Você está na página 1de 14

CONSIDERAÇÕES SOBRE A METAPOESIA DE MANOEL DE BARROS

E JOÃO CABRAL DE MELO NETO

CONSIDERATIONS ON THE METAPOESIS OF MANOEL DE BARROS


AND JOÃO CABRAL DE MELO NETO

RESUMO: O presente artigo pretende discutir a poesia de Manoel de Barros e a de João Cabral de Melo Neto, se
detendo especificamente no modo como os autores pensam a poesia e articulam reflexões sobre o fazer poético. O
objetivo é desvelar o modo como cada poeta sistematiza e problematiza as relações entre poema e poeta, mostrando
assim, a especificidade de suas poéticas ante a tradição moderna de poesia. Dessa forma, serão analisados poemas
que se utilizam de procedimentos metalinguísticos de ambos os poetas. Para tanto, o estudo recorrerá a teóricos-
críticos como, Paz (1984), Maciel (1994), Camargo (1996) Secchin (2014) e Barbosa (1986).

Palavras-chave: Metapoesia; Manoel de Barros; João Cabral de Melo Neto.

ABSTRACT: The present article intends to discuss the poetry of Manoel de Barros and João Cabral de Melo
Neto, focusing specifically on the way the authors think about poetry and articulate reflections on poetic making.
The goal is to unveil the way in which each poet systematizes and problematizes the relationship between poem
and poet, showing the specificity of his poetics before the modern tradition of poetry. Therefore, poems that use
metalinguistic procedures of both poets will be analyzed. To conclude it, the study will use theoretical-critics such
as Paz (1984), Maciel (1994), Camargo (1996) Secchin (2014) and Barbosa (1986).

Keywords: Metapoetry; Manoel de Barros; João Cabral de Melo Neto.

É no século XX que o discurso metalinguístico ganha proeminência na seara artística,


desdobramento de uma consciência poética iniciada no romantismo alemão, em poetas
franceses, como Baudelaire, Mallarmé e Rimbaud, a metalinguagem é figura constante nos
escritos da modernidade. O voltar-se para a poesia, sendo esta matéria de si mesma intensificou-
se e ganhou contornos cada vez mais claros nas poéticas da modernidade e da
contemporaneidade, Maria Esther Maciel (1994, p.76) entende tais poéticas como “poéticas da
lucidez”. Lucidez que se faz “iluminando” e, de certa forma, racionalizando o trabalho poético.
De fato, existe uma tendência, uma inquietação dos poetas em representar os “bastidores” da
criação poética, em apresentar e convidar o leitor a estender sua compreensão sobre o texto
literário, envolvendo, certamente, o questionamento e a desconstrução de mitos que envolvem
criador e “criatura”. Ou seja, o poeta e a poesia são retirados do patamar mágico e sublime que
outrora ocupavam. O poeta-trabalhador substitui a romântica acepção de poeta-inspirado.
Pontual e oportuna, na discussão aqui proposta é a fala de Octavio Paz, no livro Os
filhos do barro (1984a), no qual um dos argumentos centrais sustentados é o de que a
modernidade se move e se faz mover por uma paixão crítica. A crítica ocorre tanto externamente
quanto internamente ao objeto artístico, portanto, “a arte moderna não é apenas filha da idade
crítica, mas é também crítica de si mesma. ” (PAZ, 1984a, p.50). Por conseguinte, a ruptura,
conjuntamente com a paixão crítica, torna-se uma distinta marca da tradição moderna da poesia.
Nesse sentido, a poesia torna-se “narcísica”, auto referencial, tornando-se, de fato, “crítica
enamorada do seu objeto” (PAZ, 1984a, p.50). Não é por mais dizer que esse exercício de
“criação e reflexão, marcou pelo menos a metade da história da poesia moderna ocidental e
ainda vigora, com outros matizes, no cenário crítico contemporâneo” (MARCIEL, 1994, p.78).
Acompanhando as cisões da era da crítica, a poesia passa por alterações que vão abalar
o material basilar do escritor, a linguagem. Maria Bochicchio (2012), em seu texto “Metapoesia
e crise da consciência poética”, salienta que a crise que atingiu a literatura no século XX
desestabilizou o caráter representacional da arte, dessacralizou cânones estilísticos, fragmentou
o conceito de “eu” e colocou em pauta o próprio estatuto da linguagem. A crise da linguagem
é uma experiência que afetou diretamente os escritos modernos, os poetas se viram tomados
por uma “sensação da impropriedade do idioma poético estabelecido, e sentiram, por razões
pessoais ou culturais mais amplas, a necessidade premente de desenvolver novos meios de
aproveitar os recursos da linguagem. ” (SHEPPARD, 1989, p.263)
A crise da linguagem, dessa forma, estaria estreitamente relacionada a uma nova
prática poética, aliás, a recorrência à metalinguagem se apresenta como uma saída, uma “rota
de fuga”, como se o escritor pudesse a partir do compartilhamento das suas angústias e
frustrações acerca do processo de escrita desprender-se de algumas amarras que povoam o
universo poético. Angústias que envolvem, quase sempre, a função social do poeta e da poesia,
questões estéticas, temáticas e receptivas do texto literário. Os escritores, conscientemente são
movidos a um repensar da linguagem e dos seus processos de composição. Um repensar que
coloca em questão “os mecanismos de representação da realidade” (BARBOSA, 1986, p.98).
Não se pode negar que o exercício metalinguístico alcança uma dimensão problematizadora,
pois,
não só questiona a construção poética, os elementos de que se compõe um poema,
mas também a linguagem, da qual o poeta se vale para nomear os objetos
representados. Pela metalinguagem, investiga-se o grau de adesão da linguagem à
realidade, questiona-se a mimese íntegra e tranquila de uma realidade fragmentada e
descontínua. (CAMARGO, 1996, p.233)

