio, onde a luz do Sol nunca havia penetrado. Oito dias depois vestiram-lhes um
sambenito e enfeitaram-lhes as cabeças com mitras de papel. A mitra e o sambenito
de Cândido eram pintados de chamas invertidas e de diabos que não tinham cauda
nem garras, mas os diabos da mitra e sambenito de Pangloss tinham uma e outra
coisa, e as chamas eram retas. Foram levados em procissão assim vestidos e
ouviram um sermão patético, seguido de uma bela música em cantochão. Cândido
foi açoitado em cadência, enquanto cantavam. O biscainho e os dois homens que
tinham se recusado a comer a gordura foram queimados, e Pangloss,
contrariamente ao uso, foi enforcado. No mesmo dia, a terra tremeu de novo
com um ruído espantoso. (06, grifos nossos)

Observa-se que Voltaire retratou o auto da fé como um sacrifício decidido pelos


sábios da universidade para abrandar a ira de Deus. Trata-se de uma fórmula literária bastante
popularizada nos últimos séculos acerca do maior rito da Inquisição ibérica. Além disso, a
aclamada obra iluminista transpôs fronteiras e difundiu-se entre comunidades protestantes e
hebraicas, evidentemente solidárias com os perseguidos pelo Santo Ofício. Dessa forma,
chegou ao conhecimento até mesmo de um grupo expressivo de católicos, que se encontrava
na iminência de sensibilizar-se com o problema da intolerância religiosa.
A obra-prima de Voltaire, além de expressar o extremismo da Inquisição, destaca
também o fanatismo e os resquícios de paganismo presentes na Igreja. Percebe-se que, com
ironia e traços cômicos, relatou que nenhuma das medidas inquisitoriais tomadas aplacou a
cólera divina, pois, segundo Voltaire, “no mesmo dia, a terra tremeu de novo com um ruído
espantoso”. Esse texto é o que melhor caracteriza a imagem da Inquisição na memória
contemporânea.
33

8.1 A publicação

A execução do auto da fé era, preliminarmente, proposta pelo tribunal ao


Conselho da Inquisição. Isso ocorria quando a maioria dos processos já se encontrava na fase
de prolatação da sentença. É interessante notar que a maioria dos tribunais de distrito
finalizava apressadamente dezenas de processos e postergava o andamento de outros, no
intuito de reunir a maior quantidade possível de condenados, para que a solenidade ficasse
ainda mais grandiosa e marcante e, conseqüentemente, atraísse o maior número de
espectadores.
O édito que anunciava o auto da fé era publicado pelo menos oito dias antes da
cerimônia. Na Espanha, o tempo era maior, geralmente quinze dias ou até mesmo um mês.
De qualquer forma, era um período suficiente para que todos se preparassem para a
cerimônia, inclusive a Realeza, que, muitas vezes, comparecia na figura do vice-rei ou do
próprio rei.
Acima de tudo, o auto da fé era uma cerimônia de grande impacto, que mobilizava
todos os funcionários da Inquisição. De fato, quando esta instituição se consolidou, o auto da
fé passou a ser sua principal e mais importante solenidade, e era sempre realizada da maneira
mais majestosa possível. Algumas vezes, quando o número de condenados não era
expressivo, o Conselho da Inquisição determinava que tribunais adjacentes transferissem
alguns de seus presos cujos processos estivessem em fase de julgamento para que o
espetáculo ficasse mais imponente. Observa-se, portanto, a bizarrice dos autos da fé, em que
pessoas eram sacrificadas em público como se fizessem parte de uma grande peça de teatro,
sendo desrespeitada ao máximo a dignidade humana dos condenados.
Os reis e vice-reis eram sempre convidados, pois a presença real representava sua
superioridade hierárquica em relação à Inquisição, bem como conferia legitimidade ao Santo
Ofício. Já os bispos eram convidados por questão de mera civilidade, pois aos dignitários da
Igreja sempre estavam reservados lugares inferiores aos dos inquisidores, o que suscitava
alguns conflitos no decorrer da cerimônia.
Os dias que antecediam o auto da fé eram caracterizados por uma intensa
atividade dos tribunais e de toda a rede de funcionários. Nesse período, os tribunais de
distrito apresentavam seus relatórios de atividades ao Conselho e, após a aprovação deste, às
autoridades e à população.
Os processos eram concluídos, e os hereges, avisados, para que pudessem se
arrepender. As listas com os nomes dos penitentes e condenados eram copiadas para que
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fossem distribuídas no dia da cerimônia. No decorrer da semana, os hábitos penitenciais,


sambenitos, eram confeccionados, e um pintor era chamado à véspera do auto para desenhar a
face dos relaxados sobre os respectivos hábitos.

8.2 A encenação

Os “atores” sempre presentes, que representavam nos autos da fé, eram os


inquisidores, que também exerciam a função de diretores da cerimônia. O auto da fé era,
basicamente, uma apresentação pública, cujos acontecimentos principais eram a abjuração, a
reconciliação e o castigo. Todos esses eventos seguiam regras específicas integrantes de um
modelo comum às Inquisições ibéricas.
Tudo era organizado para que os elementos rituais tivessem realmente dimensão
teatral, com a construção de um palco, a elaboração de uma cenografia e a distribuição dos
papéis. Quanto ao período de realização, geralmente os autos ocorriam no ciclo da Páscoa,
iniciando na Quaresma e terminando no Pentecostes, o qual é uma celebração comemorada
no qüinquagésimo dia após a Páscoa e consagra a descida do Espírito Santo sobre a
comunidade cristã. Ou, conforme acontecia na maioria das vezes, o auto se realizava entre o
Pentecostes e o Advento, consistindo este no período de quatro semanas que antecedem a
data de nascimento de Cristo. Alguns chegaram a ser realizados no Natal, mas seu número é
inexpressivo. Quanto aos locais, comumente os autos eram executados nos adros das igrejas,
que correspondiam a terrenos em frente às mesmas e em volta delas; mas o local mais
utilizado era a principal praça da cidade, onde o palco era construído de modo a integrar a
fachada do palácio municipal ou do palácio real, o que simbolicamente representava a
dependência direta da Coroa e a natureza mista do tribunal.
O lugar onde se realizava o auto era ornamentado como nos dias de festa, sendo a
movimentação de pessoas controlada pela Guarda Real. As janelas dos palácios eram
ocupadas por dignitários da Corte, pelos nobres e notáveis da cidade.
Quanto ao palco, era dividido em três partes: a zona dos inquisidores; a zona
oposta, reservada aos condenados; e a zona central, onde era colocado o altar da abjuração. A
faixa onde se instalavam os inquisidores correspondia ao setor nobre do palco,
caracterizando-se pela ostentação: as cadeiras, os tapetes, os baldaquinos, eram todos
confeccionados com tecidos luxuosos, como cetins, damascos e veludos. As cores
predominantes eram o vermelho e o dourado. Toda essa magnificência se opunha à seção
ocupada pelos condenados, decorada com cores negras e com tecidos de baixa qualidade.
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Essa disposição do palco situava frente a frente os condenados e os inquisidores, de modo a


realçar o caráter judiciário do rito e o papel de juízes exercido pelos inquisidores.

8.3 As procissões

Antecedendo os autos da fé havia a procissão da cruz verde, o desfile dos


inquisidores e a procissão dos penitentes e condenados.
A primeira consistia na condução de uma grande cruz verde – medindo cerca de
dois metros de envergadura – do tribunal até o palco do auto da fé. O verde era considerado
uma cor litúrgica e simbolizava esperança. Essa cruz era transportada coberta com véu, uma
prática comum em certas regiões da Europa durante a Quaresma, significando o resguardo da
Igreja nesse período que precede a ressurreição de Cristo. O simbolismo aqui apresentava
outra faceta, denotando a ofensa cometida pelos hereges contra o sacrifício de Cristo e a
desonra (expressa pela cruz velada) sentida pela sociedade perante um ato subversivo contra
a divindade. Esse cortejo, que também contava com a participação de nobres, percorria as
principais ruas da cidade com o propósito de, mais uma vez, chamar a atenção da população.
O que realmente dava início ao auto da fé era a procissão dos penitentes e
condenados, preparada ainda durante a madrugada. Os relaxados à Justiça secular, hereges
confessos que não se arrependiam de seus delitos, tinham ciência da sua sentença apenas três
dias antes; eram acompanhados regularmente por religiosos que os estimulava ao
arrependimento. Este, porém, raramente tinha como conseqüência a mudança do tipo de
execução, quase nunca alterando a sentença. Os penitentes ou reconciliados eram aqueles
que, antes da sentença, arrependiam-se e retratavam-se e, por isso, não se submetiam às penas
mais pesadas.
Os reconciliados e os relaxados usavam os sambenitos, hábitos penitenciais que os
identificavam. Essa vestimenta era feita de linho cru pintado de amarelo com os símbolos da
reconciliação com a Igreja (cruz vermelha de Santo André), no caso dos reconciliados, ou
com os símbolos da condenação, em se tratando dos relaxados (o retrato do acusado era
cercado por chamas e grifos; quando se arrependiam depois da prolação da sentença, as
chamas eram pintadas viradas para baixo). Os penitentes seguravam uma vela apagada,
enquanto os relaxados usavam na cabeça uma mitra de papel estampada com as mesmas
figuras dos sambenitos.
A chegada dessa procissão era aguardada com muita ansiedade pela população,
pois o segredo do processo impedia que se conhecesse a sorte dos condenados antes da sua
apresentação pública.
36

Outro cortejo era organizado na manhã do auto da fé, o dos inquisidores e seus
acompanhantes, que se dirigia para o palco logo após a procissão dos condenados, para
destacar a excelência do tribunal.
À frente da procissão, estavam os nobres e familiares, seguidos pelos ministros e
oficiais do tribunal, o fiscal com o estandarte da fé contendo as armas da Inquisição,
representantes da Justiça secular, o cabido da catedral e, por último, os inquisidores, na
posição mais destacada.

