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RESUMO DA OBRA DE BOAVENTURA ( DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS).

O professor Boaventura de Sousa Santos proferiu uma Oração de Sapiência


como abertura solene das aulas na Universidade de Coimbra no ano letivo de
1985/1986, cujo conteúdo foi ampliado e publicado pela editora Afrontamento em 1987,
sob o título “Um discurso sobre as Ciências”. O pequeno livro foi ainda publicado no
Brasil e nos Estados Unidos, tendo tido grande êxito e aceitação no meio acadêmico
universitário e secundarista.

Ali, Santos avança três pontos principais: (i) uma caracterização do paradigma


dominante da ciência moderna; (ii) a alegação de que vivemos em um período de crise
do paradigma atual e transição para um novo paradigma e (iii) uma apresentação
especulativa (segundo ele, uma síntese pessoal impregnada na imaginação sociológica)
do paradigma emergente.
Caracterização do paradigma dominante
Segundo Santos, o “paradigma dominante” constitui-se e se desenvolve ao longo
dos séculos XVI e XIX no âmbito das ciências naturais. No século XIX, estende-se às
“ciências sociais emergentes”. Sua característica fundamental é negar a racionalidade de
outras formas de conhecimento, como o conhecimento do senso comum e das
humanidades. Além disso, o paradigma se opõe a todas as formas de dogmatismo e
autoridade; afirma os dualismos “ciência / senso comum” e “homem / natureza”;
assume a matemática como basilar, o que implica ideias de que conhecer é quantificar
(exclusão de aspectos qualitativos), dividir e classificar (uso do método científico para
reduzir complexidades); busca leis que expliquem o “como” do funcionamento das
coisas (em detrimento do “quem” e do “para que”); ao basear-se na formulação de leis,
adota como “pressuposto metateórico” o “determinismo mecanicista”, a ideia de um
mundo estável, ordenado e fora da história.

Este “determinismo mecanicista” é colocado como aspecto ideológico do


paradigma dominante, como visão de mundo que funcionou como um dos pilares da
ideia de progresso e como “horizonte cognitivo mais adequado aos interesses da
burguesia”. Nas ciências sociais, deu-se através dos percursores na busca pelas leis da
sociedade – Francis Bacon, Giambattista Vico e Montesquieu – e de marcos teóricos
como o estado positivo de Comte, a sociedade industrial de Spencer e a solidariedade
orgânica de Durkheim.

A adoção do “modelo mecanicista” pelas ciências sociais deu-se em duas


vertentes: (i) como aplicação do mesmo modelo teórico das ciências naturais às sociais;
e (ii) com o desenvolvimento de um modelo próprio, distinto das ciências naturais. A
primeira vertente assume as ciências naturais como modelo universalmente válido,
adota a ideia central do atraso (superável) das ciências sociais em relação às ciências
naturais e entende que existem diferenças entre fenômenos naturais e sociais, que atuam
contra as últimas, pois tornam o cumprimento do método mais difícil e o conhecimento
a que se chega menos rigoroso. A segunda vertente parte da visão de que a ação humana
é radicalmente subjetiva e, por isso, não pode ser descrita / explicada a partir de
características externas, objetiváveis, fazendo com que as ciências sociais, enquanto
ciências subjetivas, adotem métodos qualitativos. As duas vertentes pertencem ao
paradigma da ciência moderna e suas características, como a distinção entre homem e
natureza e a prioridade cognitiva das ciências naturais.
 

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Crise do paradigma da ciência moderna
Segundo Santos, o paradigma da ciência moderna é um paradigma em crise.
Para ele, o próprio aprofundamento do conhecimento propiciado pela ciência “permitiu
ver a fragilidade dos pilares em que se funda”. Os cientistas “chegámos a finais do
século XX possuídos pelo desejo quase desesperado de complementarmos o
conhecimento das coisas com […] o conhecimento de nós próprios”.

S antos cita quatro condições teóricas da crise do paradigma moderno:

1. Relatividade da simultaneidade de Einstein: inexistindo “simultaneidade


universal, o tempo e o espaço absolutos de Newton deixam de existir”.
2. Mecânica quântica: introduziu a consciência no ato do conhecimento e,
fundamentalmente, colocou em xeque o rigor da medição e a distinção (forte)
entre sujeito e objeto.
III. Teoremas de Gödel: abalam o rigor da medição ao questionar o rigor da matemática
(veículo formal da medição e base do rigor das leis da natureza), ao mostrar que é
possível formular “proposições que não se podem demonstrar nem refutar, sendo que
uma dessas proposições é precisamente a que postula o carácter não contraditório do
sistema”.

