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A

PRÁTICA DA IGREJA DE DEUS


A fé e o funcionamento da igreja bíblica
3ª Edição
Revista e Ampliada
Marcos Granconato

São Paulo
2015
Copyright © 2015 por Marcos Granconato
Publicado pela Hermeneia Editora
Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19/02/1998.
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Granconato, Marcos
A prática da igreja de Deus / Marcos Granconato – São Paulo:
Hermeneia, 2015.
3ª Edição Revista e Ampliada
________________________________________

Capa: Thomas Tronco e Níckolas Ramos – Saint Alban’s Cathedral, UK (foto do


autor)
Ilustração: Carlos A. Ferolla
Preparação de texto: Amorim Leite
Revisão: Simone Matias
Diagramação: Níckolas Ramos Borges
Publicado no Brasil com todos os direitos reservados pela:
Hermeneia Editora Ltda
Nenhum tijolo escolhe seu vizinho:
isso depende do plano do dono da obra.
É ele quem escolhe e ajusta cada tijolo que forma a casa
e os coloca lado a lado.
Os outros nos apertam e limitam,
mas também nos sustentam e apoiam.
Quem quiser ficar sozinho será como um tijolo abandonado,
inútil e frio.
Hino alemão

Atendei por vós e por todo o rebanho


sobre o qual o Espírito Santo vos constituiu bispos,
para pastoreardes a igreja de Deus,
a qual ele comprou com seu próprio sangue.
Atos 20.28
Dedicado a Renato Macieira, Carlos Alberto Ferolla e Leandro Boer, homens
que amam a igreja de Deus e mostram isso na prática.
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
PRÓLOGO - O ‘CRISTÃO VELHO’ E O ‘CRISTÃO NOVO’
Capítulo 1 - Igreja local: definição, propósito, importância e modo válido de implantação
Capítulo 2 – O CULTO CRISTÃO
Capítulo 3 – AS ORDENANÇAS
Capítulo 4 – O EVANGELISMO
Capítulo 5 – OS MEMBROS QUE VÊM E VÃO
Capítulo 6 – OS DEVERES DOS MEMBROS DA IGREJA LOCAL
Capítulo 7 – OS OFICIAIS DA IGREJA
Capítulo 8 – O PATRIMÔNIO MATERIAL DA IGREJA
Capítulo 9 – DESVIOS EVANGÉLICOS
Capítulo 10 – IGREJAS PÓS-MODERNAS
Capítulo 11 – O AUXÍLIO MATERIAL NA IGREJA
Capítulo 12 – O CASAMENTO
Capítulo 13 – A LIBERDADE E A CONDUTA CRISTÃ
Capítulo 14 – A PRÁTICA DE ENFRENTAR A MORTE
CONCLUSÃO – AS PEDRAS DE CARBURETO
PRINCÍPIOS GERAIS LIGADOS À PRÁTICA DA IGREJA DE DEUS
REFERÊNCIAS
SOBRE O AUTOR
APRESENTAÇÃO
Este livro surgiu a partir de aulas ministradas na classe de novos
membros da Igreja Batista Redenção na qual exerço o ministério pastoral desde
1997. Como o objetivo da classe era tornar a igreja conhecida para aqueles que
demonstravam interesse em fazer parte dela, era natural que as aulas versassem
sobre os princípios que cremos ser fundamentais na composição das bases de
uma igreja bíblica, bem como sobre os desdobramentos práticos desses mesmos
princípios.
Assim, antes de iniciar a leitura, o leitor deve estar preparado para entrar
em contato com a defesa de inúmeras convicções, bem como atentar para a
solidez dos fundamentos bíblicos sobre os quais estão edificadas. A angustiosa
situação presente requer definições claras e objetivas de fé e um total abandono
de meias-palavras que evitam o compromisso sério com qualquer linha de
pensamento. Tal postura, tão comum em nossos dias, não defende a verdade,
antes a obscurece ainda mais. Por isso, este livro raramente apresentará “leques
de opções”. Antes, sairá na defesa do que cremos ser verdadeiramente bíblico,
recusando clara e veementemente os desvios eclesiásticos que proliferam nos
nossos dias.
Finalmente, devo tecer algumas frases de agradecimento àqueles que
tornaram possível a vinda deste livro à luz. Agradeço, em primeiro lugar, aos
membros da minha querida Igreja Batista Redenção que me concederam o tempo
e o apoio necessários para a realização do presente trabalho. Também sou grato
aos alunos do Seminário Bíblico Palavra da Vida, onde tenho lecionado por
quase trinta anos. Esses alunos sempre me incentivaram a escrever sobre minha
filosofia e prática ministeriais. Sem esse incentivo, o conteúdo deste trabalho
talvez permanecesse para sempre restrito à pequena classe de novos membros da
igreja que pastoreio.
Agradeço ainda aos pastores Thomas Tronco dos Santos, Marcos Samuel
Pereira dos Santos e Adarlei Martins. Suas preciosas sugestões serviram para
sanar diversas falhas neste projeto e contribuíram para tornar a presente obra
melhor sistematizada e também mais relevante e atual.

Pr. Marcos Granconato


Novembro de 2014
Soli Deo gloria
PRÓLOGO - O ‘CRISTÃO VELHO’ E O ‘CRISTÃO NOVO’
Nos dias modernos, os maiores perigos que desafiam os crentes
verdadeiros não são mais os provenientes do catolicismo, do espiritismo, das
religiões afro-brasileiras e nem do ateísmo. Hoje, é dentro da própria
comunidade dita evangélica que o crente encontra as mais graves ameaças contra
a fé, a verdade e o bom proceder.
Verifica-se atualmente a assustadora e incessante multiplicação dos
pastores da mentira, das igrejas que ensinam fábulas e dos conjuntos
“evangélicos” que cantam coisas sem sentido enquanto dançam freneticamente.
Isso tudo, além de se encontrar em quase toda esquina, está todos os dias no
rádio, na TV, nas revistas e nos jornais, deixando muitos crentes confusos diante
de tantos ensinos novos, proclamados aos berros com o propósito de dar a
impressão de que quem os prega está convicto do que diz.
Em virtude desse tão horrível quadro, os raros pastores bíblicos de hoje
têm de alertar os membros de suas igrejas contra práticas e crendices que,
equivocamente, se denominam cristãs e se preocupar mais com o perigo que elas
representam do que com os tradicionais inimigos da fé.
Outro efeito desse estado de coisas é a infeliz associação da superstição,
da ignorância, do engano, da exploração e do escândalo com o nome
“evangélico”. Essa associação promovida pelos movimentos pseudocristãos dos
nossos dias trouxe irreparáveis prejuízos para a verdadeira igreja de Cristo,
comprometendo sua identidade.
Foi-se o tempo em que as palavras “crente” e “evangélico” designavam
pessoas diferentes, marcadas por decência, amor à família, responsabilidade,
firmeza doutrinária e zelo pelos interesses do Reino. Atualmente, essas palavras
designam muitas vezes pessoas desprovidas de virtudes espirituais, de bom
discernimento e de conhecimento bíblico, que se ocupam quase todo o tempo de
correr atrás das mais absurdas heresias, ensinadas por vigaristas interessados
somente em lucro financeiro.
Os crentes verdadeiros, portanto, não podem mais se sentir à vontade
com o título “evangélico”. Esse termo está muito desgastado, e a maior parte das
pessoas a que agora se refere está bem distante do seu significado original. Nos
dias de hoje, infelizmente, a linguagem tem de sofrer modificações a fim de se
acomodar à nova e triste realidade e expressar com maior clareza o que um real
convertido quer dizer quando afirma que é crente.
Também as palavras “crente”, “cristão” e “protestante”, conforme a
experiência mostra, não são mais satisfatórias, de modo que tudo indica a
necessidade de uma nova designação. Em face da urgência em frisar a diferença,
sugere-se aqui a expressão “cristão velho”. Ainda que evoque lembranças dos
tempos da inquisição espanhola, é possível que essa expressão suporte
eficazmente a ideia que pretende aqui transmitir.[1]
Assim, “cristão velho” seria uma forma de designar o crente verdadeiro,
cuja fé e vida se amoldam aos antigos padrões da igreja neotestamentária.
Cristão velho seria, portanto, o homem que se identifica com o antigo
cristianismo e se distingue por forte apego à sã doutrina e monumental proceder
moral.
Em oposição a essa notável e bela figura surge em anos recentes o
“cristão novo”. Este é o seguidor de fábulas e superstições das mais diversas
espécies. Trata-se daquele “evangélico” que frequenta as numerosas
“comunidades” modernas e mal conhece quem se senta ao seu lado, já que
nesses lugares há constante vaivém de pessoas que raramente se firmam em
algo, as quais geralmente vivem de lá para cá ávidas por emoções novas.
Com efeito, enquanto o cristão velho é conhecido por seus irmãos e por
seu pastor e mantém com eles comunhão e amizade, o cristão novo dificilmente
tem vínculos com a igreja que frequenta, nem se exige isso dele. Aliás, a maior
parte dos pastores das igrejas de cristãos novos não tem interesse em formar um
rol de membros com os quais tenha de se preocupar, além de cuidar e nutrir. Ao
que parece, tudo que importa para a maioria desses líderes é ter a casa cheia de
uma multidão de desconhecidos que, impulsionados pela superstição, queiram
obter prosperidade, emprego, saúde e proteção contra males imaginários.
Outra marca distintiva dos cristãos novos é a despreocupação em avaliar
o que lhes é ensinado. Seja qual for a mentira que ouçam, se vier acompanhada
da fórmula “em nome de Jesus” ou de três ou quatro “aleluias”, imediatamente
lhe dão crédito. Já foi dito ousadamente que, se alguns falsos pastores, que a
Bíblia chega a chamar de cães,[2] literalmente latissem, sem dúvida seus
seguidores os aplaudiriam e gritariam comovidos e em lágrimas: “Glória a
Deus!”. A triste verdade, porém, é que isso já tem acontecido. Escritores
modernos têm documentado que em certas comunidades evangélicas o latir ou o
emitir outros sons de animais têm sido reconhecido como evidência de plenitude
espiritual.[3]
Fato também digno de nota é que, em vez de ser luz do mundo a brilhar
nas trevas e sal da terra a preservar a sociedade da podridão, os cristãos novos
assemelham-se a tambores: são tão barulhentos quanto vazios. Os crentes
verdadeiros devem ter pena dessas pessoas e orar por elas, pois sua vida é tão
oca, tão privada de conteúdo, tão carente de satisfação espiritual que todo o
barulho que fazem durante suas reuniões e passeatas pode ser interpretado como
um grito desesperado em busca de algo que a preencha, mesmo que só por
alguns instantes. Ainda assim, chamam essas manifestações de “fervor” ou de
“reavivamento” e acusam quem delas não participa de “crente frio”. Se, contudo,
iluminados pelo Espírito Santo, tivessem leve noção do real significado dessas
palavras que tanto usam, saberiam que chamar manifestações bizarras de
“fervor” é o mesmo que chamar um urubu de querubim.
No imenso mar de variedades em que é tão difícil para o homem comum
distinguir entre as igrejas que pregam a verdade e as que só têm o título de
cristãs, mister se faz manter bem nítidas as diferenças. Em outras palavras,
igrejas compostas por cristãos velhos devem se afastar das perigosas seitas
chamadas evangélicas que dia a dia atraem e geram cristãos novos. De outro
modo, o mundo jamais saberá que existe um imenso abismo a separar os dois
modelos e continuará acreditando que cristãos novos e velhos são todos iguais,
sem nenhuma distinção essencial ou vivencial entre ambos.
Além disso, é preciso tornar bastante conhecidos a fé e o funcionamento
da igreja bíblica, aquela que é liderada e composta por cristãos velhos. Assim, o
rebanho do Senhor poderá se proteger melhor dos ataques das modernas
superstições, percebendo o quanto a verdadeira igreja está distante delas. Da
mesma forma, jovens e sinceros pastores recém-saídos do seminário saberão que
posição tomar diante de tantas práticas e ideias novas. De fato, até mesmo os
cristãos novos serão beneficiados com o conhecimento da fé e do funcionamento
da igreja bíblica, pois se tornarão aptos para identificar os traços da verdadeira
comunidade cristã, onde poderão, se quiserem, refugiar-se do ensino falso em
que têm andado.
Tudo isso sugere uma santa expectativa: a expectativa de que a sã
doutrina não seja um veículo de confusão, destruição e dor, mas sim um
instrumento para a formação de mais e mais cristãos do tipo antigo, já que o
sincero interesse do povo de Deus é a promoção do bem da igreja e o seu
fortalecimento com o que há de melhor. Ora, os santos sabem o que é o melhor.
Eles sabem que hoje o cristão é como vinho: o velho é que é bom.
Capítulo 1 - Igreja local: definição, propósito, importância e
modo válido de implantação
A igreja local não é uma entidade religiosa assistencial como muitos
pensam. Também não se deve conceber a igreja como uma agência promotora de
eventos. Ainda que muitos pastores e líderes eclesiásticos tenham transformado
suas comunidades em meras organizações movidas e sustentadas por passeios,
festas, retiros, jantares e outros programas especiais, nenhum desses eventos
reflete o que a igreja é em essência.
É claro que não é errado uma igreja realizar programas como os
mencionados. Contudo, foge do perfil bíblico a comunidade eclesiástica que tem
na promoção dessas coisas a sua marca dominante, dependendo intensamente
delas para subsistir e gerar motivação.
Tampouco a igreja local pode ser entendida como uma mera opção de
congraçamento social para os fins de semana. Não há dúvidas de que a alegre
comunhão dos crentes é um ideal bíblico, mas a natureza e os alvos desse
convívio são bastante diferentes e se situam muito acima daqueles que são
buscados por quem vê a igreja como uma alternativa de programa social para as
manhãs ou noites de domingo (sobre a comunhão cristã bíblica veja-se a
próxima seção deste capítulo e também o Capítulo 6).
Igreja local é, isto sim, a comunidade autônoma de crentes em Cristo
unidos entre si por laços de fé, amor e amizade; caracterizada pelo ensino e
proteção da sã doutrina, pela observância das ordenanças de Cristo e pela
aplicação da disciplina bíblica.
A Bíblia apresenta de forma clara os dois propósitos fundamentais da
igreja: o imediato, que é anunciar o evangelho (1Pe 2.9); e o final, que é
glorificar para sempre a Deus (Ef 1.5-6; 12-14).
Desse modo, um grupo em que as pessoas não têm comunhão entre si,
que não prega a sã doutrina, que não observa adequadamente as ordenanças de
Cristo (o batismo e a ceia do Senhor), que jamais aplica a disciplina bíblica, que
não se preocupa com a expansão do Reino de Cristo neste mundo mediante a
pregação do evangelho e não persegue o ideal maior de glorificar a Deus não
pode de maneira nenhuma ser chamado de igreja. Disso se conclui que
pouquíssimas são as verdadeiras igrejas, o que é de lamentar, dada a importância
vital dessa comunidade em inúmeros aspectos.
Dessa última afirmação brotam, naturalmente, as seguintes questões: Por
que a igreja é importante? Que diferença faz essa instituição? O que foi dito nos
parágrafos anteriores fornece em linhas gerais o conteúdo da resposta a essas
perguntas. É necessário, porém, maior exatidão.

A importância da igreja local

Em primeiro lugar, pode-se dizer que a igreja é extremamente importante


neste mundo porque fornece o contexto em que ocorre uma cura substancial nas
relações interpessoais.[4] É na igreja local que pessoas de diferentes idades,
origens, etnias, culturas, formações e níveis sociais são convidadas a viver em
plena harmonia, formando uma verdadeira família (1Co 1.10; 12.12-27; 2Co
13.11; Gl 3.28; Ef 4.1-3; Fp 1.27; 2.1-4; 4.2-3; 1Pe 3.8).
Nesse ponto, nenhum outro grupo social é comparável à igreja. E essa
unidade, a que seus membros são chamados e exortados a manter, tem como
base não o simples interesse na paz social, mas a própria obra redentora de
Cristo (1Co 10.16-17), de modo que quem atenta contra a unidade da igreja,
levanta-se, na verdade, contra um dos santos propósitos da cruz (Ef 2.13-19).
Sendo a igreja o ambiente em que o indivíduo pode se relacionar em
amor com pessoas diferentes e em que pode se sentir aceito e respeitado a
despeito de qualquer fator secundário, fica difícil exagerar sua importância para
o sustento e o bem-estar emocional do ser humano, que procura a todo custo
obter o amor e o respeito dos outros a fim de se sentir importante e seguro.[5]
Em segundo lugar, a relevância da igreja assume proporções imensas
pelo fato de ser o grupo em que a medida do comprometimento do crente dá a
medida da sua saúde espiritual. É fácil alguém saber se é mesmo um servo
obediente a Cristo e se tem vigor espiritual: basta observar se está de bem com
sua igreja, dela participando, com ela cooperando e nela cultivando suas maiores
amizades (Jo 15.10,12,14; Hb 10.25).
De fato, João mostra como descobrir se alguém está andando na luz. Diz
ele: “Se, porém, andarmos na luz, como ele está na luz, mantemos comunhão uns
com os outros…” (1Jo 1.7). Isso é assim porque existe íntima ligação entre
Cristo e a igreja, ligação esta em que ela é o “corpo” e ele a “Cabeça” (Ef 1.22-
23; 5.23; Cl 1.24). Desse modo, é impossível se afastar da igreja sem se afastar
de Cristo; e o terrível Saulo descobriu perplexo que era impossível odiar e atacar
a igreja sem ao mesmo tempo odiar e perseguir o próprio Cristo (At 9.1-5).
Além disso, Deus determinou que a igreja fosse o celeiro onde o cristão
pudesse encontrar alimento para crescer espiritualmente. Nela o Senhor pôs
pessoas com os mais diversos dons (Rm 12.4-8) para que quando os
exercitassem no contexto eclesiástico, os santos se aperfeiçoassem, se tornassem
aos poucos semelhantes a Cristo e não seguissem ensinos enganadores (Ef 4.11-
14). Como poderá o crente que não visita esse celeiro se alimentar
adequadamente? E sem se alimentar adequadamente, como demonstrará vigor?
A Bíblia ensina também que os diferentes membros do corpo que é a
igreja formam um organismo só (1Co 12.12) e, uma vez que realizam funções
específicas, todos são essenciais e indispensáveis para o bem de cada um em
particular e o bom funcionamento do todo (1Co 12.17-23). Como será, pois, a
saúde espiritual do cristão que, afastado da comunhão com seus irmãos, deixa de
desfrutar do trabalho dos membros em geral e não coopera, ele mesmo, com o
aperfeiçoamento do corpo?
Tudo isso mostra a importância que a igreja tem para o crescimento
espiritual de cada um e prova que o cristão que não participa de nenhuma igreja
e diz que é possível ser bom crente adorando a Deus sem sair de casa não
compreendeu a espiritualidade ensinada no Novo Testamento. Esse crente, além
de desobedecer abertamente as determinações bíblicas (Ef 4.3; Hb 10.25) e não
cumprir seu papel de membro do corpo de Cristo, privando-o de funcionamento
melhor (1Co 12.25; Ef 4.15-16), deixa de receber o crescimento que a
participação conjunta do estudo, do louvor e da oração sempre poderá
proporcionar.
Em terceiro lugar, a igreja é importante porque é a organização
responsável pelo avanço da obra missionária (At 13.1-3). Ainda que
organizações missionárias de renome internacional façam trabalhos notáveis, é a
igreja local que tem sobre seus ombros a responsabilidade de, orientada pelo
Espírito Santo, escolher e enviar pessoas aos campos brancos para a ceifa e
sustentá-las ali quando for preciso.
Relevante também é a igreja em sua função didática. Além de funcionar
como centro de educação cristã para todos os que se acercam dela, tem a igreja a
responsabilidade de ser escola preparatória de pastores e núcleo formativo de
novos líderes (2Tm 2.2; Tt 1.5 cf. At 14.21-23). Isso, é claro, não anula a
necessidade dos seminários teológicos. Porém, não se pode admitir que a igreja
deixe de participar da instrução dos seus novos obreiros mantendo-se alheia à
sua formação e transferindo toda a responsabilidade educacional dos
vocacionados para as mãos das faculdades de teologia.
Não se pode deixar de mencionar aqui outro fator, também de extrema
importância, que é o papel da igreja consistente de zelar pela redução do
sofrimento humano (1Tm 5.3,16; 2Co 9.1-2,12).[6] À luz da Bíblia, não há
dúvidas de que a igreja deve agir de tal maneira que todos percebam com clareza
que, caso ela não existisse, a dor dos menos favorecidos seria muito maior.
Finalmente, a igreja é importante porque é a guardiã da sã doutrina (1Tm
3.14-15). Como protetora de depósito tão precioso, levanta-se contra tudo que se
caracteriza por falsidade e não somente rejeita a fraude como também a
desmascara.
A verdadeira igreja não dá boas-vindas às constantes novidades
doutrinárias que dia após dia aparecem no cenário dito evangélico. Antes,
protege o legado que recebeu dos antigos. A velha fé que habitou nos seus
antepassados cristãos desde os tempos dos apóstolos é a mesma que nela hoje
também habita (2Tm 1.5; 3.14-15), sendo certo que seus membros atuais
conservam esse legado com zelo sem igual (Gl 1.8-9; 1Tm 1.18-19; 4.16; 6.11-
14, 20-21; 2Tm 1.13-14).

Modo válido de implantação

Tendo em vista a grande importância da igreja local, fica evidente a


urgente necessidade do surgimento de mais e mais agências dessa natureza. No
entanto, a própria sublimidade de sua tarefa neste mundo exige que a fundação
de uma nova igreja ocorra debaixo de cuidadosa tutela.
É recomendável, assim, observar certos critérios e superar algumas
etapas antes de conceder o status de igreja a um grupo de crentes que
eventualmente se reúne. Isso porque a forma estranha como grande parte das
igrejas surge atualmente – um indivíduo qualquer põe uma gravata, aluga um
salão e começa a ensinar qualquer coisa, atraindo pessoas dispostas a crer em
tudo – por não observar princípios bíblicos, só tem servido para criar igrejas
falsas.
Por isso, para que igrejas bíblicas nasçam, sugere-se o cumprimento das
seguintes fases:

1. Estabelecimento de um ponto de pregação. Uma igreja devidamente


organizada escolhe um local estratégico e carente onde realizará
esforços evangelísticos por tempo indeterminado. Podem funcionar
como sede provisória para o trabalho nascente a casa de um irmão,
uma garagem, uma sala comercial e até mesmo uma praça.
2. Formação de uma congregação. Havendo certo crescimento com a
ocorrência de conversões e a chegada de outros crentes, o ponto de
pregação adquire o status de congregação. O novo grupo continua a se
reunir sob a autoridade da igreja responsável, que insere em seu
próprio rol de membros os crentes oficialmente comprometidos com a
congregação.

3. Estabelecimento de um local exclusivo. O crescimento do grupo dá


ensejo à compra ou locação de um lugar que sirva como sede exclusiva
da igreja em formação. A escolha desse local deve levar em conta
aspectos estratégicos bem como a possibilidade de expansão futura.
Fundamental é que os membros que cooperam na congregação sejam
estimulados a participar ativamente do estabelecimento desse novo
local, seja por meio do trabalho ou com contribuições financeiras.

4. Nomeação de um líder. É claro que em todas as fases de formação


da igreja haverá um responsável pelo trabalho. Porém, nessa fase do
processo deve-se dar especial atenção à necessidade de nomear alguém
que se dedique ao ministério no novo local de forma mais intensa. A
escolha e contratação desse obreiro serão feitas pela igreja
responsável, levando seriamente em conta a opinião e vontade da
maioria dos membros da congregação. Estes, na medida do possível,
deverão participar do sustento desse líder, a fim de que desde cedo
aprendam acerca dos deveres da igreja em relação a seus ministros
(1Tm 5. 17-18).

5. Incentivo à capacidade de autogestão. Superadas as fases acima


descritas, tanto a igreja responsável como os membros da congregação
deverão empenhar-se para que a igreja em formação adquira
independência substancial, estabelecendo uma liderança local e
conquistando autonomia financeira para, sozinha, poder arcar com o
suprimento de todas as suas necessidades e buscar a realização de
todos os seus deveres e alvos.

6. Organização da nova igreja. Capaz de autogerir-se, a congregação


poderá, caso queira, organizar-se em igreja independente daquela que a
fundou. Essa independência poderá ser absoluta, como é o caso da
maioria das igrejas batistas, ou relativa, como é o caso da Igreja
Presbiteriana e a Assembleia de Deus, cujas comunidades locais se
mantêm sob a autoridade de um órgão centralizador, mas desfrutam de
ampla autonomia. Para fins administrativos e para que o ato tenha
caráter oficial, recomenda-se que a concessão do status de igreja seja
aprovada em assembleia realizada pela igreja sede ou por eventual
órgão representativo. Se for feito assim, obviamente a medida será
registrada em ata que alistará, inclusive, os nomes dos membros
fundadores da nova igreja como nota de valor histórico.

Evidentemente, esse processo deve ser entendido como mera sugestão.


As particularidades de cada caso, muitas vezes, impedirão que as etapas acima se
concretizem de modo pleno ou na sequência apresentada. O que deve, porém,
permanecer intocável, até onde for possível, é o princípio de que uma igreja só
pode ser gerada sob os auspícios de outra.
Esse princípio se encontra no Novo Testamento, especificamente no livro
de Atos, no qual é evidente que as novas igrejas nasciam em geral graças ao
envio de missionários, que, por sua vez, eram sujeitos a igrejas de sólidos
alicerces e autoridade inquestionável (At 13.1-3), às quais esses mesmos
missionários também prestavam relatórios acerca de suas atividades (At 14.26-
28).
Vê-se também em Atos que as igrejas que aos poucos surgiam ficavam a
princípio sob a supervisão e o cuidado de outra previamente estabelecida, que
lhes enviava delegados com o intuito de mantê-las debaixo de necessário
controle e proteção (At 8.14; 11.20-22; 15.1-4, 22-31).
É difícil, portanto, encontrar amparo bíblico para o indivíduo que,
dizendo-se chamado por Deus, toma a iniciativa de, por si mesmo, “abrir um
trabalho”, tornando-se uma espécie de “dono” de igreja. Tampouco pode
encontrar apoio indiscriminado o homem que, insatisfeito com sua igreja ou
denominação, rompe com ela e passa a trabalhar ao lado de alguns simpatizantes
no afã de formar uma igreja nova nos moldes que considera corretos. De fato,
somente em casos excepcionalíssimos, em que é impossível o patrocínio de uma
verdadeira igreja, essa conduta poderá ser recomendada e aceita.

Os cinco pilares da igreja de Deus

Uma vez estabelecida, a igreja deve se firmar sobre cinco pilares:


adoração, ensino, comunhão, proclamação e pureza. Esses cinco pilares
manterão a igreja de pé. Por isso, seus membros devem ter como propósito
contínuo preservá-los e fortalecê-los. A tarefa de manter, proteger, restaurar e
robustecer as cinco colunas aqui elencadas é a essência do que o cristianismo
chama de “servir ao Senhor”.
Observe-se a seguir o que está envolvido em cada um dos itens
denominados aqui como pilares da igreja de Deus.[7]

Adoração: A igreja verdadeira é uma comunidade que se reúne para


adorar (At 2.47; Ef 5.19-20; Cl 3.16). Essa adoração deve ser dirigida
exclusivamente ao Deus trino. Nenhum outro personagem, seja
humano ou angélico, pode ser objeto dela (At 14.11-18; Ap 19.10;
22.8-9). De acordo com João 4.23-24, a adoração cristã não deve ser
meramente ritual nem repleta de erros geralmente decorrentes das
opiniões, preferências e invenções de supostos adoradores (Mt 15.8-9).
Antes, o culto deve ser focado em Deus, levando em conta como ele
realmente é (um Espírito e não um local ou um objeto material) e ser
feito do modo como ele aprova e diz ser correto (esse é o significado
de adorar “em verdade”).

Ensino: A tarefa de ensinar a sã doutrina deve ser mantida pela igreja


como um dos seus mais importantes pilares (At 15.35; 18.11; 20.20).
Isso porque, de acordo com Efésios 4.11-13, o ensino faz com que os
crentes amadureçam e, assim, se tornem aptos para o serviço de
edificação da igreja, além de mais semelhantes a Cristo (Cl 1.28).
Ademais, o texto de Efésios destaca que o ensino protege os crentes de
serem enganados pelos falsos mestres e suas doutrinas fraudulentas (Ef
4.14). É por isso que o pastor deve ser apto para ensinar (1Tm 3.2;
2Tm 2.24; Tt 1.9-11) e fazer isso com insistência e perseverança (1Tm
4.13). O conteúdo do ensino ministrado na igreja deve ser a Escritura e
não filosofias humanas (Rm 15.4; 1Co 2.1-7; 2Tm 3.16), sendo certo
que cada crente deve realizar, em alguma medida, uma tarefa didática
no convívio com seus irmãos (1Ts 5.11).

Comunhão: Diferente do que muitos pensam, o pilar da comunhão


cristã não é construído apenas com reuniões sociais em torno de mesas
de café e bolos. Ainda que essas reuniões sejam úteis para estreitar os
laços de amizade entre os crentes, de forma nenhuma elas esgotam o
sentido da genuína comunhão dos santos ensinada nas Escrituras. Com
efeito, essa comunhão abrange uma unidade amorosa em que cada um
se preocupa humildemente com os interesses do outro (Fp 2.1-4) e
realiza uma tarefa de encorajamento e exortação junto aos seus irmãos
(Hb 10.25). A comunhão amorosa entre os crentes é uma das mais
eficientes formas de testemunho (Jo 17.20-23) e também uma das
provas mais notáveis do andar na luz (1Jo 1.7).

Proclamação: Trata-se da responsabilidade que pesa sobre os ombros


da igreja de tornar Deus conhecido ao mundo (1Co 9.16; 2Tm 4.5; 1Pe
3.15). Nessa tarefa, a igreja deve proclamar os atributos divinos (1Pe
2.9) e, especialmente, a obra salvadora do Pai realizada no envio do
seu Filho ao mundo para morrer pelos pecadores, ressuscitando ao
terceiro dia (At 13.38-39; 1Co 15.1-4). Assim, para ser realmente
bíblica, a igreja não pode perder de vista o evangelismo (At 5.42) e a
obra missionária (At 13.1-3), trabalhando para que o pilar da
proclamação nunca desabe e o evangelho alcance os que estão perto e
também os que habitam nos lugares mais distantes da terra (Mt 28.19;
Rm 10.13-15; Ap 14.6).

Pureza: A igreja que não zela pelo pilar da pureza muito cedo se verá
invadida pelos costumes e práticas do mundo que, aos poucos, tomarão
conta dela (1Co 5.6). Então, nenhuma diferença haverá entre a igreja e
qualquer associação de incrédulos. Na verdade, uma igreja assim será
ainda pior do que uma sociedade de pagãos, pois, por causa dela, o
evangelho será desacreditado e o nome de Cristo será blasfemado entre
os perdidos (1Tm 6.1; 2Pe 2.1-2). Se não primar pela pureza em seu
meio, a igreja logo se tornará um covil de hipócritas, perderá sua força
espiritual, desencorajará a vida de temor, afastará do seu convívio os
que buscam a Deus com sinceridade e atrairá sobre si a ira do Senhor
(1Co 10.21-22; Ap 2.12-25). A pureza da igreja, portanto, é questão de
sobrevivência! Se essa coluna for derrubada, toda igreja cairá,
tornando-se apenas um aglomerado de pessoas que nutrem os padrões
do mundo, às vezes de maneira até mais escandalosa (1Co 5.1). A
ferramenta mais importante para a manutenção da pureza da igreja é a
disciplina eclesiástica prevista em Mateus 18.15-17 e 1Coríntios 5.1-5.