Partindo desse direcionamento no que se refere a metalinguagem, é que esse artigo


trará dois poetas do panorama literário brasileiro, Manoel de Barros e João Cabral de Melo
Neto, poetas que, reiteradamente, fazem poesia sobre poesia, escrevendo poemas críticos e
poemas sobre o próprio poeta e seu oficio.
A metapoesia de Manoel de Barros

O discurso metápoético pode ser encontrado em praticamente todos os livros de


Manoel de Barros, esse é um elemento chave de sua poética. O próprio poeta reconhece essa
faceta em entrevista, dizendo: “A metalinguagem me excita. Acho que é porque eu não tenho
muito do que falar que falo do que eu faço” (BARROS apud SILVA, 2011, p. 16)
Barros, ao contrário de João Cabral, não faz uso do texto ensaístico como modo de
refletir criticamente sobre poesia. As inquietações poéticas do poeta se perfazem no interior de
seus poemas, ou em um caso à parte, em entrevistas.
A perspectiva poética colocada em evidência por Manoel de Barros, segundo a
estudiosa Goiandira Camargo (1996, p.198), é a de uma poesia que se faz a partir do
fragmentário, da exaltação das coisas ínfimas, da procura pelo primitivo da palavra. O poeta
notabiliza em seus poemas, “a contradição de compor uma poesia sempre em ruptura, mas
cantando profundamente a unidade paradisíaca perdida. ” (CAMARGO, 1996, p.204)
Dito isso, é elementar pensar a metapoesia de Barros associada a uma criação que toma
o “traste”, as coisas do chão, “Tudo aquilo que a nossa/civilização rejeita, pisa e mija em cima”
(BARROS, 2010, p.56) como matéria de poesia, já que existe uma recorrência reflexiva sobre
o que seria assunto poético. Ao construir uma poética ao “rés-do-chão” e conscientemente
realizar um movimento de dessacralização, criando espaço para elementos julgados
“antipoéticos”, o poeta rompe com pressupostos impostos por uma tradição lírica.
Outra questão que merece destaque é a forma como o próprio oficio de poetar é versado,
o lugar do poeta na sociedade aglutina-se à eleição do assunto de poesia, ao campo da
inutilidade, que com indistinta frequência, equipara aquele que escreve poesia as “ crianças
pessoas esquisitas/loucos e bêbados” (BARROS, 2010, p.181) A escrita poética estaria assim,
no liame do olhar de sujeitos preteridos pela sociedade. O discurso vinculado às crianças,
pessoas “esquisitas”, loucos e bêbados, como é sabido, trata-se de um discurso que, via de regra,
é invalidado, relegado a esfera da desimportância, sobretudo relacionado a um universo onírico,
do devaneio e do ilógico.
A criança e a infância ganham bastante relevo nas poesias de Barros, inclusive, existem
recortes críticos que procuram entender a obra deste poeta partindo do entendimento de que a
sua poesia “é um desenho verbal da inocência! ” (BARROS, 2010, p. 461), o universo infantil
recuperado em seus livros desenraiza elementos poéticos centrais, já que pelo olhar da criança
cria-se estruturas, jogos de sentido, uma criação que busca pela e na palavra a origem das coisas,
vivas ou inanimadas. Baudelaire, no livro Sobre a modernidade(1996), aponta como exímio
aspecto do artista da modernidade uma disposição que definiu de estado de convalescença. Esse
estado se refere a um olhar de curiosidade profunda para o mundo, onde nada é alheio ou
indiferente, e que se alia a uma busca por uma palavra primitiva que retome à origem, ao estado
das pré-coisas, a gênese da natureza, a “infância da língua”. O conceito de convalescença de
Baudelaire ganha sentido imediato nos poemas de Manoel de Barros, que, reiteradamente,
imprimem este estado de inebriação, de “redescoberta sem limites. ” (BAUDELAIRE, 1996,
p.18-19).
A redescoberta sem limites na poética barreana se faz a partir do olhar, o poeta assim
como Cabral elege a visão como o sentido humano mais revelador, não é por mais que Manoel
de Barros concentra-se nas coisas ínfimas, pois é somente através de uma olhar meticuloso e
