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Mario Liverani ANTIGO ORIENTE Histéria, Sociedade e Economia Travucio Ivan Esperanga RocHA be 166), Vee) dor PRIMEIRA PARTE INTRODUCAO ! | i | ! { I O ANTIGO ORIENTE COMO PROBLEMA HISTORICO I. A IMAGEM MITIC. As culturas histéricas pré-cléssicas do Oriente Proximo sio, hoje, reconstruidas tendo por base a documentacio arqueoldgica e textual proveniente de escavagdes desen- volvidas nessas regides durante mais de um século. Antes das escavacies, no tinhamos mais qualquer sinal de muitos desses povos: no apenas dos fatos histdricos e dos tra- os culturais, mas também do nome, para nao falar de suas linguas ¢ escritas. Sua des- coberta constituiu um dos principais, se nfo o principal, enriquecimento ¢ ampliagio do conhecimento histérico moderno, um fenémeno que até hoje ainda nao se exauriu € que, aliés, continua a apresentar, em ritmo acelerado, descobertas que exigem uma revisio, ou até mesmo a primeira redacio, sobre fases histéricas inteiras com duraco ¢ complexidade que nao sio irrelevantes. No entanto, a cultura europeia sempre conservou certa “memséria” do quadro his- t6rico do Antigo Oriente, ligada, entretanto, a fontes ¢ canais que Ihe atribufram um caréter, de certa forma, mitico — ou seja, absoluto ¢ preconceituoso, mas pouco histé- rico e documentado. Dado que os mitos so tenazes ¢ geralmente inadvertidos, sua in- fluéncia continua, de alguma maneira, a condicionar até mesmo 0s estudos histéricos mais recentes. Antes de apresentarmos as tendéncias historiograficas atuais, é preciso fazer um aceno muito répido, mas critico sobre elas. © principal canal que preservou no tempo (sem interrupgao) uma memaéria his- térica sobre © Antigo Oriente é 0 Antigo Testamento. Esse conjunto de escritos, com diferentes datagdes e caracteristicas, mas grandemente marcado pela intenco ideolé- gica de seus compiladores ¢ redatores, esté ligado & difusio de religides - a judaica ea crist — que surgiram no Antigo Oriente, mas que ultrapassaram seus limites espaciais € cronolégicos. Essa ligago garantiu a sobrevivéncia, em meio a um naufrdgio genera- lizado, das literaturas orientais antigas (que tiveram de ser redescobertas, ¢ apenas em —27— — Introdugio — parte, por meio da pesquisa arqueolégica), mas atribuiu-the uma respeitabilidade e um carisma de “verdade” (na condigio de livros sagrados e revelacio divina) que durante muito tempo foram aceitos pela cultura europeia sem revisdes substanciais. A convic- do da unicidade e diversidade da histéria de Israel como povo “eleito” foi transmitida, em parte também (mas em sentido negativo), as culturas histéricas circunstantes ¢ ci tadas no Antigo Testamento — dos assirios aos caldeus, dos candrios aos filisteus — dado que também elas constituem partes instrumentais (dependentes da vontade divina) de uma histéria de salvacio do género humano em suas fases iniciais ¢ mais significativas. A propria redescoberta arqueoldgica do Antigo Oriente dé-se, inicialmente, e so- bretudo, como tentativa de recuperar dados ¢ imagens do “ambiente histérico” do An- tigo Testamento. Em seguida, e em contraposigio a aplicacao da critica histérica ¢ tex- tual aos textos antigotestamentirios, essa redescoberta foi intensificada com o objetivo de demonstrar a substancial veracidade do texto sagrado, ou seja, de documentar, usan- do uma famosa expressio claramente ideoldgica: “a Biblia tinha razio”. E, de fato, no passado, a maior parte das pesquisas arqueolégicas na regio foi motivada, financiada ¢€ divulgada por sua (verdadeira ou presumida) relevincia para a exegese antigotesta- mentéria, A maior parte dos estudiosos envolvidos (fildlogos, historiadores, arquedlo- £808) foi inicialmente estimulada pelo fato de serem judeus, pastores protestantes, ¢ em menor nimero, sacerdotes catélicos. Portanto, nfo eram ‘imparciais”, (prescindindo da integridade intelectual subjetiva) nem indiferentes aos resultados de suas pesquisas, que podiam confirmar ou negar os proprios fundamentos de sua visio de mundo. Duran- te 0 tiltimo século, a abordagem “secular” conquistou arduamente seu espaco, sempre envolvida em controvérsias ¢ polémicas sem fundamentagio historica — desde a “Babel und Bibel” dos oitocentos até as recentes polémicas em torno de Ebla. Outro canal de sobrevivéncia de dados ¢ imagens sobre 0 Antigo Oriente na cul- tura europeia so 0s autores cléssicos, representantes de um mundo (helénico, seguido pelo helenistico ¢ pelo romano) contemporineo e, de certa forma, contraposto as civi- lizagGes orientais em sua fase mais recente. A partir de Herddoto, firmou-se uma ima- gem e um uso do Oriente como lugar geométrico dos elementos de polaridade a respei- to do “nosso” Ocidente. E assim que se consolidaram os mitos do despotismo oriental (oposto & democracia ocidental), do imobilismo tecnolégico ¢ cultural (oposto ao pro- gresso cumulativo das civilizages europeias), da sabedoria oculta ¢ magica (oposta & ciéncia leiga e racional dos gregos ¢ de seus herdeiros). A passagem dessa antropologia da contraposi¢éo a uma antropologia da diversidade e da historicidade - na qual toda cultura é diversa das outras, inclusive a nossa, sem qualquer privilégio - aconteceu ¢ estd acontecendo por meio de um érduo percurso que se enquadra na trajetéria geral do estoicismo e do relativismo cultural caracteristicos da cultura moderna. E se hoje essa mitologia do diverso como oposto parece jd superada, isto nao se deve tanto a rentincia a0 mito em si, mas por ter sido, talvez, deslocado para o ambito extraterrestre, ou do futuro que ocupou o lugar do oriental ¢ do antigo jd bastante conhecido, impedindo que eles fossem vinculados & utopia ¢ ao antimodelo. 