8.4 A celebração

Depois das procissões, ocorriam a ocupação do palco e a celebração da cerimônia


propriamente dita. A cruz verde era colocada no altar-mor, em seguida entravam os
condenados, os acompanhantes do tribunal e, por fim, os inquisidores.
Inicialmente, rezava-se uma missa, que era suspensa logo no exórdio para a
pregação do sermão da fé. Depois disso, na Espanha, era feita a leitura de um juramento
coletivo, por intermédio do qual as autoridades civis (incluindo os reis e vice-reis, se
estivessem presentes), a nobreza, os religiosos e a população juravam apoiar a ação
inquisitorial. Em Portugal, esse juramento ocorria quando das visitas inquisitoriais; nos autos,
apenas era lido o édito da fé e a população devia confessar delitos ou denunciar num certo
prazo, posteriormente lia-se a bula de Pio V, que reafirmava o apoio papal à ação do Santo
Ofício e condenava quem se opusesse ao mesmo. Por fim eram lidas as sentenças.
Neste momento, deve-se explicitar a importância do auto da fé como fonte de
legitimidade para a Inquisição. O que foi até aqui mencionado – os sermões, a leitura do
édito, o juramento coletivo e a leitura da bula de Pio V –, tudo isso se manifestava em favor
do Santo Ofício. O ato de juramento coletivo demonstrava o apoio das autoridades civis e
eclesiásticas, enquanto a leitura da bula papal evocava a autoridade suprema do líder da
Igreja católica autorizando e, ao mesmo tempo, impulsionando a atividade inquisitorial.
Trata-se, na verdade, de uma ironia o fato de o acontecimento mais atroz constituir um dos
elementos mais importantes para a legitimação.
Depois de tudo isso, que correspondia basicamente a um intróito, já podia ter
início o ato que constituía um dos verdadeiros objetivos da celebração – a publicação das
sentenças. Primeiramente, eram lidas pelos inquisidores, não se admitindo nenhuma
interrupção, sendo os acusados chamados individualmente para ouvir sua sentença,
obedecendo-se a ordem de gravidade dos delitos, começando pelos menos graves.
37

Quando chegava a sua vez, cada condenado era levado ao altar da abjuração pelo
oficial de justiça dos cárceres (alcaide), fazia uma reverência à cruz que ali se encontrava e,
depois, aos inquisidores. Logo após a sentença era lida.
No caso dos penitentes (reconciliados), a sentença enfatizava que a excomunhão
tinha sido levantada, ou seja, relevada, graças a seu arrependimento, além de destacar a
reconciliação com a Igreja e, por fim, eram especificadas as penas.
Quanto aos relaxados à Justiça secular, eram levados ao mesmo estrado, onde
escutavam sua sentença. Freqüentemente, os relaxados se recusavam a fazer a vênia à cruz ou
aos inquisidores, ao mesmo tempo em que insultavam os mesmos. Em tais momentos, era
imposto o uso de mordaças, colocadas pelos guardas, o que provocava grande alvoroço entre
os espectadores.
O que tornava o auto da fé bastante dramático não eram apenas tais
acontecimentos, pois sempre havia a possibilidade de um arrependimento súbito por parte dos
relaxados, que pediam que fosse realizada uma audiência para discutir essa nova situação. Os
juízes e o suposto arrependido se dirigiam a uma sala no interior do cadafalso, onde era feita
a confissão. Depois, os inquisidores analisariam a possibilidade de modificar a sentença. A
revisão desta, porém, não implicava grandes alterações, mantendo-se geralmente o tipo de
execução previsto, ou então, decidia-se que, antes de ser lançado à fogueira, o condenado
morresse estrangulado, pois, segundo a mentalidade da época, o estrangulamento era
considerado uma morte católica; em casos excepcionais, o acusado era reenviado à prisão e
se submetia a novo inquérito.
É interessante notar que, durante todos esses eventos, a cerimônia era suspensa, o
que aumentava sobremaneira a inquietação dos espectadores, elemento que sublinha bem a
teatralidade do rito.

8.5 A abjuração

O ato de abjuração correspondia à manifestação pública e formal do


arrependimento do condenado, que renegava as práticas heréticas que havia perpetrado e
renovava seu compromisso com a Igreja. A abjuração tinha como significado maior, portanto,
a reintegração do indivíduo no seio da Igreja e a renovação dos seus compromissos com
Deus. Tudo isso representando, obviamente, no contexto da teatralidade, a vitória do bem
sobre o mal, o que reforçava ainda mais a legitimidade do Santo Ofício.
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Neste azo, é importante tecer alguns comentários acerca dos penitentes que
morriam nos cárceres e sobre a atitude dos inquisidores perante os acusados que eram objeto
de falsas acusações.
Sobre os penitentes que morriam nas prisões, eram reconciliados post mortem pelo
tribunal, que concluía o processo absolvendo-os e extinguindo a excomunhão em que o
acusado incorrera. Nesse caso, fazia jus a um enterro cristão, ou seja, não era lançado à
fogueira.
Os penitentes mortos nas prisões eram objeto de um rito de reconciliação não
aberto ao público, sendo realizado em uma cerimônia privada no palácio da Inquisição. Eram
representados por estátuas de gesso com um sambenito. Nas mãos das estátuas, eram
colocados uma vela e um rosário, para simbolizar sua conversão à fé católica. Os inquisidores
acolhiam, em nome dos penitentes, sua abjuração formal, concediam a absolvição,
administravam a Penitência e o sacramento da Eucaristia e, por fim, conferiam-lhes sepultura
religiosa.
No tocante aos suspeitos de heresia que eram vítimas de falsas acusações, a
situação era bem mais complexa. Geralmente, eles não compareciam aos autos da fé, sendo
absolvidos em uma sala do próprio tribunal. Tudo era muito delicado, pois o próprio acusado
evitava se expor, enquanto, para a instituição, tal circunstância revelava sua fragilidade nos
procedimentos judiciários de perseguição às heresias. Qualquer mera falha prejudicava
sobremaneira a imagem do tribunal. Para arrefecer essa conjuntura, as falsas testemunhas
eram punidas em público, geralmente eram-lhes aplicadas centenas de vergastadas.
A série dos principais eventos da cerimônia era então: a leitura das sentenças dos
reconciliados; a leitura das sentenças dos relaxados; a entrega dos relaxados à Justiça secular;
e, por fim, a abjuração dos reconciliados.
Os relaxados abandonavam a plataforma pelo lado esquerdo, em alusão às
representações alegóricas do Juízo Final, onde os condenados ao inferno apareciam do lado
esquerdo de Cristo. Os reconciliados saíam pelo lado direito. É importante esclarecer que o
auto da fé finalizava mesmo com a abjuração dos penitentes, depois da entrega dos relaxados
e antes de sua execução, ou seja, o evento termina, intencionalmente, com a triunfante
reintegração dos arrependidos.

8.6 A execução

O momento da execução era, sem dúvida, o mais chocante e mais esperado de


toda a cerimônia. Os espectadores compareciam ao auto da fé com a intenção maior de
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assistir à execução, que ocorria posteriormente ao auto. Todos ficavam arrebatados com as
cenas impressionantes dos hereges sendo mortos nas fogueiras.
Primeiramente, é imprescindível explicar o significado da expressão “relaxados à
Justiça secular”. Os relaxados eram entregues à Justiça secular, pois os inquisidores,
enquanto clérigos, não podiam condenar ninguém à morte, proibição estabelecida pelo
Direito Canônico. Observa-se facilmente, em tal situação, a hipocrisia do Santo Ofício, visto
que a palavra “condenar”, nesse sentido por ele empregado, dizia respeito apenas ao ato físico
de tirar a vida de alguém com as próprias mãos, pois, na verdade, eram os inquisidores,
desempenhando seu papel de juízes, que decidiam pela condenação dos acusados à morte. Já
a execução de tal pena era da competência dos funcionários da Justiça secular, porquanto as
autoridades da Inquisição não podiam macular suas mãos com o sangue dos condenados,
ficando esse “trabalho sujo” sob a responsabilidade dos funcionários da Justiça civil.
A execução dos condenados era, de fato, um “espetáculo” à parte no contexto das
grandes cerimônias do Santo Ofício. Uma passagem interessante de Francisco Xavier de
Oliveira, o Cavaleiro de Oliveira, retrata perfeitamente o momento da execução, marcado por
traços grotescos, cruéis e, ao mesmo tempo, estava sempre presente o caráter de festividade:

Um asiático que chegasse a Madri no dia de uma tal execução não saberia dizer se
se trata de uma celebração, de uma festa religiosa, de um sacrifício ou de
carnificina; e é tudo isso em conjunto. (07)

Quanto ao local, a execução era realizada em área diversa da do auto da fé.


Geralmente acontecia nos lugares onde tradicionalmente ocorriam as execuções civis. Isso
significa que se concretizava fora da cidade, exatamente por se tratar de um ato “sujo”.
O início das execuções correspondia ao momento em que, ainda no final do auto
da fé, separavam-se penitentes e relaxados. Em tal ocasião, os inquisidores estabeleciam um
intervalo de espera antecedente à leitura da sentença dos excomungados, na tentativa de
incitar um arrependimento de última hora, o que, no entanto, não acarretava resultados
expressivos. Em seguida, era lida a sentença dos relaxados.
Depois da leitura, o alcaide dos cárceres (espécie de oficial de justiça) tocava com
uma mão no tórax dos relaxados, simbolizando o encerramento da jurisdição inquisitorial e a
entrega ao braço secular, que tomava posse dos condenados a partir de então.
Posteriormente, os presos eram levados para uma sala construída fora da
plataforma do auto da fé, onde servidores e magistrados da jurisdição civil se reuniam para
formalizar a sentença de condenação à pena capital, além de perguntar aos condenados em
que religião queriam morrer. Comumente, tudo isso era acompanhado por soldados, com a
40

presença também de confrarias e de membros de ordens religiosas, que prestavam assistência


