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RESUMO: O presente artigo pretende discutir a poesia de Manoel de Barros e a de João Cabral de Melo Neto, se
detendo especificamente no modo como os autores pensam a poesia e articulam reflexões sobre o fazer poético. O
objetivo é desvelar o modo como cada poeta sistematiza e problematiza as relações entre poema e poeta, mostrando
assim, a especificidade de suas poéticas ante a tradição moderna de poesia. Dessa forma, serão analisados poemas
que se utilizam de procedimentos metalinguísticos de ambos os poetas. Para tanto, o estudo recorrerá a teóricos-
críticos como, Paz (1984), Maciel (1994), Camargo (1996) Secchin (2014) e Barbosa (1986).
ABSTRACT: The present article intends to discuss the poetry of Manoel de Barros and João Cabral de Melo
Neto, focusing specifically on the way the authors think about poetry and articulate reflections on poetic making.
The goal is to unveil the way in which each poet systematizes and problematizes the relationship between poem
and poet, showing the specificity of his poetics before the modern tradition of poetry. Therefore, poems that use
metalinguistic procedures of both poets will be analyzed. To conclude it, the study will use theoretical-critics such
as Paz (1984), Maciel (1994), Camargo (1996) Secchin (2014) and Barbosa (1986).
O homem e as coisas inviáveis na sua servitude são recuperados pela poesia de Barros
numa atitude de crítica à sociedade, rompendo com as suas construções canônicas.
Exatamente pela inserção do inservível enquanto elemento de tratamento poético[...]
numa verdadeira rebeldia ao que elege ao canônico, contestando toda uma tradição do
decoro e da decência poética. (CAMARGO, 1996, p.109)
O poeta para Manoel de Barros seria o indivíduo capaz de, através de um olhar
“clarividente”, captar desde o germinar de uma semente que se faz ao “rés- do-chão”, ao espaço
preferido das aves, o céu. O poeta, nesse sentido, seria o sujeito “inviável”, aquele que pode se
traduzir em vários “eus”, o ser em comunhão com a natureza que consegue mediante a poesia
desvendar a realidade contraditória e fragmentária que o cerca. Neste verbete, são apresentados
os meandros da atividade poética, o poeta se configura como o ser aberto e atento as vicissitudes
da vida cotidiana, aquele que consegue corporificar as contradições inerentes a realidade.
É inegável a recorrência do exercício metalinguístico na poesia de Manoel de Barros,
isso se deve a uma consciência criativa aguçada, preocupada em indagar, expor e propor
perspectivas sobre o trabalho poético. O poeta mato-grossense assume uma postura crítica
diante da linguagem e da sua criação, expondo em seus versos acerrada resistência à sociedade
industrial.
Outra poética que se une a de Manoel de Barros, no quesito de voltar-se para a própria
criação, é a do poeta pernambucano, João Cabral de Melo Neto. A poética cabralina, assim
como a barreana, não pode ser pensada separada de sua preocupação com a linguagem, com o
“fazer” e “dizer” poético.
João Alexandre Barbosa, em seu texto “A poesia crítica de João Cabral”, ressalta a
publicação do volume Poesia crítica, do poeta pernambucano, nessa edição, de 1982, Cabral
reuniu todos os poemas que possuem como assunto “a criação poética e a obra ou a
personalidade de criadores poetas ou não”, (MELO NETO, 1982, p.6). O volume mostra com
clareza um percurso poético marcado pela preocupação crítica do seu objeto, deixando
manifesto a “persistência de uma meditação acerca da criação poética que se dá na própria
composição, instaurando o espaço para o exercício de uma metalinguagem” (BARBOSA, 2002,
p.298).
Vale ressaltar que João Cabral, como já dito anteriormente, exerceu atividade crítica
através de ensaios, o poeta sempre admitiu esse desejo e tendência à crítica literária:
Cabral escreveu poucos textos críticos, porém, um dos ensaios mais famosos Poesia e
Composição: a inspiração e o trabalho da arte (1952), consegue explicitar pilares do seu
projeto poético. Os textos ensaísticos cabralinos se tornaram quase “guias” para a leitura da
poesia do escritor, a crítica literária, mormente, assimilou e seguiu argumentos de leitura que o
próprio poeta propôs. João Cabral se alinha a outros tanto poetas, que se aventuraram ao
exercício crítico fora dos limites da poesia, é o caso de Baudelaire, Valéry e Mallárme. A
respeito destes poetas-críticos e dos seus escritos, a estudiosa Esther Maria Maciel pontua:
O espelhamento, do qual fala Maciel, pode ser percebido distintamente nos poemas
cabralinos. Assumindo uma perspectiva teórica-critica em seus ensaios, um “conceito de
poesia”, Cabral acaba por tornar suas produções poéticas reflexo destes. Aliás, Poesia e
composição constitui-se texto elementar, formulando uma tensão que percorre todo o percurso
poético cabralino, a tensão entre o “fazer” e o “dizer”, ou seja, entre uma poesia comunicativa
e a “prevalência da composição sobre a exposição” (BARBOSA, 1975, p.33)
O que nos interessa nesse sentido, é mostrar como a metapoesia de Cabral está
inteiramente ligada a um projeto crítico do autor, o poeta se auto intitula um crítico que se
tornou poeta, por isso faz da poesia espaço constante de discussão artística, enquanto
linguagem, expressão, trabalho estético, crítica de si e do mundo.
Barbosa (1975), ao comentar a metapoesia realizada nos poemas cabralinos, sustenta
que, até nos exercícios poéticos aparentemente isentos de uma reflexão metalinguística, é
possível encontrar mesmo que indiretamente referências ao processo criativo, à construção
poética, dessa forma, a poética de Cabral fornece um extenso corpus a ser investigado a partir
de uma perspectiva metalínguistica.
A terceira obra de Cabral, O engenheiro (1945), compreende um poema homônimo que
exterioriza as“ideias fixas” sobre o processo de construção poético. Nas duas primeiras estrofes
o poeta manifesta sua escolha pelas coisas concretas e pelo discurso claro e conciso:
A luz, o sol, o ar livre
envolvem o sonho engenheiro
O engenheiro sonha coisas claras:
superfícies , tênis, um copo de água
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Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo, não quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a com o risco.(MELO NETO, 2014, p. 456)
Como se pôde perceber, a poesia cabralina é permeada por várias “lições” a respeito
do processo de escrita, do oficio poético. E faz isso utilizando diferentes estratégias e temáticas.
Uma faceta bem presente na obra de Cabral é a recuperação recorrente de dois espaços
geográficos, o Nordeste e a Espanha. A volta à cultura e as paisagens espanholas se dá a partir
da tematização de vários aspectos, como a dança, a geografia e os costumes. O poema “Alguns
toureiros”, perfaz a fascinação cabralina pela cultura hispânica, além de colocar em pauta a
contenção lírica, a despoetização e a dessacralização poética:
sim, eu vi Manuel Rodrígues,
Manolete, o mais asceta,
não só cultivar sua flor
mas demonstrar aos poetas:
como domar a explosão
com mão serena e contida,
sem deixar que se derrame
a flor que traz escondida,
e como, então, trabalhá-la
com mão certa, pouca e extrema:
sem perfumar sua flor,
sem poetizar seu poema.
( METO NETO, 2014, p. 228-229)
Referências
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