28 — —O Antigo Oriente como Problema Histérico — (Panes éa parede de tiolos preservadas [7 tmegeasio da parede de tle EE] nicteo bravo Figura 1. A mudanca na avaliagio ocidental das antiguidades do Oriente Proximo. Acima: 0 zigurate de Aqar Qué, que para os viajantes dos séculos XVIII e XIX era a “torre de Babel”, Em baixo: projeto recente de restau- ragio do mesmo zigurate, com estruturas metalicas para o acesso dos turistas. Porém, com a intensificago do conhecimento, outros mitos substituiram os an- tigos. Refiro-me, sobretudo, & versio moderna do mito das origens que consiste em ver © Antigo Oriente como 0 “bergo” ou “limiar” da civilizacio, o lugar em que pela pri- meira vez se promoveu o uso de instrumentos tecnoldgicos ¢ operatives e as formas de organizacio dessa clevada cultura que, com suas modificages e aperfeigoamentos, che- garam até nds. Nao € por acaso que se generalizou o costume de usar o Antigo Oriente como um dos componentes privilegiados que constitui uma espécie de eixo basilar da histéria universal em perspectiva eurocéntrica, seguido por outros do mundo grego, do mundo romano, da Europa medieval cristé e da Europa Ocidental moderna. Por um. lado, este cixo tende a dar um sentido unitério e acabado ao desenvolvimento histéri- co propagado em nossa dite¢o; por outro lado, implica a inevitével marginalizacio de outras experiéncias histéricas que permanecem como que eliminadas, e consideradas irrelevantes e sem consequéncias. —29— — Introdugio — Esse tipo de interpretac3o tem seu lado de “verdade”, mas é perigoso. Tem sentido porque, de fato, as civilizagdes complexas sio constituidas por um conjunto de elemen- tos (a origem do Estado, da cidade,da escrita ¢ assim por diante) que se desenvolveram inicialmente no Antigo Oriente, ¢ porque a cadeia de sua transmissio até nds, apesar de complicada, pode ser reconstrutda. O perigo ¢ 0 equivaco esto na definigdo de uma “monogénese” da alta cultura que, na verdade, teve diferentes origens e percursos alter- nativos, € na minimizagio do alcance das continuas ¢ substanciais mudangas produzidas nas instituigdes, nas tecnologias e nas ideologias com a mudanca de seu contexto histé- rico. Os fenémenos histéricos no tém uma “origem” Unica e definitiva, mas sempre se amoldam & estrutura das sociedades em que se situam. Portanto, a presumida origem é apenas um dos elos de uma cadeia (entre tantos outros elos de muitas cadeias) que pre- cisamos reconstruir ao longo de toda sua extensio, nem sempre breve ¢ univoca. Sobre- tudo hoje, em que a ampliagio do horizonte cultural internacional ¢ a revolugio dos sistemas de transmisséo das ideias e do conhecimento exigem que se eviter os encastela- mentos etnocéntricos para conhecer experiéncias e percursos de outros etnocentrismos. O elo antigo-oriental nao é certamente o “original”, porque foi precedido por ou- tras fases pré ¢ proto-hist6ricas também essenciais no movimento de desenvolvimento. Ele é apenas um enire tantos outros elementos similares, inclusive os que no fazem par- te do eixo privilegiado definido pela historiografia ocidental moderna, mas ele deve ser também objeto de uma atengao especial devido ao lugar histérico crucial, considerado como patamar ou como ponto de partida de relevantes processos que formaram as so- ciedades de estrutura complexa, ¢ devido a um papel privilegiado baseado em mitos realidades que fazem parte de nossa cultura, e que devem ser objeto de esclarecimentos € riticas, € que nao devem ser ignorados ou simplesmente eliminados de nossa meméria. 2. AS TENDENCIAS HISTORIOGRAFICAS A historiografia moderna sobre o Antigo Oriente jd abandonou as motivagées de caréter mitico que tendiam a interpreté1o como uma experiéncia tinica (por motivos teolégicos ou por uma tipificagio antropolégica ou por uma questo de primazia “ori gindria”), e aponta claramente, pelo menos em suas orientagdes mais conscientes, para uma normalizasio, ou se quisermos, para uma banalizagio da fase histérica, analisada € avaliada no mesmo nivel de outras fases ¢ ambitos culturais. A normalizacio implica © abandono de faceis (¢ &s vezes atraentes) simplificagées, procurando ampliar uma pers- pectiva que permita reconstruir a histéria global das sociedades antigo-orientais - par- tindo das bases ambientais ¢ materiais, por meio das estruturas econémica, social e polf- tica, ¢ até das motivagies ideolégicas e da imaginacio simbdlica ~€ restabelecendo entre seus varios componentes toda a rede de inter-relagies ¢ de motivagGes que os envolvem. Essa tarefa tem seu lado positivo e negativo, mas de qualquer forma ¢ distinta com respeito a outros setores histéricos antigos (sobretudo os ¢léssicos) por dois fatores: um. —3j0— ae —0 Antigo Oriente como Problema Histérico — de auséncia e outro de presenga. Sente-se a auséncia de uma historiografia antiga que fornega os tragos, ou fio conducor para nossa reconstrugio. Essa auséncia (nao total, mas substancial) ¢ um dado fecundo, pois exige um caminho tracado a partir de avaliagdes responsiveis, em vez de se apegar preguicosamente a velhas frmulas, frequentemente marcadas por ideologias, tendenciosas ¢ reducionistas. Quando elas se impdem (como no caso da histéria greco-romana), grande parte do trabalho histérico limitase 2 uma exegese da historiografia antiga. A histéria do Oriente Proximo pré-cléssico deve ser re- construida ex novo, tendo por base uma documentagio priméria, no mediada pela in- tervengio de um historiador externo e posterior aos fatos (mesmo se mais préximos a eles que a nds). E aqui entra o dado da presenca da documentagio de caréter adminis- trativo (assim como comercial e juridica, ¢ em geral arquivistica), muito bem conser- vada pelo fato banal, mas essencial, de que o material de escrita empregado (tabuletas de argila) resistiu aos incéndios e ao enterramento muito mais do que outros materiais usados depois ali ou cm outros lugares (papiro, pergaminho, papel). Esse dado de pre- senga, certamente positivo, tem o inconveniente de estar ainda em uma fase de elabo- rao: todos os anos novas escavagées, regulares