Esses cinco pilares não devem ser usados somente como fundamentos da
igreja como organização, mas também como alicerces sobre os quais a vida de
cada crente é construída. De fato, cada irmão, no seu dia a dia, tem de adorar o
Deus trino, aprender a verdade e ensiná-la aos que estão à sua volta, manter
acesa a chama da santa comunhão com outros crentes, proclamar o evangelho
aos perdidos e buscar pureza no seu proceder.

Digressão: a igreja é o novo Israel de Deus?

Sob o ponto de vista teológico, a igreja local não é uma espécie de célula
visível ou a expressão concreta do que tem sido chamado de “novo Israel de
Deus”.
A teologia cristã antiga, já a partir do século 2, israelizou a igreja e, nesse
particular, tem sido hoje seguida pela teologia aliancista (ou teologia do pacto),
dominante no meio evangélico (tradicional ou não). Ora, as implicações práticas
disso podem ser vistas ao longo dos séculos e na atualidade em diversos
equívocos.
Entre esses equívocos podem-se destacar os seguintes:

1. O apoio à preservação de uma igreja estatal, já que Israel era um Estado


teocrático nos tempos do AT.[8]


2. A negligência, notável já nos escritos dos pais apostólicos (séc. 2), do

evangelho ensinado no Novo Testamento que realça a salvação pela fé


somente, em troca de uma soteriologia baseada na prática da lei moral
exposta no Antigo Testamento (salvação pela justiça própria).
3. A construção de santuários majestosos, comparáveis ao templo de

Jerusalém, onde possam ser praticados os atos “sacerdotais” cristãos


assimilados do culto levítico.[9]
4. A definição do batismo infantil como o correspondente cristão da

circuncisão (para mais detalhes, veja-se o Capítulo 3).[10]


5. A transformação da Ceia do Senhor num sacrifício sangrento

(transubstanciação e consubstanciação) realizado continuamente por um


sacerdote (o pastor ou bispo) sobre um altar, tudo nos moldes da tradição
litúrgica judaica e seu sistema sacrificial. Isso obscureceu a real natureza da
morte de Cristo como um sacrifício único, oferecido uma vez por todas.
6. A sacerdotalização da figura e do papel do pastor (ou bispo) que, num

arremedo dos oficiantes levitas, passou a ser visto como detentor de


prerrogativas especiais para dispensar a graça divina (por meio dos
sacramentos), oferecer sacrifícios (a Ceia do Senhor) e realizar a mediação
entre Deus e os membros da igreja. Essas noções serviram, inclusive, como
fundamento para a distinção entre a figura única e suprema do bispo (ou
pastor) e o grupo geral de presbíteros. Também geraram a divisão entre
clero e laicato. Finalmente, estimularam a criação de uma hierarquia
eclesiástica e, consequentemente, o aparecimento do papado.
7. A alegorização de passagens bíblicas referentes a Israel a fim de que

pudessem ser aplicadas à igreja.


8. A identificação da igreja da era presente com o reino messiânico

prometido, sendo tal entendimento fortalecido pela alegorização de textos


bíblicos que tratam do tema. Essa identificação foi a base para o surgimento
da teocracia medieval com suas aspirações de uma igreja onipotente que
deveria exercer domínio político universal (o chamado Império Cristão).
9. A guarda do domingo como o “sábado cristão”.

10. A imposição da obrigação do dízimo judaico aos crentes como dever


legal, às vezes sob pena de disciplina. Eventualmente, contribuições


financeiras dadas além do dízimo são chamadas de “ofertas alçadas”, numa
demonstração da adoção, por parte da igreja, da linguagem própria do
sistema levítico.
11. A apropriação por parte da igreja das promessas de bênçãos (mas não

das maldições!) feitas a Israel especialmente no campo material (teologia da


prosperidade).
12. O emprego de símbolos e objetos do culto israelita (candelabro, arca,

altares, vestes especiais, incenso, etc.) na liturgia cristã.


13. A atribuição do título de “levita” aos componentes de grupos de louvor,

fazendo com que essas pessoas sejam vistas como uma espécie de elite
dentro da igreja.

Em casos mais extremos, a “teologia da substituição”, que define a igreja


como o novo Israel de Deus, tem conduzido as pessoas de algumas épocas e
lugares ao desprezo e até à perseguição dos judeus que, segundo essas propostas,
perderam sua relevância ou seu status como o povo escolhido do Senhor.
De fato, para muitos teólogos aliancistas, com o advento da igreja, a
importância do Israel étnico foi irremediavelmente nublada. Na verdade, de
acordo com essa visão, Deus repudiou Israel e o substituiu pela igreja.[11]
Adeptos dessa linha doutrinária também afirmam que o verdadeiro Israel sempre
foi a igreja.
Esse raciocínio, como se sabe, corroborou inclinações antissemitas
durante alguns períodos da história, dando ensejo aos seguintes desvios:[12]
1. A rejeição da cosmovisão judaica em favor de uma visão de mundo

marcantemente helenista, responsável pela introdução de elementos da


filosofia grega na teologia cristã e pela adoção do método alegórico ao
tempo da igreja antiga, fonte de inúmeras interpretações bíblicas arbitrárias.
2. A espiritualização de textos bíblicos que falam do Israel étnico, levando

os judeus a considerar a hermenêutica cristã do AT (inclusive em suas


conclusões sobre o Messias) indigna de crédito, o que dificultou ainda mais
a evangelização desse povo.
3. A consideração da expectativa de um reino escatológico davídico literal

e terreno (At 1.6) como uma esperança judaica grosseira[13] que deve dar
lugar a uma concepção absolutamente espiritual do reino messiânico.
4. A falta de interesse pelo entendimento judaico acerca do cânon do AT, o

que levou alguns pais da igreja antiga a fazer uso de livros apócrifos na
construção de sua teologia.[14]
5. A aceitação do uso de imagens no culto cristão tendo como um dos

fundamentos para essa prática a ideia de que sua reprovação refletia uma
perniciosa forma judaica de pensar.
6. A degradação dos israelitas pela lei canônica[15] e pela tradição

eclesiástica, gerando conflitos entre a igreja e a sinagoga e também


massacres perpetrados contra a população judaica durante toda a Idade
Média.
7. O estímulo a inclinações antijudaicas, colocando sobre a igreja uma

parcela de culpa pelo Holocausto, o que foi admitido por vários círculos
protestantes, especialmente na Europa, a partir de 1950.

O fato, porém, é que na Bíblia existe clara distinção entre Israel e igreja,
ambos ocupando espaços distintos no plano de Deus. De fato, nada na Escritura
corrobora a ideia de que o advento da igreja a posicionou como substituta de
Israel, de maneira que essa nação deixasse de ocupar espaço de alta importância
no projeto de Deus para a história (Rm 1.16).
Textos como Jeremias 31.35-37 envolvem a promessa de Deus de
preservar Israel para sempre como nação, sem jamais rejeitar sua descendência.
O fato de isso ter sido dito ao povo rebelde dos dias de Jeremias mostra que se
trata de uma promessa incondicional.
Ademais, o Israel étnico é visto também no Novo Testamento como o
povo eleito que Deus não rejeitou (Rm 3.1-2; 9.1-5; 11.1-2). Isso, é claro, não
significa que cada judeu é eleito para a salvação. Na verdade, Paulo diz que
apenas um número limitado de israelitas foi escolhido no sentido salvífico (Rm
11.5-6). Mesmo assim, permanece intocável a verdade de que a nação judaica
inteira foi eleita por Deus num sentido instrumental, isto é, como veículo por
meio do qual ele realiza seus planos de abençoar e salvar (Gn 12.3; 28.14; Jo
4.22; Rm 11.11-12,15).
Romanos 11.28 alude claramente à eleição não salvífica de Israel. Isso
mostra que nem mesmo a rejeição do evangelho fez com que essa nação
perdesse seu status como povo especial de Deus. Aliás, esse status também é um
dos motivos pelos quais todo o Israel será salvo na inauguração da futura era
messiânica (Rm 11.25-27).
Assim, não é correto definir a igreja como um novo Israel de Deus. A
verdade é que a igreja se constitui num povo diferente, composto sim por judeus
e gentios, mas de maneira que perfazem juntos uma terceira classe de homens –
os homens novos – livre de distinções raciais (Ef 2.11-18), trazida à luz pela obra
de Cristo ao tempo dos apóstolos (Ef 3.1-9) e com um espaço específico dentro
dos propósitos de Deus para o presente (Ef 3.10-11; 1Tm 3.15) e do seu plano
para o futuro (1Co 6.2-3; 15.22-23; 1Ts 4.14-18).
Duas questões

1) Conforme o ensino deste capítulo, fundar uma igreja sem a tutela de outra não
é prática recomendável. Não foi, porém, exatamente isso o que fizeram os
reformadores quando se desligaram da Igreja Católica?
Não. Os reformadores do século 16 não fundaram igrejas novas. Eles apenas
reformaram as antigas, purgando-as dos erros e das superstições papistas. Além
disso, é bom lembrar que os reformadores não se desligaram da Igreja Católica.
Na verdade, foi essa igreja que os expulsou.

2) Se é errado dizer que o domingo é o sábado cristão, então é lícito os crentes


trabalharem nesse dia?
Sim, sem nenhum problema. A guarda de dias não é ensinada no Novo
Testamento (Rm 14.5-6). Aliás, Paulo até censura quem se apega a essa prática,
indicando que pessoas assim nutrem noções judaicas erradas e até ideias pagãs
(Gl 4.10-11; Cl 2.16).
Capítulo 2 – O CULTO CRISTÃO
De todos os aspectos da vida da igreja cristã, o culto é o mais importante.
É no culto que a presença atuante de Deus se focaliza, instruindo, corrigindo,
consolando e transformando vidas, já que o Senhor habita não somente no corpo
físico do crente (1Co 6.19), mas também (e especialmente) na comunidade dos
salvos que se reúne para servir e adorar (1Co 3.16-17; Ef 2.21-22; 1Pe 2.5). É no
culto que o nome de Deus é exaltado em cânticos e orações, com a força que
decorre da união de vozes, pensamentos e corações (Sl 34.3). É no culto que a
plenitude espiritual dos adoradores se expressa em salmos, hinos e ações de
graça (Ef 5.18-20). É, finalmente, no culto verdadeiramente cristão que o
alimento espiritual é distribuído aos crentes por meio da pregação da Palavra
viva que nutre, fortalece, ensina e admoesta (Mt 4.4; 2Tm 3.16).
Sendo, assim, tão importante, o culto não é opcional e deve ocupar lugar
central na vida do homem redimido, sendo o próprio Deus que, em sua Palavra,
o conclama a prestá-lo (Sl 95.6-7). Na verdade, tantos quantos forem os cultos
realizados na igreja de Deus, tantas devem ser as participações dos crentes
nesses eventos sagrados, sob pena de sua vida cristã minguar, seu crescimento
espiritual desacelerar e sua força contra o mundo, contra a carne e contra o diabo
entrar em declínio.
Também se deve destacar que, sendo tão central na vida da igreja, o culto
precisa ser realizado dentro de critérios instituídos pelo próprio Deus, bem como
ser composto por elementos fixados na Bíblia. Isso foi corretamente afirmado há
muito tempo por teólogos que propuseram o chamado Princípio Regulador do
Culto, uma norma que subjaz a adoção de uma liturgia marcada por elementos
como pregação, oração, louvor, dádivas e ordenanças. Cada um desses elementos
será exposto neste capítulo, exceto as ordenanças – estas serão objeto de estudo
no capítulo seguinte.

O princípio regulador do culto

A expressão Princípio Regulador do Culto denota a existência de um


valor básico e imutável que deve ser protegido enquanto se realiza qualquer ato
formal de adoração. A proteção desse valor implica a observância de uma norma
geral que rege o culto e lhe dá forma. Esse preceito básico impõe limites ao
adorador, impedindo-o de, levado pelos ditames de sua consciência depravada,
apresentar diante de Deus qualquer coisa que não corresponda à sua natureza e
vontade.
O valor básico e imutável a ser protegido no campo da adoração é o
“direito” exclusivo de Deus de determinar o modo como deve ser cultuado. A
regra básica que protege esse valor pode ser formulada da seguinte maneira:
nada pode ser praticado durante o culto a Deus que não tenha sido
expressamente estabelecido e determinado por ele próprio nas páginas da sua
revelação escrita. É a essa regra básica que se convencionou chamar de
Princípio Regulador do Culto.
Já em Calvino (1509-1564), é possível encontrar a adoção desse
princípio. Nas suas Institutas, onde se insurge contra os abusos da igreja de seu
tempo, o reformador ensina que somente a Deus compete estabelecer o modo
como importa ser adorado. Diz ele:

De ter-se em mente, ademais, é que as superstições


frequentemente se referem nestes termos, que são obras das
mãos dos homens, e carecem da divina autoridade, para que
seja isto estabelecido: que são abomináveis todas as formas
de culto que os homens inventam de si próprios.[16]

Logo a seguir, Calvino escreve:

Deus, porém, para que a si vindique seu direito, se


proclama ser zeloso e haver de ser severo vingador, se com
qualquer deidade fictícia se mesclar. Então, para que lhe
mantenha o gênero humano em obediência, define seu
legítimo culto. A um e outro desses aspectos enfeixa em sua
Lei, quando, primeiramente, a si adjudica os fiéis, a fim de
ser-lhes o legislador único, depois, prescreve a regra
segundo a qual seja devidamente cultuado, conforme seu
alvedrio.[17]

Que Calvino via a Escritura como a fonte de informação acerca da


maneira como deve realizar-se o culto fica claro a partir das citações acima e
também do que ensina logo a seguir, ao enunciar que “mediante sua Lei, quis ele
[Deus] prescrever aos homens que seja justo e reto e, destarte, adstringi-los a
uma norma precisa, para que ninguém se permitisse forjar expressão cultual
qualquer que seja”.[18]
O Princípio Regulador do Culto, conforme ensinado por Calvino, foi
posteriormente, fixado pela Confissão de Fé de Westminster (1646), no primeiro
artigo do seu Capítulo XXI:

A luz da natureza nos ensina que há um Deus, que


exerce senhorio e soberania sobre tudo, que é bom e faz o
bem a todos, e que por isso deve ser temido, amado,
louvado, invocado, crido de todo coração e servido com
toda a alma e com todas as forças; mas o modo aceitável de
adorar o verdadeiro Deus foi instituído por ele mesmo, e de
tal modo determinado por sua vontade revelada, que não se
deve adorar a Deus conforme as imaginações e invenções
dos homens ou as sugestões de Satanás, sob alguma
representação visível ou de outro modo que não seja o
prescrito na Santa Escritura.[19]

Poucas décadas mais tarde, pastores batistas calvinistas reunidos em


Londres reproduziram exatamente o mesmo texto acima transcrito, o qual passou
a compor o Artigo 1 do Capítulo 22 da Confissão de Fé Batista de 1689.
Levando em conta isso tudo, pode-se conceituar o Princípio Regulador
do Culto como o preceito que reserva exclusivamente a Deus a liberdade e o
poder para determinar o modo como o seu culto deve ser realizado, sendo tais
determinações reveladas de forma clara, detalhada e específica na Bíblia.
Ao tempo em que Calvino pronunciou seus ensinos sobre esse assunto e
também à época em que a Confissão de Westminster e a Confissão de Fé Batista
foram elaboradas, a maior expressão de culto absolutamente inaceitável para os
cristãos verdadeiros era encontrada na veneração de imagens, praticada
especialmente na Igreja Católica Romana. O próprio texto das confissões
mencionadas revela que esse era o desvio que os teólogos de então tinham em
mente quando enunciaram o Princípio Regulador.
De fato, como se vê na citação supra, assim se pronunciaram: “Não se
deve adorar a Deus conforme as imaginações e invenções dos homens ou as
sugestões de Satanás, sob alguma representação visível...”. É, pois, evidente que,
num primeiro momento, o Princípio Regulador foi ressaltado no afã de
demonstrar a impiedade manifesta no culto das imagens.
Ocorre, porém, que a norma que impõe limites ao culto cristão se revela
preciosa não só como base sólida para a rejeição das imagens, mas também
como um padrão fixo por meio do qual o crente pode medir qualquer prática ou
costume que se insinuem no culto a Deus ao longo dos séculos.
É, portanto, com o Princípio Regulador do Culto em mente que o líder
cristão moderno poderá avaliar o que pode ou não ser aceito no culto pelo qual
ele é responsável. Por outro lado, a ausência de um princípio por meio do qual
possam ser avaliadas certas práticas modernas deixará o ministro de Deus à
mercê de sua própria consciência e sem força de argumentos para resistir à
pressão de indivíduos que pretendem fazer do culto um mero período de
descontração.
Para agir, porém, com a consciência firmada na Escritura, onde o homem
de Deus pode encontrar os fundamentos para o princípio aqui tratado? Ora, é do
próprio artigo primeiro do Capítulo XXI da Confissão de Fé de Westminster
(reproduzido pelos batistas reunidos em Londres, em 1689) que constam os
fundamentos teológicos do Princípio Regulador do Culto. Pode-se reduzi-los a
três, a saber: o senhorio e soberania de Deus sobre tudo; o dever do homem de
buscar, servir e adorar a Deus de forma aceitável; e o fato de Deus ter revelado
sua vontade na Palavra.
A Confissão de Westminster e a Confissão de Fé Batista de 1689
declaram que a luz da natureza revela a existência de um Deus soberano. De
fato, a chamada revelação geral, a qual inclui em seus aspectos a própria
consciência humana, aponta para a existência de um criador, preservador e
benfeitor soberano (Sl 19.1-6; At 17.24-25; Rm 1.19-20). Dessa mesma fonte se
depreende que esse ser é o governador moral absoluto, a quem todos os seres
pessoais devem temer e adorar, o que é testificado universalmente pelo pensar e
agir de todas as nações em todas as épocas (At 17.23; Rm 2.14-15) .
Uma vez admitida a existência de um soberano Senhor, o dever de buscá-
lo, servi-lo e adorá-lo de maneira que lhe seja aceitável é a verdade a que se
chega com fácil e breve reflexão. A Escritura Sagrada é pródiga nas insistências
de que o homem deve adorar a Deus, sendo-lhe devedor perpétuo de louvor,
obediência e serviço, tudo isso feito com inteireza de coração e empenho
absoluto da totalidade de suas forças (Sl 31.23; 150; Jr 10.7; Mt 22.37-38; Jo
4.24) .
Sendo Deus o Senhor soberano a que se deve honrar de maneira que lhe
agrade, resta ao homem a tarefa de descobrir em que Deus se compraz quando é
cultuado e adorado. Ora, essa descoberta não pode ser feita quando o homem
vasculha sua consciência, sua imaginação, suas inclinações pessoais ou mesmo o
exemplo de povos (antigos ou contemporâneos) que seguiram os impulsos da
criatividade humana para estabelecer suas cerimônias religiosas em honra à
divindade.
Por isso, sendo infinitamente misericordioso e não podendo deixar o
homem à mercê de seus impulsos naturais numa matéria de tão elevada
importância, o Senhor lhe revelou em sua Palavra não somente seu caráter e
obras, mas também sua vontade, a qual abrange determinações que devem ser
observadas no culto de sua santíssima Pessoa.
O eminente teólogo Archibald Alexander Hodge (1823-1886),
comentando esse ensino, escreve:
Pode haver sucedido que, no estado natural do homem
e em suas relações morais com Deus antes da queda, sua
razão natural, sua consciência e instinto religioso tenham
sido suficientes para dirigi-lo nesse culto e serviço. Mas
quando sua natureza moral se corrompeu, seu instinto
religioso se perverteu e suas relações morais com Deus se
transtornaram em razão do pecado, é evidente que se fez
necessária uma revelação que não somente dissesse aos
homens o que Deus admitiria no culto, mas que também
prescrevesse os princípios e métodos debaixo dos quais tal
serviço e adoração deveriam ser oferecidos.[20]

Assim, na Sagrada Escritura – a revelação a que se refere Hodge – é


ensinado que o culto ao Deus verdadeiro não deve ser maculado com o uso de
imagens de escultura (Ex 20.4-6); que tal culto se torna vão quando mesclado
com ensinamentos que não passam de regras inventadas por homens (Mt 15.8-9;
Cl 2.20-23); que o Deus trino é o alvo exclusivo da adoração, não podendo o
louvor dos adoradores ser dirigido a nenhum outro, seja homem, anjo ou
qualquer outra criatura (Mt 4.9-10; Rm 1.25; Cl 2.18; Ap 22.8-9); que o culto
cristão dispensa o valor dado a templos de madeira e pedra (Jo 4.21-23); que a
adoração precisa ser feita em espírito e em verdade (Jo 4.24); que o culto deve
ocorrer num ambiente marcado por decência e ordem (1Co 14.40); que o crente
que cultua deve ter a alma mergulhada em reverência e santo temor (Hb 12.28-
29); e que o culto genuíno tem de ser oferecido a Deus por meio de um
mediador, o qual é Jesus Cristo (Ef 2.18; 1Tm 2.5).
A totalidade dessas prescrições, como se vê, baseia-se na Sagrada
Escritura, sendo todas elas, quando postas em prática, demonstrações notáveis da
aplicação do Princípio Regulador do Culto. Resgatado, pois, esse princípio,
pouco espaço continuará a existir nas igrejas para desvios como a realização de
danças, as homenagens a este ou aquele indivíduo (pastores, líderes, políticos,
etc.), a espontaneidade desregrada, as apresentações humorísticas, os supostos
exorcismos e as inúmeras outras práticas carentes de amparo bíblico. Em lugar
dessas coisas, o culto a Deus, conforme já dito, será constituído essencialmente
de pregação bíblica, oração, louvor, dádivas e ordenanças.

A pregação

Nenhum crente instruído e maduro, do tipo “cristão velho”, duvida da


centralidade da pregação na vida da igreja de Deus. Na verdade, qualquer cristão
bem preparado considerará a proclamação pública da Palavra um sinal infalível
da verdadeira igreja, sendo por meio dela que as ovelhas são buscadas, curadas e
alimentadas enquanto os lobos são feridos, assustados e afugentados.
Infelizmente, porém, de todos os componentes do culto verdadeiro,
talvez esse seja o mais negligenciado no contexto do evangelicalismo moderno.
Grant Osborne observou com precisão:

A vida da igreja depende de ensino e pregação, e os


dois fluem um do outro – os sermões devem ensinar a
verdade teológica, e o ensino deve impactar vidas de uma
forma prática... Richard Lischer lamenta que a pregação
tenha sido excluída da teologia e que a teologia tenha sido
excluída da pregação. O resultado disso é a falta de
substância, a incoerência, a irrelevância e a perda de
autoridade na pregação moderna.[21]

Para evitar que as coisas permaneçam nesse estado lamentável, é


necessário que os pastores de hoje façam o que Martinho Lutero (1483-1546) fez
nos dias da Reforma Protestante, recuperando a doutrina paulina da
proclamação, elevando a pregação a um alto patamar dentro do culto cristão e
tornando-a novamente o núcleo da liturgia.
Como, porém, isso pode ser feito? Em primeiro lugar, o ministro de
Cristo deve desenvolver uma visão da pregação que, no mínimo, a reconheça
como um dos aspectos principais do trabalho pastoral (1Tm 4.13) e a conceba
como o veículo ordenado por Deus para a salvação dos perdidos (Rm 10.17; 1Co
1.21; Tg 1.18) e a instrução dos crentes (2Tm 4.2). A isso o pregador deve
acrescentar a noção de que quando proclama fielmente a Palavra, é como se
Deus falasse por seu intermédio, transformando-o num porta-voz e embaixador
do céu (2Co 5.20; 1Ts 2.13).
Munido dessas verdades, o pregador cuidará para que sua mensagem não
seja uma exposição acadêmica e estéril de filosofias humanas ou de teorias
seculares (1Co 2.4-7). Em vez disso, lerá e exporá os textos da Bíblia. Se pregar
regularmente numa igreja, poderá expor aos poucos livros bíblicos inteiros,
apontando o assunto sobre o qual cada passagem trata, explicando suas
dificuldades, destacando os ensinos doutrinários que dali emanam, ilustrando de
forma vívida e didática as lições principais, detectando o que o autor quis
produzir na mente e na vida dos leitores originais e, talvez o mais importante,
mostrando como o texto exposto pode ser aplicado à realidade dos crentes atuais,
mudando seu modo de pensar e de viver e transformando-os em pessoas dotadas
de caráter semelhante ao de Jesus.
Esse último aspecto é de importância vital porque não basta que a
pregação seja doutrinariamente sadia. Ela deve também ser prática e aplicável,
gerando benefícios palpáveis para o dia a dia dos santos.
Ao preparar um sermão assim, o mensageiro deve evitar a cópia
completa de outros pregadores, isto é, o tipo de homilia que apenas reproduz o
que diferentes teólogos disseram ou escreveram. Mesmo sendo necessário que o
pastor pesquise todas as fontes disponíveis, é também importante que ele mesmo
desenvolva, à luz do texto, suas próprias observações e reflexões, contando para
isso com o auxílio de Deus buscado em oração.
No tocante à forma como é transmitida, isto é, à sua entrega, a pregação
deve aflorar com linguagem clara para que a mensagem seja compreendida por
todos, desde o mais simples ao mais letrado. No dizer de Calvino, ao pregar, o
pastor deve ser “como um pai repartindo o pão em pequenos pedaços para
alimentar seus filhos”.[22]
Cuidando para que seja assim, o pregador não deve entediar os ouvintes
com elucubrações confusas, longos devaneios e argumentações complexas.
Deve, pois, evitar a mistura de assuntos, os rodeios que não chegam a lugar
nenhum, os apelos prolongados e insistentes que não produzem nada e o falar
monótono, moroso e soporífero, pois um dos erros mais trágicos do pregador é
tornar a Palavra de Deus enfadonha aos ouvintes. Aliás, sabendo disso, é
importante também que o mensageiro cristão tenha tato para perceber quando
está sendo cansativo e quando já passou da hora de se calar. Em tudo, pois, deve
cuidar para, como porta-voz de Deus, dar com entusiasmo, dinamismo, clareza e
sabedoria o recado que seu Senhor ordenou que desse.
Ainda no tocante à entrega, o discurso santo admite o uso do bom humor
e até da ironia (1Rs 18.27; 1Co 4.8-10). Contudo, não pode ocorrer do pregador
trazer sobre si a fama de palhaço. A figura do pastor bufão, que todos anelam
escutar para dar boas risadas, não é salutar, pois ao ministro de Cristo não é
adequada a tarefa de divertir os ouvintes ou de deleitá-los continuamente com
gracejos. Ainda que o humor inteligente e saudável tenha seu lugar na pregação
como um artifício de retórica, isso não pode em hipótese alguma ser dominante
durante a homilia. Muito menos deve o pregador fazer do púlpito palco para
piadas de duplo sentido (Ef 5.4). Aliás, nunca deve usar linguagem deselegante
em suas mensagens (1Tm 4.12; Tt 2.7-8), nem tampouco fazer do sermão um
veículo para atacar covardemente pessoas da igreja por quem nutre antipatia.
É necessário dizer, finalmente, que, enquanto prega, o arauto de Deus
não deve se preocupar se está agradando ou não os homens, mas sim se está
sendo leal àquele que o enviou. Isso não significa que o pregador tem licença
para ser agressivo ou grosseiro, mas sim que ele tem de evitar o discurso
político que foge do que a Bíblia diz com medo de incomodar os incrédulos e os
que vivem no erro (Gl 1.10). Expondo a concepção de Lutero a esse respeito,
Timothy George escreveu:

Alguns pregadores hesitam em proferir palavras duras


de julgamento, com medo de ofender os “grandes” que se
assentam em sua congregação. Tais pregadores são, na
realidade, mercenários que “tagarelam no púlpito”, mas
não proclamam a verdade, porque amam seus ventres e a
esta vida temporal mais do que a Cristo... “Deus nos proteja
dos pregadores que agradam a todos e desfrutam de um bom
testemunho de todos”, disse Lutero.[23]

O pregador que fugir do desejo de aprovação geral, for fiel ao ensino


bíblico e sábio na entrega de suas mensagens precisa saber que nem sempre será
ouvido pela maioria (Jo 12.37-38; Rm 10.16). De fato, muitos escutarão a
mensagem, mas isso não lhes será de proveito nenhum, pois não crerão nela (Hb
4.2) e não a colocarão em prática (Tg 1.22-24). Por isso, o pregador deve
lembrar que o sucesso do mensageiro de Cristo não pode ser medido pela
recepção que tem junto aos homens, mas sim pelo seu grau de fidelidade ao
Senhor que o enviou para fustigar o coração dos maus com o aguilhão do bem.

A oração

Outro componente do culto cristão é a oração (At 2.42). Esta, para ser
aceitável, deve ser feita em nome do Filho (Jo 14.13-14), com a assistência do
Espírito Santo (Rm 8.26) e na expectativa de que somente a vontade do Pai seja
feita (Mt 6.10; 1Jo 5.14). A oração pode ser dirigida a qualquer uma das três
pessoas da Santíssima Trindade,[24] mas nunca a santos ou anjos (Fp 4.6-7). Além
disso, o crente deve rogar por coisas lícitas (1Tm 2.1-2) e por pessoas vivas ou
que ainda hão de nascer, jamais orando pelos mortos (2Sm 12.16,21-23).
Observe-se ainda que, durante o culto público, a oração deve ser proferida numa
língua conhecida pela congregação (1Co 14.16-19).
Na Bíblia, pode-se encontrar pelo menos seis orientações básicas acerca
da oração que devem ser observadas pelos cristãos na prática de seus atos
cultuais.
Primeiro, as Escrituras ensinam que o crente deve orar com reverência.
Os cristãos têm uma percepção clara da majestade de Deus e da grandeza da sua
santidade. Conhecendo a Santa Palavra, eles sabem que o Senhor está envolto
em sublime esplendor, que ele habita na luz inacessível, que sua glória é
indizível e que sua soberania se estende sobre todo o universo e além (1Tm 6.15-
16; Jd 25). Por isso, jamais se referem ao Senhor como “o cara lá de cima”.
Tampouco falam com ele como quem fala com qualquer um. Ainda que tenham
em Deus um pai e amigo (Rm 8.15), sua intimidade com ele não lhes dá licença
para serem irreverentes (1Tm 2.8). Assim, ao orar, os crentes têm de usar uma
linguagem respeitosa e decente (Hb 12.28). Devem fazer da sua oração uma
oferta verbal pura e bonita ao Deus glorioso (Ap 5.8). Os piedosos personagens
bíblicos oravam assim e os cristãos devem imitá-los.
Em segundo lugar, o crente deve orar com humildade. A noção de se
aproximar de Deus com palavras de reivindicação, exigindo supostos direitos,
está bem longe do ensino cristão sobre a oração. Trata-se de uma noção nova,
inventada por homens de mente corrompida, que acham que podem se dirigir a
Deus como se fossem senhores dele. A verdade, porém, é que o homem é sempre
pequeno, pobre e incapaz diante daquele que é grande, rico e poderoso. Por isso,
quando oram, os crentes devem reconhecer sua miséria e necessidade e, numa
atitude súplice, implorar a ajuda imerecida de Deus (Sl 123.1-2), crendo que essa
ajuda virá somente se ele quiser e sabendo que sua vontade é soberana, não
tendo o Senhor obrigação nenhuma de fazer o que lhe é pedido (Mt 6.10; 2Co
12.7-9).
Em terceiro lugar, o crente tem de orar com contrição. O tempo de
oração, mesmo pública, deve ser como um vestíbulo dentro do qual o homem se
despe de qualquer noção de dignidade e glória pessoal. Toda confiança em si
mesmo, toda autoindulgência devem ser lançadas fora quando o cristão está
orando (Lc 18.10-14). No lugar dessas coisas, ele deve olhar para os trapos da
sua indignidade, da sua desídia, do seu pecado e da sua ingratidão (Ed 9.5-15; Is
64.6; Lm 3.40-42). Então, com o coração arrependido, deve pedir perdão e
restauração, sabendo que, como Juiz, Deus absolverá seus eleitos pelos méritos
de Cristo (1Jo 1.9) e, como Médico, ele os curará pelo poder da sua Palavra,
divino remédio (Lm 3.22-33).
Em quarto lugar, o crente deve orar com gratidão. É na oração que o
homem salvo expressa verbalmente seu louvor a Deus por tudo que ele é e por
tudo que ele tem feito. O crente reconhece em suas súplicas que nada do que o
Senhor lhe confere é devido ao seu merecimento. Ele se lembra que o ar que
respira, o alimento que come e as roupas que o cobrem são dádivas sublimes de
Deus que as derrama sobre as pessoas, apesar da sua pecaminosidade e vileza (Sl
147.7-19; At 17.25). Isso sem falar das coisas que ele concede sem que o homem
necessite delas, com o propósito doce e paterno de alegrá-lo e consolá-lo neste
mundo mau. É em face disso que o cristão remove de sua boca as reclamações e
o murmurar sombrio, dirigindo ao Senhor palavras de sincera gratidão e louvor
(Fp 4.6-7; Cl 3.15).
Em quinto lugar, o crente tem de orar com fé. Ninguém deve ser tolo ao
ponto de acreditar que pode “fazer a cabeça” de Deus, induzindo-o a realizar
alguma coisa (Is 46.10). Assim, em vez de orar crendo ingenuamente em sua
suposta capacidade de persuasão, o cristão deve fazer suas petições crendo no
amor e no poder de Deus, confiando que ele o ama como seu herdeiro especial e
que lhe fará sempre o melhor, mesmo quando seus olhos não forem capazes de
enxergar isso (Lc 11.11-13; Hb 4.16). O servo do Senhor deve crer que ele tem
poder para fazer muito mais do que lhe é pedido (Ef 3.20) e que efetivamente o
fará, caso isso se encaixe nos propósitos do seu amor infinito (1Jo 5.14-15).
Em sexto lugar, o crente deve orar com brevidade. A mente humana,
marcada pelo pecado, com muita facilidade se deixa levar durante as orações
pelo vento de pensamentos desconexos ou de preocupações terrenas. Por isso,
quando o cristão ora longamente, gera grande dificuldade de concentração tanto
para si mesmo (quando ora sozinho) como para seus irmãos (quando ora em
público). A forma de evitar isso é imitar o exemplo do Senhor (Mt 6.9-13) e
fazer uso da objetividade, abandonando jargões, frases prontas, grandes
formulações doutrinárias e exposições históricas, lembrando, inclusive, que
orações longas não são necessariamente sinais de espiritualidade (Lc 20.46-47).
O crente que ora deve, portanto, apresentar brevemente seus motivos, seus
louvores e sua confissão. Isso ajudará a evitar que longos rios de preces
terminem num oceano de confusões mentais.
Eis aí seis pequenas “dicas” de como orar de modo bíblico e proveitoso.
Que o crente se afaste, pois, das rezas supersticiosas, das orações de quebra de
maldição ensinadas por pastores feiticeiros e das palavras de ordem e de
reivindicação que os falsos mestres estimulam os incautos a dirigir ao Senhor.
Em vez disso, que ore como os santos de Deus mencionados na Bíblia. É o
exemplo deles e o ensino do Senhor que se devem seguir. O resto é invenção
danosa.