curioso que todo e qualquer objeto deixa a realidade para figurar o texto poético estabelecendo
novas relações e significações. Semelhante a Rimbaud, o autor de Poemas rupestres (2004)
propõe uma poética de desregramento e expansão para todos os sentidos já existentes, sentidos
que não se prendem, ou não tem como preocupação a vinculação com uma realidade objetiva.
Estamos diante de uma poesia que “é fruto de uma natureza que pensa por imagens. ”
(BARROS, 2010, p.437). Imagem que como propõe Octavio Paz (1984b, p.119) dispõe em seu
interior a pluralidade de sentidos, de palavras que combinadas resultam em algo maior, a
imagem
Metaforicamente, é como se diante de um jogo de quebra-cabeças, o poeta do pantanal
optasse pelo não encaixe das peças já previamente definidas para formar um desenho. Ele
escolhe montar um novo desenho a partir das mesmas peças, sem se preocupar, obviamente, se
elas fazem sentido ou não. O que lhe interessa ao representar a realidade, é fugir do óbvio,
daquilo que todo mundo vê, por isso, os “despropósitos”, as “insignificâncias” são as mais
importantes.
A poesia de Manoel de Barros se constrói a partir de várias linhas de força, a
metalinguagem O poema “Matéria de poesia” presente em livro homônimo, se faz oportuno
para a discussão proposta, haja vista que se trata de um poema de natureza evidentemente
metapoética:
Toda as coisas cujos valores podem ser
disputados no cuspe à distancia
servem para poesia
[...]
O que é bom para lixo é bom para poesia
As coisas sem importância são bem de poesia (BARROS, 2010, p.48)
O poema inteiro vai descrevendo assuntos que, na percepção do poeta, se adequariam
ao universo poético, cita-se, dessa forma, diversas coisas que para a sociedade capitalista,
movida pela ideia de funcionalidade, seriam descartáveis, é o caso do lixo, de “coisa sem
préstimo”, daquilo que “não pode vender no mercado”, dos sujeitos sem importância,
personificados em “loucos de água estandarte’, “trastes”, nos “pobres-diabos” que são “jogados
fora”. O poema em questão reflete sobre uma questão fundamental no tocante a escrita de
poesia: O que é um bom poema? Existem temas específicos para poesia? Existe aí um
movimento de dessacralização. Ao trazer assuntos que na tradição lírica seriam “indignos”, e
por isso impensáveis a aparecem em versos, o poeta, conscientemente desvela a fusão do seu
projeto ético e estético, pois como diz, são as coisas “sem importância” que se fazem “elemento
de estima”, sendo assim:

O homem e as coisas inviáveis na sua servitude são recuperados pela poesia de Barros
numa atitude de crítica à sociedade, rompendo com as suas construções canônicas.
Exatamente pela inserção do inservível enquanto elemento de tratamento poético[...]
numa verdadeira rebeldia ao que elege ao canônico, contestando toda uma tradição do
decoro e da decência poética. (CAMARGO, 1996, p.109)

A consciência crítica sobre o processo criativo, coaduna-se a uma crítica social em


“Matéria de poesia” e isso é um assunto que persiste na poesia de Barros, a crítica a um sistema
social racional e capitalista, uma vez que, o poeta possui uma ética poética que tem como
projeto estético uma perspectiva humanística.
Outro livro importante para discutir a questão metapoética em Manoel de Barros é
Arranjos para assovio (1982), a obra possui diversos poemas especulativos acerca da poesia.
No livro encontra-se uma parte denominada “Glossário de transnominações em que não se
explicam algumas delas (nenhumas) ou menos. ”. Nesse segmento do livro, o poeta tenta
descrever várias palavras. Entre as “transnominações” está a “poesia” e o “poeta”. O
interessante nessa tentativa de “explicação” é que ela se faz a partir de construções
aparentemente ilógicas, alicerçada em imagens que, como prevê Octavio Paz (1984b),
congregam sentidos contraditórios e plurissignificativos. No tocante a “Poesia, s.f. ,” o poeta
mato-grossense escreve:

Raiz de água larga no rosto da noite


Produto de uma pessoa inclinada a antro
Remanso que um riacho faz sob o caule da manhã
[...]
Designa também a armação de objetos lúdicos
com emprego de palavras imagens cores sons etc.
- geralmente feito por crianças pessoas esquisitas loucos e bêbados.
(BARROS, 2010, p.181)
A definição de poesia intentada nos primeiros versos, se faz a partir de frases
sobrepostas, expondo distintamente a escolha poética de Barros pelo fragmentário. Como
percebe Camargo (1996), ao construir poesias a partir de fragmentos o poeta manifesta a crise
da linguagem, e, consequentemente, a crise da representação da realidade. O poeta, lança, então,
uma nova maneira de olhar essa realidade, e faz isso alicerçado na invenção, na criação de
realidades improváveis e inverossímeis, parte do existente para realizar um movimento de
montagem e desmontagem.
Barros introduz nos versos acima citados, uma perspectiva poética bem reiterada em
sua poética, a poesia não é explicável, a poesia é. Sendo uma poesia que fala por imagens, a
poesia fala por si. O glossário que não explica nada traz no seu interior definições que vão sendo
expostas através de construções aparentemente ilógicas, fugindo do universo real. Aí reside a
ironia entrelaçada a concepção de uma poesia que não precisa fazer sentido para ser válida, pois
o que interessa é a experiência sensitiva. O poeta convoca imagens da natureza para mostrar
que a poesia é o produto da prática de ir ao “antro” das palavras, de se inclinar às profundezas,
aos lugares cavernosos. A poesia aproxima-se também com “a armação de objetos lúdicos”, o
que permite entendê-la associada à criatividade, ao tom pitoresco e divertido dos jogos infantis.
É como se as palavras nas mãos do poeta fizessem parte de um jogo para qual não há regras ou
limites. Tal pressuposto é constantemente endossado pelo autor, que se mostra cansado diante
da seriedade e racionalidade da lógica capitalista, nas palavras do autor: “Palavras/ Gosto de
brincar com elas/ Tenho preguiça de ser sério. ” (BARROS, 2010, p.419)
Barros termina sua (des) explicação sobre o verbete poesia, aludindo àqueles que
fazem poesia, “crianças”, “pessoas esquisitas”, “loucos” e “bêbados”, estes sujeitos, seriam
para ele os que geralmente podem e devem fazer poesia.
No que concerne aos sujeitos que fazem poesia, vale transcrever o fragmento em que
o autor de Arranjos para assovio traz um verbete sobre o “Poeta, s.m e f..” :

Indivíduo que enxerga semente germinar e engole céu


Espécie de um vazadouro para contradições
Sábia com trevas
Sujeito inviável:
aberto aos desentendimentos como um rosto. (BARROS, 2010, p.182)

O poeta para Manoel de Barros seria o indivíduo capaz de, através de um olhar
“clarividente”, captar desde o germinar de uma semente que se faz ao “rés- do-chão”, ao espaço
preferido das aves, o céu. O poeta, nesse sentido, seria o sujeito “inviável”, aquele que pode se
traduzir em vários “eus”, o ser em comunhão com a natureza que consegue mediante a poesia
desvendar a realidade contraditória e fragmentária que o cerca. Neste verbete, são apresentados
os meandros da atividade poética, o poeta se configura como o ser aberto e atento as vicissitudes
da vida cotidiana, aquele que consegue corporificar as contradições inerentes a realidade.
É inegável a recorrência do exercício metalinguístico na poesia de Manoel de Barros,
isso se deve a uma consciência criativa aguçada, preocupada em indagar, expor e propor
perspectivas sobre o trabalho poético. O poeta mato-grossense assume uma postura crítica
diante da linguagem e da sua criação, expondo em seus versos acerrada resistência à sociedade
industrial.
Outra poética que se une a de Manoel de Barros, no quesito de voltar-se para a própria
criação, é a do poeta pernambucano, João Cabral de Melo Neto. A poética cabralina, assim
como a barreana, não pode ser pensada separada de sua preocupação com a linguagem, com o
“fazer” e “dizer” poético.