ou clandestinas, trazem & luz novas documentagées ¢ exigem ~ no obstante o grave e crescente atraso verificado na publi- cago dos dados inéditos ~ uma revisio continua de capitulos inteiros da histéria, de forma cada vez mais segura ¢ detalhada. A auséncia, portanto, de um traco historiogréfico antigo, o estado ainda fluid da edigo documental, 0 progresso dos conhecimentos filoldgicos ¢ dos métodos de escavagio delineiam a histéria do Antigo Oriente Proximo como uma matéria recen- te, livre de condicionamentos tradicionais ¢ aberta a novos campos de conhecimento. Oaspecto negativo dessa situagio nao € constitufdo tanto pela répida obsolescéncia do trabalho atual (que, alids, € sinal de progresso acclerado), mas pelo grande condicio- namento das competéncias especializadas necessérias para se ter acesso & documenta- 40, assim como pelo grande empenho na edisio priméria dos dados. A maioria dos pesquisadores que trabalha com 0 Oriente Préximo dedicase & busca ¢ & publicagao de novos materiais: trata-se, portanto, de arquedlogos ¢ fildlogos. Quase no hé his- toriadores propriamente ditos — distintos das outras duas categorias ~ ¢ a Itélia, nesse sentido, é quase uma exceco. Portanto, a histéria que é produzida esté grandemente ligada ao nivel filolégico, mais ligada 4 documentagio (esperando que esta fale por si mesma?) que a questées e temdticas interpretativas. As histérias gerais do Antigo Orien- te publicadas até agora so um testemunho claro disso, ¢ apenas remanejam estudos analiticos para sinteses gerais. Porém, esse atraso historiogréfico contrasta com grandes possibilidades, que j4 comegaram a encontrar aplicago. A prépria caréncia de tradicées historiogréficas € 0 acesso continuo a novas documentagdes tornam possivel experimentar abordagens € metodologias mais ricas, no entanto, ainda marcadas por uma ingénua ¢ desenfreada improvisacio. O ecletismo e a adogio de propostas elaboradas em outros casos (para outras fases histéricas, quando nio para situagbes antropolégicas totalmente diversas) or ~Introdugiio — comportam grandes riscos de mal-entendidos e de superficialidade; nao obstante, de- vem ser levadas em consideragio ~ pelo menos nessa fase que podemos considerar “pré- -paradigmatica” ~ como potencialmente fecundas e rejuvenescedoras. Pode-se dizer que no existem instrumentos analiticos ou tematicas historiogréficas recentes ou menos recentes que nao tenham sido aplicados ao Antigo Oriente: da andlise espacial de tipo neogeogréfico & anilise estrutural do relato, passando pelos estudos da aculturacio, de fronteiras, dos modos de produgio e sistemas de troca, da antropologia econdmica, da histéria das mentalidades, da estrutura do mito, do discurso politico, das formas de po- voamentos, da seméntica histérica, da teoria dos sistemas, dos mapas mentais, ¢ assim por diante. Essa fase de experimentacZo selvagem deverd concentrarse cedo ou tarde em linhas de pesquisa mais coerentes, e sedimentar-se em uma historiografia “paradig- mitica’, mais madura e menos aventureira, mas jd conseguiut o primeiro objetivo es- sencial que é 0 entiquecimento do quadro histérico com a superacio da esclerose que ainda envolve grandemente outros setores da histéria antiga. © Oriente Préximo é, antes de tudo, um campo historiogréfico “fronteirigo”, si- tuagiio caracteristica de regides onde circulam diferentes experiéncias. A complexidade documentéria e, sobretudo, a complementaridade dos dados arqueolégicos ¢ textuais, induzem aquela globalidade da reconstruco (da cultura material & ideologia) que jé hd tempos deveria caracterizar o trabalho do historiador, mas que é dificil de ser encontra- da na personalidade de cada historiador. O historiador do Antigo Oriente é obrigado a ser, ao mesmo tempo, um arquedlogo de campo ¢ um fildlogo, em uma proporcio desconhecida por outros setores que vem as competéncias mais compartimentadas em uma cadeia produtiva mais consolidada. Em particular, a reconstrugio das fases proto-histéricas ~ a dificil tarefa de re- construir sociedades complexas a partir de uma documentagio nio escrita - serviu de estimulo para estabelecer um encadeamento aprofundado entre registros documentais € todas as informagdes contextuais possfveis: dados ecolégicos ¢ pedolégicos', paleobo- tanicos ¢ arqueozoolégicos, comparagio etnoarqueoldgica ¢ tecnologia experimental, além de todo o detalhamento das escavagdes pré-histéricas (estratigréficas ¢ “abertas” 20 mesmo tempo), ¢ a complexidade da antropologia social, politica ¢ econémica. Se, de um lado, os resultados permanecem 2 margem da histéria em sentido estrito (porque a falta de textos impede praticamente 0 acesso aos fatos), de outro lado, abrem perspec- tiva para uma “nova histéria” com aspiracdes normativas (como outras neociéncias de origem americana: New Archaeology, New Geography, New Economic History), que busca mais “predizer” o passado que reconstruf-lo, e que manifesta um gosto maior pela identificagao de leis do que pela constataio de desvios. A introdugio dos computado- res permitiu a possibilidade (¢ 0s riscos) da “simulaco” aplicada mais as obscuridades do passado do que as incertezas do futuro, com uma geracio de historiadores “demiur- {g03” engajados em um trabalho mais criativo que reconstrutivo. 1. Pedologia: ciéncia que estuda os espagos naturais, vegetais e agririos. (N. do T) — pe =O Antigo Oriente como Problema Histérico — Portanto, em varios aspectos, a histéria do Antigo Oriente Préximo apresenta-se cada vez mais como um laborat6rio privilegiado para 0 estudo de fendmenos de inte- esse relevante para a reconstrucio histdrica das sociedades humanas. O conceito de “laborat6rio” deve ser entendido aqui como um lugar onde é possivel distinguir nos fe- némenos complexos cada um de seus elementos constitutivos, para analiséJos “no va- zio”, compreender suas normas ¢ recompor modelos. © Antigo Oriente pode ser con- siderado como um laboratério privilegiado (portanto, nao exclusivo} porque, por estar situado no limiar da histéria, tem a ver com fendmenos que, naquele momento, estavam adquirindo complexidade, mas que permanecem muito distantes de nés, evitando que um envolvimento emocional ou cultural impeca que levemos em consideragio o real funcionamento de seus varios componentes. Para além de um resultado imediato da compreensio do fato histérico em andli- se, abre-se a perspectiva de uma aplicabilidade mais ampla dos resultados obtidos na reconstrugo dos mecanismos histéricos ¢ antropoldgicas mais gerais. 