O louvor cantado

A arte cristã tem várias formas de expressão. A pintura, a escultura, o


teatro e a literatura são aspectos da realização artística por meio dos quais os
crentes de talento têm manifestado suas percepções acerca de Deus, de sua
Palavra e de sua obra de forma tocante, original e criativa.
Com efeito, o cristianismo, desde os seus primórdios, encontrou na arte
um aliado tanto para a tarefa de estímulo à devoção como para o trabalho de
comunicação da fé. Uma das evidências mais curiosas disso encontra-se nas
antigas catacumbas de Roma. Nas paredes subterrâneas desses imensos
cemitérios cristãos existem pinturas datadas entre os séculos 2 e 4, ilustrando
momentos da vida da igreja como o batismo e a eucaristia, ou destacando temas
ligados à fé como a figura do Bom Pastor ou a pombinha que foi solta por Noé e
que retornou à arca com um raminho de oliveira no bico, símbolo da alma
redimida chegando ao Paraíso.
Em que pese a importância de toda forma de arte para a comunicação da
fé, é na música que o talento artístico encontra sua melhor forma de expressão
cultual. Sim, pois por meio da música a igreja reunida entoa louvores e eleva o
coração a Deus em tocante adoração, proclamando os gloriosos atributos do
Senhor e anunciando seus feitos maravilhosos. Por isso, o louvor cantado tem
lugar de extrema importância no culto cristão, sendo, inclusive, estimulado nos
escritos do Novo Testamento (Ef 5.19; Cl 3.16).
Toda forma de arte, porém, para ser plenamente aceita e desfrutada pelo
crente deve apresentar três qualidades: excelência, isto é, não pode ser malfeita
ou isenta de qualquer demonstração real de talento; legitimidade, ou seja, não
pode ser um simples plágio de outras obras; e veracidade. Essa última qualidade
deve ser considerada a mais importante para o crente, pois significa que a obra
artística tem de dizer ou representar a verdade, jamais promovendo qualquer
forma de crença, ideia ou filosofia mentirosa.
Ora, essas três qualidades precisam ser levadas seriamente em conta pela
igreja na escolha dos hinos que decide cantar durante seus cultos. Caso contrário,
a santa adoração será gravemente ameaçada pela feiura, pelo ridículo e pela
mentira.
A prática do louvor na igreja de Deus deve também assumir um estilo
ordeiro e moderado. É aceitável o uso de qualquer instrumento musical,
mantendo sempre, contudo, o caráter equilibrado que é apropriado ao culto
prestado ao Deus soberano. Disso os adoradores cristãos jamais devem se
esquecer, a fim de que, em seus momentos de louvor, a igreja jamais deixe reinar
as desordens, as gritarias e as manifestações de histeria ou de descontrole
emocional tão comuns nas corrompidas igrejas modernas.
Aliás, nesse sentido, a Bíblia mostra que os homens que estiveram
realmente diante do Deus verdadeiro jamais sentiram qualquer desejo de pular,
rir, dançar ou gritar. Em vez disso, aqueles homens foram tocados por
sentimentos de profundo temor, reverência e contrição (Gn 28.16,17; Jó 42.5,6;
Is 6.1-5; Ez 1.28; Mt 17.1-6; Ap 1.17). Assim, na igreja de Deus, o louvor, bem
como cada momento do culto realizado na presença do Senhor, é marcado por
decência e ordem (1Co 14.40). Isso porque a preocupação de cada crente maduro
consiste em adorar a Deus “de modo aceitável, com reverência e temor, pois o
nosso Deus é um fogo consumidor” (Hb 12.28,29).
Em busca do equilíbrio, a igreja de Deus deve entoar tanto cânticos
avulsos como hinos dos hinários tradicionais, tais como o Cantor Cristão, o
Hinário para o Culto Cristão e a Harpa Cristã. Pelo fato de a igreja de Cristo
ser uma comunidade composta de pessoas de diversas idades, origens e
formações, é necessário estabelecer uma liturgia equilibrada, na qual todos os
crentes se sintam bem.
No Brasil, uma tradição evangélica antiga considera o bater palmas
pouco recomendável durante o cântico dos hinos. As palmas, porém, não devem
ser absolutamente proibidas, uma vez que não há amparo bíblico para essa
restrição. Contudo, deve-se cuidar para que o uso constante e desordenado dessa
forma de participação congregacional não conflite com a reverência que deve
existir diante do Deus santo e majestoso.
Ademais, conforme dito, a igreja do Senhor é uma comunidade mista,
composta por pessoas de diferentes percepções, havendo, inclusive, aquelas que
se escandalizam com a prática de bater palmas. Essas pessoas, como preciosas
ovelhas de Cristo, têm de ser respeitadas em seus sentimentos e reações, pois,
segundo o ensino apostólico, age contra o amor aquele que faz deliberadamente
qualquer coisa que deixe um irmão entristecido ou incomodado (1Co 8.12-13).
O levantar as mãos durante os cânticos não é prática comum nas igrejas
mais tradicionais. Não obstante esse gesto esteja presente na Bíblia associado ao
juramento (Gn 14.22,23; Dn 12.7; Ap 10.5,6), à oração (Sl 28.2; 77.2; 88.9;
141.2; Lm 2.19; 3.41,42; 1Tm 2.8) e ao louvor (Ne 8.6; Sl 63.4; 134.2), a igreja
zelosa deverá ter cautela ao usá-lo. Isso porque a boa igreja precisa preservar os
traços de sua identidade, mostrando-se diferente das inúmeras seitas atuais que
se autodenominam evangélicas. Nessas seitas, os frequentadores ficam quase o
tempo todo de mãos levantadas sem ter a menor noção do significado disso ou
movidos por ideias supersticiosas, sendo necessário que a igreja verdadeira evite
ser confundida com movimentos assim.
É sabido que levantar as mãos ao Senhor é o mesmo que dizer: “Pai, olhe
minhas mãos; elas estão limpas de pecado. Também nelas não há nenhum
recurso que eu possa usar na difícil situação em que me encontro. Elas estão
totalmente vazias! Por isso, ouve a minha súplica!”. Sabe-se também que
levantar as mãos é uma expressão física que simboliza o desejo de alcançar a
Deus (Sl 143.6), o seu perdão, o seu favor ou os seus ensinos (Sl 119.48).
Conhecendo os sentidos desse gesto, nada há que impeça o crente de
manifestá-lo em suas orações ou expressões de louvor. Tão somente os membros
da igreja séria devem ser orientados a que sejam criteriosos e sensíveis durante o
culto público a fim de que, com tato em bom senso, evitem dúvidas e confusões
ao adotar gestos assim.
Considerando tudo isso, é fácil concluir que, em seu louvor cantado, a
prática da igreja de Deus deve revelar profunda preocupação em manter bem
nítidas as distinções entre o culto dos cristãos sérios, os ritmos do mundo
enlouquecido e as sandices das seitas ignorantes, oferecendo sempre a Deus um
cântico digno de sua majestade, marcado por beleza, arte, verdade e amor aos
irmãos presentes.

Os chamados ‘momentos de louvor’

As décadas de 1970 e 1980 viram surgir no meio evangélico uma


teologia acerca do louvor absolutamente estranha aos ensinos da Bíblia. Essa
teologia que ainda vigora dentro das igrejas em geral atribui ao louvor um poder
exacerbado, afirmando que essa prática, quando realizada de forma vitoriosa,
maciça, jubilosa e contínua, cria um ambiente que “libera o poder de Deus”,
afugenta Satanás ou o impede de agir, fazendo, afinal, com que todo tipo de mal
se desvaneça e o crente obtenha grandes conquistas e livramentos.
Fundamentadas nessa teologia, afirmações ousadas passaram a ser feitas
acerca do louvor, enaltecendo-o como um instrumento infalível por meio do qual
o crente pode obter uma fé robusta, uma vida de oração triunfante, um
crescimento espiritual mais acelerado, um lar feliz e até a cura para a depressão,
o estresse e inúmeras doenças mentais.[25]
Os reflexos práticos desses ensinos sobre a liturgia cristã foram,
basicamente, dois: primeiro, ocorreu a redução da importância e do lugar da
pregação no culto; em segundo lugar, houve a criação de equipes responsáveis
por promover períodos especiais de louvor dinâmico e entusiasmado durante as
reuniões da igreja.
Foi assim, pois, que surgiu na ordem de culto das comunidades cristãs de
todas as vertentes evangélicas o “momento de louvor”, dirigido geralmente por
um grupo de jovens que, via de regra, atua num dado momento da programação
promovendo uma espécie de culto dentro do culto. Em algumas igrejas, os
membros da equipe responsável por isso são chamados de levitas, sendo assim
colocados numa categoria especial de adoradores, algo totalmente estranho ao
culto cristão.
No instante, pois, em que esse grupo vai à frente é como se um parêntese
se abrisse na sequência que está sendo seguida e uma liturgia diferente e mais
eficaz tomasse então lugar, com músicas, leituras bíblicas, orações e pequenas
pregações feitas entre um cântico e outro.
Quando, enfim, esse “momento especial” termina, retorna-se à sequência
litúrgica antes interrompida, fecha-se assim o parêntese, e os componentes do
grupo de louvor voltam para os seus lugares, muitas vezes do lado de fora da
igreja, onde, em rodinhas animadas de bate-papo, aguardam a pregação e tudo o
mais acabar. No fim das contas, a impressão que tudo isso passa é que o ápice do
culto é o tal momento de louvor, sendo tudo o mais apenas um apêndice
indesejável, quando não desnecessário.
Tanto por causa de seus pressupostos doutrinários como de seus efeitos
danosos, esse modelo deve ser desencorajado ou mesmo extinto da igreja de
Deus. Uma maneira de fazer isso é por meio da alteração dessa dinâmica,
redirecionando o trabalho dos componentes dos grupos de louvor.[26]
Como? Os líderes da igreja devem trabalhar para integrar o trabalho
desses irmãos ao culto como um todo, fazendo com que não mais realizem o
chamado “momento de louvor”, mas, sendo o culto um evento unificado de
adoração, dirijam cânticos avulsos em momentos diversos da liturgia.
Devem ainda lhes dizer, se for o caso, que não são levitas, mas
adoradores no mesmo nível dos demais e, enfim, instruí-los a não fazer outras
leituras bíblicas, outros períodos de oração ou outras pregações (por mais curtas
que sejam) enquanto estiverem à frente, restringindo-se a dirigir os cânticos nos
instantes em que a programação normal assim requerer.
Isso, ainda que possa gerar certas reclamações e descontentamentos, fará
desaparecer a natureza parentética e “especial” dos “momentos de louvor” e o
culto voltará a ser caracterizado pela unidade saudável que reflete a igualdade de
cada adorador e a idêntica importância de cada elemento cultual.

As dádivas durante o ofertório

Como será visto adiante (Capítulo 6), os crentes têm o dever de oferecer
os recursos que a igreja usará para funcionar bem e realizar suas metas. Ora, o
culto cristão fornece o contexto em que esse ato de entrega deve ocorrer. Por
isso, existe espaço na liturgia cristã para o ofertório, devendo esse aspecto da
adoração ser regido também por princípios que emanam da Palavra de Deus.
O primeiro princípio a ser observado no momento do ofertório é o
princípio da exclusividade. Com base nesse princípio afirma-se que as ofertas
dedicadas ao serviço de Deus devem vir somente das mãos do seu povo
redimido. Um exemplo claro disso se encontra em 3João 7. Esse versículo
afirma que os evangelistas itinerantes que haviam sido enviados pela igreja em
que João estava (provavelmente em Éfeso) realizaram sua jornada missionária
“nada recebendo dos gentios”, ou seja, dos pagãos incrédulos. Eles agiram assim
porque, em seus dias, os falsos mestres obtinham dinheiro fácil com a venda de
um evangelho distorcido (2Co 2.17; 4.2; 1Tm 6.5) e aqueles mensageiros de
Deus não queriam ser confundidos com os tais obreiros fraudulentos (2Co
11.13).
Hoje, o mesmo problema permanece, havendo pregadores da mentira que
tiram dinheiro dos incrédulos com mensagens vazias. Assim, para evitar que a
igreja de Deus seja confundida com um covil onde esses ladrões se reúnem,
deve-se acolher a mesma prática sensata dos antigos evangelistas de Éfeso,
recusando qualquer recurso que não venha das mãos de pessoas convertidas.
As ofertas de incrédulos também devem ser recusadas porque, tomados
muitas vezes por uma visão comercial das bênçãos de Deus, os homens perdidos
acreditam que podem comprar o favor do Senhor oferecendo-lhe alguns
trocados, como se o Dono do universo precisasse de dinheiro. Essa atitude é tão
blasfema e tão contrária à natureza santa, autossuficiente e graciosa de Deus que
é imperativo que seja desencorajada durante o momento de ofertório, a fim de
que o culto não seja maculado por impulsos tão perversos.
O segundo princípio a ser observado no momento do ofertório é o
princípio da obediência, pelo qual se estabelece que as ofertas aceitáveis a Deus
são aquelas que vêm de vidas santas, marcadas por arrependimento, retidão e
busca sincera da vontade do Senhor. A base bíblica desse princípio pode ser
encontrada já no Livro de Gênesis, onde a oferta de Caim é rejeitada porque seu
procedimento não era reto diante de Deus (Gn 4.3-7).
Outros textos fortalecem a importância do princípio da obediência,
mostrando que as dádivas que vêm de pessoas perversas, hipócritas, apóstatas e
mundanas são vistas por Deus como verdadeira abominação (1Sm 15.22; Pv
15.8; 21.27). Aliás, deve-se destacar que não são somente as ofertas de pessoas
assim que Deus rejeita, mas sim cada gesto cultual que elas realizam (Is 1.11-
15). Assim, quando for iniciar o momento de ofertório, o dirigente deve alertar
os adoradores acerca dessas coisas, a fim de que haja arrependimento no coração
de todos e as dádivas oferecidas agradem realmente a Deus (Sl 51.17).
Finalmente, durante o momento de ofertório, os cristãos devem observar
o princípio da responsabilidade pelo qual cada crente deve contribuir não com
qualquer igreja, mas com aquela de que participa, seja como membro, seja como
assíduo frequentador, sendo essa a prática reinante em todo o Novo Testamento.
É claro que o membro de uma determinada igreja é livre para,
eventualmente, dar ofertas em outra, caso queira. Isso, porém não pode ser feito
em prejuízo da igreja de que faz parte, igreja essa pela qual é responsável e que
conta com sua cooperação. Cada ovelha de Cristo deve, pois, saber que seu
compromisso maior é com o aprisco de fé e adoração em que o Supremo Pastor
a colocou, sendo livre para dar ofertas para qualquer agência do Reino, mas sem
deixar de lado a contribuição de que sua própria igreja necessita.

A bênção apostólica

Um costume bastante antigo e comum nas igrejas evangélicas é encerrar


o culto com uma oração especial feita pelo pastor denominada “bênção
apostólica”. Essa oração consiste basicamente da repetição do texto de
2Coríntios 13.13 (ou 14, na NVI) enunciada pelo ministro com o braço estendido
sobre a congregação.
A maioria dos crentes tende a crer que a bênção apostólica só pode ser
impetrada por um pastor devidamente ordenado, chegando alguns a acreditar que
ela possui uma força maior do que as orações comuns feitas pelos cristãos em
geral.
Essas noções, porém, não passam de pequenas superstições e desvios que
persistem há várias gerações no meio evangélico, mesmo nas igrejas mais
zelosas. De fato, não existe nada nas Escrituras que conceda aos pastores o
direito exclusivo de pronunciar esta ou aquela oração. Tampouco existe qualquer
base para a crença de que uma oração feita por um ministro com as mãos
estendidas tenha efeitos mais eficazes sobre o povo.
Na verdade, ao que parece, essas crenças decorrem de um erro muito
comum no contexto cristão, a saber, a ideia de que o pastor é um sacerdote que
ministra ao povo leigo. Essa ideia tem duas fontes: a teologia católica romana
que confere aos seus “pastores” o status de sacerdotes detentores de
prerrogativas espirituais não concedidas ao cristão comum; e a visão da igreja
como um novo Israel (com leis, rituais e sacerdotes) – concepção que surge
como um desdobramento natural da teologia aliancista.[27]
De acordo com essa visão, uma vez que o pastor é um sacerdote, somente
ele está autorizado a realizar os “rituais” do culto cristão, sendo a bênção
apostólica apenas mais um deles.
Ora, a noção que define o pastor como um sacerdote que ministra a
leigos é absolutamente oposta a uma das colunas teológicas centrais do Novo
Testamento, a saber, a doutrina do sacerdócio universal de todos os crentes.
Essa doutrina tem sólido amparo bíblico (1Pe 2.5,9; Ap 1.5-6; 5.9-10) e
foi um dos temas principais pregados pelos reformadores do século 16, os quais
viam no ensino acerca do sacerdócio exclusivo dos padres uma das ferramentas
mais nocivas de opressão do povo.
Considerando que a prática da impetração da bênção apostólica é um
resquício do sacerdotalismo católico, além de um desdobramento talvez
involuntário da concepção equivocada da igreja como um novo Israel, duas
alternativas se abrem para a igreja de Deus no tocante a esse assunto: a primeira
é permitir que todo e qualquer crente impetre a bênção apostólica antes de
despedir o povo, preservando a igualdade; a segunda é rejeitar de vez o hábito de
encerrar o culto com a bênção apostólica pronunciada pelo pastor com
imposição de mãos.
Salvo melhor juízo, a segunda opção é a melhor, posto que dá cabo
definitivo de qualquer sombra sacerdotalista que certamente se insinua nesse
antigo costume.

Demônios no culto?

Uma das obras de Satanás e seus anjos que mais escravizam e destroem
vidas é o fenômeno da possessão demoníaca. Em face dessa aflição, duas
correntes de opinião se formam, ambas marcadas por extremismo injustificado.
Na primeira corrente, encontram-se os que em tudo veem os “chifres do diabo”.
Basta alguém ficar irado, ter um mal-estar físico, discordar do que disse o pastor,
ou simplesmente tossir, e logo dizem que a pessoa está endemoninhada.
No outro extremo encontram-se os que, mesmo diante das mais claras
evidências de possessão demoníaca, se mantêm céticos, afirmando que o que
estão testemunhando é mero resultado da bebida ou de algum problema mental.
O cristão que pretende pensar e agir de conformidade com a Palavra de
Deus deve se situar de modo equilibrado entre esses dois extremos. Deve aceitar
que a possessão demoníaca é um fenômeno que realmente existe, pois são
inúmeros os textos bíblicos que o atestam (Mt 8.28; 9.32; 12.22; 15.22; Mc 1.23;
5.2; Lc 8.2; At 5.16). Contudo, deve também ter bom senso para discernir se está
diante de alguém realmente endemoninhado ou de uma vítima de outro problema
qualquer.
Nem sempre é fácil fazer distinção. Tanto mais quando se sabe que é
possível diferentes problemas serem patentes, ao mesmo tempo, numa pessoa só.
De fato, é comum a mesma pessoa estar endemoninhada e embriagada, ou
endemoninhada e com problemas mentais, ou até endemoninhada, embriagada e
com problemas mentais, o que torna difícil, se não impossível, saber onde
terminam as evidências de um problema e começam as do outro.
De qualquer modo, parece ser ponto pacífico que a mudança de voz, a
força física descomunal (Mc 5.2-4), a alteração notável do semblante, a imitação
de movimentos e sons de animais, o olhar carregado de ódio assassino e
selvagem (Mt 8.28), a fúria incontrolável diante das verdades da Bíblia e o dizer
ou fazer coisas que o indivíduo em seu estado normal não saberia dizer ou fazer
(Mc 1.23,24) são evidências claras de possessão demoníaca. Diante de fatores
desse tipo, portanto, o crente deve considerar seriamente a hipótese de estar
lidando com um endemoninhado.
O modo de agir do cristão em face de um problema de tão elevado grau
de gravidade deve levar em conta alguns critérios, especialmente se a
manifestação demoníaca ocorrer durante um culto. Aqui também é a Palavra do
Senhor que fornecerá orientação para o povo de Deus não ser enganado nem cair
nos mesmos erros de certas seitas modernas que fazem do endemoninhado o
centro de um espetáculo, agradando com isso somente aos próprios demônios.
Estes se deleitam em ser o alvo das atenções e zombam de todos quando fingem
obedecer aos ministros que, com seus shows de exorcismo, só lhes satisfazem as
vontades e propósitos.
Para evitar tudo isso, deve o cristão e, principalmente o pastor, ter os
seguintes cuidados:

1. Não permitir que o problema ocupe o lugar central do culto. Satanás


tem como maior objetivo usurpar o lugar de Deus. Esse objetivo fez
que ele fosse expulso do céu (Is 14.12-15). É natural, portanto, que,
juntamente com seus anjos, queira ocupar o lugar central no culto,
lugar este que pertence unicamente a Deus. Sabendo disso, a igreja
bíblica jamais deve cair em tão sutil armadilha (2Co 2.11).
Portanto, ocorrendo alguma manifestação demoníaca durante as
reuniões da igreja, a vítima da possessão deve ser imediatamente
levada para outro recinto e o culto deverá seguir normalmente. O
menor número possível de pessoas deverá deixar a adoração cultual
para atender ao endemoninhado. Geralmente, três ou quatro crentes
são suficientes para socorrer o indivíduo que sofre. O restante dos
irmãos permanecerá firme no propósito de adorar a Deus. Se não agir
assim, a igreja “fará o jogo” do diabo, e ele logrará sucesso em
desviar todos dos objetivos principais do culto: o aprendizado, a
adoração, o louvor e o serviço.
Além disso, tangidos por sentimentos de amor e compaixão, os crentes
devem lembrar que, nessas ocasiões, quem está diante deles não é só
um demônio. Ali está também (e principalmente) um indivíduo
escravizado pelo diabo, sofrendo terrivelmente e sendo por ele
humilhado. Levando isso em conta, é preciso poupar essas tristes
vítimas de humilhação e vergonha ainda maiores, evitando expô-las ao
ridículo e jamais usar sua desgraça para se afirmar diante dos outros ou
granjear admiração e aplauso.
2. Verificar se o problema é realmente possessão demoníaca. Como já
dito, é possível que o problema manifesto não seja de origem
espiritual. Ataques de epilepsia, crises de histeria, doenças mentais,
influência de drogas, síndromes e embriaguez são alguns exemplos de
casos que podem confundir. O crente que considera essas hipóteses
não é alguém que duvida das coisas espirituais. Antes, é pessoa que dá
mostras de zelo, estando preocupado em não usar em vão o nome de
Deus e as armas espirituais que ele colocou à disposição dos santos.
Por isso, diante da dúvida quanto à natureza do que está sendo
enfrentado, é muito útil entrevistar os familiares ou outras pessoas que
acompanham o suposto endemoninhado a fim de obter informações
esclarecedoras acerca dos vícios e do estado de saúde dele. Muitas
vezes, indivíduos com sinais de perturbação não precisam de um
pastor, mas sim de um médico.

3. Evitar ferimentos. O endemoninhado geralmente é lançado


violentamente ao solo e, muitas vezes, tenta, de todos os modos,
machucar o próprio corpo (Mc 5.5; 9.17-22). Também ataca as pessoas
ao seu redor, produzindo com isso sérios ferimentos. Por isso, é
preciso deter o indivíduo nessas suas arremetidas. Em casos extremos
pode ser preciso até mesmo amarrá-lo. A aplicação de sedativos, desde
que sob orientação médica, também pode ser medida necessária e útil.
Isso porque, usando uma analogia não muito feliz, os demônios
controlam o corpo de um homem do mesmo modo que um cavaleiro
controla o animal em que monta. Assim, se o corpo do homem estiver
inerte, nada poderão fazer os demônios, do mesmo modo que o
cavaleiro nada poderá fazer com um cavalo desmaiado.

4. Não dialogar longamente com o demônio. A prática de entrevistar o


demônio, desafiá-lo, ordenar que se ajoelhe ou faça outras coisas é
uma das maiores evidências de maldade, ignorância e orgulho
presentes em certas pessoas que se dizem aptas para lidar com
possessão demoníaca. Com isso, geralmente, tenta-se conquistar o
respeito que, pelo testemunho de vida, talvez seja difícil obter.
Assim, é comum se ver líderes religiosos demonstrando suas supostas
habilidades em lidar com maus espíritos, enquanto a multidão sem
instrução se revolve em gritos, vaias, risos e aplausos. Nesses
momentos, contudo, quem mais ri e aplaude é o próprio demônio que,
fingindo-se dominado e impotente, alegra-se vitorioso por expor sua
vítima, imagem e semelhança de Deus, a tantos vexames; por desviar o
povo do interesse por igrejas sérias; e por construir no coração dos
falsos pastores o império do orgulho.
Na Bíblia nenhum servo de Deus dá demasiada atenção aos demônios.
Jesus nunca ficou a dialogar longamente com eles (Mt 8.28-32; Mc
1.23-26) e o apóstolo Paulo, ao ser incomodado por uma jovem
endemoninhada, só lhe deu atenção depois de muitos dias, limitando-
se, ainda assim, a somente ordenar que o mau espírito se retirasse dela
(At 16.16-18).
Que os crentes verdadeiros sigam esses exemplos! Em vez de ficarem
a ouvir durante horas as podridões que emanam da mente dos espíritos
infernais, trabalhem depressa para que, em nome de Cristo, eles se
retirem. Maior parcela de tempo, então, seja gasta na evangelização da
vítima agora liberta, pois a possessão demoníaca é evidência de que a
vítima não é crente (Ef 2.2).[28]

5. Não acreditar que o êxito na expulsão de demônios é, por si só,


evidência de maturidade espiritual. Há quem pense que expulsar
demônios é um dom especial dado por Deus a alguns escolhidos dele.
Outros acreditam que o sucesso no exorcismo é prova cabal de que um
indivíduo é maduro espiritualmente ou detentor de poder sobrenatural
dado por Deus. Pensando assim, muitos pastores ficam preocupados
com sua reputação quando estão diante de algum endemoninhado. E
mesmo os crentes em geral põem em dúvida o grau de espiritualidade
dos ministros que, eventualmente, não logram êxito em libertar um
possesso.
É verdade que a falta de fé muitas vezes impede que a vitória nessas
lutas venha na mesma hora (Mt 17.19,20). Porém, o sucesso na
expulsão de demônios não é, por si só, evidência de que o pastor é um
supercrente. Isso porque a Bíblia diz que até os incrédulos podem
expulsar demônios! Evidentemente, a probabilidade de eles passarem
por vexame nessas ocasiões será muito grande (At 19.13-16), mas
mesmo assim é inegável que pessoas não salvas também podem
praticar o exorcismo com sucesso (Mt 7.22-23).
De fato, em certas ocasiões, os demônios obedecem às ordens de
incrédulos provavelmente com o fim de enganá-los criando neles a
falsa sensação de que estão bem espiritualmente. Por isso, o êxito
nessas batalhas não pode servir de base para avaliar a condição
espiritual de alguém. Aliás, muitas vezes, o crente pode se ver diante
de casos de possessão demoníaca que hão de requerer tempo e
esforços muito intensos para serem solucionados. Nessa luta, nem
sempre a vitória se obtém num só dia (Mc 9.28-29).

Concluindo, deve ser dito que os anjos de Satanás jamais se sentirão


atraídos por um ambiente em que reinem a santidade, o louvor e a pregação da
cruz. É mais natural que se manifestem em lugares que lhes sejam mais
condizentes com o caráter, onde impere a soberba, a mentira, a fraude, a má-fé, a
perversão das Escrituras, a superstição, a incredulidade, a desordem e a podridão
moral. Por isso, ainda que possíveis, as manifestações de demônios na igreja não
devem ser vistas como coisa normal. Esses casos poderão ocorrer só mui
raramente e, uma vez constatados, devem estimular a igreja à autoanálise.
Quão infeliz deverá se sentir a igreja em que Satanás se manifestar
ousada e constantemente durante os seus cultos! Deverá rever sua conduta, sua
pureza e sua fidelidade a Deus, avaliando-se a si mesma em busca de algum
caminho mau que deva ser abandonado, pois o contexto em que o Espírito de
Deus verdadeiramente reina e atua de modo soberano e absoluto não serve ao
mesmo tempo de palco para as apresentações do inimigo.
O que se deve esperar é que tais apresentações ocorram nos ambientes
podres para os quais os anjos do inferno sempre se sentirão atraídos, cientes de
que ali serão recebidos como personagens centrais de odiáveis espetáculos.
Questões comuns

1) Quantas horas deve durar um culto e o que deve ocupar maior parcela de
tempo ao longo dessa reunião?
No passado, especialmente entre os puritanos, os cultos podiam chegar a seis ou
nove horas! Hoje, por causa das mudanças nos costumes e no estilo de vida, as
pessoas têm dificuldade para permanecer tanto tempo numa reunião. Por isso, o
melhor é que o culto dure, no máximo, duas horas. Desse período, a maior
parcela de tempo (quarenta minutos a uma hora) deve ser reservada para a
pregação que é o veículo mais eficaz para a edificação dos santos e a
proclamação da fé.