às vítimas.
Essa assistência era essencial no contexto de tal cerimônia, visto que a celebração
envolvendo a punição dos hereges tinha aspectos ambíguos. Por um lado, a austeridade da
justiça inquisitorial era considerada um eficaz meio de intimidação contra as práticas
desviantes; por sua vez, a exposição exacerbada do sacrifício de centenas de pessoas que
preferiam assim morrer porque se recusavam a se sujeitar ao domínio da Igreja representava o
fracasso do Santo Ofício e a “vitória do demônio”, o que denotava que o catolicismo perdia
uma alma, ao mesmo tempo em que a Igreja mostrava impotência no seu encargo de conduzir
a humanidade para o bom caminho. Nessa conjuntura, era imprescindível a reunião de todas
as forças para estimular o relaxado ao arrependimento.
Sendo assim, vários religiosos eram chamados para acompanhar o condenado
praticamente durante o dia todo, desde o momento em que este tinha conhecimento da sua
sentença, o que acontecia geralmente três dias antes do auto da fé, até o momento da
execução.
Verifica-se, portanto, que o arrependimento de última hora do relaxado não lhe
conferia a alteração da sentença, pois, conforme já foi supra esclarecido, o tipo de sua
execução normalmente permanecia o mesmo. O motivo por traz do arrependimento concernia
apenas no interesse da Igreja em “salvar uma alma” para tentar manter a imagem de que a
Inquisição era fundamental para proteger a sociedade da propagação das heresias.
Dando prosseguimento, do local onde se realizava o auto da fé, os relaxados
seguiam caminho até a área onde seriam sacrificados. No percorrer desse trajeto, a população
vociferante os acompanhava clamando que se arrependessem. A caminhada era interrompida
de vez em quando, pois a comitiva parava diante de todas as imagens de santos que havia no
caminho, constituindo um apelo à intervenção do sagrado.
Quando os excomungados sucumbiam a essa pressão, vivenciava-se um momento
de júbilo coletivo – o arrependido seguia o resto do caminho consolado pela multidão que
orava pela sua alma. O próprio algoz lhe pedia perdão, pois, mesmo arrependendo-se, seria
executado. Pelo contrário, quando os condenados resistiam às manifestações da população,
seu suplício agradava aos espectadores.
A preparação dos locais de execução era responsabilidade das autoridades civis,
que eram encarregadas de providenciar a sua construção. Para registrar a supremacia da
Inquisição, era colocada uma cruz no lugar. As bases das fogueiras eram bem simples, sendo
cada uma um cubo formado por pedaços de madeira cruzados, sobre os quais se colocava um
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banco apoiado no tronco vertical. Nesse tronco, o condenado podia ser estrangulado, caso se
arrependesse de última hora e quisesse morrer como católico. Em torno dos cubos dispostos
para a fogueira, muitas vezes eram construídos balcões de madeira para proporcionar uma
visão melhor para os convidados ilustres, tais como o rei, o vice-rei e os nobres titulados.
Essas estruturas estavam aparelhadas, inclusive, para servir bebidas.
Para finalizar, é muito interessante o relato de Francisco Bethencourt acerca da
situação do corpo do condenado, que era tratado como um objeto de jogo sádico:

As atitudes das autoridades e da população perante o corpo do condenado são


bastante interessantes. Para os inquisidores, em primeiro lugar, o corpo do acusado
é considerado a baixa natureza material do Homem, o recipiente produtor de suas
fraquezas, cujo papel é ambíguo: por um lado, é o instrumento do demônio para
desviar a alma da via justa; por outro, devido a essa debilidade, é o meio ideal de
inquérito e de produção de prova (daí a tortura utilizada nos casos mais difíceis).
Para os carrascos da Justiça secular, o corpo do condenado é objeto de seu
trabalho, podendo ser manipulado de diversas maneiras. Essa possibilidade de jogo
sádico em torno de um corpo preso, imóvel e impotente tem um reverso: a função
do carrasco foi sempre considerada impura, e a ameaça de vingança dos espíritos
dos executados pesa sobre seu cotidiano (daí o pedido de perdão ao condenado
arrependido). Para a população que assiste ao espetáculo, o corpo da vítima é uma
superfície onde se manifesta a luta entre Deus e o demônio, mas, além disso, é um
microcosmo que reflete o universo efervescente de vida onde se misturam espírito
e matéria, a circunstância excepcional da morte dos condenados torna-os ainda
mais expostos às interseções entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos,
supondo-se que sua alma perturbada possa regressar em busca do corpo castigado e
desprezado. [...] daí a prática de queimar o corpo dos hereges, não apenas por
homologia entre as chamas terrestres e as chamas do inferno, mas também para
apagar sua presença da memória das pessoas e para cortar todos os pontos de
referência, tornando mais difícil o regresso de sua alma (o que explica a dispersão
das cinzas pelo vento ou pela água). (08)

8.7 A memória

O auto da fé, por ser uma cerimônia tão forte e marcante, permanecia vivo na
memória das pessoas não apenas pelos eventos que aconteciam durante a celebração, mas
também devido à atividade inquisitorial que se seguia aos autos, como a fustigação em
público de condenados levada a cabo por autoridades civis alguns dias depois da cerimônia; o
uso obrigatório dos sambenitos durante meses ou anos; prisão no colégio da fé para a
catequização dos reconciliados.
Tudo isso contribuía sobremaneira para manter viva a memória da população. O
processo de doutrinação representava uma reintegração lenta, sendo a fase de expiação,
análoga ao purgatório, correspondente ao recinto fechado do colégio ou convento, que
geralmente se situavam em locais distantes, e ao uso da vestimenta penitencial.
Quanto ao uso obrigatório do sambenito, tratava-se de elemento que tornava o
ritual da reconciliação ainda mais dramático. De fato, é imprescindível explicitar que a
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reintegração não ocorria automaticamente, pois consistia num verdadeiro processo, visto que
as cerimônias de abjuração e reconciliação não suprimiam por si só a infâmia do penitente.
A reintegração dos cristão-novos era ainda mais traumática, porquanto, uma vez
que eram sentenciados pelo tribunal, ficavam imediatamente excluídos do acesso a
determinados cargos e funções, especialmente cargos públicos, medicina e advocacia.
O problema da desonra também atinge as famílias dos condenados. Em alguns
casos, ficavam inabilitados para a ocupação de certos cargos os descendentes dos acusados,
além disso, os hábitos penitenciais ficavam expostos em igrejas. Em virtude disso, as famílias
sofriam humilhações cotidianamente, pois qualquer tipo de relação com as heresias era
considerada abominável por toda a população.
Em verdade, a Inquisição ibérica possuía a tradição de recolher os sambenitos,
tanto dos reconciliados como dos relaxados, e providenciar a sua exposição no interior de
uma das principais igrejas da cidade, com uma transcrição especificando o nome do
condenado e o delito em que incorrera. Obviamente, o propósito era eternizar a lembrança
infamante dos acusados.
Concomitantemente, a Inquisição também procurava eliminar completamente a
memória de determinados hereges, para impedir que o espetáculo da execução surtisse efeito
diverso do pretendido, qual seja, a possibilidade de os hereges conquistarem a simpatia dos
seus seguidores como mártires. A morte na fogueira e a dispersão das cinzas pela água ou no
ar representavam uma maneira de eliminar a memória pelo culto do cadáver. Além disso, a
residência do heresiarca (líder de movimento herético) e o local de celebração de seus cultos
eram demolidos para “limpar” o perímetro urbano, uma vez que o terreno onde se
localizavam tais construções era salgado e nele era proibida a realização de novas
edificações.

8.8 Desestruturação do rito

Nas últimas décadas do século XVII, Espanha e Portugal, concomitantemente,


presenciaram o início da decadência das celebrações do auto da fé. Em um primeiro
momento, a cerimônia se deslocou para locais mais discretos, como o interior das igrejas.
A partir de então, a própria Inquisição também sofreu certo arrefecimento em suas
atividades, visto que o auto da fé constituía sua principal e mais esplêndida cerimônia, que,
no entanto, continuou sendo realizada em público.
O enfraquecimento do rito precisa ser enquadrado na conjuntura sócio-religiosa e
cultural vivenciada no período. O momento era, então, marcado pela integração dos cristãos-
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novos à sociedade, que, aos poucos, sensibilizava-se com a situação dos perseguidos pelos
tribunais, bem como passou a compreender que o Santo Ofício constituía uma instituição
prejudicial à humanidade.
Os cristãos-novos, cujas prisões e execuções em público foram fundamentais para
a consolidação e legitimação da Inquisição em fins do século XV na Espanha, foram,
paulatinamente, enraizando-se na sociedade hispânica ao longo dos séculos XVI e XVII.
Em Portugal, essa integração ocorreu de maneira mais vagarosa, porém se
concretizou totalmente no século XVIII. Sendo assim, desaparecendo a hostilidade e a
aversão contra os indivíduos mais perseguidos pelos tribunais inquisitoriais, os autos da fé
não provocavam mais tanto entusiasmo na população, visto que esta passava a considerar
todo esse espetáculo um grande sacrifício covarde e sem motivos.
Essa considerável mudança na opinião pública contou com a concorrência de
alguns fatores: as comunidades hebraicas e protestantes de outros países sempre se
mostravam solidárias com as vítimas da Inquisição; muitos grupos católicos situados em
outras nações também se juntaram a essa rede de solidariedade gradativamente; e, por fim, as
elites sociais dos lugares controlados pela Inquisição ibérica também manifestaram sua
repulsa à ação dos tribunais da fé.
A nova mentalidade, portanto, engendrou uma inversão na imagem dos autos da
fé. Em vez de servirem como meio de perpetuar a má reputação e a desonra dos condenados,
tornaram-se referência para construir uma contramemória infamante do Santo Ofício. Sendo
assim, as pessoas que eram executadas nessa fase de decadência eram consideradas mártires,
situação esta que a Inquisição procurava sempre debelar por conhecer as conseqüências
nefastas que acarretaria à instituição. Neste caso, porém, o quadro era irreversível.
Posteriormente, a sociedade já se encontrava preparada para aceitar que as
heresias, definidas como tais pela Igreja romana, não constituíam ameaça à comunidade dos
fiéis. Dessa forma, a população deixou de comparecer às celebrações de auto da fé, que
desapareceram na segunda metade do século XVIII, enquanto as práticas heréticas deixaram
de ser consideradas crimes passíveis de pena capital. Em tal momento, já predominava a
consagração da tolerância religiosa no seio das grandes nações ocidentais.
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9 DIREITOS HUMANOS: O PROCESSO, OS DELITOS E AS PENAS

A Inquisição surgiu no sistema feudal. Em Espanha e Portugal, o Santo Ofício só


veio a funcionar com eficácia apenas nos séculos XV e XVI, respectivamente. No entanto, tal
período ainda se caracterizava pela presença de traços da sociedade feudal, tais como a
supremacia da Igreja, a dificuldade de ascender socialmente, bem como a divisão rígida da
sociedade em clero, nobreza e povo.
Realmente, tratava-se de uma época em que os direitos humanos ainda não
haviam sido sistematizados. Ademais, o princípio da dignidade da pessoa humana não estava
consolidado. Porém, conforme será adiante demonstrado, as práticas inquisitoriais não se
justificam de nenhuma maneira, pois a noção de direito humano está presente em todas as
sociedades desde tempos antes de Cristo.
Os direitos individuais do homem têm suas origens no antigo Egito e na
Mesopotâmia. O Código de Hamurábi, por exemplo, elaborado nesta última por volta de
1.690 a.C., era uma codificação que estipulava direitos e deveres comuns a todos os homens
situados naquele território. Em verdade, mesmo fazendo parte de uma época tão remota,
Hamurábi expressava sua preocupação constante em estabelecer um governo sólido,
organizar os meios de produção, defender o oprimido e auxiliar os mais fracos, enfim, em
conferir dignidade ao seu povo. Citemos, então, o epílogo do Código de Hamurábi, in verbis:

As justas leis que Hamurabi, o sábio rei, estabeleceu e (com as quais) deu base
estável ao governo ... Eu sou o governador guardião ... Em meu seio trago o povo
das terras de Sumer e Acad; ... em minha sabedoria eu os refreio, para que o forte
não oprima o fraco e para que seja feita justiça à viúva e ao órfão ... Que cada
homem oprimido compareça diante de mim, como rei que sou da justiça. Deixai-o
ler a inscrição do meu monumento. Deixai-o atentar nas minhas ponderadas
palavras. E possa o meu monumento iluminá-lo quanto à causa que traz, e possa
ele compreender o seu caso. Possa ele folgar o coração (exclamando) “Hamurabi é
na verdade como um pai para o seu povo; ... estabeleceu a prosperidade para
sempre e deu um governo puro à terra”. Quando Anu e Enlil (os deuses de Uruk e
Nippur) deram-me a governar as terras de Sumer e Acad, e confiaram a mim este
cetro, eu abri o canal. Hammurabi-nukhush-nish (Hamurabi-a-abundância-do-
povo) que traz água copiosa para as terras de Sumer e Acad. Suas margens de
ambos os lados eu as transformei em campos de cultura; amontoei montes de
grãos, provi todas as terras de água que não falha ... O povo disperso se reuniu; dei-
lhe pastagens em abundância e o estabeleci em pacíficas moradias. (09)

Além disso, o Código de Hamurábi contemplava um rol de direitos tais como a


vida, a propriedade, a honra, a dignidade, a família, a supremacia das leis sobre os
governantes. A consagração da dignidade pode ser exemplificada pelo Art. 127 do
mencionado diploma legal: “127 - Se alguém difama uma mulher consagrada ou a mulher de
um homem livre e não pode provar, se deverá arrastar esse homem perante o juiz e tosquiar-
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lhe a fronte”. (10)


Ainda nas sociedades antigas, pode-se mencionar a importância da propagação
das idéias de Buda aproximadamente em 500 a.C., cujos principais ensinamentos tinham
como base a igualdade de todos os homens.
Na Grécia Antiga, foram realizados vários estudos acerca da igualdade e da
liberdade humanas, com ênfase nos mecanismos de participação política dos cidadãos. No
entanto, o que se destacou mais nas idéias gregas foi o desenvolvimento da crença em um
direito natural superior às leis escritas.
Posteriormente, o advento do Direito Romano representou mais um reforço no
quadro das leis antigas que visavam a regulamentar os direitos individuais em face dos
arbítrios cometidos pelas autoridades estatais. Surgiu, assim, a Lei das Doze Tábuas, que
consagrava a liberdade, a propriedade e a proteção geral a todos os direitos do cidadão.
Algum tempo depois, o surgimento do cristianismo revigorou a crença no direito natural,
sendo Santo Agostinho um dos seus defensores.
Na Idade Média, um grande acontecimento propiciou o surgimento de um dos
mais importantes instrumentos de garantia à liberdade humana. Nos séculos XII e XIII, a
monarquia inglesa oprimia seus súditos exacerbadamente. Em 1.215, os grandes senhores
feudais, contando com o apoio dos cavaleiros, dos burgueses e do clero, impuseram ao Rei
João Sem-Terra a Magna Carta, considerada a Carta Fundamental das Liberdades Inglesas.
Esse documento estabelecia os direitos e deveres do rei e seus vassalos. Enunciava
que o rei não poderia cobrar o pagamento de qualquer tributo sem o prévio consentimento
dos súditos; proibia que o rei se apoderasse de feudos; reconhecia o direito das cidades e dos
vassalos se insurgirem, caso o monarca não respeitasse as leis ou qualquer outro
compromisso assumido.
No entanto, o que se destacava sobremaneira na Magna Carta era o dispositivo
segundo o qual nenhum homem livre seria detido, aprisionado ou privado de seus bens, ou
posto fora da lei, ou exilado, ou prejudicado de alguma maneira, sem que, preliminarmente,
tivesse sido submetido a julgamento legal de seus pares ou em virtude da lei do país.
Observa-se que essa disposição, ainda elaborada no período medieval, já consagrava o
habeas corpus para o homem livre e a proibição da pena de confisco.
No século XIV, na França, sobressaiu-se a figura de Marsílio de Pádua, reitor da
Universidade de Paris e um dos mais importantes teóricos do poder secular, interpunha
críticas constantes à ambição da Igreja cristã em querer abarcar também uma parcela de poder
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temporal. Citemos, então, um trecho de sua obra “Defensor Menor”: “É mais vantajoso para a
Igreja que os convertidos o sejam através da aquiescência e não por meio da coação”. (11)
Em seguida, veio o Renascimento e sua cultura humanista. Tudo nesse período se
opunha à Idade Média, especialmente porque os humanistas foram os precursores de uma
sociedade antropocêntrica, em contraste com o teocentrismo medieval. Já nesse momento,
faziam-se críticas à intolerância religiosa.
Por fim, surgiu o Iluminismo, defendendo que todos tinham aptidão para perceber
a presença de Deus na natureza através da razão, dispensando-se a Igreja. Os ataques dos
filósofos contra todas as instituições de Antigo Regime propiciaram o enfraquecimento de
suas bases e prepararam o terreno para a difusão das idéias iluministas. A grande novidade
que marcou o período foi a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, promulgada na
França, em 26 de agosto de 1.789.
Pelo que foi exposto, observa-se o seguinte. Apesar de a sistematização da teoria
dos direitos humanos ter ocorrido nos últimos séculos, a idéia da existência de direitos
comuns a todos os homens e de direitos que preexistem às leis escritas já estava presente
desde as sociedades antigas. De modo que não se justifica de maneira nenhuma o instituto da
Inquisição, que foi marcada pelo total desrespeito de todos e quaisquer direitos concernentes
à pessoa humana. A dignidade desta foi cabalmente aniquilada. Todas as cerimônias
inquisitoriais ridicularizavam os condenados, tratando-os como meros objetos que serviam
tanto para assustar a população e, assim, incentivá-la a não incidir em práticas heréticas,
quanto como diversão para os espectadores.
Todo o processo inquisitorial era organizado de modo a dificultar ou suprimir a
defesa dos acusados. Não existia nenhuma garantia processual. Tudo era secreto; o acusado
não podia consultar os autos do próprio processo. Além disso, havia também a questão das
penas, que eram demasiado cruéis e, muitas vezes, passavam da pessoa do condenado,
atingindo pessoas da sua família. Quanto aos crimes, a situação também era delicada, posto
que uma mera superstição podia ser interpretada como prática herética. Imperava, portanto, o
medo e a coerção, a intimidação e a arbitrariedade. Tais assuntos serão elucidados a seguir.
47

9.1 O processo

Passa-se, neste momento, a examinar o processo inquisitorial fazendo-se um


paralelo com os mais importantes princípios processuais penais modernos, para que se tenha
uma noção da arbitrariedade do processo penal do Santo Ofício, bem como sua qualificação
como tribunal de exceção, instituto patentemente execrado pelo atual Estado Democrático de
Direito que predomina nos países ocidentais.
Inicialmente, já se podem vislumbrar um pouco as características do processo
inquisitorial através das palavras de Voltaire, em “Dicionário Filosófico”:

[...] conhecem-se bem todas as regras processuais deste tribunal e sabe-se


como são opostas à falsa eqüidade e à cega razão de todos os outros tribunais do
universo. A pessoa é aprisionada por simples denúncia das pessoas mais infames.
Um filho pode denunciar o pai, uma mulher, o marido, nunca se é acareado com os
acusadores. Obviamente os bens são confiscados em proveito dos juízes. Pelo
menos é assim que a Inquisição se tem conduzido até aos nossos dias. Aí há algo
de divino! Já que, efetivamente, é incompreensível que os homens tenham
suportado pacientemente este jugo... (12)

Atualmente, o processo penal tem de ser conduzido pelo princípio da busca pela
verdade real. Afinal, deve-se averiguar minuciosamente um crime e aplicar uma punição para
o responsável, de modo que é imprescindível que se conheçam todas as circunstâncias do
delito, bem como a sua autoria. No processo inquisitorial, a verdade dos fatos tinha relativa
importância, o problema era a sua verificação, que jamais foi levada a cabo com afinco.
Muitas vezes, baseava-se apenas na aparência física das pessoas para julgar se as mesmas
praticaram ou não certos delitos. Cita-se como exemplo uma inquietante passagem do
“Manual da Inquisição”, de Nicolau Eymerich: “É fato comum que se conhece com muita
facilidade os que invocam o demônio pelo seu olhar horroroso e sua fachada espantosa,
provenientes do seu contínuo trato com o diabo”. (13)
Em seguida, tem-se o princípio da legalidade. Este, por sua vez, era razoavelmente
observado pela Inquisição. Os regulamentos e as instruções da época dispunham acerca do
processo estipulando determinações que se coadunavam com a ação dos tribunais, ou seja, as
disposições eram tão arbitrárias quanto esta. Neste contexto, Montesquieu criticou a
legislação emanada das autoridades eclesiásticas que ditavam as regras da Inquisição,
afirmando que “é preciso que se evitem as leis penais em matéria de religião” (14). Além
disso, defendia o mesmo filósofo:

As leis humanas, feitas para falar ao espírito, devem apresentar preceitos e nunca
conselhos: a religião, feita para falar ao coração, deve dar muitos conselhos e
poucos preceitos. [...]. (15)
48

Quanto ao princípio da publicidade, a questão é bem mais complexa. Em verdade,


o processo inquisitorial na Península Ibérica era totalmente secreto, constituindo crime da
alçada do Santo Ofício violar esse segredo de qualquer forma. Apenas as autoridades do
tribunal tinham acesso aos autos dos processos. Os acusados de crimes heréticos eram presos
e interrogados sem ter conhecimento, por um longo período, do teor da acusação que pesava
sobre si. Conforme será adiante exposto, os interrogatórios eram feitos de maneira a não
permitir que se conhecesse a prática delituosa em questão. Como se pode perceber, tal
situação dificultava ou, até mesmo, suprimia a defesa, pois é impossível se defender de uma
denúncia cujo conteúdo nem se conhece ao certo.
Por sua vez, o princípio do contraditório era totalmente desacatado por ser
considerado mera formalidade que poderia acarretar atraso no trâmite do processo. Esse
princípio já era praticado, na época, em quase todas as monarquias absolutistas da Europa,
porém a sua inobservância era, na verdade, determinada expressamente pelos manuais de
inquisidores, como o de Nicolau Eymerich:

Ainda que no foro ordinário as leis não permitam ouvir testemunhas e nem falar de
sentença definitiva, sem que se debata o ponto por ambas as partes, ouvindo-se o
réu, sendo o fundamento da determinação, segundo os jurisconsultores, a alegação
e réplicas respectivas de ambas as partes, não se segue esta máxima em matéria de
heresia, estando autorizados os inquisidores à omissão de formalidades,
procedendo simpliciter et de plano, em benefício da fé. De sorte que a declaração
de testemunhas, ainda que ausente o réu ou seu procurador, faz fé, posto que não é
assim em causa de outra natureza. (16)

Não devemos olvidar que, no Estado Democrático de Direito, o contraditório e a


ampla defesa são meios eficazes à implantação prática dos direitos e garantias fundamentais.
A este respeito, preleciona o Professor Willis Santiago Guerra Filho:

A ‘procedimentalização’ (Prozeduralisierung) do Direito, se mostra como a


resposta adequada ao desafio principal do Estado Democrático de Direito, de
atender as exigências sociais garantindo a participação e liberdade dos indivíduos,
pois não se impõem medidas sem antes estabelecer um espaço público para sua
discussão, pela qual os interessados deverão ser convencidos da conveniência de se
perseguir certo objetivo e da adequação dos meios a serem empregados para atingir
essa finalidade. (17)

Da mesma maneira, o princípio do devido processo legal era integralmente


desconsiderado. Determinava-se que os juízes não tinham a obrigação de observar as regras
forenses pertinentes aos processos da jurisdição civil, sendo a ação inquisitorial peculiar
nesse aspecto. Dessa forma, situações que tornariam outros processos nulos, não acarretavam
nenhuma irregularidade no processo inquisitorial. O que interessava mesmo era a demanda
49

terminar com uma sentença de condenação. Observa-se facilmente que tal aspecto caracteriza
bem o Santo Ofício como tribunal de exceção.
O princípio da inadmissibilidade das provas produzidas por meios ilícitos era
desrespeitado expressamente em instruções e regulamentos que autorizavam prisões
arbitrárias e a prática de tortura. Nesta ocasião, é importante destacar que a própria Inquisição
fez surgir muitas declarações falsas de heresia com o emprego de cruéis tormentos.
Quanto ao princípio da presunção de inocência, a questão é muito delicada. De
fato, tal preceito era inexistente na Inquisição, pois uma simples acusação era o suficiente
para configurar a culpabilidade, de modo que o suspeito deveria provar sua inocência, o que
era praticamente impossível. Como foi acima exposto, o processo era secreto e o acusado era
detido sem sequer conhecer nenhuma circunstância acerca do delito que supostamente
cometeu, desse modo, sua defesa restava gravemente comprometida, especialmente pelo fato
de apenas as autoridades do tribunal terem acesso aos autos do processo.
Além dos princípios peculiares ao processo penal, deve-se apreciar também um
dos princípios gerais do processo: a imparcialidade do juiz. Esse princípio era seriamente
vilipendiado. Primeiramente, os inquisidores eram, concomitantemente, policiais, delegados e
juízes, situação que, por si só, já afetava sua imparcialidade. Além disso, uma das penas mais
aplicadas era o confisco de todos os bens do condenado, o que levava a família deste à total
ruína. Alguns juízes, ao aplicar tal punição, apossavam-se de vários bens apreendidos.
Outra questão importante sobre o processo criminal da Inquisição era a
impossibilidade de se responder um processo em liberdade. Havendo denúncia, o acusado era
sempre preso, sem se averiguar se representava perigo à sociedade, nem se iria atrapalhar as
investigações ou fugir.
Por fim, os recursos quase não acarretavam benefícios aos condenados. Os
relaxados à Justiça secular, por exemplo, só conheciam sua sentença três dias antes da
execução, de modo que nem sequer havia tempo para interpor apelação. Além disso, quando
ao condenado era permitido, já no auto da fé, que fosse ouvido pelos inquisidores para
confessar seus delitos e pedir a revisão da sentença, tal situação geralmente não produzia
grandes alterações, permanecendo o acusado condenado à pena capital.

9.1.1 A instauração do processo

Havia três maneiras de instaurar um processo: por acusação, por delação e por
pesquisa. Na acusação, uma pessoa acusava outra de práticas heréticas, mas deveria
apresentar provas verossímeis que fundamentassem suas declarações. Averiguadas as
50

acusações, caso o inquisidor constatasse a plausibilidade do seu conteúdo, instaurava o


processo assistido por um escrivão e por outros dois religiosos, ou, no mínimo, por duas
pessoas de reputação comprovadamente ilibada.
O processo se iniciava por delação quando alguém declarava que certa pessoa
tinha conduta herética ou protegia hereges, neste caso, o delator não se comprometia a
apresentar quaisquer provas. Quem delatava narrava que estava agindo assim devido ao fato
de ter ciência de que sua omissão poderia acarretar excomunhão, pois esta atingia também os
que se calavam. O processo, então, tinha início, e o delator jurava sobre os quatro Evangelhos
antes de prestar depoimento, no qual, deveria dizer onde teve conhecimento dos fatos, se
soube em primeira mão ou através de outra pessoa, quem seria esta etc. Enfim, fazia-se um
interrogatório e, ao final, o delator jurava guardar segredo sobre todas as informações
fornecidas ao inquisidor e sobre tudo o que este havia lhe dito.
Não havendo acusação nem delação, mas apenas boatos e rumores, o inquisidor,
sponte sua, deveria iniciar as investigações. Se estas fossem plausíveis, o processo era
instaurado.
No que concerne às denúncias, é importante perceber que “ouvir dizer”, “saber”,
ou seja, tomar conhecimento vagamente através de outras pessoas acerca de um provável mau
comportamento de alguém já bastava para iniciar uma demanda. Ademais, a obrigação de
denunciar não dispensava ninguém, independentemente de idade, sexo ou status social.

9.1.2 Confissões

A confissão era um dos principais objetivos do processo inquisitorial, por


representar uma vitória do tribunal. As confissões podiam ser feitas no já mencionado “tempo
de graça”, o que conferia ao penitente um tratamento especial, como a não aplicação da pena
de confisco de bens.
O que se exigia do confitente era simplicidade; se ele se expressasse de maneira
exagerada, chorando, hesitando ou sendo prolixo, isso poderia lhe prejudicar. Durante o
depoimento, a mesa inquisitorial analisava detalhadamente se a pessoa estava sendo sincera,
se estava omitindo fatos e se seu arrependimento era fidedigno.
Quando a confissão não era satisfatória, o penitente podia ser ouvido pelo tribunal
até três vezes antes de ser acusado formalmente, e o processo continuava até a sentença, que
poderia condená-lo à pena capital. Desse modo, observa-se que a confissão era um
procedimento muito delicado. Quem decidia se submeter ao mesmo, deveria agir com
bastante prudência, visto que muitos confitentes acabavam sendo condenados à morte.
51

9.1.3 Torturas

Atualmente, a tortura é considerada crime hediondo na maioria das nações


ocidentais, porém, nos tribunais da Inquisição, constituía procedimento fundamental no
trâmite dos processos.
Conhecidas também como tormento, as torturas eram utilizadas para apressar o
fornecimento de informações por parte dos acusados. Eram aplicadas: ao réu que negava as
acusações; ao herege cujas práticas heréticas eram de conhecimento público e, além disso,
tinha contra si pelo menos uma testemunha que dissesse tê-lo visto ou ouvido fazer ou dizer
algo contra a fé cristã; ao acusado cuja conduta apresentava indícios fortes de heresia, mesmo
que não houvesse nenhuma testemunha; ao acusado que, mesmo não tendo comportamento
herético, tivesse contra si um testemunho de quem o tenha visto ou ouvido fazendo ou
dizendo algo contra a fé cristã.
A tortura era decidida em sentença (com caráter de decisão interlocutória, porém
irrecorrível), no decorrer do processo. Enquanto o verdugo se preparava para a execução do
seu trabalho, o inquisidor e alguns funcionários tentavam mais uma vez fazer com que o réu
falasse a verdade. Em tal momento, o algoz manifestava inquietação e pressa, para provocar-
lhe medo. Quanto tudo isso era inútil, iniciava-se a tortura, que era acompanhada por um
interrogatório. Na medida em que as perguntas continuavam sendo mal respondidas, suplícios
mais dolorosos eram utilizados. Todo esse tormento podia continuar por até três dias.
Quando, apesar disso tudo, o acusado não confessava nada, o inquisidor deveria
colocá-lo em liberdade através de uma sentença cujo conteúdo relatava que, após um exame
atento da causa, não se produziu prova legítima do delito que lhe havia sido imputado.
Os meios de tortura mais comuns eram o tormento da água, a polé e o potro. Na
primeira situação, o acusado era amarrado de forma que ficasse deitado e com a cabeça
voltada para cima, mantendo-se a boca aberta através de panos, para que bebesse litros de
água até ser afogado.
A polé consistia em atar de forma bem apertada os pulsos do réu atrás de suas
costas, levantando-se a pessoa quase até o teto do recinto, de onde era lançada até bem
próximo do chão, momento em que sofria um solavanco forte, que, dolorosamente,
deslocava-lhe as articulações. Tal procedimento era repetido por três vezes.
O potro era aplicado a mulheres, crianças, deficientes físicos e idosos. Deitava-se
o acusado em um tipo de catre de madeira, sendo amarrados os braços e as pernas. De acordo
52

com a gravidade do delito, os carrascos iam apertando o torniquete gradativamente de um


quarto de volta até três voltas completas.