3. UNIDADE E VARIEDADE, NUCLEO E PERIFERIA A delimitagio no tempo ¢ no espago do Antigo Oriente Préximo (e por conse- quéncia a delimitagio do argumento deste livro) é um problema tanto prético quanto histérico em seu sentido mais amplo. Pesam, sem diividas, argumentos praticos, como a competéncia setorial {e sobretudo filolégica) dos estudiosos, ou sta tradicio discipli- nar. Nessc sentido, o limite inicial, que separa a historia da pré-hist6ria, esta claramen- te vinculado com 0 aporte de fontes escritas as meramente arqueolégicas; outro limite da histéria pré-cléssica com relagio Aquela clissica esté ligado ao surgimento das fontes greco-romanas, diversas na lingua e na tipologia e separadas tradicionalmente do estu- do das antigo-orientais. © mesmo vale para a delimitagio espacial do Oriente Préximo com relagao as regides circunstantes que permaneceram mais tempo em um nivel de menor complexidade. Tais argumentos priticos estio ligados a fendmenos histéricos de amplo espectro, que queremos destacar para evitar que a periodizacio histérica fique presa a um excesso de convenges ¢ artificialidades. O inicio da escrita nao é um fato isolado, mas enqua- dra-se nos processos de especializagio do trabalho e de diferenciacio social, de consti- tuigo de unidades administrativas e politicas complexas, de aglomeracdes humanas mais amplas. Ela deve ser entendida juntamente com a formacio da cidade, do Estado, de uma estratificagio socioecondmica; enfim, é 0 auge daquele processo que foi defin do como “revolugio urbana” (Gordon Childe), e que merece ~ por sua importincia ~ ser assumido como um marco fundamental no continuum espaco-temporal-da histéria. As culturas do Antigo Oriente Préximo que constituem objeto deste estudo surgiram dessa revolusio urbana, que se completou apés um longo periodo de formagio, por volta de 3300 a.C. Antes delas e em torno delas, as culturas de nivel préhistérico repre- — = Introdugio — sentam um nivel distinto (e menos complexo) de agregacio politica, de disponibilida- de recnolégica, de controle social e de mado de producio. Mesmo a periodizacio final, indicada pela constitui¢ao do império persa (por volta de 509 a.C.), logo seguido pela emergéncia do helenismo, coincide com um fendmeno hist6rico de grande dimensio: a insergao plena ¢ definitiva do Oriente Préximo em acontecimentos histéricos e em for- mages politicas em escala suprarregional ~ fazendo com que uma consideracio isola- da sobre ela se torne totalmente inadequada, devendo ser definitivamente abandonada € reavaliada dentro de horizontes mais amplos. Este primeiro nivel de compreensio, no entanto, nao é suficiente, porque deixa sem solugio 0 problema da pluralidade e da interconexio de varios miicleos de urbani- zac0. Ao nticleo centrale precace da Baixa Mesopotamia somam-se outros nticleos: do Egito.ao 1rd, da Asia central ao vale do Indo, do.Egeu & Ardbia meridional (sem contar outros niicleos que permitem comparaces, mas nao ligagdes, como a China, 0 México ou 0 Peru). Todas estas dreas sio determinadas por “caracteres originais” distintos, mas também por interconexdes que podem ser mais ou menos fortes de acordo com sua di- mensio espacial. Nao se pode também desprezar o papel das faixas intermedidtias, tal- vez mais rarefeitas quanto a consisténcia demogréfica ¢ aos ritmos histéricos, mas onde se fazem presentes as questdes que caracterizam os espacos fronteitigos, ¢ que consti- tuem reservas humanas ¢ tecnoldgicas indispensdveis a compreensio desses mesmos niicleos urbanizados. Uma op¢o minimalista privilegia a peculiaridade das caracteris- ticas especificas da érea escolhida; ¢ inegivel, no entanto, o desejo de uma perspectiva mais ampla, que privilegie o policentrismo ¢ as interconexdes. Se neste livro escolhemos a perspectiva minimalista - que se refere a0 niicleo bai- xo-mesopotimico, com seus dbvios complementos alto-mesopotémico, sirio-palestino, anatélico, armeno-transcaucasiano, iraniano ocidental - isto se deve, sobretudo, 3 ques- tao da competéncia cientifica pessoal e da propria dimensio do livro, mas tal escolha no quer absolutamente defender qualquer “imperialismo” regional, e manteré sua va lidade hist6rica s6 se levar em consideracio, em uma perspectiva sempre mais nuanga- da, mas sempre essencial, as regides limftrofes constitu(das por outros nticleos, os cen- tros que definimos como fronteiricos e de reserva, além das redes de interconexto que ligam e fecundam tudo. Mesmo tio limitada, a érea do Oriente Préximo pré-clissico no tem um interior compacto ¢ claramente delimitado. Os limites so bem definidos a oeste (Mediterrineo) € nordeste (mar Negro), ao norte (Céucaso, estepes centroasisticas) e ao sul (deserto ard- bico) sio imprecisos, mas profundos; sio mais abertos no este (planalto iraniano, Gol fo Pérsico). O limite “alto” da periodizacio (isto é, o advento da urbaniza¢io) intervém em momentos diversos, dependendo da regio, de tal Forma que o matiz de cada area € 0 matiz cronolégico se interpenctram, também no que se refere a fragmentacio in- terna. Toda a regido esté marcada por interag6es culturais, politicas e comerciais muito grandes, no entanto, cada drea mantém tragos originais muito acentuados, permitin- do, por exemplo, distinguir entre as caracteristicas culturais