A metapoesia de João Cabral de Melo Neto

João Alexandre Barbosa, em seu texto “A poesia crítica de João Cabral”, ressalta a
publicação do volume Poesia crítica, do poeta pernambucano, nessa edição, de 1982, Cabral
reuniu todos os poemas que possuem como assunto “a criação poética e a obra ou a
personalidade de criadores poetas ou não”, (MELO NETO, 1982, p.6). O volume mostra com
clareza um percurso poético marcado pela preocupação crítica do seu objeto, deixando
manifesto a “persistência de uma meditação acerca da criação poética que se dá na própria
composição, instaurando o espaço para o exercício de uma metalinguagem” (BARBOSA, 2002,
p.298).
Vale ressaltar que João Cabral, como já dito anteriormente, exerceu atividade crítica
através de ensaios, o poeta sempre admitiu esse desejo e tendência à crítica literária:

A minha poesia é sempre crítica. Esse negócio que se chama metapoesia,


poesia sobre poesia, é uma preocupação de crítico. Escrevi uma quantidade
enorme de poemas sobre autores, sobre escritores, sobre pintores. (MELO
NETO apud ATHAYDE, 1998, p.25)

Cabral escreveu poucos textos críticos, porém, um dos ensaios mais famosos Poesia e
Composição: a inspiração e o trabalho da arte (1952), consegue explicitar pilares do seu
projeto poético. Os textos ensaísticos cabralinos se tornaram quase “guias” para a leitura da
poesia do escritor, a crítica literária, mormente, assimilou e seguiu argumentos de leitura que o
próprio poeta propôs. João Cabral se alinha a outros tanto poetas, que se aventuraram ao
exercício crítico fora dos limites da poesia, é o caso de Baudelaire, Valéry e Mallárme. A
respeito destes poetas-críticos e dos seus escritos, a estudiosa Esther Maria Maciel pontua:

esses textos críticos em prosa, que acompanham ou prolongam as obras poéticas de


seus autores, é comumente atribuída uma função de espelho. Através deles, o poeta
desenvolve o seu conceito de poesia, justifica a sua própria criação e lê -movido pelo
duplo intento de se auto-alimentar poeticamente e definir a própria tradição a que
pertence -obras de outros poetas -antigos ou contemporâneos. (MACIEL, 1994, p, 87)

O espelhamento, do qual fala Maciel, pode ser percebido distintamente nos poemas
cabralinos. Assumindo uma perspectiva teórica-critica em seus ensaios, um “conceito de
poesia”, Cabral acaba por tornar suas produções poéticas reflexo destes. Aliás, Poesia e
composição constitui-se texto elementar, formulando uma tensão que percorre todo o percurso
poético cabralino, a tensão entre o “fazer” e o “dizer”, ou seja, entre uma poesia comunicativa
e a “prevalência da composição sobre a exposição” (BARBOSA, 1975, p.33)
O que nos interessa nesse sentido, é mostrar como a metapoesia de Cabral está
inteiramente ligada a um projeto crítico do autor, o poeta se auto intitula um crítico que se
tornou poeta, por isso faz da poesia espaço constante de discussão artística, enquanto
linguagem, expressão, trabalho estético, crítica de si e do mundo.
Barbosa (1975), ao comentar a metapoesia realizada nos poemas cabralinos, sustenta
que, até nos exercícios poéticos aparentemente isentos de uma reflexão metalinguística, é
possível encontrar mesmo que indiretamente referências ao processo criativo, à construção
poética, dessa forma, a poética de Cabral fornece um extenso corpus a ser investigado a partir
de uma perspectiva metalínguistica.
A terceira obra de Cabral, O engenheiro (1945), compreende um poema homônimo que
exterioriza as“ideias fixas” sobre o processo de construção poético. Nas duas primeiras estrofes
o poeta manifesta sua escolha pelas coisas concretas e pelo discurso claro e conciso:
A luz, o sol, o ar livre
envolvem o sonho engenheiro
O engenheiro sonha coisas claras:
superfícies , tênis, um copo de água

O lápis, o esquadro, o papel


O desenho, o projeto, o número:
o engenheiro pensa o mundo justo,
mundo que nenhum véu encobre (MELO NETO, 2014, p.)

A escolha da figura do engenheiro é significativa, corporificando uma concepção de