9.1.4 Testemunhas

Nos tribunais da Inquisição, tudo o que pudesse prejudicar o acusado era utilizado
para esse fim. Nos processos de heresia, portanto, eram admitidos testemunhos dos mais
diversos tipos de pessoas, tais como excomungados, os cúmplices do próprio investigado e
réus de delitos quaisquer. Entretanto, tais testemunhos apenas tinham validade se fossem
contra o acusado, jamais valiam a seu favor.
Também contra o acusado admitiam-se as testemunhas domésticas, tais como seu
cônjuge, seus filhos, seus irmãos, seus pais, outros parentes a até mesmo seus criados. Esse
grupo de pessoas apenas podia prestar declarações contra o acusado, nunca em sua defesa.
Rigorosamente, para que fosse proferida uma sentença definitiva contra o herege,
eram suficientes duas testemunhas. Situação absolutamente contrária ao que se aplica hoje no
processo penal moderno, segundo o qual o número das testemunhas jamais será levado em
consideração como critério de eqüidade para a elaboração da sentença.
Outro aspecto que destaca a natureza dos tribunais da Inquisição como de exceção
é a acareação. Naquele período, o instituto da acareação era praticado em outros tribunais,
mas nunca nas causas do Santo Ofício, onde não havia nenhum tipo de acareação, nem entre
as testemunhas, nem entre estas e o acusado. Tal situação dificultava ou, até mesmo, impedia
a defesa do réu, pois este não tinha condições de saber o que as testemunhas declararam a seu
respeito, conseqüentemente não podia contra-argumentar com as mesmas.
No processo inquisitorial, o acusado nem sequer conhecia a identidade das
testemunhas. A acusação era apresentada ao suspeito com a omissão de todas as
circunstâncias de tempo, lugar e pessoas, especialmente quando se suspeitava que o réu
pudesse adivinhar quem seriam seus delatores.
Também é interessante notar a aferição do valor do relato das testemunhas. Em
verdade, a credibilidade das denúncias dependia da “qualidade” das testemunhas e de sua
reputação na comunidade, bem como da sua conduta enquanto depunham no tribunal.

9.1.5 Interrogatório do réu

Após a prisão do acusado, situação em que este apenas sabia que o delito
supostamente cometido por ele tinha alguma relação com heresia, fazia-se um interrogatório
acerca de sua identidade, no intuito de verificar a sua genealogia. Perguntava-se se o acusado
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sabia por qual motivo estava sendo preso. Qualquer que fosse a resposta, o acusado recebia
uma explanação minuciosa esclarecendo que o Santo Ofício não prendia ninguém sem fortes
razões para tanto. Em seguida, eram realizadas várias audiências com extensos intervalos
entre uma e outra, nas quais o acusado narrava toda a sua vida, sendo-lhe perguntado
especialmente a que pessoas tinha o hábito de visitar; porém, as questões eram sempre vagas
e em termos gerais. Em tal momento, o réu se transformava, sem perceber, em delator, e o
tribunal lhe pedia que especificasse todos os nomes que constavam de seus relatos. Até então,
o acusado ainda não sabia por que motivo estava sendo processado.
Depois de uma vasta série de interrogatórios é que se dava ciência ao acusado
sobre o crime pelo qual estava sendo julgado, no entanto, a identidade dos seus delatores
ainda permanecia secreta. Em seguida, buscava-se que o réu confessasse suas culpas. Caso a
confissão não acontecesse espontaneamente, aplicavam-se as torturas.
Havendo ou não tortura, com ou sem confissão, o lento processo terminava com
uma sentença elaborada por uma comissão de inquisidores. Todavia, enquanto os outros
tribunais da época informavam aos condenados sobre a sentença a eles imposta, o Santo
Ofício mantinha as suas em segredo, à exceção dos crimes de inexpressiva gravidade.
Conforme já foi supra mencionado, os réus só tinham ciência do teor da sua condenação na
data da celebração do auto da fé, momento muito tardio para se fazer uma apelação, recurso
este que, muitas vezes, não era sequer apreciado.
No tocante à conduta dos inquisidores nos interrogatórios, devem-se analisar
alguns aspectos interessantes. Primeiramente, os inquisidores sempre pressupunham que os
acusados agiam no intuito de lhes enganar, desse modo, os tribunais criaram várias técnicas
para se conseguir chegar mais rápido à confissão.
Quando os depoimentos das testemunhas não estavam embasados em provas, mas
continham fortes indícios acerca do delito, e o réu continuava negando, o inquisidor lhe fazia
perguntas vagas. Depois disso, se o acusado ainda resistisse, o juiz folheava os autos e dizia
algo como “está claro que você não está dizendo a verdade, não minta mais”. Outra medida
tomada pelo inquisidor era folhear quaisquer papéis e, quando o réu negava alguma coisa, o
inquisidor fingia estar espantado e dizia “como pode negar tal coisa, sendo tão evidente?”.
Desse modo, o réu, caindo na armadilha do inquisidor, acreditava que existiam provas contra
ele nos autos e, por fim, acabava confessando.
Outro ardil empregado pelos inquisidores consistia no seguinte. Quando o réu
persistia em negar as culpas que lhe foram imputadas, o inquisidor lhe dizia que iria fazer
uma longa viagem e não sabia quando retornaria. Lamentava o fato de ser obrigado a deixá-lo
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preso, sendo sua maior vontade que confessasse suas faltas, para que se desse um fim mais
rápido à demanda. Por fim, o inquisidor dizia que, já que não queria confessar, o acusado
teria de lhe esperar, fato que o inquisidor lastimava, visto que o réu tinha compleição física
frágil e, com certeza, ficaria enfermo.

9.2 Os delitos

O crime, de acordo com Magalhães Noronha, é “a conduta humana que lesa ou


expõe a perigo um bem jurídico protegido pela lei penal. Sua essência é a ofensa ao bem
jurídico, pois toda norma penal tem por finalidade sua tutela” (18). Modernamente,
consoante prelecionado por Rogério Greco, existe uma tríplice conceituação para o crime sob
três vertentes, quais sejam, os pontos de vista formal, material e analítico, senão vejamos:

Sob o aspecto formal, crime seria toda conduta que atentasse, que colidisse
frontalmente com a lei penal editada pelo Estado. Considerando-se o seu aspecto
material, conceituamos o crime como aquela conduta que viola os bens jurídicos
mais importantes. Na verdade, os conceitos material e formal não traduzem com
precisão o que seja crime. Se há uma lei penal editada pelo Estado, proibindo
determinada conduta e o agente a viola, se ausente qualquer causa de exclusão de
ilicitude ou dirimente de culpabilidade, haverá crime. Já o conceito material
sobreleva a importância do princípio da intervenção mínima quando aduz que
somente haverá crime quando a conduta do agente atentar contra os bens mais
importantes. Contudo, mesmo sendo importante e necessário o bem para a
manutenção e subsistência da sociedade, se não houver uma lei penal protegendo-
o, por mais relevante que seja, não haverá crime se o agente vier a atacá-lo, em
face do princípio da legalidade . Como se percebe, os conceitos formal e material
não traduzem o crime com precisão, pois que não conseguem defini-lo. Surge,
assim, outro conceito, chamado analítico, porque realmente analisa as
características ou elementos que compõem a infração penal. [...] Alguns autores, a
exemplo de Assis Toledo e Luiz Regis Prado, aduzem que o crime é composto pela
ação típica, ilícita e culpável [...]. (19)

Partindo de tais conceitos, podem-se fazer algumas considerações acerca dos


crimes de heresia para se compreender o seu conteúdo e a sua própria existência.
Primeiramente, observa-se que os bens jurídicos tutelados na Península Ibérica, no
período analisado, não diziam respeito ao bem-estar social e à dignidade da pessoa humana,
conforme se verifica atualmente nos postulados norteadores do Estado Democrático de
Direito. É importante notar o fato de, em tal momento, Igreja e Estado constituírem duas
instituições interdependentes, que se uniam para, juntas, defender seus interesses e sua
supremacia. Dessa forma, compreende-se a maneira pela qual os crimes de heresia eram
tipificados.
A Coroa buscava a harmonia e o equilíbrio sociais, situação que exigia o apoio
sistemático da Igreja, que tinha o poder de conferir paz e estabilidade coletivas através da
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religião. A Igreja, por sua vez, desejava dar continuidade à sua secular função de delinear a
mentalidade e o comportamento da sociedade, o que somente seria concretizado se
conseguisse algum poder oficial junto à monarquia; além disso, pretendia experimentar a
obtenção de uma parcela de poder temporal. Sendo assim, as duas instituições se associaram
de tal modo que a Inquisição se tornou imprescindível para ambas. Destarte, a tipificação dos
crimes de heresia constitui um reflexo dessa aliança.
Podem-se classificar os delitos de heresia em quatro grupos: os atos e doutrinas
que afrontavam diretamente a fé cristã, desafiando a supremacia da Igreja; os atos contra a
ação do Santo Ofício; os atos que deveriam ser da jurisdição civil; e os atos que deveriam ser
apreciados pelo Vaticano.
No primeiro grupo, incluem-se: o judaísmo; o islamismo; o protestantismo; os
sortilégios; a vidência (adivinhações e superstições); a blasfêmia, que consistia, por exemplo,
em negar a divindade de Cristo, a capacidade de intervenção dos santos ou o dogma da
Santíssima Trindade; as correntes espiritualistas; as artes mágicas; a posse, impressão, leitura
e comércio de livros proibidos; invocação do demônio; conciliábulos secretos em matéria
religiosa; maçonaria; iconoclastia e idolatria; ortodoxia grega; ateísmo e ceticismo;
astrologia. Nesse rol, é importante destacar os crimes cuja prova era de difícil aferição, tais
como invocação do demônio e conciliábulos secretos em matéria religiosa. Quanto ao
primeiro, por exemplo, os inquisidores apenas o constatavam analisando o semblante dos
suspeitos e a sua conduta, sendo tais critérios absolutamente subjetivos.
Já os atos contra a ação do Santo Ofício eram as ofensas aos ministros da
Inquisição, aos denunciantes, às testemunhas; a revelação dos segredos do tribunal; os falsos
testemunhos; a solicitação (quando os confessores absolviam os penitentes que incorriam nos
delitos sob jurisdição inquisitorial); a proteção aos hereges. Por fim, também enquadrada
nesta categoria estava a conduta de olhar de “cara feia” os inquisidores, bem como olhá-los
com ódio.
Quanto ao terceiro grupo, é interessante notar que os delitos deveriam ser da
competência da jurisdição civil, conforme o foram outrora. Isso demonstra o imenso poder
alcançado pelo Santo Ofício, cuja jurisdição se ampliava vertiginosamente, abrangendo até
mesmo matérias da alçada das autoridades civis. Neste grupo, havia os crimes de bigamia;
sodomia; na Espanha, o contrabando de cavalos, armas, moedas e livros com os protestantes
franceses; em Portugal, o contrabando de armas e outros bens proibidos com os mouros do
norte da África; o concubinato; a usura.
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Por fim, o último grupo compreende os crimes cuja competência deveria ser do
Vaticano, mas acabaram passando à jurisdição inquisitorial: celebrar missa sem ser ordenado;
violação do segredo da confissão; casamento de autoridades eclesiásticas; abuso e desrespeito
contra os sacramentos.
Neste azo, é fundamental enfatizar a hipocrisia da Igreja, que punia quaisquer
condutas que revelassem o menor indício de paganismo, enquanto ela própria possui, até
hoje, diversos institutos importantes que sofreram forte influência pagã. Inclusive alguns ritos
católicos têm origem em cerimônias judaicas, as quais consistiam em delitos que eram
duramente punidos pelo Santo Ofício. Tal situação é bem elucidada por Thomas Hobbes:

Chama-se excomunhão esta parte do poder das chaves, perante a qual os homens
são expulsos do reino de Deus. Excomungar, no original, aposynágogon poiein,
expulsar da Sinagoga. Em outras palavras, expulsar do lugar do serviço divino.
Esta palavra é derivada do costume dos judeus, de expulsar de suas sinagogas os
que eram considerados, quanto à conduta ou à doutrina, contagiosos, do mesmo
modo que os leprosos, pela lei de Moisés, eram separados da congregação de
Israel, até ao momento em que fossem declarados, pelo sacerdote, perfeitamente
curados.