2) No culto, pode haver espaço para homenagens?


Nunca, em hipótese alguma! O culto deve ser centrado exclusivamente no Deus
Trino. Somente ele deve ser focalizado durante a adoração cristã. Homenagens,
como as que são feitas no Dia das Mães, no Dia dos Pais ou no Dia do Pastor,
devem ser realizadas numa reunião à parte.

3) Muitos cultos têm coreografias e danças. Isso é certo?


A liturgia eclesiástica, conforme encontrada no Novo Testamento, não tem
espaço para essas coisas. O Antigo Testamento fala sobre adorar a Deus com
danças (Sl 149.3) e fornece alguns exemplos disso (Êx 15.20; 2Sm 6.14-16).
Porém, mesmo ali, a dança jamais está associada à liturgia levítica, ou seja, ao
culto formal instituído por Deus, mas sim a eventos festivos ou a atos
espontâneos e informais de alegria e de gratidão. Além disso, em nossa
sociedade, a dança tem conotações bem distintas das que tinha nos tempos
bíblicos (alegria e louvor), tendo como alvo promover exibições artísticas,
muitas vezes até com apelos sensuais. Nada disso se harmoniza com a natureza
do culto cristão.
Capítulo 3 – AS ORDENANÇAS
O capítulo anterior tratou do culto cristão, sendo ali destacado, logo no
início, que as ordenanças são elementos que compõem os atos litúrgicos da
comunidade da fé.
De fato, a observância das ordenanças estabelecidas por Cristo, ou seja, o
batismo e a ceia, é um traço distintivo da congregação do Senhor.
Infelizmente, porém, ao longo dos séculos, muitos equívocos macularam
também esses elementos tão sublimes da vida eclesiástica. Concepções
supersticiosas, entendimentos heréticos e práticas jamais ensinadas nos escritos
apostólicos geraram e têm gerado intrigas, produziram rompimentos entre
lideranças cristãs, provocaram zombaria por parte dos incrédulos e macularam a
igreja de Deus de diversas e inusitadas maneiras.
Considere-se especificamente a Ceia do Senhor. É difícil imaginar outro
assunto que tenha sido objeto de tantos debates e divisões dentro da igreja desde
os tempos da Reforma. Aliás, está tristemente marcada na história do
protestantismo a inimizade surgida entre Lutero e Zuínglio por causa do sentido
da frase “isto é o meu corpo”, presente em Mateus 26.26. Tratava-se de uma
sinédoque (Lutero) ou de uma metáfora (Zuínglio)? O impasse acerca dessa
questão discutida calorosamente no Colóquio de Marburgo (1529) foi suficiente
para que a igreja reformada suíça e a igreja luterana rompessem entre si e
seguissem direções distintas!
Mesmo, porém, envolvendo temas que suscitam controvérsias tão densas,
a questão das ordenanças deve ocupar a mente do povo santo que precisa ajustar
seu entendimento àquilo que o Senhor revelou em sua Palavra. E não apenas
isso. É necessário também que, como resultado do bom entendimento daquilo
que a Bíblia realmente diz sobre o batismo e a ceia, a igreja de Deus observe
importantes e salutares orientações práticas. Este capítulo pretende oferecer
alguma ajuda nessa direção.

O batismo: significado e método

O verbo “batizar”, na língua em que foi escrito o Novo Testamento


(grego koinê), significa imergir. De fato, a imersão, era a forma de batismo
adotada pelos apóstolos e pelos primeiros cristãos. Aliás, é bom dizer desde já
que a alegação de que no Novo Testamento o batismo por aspersão é visto em
Atos 9.18; 10.47-48 e 16.33 não se baseia em nenhuma evidência textual ou
histórica, mas somente nas suposições de alguns intérpretes que imaginam ter
sido difícil realizar a imersão nas ocasiões descritas nesses textos. Essas
suposições, contudo, não levam em conta a natureza abreviada ou resumida da
narrativa nem a consequente implicação lógica de que as pessoas mencionadas
nos textos de Atos se deslocaram para um lugar onde houvesse água suficiente
para imergir os novos crentes.
A convicção acerca da imersão como prática dos cristãos primitivos
baseia-se em ampla evidência neotestamentária (Mt 3.16; Mc 1.5, 9-11; Jo 3.23;
At 8.36-39). Essa evidência, porém, é fortalecida por fatores históricos de peso
incontestável. Por exemplo: a literatura produzida nos tempos da igreja antiga
mostra, mais especificamente no Didaquê, o uso da imersão. Ali fica claro que a
aspersão era admitida somente quando não havia água suficiente.[29]
É também curioso observar que as catedrais europeias construídas na
Idade Média têm ainda hoje marcado no piso do prédio do batistério o local em
que antigamente ficava o “tanque” usado para a imersão. Diga-se ainda que o
próprio reformador João Calvino, praticante do batismo por aspersão, escreveu
em suas Institutas: “… na verdade, o próprio termo batizar significa imergir, e é
patente haver sido observado na igreja antiga o rito de imergir”.[30]
O fato de a imersão ser, inegavelmente, a forma de batismo adotada pelos
primeiros cristãos não implica, necessariamente, na rejeição do batismo por
aspersão como prática herética. Isso porque, à luz do Novo Testamento, o
batismo cristão deve atingir quatro propósitos fundamentais, sendo certo que a
maior parte deles é alcançada também pelo rito de aspergir.
O primeiro propósito do batismo é proclamativo. Quando é batizado, o
crente, sendo indagado pelo ministrante acerca do seu relacionamento com Deus,
anuncia publicamente que fez as pazes com ele, por meio da obra realizada por
Cristo (1Pe 3.21). Esse alvo é perfeitamente alcançado, independentemente da
forma de batismo adotada.
O batismo tem também um propósito identificador, apontando para a
associação do batizando com Cristo e seus seguidores. A Bíblia ensina que os
israelitas libertos do Egito foram batizados na nuvem e no mar com respeito a
Moisés. Isso significa que, ao se colocar sob a nuvem e ao passar pelo mar, cada
israelita se identificou com Moisés ou, mais especificamente, com o povo liberto
por ele (1Co 10.1-2). Da mesma forma, o crente, quando se submete ao batismo,
apresenta-se como alguém que faz parte da comunidade de redimidos por Cristo,
identificando-se com esse grupo que se “revestiu” do Senhor (Gl 3.27).
De fato, Cristo disse que, por meio do batismo, o homem demonstra que
se tornou um discípulo dele (Mt 28.19). Obviamente, não sendo dependente da
forma, esse ideal se perfaz não só no rito de imergir, mas também por meio da
aspersão da água sobre o crente.
O terceiro propósito do batismo é simbólico e consiste de prover uma
alegoria da lavagem espiritual que beneficia todo aquele que recebeu o Salvador.
Com efeito, o homem que é justificado pela fé em Cristo é lavado dos seus
pecados (1Co 6.11). Esse é o lavar regenerador e renovador do Espírito Santo de
que fala Paulo em Tito 3.5. Ora, o batismo é uma forma de simbolizar essa
realidade (At 22.16) e tanto o batismo por imersão como o realizado pela
aspersão suprem muito bem esse objetivo (Hb 10.22).
Finalmente, o batismo tem um propósito dramatizador, posto que na sua
realização são encenadas a morte do crente para o pecado e a sua ressurreição
para uma nova vida. A conexão entre o batismo e o processo abrangente da
morte, sepultamento e ressurreição do crente é vista em Romanos 6.4 e
Colossenses 2.12. Nesse aspecto, a imersão supre perfeitamente o ideal de
encenar o que aconteceu com o homem que recebeu o perdão de Deus. É, de
fato, nítido o significado de cada gesto: o mergulhar na água evoca a morte do
crente para o pecado e seu sepultamento com Cristo; o levantar-se da água
denota sua ressurreição para uma vida nova sob a influência do Espírito Santo.
É precisamente na realização desse quarto objetivo que o batismo por
aspersão se mostra ineficaz. Ora, para atingir o propósito dramatizador, a forma
de batismo é essencial, impondo-se a necessidade da imersão. Isso porque,
obviamente, o processo de morte, sepultamento e ressurreição não pode ser
adequadamente simbolizado por meio da mera aspersão de água sobre o
candidato.
Assim, não é correto dizer que o batismo por aspersão é herético.
Também peca pelo exagero quem afirma que o crente aspergido jamais foi
batizado. O que deve ser afirmado é que o crente batizado por aspersão cumpriu
sim a ordenança de Jesus. Porém, o fez de modo irregular, não realizando um
dos propósitos centrais dela, ou seja, a encenação do processo
morte/sepultamento/ressurreição. Em suma: seu batismo foi existente, mas não
foi regular. Naturalmente, o único modo de suprir essa irregularidade é submeter
o crente a um novo batismo, no qual seja observado o rito da imersão.

O batismo infantil

A prática do batismo infantil foi adotada muito cedo pela igreja cristã. De
fato, já no século 2 há evidências de que os cristãos batizavam seus bebês, uma
vez que criam no batismo como uma forma de remissão de pecados, capaz de
garantir a salvação das vítimas de morte prematura.
Esse chocante desvio do ensino apostólico é encontrado poucas décadas
depois de concluído o Novo Testamento. Alguns documentos do século 2 que o
atestam são a Epistola de Barnabé (11:1,11) e O pastor de Hermas (11:5; 93:2-
4). Justino de Roma (Primeira apologia 66:1) e Teófilo de Antioquia (A Autólico
2:16) também estão entre os escritores do século 2 que defendem o batismo
como forma de remissão de pecados.
É verdade que Tertuliano de Cartago († c. 220) se insurgiu contra essa
prática. Porém, ele o fez porque entendia que o arrependimento para perdão de
pecados mortais só poderia ocorrer uma vez depois do batismo.[31] Segundo
Tertuliano, esse fato deixava os que eram batizados muito cedo em situação
perigosa, sujeitos a perder irremediavelmente e para sempre o favor de Deus na
fase adulta. Para ele, esse era o motivo pelo qual o batismo devia ser protelado
até que a pessoa se sentisse mais distante do perigo de cometer pecados mortais
como o adultério, o assassinato ou a apostasia.[32]
Os reformadores do século 16 também foram favoráveis ao batismo
infantil, sendo o pastor anabatista Menno Simons uma exceção. Timothy George
explica por quê:

Em 20 de março de 1531, na cidade de Leeuwarden,


capital da província holandesa da Frísia, um alfaiate
itinerante de nome Sicke Freerks foi decapitado porque
havia sido batizado pela segunda vez. Mais tarde, Menno
comentou: “Soou muito estranhamente em meus ouvidos o
fato de que alguém falasse sobre um segundo batismo” ... A
execução brutal de Freerks deve ter deixado uma impressão
marcante em Menno. De qualquer modo, ele começou a
investigar o fundamento do batismo infantil. Ele examinou
os argumentos de Lutero, Bucer, Zuínglio e Bullinger, mas
achou que em todos faltava algo. Ele consultou seu colega
sacerdote em Pingjum; leu os pais da igreja. Por fim, Menno
pesquisou diligentemente as Escrituras e considerou
seriamente a questão, mas não pôde encontrar nada sobre o
batismo infantil. Ele chegou à conclusão de que “todos
estavam equivocados sobre o batismo infantil”.[33]
Se, por um lado, há ampla evidência histórica em prol do pedobatismo
entre os pais da igreja e os reformadores, de outro, como Menno Simons
descobriu, não há nenhum fundamento bíblico que favoreça essa prática. A
despeito disso, os expoentes do batismo infantil apresentam basicamente três
argumentos em sua defesa.
O primeiro desses argumentos (e talvez o mais popular) é construído a
partir da história narrada em Atos 16.27-34, referente à conversão do carcereiro
de Filipos e seus familiares. Segundo o texto, depois que ouviu a Palavra do
Senhor, o carcereiro foi batizado, ele e todos os da sua casa (At 16.33). No
entender dos pedobatistas, certamente havia crianças bem pequenas naquela
família, sendo todas incluídas no batismo realizado na ocasião.
É difícil, porém, levar esse argumento a sério, posto que se sustenta
unicamente sobre o frágil alicerce da imaginação e da criatividade dos seus
proponentes. Para desmantelá-lo, basta lembrar o fato óbvio de que nem todas as
famílias têm bebês em casa.
A defesa do batismo infantil tem, na verdade, colunas de apoio muito
mais sólidas do que o argumento exposto acima. Seus proponentes mais capazes
expõem razões que merecem consideração séria e análise melhor elaborada.
É o caso do argumento relativo ao Pacto. Os pedobatistas entendem que,
assim como os bebês dos israelitas eram circuncidados pelo fato de seus pais
pertencerem ao pacto entre Deus e a nação judaica (Gn 17.10-14), da mesma
forma os bebês dos crentes devem ser batizados, uma vez que seus pais, desde o
dia em que se converteram, tornaram-se participantes do mesmo pacto por
intermédio da fé em Cristo (Gl 3.7, 29).
Essa concepção ainda admite expressamente que os filhos de quem
participa do pacto também pertencem eles próprios ao pacto, estando aí a razão
principal para que se sujeitem ao símbolo desse mesmo pacto. O teólogo
reformado Louis Berkhof (1873-1957) diz expressamente: “Os filhos dos crentes
são batizados porque estão no pacto, independentemente da questão se já são ou
não regenerados.”[34]
Levando esse raciocínio às últimas consequências, muitos de seus
expoentes têm insistido, inclusive, no direito que os bebês, filhos de pais crentes,
têm de participar até mesmo da ceia (!). Se essas crianças realmente fazem parte
da aliança, dizem, sendo por isso batizadas, por que impedi-las de participar da
eucaristia que, como o batismo, é também um símbolo pactual?
Retomando a defesa do batismo infantil, os pedobatistas afirmam que no
passado o símbolo do pacto foi a circuncisão, mas, como ela foi anulada (Gl 5.2,
6; 6.15), o batismo a substituiu. Assim, de acordo com essa visão, o batismo
infantil é o correspondente cristão da circuncisão judaica.
Essa conexão entre circuncisão e batismo é defendida especialmente com
base em Colossenses 2.11-12. Nesse texto, dizem, circuncisão e batismo estão
ligados, ambos representando o fim da velha vida de pecado, havendo, assim,
forte associação entre os dois ritos.[35]
Em seu desdobramento final, toda essa argumentação conclui o seguinte:
se Paulo iguala a circuncisão e o batismo e se o primeiro era aplicado aos bebês,
nenhum absurdo há em aplicar também o batismo aos recém-nascidos.
Outro intrigante argumento em prol do batismo infantil é baseado em
Romanos 4.11. Esse argumento é construído assim: em Romanos 4.11, Paulo
define a circuncisão como “selo da justiça da fé”. Ora, no Antigo Testamento
Deus ordenou que esse “selo da justiça da fé” fosse aplicado a bebês que não
tinham fé (Lv 12.3). Logo, não é errado gravar com um selo de fé as crianças
que ainda não creem. Condenar essa prática seria reprovar o que o próprio Deus
ordenou! Assim, considerando que o batismo também é um selo de fé, nada há
de errado em aplicá-lo ao bebê que ainda não crê. Se o próprio Deus mandou que
isso fosse feito, quem somos nós, dizem, para afirmar que é preciso crer antes de
receber o selo da fé?[36]
Esse conjunto de argumentos, ainda que muito bem elaborado, está
sujeito a sérios questionamentos. Primeiro: a noção de que a participação dos
pais crentes no Novo Pacto autoriza o batismo de seus filhos, da mesma forma
que a participação dos pais israelitas no Velho Pacto impunha-lhes o dever de
circuncidar seus bebês merece grave objeção. Isso porque o bebê israelita não
era circuncidado porque seus pais eram israelitas. Ele era circuncidado porque,
sendo filho de judeus, ele próprio era israelita. A causa direta da circuncisão do
bebê judeu não estava nos pais, mas no próprio bebê, no fato de ele mesmo ser
um judeu.
Ora, não é esse o caso dos filhos dos crentes. Estes não nascem crentes,
inexistindo neles próprios qualquer razão para que recebam o batismo. De fato,
se o filho do israelita nascia israelita e, por isso, era circuncidado, o filho do
cristão, por sua vez, não nasce cristão, não havendo razão nenhuma para ser
batizado.
Há também uma grave deficiência no ensino de que o batismo é um
substituto da circuncisão. Na verdade, absolutamente nada na Bíblia corrobora
essa concepção. Mesmo o texto de Colossenses 2.11-12 está mui longe de
confirmá-la. Aliás, uma simples leitura dessa passagem deixará o leitor surpreso,
questionando onde é possível encontrar ali qualquer base para o ensino de que o
batismo ocupa hoje o lugar da circuncisão.
A eventual surpresa do leitor será fácil de ser compreendida. Isso porque
Colossenses 2.11-12 fala claramente da circuncisão do coração e do batismo do
crente na morte de Cristo, ou seja, trata de realidades espirituais e não de ritos
externos. Ademais, a passagem aponta essas realidades espirituais como
fenômenos distintos e não como se o segundo fosse substituto do primeiro.
Com efeito, em Colossenses 2.11-12, Paulo explica que o crente foi
circuncidado por Cristo (Rm 2.28-29). Isso significa, conforme o próprio v. 11
esclarece, que sua natureza pecaminosa foi despojada e enfraquecida (Rm 6.6).
Em seguida, o apóstolo afirma que esse milagre aconteceu quando o crente foi
batizado na morte de Cristo (v. 12), isto é, quando, pela fé, ele se uniu ao
Salvador, morrendo para o pecado e ressuscitando para uma vida nova (Rm 6.3-
4).
Assim, Paulo trata nessa passagem de duas realidades ligadas, porém
bastante diferentes: a participação do crente na morte de Cristo (o que é
chamado de batismo) e o amortecimento de sua natureza pecaminosa (a
circuncisão do coração) decorrente daquela maravilhosa participação. Esse e
somente esse é o ensino claro da passagem, estando mui longe de servir de base
para a noção de que o batismo é a versão cristã da circuncisão judaica.
Consequentemente, batizar bebês sob tal pretexto é prática carente de
fundamento sólido.
Outro argumento contrário ao ensino da conexão entre batismo e
circuncisão pode ser construído a partir da exposição que Pedro fez, no Concílio
de Jerusalém, acerca de seu ministério junto aos gentios (At 15.6-11).
O relato de Atos mostra como Pedro foi chamado para pregar o
evangelho aos gentios na casa de Cornélio (At 10.1-22) e como todos ali se
converteram a Cristo, sendo, em seguida, batizados (At 10.44-48).
Ocorreu, porém, que, mais tarde, após a Primeira Viagem Missionária de
Paulo, alguns indivíduos procedentes da Judeia começaram a ensinar que os
gentios convertidos deviam ser circuncidados (At 15.1). Isso deu ensejo a que os
apóstolos e presbíteros de Jerusalém, além de Paulo, Barnabé e outros irmãos de
Antioquia, se reunissem para tratar da questão (At 15.2-6). De um lado, Pedro,
Paulo e Barnabé defendiam a desnecessidade da circuncisão (At 15.2,10). De
outro, os que pertenciam à seita dos fariseus exigiam que os gentios convertidos
fossem submetidos ao rito judaico (At 15.5).
No fim, o parecer de Tiago foi decisivo e a igreja entendeu que os crentes
gentios não precisavam se submeter à lei de Moisés, especialmente no tocante à
circuncisão (At 15.13-29).
O que chama a atenção no curso dos debates em Jerusalém é a preleção
de Pedro contra a necessidade da circuncisão (At 15.6-11). Ele havia batizado
todos aqueles gentios que tinham se convertido na casa de Cornélio (At 10.47-
48). Ora, se para ele o batismo correspondesse à circuncisão exigida pelos seus
oponentes, por que não fez essa alegação em seu discurso? Por que Pedro não
disse: “Meus irmãos, os gentios foram circuncidados sim, mas pelo novo método
que é o batismo!”. Nenhum outro momento da história bíblica seria mais
apropriado para enunciar esse ensino e calar de vez a boca dos cristãos
judaizantes.
No entanto, Pedro sequer menciona ter batizado os gentios! Paulo
também silencia sobre isso em seu discurso (At 15.12), levando a crer que a
ideia de que o batismo é um substituto da circuncisão jamais passou pela mente
dos apóstolos, sendo apenas fruto da criatividade de teólogos de séculos
posteriores.
Quanto ao argumento construído sobre Romanos 4.11, em que a
circuncisão é chamada de “selo da justiça da fé”, este também é facilmente
desfeito. Conforme visto, seus proponentes afirmam que a circuncisão judaica,
um selo da justiça da fé, devia ser aplicada a bebês sem fé, de modo que,
segundo eles, nada pode haver de errado em fazer o mesmo com o batismo,
outro selo da justiça da fé.
Essa linha de raciocínio, contudo, está equivocada, pois, ao chamar a
circuncisão de selo da justiça da fé, Paulo se refere à circuncisão específica de
Abraão. Tanto isso é verdade que, se o texto em análise for lido com atenção,
fatalmente saltará aos olhos que a circuncisão ali mencionada é vista como um
selo da justiça procedente da fé que Abraão teve quando ainda incircunciso.
A circuncisão isoladamente considerada, portanto, não era um selo de fé,
mas apenas uma marca distintiva no corpo dos que participavam da Antiga
Aliança. Para receber um selo de fé, é preciso ter fé. Foi por isso que quando o
eunuco etíope perguntou a Filipe se podia ser batizado, o evangelista respondeu:
“É lícito, se crês de todo o coração” (At 8.37).
Desse modo, batizar bebês permanece uma prática sem qualquer base nas
Escrituras. Na verdade, apenas crianças que já compreenderam o evangelho e
aceitaram sua mensagem podem ser batizadas. Isso porque antes de ser batizada
a pessoa deve se arrepender e crer em Cristo (At 2.38, 41-42; 8.37).
Ademais, se, conforme visto, o batismo é um gesto proclamativo,
identificador, simbólico e dramatizador, só estão aptos a se sujeitar a ele quem
sinceramente proclama ter uma boa consciência para com Deus, quem se
identifica com a comunidade de discípulos de Jesus, quem pode afirmar
simbolicamente que foi lavado pelo Espírito Santo e quem de fato morreu para o
pecado e ressuscitou para uma nova vida, de maneira que tem o direito e o dever
de encenar essas realidades por meio do rito batismal.

Regeneração batismal

Finalizando esse assunto, é necessário frisar que a doutrina verdadeira


não ensina que o batismo seja fator necessário à santificação ou requisito
fundamental para que o crente receba bênçãos espirituais de Deus. Também não
é correto crer que o cumprimento dessa ordenança seja essencial à salvação,
posto que esta é obtida unicamente pela fé (Rm 1.17; 5.1; Ef 2.8).
Os textos que os defensores da regeneração batismal geralmente evocam
em defesa de suas concepções são Marcos 16.16, Romanos 6.4, Colossenses
2.12 e 1Pedro 3.21.
Quanto ao texto de Marcos, além de ser objeto de sérios questionamentos
no campo da crítica textual, conforme exposto por todos os comentaristas
bíblicos, seu enunciado não afirma, de modo algum, a salvação por meio da fé
somada ao batismo. Antes, fala acerca do tipo de fé que realmente salva, ou seja,
uma fé comprometida, que leva quem a possui a se submeter ao batismo. É como
se o texto dissesse: “Quem crer ao ponto de ser batizado será salvo”. Isso porque
pode existir uma fé descomprometida e covarde que não salva ninguém (Jo
12.42-43).
As demais passagens mencionadas anteriormente associam a salvação ao
batismo por uma razão muito simples. Nos dias do Novo Testamento, o batismo
era realizado no momento da conversão. Sendo assim, eventos simultâneos,
conversão e batismo muitas vezes eram vistos como uma só e mesma realidade.
Por isso, algumas vezes os escritores bíblicos falavam do batismo para se referir
à conversão da pessoa. A concomitância dos eventos permitia essa linguagem.
Contudo, não havia qualquer dúvida na mente deles de que, se alguém cresse e
morresse antes de ser batizado, isso em nada afetaria sua salvação.
Para provar isso, basta recordar que quando Jesus foi crucificado, os dois
ladrões também condenados escarneciam e zombavam do Senhor (Mt 27.43-44).
Um deles, porém, logo foi tocado pelo arrependimento e suplicou por
misericórdia (Lc 23.39-42). Não teve ele tempo, após a conversão, de ser
batizado. Na verdade, não teve tempo de fazer nada além de crer. Contudo, o que
o Senhor lhe disse? “Em verdade, em verdade te digo que hoje estarás comigo
no paraíso” (Lc 23.43).
Os escritos de Paulo também mostram que o batismo não é essencial para
a salvação. Diz ele: “Dou graças a Deus porque a nenhum de vós batizei, exceto
Crispo e Gaio…” (1Co 1.14). E ao concluir o assunto de que está tratando,
afirma: “Porque não me enviou Cristo para batizar, mas para pregar o
evangelho…” (1Co 1.17).
Ora, é evidente que se o batismo fosse fundamental à salvação, o
apóstolo Paulo não se referiria a essa ordenança nesses termos. Antes, lamentaria
ter batizado poucos e tomaria providências para batizar o maior número possível
de pessoas.
Uma ressalva, contudo, é importante aqui. O fato de não ser essencial à
salvação não torna o batismo uma prática inútil. Ele foi ordenado por Jesus (Mt
28.19) e serve como testemunho público que o crente dá de sua fé no Salvador;
um testemunho dramatizado, em que não só sua lavagem espiritual, mas também
sua morte, seu sepultamento para o pecado e sua ressurreição para uma nova
vida são vividamente retratados, marcando de maneira indelével a mente e o
coração de todos os que assistem a ele.

A Ceia do Senhor: concepções divergentes

A afirmação “isto é o meu corpo”, feita por Jesus pouco antes da sua
paixão (Mt 26.26), é uma das frases que mais têm originado debates ao longo da
história da igreja. Conforme dito anteriormente, na época da Reforma
Protestante a falta de acordo acerca do seu real significado foi a causa do
rompimento das relações entre Lutero e Zuínglio, após o malfadado Colóquio de
Marburgo (1529)[37] e ainda hoje o meio cristão permanece dividido acerca do
modo como a ceia do Senhor deve ser entendida, tanto no tocante à sua natureza
como no que diz respeito aos efeitos que produz sobre os que participam dela.
Num dos extremos da discussão estão os que entendem a frase de Jesus
de modo figurado, dizendo que se trata apenas de uma metáfora, como se o
Mestre tivesse dito simplesmente “isto representa o meu corpo”. No outro
extremo do debate, há intérpretes que propõem uma visão absolutamente literal,
ensinando que os elementos da ceia são, de fato, o corpo e o sangue reais de
Cristo, num sentido que encerra a sua mais completa essência. Entre esses dois
polos há interpretações intermediárias, propostas por teólogos que tentam
compor uma opinião mais equilibrada, fazendo uso, inclusive, de argumentos
usados pelos dois extremos.
Basicamente, quatro são as concepções acerca da ceia do Senhor
dominantes do meio cristão: transubstanciação, consubstanciação, presença
espiritual e memorial.
A doutrina da transubstanciação é esposada pela Igreja Católica
Apostólica Romana[38], sendo um dos temas centrais de sua teologia e prática
litúrgica.[39] De acordo com essa visão, a ceia deve ser ministrada ao povo num
só elemento, a hóstia, nome dado a um pequeno pão sem fermento, de formato
arredondado.[40] Esse elemento, dizem, após ser consagrado pelo sacerdote
ministrante, passa por uma transformação em sua substância (daí o termo
transubstanciação), tornando-se literalmente carne, sangue, ossos, unhas e
cabelos de Cristo.
Os católicos entendem que essa transformação não é visível porque
ocorre apenas na substância do pão e não nos seus acidentes. Assim, conforme
alegam, o elemento eucarístico, ainda que apresente em sua forma e aparência os
atributos do pão, é, na verdade, em sua essência, carne humana!
Uma das implicações da doutrina da transubstanciação é que sempre que
a eucaristia é celebrada no culto católico (e isso acontece em todas as missas), o
sacrifício de Cristo se repete.[41] Portanto, se três missas forem realizadas num só
domingo numa mesma catedral, naquele dia o sacrifício de Cristo se repetirá ali
três vezes, o mesmo ocorrendo em outras igrejas romanistas ao redor do mundo.
É essa suposta repetição contínua do sacrifício do Senhor que dá o motivo pelo
qual as igrejas católicas celebram sua ceia num altar e não numa mesa como
fazem as igrejas evangélicas.
A doutrina da transubstanciação também explica porque os padres, pelo
menos há alguns anos, orientavam os fiéis a não morder a hóstia, mas sim deixá-
la dissolver-se na boca. Essa era uma forma de tentar infundir nas pessoas um
entendimento maior acerca do suposto mistério presente no “corpo eucarístico de
Cristo”.
Essa doutrina é ainda o fundamento pelo qual os sacerdotes católicos
tendem a fazer o “sepultamento” de hóstias consagradas que sobram após
encerrada a missa. No seu entender, jogá-las fora seria sacrilégio cometido
contra o próprio corpo de Cristo e armazená-las não seria o modo digno de lidar
com um cadáver tão santo.
Os católicos acreditam que é somente graças ao milagre da
transubstanciação que o homem pode efetivamente conhecer Cristo como o pão
da vida e se alimentar dele para viver eternamente (Jo 6.48-58). Segundo eles,
comer a hóstia consagrada ajudará o fiel a conquistar a salvação, sendo, pois,
imensos os benefícios espirituais que emanam da eucaristia.[42]
Evidentemente, não há como sustentar essa concepção da ceia, nem
racional nem tampouco biblicamente. Primeiro porque não faz sentido propor a
hipótese de uma mudança de substância sem uma consequente alteração nos
acidentes, pois os acidentes de determinada substância pertencem
necessariamente a ela. Assim, não há como um pedaço de pão deixar de ser pão
e continuar com as células do pão. Negar isso seria contrariar as mais
elementares noções de lógica.
O absurdo dessa concepção também é percebido quando se leva em conta
a própria história da instituição da ceia. Ora, é óbvio que, quando o Senhor disse
“isto é o meu corpo”, não estava segurando um pedaço dele próprio. Com efeito,
naquele momento o pão estava nas mãos de Jesus, não era uma extensão de seus
dedos.
A doutrina da transubstanciação, com todos os seus desdobramentos,
também não leva em conta ensinos fundamentais da Palavra de Deus. As
Escrituras ensinam que o sacrifício de Cristo ocorreu uma vez por todas, não
havendo necessidade de que se repita (Rm 6.9-10; Hb 7.27; 9.12, 26, 28; 10.10;
1Pe 3.18).
Ademais, quando o Senhor afirmou ser o pão da vida, sendo necessário
comer o seu corpo e beber o seu sangue para ser salvo (Jo 6.48-58), não
pretendia com isso ensinar algum tipo de antropofagia, como entenderam seus
ouvintes naquela ocasião (Jo 6.52).
O que Jesus quis ensinar no discurso registrado em João 6 deve ser
entendido à luz do versículo 35. Esse versículo revela a que Jesus se referiu
quando fez alusão aos atos de comer sua carne e beber seu sangue. De fato, João
6.35 apresenta Jesus como o Pão da Vida, destacando que quem vai a ele se
alimenta, e quem crê nele mata a sede. Logo, comer a carne de Cristo é buscá-lo;
enquanto beber seu sangue é crer nele. Alimenta-se, pois, do Senhor, o indivíduo
que o busca e deposita nele sua confiança para ser salvo. Este faz de Cristo sua
comida e sua bebida, jamais tendo fome ou sede outra vez.
Deve-se destacar, finalmente, que a doutrina da transubstanciação é
antibíblica porque conduz sutilmente a uma forma grosseira de idolatria. De fato,
crendo que a hóstia é o próprio Cristo, o católico a cultua como Deus e deposita
nela sua esperança de salvação. Esse erro chocante foi denunciado vividamente
pelo já citado pastor anabatista Menno Simons (1496-1561), ex-sacerdote
católico que se converteu a Cristo e se tornou um dos grandes pregadores do
século 16, tendo também fundado a Igreja Menonita:

Sim, eu disse a uma criatura débil, perecível, que veio


da terra, que foi quebrada num moinho, que foi cozida no
fogo, que foi mastigada por meus dentes e digerida por meu
estômago, a saber, a um bocado de pão: “Tu me salvaste”.
[...] Ó Deus, assim eu, pecador miserável, brinquei com a
prostituta da Babilônia [isto é, a Igreja Católica] por muitos
anos.[43]

A doutrina da transubstanciação tem sua irmã gêmea no conceito de


consubstanciação. Esse segundo modo de interpretar a ceia do Senhor foi
proposto inicialmente por Martinho Lutero (1483-1546). Ele rejeitou a
transubstanciação por considerá-la uma doutrina irracional e também condenou
o ensino de que o sacrifício de Cristo se repete na eucaristia. Porém, Lutero não
via possibilidade de interpretar a fórmula “isto é o meu corpo” de outro modo
que não fosse o literal. Por isso, propôs que mesmo o pão continuando a ser pão
e o vinho continuando a ser vinho, a presença física de Cristo é real na ceia,
sendo seu corpo recebido por todos os participantes da mesa do Senhor.
Para Lutero, portanto, o corpo de Cristo estava nos elementos e com os
elementos, sem que o pão e o vinho se transformassem em carne e sangue.
Assim, por propor que na ceia a substância dos elementos é recebida pelo crente
junto com a substância do corpo físico do Senhor, a doutrina ensinada pelo
reformador recebeu posteriormente o nome de consubstanciação.
A concepção de Martinho Lutero acerca da ceia estava atrelada à sua
proposta acerca da ubiquidade do corpo de Cristo. Na verdade, a doutrina da
consubstanciação depende exclusivamente desse conceito. Ubiquidade significa
onipresença. Lutero ensinava, pois, que o corpo físico de Cristo tinha atributos
divinos, podendo estar em vários lugares ao mesmo tempo e não somente
sentado à direita do Pai nas alturas. Daí a possibilidade de estar junto aos
elementos da ceia e servir de alimento para os cristãos.
O maior oponente de Lutero nesse assunto foi o reformador suíço Ulrico
Zuínglio (1484-1531). Ele combateu a consubstanciação dizendo que os
benefícios da ceia eram puramente espirituais, não havendo sentido nem
necessidade de qualquer presença corporal de Cristo no pão e no vinho.
Além disso, Zuínglio rejeitou o conceito da ubiquidade exposto por
Lutero, afirmando que a encarnação não ocorreu de tal modo que a natureza
humana de Cristo, em seu aspecto corporal, se tornasse onipresente. Com base
em João 6.63, ele frisou que “a carne para nada aproveita” e insistiu que a
fórmula “isto é o meu corpo” devia ser interpretada como uma metáfora.
Zuínglio estava certo em tudo isso. De fato, nunca existiu qualquer
fundamento racional ou bíblico para a doutrina da consubstanciação, sendo
evidente que Lutero a elaborou por estar ainda fortemente ligado a tradições
romanistas, sendo-lhe difícil romper radicalmente com elas, depois de ter vivido
tanto tempo sob o papismo. Aliás, vários argumentos expostos anteriormente e
usados contra a crença católica acerca da transubstanciação podem ser usados
também contra as noções de Lutero, o que comprova o notável grau de
semelhança entre as duas posições.
A despeito disso, a doutrina da consubstanciação seguiu seu curso dentro
do luteranismo. Ela apareceu na primeira edição da Confissão de Augsburgo
(1530), escrita por Filipe Melanchton[44], foi claramente afirmada na Fórmula da
Concórdia (1577), um documento produzido para por fim às controvérsias que
haviam surgido dentro do luteranismo[45], e continua sendo defendida pelas
igrejas luteranas ao redor do mundo, por meio da confiante afirmação de que a
ceia do Senhor “é o verdadeiro corpo e sangue de nosso Senhor Jesus Cristo para
ser comido e bebido por nós, cristãos, sob o pão e o vinho”.[46]
A concepção acerca da ceia conhecida como presença espiritual foi
ensinada pelo grande reformador francês João Calvino (1509-1564).[47] Seu
conceito acerca da mesa do Senhor é que não se trata de um ritual em que o
corpo de Cristo está presente de alguma maneira física, como ensinam os
católicos e os luteranos. Para Calvino, a ceia é um sacramento em que a carne e
o sangue do Salvador estão espiritualmente presentes, sendo exibidos nos
elementos, de modo que os que participam do pão e do cálice alimentam-se em
espírito do próprio Senhor.[48] É nesse sentido que Calvino afirma que, ao receber
o símbolo do corpo, o crente deve confiar que a ele está sendo dado também o
próprio corpo.[49]
Na concepção calvinista, o sacrifício de Cristo não se repete durante a
eucaristia, mas os benefícios de sua morte substitutiva (redenção, justiça,
santificação e vida eterna) são renovados e reforçados em prol dos comungantes.
Isso, porém, só acontece com quem come e bebe com fé. Os que o fazem na
incredulidade não recebem tais benefícios. Antes, são condenados por sua
indigna aproximação da mesa do Senhor.
É importante frisar que a doutrina da presença espiritual esposada por
Calvino tem relação direta com seu conceito de sacramento. Segundo ele, há
somente dois sacramentos: o batismo e a ceia. Em ambos, Cristo e seus
benefícios são representados. Porém, o valor desses sinais supera o simples
objetivo simbólico. Neles há uma relação espiritual entre o símbolo e a coisa
simbolizada, de tal forma que os efeitos do que é simbolizado são comunicados
ao símbolo, graças à atuação do Espírito Santo e à virtude da palavra que
instituiu os sacramentos.[50]
É, pois, por causa dessa visão que, no tocante à ceia, Calvino insiste em
afirmar que o corpo de Cristo está fisicamente presente no céu, mas, por meio do
poder do Espírito, durante a eucaristia os cristãos participam da sua carne e do
seu sangue, unindo-se desse modo ao Senhor e recebendo seus benefícios.
Ele diz expressamente: “Sustentamos que Cristo desce até nós, tanto pelo
símbolo exterior, quanto por seu Espírito, para que nossas almas
verdadeiramente vivifique com a substância de sua carne e de seu sangue.”[51]
Uma vez que, segundo o reformador, isso ocorre pelo misterioso poder (arcana
virtus) do Espírito, esse ensino é também chamado de “virtualismo”.
A doutrina da presença espiritual de Cristo na ceia foi recepcionada pela
Confissão de Fé de Westminster (1646), um dos documentos mais importantes
da fé reformada, e se constitui num dos ensinos distintivos das igrejas
presbiterianas.
Ao longo dos séculos, essa doutrina tem se imposto com notável força,
não com base em sutilezas gramaticais que negam o sentido figurado da frase
“isto é o meu corpo”, mas especialmente pela ênfase no controvertido enunciado
de Paulo em 1Coríntios 10:16: “Porventura, o cálice da bênção que abençoamos
não é a comunhão do sangue de Cristo? O pão que partimos não é a comunhão
do corpo de Cristo?”. É com o sentido dessas palavras que os oponentes da
doutrina da presença espiritual são desafiados a lidar.
Esse desafio, porém, talvez não seja tão difícil. Na verdade, a leitura de
1Coríntios 10.16 colocada sob a luz do contexto que abrange os vv. 14-22
mostra que, certamente, Paulo não fala da presença espiritual de Cristo nos
elementos da ceia, mas sim da comunhão especial que o crente tem com o
próprio Senhor durante a celebração dessa ordenança.
Na verdade, o próprio v. 16 fala de “comunhão” e não de alimentação ou
sustento. Ademais, nos vv. 20-21 fica claro que a preocupação de Paulo se
centrava no campo da associação. Com efeito, ele adverte os crentes no tocante à
ligação que eles teriam com os demônios caso participassem de festas pagãs.
Isso, segundo o apóstolo, seria inaceitável, uma vez que, na ceia, se uniam a
Cristo, não havendo sentido em terem comunhão com o Senhor e também com
os espíritos malignos.
Assim, 1Coríntios 10.16 não ensina que Cristo está espiritualmente
presente nos elementos da ceia. Antes, revela que, ao participar da mesa do
Senhor, o crente se associa com ele de forma especial, nutrindo, no momento da
celebração, uma comunhão mais íntima com o Senhor, presente sim de forma
intensa durante o rito, mas não nos elementos do rito.
Conforme visto de início, a quarta concepção acerca da ceia é chamada
memorial. Essa é a visão segundo a qual a ceia é apenas uma ordenança do
Senhor, útil para trazer à memória dos crentes o sacrifício que Cristo realizou no
Calvário. Geralmente, essa doutrina é atribuída ao já mencionado reformador
Ulrico Zuínglio. De fato, Zuínglio rejeitou qualquer noção sobre a presença de
Cristo nos elementos eucarísticos. Para ele, comer a carne do Senhor significava
crer nele, de modo que a expressão “isto é o meu corpo” devia ser entendida
como uma metáfora.
Deve-se dizer, contudo, que não é correto atribuir a Zuínglio uma
concepção memorialista extrema. Isso porque esse reformador via a ceia não
apenas como um momento de recordação, alegria e gratidão, mas também como
um sinal mediante o qual, como no batismo, o crente comprova sua fé e mostra
para a igreja que pertence a Cristo.
Dentre as quatro visões sobre a ceia do Senhor, a que a concebe
basicamente como um memorial parece ser a que melhor se harmoniza com o
ensino das Escrituras. O próprio Senhor, ao instituir essa ordenança, afirmou:
“Fazei isso, em memória de mim” (1Co 11.23-25).
O memorialismo bíblico, porém, não é do tipo que despreza as realidades
espirituais ligadas à ceia. Na verdade, um enunciado que leve realmente em
conta a totalidade da evidência neotestamentária deve afirmar que a ceia do
Senhor é um memorial que recorda o sacrifício de Cristo, memorial este
celebrado em meio a uma realidade espiritual que transcende a experiência
regular da igreja, à medida que proporciona aos crentes uma cumplicidade mais
plena com o próprio Senhor presente de forma intensa no momento da
celebração.
Ora, é evidente que desfrutar de uma cerimônia assim provocará
transformações nos participantes, mais do que meras recordações.
Ceia aberta, restrita e ultrarrestrita

No meio evangélico tradicional, três são as condutas geralmente adotadas


pelos pastores no que diz respeito à participação da ceia do Senhor. Uma delas é
a “ceia restrita”, da qual só podem participar os membros de igrejas da mesma
denominação. Os pastores que adotam esse procedimento geralmente dizem,
antes da distribuição dos elementos, que só é permitida a participação da ceia de
pessoas que pertençam a uma igreja “da mesma fé e ordem”.
Há também a “ceia ultrarrestrita”, da qual só podem participar os
membros da igreja local, ou seja, a igreja em que a ceia é ministrada. Esse
critério é bem mais raro do que o mencionado anteriormente.
Finalmente há a “ceia aberta”. Esta é oferecida a todos os crentes,
independentemente da denominação a que pertençam. Esse é o critério correto,
devendo ser acolhido, uma vez que a Palavra do Senhor não oferece nenhum
respaldo para a adoção da ceia restrita nem da ultrarrestrita.
Com efeito, nada dizem as Escrituras sobre a necessidade de pertencer a
esta ou àquela denominação (como todos sabem, na época em que o Novo
Testamento foi escrito, sequer existiam denominações) para poder participar da
ceia. Nem tampouco dizem algo sobre ter de ser membro da igreja local em que
o memorial é celebrado.
Na verdade, segundo o ensino de Paulo, para participar da ceia do Senhor
basta que o crente o faça dignamente (1Co 11.27), o que, pelo contexto da
passagem, significa primariamente comer e beber sem nutrir rancores,
desrespeito ou desprezo pelos irmãos (1Co 11.17-22, 33-34).
Além do mais, o texto de 1Coríntios 11 diz que é o próprio participante
quem deve avaliar se preenche ou não esse requisito em sua vida (1Co 11.28). Se
não o fizer, correrá o risco de comer e beber “juízo para si” (1Co 11.29). De fato,
na ceia, o participante (o que inclui o pastor e os diáconos) deve avaliar-se a si
mesmo, e não os outros. E se tiver de proibir alguém de comer e beber, que
proíba a si mesmo, caso, depois de se autoavaliar, perceber que corre o risco de
comer e beber indignamente.
Deve-se lembrar que o próprio Jesus não proibiu Judas de participar da
ceia quando a instituiu. Em Lucas 22.21, após instituir essa maravilhosa
ordenança (v.19-20), o Mestre disse: “Todavia, a mão do traidor está comigo à
mesa”. Mesmo sabendo que Judas era ladrão (Jo 12.6), traidor, controlado e
possuído pelo diabo (Jo 13.2,27), Jesus não o expulsou da mesa, mostrando que
quem tem a responsabilidade de vedar a participação do pão e do cálice é tão-
somente o próprio indivíduo a quem esses elementos são oferecidos (1Co 11.31).
Desse modo, o ministrante não tem autoridade para proibir a participação
de ninguém na ceia. Sua responsabilidade se limita a alertar os ouvintes acerca
dos perigos de tomar parte indignamente do santo memorial. Deve mostrar que
quem come e bebe nessas condições será considerado réu do corpo e do sangue
do Senhor (1Co 11.27), comerá e beberá juízo (castigo) para si (1Co 11.29),
sendo até possível que Deus o visite com doenças e morte (1Co 11.30).
Uma pergunta frequente

Para participar da ceia, o crente tem de ser batizado?


Não é possível encontrar essa exigência na Bíblia. É mera invenção humana,
não havendo motivo algum para que a igreja de Deus se submeta a ela.
Os critérios que a Bíblia estabelece para a participação da ceia estão muito
bem definidos em 1Coríntios 11. Tudo que for acrescentado ao que está ali
estabelecido é fruto da imaginação, ou seja, uma fonte sem autoridade alguma
para o “cristão velho”.
Aliás, deve ser lembrado que todo aquele que crê em Cristo recebe da parte de
Deus o batismo do Espírito Santo (1Co 12.13). Obviamente, esse batismo é mais
importante do que o batismo na água e, por si só, autoriza o crente a tomar
parte na mesa do Senhor.
Nesse aspecto, é bom recordar que Pedro censurou a hipótese de negar a
ministração de uma ordenança (o batismo na água) a quem havia sido batizado
pelo Espírito (At 10.47). Logo, é também evidente que a quem Deus não negou o
seu Espírito, não se pode negar o pão e o cálice.
Seguindo esse mesmo raciocínio, se a ceia é, entre outras coisas, um símbolo
que aponta para Cristo como o alimento espiritual do crente, como negar esse
símbolo a quem participa da própria realidade que ele representa?
Capítulo 4 – O EVANGELISMO
Há um mito que circula no meio evangélico segundo o qual as igrejas de
soteriologia reformada, por acolher a doutrina da soberana eleição de Deus, não
se preocupam em fazer evangelismo pessoal ou missões. Segundo os expoentes
dessa lenda, essas igrejas, crendo que Deus já tem os seus eleitos a quem
fatalmente irá salvar, não veem nenhuma necessidade de evangelizar as pessoas,
nem mesmo de orar para que alguém se converta.
Realmente, as igrejas que acolhem o ensino integral da Bíblia defendem
tenazmente a doutrina da livre escolha de Deus para a salvação. E isso por uma
razão muito simples: o Novo Testamento ensina nitidamente essa doutrina, sendo
impossível rejeitá-la sem, ao mesmo tempo, rejeitar as Escrituras.
De fato, mesmo representando um atentado contra a orgulhosa lógica
humana (Rm 9.19-21), a Bíblia é pródiga em suas afirmações referentes à
soberania absoluta de Deus na ministração de sua graça, dizendo, inclusive, que
ele alcança quem quer e endurece a quem lhe apraz (Jo 1.13; Rm 8.29-30;
9.18,21-22; Ef 1.5; 1Pe 2.8). É por isso que as igrejas de coloração calvinista não
abrem mão desse ensino tão controvertido que as torna alvo de constantes
acusações falsas.
A questão, então, permanece: a aceitação da doutrina da eleição inibe o
trabalho de evangelismo? Surpreendentemente, a resposta é um enfático não.
Aliás, é até o oposto o que acontece! Com efeito, tanto a Bíblia como a história
do cristianismo mostram que a doutrina da eleição tem se constituído num dos
maiores incentivos à evangelização do mundo!

A conexão bíblica entre eleição divina e evangelismo

Ao contrário do que alguém poderia imaginar, nas páginas da Bíblia, um


dos maiores impulsos à prática missionária é precisamente a doutrina da eleição.
Como? De que forma as Escrituras destacam a eleição divina como um estímulo
ao trabalho de pregação do evangelho?
Basicamente, o texto sagrado faz isso de duas maneiras: afirmando que
os eleitos de Deus estão espalhados pelas diversas comunidades ao redor do
mundo; e ensinando que eles fatalmente atenderão à mensagem das boas-novas
em Cristo.
Jesus foi o primeiro a mostrar essas duas maravilhosas realidades. A certa
altura do Evangelho de João, o autor conta que o Mestre fez uma intrigante
afirmação: “Tenho outras ovelhas que não são deste aprisco [isto é, não são de
Israel]. É necessário que eu as conduza também. Elas ouvirão a minha voz, e
haverá um só rebanho e um só pastor” (Jo 10.16). Em seguida, para mostrar que
havia grande distinção entre esse grupo espalhado pelo mundo e as demais
pessoas não escolhidas, ele se dirigiu aos seus oponentes dizendo: “... vocês não
creem, porque não são minhas ovelhas” (Jo 10.26).
O Senhor ensinou, assim, que ele tem um povo espalhado pelo mundo,
que as pessoas que compõem esse povo ainda estão por ser alcançadas e que elas
fatalmente atenderão ao convite da fé. Como um evangelista poderia ser
desencorajado diante disso? Não seriam essas palavras exatamente um estímulo
para o seu trabalho?
O Evangelho de João insiste nessas verdades também no Capítulo 11.
Ali, o evangelista comenta algumas palavras pronunciadas pelo sumo sacerdote,
dizendo: “Ele não disse isso de si mesmo, mas, sendo o sumo sacerdote naquele
ano, profetizou que Jesus morreria pela nação judaica, e não somente por aquela
nação, mas também pelos filhos de Deus que estão espalhados, para reuni-los
num povo” (Jo 11.51-52). É mais do que claro aqui que Deus tem “filhos”
dispersos pelo mundo. Esses “filhos” ouvirão a mensagem da cruz e serão,
afinal, reunidos num povo.
Ora, com essas concepções em mente, seria possível um evangelista
desanimar? É claro que não! Na verdade, sabendo disso, o missionário trabalhará
ainda mais confiante, ciente de que as ovelhas de Jesus, os “filhos de Deus que
estão espalhados”, cedo ou tarde, seguirão o Bom Pastor. Sim, amanhã ou
depois, serão todos reunidos pelo Pai.
Além disso, o obreiro que aceita essas verdades não se sentirá fracassado
ou frustrado no ministério quando não crerem na sua pregação. Antes, entenderá
que os que a rejeitaram fizeram-no por não serem ovelhas do Senhor e seguirá
avante, certo de que as ovelhas fatalmente ouvirão e o alvo do Pai de reunir seus
filhos num só povo será finalmente alcançado. Mais uma vez: poderia haver
estímulo maior para o trabalho evangelístico?
Na história de missões, quem primeiro se sentiu animado por essas
verdades foi o apóstolo Paulo. Isso aconteceu quando ele esteve pregando em
Corinto, um foco tenebroso da multiforme religião pagã, centro cosmopolita
marcado por variados excessos de imoralidade e por todo tipo de devassidão.
Corinto talvez fosse, ao mesmo tempo, o maior desafio e o mais terrível
pesadelo de qualquer missionário cristão; uma boa desculpa para o abandono do
trabalho evangelístico.
Paulo esteve ali em cerca de 50 AD, por ocasião da sua Segunda Viagem
Missionária (At 18.1-18). Logo de início, sua presença e mensagem despertaram
a oposição da comunidade judaica local que trabalhou intensamente para
dificultar ainda mais a obra missionária em Corinto (At 18.6,12-13). Paulo,
porém, não desistiu.
Onde o apóstolo encontrou estímulo para continuar seu trabalho num
ambiente tão difícil? A resposta é surpreendente: ele foi incentivado pela
doutrina da eleição! O registro bíblico diz que, certa noite, o Senhor apareceu a
Paulo numa visão e disse: “Não tenha medo, continue falando e não fique
calado, pois estou com você, e ninguém vai lhe fazer mal ou feri-lo, porque
tenho muita gente nesta cidade” (At 18.9-10).
Conforme exposto, nos dias do seu ministério terreno, o Senhor havia
dito que tinha outras ovelhas que viviam em vários apriscos fora de Israel.
Agora, o mesmo Senhor se manifesta a Paulo revelando que muitas dessas
ovelhas estavam em Corinto. O apóstolo não devia, portanto, recuar. A realidade
de que as ovelhas já estavam ali, somente esperando ouvir a voz do Supremo
Pastor, devia incentivá-lo, pois elas certamente atenderiam a pregação e seriam
salvas.
Paulo ouviu isso tudo e permaneceu firme. Foi assim que a santa doutrina
da eleição fez o apóstolo perseverar por mais um ano e seis meses no trabalho
missionário em Corinto (At 18.11).
Cerca de dez anos mais tarde, Lucas escreveu essa e outras histórias de
Paulo na obra que recebeu o título de Atos dos Apóstolos. Foi, talvez, por
perceber que a doutrina da eleição servia como estímulo para a evangelização,
que Lucas fez questão de frisar, justamente numa obra de história de missões,
que os que acolhiam a pregação de Paulo eram somente os que faziam parte do
rebanho de Cristo espalhado pelo mundo. “... E creram todos os que haviam sido
designados para a vida eterna” (At 13.48), escreveu ele. Vê-se, assim, que o
primeiro historiador da igreja aprendeu, por meio de suas pesquisas e de sua
observação, que a eleição não somente estimula o trabalho do pregador, mas
também garante o seu sucesso.
Conclui-se, assim, que, à luz da Bíblia, a doutrina da eleição não
desencoraja a obra missionária, mas faz exatamente o oposto. Além disso, todo
calvinista sabe que Deus decidiu salvar os eleitos por meio da pregação (1Co
1.21), sendo, portanto, imprescindível a sua prática somada ao dever de orar
pelos perdidos.
Aliás, no tocante a esses assuntos, é significativo que Paulo, mesmo
depois de tratar extensivamente acerca da doutrina da eleição, em Romanos 9,
prossegue, no capítulo 10, falando sobre seu empenho na oração pelos perdidos
(Rm 10.1) e sobre o dever de enviar missionários aos que nunca ouviram falar de
Jesus (Rm 10.14-15). Para o apóstolo, as verdades que expôs em Romanos 9 não
anulavam os deveres que mencionou em Romanos 10.

Provas históricas

Se o argumento que diz que a doutrina da eleição desestimula a pregação


do evangelho não se sustenta à luz da Bíblia, tampouco esse mito pode se manter
de pé diante da análise histórica. Com efeito, se o ensino bíblico acerca da
eleição gerasse desmazelo no evangelismo, seus expoentes nada teriam feito em
prol da expansão da fé e ficariam fechados dentro de suas igrejas, aguardando
sua fatal extinção.
No entanto, não é isso que se vê na história. Antes, um zelo ardente por
missões moveu os expoentes da doutrina da eleição, conduzindo-os como
pioneiros e mártires aos rincões mais distantes do mundo, sempre à procura das
ovelhas dispersas que fatalmente atenderiam a voz do Pastor Divino.
O primeiro exemplo disso é apontado pelo próprio Calvino. Em suas
Institutas da Religião Cristã, o grande reformador citou Agostinho de Hipona,
dizendo:

Porque não sabemos quem pertença ao número dos


predestinados, ou não pertença, assim nos convém tratar
que a todos queiramos venham a ser salvos. Assim
acontecerá que, quem quer que seja que se nos haverá de
deparar, esforcemo-nos por fazê-lo participante de nossa
paz. Mas, nossa paz repousará somente sobre os filhos da
paz (Mt 10.13; Lc 10.6). Portanto, quanto a nós concerne,
deverá ser a todos aplicada, à semelhança de um remédio...
A Deus, porém, pertencerá fazê-la eficaz a quem pré-
conheceu e predestinou.[52]