poesia ligada ao processo de construir, ao exercício de planejar, calcular, até se chegar a um
produto final. Para Secchin, este poema expõe uma dicção poética que persistirá nos livros
posteriores: “O engenheiro, conferirá ao poema antes de tudo, o estatuto de máquina de como
ver o real” (SECCHIN, 2014, p.85). Isto é, o “poeta-engenheiro” começa a afirmar-se,
evidenciando suas escolhas poéticas, o seu interesse pelas palavras de natureza concreta em
prol das abstratas. Isso justifica a convocação de coisas aleatórias no poema, a exemplo de
“superfícies”, “tênis” e “um copo de água”. Há nestas estrofes a exposição de uma organização
que é a da poesia como ato laborioso, interessando “antes o processo do que a sua realização”
(BARBOSA, 1975, p.51).
É interessante mencionar a epígrafe que acompanha o livro Engenheiro, “...machine à
èmouvoir”, do arquiteto Le Corbusier, que evidentemente se relaciona com a “machine du
language” de Paul Valéry. Essa recuperação de um arquiteto e de um poeta-crítico, como se
percebe no decorrer da leitura dos poemas que compõem o livro, não é gratuita. Cabral esboça
as linhas de seu projeto poético centrado na construtividade, rigor e clareza. A “instigação
intelectual” de Valéry, como constata Benedito Nunes, vai acompanhar Cabral em diversas
produções poéticas. No livro de 1945, em específico, há a absorção de temas e conceitos
poéticos valerianos. Pode-se citar, por exemplo, o entendimento da “criação como ato de
pensamento lúcido, que se completa no ato de escrever, [...] a página em branco, como espaço
decisório, também campo de luta contra o acaso” (NUNES, 2007, p.29) e a ideia da poesia
como “criação da prática” que suplanta a ideia romântica de inspiração.
O poema “engenheiro”, assim sendo, parte de uma reflexão metalinguística que vai se
desenvolvendo em outros poemas, a exemplo de “Lição de poesia”, “O funcionário” , “Pequena
ode mineral”. Todos eles, trazem arraigados a asserção de que o poeta é aquele indivíduo que
trabalha com seu material, lapidando-o. Aproximando-se da perspectiva de Paul Valéry (1999,
p.207), o oficio de poeta assemelha-se a um trabalho de descoberta. O artista é equiparado a
uma funcionalidade, retirando o “véu das coisas”, a função requer uma operação que envolve
montagem e desmontagem.
Outro poema interessante para pensar o ideal cabralino, no sentido da elaboração e
oficio poético, insere-se no celebrado livro Educação pela pedra (1966), “Catar feijão” se faz
aproximando a escrita a uma atividade artesanal cotidiana:

Catar feijão se limita com escrever:


jogam-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na da folha de papel;
e depois, joga-se o que boiar.

2
Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo, não quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a com o risco.(MELO NETO, 2014, p. 456)

Neste poema se explicita a relação entre produtor e produto, a escrita enquanto


realização de uma prática aparentemente simples, catar feijão. A própria expressão “catar” nos
remete ao coloquial, ao que é popular, o poema se constrói assim, como uma “proso-poética”.
Como se sabe, A atividade de “catar feijão” exige um olhar minucioso, de separação entre o
que é “indigesto”, “imastigável” do que não é. O
O poeta assemelha-se ao indivíduo que com paciência e meticulosidade consegue
escrever. Em muitos outros poemas cabralinos, à semelhança de “Catar feijão”, há a
aproximação da criação poética com o produto de trabalhos manuais, a exemplo da
“horticultura”, do trabalho operário e cirúrgico (SECCHIN, 2014, p.250).
Enquanto que nas duas primeiras estrofes o poeta vai expondo as semelhanças entre
escrever e “catar feijão”, na segunda parte do poema, se estabelece uma diferença fundamental,
que inclusive se faz presente no título da obra, a “pedra”. Esse “grão imastigável”, jogado “fora”
no ato de catar, é usado na poesia. Melhor dizendo, a escrita se expõe ao risco. Aqui está uma
lição basilar cabralina, a poesia é aquela que se faz pedra, árida, seca e dura. Ao eleger a pedra
como “grão mais vivo”, o poeta manifesta sua linguagem poética que vai se fazendo a partir de
novas configurações, expondo o leitor a um terreno pedregoso, que “obstrui a leitura fluviante,
flutual”, ou seja, uma linguagem que se distancia do discurso didático. Cabral faz da sua
poética, e em Educação pela pedra isso se torna evidente, um tipo de educação:
que se manifesta em termos de uma singular imitação: aprendendo com os objetos,
coisas, situações, pessoas, paisagens, etc.,[...] Uma educação paradoxal porque
poética: livre do diadaticismo por força da construção, a sua obra ensina mais
radicalmente, isto é, pela raiz das coisas em que são procuradas as significações mais
entranhadas . (BARBOSA, 1986, p.108)