.....................................................................................................................................

Outro vestígio do paganismo é a canonização dos santos. Não se trata de uma má


interpretação das Escrituras nem uma nova invenção da Igreja romana, mas um
costume tão antigo como o próprio Estado de Roma. O primeiro a ser canonizado
em Roma foi Rômulo, e isso devido à narrativa de Julius Proculus, que jurou
diante do senado ter falado com ele depois de sua morte, e ter-lhe assegurado que
morava no céu e lá era chamado Quirino, e que seria propício ao Estado da nova
cidade. Com base nisso, o senado deu público testemunho de sua santidade. Júlio
César e outros imperadores depois dele tiveram idêntico testemunho. Foram
canonizados como santos, pois a canonização é atualmente definida por tal
testemunho e é o mesmo que a apothéosis dos pagãos.
Dos pagãos romanos foi também que os papas receberam o nome e poder de
Pontifex Maximus. Este era o nome daquele que no antigo Estado de Roma tinha a
autoridade suprema, sob o senado e o povo, para regular todas as cerimônias e
doutrinas referentes à religião. Quando Augusto César mudou o Estado para
monarquia, ele reservou para si apenas este cargo e o de tribuno do povo – ou seja,
o poder supremo tanto no Estado quanto na religião – e os imperadores que lhe
sucederam desfrutaram disso. Todavia, na época do imperador Constantino, o
primeiro que professou e autorizou a religião cristã, estava de acordo com sua
profissão de fé fazer que a religião fosse regulada – sob sua autoridade – pelo bispo
de Roma, embora pareça que não receberam logo o nome de pontifex,mas, sim, que
os bispos que se sucederam o tomaram para si por iniciativa própria, para fortalecer
o poder que exerciam sobre os bispos das províncias romanas. Já que não foi
qualquer privilégio de São Pedro, mas o privilégio da cidade de Roma que os
imperadores sempre estavam prontos a apoiar, que lhes deu tal autoridade sobre os
outros bispos, como pode ver-se claramente pelo fato de o bispo de
Constantinopla, quando o imperador tornou esta cidade a sede do império,
pretender ser igual ao bispo de Roma, embora por fim, não sem luta, o papa tenha
vencido e se tenha tornado Pontifex Maximus, mas apenas por concessão do
imperador, e não fora dos limites do império, nem em parte alguma depois que o
imperador perdeu seu poder em Roma, conquanto fosse o próprio papa quem tirou
dele seu poder. A propósito, foi a partir daí que pudemos observar que não há lugar
para a superioridade do papa sobre os outros bispos, exceto nos territórios onde ele
57

próprio é o soberano civil, e naqueles em que o imperador, tendo o soberano poder


civil, expressamente escolheu o papa como principal pastor de seus súditos
cristãos, sob sua autoridade.
Outro vestígio da religião dos gregos e dos romanos é levar imagens em procissão,
pois também eles transportavam seus ídolos de lugar para lugar, numa espécie de
carroça, que era especialmente destinada para esse fim. Chamava-se thensa e
vehiculum deorum pelos latinos. A imagem era colocada numa moldura ou
escrínio, que chamavam ferculum. Aquilo que denominavam pompa é o mesmo
que atualmente se denomina procissão. Concordante com isso, entre as honras
divinas que foram prestadas a Júlio César pelo senado, uma delas foi que na pompa
ou procissão nos jogos circenses, ele teria thensam et ferculum, uma carroça
sagrada e um escrínio. Isso era o mesmo que ser transportado como um deus, tal
como atualmente os papas são transportados pelos suíços debaixo de um pálio.

.....................................................................................................................................

Se alguém atentar no original deste grande domínio eclesiástico verá facilmente


que o papado nada mais é do que o fantasma do defunto império romano, sentado
de coroa na cabeça sobre o túmulo deste, pois assim surgiu de repente o papado das
ruínas do poder pagão. (20)

9.3 As penas

No atual Estado Democrático de Direito, marcado pelo império da legalidade e


princípios pós-constitucionais, o que justifica e explica a pena é o binômio “retribuição e
prevenção”. Ou seja, a pena não deixa de ser um mal, mas, concomitantemente, é
imprescindível, visto que a prevenção geral e especial da prática de delitos não pode ser
garantida se a pena for demasiado leve. Neste azo, é importante mencionar que existem
também outras características da pena que merecem destaque no Direito Penal moderno,
quais sejam a legalidade, a personalidade e a proporcionalidade.
O princípio da legalidade é a garantia maior que o indivíduo tem contra o jus
puniendi estatal. Além disso, sua importância se relaciona ao caráter intimidativo da pena,
que só pode ser assim considerada se for conhecida através da lei. Na Inquisição, porém, tal
garantia se mostrava sempre violada, pois, conforme já foi acima explicado, apenas os
oficiais da instituição tinham acesso aos documentos, legislação e processos inquisitoriais.
Desse modo, a sociedade apenas tinha conhecimento acerca das penas aplicadas pelo Santo
Ofício porque freqüentava os autos da fé, ocasião em que eram lidas as sentenças dos
condenados.
A especificação das penas, por sua vez, encontrava-se em regulamentos e
instruções publicados pelos órgãos superiores da Inquisição, ou até mesmo pela Coroa, no
caso ibérico. No entanto, essa legislação só chegava ao conhecimento dos funcionários dos
tribunais. A sociedade jamais entrava em contato com a redação desses diplomas legais.
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Já o princípio da proporcionalidade se mostra conexo com o caráter retributivo da


pena. Em verdade, a pena sempre deve estar em consonância com a gravidade do delito.
Quanto à Inquisição, a análise da proporcionalidade deve levar em consideração a
mentalidade da época. De fato, os crimes da alçada inquisitorial eram todos considerados de
extrema gravidade, de modo que todas as penas a eles correlatas estavam em conformidade
com o princípio em comento.
Por fim, segundo o princípio da personalidade da pena, esta não pode passar da
pessoa do condenado. Tal garantia se encontra contemplada no Art. 5° da Constituição
Federal pátria. Dessa forma, é vedada a pena de confisco de bens. Na Inquisição, por sua vez,
esse tipo de pena era um dos mais comuns. Em muitas situações, após a prisão do suspeito,
no momento inicial do inquérito, já se procedia ao confisco de todos os seus bens, o que
provocava a ruína total de sua família. Podia haver a privação da herança até a terceira
geração de descendentes do condenado. Ademais, em certas ocasiões, o Santo Ofício
determinava que a casa do heresiarca fosse queimada, deixando desabrigados todos os seus
familiares.
Por sua vez, o princípio da personalização da pena, também consagrado no Art. 5°
da Constituição Federal, não se confunde com o da individualização da pena, o qual se refere
à graduação da mesma. Foi a Constituição de 1.824 que firmou o princípio em apreço no
direito brasileiro, derrogando as normas das Ordenações Filipinas, atentatórias que eram do
princípio da dignidade da pessoa humana. Este princípio enuncia que ninguém, senão o
responsável, deve sofrer a conseqüência do ato criminoso, que é a pena. Todavia, estabelece
que a reparação civil do dano e o perdimento de bens alcancem os sucessores do condenado,
desde que beneficiados com o proveito decorrente do ilícito, não excedente do limite da
vantagem percebida (valor do patrimônio transferido).
Neste momento, é importante classificar as principais penas aplicadas pela
Inquisição em quatro grupos: as penas cruéis, cujo objetivo maior era causar medo, impacto e
intimidação; as penas que destacavam o caráter sagrado e divino da Inquisição; as que
demonstravam a ação interessada do Santo Ofício; e, por fim, as que tinham a finalidade de
eternizar, de forma ultrajante, a memória do condenado.
No primeiro grupo, havia a pena capital para os relaxados, que morriam
queimados. No entanto, caso se arrependessem de última hora, poderiam ser estrangulados
antes de ir para a fogueira. Ainda neste rol, havia: a fustigação ou flagelação nas vias
públicas; a prisão perpétua, pela qual o condenado ficava incomunicável para sempre; a
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condenação temporária ou perpétua ao trabalho nas galés; deportação; exílio temporário;


demolição da casa do heresiarca; demolição do local de celebração dos cultos proibidos.
Quanto às penas que destacavam o caráter sagrado e divino da Inquisição,
existiam a excomunhão e outras penas espirituais; as maldições proferidas no anátema; e a
prisão temporária. Quanto a esta última, convém esclarecer que consistia na detenção em um
convento ou no colégio da fé criado pela Inquisição para o ensino da doutrina religiosa aos
penitentes; dependendo de cada situação, proibia-se sair de casa, do bairro ou da cidade sem
autorização inquisitorial.
Dentre as penas que demonstravam a ação interessada do Santo Ofício, havia duas
bastante comuns: o confisco dos bens do condenado e a condenação temporária ou perpétua
ao trabalho nas galés. Sobre o confisco de bens, já foram feitos os devidos comentários
acima, devendo-se destacar, no momento, que boa parte da renda de alguns tribunais
dependia da aplicação dessa penalidade. Quanto ao trabalho nas galés, tal situação poupava o
dinheiro da Coroa com a contratação de trabalhadores.
Finalmente, havia as penas cujo objetivo era perpetuar a memória infamante do
condenado, quais sejam: o uso obrigatório dos hábitos penitenciais (sambenitos) por vários
anos; a exibição desses trajes nas igrejas; e, por fim, no caso dos cristão-novos, quando
condenados, ficavam automaticamente excluídos do acesso a determinados cargos e do
exercício de certas profissões, como medicina e advocacia. Tal sanção, algumas vezes,
atingia também os filhos e netos dos condenados.
60

