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BIOÉTICA

UNIDADE II
FUNDAMENTOS DA BIOÉTICA
Elaboração
Milton Luiz Nascimento

Produção
Equipe Técnica de Avaliação, Revisão Linguística e Editoração
SUMÁRIO

UNIDADE II
FUNDAMENTOS DA BIOÉTICA......................................................................................................................................................... 5

CAPÍTULO 1
DEFINIÇÃO, HISTÓRICO E A BIOÉTICA NO BRASIL........................................................................................................... 6

CAPÍTULO 2
BIOÉTICA EM SITUAÇÕES PERSISTENTES E EMERGENTES......................................................................................... 13

CAPÍTULO 3
MODELO PRINCIPIALISTA........................................................................................................................................................ 15

REFERÊNCIAS................................................................................................................................................20
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FUNDAMENTOS DA
BIOÉTICA
UNIDADE II

Nesta unidade, serão abordados conceitos, definições e o histórico da bioética.


Veremos as primeiras motivações e o desenvolver da bioética pelo mundo, com a
hegemonia do principialismo, bem como as características da bioética no Brasil,
com características antiegemonicas. Haverá enfoque metodológico, caracterizando
situações persistentes e emergentes dos conflitos morais. Compreender as diversas
abordagens de bioética ajudará a alcançar julgamento crítico e reflexivo sobre as
ferramentas que ajudaram na discussão de dilemas éticos. A unidade é composta
por três capítulos, os quais abordam a definição de conceitos e o histórico da bioética
no mundo e no Brasil, a classificação de bioética como situações persistentes e
emergentes, e a bioética principialista.

Para iniciar: você saberia definir bioética? Que princípios da bioética você conhece?
Qual o limite da ciência?

Figura 2. Bioética.

Fonte: Nascimento, 2020.

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CAPÍTULO 1
DEFINIÇÃO, HISTÓRICO E A BIOÉTICA NO BRASIL

Definição
“Bioética é o estudo sistemático das dimensões morais – incluindo visão moral,
decisões, conduta e políticas – das ciências da vida e atenção à saúde, utilizando
uma variedade de metodologias éticas em um cenário interdisciplinar” (REICH,
1995, XXI).

A palavra “bioética” é a junção de bios (vida) e ethos (ética); literalmente, é a


ética da vida. Como vimos anteriormente, a moral deve ser contextualizada com
a diversidade existente no mundo. A bioética não é diferente; ela precisa ser
contextualizada e dialogar com as pluralidades. Não restringir e universalizar
princípios éticos, morais. Deve ser uma ética aplicada que busque interpretar a
realidade em suas dimensões e seus significados de forma dialogada, favorecendo
tomadas de decisões que possibilitem o debate livre dos diferentes pensamentos,
o que precisa ocorrer de forma harmônica.

Reconhecer as moralidades existentes é uma característica que a bioética assume


para o alcance das pluralidades. Deve ser transdisciplinar, de modo que atinja todas
as áreas do conhecimento. Não deve interferir, mas somar conhecimentos para o
alcance de argumentos, os quais não conseguiria caso não se comunicasse com as
diferentes disciplinas.

A bioética surge como uma disciplina caracterizada pela sua transdisciplinaridade;


ela transita entre as diversas áreas do conhecimento. Pode estar presente nas
ciências da saúde, biológicas, agrárias, humanas, sociais aplicadas, exatas e nas
engenharias. Podemos então aplicar a bioética em diversas áreas do conhecimento,
ao contrário de disciplinas que pertencem a uma área do conhecimento, como a
endodontia, que é uma disciplina específica da odontologia.

Pela sua característica transdisciplinar, a bioética vê o mesmo objeto por diversos


ângulos, não de forma unidimensional, especializada, fragmentada. É considerada
uma ética aplicada. É um instrumento que ajuda na discussão e reflexão ética de
conflitos do cotidiano, causados pela pluralidade moral.

A transdisciplinaridade favorece a participação de vários atores na tomada de


decisões que envolvem dilemas éticos. Os dilemas, mesmo originados de temas que
envolvem questões de saúde, necessitam de contextualização mais abrangente; não
se deve somente limitar a consideração de parâmetros biomédicos.