1. Avanços da microfísica, da química e da biologia em geral; teoria das estruturas


dissipativas e o princípio da “ordem através de flutuações” de Prigogine: “nova
concepção da matéria e da natureza” que transcende a física clássica.
O sociólogo português sintetiza as mudanças teóricas que relata nos seguintes termos:
“Em vez da eternidade, a história; em vez do determinismo, a imprevisibilidade; em vez
do mecanicismo, a interpenetração, a espontaneidade e a auto-organização; em vez da
reversibilidade, a irreversibilidade e a evolução; em vez da ordem, a desordem; em vez
da necessidade, a criatividade e o acidente.”

Ao lado das condições teóricas, menciona a existência de um movimento


científico convergente, de vocação transdisciplinar, também chamado de “paradigma da
auto-organização”, aflorado pelas seguintes inovações: a teoria de Prigogine, a
sinergética de Haken, o conceito de hiperciclo e teoria da origem da vida de Eigen, o
conceito de autopoiesis do Maturana e Varela, a teoria das catástrofes de Thom, a teoria
da evolução de Jantsch, a teoria da “ordem implicada” de David Bohm e finalmente, a
teoria da matriz-S de Geoffrey Chew e a filosofia do “bootstrap”.

Santos associa a crise a limites qualitativos do conhecimento científico – limites


que não podem ser superados por “maiores quantidades de investigação ou maior
precisão dos instrumentos” –, bem como a limites quanto à sua precisão quantitativa.
Sobre o último ponto, salienta que o teorema de Brillouin permite concluir que “a
experiência rigorosa é irrealizável, pois que exigiria um dispêndio infinito de atividades
humanas”, e que a mesma via da “parcelização do objeto” que fez avançar o
conhecimento científico “confirma a irredutibilidade das totalidades orgânicas ou
inorgânicas às partes que as constituem”, logo, o “caráter distorcivo” do conhecimento
centrado na observação das partes.

Dentre as condições sociais da crise, destaca que o que a ciência ganhou em


rigor, perdeu em capacidade de autorregulação diante do fenômeno da industrialização
da ciência, compromisso com os centros de poder econômico, social e político, cujas
consequências, no âmbito da aplicação, são os perigos de uma catástrofe ecológica e de

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um holocausto nuclear; e, no âmbito da organização do trabalho científico, a
estratificação e proletarização da comunidade científica e o aumento da desigualdade
entre os países centrais e periféricos em virtude da investigação capital-intensiva. Entre
as facetas sociológicas da crise, menciona reflexões feitas por cientistas, nunca antes tão
interessados em problematizar suas práticas, sobre questões a respeito das condições
sociais de produção da ciência, que antes eram tratadas por sociólogos.

A crise é pautada por críticas às leis da natureza, ao conceito de causalidade e à


relação sujeito-objeto:

O paradigma emergente
Santos apresenta um conjunto de teses que conformariam o “paradigma
emergente”, por ele também chamado de “paradigma de um conhecimento prudente
para uma vida decente”. Ao assim proceder, assumidamente adota uma “via
especulativa” que, segundo ele, é a única possível para abordar a “configuração do
paradigma que se anuncia no horizonte”. Em suas palavras, o paradigma emergente que
identifica decorre de uma especulação “fundada nos sinais que a crise do paradigma
atual emite” e é também “produto de uma síntese pessoal impregnada na imaginação
sociológica”.

O paradigma emergente gira em torno de três máximas:

1. “Todo conhecimento científico-natural é científico-social.” No paradigma


emergente, a distinção dicotômica entre ciências naturais e ciências sociais passa
a ser superada. Os avanços da física e da biologia põem em causa as distinções
orgânico / inorgânico, seres vivos / matéria inerte e humano / não humano, e
diferentes teorias teriam introduzido na matéria “os conceitos de historicidade e
de processo, de liberdade, de autodeterminação e até de consciência” nas ciências
naturais. Neste processo, as ciências sociais e as humanidades assumem
protagonismo. Segundo ele, há uma “emergente inteligibilidade da natureza”
presidida “por conceitos, teorias, metáforas e analogias das ciências sociais”, e é
notável a facilidade com que as teorias físico-naturais, uma vez formuladas no seu
domínio específico, se aplicam ou aspiram a aplicar-se no domínio social. Além
disso, a ciência pós-moderna abraça a concepção humanística das ciências sociais,
segundo a qual a ação humana é radicalmente subjetiva, necessitando, assim, de
um método próprio (qualitativo); e o faz por essa concepção exibir maior
resistência à separação sujeito / objeto, preferir a compreensão do mundo à sua
transformação, e colocar a pessoa como centro do conhecimento (e, no paradigma
emergente, também a natureza no centro da pessoa). A ciência pós-moderna, a
partir das humanidades, se constituirá a partir de analogias humanísticas como
“categorias de inteligibilidade universais”, em que cada uma “desvela uma ponta
do mundo”; e terá como “categorias matriciais” a analogia textual (filológica), a
analogia lúdica, a analogia dramática e a analogia biográfica. Feita a transição, o
mundo será natural e social ao mesmo tempo e será visto como um texto, como
um jogo, como um palco ou ainda como uma autobiografia.
2. “Todo conhecimento é local e total.” A ciência moderna é um conhecimento
parcial, i.e., que avança por especialização e é mais rigoroso quanto mais restrito
é o objeto e quanto mais arbitrariamente espartilha o real; e também disciplinar,
que “segrega uma organização do saber orientada para policiar as fronteiras entre
as disciplinas e reprimir os que as quiserem transpor”. Do caráter parcial e
disciplinar decorrem males de todos os tipos, impassíveis de solução no âmbito

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do paradigma da ciência moderna. A ciência pós-moderna, ao revés, será local,
i.e., se constituirá a partir de temas importantes para os grupos sociais e seus
projetos de vida; e será total, elegendo como horizonte “a totalidade universal de
que fala Wigner ou a totalidade indivisa de que fala Bohm”. Sendo total, será
também local, pois assume-se como analógica e como tradutora, incentivando o
uso de conceitos e teorias fora do seu contexto de origem. A ciência pós-moderna
contará com conhecimento “relativamente imetódico”, “pluralidade
metodológica”, “fusão de estilos”, “interpenetrações entre cânones de escrita”,
“uso de vários estilos segundo o critério e a imaginação pessoal” e “constelação
de métodos” para “captar o silêncio que persiste entre cada língua que pergunta”.
3. “Todo conhecimento é autoconhecimento.” Para Santos, a distinção entre
sujeito e objeto nunca foi pacífica nas ciências sociais, tendo sido questionada
também nas ciências naturais. Nestas, em suma, o sujeito teria regressado “na
veste do objeto”. Sinais disso são: a mecânica quântica, ao mostrar que o ato do
conhecimento e o produto do mesmo são inseparáveis; os avanços da microfísica,
da astrofísica e da biologia; a verificação de que a tecnologia nos separou da
natureza ao invés de nos integrar a ela, e que a exploração da natureza, tendo sido
veículo da exploração do homem, consolidou uma “nova dignidade da natureza”.
Segundo ele, a validade da ciência decorre de um juízo de valor e, sendo assim,
não há nenhuma razão científica para considerar a ciência melhor do que
explicações alternativas da metafísica, da astrologia, da religião, da arte ou da
poesia. A ciência, natural ou social, é necessariamente subjetiva e autobiográfica:
“o objeto é a continuação do sujeito por outros meios”, e a subjetividade do
cientista (seus pressupostos metafísicos, sistemas de crenças, juízos de valor) é
parte integrante de sua explicação da natureza ou da sociedade. “A ciência não
descobre, cria”. Diferentemente da ciência moderna, a ciência pós-moderna
assume-se como autobiográfica e autorreferenciável. Ademais, preocupa-se
menos com sobreviver, e mais com “saber viver”; busca ser “uma outra forma de
conhecimento, um conhecimento compreensivo e íntimo” que nos une
pessoalmente ao que estudamos; vê a incerteza como “chave do entendimento”;
entende que, mais do que controlado, o mundo deve ser contemplado; avalia o
conhecimento menos pelo que ele controla e mais pela satisfação pessoal que ele
gera em quem lhe acede e partilha; aproxima-se das criações artísticas, porque
subordina a transformação do real à contemplação do resultado.
Santos considera que o paradigma emergente é ao mesmo tempo científico
(conhecimento prudente) e social (vida decente), e que isso resulta do fato de que a
revolução científica que daria azo ao novo paradigma seria uma revolução numa
sociedade já transformada pela revolução científica do século XVI.

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