10 A ABOLIÇÃO

A extinção dos tribunais da Inquisição, tanto em Portugal quanto na Espanha,


insere-se no quadro da decadência do Antigo Regime, bem como no contexto das Revoluções
Liberais. No entanto, esses dois países passaram por experiências bem diferentes quando da
abolição do Santo Ofício em seus territórios.
Na Espanha, o processo de extinção foi bastante problemático. Eram tomadas
muitas decisões conflitantes em curto período de tempo, pois a abolição dos tribunais se
inseriu na luta entre liberais e absolutistas. Desse modo, a Inquisição passou a ser um
emblema do Antigo Regime, sendo o desaparecimento da mesma a bandeira dos liberais, e a
sua conservação, a dos absolutistas.
Em 1.808, as tropas de Napoleão invadiram a Espanha. Logo em seguida, o rei
Fernando VII foi deposto. Imediatamente, Napoleão publicou um decreto extinguindo os
tribunais da Inquisição, por considerá-los contra a soberania e a autoridade civil. Os bens
pertencentes aos tribunais foram seqüestrados e, depois, entregues à Coroa para o pagamento
da dívida pública. É importante notar que essa primeira abolição converteu as fontes e
documentos da instituição em matéria de acusação e inverteu o papel dos inquisidores, que
passaram de acusadores a acusados.
Posteriormente, em 1.812, aprovou-se uma Constituição liberal. Um ano depois,
as Cortes Liberais de Cádiz reiteraram o conteúdo do decreto de Napoleão e mantiveram a
decisão de banir o Santo Ofício.
A situação foi revertida em 1.814, quando, diante da fragilidade da ocupação
francesa, Fernando VII retornou à Espanha. Tal acontecimento teve como reflexo o
restabelecimento da Inquisição, com ênfase na perseguição contra a maçonaria.
Já em 1.820, a Revolução Liberal atacou o Santo Ofício violenta e energicamente,
através de assaltos e saques contra vários tribunais. Diante da veemente pressão dos liberais,
mais uma vez a Inquisição foi suprimida por decreto régio.
Entretanto, essa conjuntura sofreu um abalo. Em 1.823, a Espanha foi invadida
pela Santa Aliança, grupo de países que se formou no Congresso de Viena e combatia as
idéias liberais contempladas pela Revolução Francesa. A Santa Aliança, que apoiava os
absolutistas, inflamou os conflitos entres estes e os liberais. Porém, depois de um período de
incertezas e discussões, foi publicado o decreto de abolição definitiva em 1.834, sem
nenhuma justificação prévia.
61

Por sua vez, a extinção da Inquisição em Portugal se destacou pela tranqüilidade.


Em verdade, desde o marquês de Pombal, o poder central se mostrava mais maleável do que
o da Espanha em relação ao desaparecimento do Santo Ofício. Não houve discussões
acaloradas nem turbulências; a decisão foi tomada de uma forma seca, pois a Inquisição, no
caso português, nunca foi emblema da disputa entre liberais e absolutistas.
Semanas depois da deflagração da Revolução Liberal de 1.820, a junta provisória
de governo ordenou que o Conselho Geral da Inquisição e todos os oficiais dos tribunais
prestassem juramento de fidelidade e obediência ao novo governo. No ano seguinte, a
abolição do Santo Ofício foi proposta por um deputado, sendo o respectivo decreto publicado
no mesmo ano, pois, além da inevitável queda das arcaicas instituições do Antigo Regime, a
oposição ao projeto não apresentava argumentação consistente. Em seguida, os bens dos
tribunais foram integrados ao Tesouro Nacional; os livros, processos e outros documentos
passaram para o acervo da Biblioteca Pública de Lisboa.
62

11 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Inquisição ibérica surgiu no contexto da formação do Estado Nacional. Todas


as nações européias ainda possuíam resquícios do regime feudalista, o qual era caracterizado
por reinos fragmentários, já que a autoridade mais temida era o senhor feudal. Dessa forma,
todos os países europeus buscavam eliminar essa condição.
No caso de Portugal e Espanha, era necessária uma força implacável para auxiliar
a monarquia a erigir o Estado Nacional, pois constituíam reinos que já se encontravam
enfraquecidos e desgastados, desprovidos de unidade nacional e com várias religiões. A
Igreja Católica, portanto, foi considerada uma aliada perfeita, visto que seu poder e sua
autoridade sempre foram inquestionáveis.
Observou-se, então, que a Realeza ibérica, ao se unir com a Igreja, proporcionou o
ressurgimento da temida Inquisição, dessa vez mais organizada, mais imponente, enfim, uma
força irresistível.
Conforme foi constatado, a legitimidade da ação inquisitorial emanava tanto do
Papa quanto da Coroa, o que conferia uma natureza dúplice aos tribunais da Inquisição. Esse
aspecto, por sua vez, era um dos grandes responsáveis pelo imenso poder alcançado pela
instituição.
Além disso, a organização hierárquica e o sistema de comunicações entre os
tribunais e os órgãos superiores proporcionavam a eficácia e o sucesso da ação inquisitorial.
Ademais, a relativa independência em relação ao Vaticano permitia maior liberdade às
autoridades da Inquisição ibérica.
Em seguida, acompanhou-se minuciosamente como se deu a censura dos livros
proibidos pelo Santo Ofício, com destaque para os meios através dos quais os exemplares
eram tirados de circulação. Nesse contexto, outro aspecto abordado foi o tipo de leitura
considerado proscrito, como livros científicos e grandes clássicos da literatura universal.
Logo após, foram examinados os éditos, que eram documentos cujo conteúdo
trazia a tipificação dos delitos de heresia e determinava que a população os denunciasse. No
caso dos éditos da graça, estipulava-se certo período para que os autores de crimes heréticos
confessassem suas culpas, a fim de se beneficiarem com a não aplicação de algumas penas.
No entanto, constatou-se que tal medida, aparentemente benévola, era mais um ardil da
Inquisição para obter denúncias.
Posteriormente, analisaram-se pormenorizadamente todas as etapas da cerimônia
do auto da fé, cujo acontecimento principal era a leitura das sentenças dos condenados. Logo
63

após, os relaxados à Justiça secular eram executados. Em todos esses atos, constatou-se que a
dignidade da pessoa humana foi duramente vilipendiada.
Dando prosseguimento, fez-se um traçado da evolução dos direitos humanos,
demonstrando que, apesar de não existir ainda a sistematização da teoria de tais direitos à
época da Inquisição, os atos praticados por esta jamais se justificaram. Nessa ocasião,
esboçou-se um paralelo entre o processo penal moderno e o processo inquisitorial. Depois,
elencaram-se os delitos e as penas especificados pelo Santo Ofício.
Dessa forma, conseguiu-se vislumbrar toda a vida cotidiana dos tribunais da
Inquisição, o que, por si só, demonstra que os atos perpetrados por essa instituição não se
justificavam de maneira nenhuma, pois constituíam verdadeiro atentado à dignidade da
pessoa humana, hoje insculpido no Art. 1o, inciso III, da Carta Política de 1.988, como um
dos fundamentos da República Federativa do Brasil.
Sendo assim, a Inquisição era uma entidade jurídica e eclesiástica que corresponde
a uma página negra na História da Igreja e do Direito. Não deve, portanto, ser esquecida, pois
constitui um exemplo a jamais ser seguido. Além disso, a Inquisição deve ser considerada um
alerta, um erro com o qual se deve aprender para que não seja repetido.
Em verdade, após o Santo Ofício, observaram-se situações críticas, que, assim
como os tribunais inquisitoriais, tiveram início com perseguição exacerbada e irracional.
Neste azo, podem-se citar o governo nazista de Hitler e a ditadura militar do Brasil.
Por fim, a conjuntura atual exige que a Inquisição seja relembrada como um sinal
de alerta, conforme já foi demonstrado anteriormente. De fato, após os atentados terroristas
de 11 de setembro de 2.001, contra os Estados Unidos da América, o mundo vivencia um
momento em que as liberdades individuais correm sério risco. Outro aspecto importante diz
respeito à xenofobia em relação aos povos árabes, os quais já vêm sofrendo perseguições e
preconceito, especialmente pelos Estados Unidos e pela Europa. Nesta ocasião, portanto,
todas as nações devem estar atentas para que não se cometam erros semelhantes aos da
Inquisição.
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12 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1 ROTTERDAM, Erasmo de. Elogio da Loucura. São Paulo: Martin Claret, 2001. p. 83-85.

2 HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e


Civil. São Paulo: Martin Claret, 2001. p. 358-359.

3 MONTESQUIEU. Do Espírito das Leis. São Paulo: Martin Claret, 2004. p. 481-483.

4 VOLTAIRE. Dicionário Filosófico. São Paulo: Martin Claret, 2004. p. 125.

5 BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália –


Séculos XV-XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 177-178.

6 VOLTAIRE. Cândido ou O Otimismo. São Paulo: Martin Claret, 2004. p. 41.

7 OLIVEIRA 1762 apud BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições: Portugal,


Espanha e Itália – Séculos XV-XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 368.

8 BETHENCOURT, opus citatum. p. 257-258.

9 HAMURÁBI. Código de Hamurábi. Página IDÉIAS. Disponível em


<http://www.milenio.com.br/ingo/ideias/hist/hamurabi.htm>. Acesso em: 15 abr. 2006.

10 HAMURÁBI, opus citatum. Acesso em: 17 abr. 2006.

11 PÁDUA 1991 apud MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica e Unidade


Axiológica da Constituição. 2. ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. p. 183.

12 VOLTAIRE. Dicionário Filosófico. São Paulo: Martin Claret, 2004. p. 312.

13 EYMERICH, Nicolau. Manual da Inquisição. Tradução a adaptação de Affonso Celso de


Godoy. 1. ed., 4. tir. Curitiba: Juruá, 2005. p. 99.

14 MONTESQUIEU, opus citatum. p. 480.

15 Id., ibidem. p. 457.

16 EYMERICH, opus citatum. p. 54-55.

17 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo Constitucional e Direitos Fundamentais.


4. ed. São Paulo: RCS Editora, 2.005, p. 120.

18 NORONHA, E. Magalhães Noronha. Direito Penal: Introdução e Parte Geral. 3. ed.


São Paulo: Saraiva, 1993. p. 94.

19 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Parte Geral. 5. ed. Rio de Janeiro: Impetus,
2.005, p. 156-157.

20 HOBBES, opus citatum. p. 366, 471-473, 497.


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13 BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

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