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A coxa de Ya’aqóv. Bereshit. 32:24,25.

I – Introdução

֙‫ַו ַּ֗י ְרא ִּכ֣י ֹל֤ א י ָכֹל֙ ֔לֹו ַוּי ִַּג֖ע ְּבכַף־י ְֵר ֑כֹו ַו ֵּ֙תקַע‬
‫ּכַף־ ֶי ֶ֣רְך יַע ֲ֔ק ֹב ּבְהֵ ָֽאב ְ֖קֹו ִעּמֹֽו׃‬
(Gen. 32:26 WTT)
 
II - O Texto

O texto que é tomado por base para a suposta proibição é o texto de Bereshit/ Gênesis 32:24-25,31-
32, que diz: “Ya’akov (Jacó), porém, ficou só; e lutou com ele um homem, até que a alva subiu. E
vendo este que não prevalecia contra ele, tocou a juntura [chaf] de sua coxa [yerecho], e se
deslocou a juntura [kaf] da coxa [yerech] de Yaʼakov, lutando com ele... E saiu-lhe o sol, quando
passou a Peniel; e manquejava da sua coxa [yerecho]...

III – Yerech
Frequentemente nas Escrituras o termo yerech (‫)ךרי‬, normalmente traduzido como “coxa”, é usado
para se referir aos genitais de uma pessoa. Abaixo, alguns exemplos:

“Todas as almas que vieram com Ya’akov para o Egito e que saíram da sua coxa [yerecho], fora as
mulheres dos filhos de Ya’akov, eram todas sessenta e seis almas”. (Bereshit/Gênesis 46:24)
“Todas as almas, pois, que procederam da coxa [yerech] de Ya’akov, foram setenta; Ya’akov,
porém, já estava no Egito”. (Êxodo/Shemot 1:5).

Essa referência é aplicável tanto a homens quanto a mulheres, uma vez que de acordo com
Bamidbar/Números, a mulher que é pega em ato de infidelidade conjugal recebe maldição
exatamente sobre a sua fertilidade, na Torá descrita como “o ventre e a coxa”:
“Mas se te desviaste, violando o voto conjugal, e te contaminaste, e algum homem que não é teu
marido se deitou contigo,- então o sacerdote, fazendo que a mulher tome o juramento de maldição,
lhe dirá: YHWH te ponha por maldição e praga no meio do teu povo, fazendo-te YHWH consumir-se
a tua coxa [yerechech] e inchar o teu ventre”. (Bamidbar/Números 5:20-21).

“E disse Avraham ao seu servo, o mais velho da casa, que tinha o governo sobre tudo o que
possuía: Põe agora a tua mão debaixo da minha coxa [yerechi], para que eu te faça jurar por YHWH
Elohim dos céus e Elohim da terra, que não tomarás para meu filho mulher das filhas dos cananeus,
no meio dos quais eu habito”. (Bereshit/Gênesis 24:2-3)

“Chegando-se, pois, o tempo da morte de Israel, chamou a Yossef, seu filho, e disse-lhe: Se agora
tenho achado graça em teus olhos, rogo-te que ponhas a tua mão debaixo da minha coxa [yerechi],
e usa comigo de beneficência e verdade; rogo-te que não me enterres no Egito ”. (Bereshit/Gênesis
47:29)

Pode-se perceber que o texto bíblico faz muitas referências à coxa como eufemismo para os
genitais. Porém, existe também o uso literal, como pode ser visto nos dois exemplos abaixo:
“E Ehud fez para si uma espada de dois fios, do comprimento de um côvado; e cingiu-a por baixo
das suas vestes, à sua coxa [yerech] direita.” (Shoftim/Juízes 3:16)

“Cinge a tua espada à coxa [yarech], ó valente, com a tua glória e a tua majestade”. (Tehilim/Salmos
45:3)