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Fundamentos da bioética | UNIDADE ii

A ideia de transdisciplinaridade recusa a fragmentação, a especialização de


especialidades, a redução do conhecimento em pequenas informações centradas
e concentradas em frações de conhecimentos que não se comunicam com outras
áreas do conhecimento. E a transdisciplinaridade tem a característica de favorecer
a comunicação entre as diversas disciplinas para a compreensão dos múltiplos
conhecimentos. Assim, é possível contextualizar para que se alcance a visão ampliada
do objeto; compreender a partir dos conhecimentos já estruturados.

A disciplina implica utilizar orientação padrão e contínua, não abrangendo a


integralidade de um contexto; separa informações do seu conjunto de conhecimento.
Multidisciplinar é a busca de conhecimento por um objeto em comum por várias
disciplinas, mas as disciplinas não se organizam para trocar informações. Já na
interdisciplinaridade existe organização para que ocorra a comunicação entre
as disciplinas envolvidas, sem que alcance a integralidade do conhecimento do
objeto estudado. Na transdisciplinaridade as disciplinas se comunicam e trocam
informações a ponto de construírem um novo método contextualizando. Alcançam
a integralidade do conhecimento gerado sobre o mesmo objeto de estudo.

Figura 3. Relações disciplinares.

Transdisciplinar

Interdisciplinar

Multidisciplinar

Disciplina

Fonte: Nascimento, 2020.

Pela figura 3, podemos perceber que há relação disciplinar, não exclusão disciplinar
em detrimento da outra. Existe, sim, uma crítica ao uso isolado da disciplina,
multidisciplinar e interdisciplinar; há o reconhecimento também de cada fase que
antecede a outra como parâmetro para a construção do conhecimento. Juntas,
alcançam o nível de compreensão integral do objeto estudado. Para isso, é necessário
que a comunicação e interação entre elas cheguem ao patamar transdisciplinar.

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UNIDADE ii | Fundamentos da bioética

Histórico
A bioética é uma disciplina recente. A palavra “bioética” surgiu no início da
década de 1970, criada por Van Rensselaer Potter, com a publicação do livro
“Bioética: uma ponte para o futuro” (1971). Desde então, vem sendo desenvolvida
academicamente. O neologismo foi criado por Potter, com a junção de bios (vida)
e ethos (ética). O autor via a bioética como “uma ciência para sobrevivência”.
Sua preocupação é voltada para as consequências dos avanços científicos e seus
desfechos para o meio ambientes (POTTER, 1971).

No período pós-guerra, as ciências biológicas vinham cada vez mais se especializando


tecnicamente, impactando diretamente a modificação das estruturas sociais e
a preocupação crescente com o meio ambiente. Ao mesmo tempo, não haviam
discussões éticas em relação aos possíveis impactos negativos da aplicação desses
novos conhecimentos.

Potter eleva a bioética a uma perspectiva global. Fundamenta as bases para a


bioética global, uma bioética comprometida com a vida, não só com o corpo
biológico. Coloca no mesmo patamar de preocupação e importância todas as
formas de vida, não só a vida humana; considera a sobrevivência do planeta com
toda a sua biodiversidade. Uma interdependência necessária para preservar a
vida das gerações futuras. Para Potter, a bioética não rechaça o avanço científico
e tecnológico, e, sim, busca o diálogo entre a manutenção da vida humana e
não humana com o desenvolvimento científico-tecnológico. Pensa de forma
inseparável a vida, o conhecimento e as ciências.

Desde então, a bioética vem passando por constantes elaborações e


incorporações conceituais. O sentido original conferido por Potter foi sendo
acrescido de referenciais que acabaram levando para uma ética biomédica –
ética em saúde. Contudo a bioética é mais do que uma ética médica; ela não se
limita somente a falar o que é bom ou mal. Ela transcende as reflexões e discute
interdisciplinarmente os dilemas e valores.