especificas da regio Siria —~34— 0 Antigo Oriente como Problema Histérico — € das regides centro-anatélicas, entre as da Baixa Mesopotamia e as da regio elamita, € assim por diante. Assim, reproduz-se dentro da regio, de forma mais limitada, a po- laridade entre compactagao ¢ diversidade, nicleos ¢ periferias, peculiaridade ¢ interco- nextio que, como vimos, caracterizam (e de maneira mais acentuada) também 0 amplo cendrio que vai do Egito e do Egeu ao vale do Indo, da Asia central & Arabia meridional Hé uma analogia com 0 raciocinio diacrénico: todo o longo periodo (trés milé- nios: de 3500 a 500 a.C.) aqui considerado tem uma continuidade e densidade funda- mental, garantidas, sobretudo, pela consolidagao ¢ penetragdo progressiva do modelo urbano ¢ do Estado palaciano. Nao faltam, porém, nem as rupturas traumdticas (que frequentemente emanam da irrupgio ou do ressurgimento do elemento no urbano e no palaciano), nem as diferenciagSes por fases (e por “séculos”}, facilmente reconhect- veis dentro do longo proceso de enriquecimento € de elaboracio dos dados culturai A forte evidéncia que, geralmente, caracteriza tais fases, faz prevalecer uma imagem compacta ¢ cronologicamente delimitada das imagens regionais consideradas na lon- ga diacronia. No conjunto, os limites espaciais ¢ cronoldgicos adotados neste volume parecem os que mais valorizavam a unidade histérico-cultural do Antigo Oriente, en- quanto a divisio interna em capftulos leva em considerac3o a valorizagao das articu- lagdes e originalidades tanto espaciais quanto cronoldgicas de cuja interac deriva a “jogo” do conjunto. Além da complexidade no tempo € no espaso, existem complexidades e varidveis internas, no que diz respeito ao ambiente social, & disponibilidade econdmica e técnica € de participagio politica. Algumas dessas variveis, como a oposigao entre nmades ¢ sedentérios ou aquela entre cidade € campo configuram uma série de interfaces mui- to prdximas, mas que dever ser situadas no espago - um espago em que, nao obstante uma ocupacio humana muito pouco densa, se vé coexistir, a pouca distdncia, modos de vida e instrumentos materiais muito distintos, mas existe também uma rede de “fron- teiras invisiveis” (isto é, que no_se encontram no papel porque perpassam e separam mais os lugares culturais que os. geogréficos) que resultam da coexisténcia ¢. da intera- i0.e do confronto de ideologias diversas. fomfei-o+ ofo aemmenlais /imfrprali Se “< Por fim, existe também no plano pratico uma série de “fronteiras documentétias” que faz com que alguns fenémenos surjam de forma mais numerosa e qualificada que outros, que privilegiam e distorcem parte da imagem que temos a respeito do Antigo Oriente € condenam setores inteiros 20 esquecimento. Um mundo que foi. composto, sobretudo, por aldeias com atividades de. agropecudtia, filtrado primeiramente pela parcialidade da documentasio antiga, e depois pela parcialidade do interesse moder- no, apresenta-se como um mundo de cidades, paldcios.¢ artesanato artistico; um mun- do que teve 90% da populacao analfabera (ou talvez 99%) corre o risco de imporse por sua escrita ¢ por sua literatura; um mundo que foi carcomido por pentiria.endémica (de alimento, recursos, trabalho, populacio) corre o risco de ser interpretado como 0 paraiso opulento de uma “civilizagio” compreendida de forma abstrata. Uma das ta- refas da historiografia moderna é a de reequilibrar as imagens, restituir & reconstrugio —35— —Introdugéo — histdrica certa dose de realismo quantitativo, além de uma avaliagio qualitativa que dé a0 conjunto um sentido ¢ uma compreensio. 4.0 PROBLEMA CRONOLOGICO Em um Ambito mais técnico, sio necessdrios alguns esclarecimentos sobre a cro- nologia antiga ¢ sobre os métodos empregados para reconstru(la. O leitor de historias do Antigo Oriente percebe imediatamente ¢ facilmente a presenga de dois tipos de da- tagdo: uma arqueoldgica, caracterizada por mimeros redondos certamente aproxima- tivos (como, por exemplo, o “gassulense”, aproximadamente 3700-3300 a.C., 0 “Bronze Tardio IIT A’, de 1365-1300 a.C.) ¢ hé uma datacio de carter mais histérico, com cifras definidas (como “Senaqueribe”, 704-681 a.C.,e “Terceita Dinastia de Ur”, 2112-2004a.C.), mas que mudam em cada livro (como por exemplo, no caso de Hamurabi, com dife- rentes datagSes: 1792-1750, 1848-1806, 1728-1696), 0 que levanta a questo do valor efetivo de tais indicagdes. Tratase de dois procedimentos de datacdo, em principio complementares entre si, ‘mas, na realidade, um prevalece para os periodos prée proto-histéricos e o outro para as fases histéricas. O procedimento de natureza arqueoldgica tem caracteristicas objetivas € cientificas, e tende a reconsteuir a datacio de descobertas arqueolégicas (ou melhor, de sua inserso no contexto da descoberta) confrontando-os entre si ¢ com o presente (datas B.P. “before present”, ou seja, “antes do presente”). O trabalho histérico tem uma caracteristica cultural ¢ tende a reconsteuir os antigos sistemas de datagao ¢ as antigas sequéncias cronolégicas, para relacioné-los com nosso sistema € com nossa sequéncia para que sejam acessiveis. Em ambos os procedimentos, o primeiro passo a ser dado colocar os elementos a serem datados em uma relacio reciproca de anteriotidade ¢ pos- teridade, ou também de contemporaneidade (cronologia relativa}; um segundo passo consiste em ancorar a sequéncia de narragdes obtida a partir de um ou mais pontos se- guros, transformando-a em uma sequéncia de datas (cronologia absoluta) ~ que podem ser mais ou menos precisas, com relagio ao século ou & década, 20 ano ou até a0 dia, segundo os detalhes disponiveis na documentacio. A cronologia arqueolégica relativa jd tem sua base essencial na estratigrafia vertical das escavages em espagos habitados. A escavagio estratigrafica permite distinguir entre cada episédio de acumulagio (ou “depésito”) do terreno, isolar os