Calvino, contudo, não somente ensinou essas coisas. Ele também as pôs
em prática. Uma prova disso está no fato de que, em Genebra, cidade em que
atuou como pastor e estadista, foi criado, após 1545, o Fundo Francês, uma
instituição que tinha como propósito central dar apoio material aos franceses
pobres ali refugiados por causa da perseguição em sua terra natal. Calvino
contribuía prodigamente para esse fundo e é provável que tenha sido um dos
seus criadores. Ainda que os objetivos principais da instituição fossem no campo
humanitário, é sabido que o Fundo Francês era também usado para fins
missionários, sustentando pastores em Genebra que deveriam ser enviados à
França.
É também preciso destacar que, em meados do século 16, havia em
Genebra 38 tipografias, com cerca de dois mil empregados, cujo trabalho
dominante era imprimir literatura evangélica destinada aos países vizinhos,
especialmente a França. Por conta disso, na década de 1540, Paris foi inundada
pela literatura produzida em Genebra e as conversões começaram a ocorrer.
Isso despertou a atenção e o desagrado do parlamento parisiense, o qual
emitiu sucessivas listas de livros proibidos, nas quais eram incluídas quaisquer
obras que expusessem ideias calvinistas. As gráficas de Genebra, porém, não
paravam de lançar novos títulos, numa velocidade que o Parlamento não podia
acompanhar. Assim, as listas de livros censurados estavam sempre
desatualizadas e as obras de Calvino continuavam a ser vendidas e lidas pelo
povo francês.
Além disso, sendo impossível um controle absoluto sobre o comércio de
literatura por parte das autoridades de Paris, os livros proibidos procedentes de
Genebra eram vendidos no mercado negro. O resultado era que as conversões à
fé evangélica não paravam de ocorrer na França. Os registros históricos apontam
que, em 1562, dois anos antes de Calvino morrer, existiam pelo menos 1.250
congregações calvinistas naquele país, abrangendo mais de dois milhões de
membros! Foi certamente por causa desses extraordinários avanços, que a
Venerável Companhia de Pastores, outra instituição da Genebra de Calvino,
enviou 151 missionários à França só no ano de 1561![53] Essa mesma instituição,
entre 1555 e 1562, também enviou 88 ministros para quase todos os países da
Europa.[54]
A obra missionária de Calvino também abrangeu a fundação da
Academia de Genebra (1559), criada para treinar pastores e suprir a demanda
que o crescimento do número de igrejas impunha aos reformadores. Muitos
alunos da academia eram estrangeiros refugiados (franceses, ingleses,
holandeses, italianos e alemães) que, depois de formados, voltavam para seus
países de origem ensinando o que ali haviam aprendido. Entre esses alunos
esteve John Knox, o grande reformador escocês. Foi assim que a escola fundada
por Calvino tornou-se um grande centro missionário, irradiando a fé evangélica
para o mundo inteiro.
É preciso ainda lembrar que os primeiros missionários protestantes que
chegaram ao Brasil foram enviados precisamente por João Calvino. Eles vieram
a pedido de Nicolas Durand de Villegaignon (1510-1571), com o objetivo de
ensinar a fé reformada aos colonizadores franceses do Rio de Janeiro e
evangelizar os indígenas.
O grupo chegou em março de 1557, mas, menos de um ano depois, foi
expulso por causa de conflitos doutrinários com Villegaignon. Esses conflitos
resultaram na produção da Confissão de Fé da Guanabara (1558), um
documento de orientação reformada escrito por cinco calvinistas leigos
aprisionados por Villegaignon. Desses cinco, quatro foram estrangulados, pondo
fim ao trabalho missionário de Calvino no Brasil.[55]
No século 17, o Brasil mais uma vez foi cenário da atividade missionária
calvinista. Isso aconteceu como resultado indireto dos conflitos políticos entre
Espanha e Holanda. Movido por esses conflitos, Filipe II, da Espanha, proibiu as
relações comerciais entre os holandeses e todas as áreas de dominação
espanhola, o que abrangia a América do Sul. Nessa época, a Holanda dominava
a distribuição de açúcar na Europa e não podia abrir mão do comércio com a
empresa açucareira nordestina. Por isso, em 1621, foi criada a Companhia das
Índias Ocidentais, com sede em Amsterdã, cujo objetivo era a exploração
mercantil na América.
A companhia das Índias Ocidentais promoveu duas invasões holandesas
ao Brasil: uma na Bahia (1624-1625) e outra em Pernambuco (1630-1654). Esta
última foi melhor sucedida e, para garantir a paz e os seus interesses no Brasil, a
companhia enviou um representante, o conde João Maurício de Nassau, que
governou o Brasil Holandês de 1637 a 1644.
Maurício de Nassau era crente, membro zeloso e assíduo frequentador da
Igreja Cristã Reformada. Seu governo foi brilhante, cobrindo uma área que ia do
Sergipe até o Maranhão.
Ocorreu, porém, que a companhia passou a adotar políticas que
desagradavam os senhores de engenho, exigindo o pagamento imediato de
empréstimos e impondo certos limites à liberdade religiosa. Quando, então,
Maurício de Nassau pediu demissão de seu cargo, iniciou-se a luta contra os
holandeses. A chamada Insurreição Pernambucana (1645-1654) resultou na
expulsão dos invasores, os quais passaram a produzir açúcar nas Antilhas.
Foram os holandeses desse período que trouxeram para o Brasil a igreja
calvinista. Seu nome oficial era Igreja Cristã Reformada e contava com 22
congregações locais espalhadas pelo Brasil Holandês. Ela adotava confissões de
fé calvinistas, além de outros credos ortodoxos antigos, e realizou intensa obra
missionária, especialmente entre os índios.
O primeiro pastor dessa igreja a se envolver com a evangelização dos
nativos foi Vincentius Joaquimus Soler. A princípio, ele pregou na aldeia
Nassau, no Recife (atual Bairro das Graças), e somente mais tarde, a pedido dos
nativos da capitania da Paraíba, dedicou-se à evangelização dos índios. Cabe,
porém, a David Doreslaer, cujo trabalho iniciou-se em 1638, o título de primeiro
pastor missionário de tempo integral entre os nativos do Brasil.
O trabalho missionário dos calvinistas holandeses cresceu muito, a ponto
de, em 1641, ser celebrada a primeira ceia do Senhor na aldeia do cacique Pedro
Poti. Várias tribos pediam que a Igreja Cristã Reformada lhes enviasse
pregadores e congregações indígenas foram abertas. Até os antropófagos tapuias
pediram o envio de missionários. Infelizmente, nem sempre essas solicitações
podiam ser atendidas, até mesmo em virtude da instabilidade decorrente dos
conflitos entre Holanda, Espanha e Portugal. Apesar disso, 17% do trabalho
pastoral era dedicado aos índios, graças, inclusive, à iniciativa pessoal de vários
ministros que viam a pregação aos nativos como parte obrigatória do seu
ministério.
Em seu trabalho, os pastores calvinistas ganhavam a confiança dos
nativos dando-lhes assistência social (remédios, alimentos, proteção, etc.). Além
disso, traduziam partes das Escrituras para o tupi, produziam literatura
reformada em português e em tupi, primavam pela educação e formação de
professores índios (alguns se tornaram “consoladores” ou evangelistas) e
zelavam não somente pelo ensino doutrinário, mas também pelo ideal de
santidade que deve acompanhar a fé. De fato, o puritanismo holandês via a
Bíblia como norma de fé e prática (norma credendi et agendi) e isso foi
transmitido aos índios.
Infelizmente, com a expulsão dos holandeses do Brasil, em 1654, a Igreja
Cristã Reformada também partiu. Os índios convertidos foram incluídos no
“Perdão Geral” promulgado pelos portugueses. Contudo, sem acreditar nesse
perdão, os índios membros da primeira igreja evangélica verdadeiramente
brasileira fugiram para a Serra de Ibiapaba, no Ceará, a 750 km do Recife. O
local tornou-se, então, o que o padre jesuíta Antônio Vieira chamou de “Genebra
de todos os sertões do Brasil”, repleta de índios calvinistas que consideravam o
catolicismo uma fé falsa.
No mesmo ano da expulsão dos holandeses, os índios da Serra de
Ibiapaba enviaram uma pequena delegação a Holanda, suplicando socorro em
prol do povo que havia abraçado a fé calvinista. Porém, a Igreja Cristã
Reformada viu-se atada pelas negociações de paz entre Portugal e Holanda e não
enviou auxílio. Por isso, a igreja indígena morreu. Aos poucos seus membros
foram novamente submetidos a Roma ou massacrados como hereges. Foi assim
que terminou um dos capítulos mais belos da história da igreja reformada no
Brasil; e esse capítulo prova quão falaciosa é a acusação de que os calvinistas
não se importam com a evangelização dos povos sem Deus.[56]
As provas históricas do empenho evangelístico dos calvinistas são
inumeráveis. Porém, para concluir esse assunto, é suficiente apontar somente
mais dois personagens: George Whitefield[57] e Charles Haddon Spurgeon, sem
dúvida os maiores pregadores de todos os tempos, ambos fervorosos expoentes
da fé reformada, com sua ênfase na doutrina da predestinação dos santos.
George Whitefield nasceu em Gloucester, na Inglaterra, em 1714, e
morreu em Newbury Port, nos Estados Unidos, em 1770. Ele viveu menos de
sessenta anos, mas dificilmente a história poderá mostrar um homem mais zeloso
no trabalho de proclamação das boas-novas aos perdidos. De fato, Whitefield foi
o maior pregador da Inglaterra no século 18 e, certamente, um dos mais notáveis
evangelistas de todos os tempos. Com certeza, ele foi o principal líder do Grande
Avivamento evangélico que varreu a Inglaterra há mais de duzentos anos.
Whitefield começou a pregar em 1736 e, já no ano seguinte, era capaz de
reunir grandes multidões em Londres dispostas a ouvi-lo. A ele cabe a honra de
ter sido o primeiro evangelista da igreja moderna a pregar ao ar livre, rompendo
antigas tradições eclesiásticas em prol da expansão da fé.
A estratégia de pregar a céu aberto foi usada pela primeira vez por
Whitefield em 1739. Ele foi motivado pelas terríveis informações que lhe
chegaram acerca da vida depravada dos trabalhadores das minas de carvão que
moravam numa vila perto de Bristol. A princípio, Whitefield pregou ao ar livre
para um grupo de cem homens daquela vila, mas seu impacto foi tão grande que
logo o número passou para cinco mil, superando mais tarde os vinte mil
ouvintes. Aquelas pessoas nunca tinham entrado numa igreja e, mesmo cansadas
e sujas em virtude do trabalho nas minas de carvão, não iam para casa,
preferindo ficar de pé ouvindo a pregação de Whitefield.
Desde esse tempo até o fim da vida, Whitefield se dedicou à pregação em
lugares abertos, alcançando dezenas de milhares de pessoas tanto na sua terra
natal como na Escócia, onde esteve 14 vezes.
A partir de 1738, Whitefield fez também diversas viagens aos Estados
Unidos a fim de pregar o evangelho ali. Sua coragem em atravessar o oceano
treze vezes em suas idas e vindas à América, enfrentando todos os perigos que
essa viagem representava no século 18, mostra o zelo missionário desse pastor
calvinista que, em 34 anos de ministério, pregou cerca de 18 mil sermões!
Proclamando suas mensagens ao ar livre ao longo de toda a vida,
Whitefield enfrentava qualquer situação, mesmo as mais difíceis. Frio, calor,
chuva e neve, nada disso o impedia de anunciar a Palavra às multidões que,
também sob essas condições se ajuntavam para ouvi-lo. Ele pregava cerca de
seis vezes por dia e fez isso por mais de três décadas! Não tinha descanso no
trabalho, submetendo seu corpo a severas tensões. Foi por isso que, durante sua
sétima visita aos Estados Unidos, estando extremamente exausto e doente,
faleceu em Newbury Port, Massachusetts, com apenas 56 anos de idade, após
árduos esforços para pregar uma última vez.
Ninguém mais do que George Whitefield provou como a fé calvinista
move o crente ao evangelismo. Sendo árduo defensor da doutrina da eleição
soberana de Deus, ele foi um evangelista incomparável, superando todos do seu
tempo no nobre trabalho de alcançar os escolhidos do Senhor.
Whitefield pregou para a aristocracia inglesa, para os homens humildes
do campo e das minas e para as crianças dos orfanatos, tanto em sua terra natal
como em regiões distantes dali. A fé reformada não o desencorajava. Muito pelo
contrário. Foi essa fé que se constituiu na base de todo o seu empenho, por
décadas a fio, até a morte. Hoje, os que dizem que calvinistas não evangelizam
devem estudar a vida de George Whitefield. Isso, certamente, os fará mudar de
opinião!
Uma dramática mudança de opinião acerca do zelo evangelístico
calvinista também ocorrerá no crítico da fé reformada que estudar a vida de
Charles Haddon Spurgeon (1834-1892), notável pastor batista inglês, conhecido
como o “Príncipe dos Pregadores”.[58]
Mesmo pertencendo a uma família de tradição protestante e sendo criado
sob a forte influência de seu avô, um pastor congregacional, Charles Spurgeon
só se converteu realmente aos 16 anos de idade. Logo no início de sua vida
cristã, ele mostrou grande preocupação pelas almas, dedicando-se à distribuição
de folhetos, ao ensino na escola dominical e, eventualmente, à pregação. Aos
poucos, porém, suas habilidades como comunicador da Palavra de Deus
começaram a aflorar e Spurgeon viu sua fama de pregador crescer quando ainda
era bem jovem.
Em 1852, ele se tornou pastor e, dois anos depois, assumiu o ministério
na Capela Batista de New Park Street, em Londres. Seu desempenho ali como
pregador e evangelista atraiu tantas pessoas que as ruas ao redor da igreja logo se
tornaram intransitáveis por conta da multidão que afluía para ouvir o jovem
pastor. Em pouco tempo, a igreja teve de se mudar para Newington, onde, em
1861, foi construído o Tabernáculo Metropolitano, que abrigava cerca de 12 mil
pessoas. O local ficava repleto de homens e mulheres desejosos de ouvir os
sermões ardentes de Spurgeon que anunciava o Evangelho com uma paixão e
clareza nunca vistas em nenhum outro pregador daqueles dias.
Charles Spurgeon era calvinista convicto e seus sermões são prova cabal
desse fato.[59] Defendendo vigorosamente a doutrina da predestinação dos santos
e a eleição incondicional, ele foi, ao mesmo tempo, um zeloso evangelista de
renome mundial, pregando em diversos países da Europa, tanto em igrejas ou em
amplos salões como ao ar livre. Ele pregava de oito a doze vezes por semana e
chegou a falar para um público de mais de 23 mil pessoas, no Crystal Palace, em
Londres.
Tantas foram as pregações de Spurgeon que, quando seus sermões
passaram a ser publicados, a partir de 1855, a obra abrangeu 63 volumes, com
mais de 3.500 homilias. Desejoso de que a mensagem de Cristo alcançasse o
maior número possível de pessoas, Spurgeon se esforçava para que as
publicações dos sermões fossem semanais, revisando ele próprio os textos antes
que chegassem ao público. Como resultado dessa imensa obra evangelizadora,
Spurgeon batizou cerca de 15 mil pessoas ao longo de quarenta anos de
ministério pastoral. Mais tarde, seus sermões foram traduzidos para diversos
idiomas, transformando vidas em todo o mundo.
Sempre preocupado com a divulgação da mensagem cristã, Spurgeon
também começou um trabalho de treinamento de evangelistas e pastores, o que
deu origem ao posteriormente chamado Spurgeon’s College. Essa instituição
existe até hoje, adotando a mesma visão do seu fundador e formando
evangelistas, missionários e pastores.
Charles Spurgeon adotava uma concepção ortodoxa das Sagradas
Escrituras e, por isso, passou a ser fortemente criticado pelos membros liberais
da União das Igrejas Batistas da Inglaterra da qual sua igreja fazia parte. Por
causa disso, em 1887, ele se desligou da união e, sob severa oposição, viu sua
saúde minguar. Spurgeon tinha gota, reumatismo e uma enfermidade crônica
degenerativa incurável chamada Doença de Bright. Ele morreu aos 57 anos.
Grandes cortejos foram realizados em Londres por ocasião de seu sepultamento
no cemitério de Norwood. Naquele dia, 31 de janeiro de 1892, o Senhor tomou
para si um dos maiores evangelistas de todos os tempos.
Quem conhece a vida e os sermões de Spurgeon vê quão grande é o
impulso que a doutrina da eleição incondicional dá ao evangelismo. Aquele
grande pregador provou que, encorajados pelo precioso ensino acerca da
predestinação dos santos, os homens de Deus se lançam com maior empenho na
busca daqueles que o Senhor escolheu e trazem para o seio da igreja os
convertidos verdadeiros em quem a graça do Senhor realmente atuou.

Divulgando a fé

Os evangelistas que não acolhem nem compreendem a doutrina da


eleição geralmente se envolvem em práticas reprováveis na tentativa de “ganhar
almas”. Desprezando ou desconhecendo o fato de que a conversão de pecadores
é obra de Deus e que ele, tendo os seus escolhidos, age graciosamente em seu
coração mediante a exclusiva exposição da Palavra, os evangelistas desse tipo
criam estratégias e artifícios os mais diversos no afã de convencer os incrédulos
a “tomar uma decisão”.
É assim que, movidos pela crença de que todos os homens são capazes de
crer caso queiram, bastando que os “botões certos” sejam apertados, esses
evangelistas elaboram pregações seguidas de apelos emocionados, com músicas
tocantes ao fundo, com convites prolongados e insistentes para que o pecador
“levante a sua mão” ou “venha à frente” aceitando Jesus.
Tais pregadores acreditam que, criando essa atmosfera artificial, serão
capazes de convencer o homem perdido a crer, esquecendo-se que a fé salvífica
não se aloja no coração do homem por meio de métodos teatrais de manipulação
e sim pela ação sobrenatural de Deus (Jo 6.37,44; At 16.14; Ef 2.8).
Outros vão além e tentam convencer os incrédulos a crer atraindo-os para
a igreja com todo tipo de programação, mesmo as mais mundanas. Espetáculos
de música profana, uso de linguagem indecente, festas irreverentes, “baladas”,
danças e até apelos sensuais são utilizados na tentativa de trazer o incrédulo para
a igreja. Uma vez alcançado esse objetivo, todas essas práticas são mantidas a
fim de que o descrente não seja espantado e volte para o mundo do qual, na
verdade, nunca saiu – apenas passou a expressar sua velha carnalidade num novo
endereço.
Outro problema se verifica na prática do evangelismo que despreza a
soberana eleição de Deus. Pastores, evangelistas e missionários com essa
deficiência teológica tendem a acreditar que a conversão dos perdidos depende
não só da vontade deles, mas também das habilidades pessoais do pregador. Por
isso, fazem de tudo para elevar o número de seus conversos.
Trata-se, na verdade, de uma questão de valor pessoal. Os ministros
precisam mostrar que são oradores hábeis, dotados de grande poder de
persuasão, obreiros de sucesso, pregadores irresistíveis diante de quem os
incrédulos não conseguem se manter endurecidos. Isso ajuda a explicar os
longos e intermináveis apelos à conversão e as estratégias absurdas de atração
dos perdidos à fé evangélica. Resultados têm de ser vistos a todo custo. Do
contrário, a imagem do pregador ficará irremediavelmente manchada.
Naturalmente, essa concepção acerca do evangelismo põe um fardo
enorme sobre os ombros do pregador, o qual se vê obrigado a mostrar números
sob pena de ser considerado um fracasso. Por outro lado, essa visão estimula o
orgulho próprio, pois o pregador passa a ver seus convertidos como provas de
sua habilidade e aptidão, esquecendo-se que é mero lavrador, sendo Deus quem
dá o crescimento e o fruto (1Co 3.5-7).
Todos esses erros precisam ser evitados pela igreja de Deus. Nela o
evangelismo deve se centralizar na mensagem pura da salvação e não em
estratégias humanas, artifícios de retórica ou habilidades imaginárias. E a
mensagem pura da salvação se concentra em basicamente cinco verdades
bíblicas:

1. Todos os homens são pecadores (Rm 3.23);


2. Por causa do pecado todos estão separados da glória de Deus, sendo a


morte eterna o destino de cada um (Rm 6.23);


3. Para salvar o ser humano dessa situação, Deus enviou Jesus Cristo ao

mundo, a fim de sofrer o castigo pelo pecado em seu lugar (Rm 5.6-8);
4. Por isso, Cristo foi crucificado, morto e sepultado, mas ao terceiro dia

ressuscitou como prova de que as exigências da justiça de Deus foram


satisfeitas (Rm 4.25);
5. Agora, os benefícios da morte de Cristo são aplicados a todos os que o

recebem pela fé como Salvador. Estes são plenamente perdoados e o Senhor


lhes concede vida eterna (Rm 5.1; 6.23; 8.1).

É com a divulgação dessas verdades que o servo de Deus deve se ocupar,


tanto no púlpito como em suas abordagens individuais, sem perder tempo com a
criação de táticas “infalíveis” de propaganda ou de manipulação de massas.
Então, tendo semeado a boa semente, o evangelista deve descansar na
certeza de que cumpriu seu dever e na convicção de que o Senhor, uma vez
pregada a sua Palavra, agirá no tempo que quiser, da maneira que quiser e,
especialmente, em quem quiser, reunindo soberanamente o rebanho que de
antemão conheceu e um dia glorificará (Rm 8.29-30).
É, pois, dentro dessa objetividade e tocante singeleza que deve ser
realizado o evangelismo na prática diária da igreja de Deus, pois o que se requer
dos despenseiros dos santos mistérios não é que tenham sucesso a qualquer
preço, mas sim que sejam considerados fiéis (1Co 4.2).
Três perguntas

1) Já existiram pessoas de convicção calvinista que deixaram o evangelismo de


lado por crerem na doutrina da eleição?
Sim, existiram e ainda existem! Não só pessoas, mas igrejas inteiras! São os
chamados hipercalvinistas. Aliás, é sabido que William Carey, o pai das missões
modernas, encontrou barreiras para iniciar o seu ministério exatamente em
pessoas que tinham essa mentalidade. A visão hipercalvinista é mais um entre os
inúmeros exemplos de como uma doutrina santa pode ser desvirtuada e usada
para embasar erros terríveis. O fato de fazerem isso, porém, não significa que a
doutrina da eleição é má. Significa apenas que o coração do homem é mau,
sendo capaz de realizar coisas perniciosas e usar o ensino bíblico como
justificativa (Jd 4).

2) Fazer apelos após o sermão é errado?


Se o apelo dá a entender que a pessoa é salva pelo gesto de levantar a mão ou
de ir à frente, então é errado, pois a salvação é unicamente pela fé (Ef 2.8-9).
Por isso, uma boa sugestão para quem gosta de fazer apelos é pedir que os
incrédulos venham à frente não para serem salvos, mas para que a igreja ore
por eles, suplicando que o Senhor lhes conceda a fé (Hb 12.2). O pastor poderá
dizer: “Se você não tem a fé em Cristo, mas gostaria de ter e luta com esse
dilema, venha à frente para que a igreja ore por você”. Há muitas pessoas nessa
situação, lutando com dúvidas e temores, percebendo que não conseguem crer
em Cristo de fato (Mc 9.24). Essas pessoas, se atenderem o convite aqui
sugerido, saberão que não foram salvas ao ir à frente, mas sim que se tornaram
alvos das orações da igreja para que o Senhor lhes abra o coração (At 16.14).

3) Com que intensidade o pregador deve insistir para que alguém se converta?
Essas insistências, muitas vezes, partem da ideia (ou dão a entender) que a
pessoa tem de ir à frente para ser salva. Por isso, “martelar” o convite por
longos períodos pode ser mais prejudicial do que se imagina.
Também na esfera do evangelismo individual, a prática de insistir
ininterruptamente para que alguém creia em Cristo é estranha ao modelo
bíblico. O livro de Atos mostra que os evangelistas apresentavam o evangelho
com clareza e até se envolviam em longos debates visando a convencer as
pessoas acerca da salvação em Cristo (At 6.9-10; 28.23). Porém, quando afinal
os incrédulos diziam “não” à mensagem, eles se dirigiam a outros ouvintes (At
13.46; 28.24-29). Na verdade, os pregadores do NT apresentam o evangelho a
um mesmo grupo no máximo duas vezes! Isso mostra que, quando há rejeição,
ataque ou zombaria, o evangelista deve interromper seu trabalho e buscar
outras pessoas (Mt 7.6).
Capítulo 5 – OS MEMBROS QUE VÊM E VÃO
O meio evangélico de hoje revela uma ampla ausência de qualquer noção
de congregacionalidade. Isso acontece porque muitos líderes eclesiásticos atuais
de destaque desprezam o congregacionalismo bíblico – um modelo que realça a
importância da participação do povo santo nos rumos e decisões da igreja. O
modelo congregacional é claramente visto em textos como Mateus 18.17, Atos
6.2-3, 15.2 e 2Coríntios 2.6. Porém, não levando em conta esse aspecto da
eclesiologia apostólica, vários movimentos (pseudo?) evangélicos evitam formar
uma comunidade eclesiástica local definida, fixa, bem identificada e
comprometida. Tudo que importa é apenas atrair multidões variáveis, formadas
por milhares de anônimos sem nenhum vínculo oficial com a igreja.
Muito diferente disso, o que se vê na Bíblia é que as igrejas locais são
formadas por grupos certos e determinados em que cada componente da
comunidade cristã está conectado a ela de forma intensa e responsável,
participando ativamente da vida, dos problemas, das escolhas, dos planos e dos
destinos da igreja a que pertence.
Por isso, dada a importância da congregação na eclesiologia bíblica, e
considerando que a congregação é, obviamente, formada por indivíduos, toda
igreja precisa de um rol de membros definido. Isso deixará claro quem de fato
compõe a congregação local e desfruta, assim, do precioso direito de participar
das decisões e direções eclesiásticas.
Neste capítulo serão brevemente expostas as formas mais comuns pelas
quais um crente pode se tornar parte do rol de membros de uma igreja local e
também as maneiras como pode ser desligado.
Dá-se aqui especial realce à conversão como requisito essencial para sua
admissão e também se destaca a vida de santidade como fator determinante da
participação permanente de um membro da igreja na comunhão dos santos.
Contudo, antes de tratar desses assuntos, é bom apontar quando um
crente pode solicitar desligamento da igreja a que pertence e o que deve procurar
na nova comunidade eclesiástica de que pretende ser membro.

Quando, como e porque procurar uma nova igreja

Os “cristãos velhos”, ou seja, aqueles que não se deixaram levar pelos


vícios do evangelicalismo atual, não veem com bons olhos a prática comum nos
dias atuais de se mudar de igreja por qualquer motivo ou sem nenhum critério.
Os homens espirituais entendem que o vínculo existente entre o crente e sua
igreja deve ser muito forte, de modo que não é por qualquer razão que alguém
pode abandonar a congregação de que faz parte e se filiar a outra.
Com efeito, na Palavra de Deus é ensinado que a comunhão dos crentes
requer perseverança e grande esforço (At 2.42; Ef 4.3; Cl 3.13). Não é, portanto,
correta a mudança constante de uma igreja para outra e muito menos o total
abandono da comunhão com os crentes (Hb 10.25; 1Jo 1.7).
Nesse sentido, é interessante notar que mesmo quando Paulo escreveu a
igrejas marcadas por discórdias, imoralidades e desregramentos, jamais ensinou
que a solução para os descontentes seria sair da igreja ou buscar a comunhão
com outros irmãos. Ao contrário, seu ensino sempre consistiu em exortar os
crentes a buscar soluções, a pensar concordemente (Fp 4.2-3 [veja tb. o ensino
de Pedro em 1Pe 3.8-9]), a aprender a vencer as contendas (1Co 6.7-8), a
extirpar o mal e a desordem de seu meio (1Co 5.1-5; 14.40), a manter a paz, o
amor e a unidade (2Co 13.11; Cl 3.12-16), permanecendo, finalmente, unidos
(1Co 1.10; Fp 2.2). É, pois, notável que o grande apóstolo jamais orientou
alguém a deixar sua igreja por mais problemática que fosse.
Todavia, é claro que há razões mais do que justas para que alguém queira
se filiar a outra igreja. Uma delas é o fato de a igreja de origem abandonar
obstinadamente o ensino da doutrina bíblica ou a ênfase na pureza necessária em
seu meio. Também o recebimento de alimento espiritual fraco, dado por
pregadores incorrigíveis e negligentes no ensino, é motivo justo para alguém
mudar de igreja. Acontece também de uma família procurar outra igreja quando
percebe que aquela em que está tem estrutura irremediavelmente frágil no que
diz respeito ao trabalho com crianças, adolescentes ou jovens. Nesses casos, os
pais procuram uma comunidade em que seus filhos recebam instrução melhor
por meio de programas e atividades bem elaborados, próprios para a idade de
cada um.
Como se pode deduzir do ensino bíblico acima exposto, as razões ora
mencionadas não devem fazer com que os crentes corram afoitos para outras
igrejas sem tentar, por todos os meios lícitos, mudar o quadro difícil instalado na
comunidade em que cooperam.
Por isso, antes de se mudar pelos motivos mencionados, o crente deve
orar por sua igreja, tentar ajudar na correção dos erros, trabalhar para que as
coisas melhorem, apontar com amor e brandura os problemas e as soluções que a
Palavra de Deus ensina, enfim, deve fazer tudo para restaurar a igreja em que o
Senhor o colocou, empenhando-se para fazer dela a melhor igreja jamais vista.
Só quando todas as suas tentativas forem infrutíferas, quando perceber
que não há mais o que fazer, quando tiver a consciência tranquila por saber que
trabalhou com todo o empenho para destruir o erro e não logrou sucesso em suas
justas e constantes tentativas é que o crente deve mudar de igreja. Se em tais
circunstâncias não o fizer, correrá o risco de se acostumar com o mal e
desenvolver tolerância em relação à heresia, ao pecado, à superficialidade e à
desordem.
Deve ficar claro, portanto, que o pular de igreja em igreja, sem criar
raízes em nenhuma; o mudar-se porque teve problemas de relacionamento
facilmente solucionáveis; o insurgir-se contra os irmãos ou contra os líderes,
nutrindo mágoas e rancores no coração que culminem num pedido de
transferência; enfim, a mudança de igreja por motivos que podem ser relevados
ou solucionados com um mínimo de disposição e humildade não pode ser
aprovada pelo povo de Deus, pois vai contra o ensino das Sagradas Escrituras,
além de revelar um vínculo muito fraco entre o crente e a igreja em que o Senhor
o colocou, o que é sinal de imaturidade e falta de amor.
Assim, quando pessoas que revelam essas dificuldades procurarem a
igreja bíblica interessadas em fazer parte de seu rol de membros, esta, por meio
de seu pastor e líderes, deverá orientá-las a que retornem para sua igreja de
origem e se empenhem em resolver as tais dificuldades. Isso porque é notório
que quem critica sua igreja e depressa a abandona porque nela enfrenta
problemas, também da sua nova igreja sairá e a criticará tão logo ali encontre
dificuldades que o desagradem. É claro que crentes assim precisam não de uma
igreja nova, mas de uma mentalidade nova. E é isso o que a igreja verdadeira
deve oferecer a membros de outras comunidades que a procuram nessas
condições.
Finalmente, uma palavra de alerta precisa ser dita a quem sai em busca
de uma igreja a que possa se filiar. É preciso ter cuidado com a tendência dos
crentes modernos que, na escolha de uma igreja, não levam em conta o que
realmente é importante. É frequente os crentes procurarem uma igreja que tenha
belos espetáculos musicais durante os cultos, bastante conforto e comodidade
para desfrutar (boas instalações, amplo estacionamento, bela decoração, etc.), e
inúmeras atividades sociais, como festas, retiros e passeios. Obviamente, tudo
isso tem certa importância. No entanto, esses elementos não podem servir como
fatores determinantes da igreja que se deve escolher.
O que é preciso procurar numa igreja é, basicamente, ensino bíblico de
qualidade, aplicação da disciplina eclesiástica e primor pela ordem e pela
decência. A igreja que não enfatiza essas coisas não deve jamais atrair o crente,
não importa quão espetaculares sejam seus cultos, nem quanta comodidade
ofereça, nem ainda quantas festas, acampamentos ou atividades promova.
Isso porque o que deve atrair o crente a filiar-se a outra igreja é o desejo
de ser alimentado espiritualmente com o ensino sólido da Palavra de Deus,
dentro de um ambiente genuinamente cristão, em que sua edificação e a de sua
família sejam promovidas com alegria e paz entre pessoas que, com coração
puro, invocam ao Senhor (2Tm 2.22).

Os membros que chegam

Geralmente, quatro são os meios pelos quais alguém se torna membro de


uma igreja evangélica, a saber: carta de transferência, batismo, aclamação e
reconciliação.
A carta de transferência é usada quando um crente que faz parte de
determinada igreja manifesta o desejo de ser membro de outra da mesma
denominação.
Em linhas gerais, funciona assim: a pedido do candidato à membrezia,
uma determinada igreja reunida em assembleia ou na figura de seu conselho
(dependendo da forma de governo que adota), decide solicitar à igreja de onde
ele procede uma carta da qual conste que nenhuma pendência existe em sua vida
que o impeça de fazer parte da igreja que o está recebendo.
Em seguida, a igreja solicitada, também após a aprovação da assembleia
ou voto favorável do conselho, envia a carta requerida, tomando ciência de que o
irmão em pauta está se desligando de seu rol de membros e fornecendo as
informações solicitadas. No momento em que essa carta é formalmente lida
diante da igreja solicitante ou do seu conselho de líderes, não constando nenhum
impedimento, o candidato passa a integrar o seu rol de membros.
Esse método, com ligeiras variações, é o mais usado pelas principais
denominações históricas, na sua forma de administrar o trânsito de membros
entre suas próprias congregações. Quando o candidato à membrezia provém de
outra denominação igualmente bíblica, o documento que algumas vezes é
solicitado por essas igrejas é a carta de referência ou de apresentação.
A segunda forma de recebimento de membros é o batismo. Os que se
tornam membros por essa via são geralmente crentes novos, pessoas que
conheceram a Cristo em data recente.
É recomendável que esses irmãos, antes de serem batizados, frequentem
uma classe preparatória e, somente ao final de um período indeterminado de
ensino cristão básico, façam profissão de fé diante da igreja e sejam batizados,
passando a integrar o rol de membros.
É verdade que, no Novo Testamento, o batismo era realizado tão logo a
pessoa se convertesse (At 2.41; 8.38; 9.18, etc.). Contudo, isso ocorria porque,
em geral, os convertidos, sendo em grande parte judeus ou pessoas
familiarizadas com a fé judaica, eram dotados de um grau de conhecimento
bíblico que tornava desnecessária qualquer preparação prévia. Com o tempo,
porém, essa realidade mudou e os pastores viram a necessidade de conscientizar
melhor os novos convertidos acerca dos pontos essenciais do cristianismo, antes
de os receberam em suas congregações como membros.
A aclamação é o meio de aceitação de um novo membro pela simples
aprovação da assembleia ou do conselho da igreja (nesse caso, é mais
propriamente chamada de recebimento ex officio), sem necessidade de nenhuma
outra formalidade. Ocorre quando, depois de conhecer por algum tempo o
candidato, a igreja ou seu conselho, dando crédito ao testemunho dele de
conversão e batismo, aprova a sua inclusão em seu rol de membros.
Uma pessoa também pode se tornar membro de uma igreja verdadeira
mediante pedido de reconciliação. Esse método deve ser utilizado
exclusivamente quando o candidato foi excluído de sua igreja de origem por
causa de pecado obstinado.
Evidentemente, o requisito fundamental para que alguém seja aceito na
igreja mediante pedido de reconciliação é o arrependimento. Este, é claro, deverá
vir acompanhado de evidências de sua veracidade. Tanto que, quando possível, é
útil exigir que o solicitante procure a igreja à qual ofendeu e lhe peça perdão
humildemente, antes de ser oficialmente integrado na nova comunidade que está
frequentando.
A aceitação de alguém mediante pedido de reconciliação deve ser
precedida de muito cuidado. Do contrário, corre-se o risco de dar oportunidade
para que pessoas rebeldes, expulsas de suas igrejas, se refugiem atrás de outras
trazendo consigo pecados horríveis que depressa contaminarão a igreja
descuidada (1Co 5.6), causando prejuízos, tristezas, sofrimentos e vergonha para
todos.
O requisito essencial

Seja qual for o método mediante o qual alguém se torne membro de uma
igreja verdadeira, deve-se exigir de todos os candidatos um requisito essencial
sem o qual ninguém poderá sequer sonhar em fazer parte da igreja de Deus: ser
realmente crente em Jesus Cristo.
Por isso, quando uma pessoa diz que quer ser incluída no rol de membros
de determinada igreja local, a primeira pergunta a ser feita é: “Como foi a sua
conversão?”. Com essa pergunta, espera-se que o candidato conte como e
quando se rendeu aos pés de Cristo, crendo nele a ponto de recebê-lo como
único e suficiente Salvador (Jo 1.12).
Se o indivíduo que quer ser membro da igreja nunca reconheceu que é
pecador (Rm 3.23), nunca aprendeu que Cristo morreu pelos pecados e
ressuscitou ao terceiro dia a fim de justificar os pecadores diante de Deus (Rm
4.25; 5.1,8), nunca se curvou aos pés de Cristo, crendo nele como Salvador (Mt
11.28-30; Jo 6.37), enfim, nunca “nasceu de novo” (Jo 3.3 cf. 2Co 5.17), esse
indivíduo não deve ser recebido de modo nenhum como membro até que, pela fé
em Jesus (Jo 3.16, 36), seja feito nova criatura.
Ser portador de cartas de transferência ou de referência emitidas por
outras igrejas, pertencer a famílias tradicionalmente evangélicas, frequentar
assiduamente os cultos, nutrir amizade com os líderes eclesiásticos... nada disso
substituirá o requisito essencial para se tornar membro da igreja, isto é, a
conversão.
Por isso, em conversa particular com o interessado a ingressar na igreja,
o pastor deve sempre perguntar acerca de sua conversão e, verificando pelo
testemunho dado os sinais do novo nascimento, deve aconselhar o candidato a
frequentar os cultos, a participar da classe de novos membros (especialmente se
será recebido por meio do batismo) e a cultivar amizades durante alguns meses,
ao cabo dos quais será conhecido por quase todos e também conhecerá melhor a
igreja à qual deseja pertencer.
Somente depois disso, as medidas práticas para o efetivo arrolamento do
candidato, tais como cartas, entrevistas e profissões de fé, poderão ser tomadas.