A bioética, assim como qualquer outro conhecimento ou outra ciência, passa por
fases evolutivas, como sua fase de fundamentação com Potter, na década de 1970;
a expansão com Beauchamp e Childress, na década de 1980; a revisão crítica,
na década de 1990; e a ampliação conceitual, com a Declaração Universal Sobre
Bioética e Direitos Humanos (DUBDH), a partir de 2005 (NEVES, 2005). Sendo
assim, a bioética vem se contextualizando e buscando oferecer ferramentas que
possam ser aplicadas e adaptadas conforme as culturas de cada local.

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A bioética surge de preocupações permanentes como o futuro com base nas


atitudes tomadas ou teorizadas no presente. É importante destacar que o
aparecimento da bioética tem como preocupação os dilemas decorrentes
da Segunda Guerra Mundial, quando ocorreram violações que se tornaram
crimes contra a humanidade. Na ocasião, aconteceram atrocidades nos campos
de concentrações, em que médicos nazistas realizavam experimentos com
prisioneiros de guerra, que serviam como verdadeiras cobaias humanas. Diante
disso, os médicos foram a julgamento em Nuremberg.

A partir desse julgamento, foi elaborado o Código de Nuremberg. Foi o primeiro


documento internacional direcionado para a proteção de sujeitos de pesquisas e
teve como foco o consentimento voluntário. Além do Código de Nuremberg (1947),
temos vários documentos internacionais que deram suporte para as primeiras
preocupações éticas, como a Declaração de Helsinque (1964) e o Relatório Belmont
(1978). Todos esses documentos foram derecionados a questões que envolviam
o tema de ética em pesquisa com seres humanos. A bioética veio, desde então,
desenvolvendo-se e abordando temas diversos, e não só a relação de sujeito de
pesquisa com os seus pesquisadores.

Hoje temos mais de dez abordagens teóricas de bioética, as quais abrigam o


contexto histórico como ponto de partida. São as reflexões geradas pelos dilemas
éticos apontados desde a Segunda Guerra Mundial, passando pelos avanços
biotecnológicos, até a continuidade do enfrentamento das desigualdades pelos
países em desenvolvimento. Entre elas, temos as seguintes teorias: principialista,
de intervenção, de proteção, narrativa, global, deontológica, animal, crítica, do
cuidado etc. Isso demostra que a bioética está comprometida com as diversidades
de conflitos, independemente de onde eles estiverem, e não só com foco biológico
– o foco esta na vida e em tudo o que a cerca.

Como vimos, há várias teorias aplicadas na bioética. Desse modo, podemos


encontrar características peculiares em cada continente. Essa diferença de
pensamento tem muito haver com a historicidade de cada região, a cultura e
espiritualidade. Entretanto todas têm como ponto em comum as questões
históricas que desencadearam as preocupações éticas. Como ponto de partida,
podemos citaro o ocorrido na Segunda Guerra Mundial.

Cunha e Garrafa (2016) apontam essas particularidade a partir dos cinco


continentes. Partindo dos Estados Unidos, onde a bioética é difundida para o resto
do mundo, ela assume forte característica voltada para a autonomia, traduzindo-se

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no individualismo em detrimento da coletividade. Na América Latina, com visão


mais politizada, prioriza a coletividade e as questões sociais que estão sempre em
ameaça. Na Europa, tem panorama voltado para reconhecer a dignidade humana e os
direitos humanos nas tomadas de decisões éticas. Na África, com forte envolvimento
com a suas tradições, busca a integração de indivíduo, comunidade, espiritualidade
e cultura. Na Ásia, abraça suas questões religiosas, culturais e familiares, exigindo
abordagem holística.

Diante de um cenário tão diverso, foi homologado um importante documento


internacional para a bioética, em 19 de outubro de 2005, na 33ª Sessão da
Conferência Geral da Unesco, em Paris – a Declaração Universal sobre Bioética e
Direitos Humanos (DUBDH). A elaboração da DUBDH precisou de mais de dois
anos de discussões aprofundadas. A declaração foi aclamada por 191 países que
integravam as Nações Unidas.