materiais presentes em cada nivel (ou em cada uma de suas camadas), estabelecer relagbes fisicas entre os varios episédios de deposigio (como “cobre”, “corta” etc.) e que podem ser traduzidos em relagGes diacrénicas. As relagdes assim obtidas sio ordenadas em grades de conjunto que reproduzem em termos gréficos simplificados toda a sequéncia de intervenges que se deram a0 longo do tempo ~ sejam voluntérias (momentos construtivos, colocagio de objetos, episédios de destruicao etc.) ou involuntérias (descarte de refugos, acimulo Provocado pelo vento, aluvides etc). A “matriz de Harris” é uma organizacio teérica —36— —37- ~Introdugio — mais rigorosa desse procedimento, e que é utilizada ~ talvez de forma mais empirica ~ por todos os arquedlogos que trabalham no Oriente Préximo. Quando se interconec- tam as sequéncias assim obtidas, 0s arquedlogos reconstroem a estratigrafia de um sitio. E comparando entre si as sequéncias de varios sitios (€ aqui entra a tipologia das des- cobertas) obtém-se uma estratigrafia comparada ¢ uma cronologia relativa (de cardter arqueolégico, ou seja, relativa, sobretudo & cultura material) de toda uma regio e de todo um periodo, até chegar a uma sequéncia que abarque todo 0 Oriente Préximo (e além dele) para todas as fases histdricas e pré-hist6ricas. Essa cronologia arqueolégica relativa pode ser convertida em uma cronologia ab- soluta de duas maneiras: 1) a descoberta de documentos escritos pode permitir uma co nexdo entre a sequéncia estratigréfica e a cronologia histrica antiga que examinaremos mais adiante; 2) cxistem métodos de andlise fisico-quimica que permitem datar alguns tipos de materiais, sobretudo os orginicos. Alguns métodos, apesar de titeis nas fases mais antigas da pré-hist6ria (como a termoluminescéncia), sio muito imprecisos para 05 periodos proto-histéricos ¢ histéricos, para as quais hoje é muito titil o emprego do carbono 14, enquanto sio cada vez mais relevantes as contribuigdes da dendrocronolo- gia. O método do carbono 14 baseia-se no fato de que um isétopo radiativo do carbono (C14), presente em todo material orginico vivo consome-se progressivamente apds sua morte, reduzindo-se & metade no arco de 5568 anos segundo Libby (“lower halflife”). Medindo-se a quantidade do C 14 presente em um resto organico, pode-se estabelecer a data de sua “morte” com maior ou menor preciso segundo as condigdes ¢ a qualidade da andlise, As datas podem ser mais ou menos precisas e confidveis (e até equivocadas se derivadas de matcriais contaminados pelo contato com outros materiais orginicos ou quando encontrados em certos tipos de solo) e permitem diferentes indicagdes: por exemplo, as datas de cereais carbonizados encontrados no piso de um edificio destruido por um incéndio so geralmente mais precisas, ¢ referem-se ao momento da destruicio, enquanto as datas de vigas carbonizadas do mesmo edificio referemse ao momento de sua construsdo ¢ serio também menos precisas porque as vigas podem ter sido colo- cadas na obra muitos anos apés terem sido cortadas. De qualquer forma, um bom ni mero de datas Cr4 coincidentes em um mesmo nivel determina sua datagio com mui- ta seguranca. Atualmente, 0 uso do acelerador permite obter datages precisas mesmo com uma pequena quantidade de carbono. ‘A dendrocronologia baseia-se no fato de que a espessura dos anéis de crescimento anual, ¢ que sio bem visiveis no tronco de uma arvore, é proporcional 3 umidade ab- sorvida pela drvore durante o ano (isto &, em proporgio & precipitacio), ¢ é, portanto, homogénea em todas as drvores de uma mesma regio, a cada ano, ainda que possa ser diferente de um ano para outro. Assim, as sees de troncos podem ser traduzidas em graficos que registram as oscilagdes das precipitagdes, em um ritmo fixo (qualquer que scja a érvore secionada) em um mesmo periodo de anos e que € reconhectvel e aplicé- vel a novos troncos. Partindo das sequéncias obtidas em troncos de drvores vivas (cuja datagZo final é conhecida) e retrocedendo no tempo ao correlacionélas (por sobreposi- 5 —0 Antigo Oriente como Problema Historica — 100 Uma deeai0 “4000 BP, 2100" sgifica ques data i { e100 de probabilidade de ser fixada ii t de ser fixada no periods | ‘ou “de Gauss” expressa | tafcamente esta aproximasio ocabricuma superficie proporciona! 3 probaidades. 2 ret gra maior ov menor de sproximagSo sigma = evo pao} ‘visualize por uma curva de Gauss dup curva comtraponta Em seu iaerog,a mars indica a data cena convencionalo rag contin + 10,0 decontinu # 20, 2 unio ds curva et a «3a, 1000 Figura 3. Aproximacio das datagGes com carbono 14, io parcial progressiva) com as de troncos mais antigos (traves utilizadas em palécios, igrejas ou mesquitas etc.) pode-se estabelecer também para o Oriente Préximo toda a sequéncia que vai até o inicio do perfodo Clissico. Apés um hiato de alguns séculos existe ainda (para a Anatélia) uma longa sequéncia relativa 20 perfodo do Ferro (e até o Bronze Tardio) baseada inicialmente nos troncos encontrados nos témulos funerérios frigios de Gérdio. Esta e outras sequéncias no atreladas & moderna so datadas com 0 Cag (colhendo pequenas amostras do primeiro e do tiltimo anel),¢ jé existem sequéncias que chegam até o perfodo proto-histérico. Quando estas sequéncias forem conectadas entre si e com aquela principal que é datada com exatidao, consegue-se uma cronologia precisa ano a ano, mesmo que seja encontrada apenas em uma determinada categoria de achados arqueoldgicos (troncos, mesmo carbonizados) e, portanto, utilizével, sobre- tudo para datar edificios construidos com tais troncos. Enquanto se aguarda que a dendrologia tenha um impacto direto na cronologia histérica do Oriente Proxim, jd se percebe um impacto indireto muito importante. De fato, a andlise do C14 aplicada a troncos datados com preciso por meio da dendro- cronologia permitiu constatar que as datas obtidas eram sistematicamente