Poucas são as passagens nas quais o termo yerech ( ‫ )ךרי‬é usado, e a maioria delas é inconclusiva
quanto à parte do corpo a que se refere. Se forem consideradas apenas as passagens onde a
referência é clara, há mais ou menos um número equivalente de instâncias que se referem à região
genital, e passagens que se referem claramente à coxa propriamente dita. Portanto, pode-se
compreender perfeitamente que a coxa pode ser um eufemismo para a região genital.
IV - Guid
O termo guid (‫)דיג‬, traduzido como tendão, é pouco utilizado nas Escrituras - normalmente em
linguagem poética e no plural, para se referir a todos os tendões e/ou músculos do corpo:
“De pele e carne me vestiste, e de ossos e nervos [guidim] me teceste”. (Iyov/Jó 10:11)
“Quando quer, move a sua cauda como cedro; os nervos [guidei] das suas coxas [fachadav] estão
entretecidos”. (Iyov/Jó 40:17)

À primeira vista, a passagem acima parece promissora, dada a presença de “nervo” e “coxa” na
mesma frase, no português. Essa coincidência, contudo, é apenas ilusória, pois o termo no hebraico
aqui traduzido como coxa é pachad (‫)דחפ‬, não (‫)ךרי‬, termo usado em Bereshit (Gênesis).
Existe também bastante coisa interessante a respeito desse termo e algumas controvérsias, porém
essa questão não será abordada aqui, por uma questão de foco.

“E porei nervos [guidim] sobre vós e farei crescer carne sobre vós, e sobre vós estenderei pele, e
porei em vós o espírito, e vivereis, e sabereis que eu sou YHWH. Então profetizei como se me deu
ordem. E houve um ruído, enquanto eu profetizava; e eis que se fez um rebuliço, e os ossos se
achegaram, cada osso ao seu osso. E olhei, e eis que vieram nervos [guidim] sobre eles, e cresceu
a carne, e estendeu-se a pele sobre eles por cima; mas não havia neles espírito”.
(Yehezkel/Ezequiel 37:6-8)