A sua elaboração contou ativamente com a participação do Brasil, tornando


o documento ainda mais importante. A DUBDH apresenta para a bioética
ferramentas e caminhos a serem seguidos pelas nações. Ela não tem poder
de força de lei, mas ajuda a nortear as nações na elaboração de suas próprias
resoluções éticas. A DUBDH não interfere nem impõe o que deve ser feito, mas
propõe ações. Com enfoque nos direitos humanos e no pluralismo, a declaração
incorpora questões éticas das áreas da biomedicina, de tecnologias e ciências da
vida (GARRAFA, 2017).

Tem a particularidade de levar em consideração o ser humano inserido na


comunidade, seja como indivíduo, seja em grupos, em questões sociais, ambientais,
culturais e legais. Respeita as liberdades, os direitos humanos e a dignidade
humana. É composta por 15 princípios que contribuem para a análise e a tomada de
decisões éticas. Esses princípios favorecem a compreensão e a aplicação, levando
em consideração a diversidade moral, e são necessários para favorecer o diálogo
multidisciplinar na avaliação ética dos dilemas do cotidiano (UNESCO, 2005).

Os princípios da DUBDH, em forma de artigos, são:

Artigo 3 – Dignidade Humana e Direitos Humanos; Artigo 4


– Benefício e Dano; Artigo 5 – Autonomia e Responsabilidade
Individual;Artigo 6 – Consentimento; Artigo 7 – Indivíduos sem a
Capacidade para Consentir; Artigo 8 – Respeito pela Vulnerabilidade
Humana e pela Integridade Individual; Artigo 9 – Privacidade
e Confidencialidade; Artigo 10 – Igualdade, Justiça e Equidade;
Artigo 11 – Não-Discriminação e Não-Estigmatização; Artigo 12 –

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Respeito pela Diversidade Cultural e pelo Pluralismo; Artigo 13 –


Solidariedade e Cooperação; Artigo 14 – Responsabilidade Social
e Saúde; Artigo 15 – Compartilhamento de Benefícios; Artigo 16
– Proteção das Gerações Futuras; e Artigo 17 – Proteção do Meio
Ambiente, da Biosfera e da Biodiversidade (UNESCO, 2005).

Bioética no Brasil
No Brasil, assim como na América Latina, o foco da Bioética é relacionado a
questões sociais; ao contrário do modelo principialista, que privilegia a autonomia
e o individualismo, a bioética no Brasil já enfatiza a prioridade pela coletividade
em busca da equidade. Como vimos, a bioética deve observar as pluralidades; no
Brasil, ela se configura de forma que contemple as vulnerabilidades sociais em
função do histórico de exclusão e desigualdade social que carregamos.

A bioética brasileira surge dessa inquietação, a partir da década de 1990. É


configurada como a etapa de revisão crítica da bioética, da necessidade de
rever as importações de conhecimentos anglo-saxônicos. Assim, começamos a
contextualizar com os nossos olhares os nossos conflitos éticos e o nosso histórico
evolutivo como nação para entender como surgem as nossas desigualdades.
A teoria principialistaque era transmitida de forma acrítica nas comunidades
acadêmicas e científicas. Esse modelo importado não contemplava nossa
historicidade e se tornava uma ferramenta impraticável em nosso país.

Então, as características da bioética brasileira vêm carregadas pelos determinantes


de nossa história, com a temática própria da nossa realidade. Atenta para as
situações sanitárias que estão intimamente ligadas ao contexto da exclusão social e
da diversidade cultural que temos dentro de nosso território.

Considerando essas características, podemos destacar três teorias desenvolvidas no


Brasil: bioética da teologia da libertação; bioética de intervenção, desenvolvida por
Volnei Garrafa e Dora Porto; e bioética de proteção, de Fermin Roland Schramm e
Miguel Kottow.