mais altas para os perfodos mais recentes, mas muito baixas para os perfodos mais antigos (so- —39 —Introdugiio — 1930 1940 _ 1950 1960 Principio dadendrocronologia:apartirde 1) TERI} 2 uma sequéncia de anéis de datagio conhe- CUE. cida (de uma drvore viva} se retrocede por ee rt sobreposigio parcial asequéncias cadaver CDE mais antiga (de irvores moctas, obtendo 1x90 1900 a datacio exata. SYM AAAIAN i pape WA Din wa sac 15604 1570 1580 Diagrama dendracronolégico: no eixo das ordenadas a espessura dos aneis (em milienetcos), € no eixo das abcissas 0s anos (aqui: depois de Crista}. Uma sequéncia curta est situada no tem: po identificando o trago de sobreposicio, Calibragem das datagées com C14. Em ordenadas as datas com C 14 (redugio8 metade em 5568 ants) calculadas a partir do presence (*B.P.") Figura 4. Dendrocronologia ¢ calibragem do C 14. bretudo de 2000 a 7000 a.C., ou seja, exatamente os periodos pré e protod explicagao é que o indice de redusao progressiva do Cig no € homogéneo no tempo, mas conheceu algumas flutuagdes que a dendrologia permitiu precisar. As datas obtidas mediante 0 Cig podem, por isso, ser agora indicadas com mais exatidio e apresentadas de forma mais realista, obviamente quando sio também obtidas a partir de materiais diversos dos troncos e que pertencam a perfodos nao cobertos (no Oriente Préximo) Por sequéncias dendrocronoligicas datadas. Nao se trata de diferengas pequenas: por exemplo, uma mesma amostra (que remonta a0 inicio do perfodo Ubaid Tardio) & da- tada em + 4133 com a “lower halflife”, em + 4322 com a *higher halflife", e em + 5072 ragem resulta em uma série de percentuais de pro- babilidades muito complexa ¢ diluida no tempo, os laboratérios continuam indicando —O Antigo Oriente como Problema Histérico — convencionalmente as datas B.P.* de acordo com a “lower halflife”, mas cada um pode realizar sua propria calibragem utilizando programas de informatica especificos. Essa cronologia de base arqueolégica fisico-quimica deve ser, além disso, integra- da e precisada para os perfodos histdricos mediante a cronologia cultural derivada dos textos. Encontramos em cada cultura a necessidade de estabelecer sua cronologia, no tanto (¢ nio inicialmente) para fins historiogréficos, mas, sobretudo, juridicos e admi- nistrativos: para relacionar com seu presente a conservacao ¢ utilizagio de atos juridicos ¢ de relatérios administrativos. Isso acontece mediante 0 uso de “eras”, sequéncias tem- porais ligadas a um ano inicial conhecido. Nossa sequéncia (que é a era cristi, ou seja, a consideragio do ano presumido do nascimento de Jesus Cristo) estd em uso ha tanto cempo, ¢ foi considerada também retroativamente (datas “antes de Cristo” além daque- las “depois de Cristo”), que quase perdemos a nogio de que se trata de uma era entre as infinitas possiveis e entre as tantas em uso que the séo contemporaneas. No Antigo Oriente as eras usadas eram muito breves, e geralmente se referiam a entronizagio do rei entio no poder, ¢ por isso diferentes de um reino para outro. Hoje, para poder uti- lizar as datagdes contidas nos textos antigos, é preciso reconstruir a complexa rede das sequencias dindsticas em cada reino. Um documento datado com exatidio, por exemplo, “dia 4, més IIL, sexto ano de Nabucodonosor’, fica suspenso no tempo se nfo conseguirmos criar uma ligagio entre a era antiga (< 0 império de Nabucodonosor) ¢ a nossa era. Por sorte, nosso problema no difere muito (mesmo com outra abrangéncia e propésitos) dos problemas dos anti gos escribas ¢ arquivistas, os quais também precisavam colocar ordem entre varias eras € datagdes de seu recente passado, que ainda apareciam em seus documentos. Por isso eles comegaram a utilizar instrumentos que agora também nés podemos usar. Na Mesopotimia, os anos eram identificados de erés formas: 1) com um funcioné- tio ep6nimo' (limu), sistema usado na Assiria durante todo o periodo de sua histéria; 2) com “um nome de ano” (por exemplo, “ano em que foram construidos os muros de Sippar”), sistema usado no sul da Suméria ¢ na Babilénia até meados do segundo mi- lénio aC 3) com o niimero de ordem a partir do ano de entronizagio, sistema usado na Babilénia a partir da dinastia cassita. Por isso, para poder utilizar suas datagées, os escribas assirios compilaram ¢ mantiveram atualizada uma lista de epdnimos, ¢ 0s es- cribas sumérios ¢ babilénicos listas de nomes de anos ¢ listas de reis, tanto para cada dinastia como para 0 conjunto delas, até chegar &s listas pan-mesopotiimicas (como a lista real suméria) e as sincrénicas assirio-babilénicas. Se dispuséssemos hoje de todos esses instrumentos cronogréficos, poderfamos reconstruir a cronologia antiga: todas as eras eram constituidas por reinos de duracio precisa, além de todas as suas narragdes de sequéncias ou de sobreposig&es. Infelizmente, as listas chegaram até nds de forma incompleta, fragmentadas, ¢ com erros (sobretudo com relacio 3s cifras), que podem 2. Conforme jé apontado anteriormente, BP: “before present”, ou seja, “antes do presente” 3+ Que di nome a um ano (N. do). —41— = Introdugio — Dates | | Ata MP | cptttn | seetierin | sme | tien | gstpemini| te + a cam cue | = = = — | teotetn te | ote | one eed ery a | el Gea 0 eel o Lessee | Yerdot Nasr 3100- period | j 1 2900 (proioetamita oo | | 3100-2700 | | amas | 5 | | | ie | amvatt nies | n \3 | 12750-2800 [8 bia | | aston | Le = . 2350-2200 | eer settee | het —s (kh | ana oe co sane | 2050-1980 sa ___| = L em | tein 2017-4796 a | [tga | REE | a — - 7 | eabienia 1294-1595 oo cents, | ino _— s | = 0 eae worth | tattoreae, | gem | | SBS [Matias | "mites? | caine | Sar - | | ‘0 dominio 1600-1150 | weit | tiation [po : rarer | Sees” | wt te | 1 g sein 22 sssotons ss Ble | saw | Somat ew 33| 3 vias dinastias g Aas "1025-728 é ga) & 3 4 18 2] 8 Tan] inp aatio. i wae] isa | nioasano | wraneseanie i cman on L —\emen|| atone armies a : : Testa peat 66Don dana Tabela 1. Quadro cronolégico global do Antigo Oriente Préximo. 