A única passagem que faz clara referência a uma parte específica do corpo é a de Yeshayahu
(Isaías), que diz:
“Porque eu sabia que eras duro, e a tua cerviz um nervo (guid) de ferro, e a tua testa de bronze”.
(Yeshayahu/Isaías 48:4)
Evidentemente que o uso supracitado não se refere à mesma parte do corpo que o texto de Ya’akov
(Jacó). Mas, duas coisas podem ser aprendidas a partir dele: A primeira é a de que aqui claramente
o termo guid se refere à musculatura. E a segunda é que o termo, a exemplo de como é usado no
plural nas demais passagens, é genérico e pode ser aplicado a qualquer parte do corpo. Porém,
uma informação bastante interessante sobre o termo guid é que o termo também existe no
aramaico, que é uma língua muitas vezes semelhante ao hebraico.
No aramaico, de acordo com o léxico do acadêmico Stephen Kaufman, professor da Hebrew Union
College, o termo “guid” também pode ser uma referência ao genital masculino. É possível, portanto,
que no hebraico o termo também assuma conotação semelhante.
V – Nasheh
O próximo termo a ser analisado é o termo “nasheh” (‫)השנ‬, que é traduzido na maioria das vezes
como “encolhido.” Novamente, trata-se de um termo pouco comum no hebraico, e que é objeto de
algumas teorias. A tradução “encolhido” sugere que o termo “nasheh” venha da raiz “anash” ( ‫)שנא‬,
número 605 na concordância Strong, que pode tanto significar falho, enfermo ou incurável. Abaixo,
um exemplo:
“Então Natan foi para sua casa; e YHWH feriu a criança que a mulher de Uriyah dera a David, e
adoeceu gravemente [vaye’anash]”. (Sh’muel Beit/2 Samuel 12:15)
Porém, essa não é a única possibilidade. Essa mesma raiz pode ser lida como “enash” ( ‫)שנא‬,
número 606 na concordância Strong, que é a forma mais antiga da palavra “homem”. Ela aparece
em algumas passagens, tais como:
“Também por mim se decreta que todo o homem [enash] que mudar este decreto, se arrancará um
madeiro da sua casa, e, levantado, o pendurarão nele, e da sua casa se fará por isso um monturo”.
(Ezra/Esdras 6:11)
Portanto, há duas possibilidades para o termo “nasheh”. A primeira possibilidade é a de que ele
signifique “adoecido” ou “fragilizado”. A segunda possibilidade é que ele signifique “masculino”. Ou
seja, a expressão “guid hanasheh” poderia tanto ser entendida como “tendão fragilizado” como
ainda como “órgão masculino”, ou ainda uma combinação das duas coisas, significando algo como
“genital ferido”.
VI – Kaf
A última palavra a ser observada é o termo kaf (‫)ףכ‬. Esse é talvez o mais difícil, pois é usado nas
Escrituras para se referir a inúmeras coisas. O termo Kaf significa algo oco, ou com formato
côncavo, como o de uma concha. Abaixo, alguns exemplos disso:
“E fez tornar o copeiro-mor ao seu ofício de copeiro, e este deu o copo na mão [kaf] de Faraó ”.
(Bereshit/Gênesis 40:21)
“E apresentou a oferta de cereais e, tomando dela um punhado [chapo], queimou-o sobre o altar,
além do holocausto da manhã”. (Vayicrá/Levítico 9:17)
Aparentemente o termo kaf é usado para se referir à mão que pega algo, e que de fato toma uma
forma de algo côncavo, ou de um receptáculo, como acontece em um punhado.
“No primeiro dia tomareis para vós o fruto de árvores formosas, folhas [kapot] de palmeiras, ramos
de árvores frondosas e salgueiros de ribeiras; e vos alegrareis perante YHWH vosso Elohim por
sete dias”. (Vayicrá/Levítico 23:40)
Algumas traduções trazem também “ramos”. A palmeira tem exatamente os ramos e as folhas em
um formato côncavo. É provável que a referência se refira a isso.
“uma colher [kaf] de ouro de dez ciclos, cheia de incenso”. (Bamidbar/Números 7:38)
A idéia aqui é de um receptáculo côncavo, algo que possa acomodar uma medida. É traduzida
liberalmente como colher.
“Igualmente, quanto à mulher mais mimosa e delicada no meio de ti, que de mimo e delicadeza
nunca tentou pôr a planta [chaf] de seu pé sobre a terra, será mesquinho o seu olho para com o
homem de seu regaço, para com seu filho, e para com sua filha”. (Devarim/Deuteronômio 28:56)
Mais uma vez a idéia é de algo côncavo. Possivelmente uma referência à parte côncava da sola do
pé. Ou seja, no que diz respeito ao texto de Ya’akov (Jacó), pode se referir a duas coisas. Supondo
que guid hanasheh se refira ao nervo ciático, kaf poderia ser uma referência à região da bacia, onde
o nervo se encaixa, que é uma região côncava. Alternativamente, se o termo guid hanasheh se
referir ao órgão genital, então kaf caberia muito bem como uma referência à bolsa testicular, que
tem exatamente esse formato, além da função de ser um receptáculo para os testículos.
VII - Observação sobre os termos
Observe o quadro abaixo:
 