Segundo Porto e Garrafa (2011), o surgimento da bioética brasileira está


intimamente ligado à Reforma Sanitária brasileira:

Os pesquisadores que se opunham à adoção irrestrita da perspectiva


principialista voltaram sua atenção ao resgate dos conceitos da
saúde coletiva, buscando responder aos conflitos que emergiam
da nova forma de atenção proposta pelo SUS. Propugnando

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transformações no status quo, somaram-se às discussões sobre


saúde pública e equidade na alocação de recursos, que já apontavam
para o questionamento, aprofundado posteriormente, sobre o
rumo do desenvolvimento tecnológico na área da saúde e para
a problemática da desigualdade de direito ao acesso aos bens e
serviços (PORTO; GARRAFA, 2011, p. 724).

A bioética brasileira, então, tem seu foco inicial relacionado a questões de saúde
pública, as quais têm relação direta com o histórico da desigualdade social, de
modo que tenta estreitar essa desigualdade. Utiliza-se de referências de direitos
humanos no enfrentamento desse problema que persiste em nossa história. Desse
modo, a Reforma Sanitária brasileira, junto com o contexto de saúde pública
enfrentado na época, serviu como terreno fértil para pensar a bioética com a
nossa realidade.

A preocupação inicial com a saúde pública é vista de forma a contemplar toda a


sociedade e os seguimentos populacionais com a equidade de acesso aos serviços e
melhora da qualidade de vida. O intuito é que o serviço de saúde seja prestado pelo
Estado, não entregue aos serviços privados de saúde, para que toda a população
brasileira tenha acesso à saúde de forma universal.

Com essa característica, a bioética brasileira é fundada no comprometimento


com a coletividade e se fundamenta no referencial dos direitos humanos,
na pluralidade moral e na diversidade cultural. Assim, mantém sua
transdisciplinaridade.

Como vimos, a bioética é um ramo da ética aplicada. Dessa forma, sugiro o


vídeo da entrevista do prof. dr. Volnei Garrafa, que aborda o tema “A bioética e
suas aplicações”. Foi apresentado no programa “Conexão Ciência” da TV Brasil.
Confira em: https://youtu.be/m2qFDl9qLNw. Acesso em: 14 out. 2021.

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CAPÍTULO 2
BIOÉTICA EM SITUAÇÕES PERSISTENTES E EMERGENTES

Bioética de intervenção
Antes de falar sobre a bioética em situações persistentes e emergentes, é necessário
falar que essa classificação metodológica tem origem na construção da bioética de
intervenção, desenvolvida por Dora Porto e Volnei Garrafa. Sua teorização começa
em 1995, mas só foi anunciada publicamente, em 2001, no I Congresso Boliviano de
Bioética, em La Paz. A bioética de intervenção, ao contrário da proposta da teoria
principialista, propõe análise politizada de como as relações de poder interferem
diretamente nos conflitos.

Tem como principal compromisso as questões sociais, preocupada com o


fortalecimento da coletividade e do campo individual pelo empoderamento; a
“emancipação dos sujeitos” a partir dos mais vulneráveis. Orientada pelos tratados
internacionais de direitos humanos, considera a reavaliação das bases de produção
e consumo como parâmetros para a indicação da preservação do meio ambiente
(GARRAFA; PORTO, 2003).

A bioética de intervenção tem como fundamentação filosófica o utilitarismo, que


adota um direcionamento voltado para priorização. Nesse contexto, os benefícios
gerados pelas politicas públicas devem ser direcionados para o maior número de
pessoas, pelo maior tempo possível, tendo reflexos positivos para a coletividade.
Além disso, deve propor uma análise de dilemas éticos motivada e orientada pelos 4
Ps: proteção, prevenção, prudência e precaução.

Ela leva em consideração a historicidade; dessa forma, classificou metodologicamente


os conflitos que são gerados no cotidiano em que a pluralidade moral está
constantemente envolvida. Os temas podem ser classificados como situações
persistentes e situações emergentes na bioética.

No Brasil, mais especificamente na Cátedra UNESCO de Bioética


da UnB, têm sido usadas as expressões “bioética das situações
persistentes” e “bioética das situações emergentes”, dentro de
uma linha de pensamento que busca amparo na historicidade dos
fatos, para o que Berlinguer denomina de “bioética cotidiana” e
de “bioética das situações limite” ou “de fronteiras” (GARRAFA,
2005, grifos originais).