A saída da igreja por vias administrativas

O desligamento de um membro da igreja por vias meramente


administrativas pode ocorrer de duas maneiras: pedido de carta de transferência
e desligamento direto.
Conforme visto, quando um membro de determinada igreja manifesta o
desejo de pertencer a outra da mesma denominação, o instrumento pelo qual se
realiza essa mudança é a carta de transferência. O interessado dirige o pedido à
igreja a que quer pertencer e esta formaliza o pedido à igreja de onde o crente
procede. Se for aprovado, a igreja solicitada emite uma carta à igreja solicitante
concedendo a transferência.
A rigor, no exato momento em que a referida igreja, por intermédio da
assembleia ou do conselho que a representa, aprova a concessão da carta, o
membro interessado na transferência deixa de pertencer ao seu rol. Logo, não é
necessária a chegada da carta à igreja solicitante para que o membro deixe de
fazer parte do rol da igreja solicitada. Para tanto, basta que esta aprove a
concessão da carta. Assim, o período em que a carta está em trânsito constitui
um interregno em que o membro não pertence nem à igreja solicitada (pois o seu
pedido de transferência já foi deferido), nem à igreja que pediu sua carta (pois a
carta que concede a transferência ainda não chegou a ela).
O desligamento direto, por sua vez, é um procedimento muito simples.
Nesse modelo, o nome de um membro da igreja é tirado do rol de maneira
imediata, logo após a aprovação da igreja em assembleia ou em reunião de
líderes, no caso das igrejas que conferem essa prerrogativa a um conselho.
Esse método é usado geralmente quando um membro de determinada
igreja filia-se a outra de diferente denominação, ou quando um membro
confessa que nunca foi de fato crente em Cristo (a exclusão por motivos
disciplinares não é cabível aqui, pois a disciplina bíblica, como se verá, só pode
ser aplicada a crentes), ou ainda quando abandona a comunhão com os irmãos
por ter mudado de residência, indo morar em local distante e incerto, tornando o
contato impossível.
Em suma, sempre que o caso não trouxer os contornos que tornem
possível a transferência mediante carta ou a exclusão por razões disciplinares
(conforme exposta a seguir), o meio de remoção de um membro será o
desligamento direto.

A disciplina eclesiástica

A exclusão por razões disciplinares (ou excomunhão, isto é, a remoção


de alguém da comunhão) é a forma mais dolorosa de desligamento de um
membro. De acordo com as Escrituras, essa severa medida só se aplica nos casos
de pecado obstinado, quando todas as tentativas de recuperar o ofensor forem
infrutíferas.
Desse modo, ninguém na igreja de Deus pode ser excluído por adultério,
fornicação, mau testemunho ou homossexualismo. Não são esses pecados em si
que levam à exclusão, mas sim a prática obstinada desses ou de qualquer outro
pecado. Assim, a obstinação é a única causa de exclusão disciplinar. Só a
postura rebelde, orgulhosa e contumaz levará a igreja a agir com mão forte e
amputar o membro que, gangrenado pela prática insistente do mal, põe em risco
a saúde de todo o corpo (1Co 5.6-7).
Portanto, se alguém praticar qualquer pecado, independentemente da
gravidade, e em seguida demonstrar real arrependimento, o desligamento não
poderá ocorrer. Por outro lado, mesmo os pecados que causem menor comoção,
como desobediência aos pais, má administração do dinheiro ou maledicência,
poderão dar causa a medidas disciplinares se aqueles que os praticarem se
revelarem obstinados, não aceitando a correção.
Isso é assim porque, na Bíblia, a rebelião e a obstinação são comparadas
respectivamente à feitiçaria e à idolatria (1Sm 15.23). Fica, portanto, fácil
entender porque a igreja não pode tolerar esses pecados, seja qual for a maneira
que se expressem.
O processo que culmina na aplicação da medida disciplinar é lento.
Baseia-se em Mateus 18.15-17. Nesse texto é dito que, ao se tomar
conhecimento de pecado na vida de um irmão, é necessário admoestá-lo
individualmente. Se a postura desse irmão não for de arrependimento, deve-se
levar mais dois ou três até ele a fim de que o admoestem. Se o trabalho do grupo
for infrutífero, o caso deve ser levado à igreja não para exclusão, mas para que
todos os irmãos admoestem o pecador impenitente, tentando convencê-lo da
necessidade do arrependimento. Se também nessa etapa do processo o
arrependimento não ocorrer, procede-se à exclusão.
É recomendável que a medida seja aplicada em reunião especialmente
convocada para esse fim. Tudo deve ser feito a portas fechadas, presentes apenas
os membros da igreja. No início da reunião, o pastor ou líder apresentará um
relatório de todo o processo mostrando que, biblicamente, a medida a ser tomada
agora é a “amputação”. Os membros da igreja deverão ter oportunidade de se
manifestar, apresentando suas dúvidas ou enriquecendo o relatório dado com
testemunhos pessoais.
Em seguida, a igreja unânime, convencida de que a exclusão é,
infelizmente, o único caminho a seguir, declarará removido o membro rebelde da
comunhão com o corpo de Cristo representado pela igreja ali reunida e pedirá ao
Senhor que o trate como alguém fora do convívio dos santos (Mt 18.17), preso
ao seu pecado (Mt 18.18) e sob a severa disciplina de Deus (Hb 10.26-31). Esse
pedido corresponde ao “entregar a Satanás” de que Paulo fala em 1Coríntios 5.5
e 1Timóteo 1.20.
Depois que esse ato for realizado pela igreja, o crente rebelde se verá
lançado novamente aos domínios de Satanás. Espera-se assim que,
experimentando as mais terríveis agruras espirituais e até físicas, ele se
arrependa e se volte humildemente para Cristo e sua igreja, suplicando perdão e
acolhida.
Deve-se observar que, em reunião especialmente convocada para
aplicação da disciplina bíblica, não há votação. Isso porque não cabe à igreja
decidir se deve ou não fazer o que Cristo ordena em Mateus 18.15-17.
O que pode ocorrer é o consenso de que a medida deve ser aplicada mais
tarde, a fim de que o impenitente tenha mais tempo para considerar sua situação
e os irmãos que ainda não o fizeram tenham oportunidade de admoestá-lo antes
da exclusão, já que, depois dela, todas as relações com o crente rebelde deverão
ser cortadas, conforme será visto a seguir. Essas decisões protelatórias poderão
ocorrer com relativa frequência, e a igreja deve cuidar para que o constante
adiamento não perpetue o mal em seu seio.
Após a reunião disciplinar, o membro excluído será desligado do rol de
membros na assembleia ordinária que sobrevier. Esta será uma simples medida
administrativa, tendo por propósito cumprir mera formalidade, pois não fará
sentido manter no rol de membros o nome de alguém que foi desligado por
razões disciplinares.
Como já foi dito, o processo que culmina na exclusão por razões
disciplinares é lento. Em muitos casos se arrasta por meses a fio. Isso porque,
antes de se tomar medida tão séria, é fundamental que a igreja esteja convicta de
que fez todo o possível para recuperar o irmão caído.
Há casos especiais, porém, em que a exclusão por razões disciplinares
segue um rito sumário. Isso ocorre quando o membro está vivendo em pecado
sem a menor discrição, apresentando-se em sua conduta vil diante de toda a
sociedade, sem demonstrar nenhum constrangimento por isso.
É o caso, por exemplo, do crente que abandona a esposa e vai morar com
a amante, passando a andar com ela pelas ruas e apresentando-a às pessoas com
toda a naturalidade. Em casos como esse, a obstinação é verificada de pronto e a
igreja não poderá se demorar em aplicar a medida de exclusão, pois o nome do
evangelho estará sendo publicamente manchado. Algo, portanto, deverá ser feito
de imediato.
É nessas ocasiões que, em vez de adotar o modelo descrito em Mateus
18.15-17, aplica-se o processo descrito em 1Coríntios 5.1-5, em que Paulo trata
de um pecado chocante que era de conhecimento público. O processo consistirá
em apresentar o problema diretamente à igreja que, sem mais delongas, munida
de provas incontestáveis, realizará a imediata “amputação”.
Há outra hipótese em que os passos de Mateus 18 podem ser substituídos
por outro procedimento. Trata-se dos casos de pecados cometidos por grupos da
igreja.
Nessas ocasiões, fica difícil para o membro que toma conhecimento do
problema procurar cada indivíduo em particular e dar o primeiro passo no
processo de recuperação. Aliás, muitas vezes, o crente que fica sabendo de
problemas assim sequer tem estrutura emocional para confrontar cada membro
do grupo.
Por isso, ocorrendo essa hipótese, recomenda-se seguir o procedimento
mencionado em 1Coríntios 1.11. Nesse texto é dito que os “da casa de Cloe”, ao
perceber a conduta errada de certos grupos da igreja de Corinto, comunicaram o
problema diretamente a Paulo, que passou a tratar do assunto. Esse exemplo
mostra que é possível o crente que sabe do pecado conjunto de seus irmãos
procurar o líder da igreja e lhe transferir o dever de confrontar os que se têm
associado para agir de modo reprovável e vergonhoso.
A aplicação da disciplina bíblica suscita uma importante questão: como
devem os crentes se relacionar com o membro excluído por razões disciplinares?
O ensino neotestamentário mostra que a disciplina consiste em abandono e
afastamento. O membro excluído, conforme o ensino de Jesus e de Paulo, deve
ser cortado da esfera de relacionamentos e dos círculos de amizade dos cristãos
(Mt 18.17; Rm 16.17; 1Co 5.11; 2Ts 3.6).
Observe-se que essa é a essência da punição eclesiástica, capaz de fazer o
crente rebelde sentir, em alguma medida, o gosto amargo do seu castigo. Na
verdade, sem isso, a exclusão não fará o menor sentido, tornando-se apenas a
remoção de um nome da lista de membros da igreja.
Em vista disso, na igreja de Deus, quando alguém chega ao extremo de
ser excluído por razões disciplinares, todos os irmãos são orientados a se afastar
dele. Espera-se, então, que, ao sentir a perda da comunhão com a igreja, o
pecador rebelde, que não pôde ser levado ao arrependimento pelas constantes e
pacientes admoestações de todos, o seja pela disciplina dolorosa sentida quando
é tratado como “gentio e publicano” (Mt 18.17).
Note-se que o irmão que não segue essa orientação e continua a se
relacionar normalmente com o excluído frustra o propósito da disciplina e torna-
se empecilho para a recuperação do ofensor, uma vez que abranda o peso da
medida, além de demonstrar completo desrespeito às orientações bíblicas e às
decisões da igreja.
A história eclesiástica mostra que esse procedimento, ensinado pelo
apóstolo Paulo, foi precisamente o adotado na igreja antiga. Edward Gibbon
(1737-1794), ao escrever sobre a disciplina na igreja dos primeiros séculos, diz:

Os cristãos contra os quais ela tivesse sido lançada se


viam privados de participar das oblações dos fiéis.
Dissolviam-se os vínculos de amizade quer religiosa, quer
pessoal; ele se tornava objeto profano de aversão por parte
das pessoas às quais mais estimava ou pelas quais houvesse
sido mais ternamente amado; e na medida em que uma
expulsão do seio de uma sociedade pudesse imprimir-lhe no
caráter um sentimento de desonra, as pessoas em geral o
evitavam ou o encaravam suspeitosamente.[60]

Uma das mais claras evidências de que a descrição de Gibbon é exata


pode ser colhida no sermão Contra os Espetáculos, pronunciado por João
Crisóstomo (c. 354-407). Nesse sermão, o grande pregador, ao falar sobre a
hipótese de alguns crentes serem excluídos da comunhão, orienta sua igreja nos
seguintes termos:

Sejam expulsas, pois, tais pessoas, a fim de que os sãos


tenham saúde mais robusta ainda e os doentes se
restabeleçam de sua grave moléstia… Portanto, quem quiser
continuar na vida impura não entre na igreja, mas seja
censurado por vós… Fazei assim, não converseis com tal
pessoa, não a recebais em casa, não comais com ela, evitai
sua companhia nas viagens, passeios e negócios. Desta
maneira será reconquistada com facilidade.[61]
Há quem diga que tal procedimento, mesmo tendo sido ensinado por
Jesus e por Paulo, não revela amor (!), pois os membros caídos, dizem, precisam
ser buscados, não abandonados.
Deve-se, porém, lembrar de que antes da exclusão, essas pessoas são
persistentemente buscadas e só se tornam objeto da disciplina quando se revelam
inamovíveis em sua decisão de não dar ouvidos às palavras de exortação e
sabedoria que lhes são dirigidas.
Essa atitude obstinada mostra que tais pessoas não querem de modo
nenhum abandonar os seus pecados. É só quando se verifica esse estado de
coisas que a dura disciplina bíblica é aplicada. Se não for, o amor e a paciência
se transformarão em tolerância para com o pecado e o Senhor Jesus Cristo
repreenderá a igreja, acusando-a de abrigar passivamente o mal em seu seio (Ap
2.20).
Por isso, o povo de Deus deve evitar que a pureza da igreja seja
sacrificada com o argumento aparentemente piedoso de que é preciso ter mais
amor. Ademais, deve ser reconhecido que a disciplina eclesiástica não é um fim
em si, mas é, na verdade, um meio empregado para recuperar o pecador
obstinado. Trata-se, assim, de um ato de amor, pois quem ama, corrige; quem
ama às vezes precisa ferir (Pv 27.6). O próprio Deus age assim com seu povo
(Hb 12. 4-11).
Outro fator a se considerar com seriedade é que a disciplina eclesiástica
é, acima de tudo, uma forma de sobrevivência! Isso porque é por meio dela que a
igreja se livra do fermento do mal que fatalmente leveda a massa toda, caso não
seja removido (1Co 5.6-7). Além disso, é preciso destacar que a disciplina
também tem efeito preventivo, já que incute um temor salutar nos demais
crentes, fazendo-os ser mais cuidadosos e vigilantes em seu proceder (At 5.11).
Por tudo isso, feliz será a igreja que zelar pela disciplina em seu meio.
Aliás, é precisamente o desmazelo nesse campo que tem gerado tantas tristezas e
dissabores dentro das comunidades eclesiásticas, além de inúmeros escândalos.
Antes de encerrar este assunto, uma palavra precisa ser dita quanto a um
instrumento de desligamento muito usado por aqueles que querem viver no
pecado sem enfrentar os incômodos da disciplina bíblica. Trata-se da “carta de
pedido de exclusão”. Como se pode deduzir do próprio nome, essa carta é escrita
e assinada pelo membro da igreja interessado em seu próprio desligamento.
Nela, o referido membro pede para ser excluído alegando motivos particulares
ou razões pessoais.
Quando perceber que uma carta desse tipo tem como alvo driblar a
disciplina bíblica, a igreja zelosa não poderá aceitá-la. Se o fizer, será conivente
com os membros que buscam subterfúgios para se ver livres da maneira que a
Bíblia ensina tratar o pecado.
Dúvidas comuns

1) O batismo realizado em seitas pode ser reconhecido como válido no


recebimento de um novo membro?
Os batismos realizados nas seitas geralmente são rituais supersticiosos de
purificação ou formas de se obter a salvação. Algumas seitas não batizam em
nome do Deus Trino e há ainda aquelas, geralmente do meio neopentecostal,
que ensinam que o batismo é uma forma de se conquistar sucesso, curas e
bênçãos especiais. Por tudo isso, os batismos realizados nas seitas não são
batismos bíblicos e verdadeiramente cristãos. Assim, não podem ser aceitos
como válidos.

2) O terceiro passo do processo disciplinar descrito em Mateus 18 (“leva-o à


igreja”) dificilmente pode ser dado, pois os crentes obstinados, muitas vezes, se
recusam a ir à igreja. Como fazer, então?
Muito simples. Se o crente em pecado se recusa a comparecer diante da igreja
para ser admoestado e, enfim, conduzido ao arrependimento, fica de pronto
caracterizado o fato de ele “se recusar ouvir também a igreja”. Nesse caso, o
terceiro passo será considerado superado e a exclusão será aplicada.

3) Como agir no caso do membro da igreja que sempre se arrepende quando é


admoestado pelos irmãos, mas nunca muda definitivamente de vida?
O nome dado a isso é “arrependimento ficto”. Essa forma de arrependimento é
apenas um subterfúgio que algumas pessoas adotam para tentar se livrar da
disciplina. Na verdade o arrependimento ficto é uma forma branda e disfarçada
de obstinação que, se for tolerada, perpetuará o pecado na igreja. Por isso,
percebendo sua ocorrência, a igreja não deve se deixar enganar, mas sim dar
sequência normal ao processo disciplinar.

4) Como cortar a comunhão com um crente disciplinado, quando esse crente é da


própria família (cônjuge, pai, filho, irmão, etc.)?
Não há previsão bíblica para essa hipótese. Obviamente, não haverá como
cortar totalmente o contato com alguém da família imediata e o tratamento
amigo, simpático, respeitoso e amoroso deve permanecer dentro do lar mesmo
no trato com o parente que foi disciplinado pela igreja. Contudo, uma boa
sugestão é os membros da família fazerem o excluído sentir seu abandono pelo
menos no âmbito espiritual. Isso eles farão interrompendo as admoestações
bíblicas que antes lhe dirigiam, parando de convidá-lo para ir à igreja,
deixando-o fora dos cultos domésticos e das conversas relacionadas à igreja e à
fé, enfim, cortando-o de tudo que se relaciona à vida com Deus. Agindo assim o
parente excluído perceberá que, mesmo morando na casa de pessoas crentes,
não desfruta mais dos privilégios da comunidade da fé e ali também é tratado
como gentio e publicano. A dor que isso causará no cristão verdadeiro que está
em disciplina o fará abandonar depressa a vida de pecado.

5) O que fazer quando um membro da igreja, ao longo do processo disciplinar,


confessa que não é crente?
A disciplina é para alguém que, “dizendo-se irmão”, vive no pecado (1Co 5.11).
Se um membro da igreja diz que não é crente, não é possível que a igreja o
entregue a Satanás”(1Co 5.3-5), pois não há como colocá-lo nas mãos de quem
ele nunca deixou de estar. Por isso, no caso de membros que confessam ser
incrédulos, a igreja deverá apenas removê-los do rol de membros numa
assembleia administrativa comum. Se o ex-membro quiser continuar a vir à
igreja, é até possível permitir, ficando os líderes atentos ao perigo de sua
influência. Se perceberem que sua presença ali está sendo danosa, então
poderão proibir sua entrada.

6) É possível impedir que um membro disciplinado entre na igreja e participe


dos cultos?
É claro que sim. A igreja realiza cultos abertos ao público, mas ela não é uma
entidade pública, nem seus imóveis são públicos. Em vez disso, sob o ponto de
vista legal, a igreja é uma pessoa jurídica de direito privado. Por isso, pode
gerir o ingresso às suas propriedades como bem lhe parecer. Assim, se seus
membros e administradores entenderem que devem limitar o acesso às suas
dependências, proibindo que alguém entre, poderão fazê-lo livremente, desde
que as causas dessa restrição não sejam ilegais ou criminosas.

7) Quando a disciplina acaba?


A disciplina não tem um tempo definido de duração. Ela acaba quando ocorre o
arrependimento. Se o arrependimento nunca ocorrer, a disciplina perdurará
indefinidamente. Caso, porém, o crente excluído se arrependa, deverá
comunicar isso à igreja, pedir perdão por tê-la ferido e desprezado e suplicar
sua readmissão. A igreja então, deverá perdoar o suplicante imediatamente e a
disciplina, tendo alcançado seu objetivo, terminará (2Co 2.5-8).
Capítulo 6 – OS DEVERES DOS MEMBROS DA IGREJA
LOCAL
Após seu ingresso numa igreja bíblica, o crente passa a ter certos deveres
e obrigações diante da irmandade. Isso é tão claro no Novo Testamento que é de
surpreender que, nos tempos atuais, esse aspecto do ensino apostólico seja tão
negligenciado.
Na verdade, a impressão que se tem nos dias de hoje é que o
envolvimento do crente com a igreja de que é membro é meramente opcional,
sendo o bastante que compareça aos cultos eventualmente.
É claro que todo trabalho e compromisso assumido por um crente diante
de sua igreja é voluntário. Porém, os cristãos que conhecem o ensino bíblico
sabem que essa voluntariedade é a voluntariedade de um servo, ou seja, é a
voluntariedade de quem disse: “Sou um discípulo e servo de Cristo e estou
comprometido com sua causa nesta igreja de que faço parte”. É, pois, essa “livre
obrigação” que deve mover o crente na direção de um envolvimento mais
intenso no dia a dia da igreja, fazendo disso um dos aspectos prioritários da sua
vida.
É pelo fato de muitos crentes não entenderem essas verdades que os dias
modernos viram o surgimento de uma geração de discípulos sem compromisso
algum com a igreja, distantes da sua realidade, ignorantes quanto às suas
particularidades e apáticos diante de seus problemas, lutas e ideais.
Sem dúvida, toda essa situação precisa mudar para que a presente
geração cause um impacto maior na história e deixe um legado mais rico para os
que estão por vir. Para que isso aconteça, é necessário que os discípulos de
Cristo ouçam a voz da Bíblia e aprendam dela como deve ser sua participação na
comunidade da fé.
Ora, o crente que se empenhar nesse sentido descobrirá que suas
responsabilidades junto à igreja podem ser resumidas em três palavras:
comunhão, cooperação e contribuição. Ele também se surpreenderá ao perceber
que sobre o cristão pesam sérios deveres em relação aos seus pastores, conforme
será visto neste capítulo.

A comunhão

Por comunhão entende-se a convivência amorosa, pacífica, pura e


produtiva que deve marcar todo ajuntamento cristão. Sendo, a princípio,
amorosa e pacífica, a comunhão cristã revela o sentido da verdadeira unidade e,
com isso, mostra ao mundo que a igreja é uma autêntica comunidade de
discípulos de Jesus (Jo 13.35).
Como isso ocorre? É simples: a unidade que caracteriza o convívio
cristão revela que os membros da igreja estão nutrindo “o mesmo sentimento que
houve também em Cristo Jesus” (Fp 2.5), provando, assim, que são seus
verdadeiros seguidores.
O texto que mais ajuda na compreensão disso é Filipenses 2.1-8,
passagem que trata do que os teólogos chamam de “esvaziamento” (kenosis) de
Cristo. Nesse texto, Paulo ensina que o Senhor não se apegou aos magníficos
privilégios que tinha antes de se encarnar. Em vez disso, se “esvaziou”, ou seja,
deixou para trás o esplendor da sua glória, fez-se homem, assumiu a forma de
servo e humilhou-se até a morte de cruz (v. 5-8)!
Observe-se que essa passagem, talvez a mais rica da Carta aos Filipenses
em termos de conteúdo doutrinário, foi escrita por Paulo precisamente com a
finalidade de ilustrar como deve ser a disposição do coração dos crentes no
convívio entre si.
De fato, após ensinar que os filipenses deveriam ter seu ajuntamento
marcado por amor, compaixão, unidade, humildade e desprendimento (vv. 1-4),
o apóstolo resumiu todos esses itens num exemplo magnífico, apontando para o
autoesvaziamento do Senhor. É, pois, como se dissesse: “Irmãos, sejam
amorosos e humildes no seu convívio, ou seja, imitem o Senhor. Assim como ele
se esvaziou por amor de nós, abrindo mão de sua glória real, esvaziem-se vocês
também no trato de uns com os outros, abrindo mão de sua glória imaginária.”
Assim, a base do apelo à comunhão cristã amorosa não é o simples anelo
pela paz social (presente até nos incrédulos), mas sim a cristologia ortodoxa que
destaca a disposição humilde do Filho de Deus, apontando-a como modelo a ser
seguido pelos discípulos no cultivo do relacionamento que têm entre si.
Negligenciar, pois, essa santa comunhão, ou militar contra ela, é, em
último caso, desprezar o exemplo dado por Cristo em sua encarnação,
humilhação e morte.
A comunhão cristã, além de amorosa e pacífica, também deve ser
produtiva. Não basta ao membro da igreja ser apenas um “cara legal”, um amigo
bonzinho que nunca se indispõe com os outros. Mais do que isso, sua
aproximação dos irmãos deve também promover crescimento, consolo e
correção.
No fundamento desse ensino está, por exemplo, a ordem de Jesus
dirigida a Pedro: “E quando você se converter, fortaleça os seus irmãos” (Lc
22.32), mostrando que a restauração da comunhão com Deus deve ser seguida de
trabalho em prol da saúde espiritual da igreja.
Há também a verdade ilustrada por Paulo na figura da igreja como
organismo vivo, no qual cada crente deve atuar como membro singular, usando
seus dons e desempenhando suas funções em favor do crescimento do todo (Rm
12.3-8; 1Co 12.12-31; Ef 4.1-16).
Finalmente, existe a firme exortação dirigida aos cristãos hebreus,
ordenando que eles não deixem de se congregar. O que chama a atenção nessa
ordem é que o autor bíblico não diz que a conduta oposta ao abandono da
congregação é apenas voltar a reunir-se. Em vez disso, ele diz: “... mas
procuremos encorajar-nos uns aos outros...” (Hb 10.25), dando a entender que o
contrário de abandonar a igreja é mais do que frequentá-la. É frequentá-la
realizando um trabalho de aconselhamento, correção, admoestação e consolo.

A cooperação

Cooperação é o termo usado para referir o trabalho conjunto. Cooperar,


pois, com alguém é labutar ao seu lado, empenhando-se por alcançar seus
mesmos objetivos. Assim, quando se diz que o crente deve cooperar com sua
igreja, isso significa que ele deve empreender esforços ao lado de seus irmãos
para fazer com que a comunidade eclesiástica de que faz parte realize seus ideais
da maneira mais célere e da melhor forma possível.
Quais seriam os ideais da igreja pelos quais os seus membros deveriam
juntos lutar? O Novo Testamento aponta pelo menos três: a promoção e defesa
da fé evangélica; a edificação do corpo de Cristo; e a pureza da comunidade dos
santos.
Que os crentes devem trabalhar unidos pela promoção e defesa da fé
cristã está claro na expectativa de Paulo em relação aos irmãos de Filipos, sobre
quem ele anelava ouvir que permaneciam “firmes num só espírito, lutando
unânimes pela fé evangélica” (Fp 1.27).
Quanto ao empenho conjunto visando à edificação do corpo de Cristo,
sua base mais nítida encontra-se em Efésios 4.16, o qual diz que o corpo de
Cristo, isto é, a igreja, edifica-se em amor, “segundo a justa cooperação de cada
parte”. Aliás, conforme foi destacado no subtítulo anterior, esse deve ser um dos
objetivos da comunhão cristã verdadeira.
Já no tocante à cooperação dos crentes entre si tendo em vista a pureza da
igreja, o fundamento desse ideal pode ser verificado em 1Coríntios 5.7, texto em
que Paulo ordena que a igreja como um todo tome sobre si a tarefa de lançar fora
o velho fermento do pecado. Note-se que os coríntios deveriam fazer isso
quando estivessem reunidos (1Co 5.4), de maneira que o trabalho de purificação
da igreja fosse coletivo.
Na prática, a colaboração do crente na busca desses alvos tão importantes
do povo de Deus pode assumir os mais diferentes contornos. Ministrar uma aula
ou apagar uma lousa para que essa mesma aula possa ser ministrada são
igualmente formas de cooperar com o ideal de defesa e expansão da fé. De
forma semelhante, o irmão que recebe com simpatia um visitante e o irmão que
varre o salão de cultos onde esse mesmo visitante é recebido estão cooperando
com o ideal sagrado de promover a verdade que liberta. Também o crente que
exorta um irmão em particular dentro de uma sala e o crente que troca a lâmpada
queimada dessa mesma sala em que a exortação é feita laboram lado a lado em
prol da pureza da igreja, sendo colegas de serviço no Reino, desfrutando do
mesmo status diante do Senhor para quem trabalham.
Infelizmente, porém, o quadro evangélico atual mostra um grande
distanciamento dessa visão. De fato, poucos crentes cooperam com intensa
dedicação na realização dos alvos santos da igreja, sendo imenso o número de
membros de comunidades locais que não fazem absolutamente nada, mantendo-
se distantes e apáticos, muitas vezes até murmurando contra quem obedece a
ordem bíblica de cooperar.
Crentes assim devem avaliar onde realmente está seu coração e trazer à
superfície de sua memória o ensino de Paulo acerca do alvo sublime que devem
perseguir nesta vida, conforme registrado em 2Coríntios 5.15: “E ele morreu por
todos para que aqueles que vivem já não vivam mais para si mesmos, mas para
aquele que por eles morreu e ressuscitou”.

A contribuição

Uma forma branda de legalismo controla a prática de muitas igrejas


evangélicas. Esse legalismo leve se expressa especialmente na obrigação
imposta aos crentes de “pagar” o dízimo, tomando como base a Lei Mosaica.
De fato, a Lei de Moisés exigia que os israelitas entregassem o dízimo de
tudo ao Senhor (Lv 27.30-32; Dt 14.22-26; Hb 7.5), sendo certo que nos dias de
Jesus essa norma ainda vigorava, já que ele nasceu sob a Lei (Gl 4.4) e, por isso,
até aprovou a obediência a essa regra (Mt 23.23).
Porém, com a morte do Senhor, uma nova fase começou. A Nova
Aliança, diferente da mosaica, apontando Cristo como o novo sumo sacerdote
diante de Deus, trouxe mudança de lei (Hb 7.12), livrando o crente das
exigências do código imposto a Israel no deserto (2Co 3.7-11; Gl 3.19, 23-25; Ef
2.14-15; Cl 2.13-14; Hb 7.18-19; 8.6-7,13).
Isso faz, entre outras coisas, com que os dízimos dos cristãos sejam
semelhantes aos de Abraão e Jacó, homens que viveram antes da entrega da Lei
a Moisés e que, assim, deram seus dízimos não por obrigação legal, mas
voluntariamente, como demonstrações de gratidão, compromisso e devoção (Gn
14.20; 28.22).
Com efeito, sob a Nova Aliança, o crente é estimulado pelo Espírito
Santo que nele habita a cumprir espontaneamente a justiça que há na Lei (Rm
7.4-6; 8.3-4; Hb 8.10-12). Por isso, todo crente genuíno se vê impelido por Deus
a honrá-lo com recursos materiais a fim de que a causa do Senhor seja mantida
neste mundo. E o bom cristão deve atender a esses impulsos livremente, cheio de
alegria no coração, sem barganhar com Deus e sem ser ameaçado ou forçado por
seus líderes.
Surge, então, a pergunta: que necessidades e deveres materiais recaem
sobre a igreja local para que seus membros sejam sensíveis ao estímulo do
Espírito Santo e contribuam financeiramente com ela?
A resposta a isso é muito simples. O Novo Testamento ensina que sobre a
igreja pesa o dever de enviar recursos para obreiros que estão passando por
dificuldades no trabalho que realizam (2Co 11.8-9; 12.13). Paulo diz que dádivas
assim apresentadas são como “uma oferta de aroma suave, um sacrifício
aceitável e agradável a Deus” (Fp 4.14-18).
É ainda claro no Novo Testamento o costume de a igreja auxiliar nas
despesas de quem viaja como missionário aprovado por ela (Rm 15.24; 3Jo 5-8).
O socorro material de irmãos que são verdadeiramente carentes é também
responsabilidade da igreja de que fazem parte, caso não tenham família (1Tm
5.3-6,16). Além disso, a igreja tem o dever de sustentar os pastores que a
governam e ensinam bem, sendo esse tipo de obreiro “digno do seu salário”
(1Tm 5.17-18). Aliás, o ensino de que os ministros de Deus devem receber
recursos materiais da igreja se constitui num dos princípios defendidos por Paulo
com mais vigor e veemência (1Co 9.4-14).
Ora, pesando todos esses deveres sobre a igreja local, além das despesas
comuns próprias de qualquer organização, de onde devem vir os recursos para
sua realização? Do Estado? Dos incrédulos? De empresas ou entidades
simpatizantes do evangelho? É certo que não. Os crentes individuais é que
devem ser a fonte de todos esses recursos e o Novo Testamento mostra que
mesmo os cristãos mais pobres se dispõem a assumir esse papel quando atendem
ao impulso do Espírito que habita neles e são agraciados por Deus com o desejo
de contribuir (2Co 8.1-5).