2 —O Antigo Oriente como Problema Histérico — ser constatados quando confrontadas com outras listas ou manuscritos da mesma lista, sendo que esta é tinica forma de detectéos. As listas pan-mesopotdmicas contém tam- bém deformagies intencionais: exclusdes por motivos politicos de certos reis ¢ dinas- tias; colocago em sequéncia mecinica de dinastia que, na verdade, foram toralmente ou parcialmente contemporaneas; inclusdes (nas partes iniciais da lista real suméria, também na da Assiria) de materiais miticos e lendérios. De qualquer forma, é com base neste material que foi possfvel reconstruir a estrutura cronolégica da Mesopotémia, a partir de meados do terceiro milénio (antes disso a cronologia tinha uma natureza so- bretudo arqueolégica), até imbricar na cronologia grega ¢ persa da metade do primeiro milénio. A cronologia é bastante precisa e definitiva para o perfodo de 1500-5005 para 0 primeiro milénio existem crénicas (sobretudo babilénicas) ¢ anais (sobretudo ass{rios) com mais detalhes. Em meados do segundo milénio, as lacunas na lista real assfria (que &a sequéncia dindstica mais longa ¢ continua) ¢ as sobreposigdes entre dinastias babil6- niicas, produzem uma lacuna mais ou menos longa, com diferenga de alguns decénios para a fase histdrica mais antiga (2500-1500), ¢ que cresce ao retroceder no tempo, devido a0 actimulo de mais incertezas e lacunas. Acreditou-se no passado que se podia definir com mais precisio essa lacuna, recorrendo-se a certas alusdes a fendmenos astronémi- cos contidos em textos paleobabildnicos da época de Ammi-saduqa, mas essas alusdes so muito incertas (varios astrnomos consultados teceram diferentes consideragées a esse respeito), € por isso hoje elas sio pouco confidveis. Além disso, elas se referem a fe- némenos ciclicos, ¢ assim existe a possibilidade de escolha entre outras datas igualmen- te posstveis do ponto de vista astronémico. Como jé acenamos, as datas de Hamurabi slo 1848-1806, quando se adota a chamada cronologia longa, 3792-1750 quando se adota a média, ¢ 17281696 quando se adota a curta ~ que se distinguem pela escolha de dife- rentes ciclos astronémicos, mas que devem ser entendidos mais como convencionais do que reais. Neste livro adotou-se alcronologia médiaj que nos dltimos anos tem tido um maior consenso e que esté em sintonia com a cronologia arqueolégica ¢ radiocar bénica. Uma tendéncia recente que prefere a cronologia curta entra em conflito, em meu entendimento, com definigées inaceitaveis da cronologia hitita ¢ siria, e deve ser considerada uma moda passageira. © problema mais sério é fazer coincidir a cronolo- gia absoluta de origem fisico-quimica (C14) com a absoluta de origem cultural (textos), um problema que nio é simples de resolver por seu caréter convencional ¢ por haver uma possibilidade de escolha entre ambos os sistemas. Nio obstante, a grade cronolégica obtida é, em linhas gerais, adequada a docu- mentagio a que se refere e de onde foi extraida: por periodos ¢ regides com maior ni- mero de documentos (e, portanto, com uma cronologia mais precisa), consegue-se esta- belecer uma grade mais rigorosa; por outro lado, torna-se mais aproximativa e incerta a organizago por perfodos regides com um maior niimero de dados. Intervém tam- bém fatores de ordem, sobretudo, cultural: por exemplo, na Siria do Bronze Tardio ¢ na Anatélia hitita os textos juridicos so datados (pode-se dizer) com as fSrmulas este: reotipadas tais como “a partir de hoje”, e “para sempre”: tém, portanto, uma validade —f— —Introdugo — ligada a permanéncia fisica do documento, nio precisam de qualquer sequéncia tem- poral de referéncia, e séo resultado de uma mentalidade particular que produz também textos administrativos sem qualquer datagc. Portanto, os escribas daquelas culturas nao criaram nenhuma lista de reis ou de anos ~ no precisavam delas! ~ ¢ consequen- temente também nés agora encontramos dificuldades para reconstruir as sequéncias dindsticas e ignoramos a duragio dos reinados, mas em linhas gerais no temos nem necessidade de uma cronologia detalhada, dado que os documentos (e os “aconteci- mentos” neles registrados) nao so datados. Em linhas gerais, é a Mesopotamia (pela abundancia de seus documentos e pelas informacées seguras de seus escribas) que ofe- rece a cronologia mais segura € detalhada, enquanto as areas vizinhas se apoiam nela mediante uma série de sincronismos que se tornam cada vez mais amplos 3 medida que sio publicadas novas documentagées Enfim, para o estudo de concentracdes especiais de textos (arquivos) — utilizam- -se métodos prosopogrdficos (isto é, o estudo de personagens individuais) também em funsao cronolégica. E exige-se um maior detalhamento que passa pelo estudo do calen- dério (se 0s textos esto datados com més e dia). Nos arquivos de tabuletas cuneiformes (como naquelas dos periodos sucessivos) os textos so conservados em fungio de sua uti- lidade documentéria, ¢, em caso contratio, sio eliminados. Portanto, textos de cardter juridico (vendas, adosdes, empréstimos etc.) devem ter sido conservados também por Muito tempo, ou pelo menos até que continuassem vélidos; os registros contdbeis si geralmente mais efémeros, mas seus dados sio retomados is vezes em resumos (anuais ou plurianuais) destinados a uma conservagio mais duradoura. Neste volume, decidiu-se adotar a cronologia radiocarbénica calibrada para o pe- riodo tardio pré-histdrico e proto-histérico; e a cronologia “média” para o perfodo his- térico da Mesopotamia do inicio do terceiro milénio a metade do segundo, a que se igam em geral as das regides vizinhas. Apés a metade do segundo milénio, as diver- géncias entre as vérias cronologias tornam-se irrelevantes. Todas as datas referem-se a0 periodo ac. —44—

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