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UNIDADE ii | Fundamentos da bioética

Situações persistentes
Os problemas persistentes são aqueles que historicamente se mantêm na linha do
tempo, tendo como contexto os problemas sociais que se perpetuam em ciclos de
conflitos morais. Estão relacionados a questões que repercutem tanto na vida em
sociedade como na vida privada, em que estão presentes conflitos relacionados a
direitos humanos, exclusão social, estigmatização, discriminação, universalidade do
acesso à saúde e alocação de recursos escassos.

Situações emergentes
Os problemas emergentes são os temas atuais, das últimas décadas, que geram
conflitos morais. O desenvolvimento de experimentos científicos e tecnológicos
que tenham repercussão direta ou indireta na vida humana e não humana. Temos
engenharia genética com o mapeamento do genoma humano, fecundação assistida,
pesquisa com seres humanos, eugenia, descarte de embriões, biobancos, bigdata,
biossegurança, doação e transplante de órgãos, nanotecnologia, entre outros.

As situações limites da bioética ganham maior compreensão pela classificação


como persistentes e emergentes. Com isso, dividimos as fronteiras da seguinte
forma:

» Emergentes – As novas tecnologias.

» Persistentes – Problemas antigos que se repetem.

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CAPÍTULO 3
MODELO PRINCIPIALISTA

Definição
A ideia original de Potter tomou corpo biomédico em 1979, com o lançamento
do livro “Princípios da Ética Biomédica”, escrito por Tom Beauchamp e James
Childress. No livro, os autores estadunidenses formularam quatro princípios a
serem seguidos para mediar conflitos éticos. Três princípios já eram conhecidos
após a elaboração do Relatório Belmont, de 1978, quais sejam, o respeito à
pessoa (que se tornou respeito à autonomia); beneficência; e justiça. O quarto
princípio incorporado na obra dos autores foi a não maleficência (BEAUCHAMP;
CHILDRESS, 2013).

A teoria principialista leva esse nome porque foca toda a dinâmica dos conflitos
éticos sob a avaliação dos quatro princípios. São aplicados ao considerarem a
existência de uma moralidade comum. Esse modelo dominou tradicionalmente
todo o pensamento da bioética até a fase de revisão crítica e o surgimento de outras
formas de pensar a bioética no mundo plural.

Quadro 1. Princípios do principialismo.

Princípio Destaque
Respeito à autonomia A pessoa escolhe
Beneficência Fazer o bem
Não maleficência Evitar danos
Justiça Prioriza igualdade formal
Fonte: Principles of Biomedical Ethics, 2013.

Com esse modelo focado em princípios, a bioética é conhecida pelo mundo.


Junto aos princípios elaborados, vem uma carga teórica de formulações
pertencentes à realidade do país de origem dos autores. Propõe de forma prática,
ampla e generalizada quatro princípios que poderiam ser universalizados e
aplicados em diversas situações de conflitos. Apresentam influência de ideias
consequencialistas, em que os resultados favoráveis, ou não, serão influenciados
pelo processo ocorrido no decorrer da tomada de decisão e pelas ideias
deontológicas que levam em consideração o dever de cumprir, analisando se o
comportamento ético gerará boa ou má ação.

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UNIDADE ii | Fundamentos da bioética

Entretanto, como vimos anteriormente, cada região do planeta carrega em si


suas características e moralidades. E não foi diferente nesse livro; os autores
supervalorizaram a autonomia, característica bem marcante na cultura
anglo-saxônica. Deixou, dessa forma, a beneficência, a não maleficência e a justiça
em segundo plano, apesar de os autores afirmarem que os princípios não são
hierarquizados, não havendo prioridade de um sobre o outro.

A autonomia torna-se, então, sinônimo de individualismo ao considerar a visão dos


autores. Na Bioética, a autonomia é um princípio a ser desenvolvido, mas de forma
ampliada, não simplesmente sobrepondo a coletividade, porque a Bioética atua nas
pluralidades, nas diversidades. É uma bioética planetária, não só de um indivíduo
– visa ao conjunto que o cerca, contextualizando, não apenas analisando friamente
um checklist; o que correria o risco de privilegiar um princípio em detrimento dos
outros.