Como se pôde perceber, a poesia cabralina é permeada por várias “lições” a respeito
do processo de escrita, do oficio poético. E faz isso utilizando diferentes estratégias e temáticas.
Uma faceta bem presente na obra de Cabral é a recuperação recorrente de dois espaços
geográficos, o Nordeste e a Espanha. A volta à cultura e as paisagens espanholas se dá a partir
da tematização de vários aspectos, como a dança, a geografia e os costumes. O poema “Alguns
toureiros”, perfaz a fascinação cabralina pela cultura hispânica, além de colocar em pauta a
contenção lírica, a despoetização e a dessacralização poética:
sim, eu vi Manuel Rodrígues,
Manolete, o mais asceta,
não só cultivar sua flor
mas demonstrar aos poetas:
como domar a explosão
com mão serena e contida,
sem deixar que se derrame
a flor que traz escondida,
e como, então, trabalhá-la
com mão certa, pouca e extrema:
sem perfumar sua flor,
sem poetizar seu poema.
( METO NETO, 2014, p. 228-229)

O “Manuelete” descrito é um dos toureiros dos cincos apresentados no poema inteiro,


o mais interessante é que cada um deles lança um modo de criação poética. No fragmento acima
citado, tem-se um pouco da perspectiva dos toureiros anteriores, a diferença é que este se
manifesta de modo mais categórico e objetivo. A reflexão sobre a poesia se dá a partir de um
questionamento, ou melhor, de uma provocação, o poeta realiza a desmontagem de elementos
da lírica, como a “flor” e o sentimentalismo. “Alguns toureiros” materializa o conceito de
poesia cabralina de linguagem contida, ao expor a ação do toureiro de “domar a explosão/ com
mão serena e contida”, há também o questionamento do belo apenas como ornamento, a “flor”
elemento célebre da tradição lírica romântica, não deve apenas ser poetizada, “perfumada” para
servir de assunto à poesia, precisa ser trabalhada, com “mão certa, pouca e extrema”. Este
poema, nos remete a outro texto, do livro Psicologia da composição, no qual a “flor” é
equiparada a dejetos. Percebe-se, deste modo, que o poeta pernambucano assume em seu
projeto poético a “dessublimação” , “dessacralização” de assuntos poéticos, ao destituir a flor
de sua “áurea”, João Cabral, “põe o dedo na crise da própria linguagem poética.
Dessacralizando a poesia, JCMN desaliena a linguagem respectiva de seus parâmetros nobres”
(CAMPOS, 2004, p.82)
Entender a poesia que explora a reflexão sobre o exercício de criação, escolhas
de temas poéticos, uso da linguagem, tendências estilistas, função poética, lugar da poesia e do
poeta e suas relações com a sociedade, auxilia não somente a entender a poética de um autor
em específico, mas amplia o conhecimento e a intimidade do leitor sobre poesia amplamente.
Já que o leitor é exposto aos processos e problematizações do universo poético. No caso de João
Cabral, a metalinguagem exercida em suas poesias, permite identificar as suas diretrizes de
criação, estratégias estéticas e obsessões poéticas, dando um panorama amplo sobre
pressupostos de ordem poética e também ética. Os três poemas aqui discutidos, “O
engenheiro”, “Catar feijão” e “Alguns toureiros”, atestam um poeta extremamente lúcido,
preocupado em discutir seu objeto, em expor seus ideais poéticos, em instituir uma poesia
centrada em “dar a ver as coisas. ” Ao percorrer a extensa obra cabralina percebe-se que existem
traços medulares neste autor que devem ser levados em consideração, “tensão, desafio, lucidez
e obsessão diante do objeto que se cria; economia, concretude, clareza, plasticidade e assepsia
no objeto criado. ” (SECCHIN, 2014, p.275), esses traços são importantes, visto que espelham
grande parte das discussões de teor metalínguistico propostas.