Será coincidência que as quatro principais palavras-chaves para o entendimento desse versículo
podem ser referências ao sistema reprodutor masculino? Há diversos teólogos que acreditam que
não. Como exemplo, temos o teólogo e professor de Bíblia e teologia do Asbury College, Victor P.
Halmiton, que em sua obra “New International Commentary of the Old Testament” afirma acerca da
expressão “guid hanashe”: “A origem e o significado da palavra hebraica nasheh são mais difíceis
de determinar do que guid. O primeiro ocorre apenas aqui na Bíblia Hebraica. Geverty sugere que
nasheh estava associado ao acido nishu, "povo", "vida"; ugárico nsh, "homem"; e o hebraico enosh,
"homem." Assim, a expressão guid hanasheh denota o membro viril, o "tendão masculino', o "tendão
que produz vida", e o tabu com relação à comida no verso 32 tem referências específicas aos
genitais masculinos.” (The Book of Genesis Chapters 18-50)
E ainda, acerca de kaf:
“Uma vez que kaf tem a conotação de algo oco (como um vaso ou panela ou bolsa) e yarech pode
ter significado de genitais, é possível que a frase kaf yerecho se refira ao escroto, a bolsa oca que
segura os testículos, ao invés do soquete do quadril. Assim, a situação seria a de que dois homens
estão engajados em combate, e em algum momento na disputa um combatente toca/golpeia o
escroto do outro combatente. Esta situação seria então comparável à que é contemplada na lei de
Deuteronômio 25:11-12, na qual dois homens estão lutando. A mulher do que está ganhando deixa
o vencedor em desvantagem ao 'e lhe pegar pelas suas vergonhas." (ibid)
No Judaísmo, essa noção também não era desconhecida. O rabino Abraham Ibn Ezra, famoso
comentarista rabínico da Torá no século 11, afirma o seguinte a esse respeito: "O significado do
termo guid hanasheh… é conhecido da tradição recebida e transmitida a nós pelos sábios
talmúdicos. Ninguém, exceto pelos que não têm entendimento e conhecimento da natureza têm
qualquer dúvida quanto à sua definição. Os últimos interpretam que guid (nervo) se refere ao pênis e
que nasheh (veia da coxa) vem da mesma raiz de nashim (mulheres)" (Comentário de Gênesis
32:33)
Ibn Ezra se posiciona claramente de forma contrária a essa interpretação, mas o mais interessante
nesse comentário é a menção a outros que acreditavam exatamente como alguns teólogos aqui
propõem: que o termo se refira ao órgão reprodutor masculino. Ou seja, mesmo no Judaísmo
Rabínico já bastante consolidado da Idade Média, ainda assim havia essa visão. E, certamente, pelo
texto bíblico, ela é possível.
VIII - Revisitando a Passagem
Como ficaria, portanto, desse ponto de vista de que guid hanasheh se refira ao órgão genital, a
passagem da luta entre Ya’akov (Jacó) e o anjo? Abaixo, uma demonstração:
“Ya’akov, porém, ficou só; e lutou com ele um homem, até que a alva subiu. E vendo este que não
prevalecia contra ele, golpeou o escroto, e se rasgou o escroto de Ya’akov, lutando com ele... E
saiu-lhe o sol, quando passou a Peniel; e manquejava em razão de seu escroto. Por isso os filhos
de Israel não comem o genital, adjacente ao escroto, até o dia de hoje; porquanto golpeara o
escroto de Ya’akov, junto ao seu genital”.
Convém aqui esclarecer, especialmente às mulheres (devido à diferença anatômica), que um forte
golpe na região genital de um homem não só pode como provavelmente o fará manquejar. Inclusive,
um dos possíveis sintomas para problemas na próstata, tanto de homens quando de animais, é
exatamente o manquejar, possivelmente devido à dor causada. Sendo assim, o fato de Ya’akov
(Jacó) manquejar não pode, por si só, sugerir uma resposta para a indagação de a que se refere a
expressão guid hanasheh.
IX – Conclusão
É impossível determinar com total certeza a que porção anatômica se refere a expressão guid
hanasheh. Tanto a leitura literal quanto a leitura eufêmica são possíveis. Ambas ocorrem nas
Escrituras em alguns lugares. Sendo assim, qualquer das duas visões seria possível de se
enquadrar no texto bíblico. Isto posto, o autor deste material é da opinião de que há referências
demais que podem se referir à anatomia do sistema reprodutor masculino para que se considere
isso uma coincidência, e é portanto da opinião de que de fato o termo se refira aos órgãos genitais.
Além disso, diversos personagens bíblicos já foram golpeados e feridos em outras regiões. Por que
somente no caso de Ya’akov (Jacó) a questão se tornou um tabu? A região onde o golpe foi
desferido poderia explicar essa questão, visto que é bastante compreensível que tal região desse
origem a um tabu.

Leia mais: https://gepebjudaismo.webnode.com/news/a-coxa-de-yaaqov/

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