O respeito à autonomia é mais que uma escolha pessoal no exercício da liberdade


do indivíduo. Ela interage com vários fatores e várias regras sociais que entram em
conflito com o princípio do respeito à autonomia de outras pessoas e até mesmo
com deveres e obrigações no exercício profissional, os quais devem ser observados.
Diante disso, a autonomia pode sofrer limitações por causa dessas situações.

Como alternativa e complementação, temos a Declaração Universal sobre Bioética


e Direitos Humanos (UNESCO). Podemos desdobrar o princípio da autonomia,
por exemplo, em três: “Artigo 5 da Autonomia e Responsabilidade Individual”,
“Artigo 6 do Consentimento” e “Artigo 7 do Indivíduo sem a Capacidade para
Consentir”. Esses três artigos ampliam a percepção do indivíduo como pessoa,
ajudando a identificar qual é a situação em que ele se encontra para exercer sua
autonomia, bem como a contextualizar e respeitar a autonomia da coletividade
que o cerca.

Como dito, a autonomia é um princípio importante, mas precisa ser contextualizado.


Caso contrário, continuaremos a perpetuar situações persistentes e emergentes
da bioética, em função de privilegiar a individualidade e descartar a coletividade
contextualizada. Para ser aplicada a autonomia com base em moralidade comum,
precisaríamos viver em harmonia, com condições iguais para todas as pessoas.

Na moralidade comum, um indivíduo, para ser classificado livre e autônomo, teria


de ser considerado socialmente privilegiado. Contudo, na realidade, vivemos em
desigualdades, até mesmo em países desenvolvidos. Diante desses desprivilégios,
necessitamos contextualizar o pluralismo moral; aí sim teremos a possibilidade

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Fundamentos da bioética | UNIDADE ii

de inserir na discussão pessoas desprivilegiadas. Para isso, podemos utilizar como


ferramenta complementar os três artigos destacados anteriormente da Declaração
Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (UNESCO).

O princípio da beneficência é a prática direcionada para resultados benéficos,


refletindo no bem-estar do outro. É a ação que busca sempre atender o melhor
interesse dos pacientes. Deve ser considerada para isso a análise das ocorrências
entre os possíveis resultados favoráveis e desfavoráveise à prevenção do dano.
Já o princípio da não maleficência relaciona-se a não causar dano intencional,
com a condição de que esse dano seja prevenível. É um princípio que ressalta
as repercussões negativas ao causar danos, não havendo a ponderação, mas o
resultado do ato. É a obrigação de não causar dano (BEAUCHAMP; CHILDRES,
2013). Na filosofia moral, os dois princípios não são definidos separadamente.

Entre esses princípios, a justiça foi o tema menos explorado contextualmente pelos
autores. Isso demonstra a dificuldade de tentar universalizar um princípio com
base em uma moralidade comum. Como vimos, vivemos em um mundo repleto de
moralidades, um pluralismo moral que impede a tomada de decisões padronizadas
como os autores propõem. Mais uma vez, é necessário contextualizar para a tomada
de decisão diante de conflitos éticos.

Os autores sugerem dois princípios para tratar a justiça – o princípio da justiça


formal e o princípio material. A justiça formal visa tratar os iguais igualmente e os
desiguais desigualmente. Os autores determinam que as pessoas são iguais sob
todas as características, não apontando meios para distinguir duas ou mais pessoas
consideradas iguais. Já o princípio material tem como característica a distribuição
igual conforme a necessidade identificada, delimitada para recursos essenciais e
necessidades fundamentais (BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2013).

O uso de princípios não é o ponto que leva à revisão crítica do modelo predominante
que recebeu o nome de principialismo, até porque os princípios são pontos iniciais
das discussões éticas, sejam elas para as normais morais, sejam para os cuidados
em saúde, como proposto por Beauchamp e Childress (2013). Dessa forma,
os princípios devem ser aplicados inicialmente quando forem identificados os
conflitos. Em seguida, serão analisados diante de contextos específicos.