Cabral e Barros: metapoetas


O que une todos os poetas-críticos, de acordo com Maciel (1994), é a eleição da
linguagem como o elemento central que move o poema. Manoel de Barros se perfaz em um
poeta para qual a linguagem é um processo constante de reinvenção, em seus poemas é
perceptível a preocupação com a construção poética, em uma busca pela desautomatização do
discurso e veiculação de uma crítica ao sistema racional-capitalista. Cabral na esteira de Barros
possui como eixo, a elaboração estética da linguagem, buscando reinventa-la, entendendo a
poesia como trabalho com a linguagem, com as palavras, seus sentidos e possibilidades. Cada
poeta a sua maneira explora a plasticidade imagística: Cabral evidentemente ligado a uma
dimensão concreta e objetiva das coisas “imitadas”; Barros, expandindo essa dimensão plástica
ao seu nível máximo. Os exercícios metapoéticos dos dois escritores desvelam olhares atentos
para as problemáticas que envolvem ser escritor e fazer poesia em uma sociedade para qual a
arte vem perdendo seu estatuto de importância, sendo que, como pontua Maciel (1994), essa
junção entre criação e reflexão, permite aos poetas, a realização de uma “defesa da criação
poética”. A arte resiste, os artistas resistem, “minimizado e condenado ao desterro. ” (MACIEL,
1994, p.24), fazem da literatura seu campo de luta.
A consciência metalinguística, herança moderna, nos dois autores, possibilita uma
espécie de passeio ao projeto poético e ético de Barros e Cabral. Percebe-se que os poetas
citados expõem em suas poesias uma preocupação em “dessacralizar” temas de uma tradição
lírica, seja através da inserção de elementos “inúteis” e falas orais, ou mesmo de instituir o non
sense como regra. No caso de Cabral, há uma tentativa de negar o lirismo, a “poeticidade” do
poema, ao objetivar uma poesia “antilírica”, como nos fala Luiz Costa Lima (1968), o
pernambucano faz da sua poética espaço de discusão a todo e qualquer objeto, pois “todas as
palavras podem ser poéticas”(MELO NETO apud ATHAYDE, 1998, p.20), o que interessa
necessariamente não é o assunto tratado em poesia, mas a maneira, o processo de composição
desse objeto. Manoel de Barros, insere em suas poesias o questionamento do que seria assunto
poético, estrategicamente como forma de inserir elementos do cotidiano, coisas ínfimas,
consideradas inúteis ou inadequadas para figurar como “matéria de poesia”.
Os dois poetas, afinal, intentam conduzir o leitor a um novo olhar às coisas do mundo,
a premissa é a de que tudo que existe, seja vivo ou não, pode render surpreendentes descobertas.
Como pontua Carlos Felipe Moisés “a poesia nos ensina a ver como se víssemos pela primeira
vez. ” (MOISÉS ,2007, p.14, grifos do autor), tanto Barros como Cabral assumem esse
compromisso ao construírem suas poéticas.

Referências
ATHAYDE, Félix. de. (Org.) Idéias fixas de João Cabral de Melo Neto. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira; Mogi das Cruzes: Universidade de Mogi das Cruzes, 1998.

BARBOSA, João Alexandre. A imitação da forma: uma leitura de João Cabral de Melo Neto.
São Paulo: Duas Cidades, 1975.

BARBOSA, João Alexandre. A poesia crítica de João Cabral. Lição de João Cabral. In:
Alguma crítica. Cotia, SP: Ateliê, 2002.

BOCHICCHIO, Maria. Metapoesia e crise da consciência poética. In: Biblos Revista da


Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2012.

BARROS, Manoel de. Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010.

BAUDELAIRE, Charles. Sobre a Modernidade:o pintor da vida moderna. Org. e trad.


Teixeira Coelho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.

CAMARGO, Goiandira de F. Ortiz de. A Poética do Fragmentário: uma leitura de poesia de


Manoel de Barros. 1996. Tese (Doutorado em letras). Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, 1996.

CAMPOS, Haroldo. O geômetra engajado. In: Metalinguagem & outras metas: ensaios de
teoria crítica e crítica literária. São Paulo Perspectiva, 2013, pp. 77-96.

MACIEL, Maria Esther. Poéticas da lucidez: notas sobre os poetas-críticos da modernidade.


Revista de estudos de literatura. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, v.2, p.75-96,
out. 1994.

MELO NETO, João Cabral de. Poesia completa. Organização e prefácio de Antonio Carlos
Secchin. Lisboa: Glaciar, 2014.

NUNES, Benedito. João Cabral: a máquina do poema. Adalberto Muller (org.). Brasília:
Editora Universidade de Brasília, 2007.

MOISÉS, Carlos Felipe. Poesia e utopia: sobre a função social da poesia e do poeta. São
Paulo: Escrituras Editora, 2007.
PAZ, Octavio. A tradição da ruptura. In: Os filhos do barro. Do romantismo à vanguarda.
Trad. Olga Savary. Rio deJaneiro: Editora Nova Fronteira, 1984a.

PAZ, Octavio. A imagem. In: O arco e a lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984b.

RIMBAUD, Arthur. Carta a Georges Izambard. Trad. Marcelo Jacques. Alea vol. 8 no. 1. Rio
de Janeiro, Jan./Jun. 2006.

SECCHIN, Antonio Carlos. João Cabral: uma fala só lâmina. São Paulo: CosacNaiy, 2014.

SHEPPARD, Richard. A crise da linguagem. In: BRADBURY, Malcolm; McFALARNE,


James. Modernismo. Guia geral. Trad. DeniseBottmann. São Paulo: Companhia das Letras,
1989.

VALÉRY, Paul. Poesia e pensamento abstrato. In___. Variedades. Tradução de Maiza


Martins de Siqueira. São Paulo: Iluminuras, 1999.p. 193-210

Você também pode gostar