A teoria principialista contribuiu muito para o reconhecimento e a popularidade


da bioética pelo mundo, com base em sua praticidade. A crítica é pelo fato de os
autores elaborarem princípios voltados para a ética biomédica, individualista, e a
sua pretensa aplicação universal (para uma moralidade comum). Com isso, deixa

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UNIDADE ii | Fundamentos da bioética

de lado a parte mais importante do conflito – as pluralidades, os aspectos sociais,


culturais, ambientais e econômicos nas tomadas de decisões éticas.

Então, o principialismo carece de amplitude contextual para tratar as questões,


mesmo sendo aplicadas na relação médico-paciente. Esta procura por tomadas de
decisões imediatas, com o uso de quatro princípios que pretendem ditar as regras
para uma moralidade comum.

Ao envolver temas de vulnerabilidade social, por exemplo, o principialismo acaba


sendo insuficiente na busca pela compreensão desses conflitos. Os princípios
devem ter alcance nas camadas mais desprivilegiadas que buscam assistência para
tratamento de saúde, levando em consideração seu histórico, seus valores. Não deve
só apontar a autonomia do paciente em suas decisões.

Quando temos recursos e acesso à informação, a autonomia funciona muito bem,


mas quando temos as dificuldades mais básicas e a escassez de recursos, a autonomia
torna-se perigosa para quem não tem consciência das consequências. Isso pode
levar ao paternalismo na assistência prestada ao paciente e à decisão unilateral, não
favorecendo a abertura de diálogo franco entre os envolvidos.

Independentemente do uso dos quatro princípios ou de outros que surgem a partir


da ampliação conceitual da bioética e do surgimento de outras teorias, é sempre
importante contextualizar as situações e utilizar os princípios como ferramentas.
Isso possibilita mesclar, tentar abranger e respeitar os valores envolvidos nos
conflitos éticos gerados não só no meio biomédico, mas também nos meios sociais
e ambientais.

Todas as áreas do conhecimento são passíveis de problemas e divergências


teóricas. Por isso, a construção da bioética está em constante formulação e
reformulação teórica, com ajuda multidisciplinar, de conhecimentos diferentes.
O intuito é preencher as lacunas como as do modelo principialista e de outras
teorias existentes.

Outro ponto a esclarecer é que as diferentes bioéticas, apesar de seguirem teorias


que se confrontam em algum momento, não são “inimigas”. Assim como a origem
da bioética propõe um diálogo multidisciplinar, as diferentes teorias e os modelos
de bioéticas devem se complementar. Com isso, terão alcance maior na abordagem
e no uso de ferramentas e princípios. Isso deve ocorrer sempre de forma crítica,
reflexiva e contextualizada das dimensões morais, o que é caracterizado pela
transdisciplinaridade, sem monopólios. Deve haver a inclusão e a voz ativa de todos
para um consenso nas discussões bioéticas.

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Fundamentos da bioética | UNIDADE ii

Como vimos nesta unidade, a bioética tem como pano de fundo crimes contra
a humanidade no decorrer da história, que contribuem para a reflexão sobre
ética global, já que envolve todas as vidas humanas e não humanas, e toda
a biodiversidade do planeta que se encontra em risco diante do avançar
biotecnológico e da persistência da desigualdade social. A fundamentação da
bioética é recente, mas hoje apresenta uma variedade de teorias que podem ser
argumentos nas discussões de dilemas éticos e problemas morais.

Diante do que foi apresentado até o momento, é possível ter uma única bioética
que responda aos temas que envolvem dilemas e problemas morais em todas
as partes do mundo?

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REFERÊNCIAS

ABREU, C. B. B. Bioética e gestão em saúde. Curitiba: InterSaberes, 2018.

BEAUCHAMP, T. L.; CHILDRESS, J. F. Principles of Biomedical Ethics. 7. Ed. New York:


Oxford, 2013.

BEECHER, H. K. Ethics and clinical research. New England J Med., v. 274, n. 24, pp. 1354-60, 1966.
Disponível em: https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJM196606162742405. Acesso em: 27 jul.
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