Os deveres do crente para com seu pastor

Muito se fala sobre as responsabilidades dos pastores em relação às suas


ovelhas. Entretanto, quase nenhuma ênfase é dada ao que a Bíblia diz sobre os
deveres das ovelhas em relação ao seu pastor. Esses deveres, porém, existem e
podem ser resumidos em três palavras: sujeição, consideração e sustento.
Os dias atuais são marcados por uma verdadeira crise no campo da
autoridade. O homem moderno perdeu qualquer noção de obediência a
indivíduos legitimamente investidos no poder (2Pe 2.10). Por isso, quando se
fala em sujeição, certo desconforto se insinua no coração das pessoas como se
essa palavra evocasse apenas noções de opressão, privação de liberdade, tirania e
manipulação egoísta.
Contudo, goste ou não, o cristão de verdade deve encarar o fato de que a
Bíblia exige que os servos de Deus se sujeitem às autoridades que o Senhor
estabeleceu, quais sejam os governadores e seus representantes no âmbito estatal
(Rm 13.1-7; Tt 3.1; 1Pe 2.13-14), os maridos e pais na esfera familiar (Ef 5.22-
24; 6.1-2; 1Pe 3.1) e os ministros de Cristo no contexto eclesiástico (At 20.28;
Ef 4.11-12; 1Pe 5.1-3).
Ocorre, porém, que, assim como o cristão mundano não se importa em
obedecer a autoridade civil e a esposa com mentalidade secular não aceita
submeter-se ao marido, da mesma forma, crentes comuns, movidos por conceitos
antibíblicos, opõem resistência ao ensino apostólico acerca da obediência ao
líder da igreja. A Escritura, porém, é clara e coloca sobre o crente o dever de se
sujeitar ao seu pastor (1Pe 5.5).[62]
É óbvio que essa obediência não deve ser cega, disposta a acolher ordens
tolas, insensatas ou injustas. Há líderes maus que emitem comandos errados e até
perversos como era o caso de Diótrefes, mencionado em 3João 9-10. Obedecer a
líderes assim é contribuir para a deterioração da igreja e trabalhar para o
enfraquecimento da causa do Mestre.
Por isso, diante de situações em que a ordem do pastor tem claramente o
potencial de gerar prejuízos, o crente deve expor com brandura os motivos
porque não pretende fazer o que foi ordenado, ajudando o líder a enxergar os
perigos que sua ordem encerra e fazendo isso sem provocar atritos.
Em situações normais, porém, a sujeição dos membros ao pastor deve ser
branda e marcada por prontidão. O texto bíblico que mais claramente encerra
esse dever imposto às ovelhas encontra-se em Hebreus 13.17: “Obedeçam aos
seus líderes e submetam-se à autoridade deles. Eles cuidam de vocês como quem
deve prestar contas. Obedeçam-lhes para que o trabalho deles seja uma alegria e
não um peso, pois isso não seria proveitoso para vocês”.
De acordo com o texto citado, os crentes devem obedecer aos seus
pastores porque eles cuidam do rebanho como quem terá de dar explicações a
Deus acerca do modo como realizou suas tarefas.
A noção presente no texto grego é de um cuidado constante e sem
descanso (agrypnéo). Assim, parece que uma das bases que dão ao pastor
suporte para exigir a obediência das ovelhas é precisamente seu trabalho
contínuo de proteção, vigilância e amparo em prol daqueles que lhe foram
confiados. Dessa forma, quanto mais o pastor demonstrar cuidado do rebanho,
mais será merecedor de obediência.
O texto diz ainda que a obediência dos crentes fará com que o pastor
realize seu trabalho com alegria e não com gemidos (stenázo). Com efeito, nada
tortura, desanima e entristece mais o ministro eclesiástico do que a postura
rebelde de alguns membros de sua igreja que insistem em desprezar suas ordens,
fazendo-lhe oposição. O autor de Hebreus mostra que essa atitude faz com que o
trabalho pastoral se torne um peso e, segundo ele, isso trará prejuízos ao
rebanho.
Sem dúvida, esses danos ocorrerão porque o pastor que vê seu ministério
como um fardo fará tudo sem ânimo ou entusiasmo, preparará suas mensagens
com má vontade, perderá a alegria e o vigor na busca dos alvos da igreja, não
terá forças para sustentar os feridos (uma vez que ele mesmo estará ferido) e,
sentindo-se frustrado e abatido, logo pensará em desistir de tudo. Com certeza,
produzir esses sentimentos no líder da igreja não será, de modo nenhum,
proveitoso para o povo de Deus.
Consideração ou apreço são palavras que se aplicam ao segundo dever
que os membros da igreja de Deus têm em relação ao seu pastor. A base bíblica
para esse ensino se encontra em 1Tessalonicenses 5.12-13: “Agora lhes pedimos,
irmãos, que tenham consideração para com os que se esforçam no trabalho entre
vocês, que os lideram no Senhor e os aconselham. Tenham-nos na mais alta
estima, com amor, por causa do trabalho deles. Vivam em paz uns com os
outros”.
Esse texto afirma, primeiro, que os crentes devem ter consideração para
com seus líderes eclesiásticos. O verbo que Paulo usa aqui (oida) significa,
basicamente, conhecer. Porém, quando o contexto exige, esse termo adquire o
sentido de respeitar, reconhecer, destacar ou mostrar interesse.
Na prática, Paulo está dizendo que os crentes não devem agir com
descaso ou ser indiferentes diante da figura do pastor e, para reforçar isso, ele
acrescenta: “Tenham-nos na mais alta estima, com amor”. A construção grega
dessa frase pode ser traduzida da seguinte maneira: “Considerem-nos como
altamente merecedores de amor”.
A razão pela qual os pastores devem ser tidos em tão grande apreço não
repousa sobre seus possíveis dotes intelectuais, nem sobre seu ocasional
magnetismo pessoal, nem mesmo sobre a simpatia que eventualmente
demonstrem no trato com as pessoas. Ainda que essas coisas sejam importantes,
os crentes não devem fazer delas a causa do seu respeito pelo pastor. Segundo
Paulo, a consideração devida aos ministros da Palavra deve ser tributada a eles
por causa do trabalho que realizam.
Assim, no tocante a esse assunto, é secundário se o pastor é jovem ou
velho, pobre ou rico, imponente ou acanhado, animado ou melancólico, genial
ou um homem comum. Tampouco importa se sua origem, aparência ou
personalidade impressionam ou não. A consideração e estima devidas ao pastor
têm como causa o trabalho nobre e santo que ele realiza. Esse é o fator
primordial que o torna digno de respeito e o faz merecedor da amizade e da
simpatia dos membros da igreja.
Nesse ponto, porém, uma ressalva se faz necessária. A consideração
devida ao pastor não deve ser do tipo que silencia diante de suas falhas e
desvios. Isso se depreende, por exemplo, de 1Timóteo 5.19: “Não aceite
acusação contra um presbítero se não for apoiada por duas ou três testemunhas”.
Essa passagem mostra, em primeiro lugar, que os pastores são denunciáveis, ou
seja, são passíveis de acusação quando praticam o mal. Isso deixa claro que
tratar o pastor com apreço não significa colocá-lo acima da verdade e da justiça,
fazendo vistas grossas diante dos seus desvios. Aliás, o texto vai além e ensina
que os pastores estão sujeitos até mesmo à repreensão pública (1Tm 5.20).
Porém, a consideração devida aos presbíteros é demonstrada também aqui na
proibição de aceitar gratuitamente e sem provas qualquer acusação que lhes for
dirigida.
Paulo sabia que, na defesa da verdade e da pureza da igreja, o pastor
despertaria o ódio de cruéis inimigos que não poupariam esforços para atacá-lo,
caluniá-lo e, enfim, destruí-lo. Por isso, colocou em sua volta um muro de
proteção, proibindo que o ministro do evangelho seja punido sem que existam
provas seguras de sua culpa. Observar, pois, essa diretriz com cuidado é também
uma forma de revelar consideração pelo homem de Deus que está à frente de
uma igreja.
O último dever do crente em relação ao seu pastor é no campo do
sustento. Esse assunto já foi tratado no subtítulo anterior, bastando aqui recordar
que os presbíteros que lideram bem a igreja e que se afadigam no ensino da
Palavra são merecedores de um salário adequado (1Tm 5.17-20), sendo cada
membro da igreja responsável por prover os recursos que deverão compor o
sustento material do ministro do evangelho.
Uma pergunta importante

Como um crente pode servir ao Senhor na igreja quando todos os cargos e


funções já estão ocupados?
Em Atos 13.1-3, a Bíblia mostra que o simples fato de se reunir com os irmãos
para cultuar a Deus já é uma forma de servi-lo. Ademais, não é preciso ter
cargos na igreja para trabalhar nela. Esvaziar um cesto de lixo, dar boas-vindas
a um visitante ou encorajar um irmão que está triste são ministrações sempre
necessárias que podem ser feitas por qualquer crente que queira realmente
servir ao Senhor. A experiência mostra, portanto, que não trabalhar na igreja
tem somente uma causa: a falta de vontade!
Capítulo 7 – OS OFICIAIS DA IGREJA
O Deus pregado e cultuado na igreja bíblica é um Deus Trino que, em
seu âmago, se estrutura de forma hierárquica. Pai, Filho e Espírito Santo
coexistem numa igualdade essencial que, contudo, não anula a submissão da
Segunda Pessoa à Primeira (Jo 8.28-29), nem tampouco a sujeição da Terceira
Pessoa ao Filho e ao Pai (Jo 15.26).
Por ser um Deus que “funciona” dentro de uma estrutura assim, foi do
seu agrado imprimir marcas de hierarquia em tudo quanto criou. Desde os anjos
até os insetos foram postos dentro de uma pirâmide funcional em que alguns
exercem atividades de liderança, enquanto outros se ocupam de tarefas distintas,
sempre sob o comando dos primeiros.
Esse modelo impresso por Deus em sua criação é tão salutar que
quaisquer núcleos ou conjuntos sociais que o desprezam, apelando para formas
variadas de anarquia, caem fatalmente no fracasso e na desordem total. Com
efeito, governos, empresas, instituições e famílias que não funcionam dentro de
uma ordem hierárquica descambam facilmente para o caos completo, o que
comprova que, num universo criado pelo Deus Trino, num universo em que ele
imprimiu as marcas de sua própria realidade operacional, o funcionamento
hierárquico é requisito essencial para o bom andamento de tudo.
Ora, se nas estruturas que criou, o Senhor fixou relações de
subordinação, é obvio que essas relações também foram impostas à igreja que, à
luz do ensino bíblico, deve ter uma liderança real e operante, à qual os crentes
devem se sujeitar.
Essa liderança, porém, como será visto, deve ser formada conforme os
padrões impostos pelo Senhor em sua Palavra, fonte de orientação que a igreja
de Deus leva muito a sério, especialmente nesse campo, sob o risco de se
enfraquecer e até ter alguns de seus núcleos locais levados à extinção completa.
Deve-se dizer de antemão, que essa liderança deve ser formada por duas
classes de oficiais, os pastores (também chamados de bispos e de presbíteros) e
os diáconos, conforme Paulo deixa transparecer em Filipenses 1.1 e 1Timóteo
3.1-13

A vocação ministerial: reconhecimento e auxílio

Reconhecendo a importância de estar sob uma liderança nos moldes


fixados por Deus, a igreja bíblica tem como um dos seus objetivos principais o
investimento em vidas que exerçam as funções de ensiná-la, orientá-la e presidi-
la, enquanto persegue o ideal maior de expandir o Reino do Senhor Jesus Cristo.
Ademais, é preciso ser destacado que, segundo o ensino apostólico, a
igreja tem papel essencial, inclusive, no chamado de obreiros e não somente em
seu preparo. Esse papel, vale lembrar, se realiza à medida que a assembleia dos
santos reconhece expressamente os vocacionados por Deus para o ministério da
Palavra.
O desdobramento lógico e prático disso é que nunca a investidura de um
membro da igreja na função pastoral pode ser baseada no mero desejo pessoal
dele. Ainda que o chamado para o ministério abranja, sem dúvida, o anelo
individual (1Tm 3.1), é inegável que a igreja como um todo tem participação
ativa na vocação do Senhor. Na verdade, nos tempos do Novo Testamento, era
por meio da aprovação do povo de Deus que o chamado pastoral se efetivava, o
que se vê especialmente em Atos 14.23, texto em que figura o termo grego
cheirotonéo, (traduzido na ARA como “eleição”, e na NVI como “designar”),
cujo significado básico é “estender a mão para votar”.
À luz disso tudo, é óbvio que o crente que quer ser pastor precisa
demonstrar submissão à vontade da igreja e respeito por suas decisões. Aliás, em
hipótese alguma a igreja zelosa agirá em prol do candidato debaixo de pressões
impostas por ele ou por outras pessoas que partilhem dos seus interesses.
Para ser escolhido pela igreja a fim de exercer o ofício pastoral, o
candidato deve, necessariamente, enquadrar-se nos requisitos constantes em
1Timóteo 3.1-7 e Tito 1.5-9, o que significa, entre outras coisas, que ele deve
demonstrar convicções doutrinárias sadias e ortodoxas, ser membro em plena
comunhão com os irmãos e estar livre de qualquer processo disciplinar.
A escolha de futuros ministros da Palavra também levará em conta a
opinião pessoal do pastor da igreja, uma vez que este, à luz do Novo Testamento,
tem responsabilidade direta na constituição de outros pastores (1Tm 5.22; Tt 1.5
— em ambos os textos, fica evidente que os pastores Timóteo e Tito eram
responsáveis diretos pela escolha de novos ministros).
Caso a igreja veja a necessidade de o candidato ingressar num seminário,
um auxílio financeiro poderá ser destinado a ele para esse fim. É recomendável,
porém, que o futuro pastor só receba essa ajuda se for matriculado numa escola
teológica conservadora, evitando, assim, instituições liberais ou heterodoxas.
É ainda recomendável que a eventual ajuda financeira seja calculada com
base na necessidade presente em cada caso. Uma boa sugestão é que essa ajuda
seja dada somente depois de concluído o primeiro ano de seminário para que,
ocorrendo as desistências tão comuns nessa fase, a igreja não sofra prejuízos.
A ajuda financeira a um seminarista só poderá ser mantida caso ele
demonstre bom desempenho no âmbito acadêmico, ausência de desvios
doutrinários e reto procedimento ético e moral. Se esses fatores forem
inexistentes, não fará qualquer sentido a igreja investir em sua formação. Caso o
faça, estará contribuindo para o surgimento de maus obreiros, os quais só trarão
prejuízos e vergonha para a causa do Mestre.

A ordenação ao ministério pastoral

No Novo Testamento é estranha a prática tão comum em nossos dias de


alguém se autointitular pastor. Na verdade, essa prática não tem nenhum
precedente na literatura neotestamentária.
Também não existe na Bíblia nada que permita um pastor ordenar alguém
ao ministério segundo sua livre vontade ou opinião pessoal. É claro que essa
opinião deve ser levada em conta (Tt 1.5), mas a decisão final quanto a quem
será investido no múnus pastoral não é prerrogativa de um ministro, nem mesmo
de um grupo de ministros.
Conforme visto, é a igreja que, soberanamente, detém o direito de decidir
quem deve ser investido na função pastoral (At 14.23), observando os requisitos
elencados em 1Timóteo 3.1-7 e Tito 1.5-9. Aliás, textos como Atos 6.1-6; 15.22
e 2Coríntios 8.18-19, 23 mostram que a igreja neotestamentária era notadamente
democrática, sendo decisiva sua participação em escolhas dessa natureza.
Assim, somente se for aprovado pela igreja, o candidato a pastor, caso a
igreja julgue necessário, poderá passar pelo exame de conhecimento teológico
exigido por sua denominação. Esse exame não é requisito imposto pela Bíblia,
sendo, portanto, opcional. Porém, seu valor reside especialmente no fato de dar
ao candidato a oportunidade de demonstrar seu preparo para o cargo importante
que irá ocupar, além de habilitá-lo oficialmente para ser ministro de qualquer
igreja pertencente à sua denominação.
Passada essa fase, procede-se à cerimônia de imposição de mãos, que é
um gesto simbólico de investidura do candidato no cargo de ministro do
evangelho, com todos os seus deveres e prerrogativas. De fato, na Bíblia, a
cerimônia de imposição de mãos tem relação com a consagração de alguém para
um serviço especial (At 6.6; 13.3). É, pois, natural que esteja presente na
constituição de novos obreiros.
É bom frisar que a imposição de mãos se faz exclusivamente por pastores
presentes na cerimônia e nunca por todos os membros da igreja, já que estes não
têm autoridade pastoral a ser transmitida (1Tm 4.14).
Realizado o ato solene, o candidato será oficialmente reconhecido como
pastor, encarregado de todas as tarefas relativas a esse ofício. Outros nomes
pelos quais poderá ser designado são presbítero e bispo, pois, conforme dito, no
Novo Testamento, esses termos são igualmente usados para referir o cargo de
pastor (At 20.17,28; 1Tm 3.1-3; Tt 1.6-7).
Como se vê, tornar-se pastor não é simples e rápido. Aliás, a Bíblia
proíbe que seja assim quando Paulo diz a Timóteo: “A ninguém imponhas
precipitadamente as mãos…” (1Tm 5.22). Todo o processo acima descrito,
demorado talvez, visa ao cumprimento dessa ordem e também à preservação da
soberania da igreja em escolher novos pastores.
Nesse aspecto, é preciso repisar a verdade de que a função pastoral é
delegada por Deus. Ele, porém, faz isso por intermédio do seu instrumento
chamado igreja. De fato, ainda que em última análise seja o Espírito Santo quem
constitui os bispos (At 20.28), as Escrituras ensinam que a constituição deles é
feita por meio de homens que, reunidos como igreja, a concretizam (At 14.23; Tt
1.5).
Por isso, o método descrito aqui e usado com ligeiras variações na prática
das igrejas de Deus não pode ser alterado de modo substancial. Tampouco
podem ser adotados os critérios novos e arbitrários presentes em comunidades
cristãs da atualidade nas quais um líder supremo detém o poder exclusivo de
investir quem quiser no ministério. Esses novos métodos e critérios são
antibíblicos e perigosos, já que não observam as instruções que o próprio Deus
estabeleceu em sua Palavra. Por isso, as igrejas formadas por “cristãos velhos”
— aqueles comprometidos com as antigas verdades da Bíblia — jamais poderão
acolhê-los.
Finalmente, é bom alertar que conferir arbitrariamente poderes a alguém
para o exercício do ministério é puro “micaísmo”. O livro de Juízes conta a
história de um homem chamado Mica, o qual investiu primeiro seu filho e,
depois, um levita num ministério religioso abominável que acreditava ser do
agrado de Deus (Jz 17.5-13). Ora, mesmo se a religião de Mica se voltasse
unicamente para o Senhor e fosse livre de idolatria, o que não era o caso, esse
homem não tinha autoridade alguma para investir alguém na função sacerdotal
(Hb 5.1-4). Além disso, seu filho não preenchia os requisitos impostos por Deus
para o ministério santo, já que só os levitas filhos de Arão podiam realizar esse
serviço (Êx 29.44).
Assim, micaísmo é a prática de investir no ministério quem não preenche
os requisitos impostos por Deus. É também a prática de, arbitrariamente, um
indivíduo consagrar quem bem entender num serviço que acredita ser santo. Ora,
o micaísmo é abominável aos olhos do Senhor e as igrejas de Deus devem
sempre evitá-lo com todo o zelo e cuidado.

Requisitos bíblicos para ser pastor

Na igreja de Deus, a posição de destaque procedente do múnus pastoral


não é concedida a alguém em razão de seu mero desejo pessoal (Mc 10.35-37,
40), nem pelo fato de esse alguém ter lutado ou sofrido em prol da causa (Mc
10.38-40). Isso porque, de acordo com o ensino de Jesus, somente os que servem
humildemente os irmãos podem ocupar uma posição de destaque dentro da
igreja (Mc 10.41-45).
Logo, o bom candidato a líder eclesiástico é aquele que responde mais
prontamente do que qualquer outro ao chamado de servir aos irmãos,
demonstrando assim que em seu coração impera “o mesmo sentimento que
houve também em Cristo Jesus” (Fp 2.1-11). Por isso, para que um membro da
igreja se torne pastor, é fundamental que seja, antes de tudo, servo.
Existem, contudo, outros requisitos a serem exigidos dos candidatos ao
múnus pastoral. Esses requisitos, conforme referido anteriormente, estão
elencados em 1Timóteo 3.1-7 e Tito 1.5-9.
Observando-se essas listas, descobre-se que o pastor deve ser, primeiro,
irrepreensível. Os dois termos gregos traduzidos dessa forma (anepílemptos em
1Timóteo e anénkletos em Tito) apontam para alguém que não oferece nenhum
motivo para ser acusado de mancha em seu caráter ou conduta. São termos
genéricos que evocam a necessidade de o pastor nutrir todas as demais virtudes
elencadas pelo apóstolo.
O ministro de Cristo também deve ser marido de uma só mulher, ou seja,
não pode ser bígamo ou polígamo. À luz desse ensino, o homem divorciado e
recasado também está impedido de exercer o ofício pastoral, pois o vínculo com
a primeira esposa permanece mesmo depois da separação e só se dissolve com a
morte (Rm 7.2-3). Na esteira desse ensino, fica evidente que homens viúvos que
se casaram novamente não são alcançados pela restrição bíblica.
É bom destacar ainda que as expressões usadas por Paulo nos textos em
análise podem também ser traduzidas literalmente como “homem (andrós ou
anér) de uma só mulher”, o que indica que não basta o pastor ter somente uma
esposa, sendo necessário ainda que seja fiel a ela.
O bispo também tem de ser moderado ou sóbrio (nephálios). Isso
significa que ele não pode ser um homem que age de modo impetuoso ou
precipitado. Significa também que deve se mostrar livre de qualquer tipo de
excesso, seja no campo das atitudes, seja nos hábitos individuais da vida social,
do trabalho ou mesmo da alimentação. Numa palavra, o pastor deve ser uma
pessoa equilibrada.
Os requisitos de Paulo incluem também o vocábulo “sensato”, cujo
correspondente grego (sóphron) também pode ser traduzido como “controlado”.
No uso dessa palavra, Paulo tem em vista o homem confiável, prudente e que,
tendo autodomínio, é também disciplinado e discreto. Na lista que consta na
Carta a Tito, Paulo usa um sinônimo dessa palavra, o termo enkratés, cujo
sentido aponta para a qualidade de quem tem força sobre si mesmo ou é mestre
de si (Tt 1.8).
Outra exigência que consta das epístolas pastorais é que o bispo seja
respeitável (kósmios). A palavra grega aponta para alguém cuja vida não
apresenta desordens, alguém que realiza seus deveres com seriedade e disciplina,
impondo limites a si mesmo. Tendo uma vida em que não reina o caos, esse
homem revela também ser possuidor de uma mente livre de confusão, com
responsabilidades e rumos claramente definidos.
Na antiga cultura grega, a hospitalidade era tida na mais alta conta e
Paulo ensina que essa prática deveria marcar a vida dos pastores no cuidado com
os discípulos de Jesus, especialmente num tempo em que evangelistas itinerantes
dependiam da hospedagem de outros crentes nas cidades por onde passavam
(3Jo 5-8). Mesmo sendo certo que a realidade presente é distinta da que marcava
aqueles dias, não há dúvida de que o pastor, em todas as épocas, deve ser alguém
que busca amparar os crentes que precisam de apoio e ajuda.
Paulo exige também que o bispo seja apto para ensinar (didaktikós).
Assim, ele deve demonstrar notável habilidade para comunicar as verdades
cristãs, tendo uma didática eficaz e um bom preparo intelectual, estando
capacitado tanto para admoestar e encorajar através da exposição da sã doutrina
como para refutar o erro doutrinário dos oponentes da fé (2Tm 2.24-26; Tt 1.9).
O cristianismo não proíbe o uso de bebidas alcoólicas (Cl 2.16; 1Tm
5.23), mas condena a embriaguês (Ef 5.18). Por isso, o ministro de Cristo não
pode ser um homem apegado ao vinho (pároinos), ou seja, alguém que, mesmo
eventualmente, fica bêbado. Daqui também se infere que o pastor deve ser uma
pessoa livre de qualquer forma de desregramento ou falta de moderação.
O ensino paulino também veda o ofício pastoral ao indivíduo violento
(pléktes). O homem que Paulo reprova aqui é o tipo brigão, que ameaça e agride
os liderados. Na carta a Tito, o apóstolo, além de dizer que o bispo não pode ser
violento, afirma também que ele não deve ser irascível (orgílos), termo que
descreve a pessoa de “pavio curto”, que explode facilmente. Em vez de ter esse
perfil, o bispo precisa ser um líder amável (epieikes) e pacífico (ámachos),
tratando especialmente os membros da igreja de forma gentil e fugindo de
disputas e contendas.
Como servo sincero e verdadeiro, o pastor não pode ser homem avarento
e amante do dinheiro (aphilárgyros, na lista de 1Timóteo), nem tampouco
alguém que busca obter lucro de forma desonesta (aischrokerdés, na lista de
Tito) pois essas são marcas distintivas dos falsos mestres (1Tm 6.5-10; 2Pe 2.3).
O bispo que for amante do dinheiro ou desonesto facilmente se desviará do
cuidado do rebanho, preocupando-se apenas com formas de elevar rapidamente
seu padrão de vida, muitas vezes às custas da própria igreja.
Quanto ao seu lar, o pastor tem de governá-lo bem. A palavra “governar”
usada por Paulo em 1Timóteo 3.4-5,12 (proístemi) não significa apenas liderar.
O termo também abarca as noções de proteção, cuidado e direção. Assim, o
pastor ideal é aquele que exerce autoridade sobre a sua família com afeto e
compaixão, mostrando-lhe a direção a seguir, livrando-a de perigos e suprindo
suas necessidades tanto físicas como emocionais e espirituais.
Em 1Timóteo 3.4, Paulo diz ainda que o pastor deve ter os filhos em
sujeição (hypotagé), isto é, sob seu controle. O apóstolo esclarece que esse
controle deve ser exercido com todo respeito (semnotés), o que significa que o
pastor não pode humilhar seus filhos, nem desprezá-los, irritá-los, afligi-los ou
adotar uma postura indecente e desonrosa no trato com eles.
Várias traduções da Bíblia para a língua portuguesa sugerem que, quando
escreve a Tito, Paulo diz que os filhos do pastor devem ser “crentes” (Tt 1.6). A
palavra adotada pelo apóstolo nessa passagem (pistós) pode significar alguém
que tem fé (o crente) ou alguém que é digno de fé (o homem fiel ou confiável).
O termo aparece dezesseis vezes nas Epístolas Pastorais, sendo dominante o uso
no segundo sentido (dez ocorrências). Aliás, nas outras duas ocorrências em Tito
(1.9 e 3.8), o único sentido possível é “confiável”.
Assim, tudo indica que, no ensino paulino, os filhos do pastor não
precisam ser convertidos, mas devem ser, no mínimo, pessoas fidedignas,
verdadeiras e honestas. Isso se harmoniza em parte com o restante das
exigências relativas aos filhos do pastor constantes em Tito 1.6. De fato, o texto
prossegue dizendo que eles não podem ser pessoas acusadas de vida desregrada
(asotía), nem ser insubmissos (anypótaktos).
O apóstolo explica que o pastor precisa mostrar que governa bem a sua
casa porque, se não for capaz de desempenhar bem essa função junto à própria
família, certamente também não terá competência nem habilidade para cuidar da
igreja de Deus (1Tm 3.5). Sem dúvida, sua forma errada de liderar o lar será
adotada também na condução da igreja e, então, o caos, a discórdia, o
desrespeito e a indecência reinarão ali absolutos.
Ao homem recém-convertido também é vedado o exercício do pastorado.
Em 1Timóteo 3.6, Paulo usa a palavra “neófito” (neóphytos) para descrever o
indivíduo nessa condição. Seu uso primário pertence ao contexto agrário e
significa recém-plantado.
O novo convertido é, de fato, como uma planta nova e não tem raízes
profundas nem tampouco forças suficientes para sustentar um trabalho tão
pesado como o atribuído ao bispo. Ademais, Paulo, ainda em 1Timóteo 3.6,
afirma que se o neófito for conduzido ao cargo de líder eclesiástico, facilmente
será dominado pelo orgulho, talvez por ter sido alçado tão depressa a uma
posição de destaque.
Se isso ocorrer, cairá na “condenação do diabo”. Essa expressão pode
significar que o pastor será punido por Deus da mesma forma que o diabo foi,
perdendo sua posição (Ap 12.7-9), ou que o pastor será vítima do diabo, caindo
no laço a que Paulo alude no versículo seguinte (1Tm 3.7). É possível que uma
descrição do que ocorre com quem cai nesse laço se encontre em 1Timóteo 6.9.
Seja qual for a hipótese que Paulo tinha em mente, fica fora de dúvida que é
imprudente e errado investir o crente novo no ofício pastoral.
Falando ainda sobre a soberba, é bom destacar que esse pecado não é
exclusivo do recém-convertido que é posto em cargos de liderança. Por isso, ao
escrever a Tito, Paulo afirma que o candidato ao episcopado, mesmo antes de ser
investido no cargo, não deve ser arrogante (authádes).
É preciso ainda que o bispo tenha bom testemunho dos de fora. Os
incrédulos observam a conduta dos cristãos e, com a luz que advém do senso
ético natural, conseguem detectar aquilo que não se harmoniza com a justiça e a
retidão decorrentes da fé. Por isso, quando não baseada em calúnias, a opinião
do mundo acerca da reputação de um determinado irmão deve ser levada em
conta, caso o seu nome seja apontado para o exercício do episcopado.
Se essa cautela não for observada, Paulo diz que o pastor cairá em
reprovação (oneidismós). Os próprios descrentes vão reprová-lo, insultá-lo e
expô-lo vergonhosamente ao descrédito. Ele também cairá no “laço (ou
armadilha) do diabo”. Essa figura aparece novamente nas pastorais em 2Timóteo
2.26 e serve para descrever o estado deplorável de pessoas que, enganadas por
Satanás, vivem fazendo a sua vontade. É assustador que um pastor possa chegar
a essa condição, mas a experiência e a história mostram a realidade desse perigo.
Restam três qualidades do bispo mencionadas por Paulo que ainda não
foram destacadas. São traços alistados em Tito 1.8 que não aparecem na lista de
1Timóteo: amigo do bem, justo e consagrado. O amigo do bem (philágathos) é o
homem benevolente, que ama e pratica o que é bom. O justo (díkaios) é aquele
que observa os preceitos divinos e cumpre as leis humanas, andando em retidão.
Já o indivíduo consagrado (hósios) é o homem santo, livre de iniquidade, que é
também devoto e piedoso.
Todas essas marcas devem ser encontradas no pastor sob pena de ele não
poder exercer o ministério. Até porque a ausência de qualquer uma delas
redundará num ministério fraco, carente de vigor e de impacto espiritual,
levando o ministro a buscar substitutos para essas coisas em programas
especiais, eventos chamativos, espetáculos vibrantes e outras distrações.

Os deveres dos pastores no trato com os membros da igreja

Nas seções anteriores deste capítulo, foram feitas alusões ao fato de que
o homem que ocupa o cargo pastoral na igreja de Deus é designado no Novo
Testamento por três termos distintos: pastor, presbítero e bispo (At 20.17,28; Ef
4.11; Tt 1.5,7). Cada um desses termos destaca diferentes aspectos das funções
que o ministro cristão deve exercer junto ao povo que Deus lhe confiou.
O termo “pastor” (poimén) é o mais abrangente entre os três
supracitados, pois realça as tarefas de proteger e apascentar (o que inclui
conduzir) um rebanho.
A figura do pastor da igreja como protetor do rebanho de Deus aparece
em Atos 20.28-31. Nessa passagem, Paulo, despedindo-se dos pastores da igreja
de Éfeso, diz que lobos vorazes atacariam as ovelhas do Senhor que estavam sob
seus cuidados e não as poupariam, arrastando-as à destruição por meio de
ensinos perversos. Segundo Paulo, diante dessa ameaça, os pastores deveriam
vigiar, mantendo-se sempre atentos e prontos, a fim de afugentar aquelas feras
malignas e manter o rebanho de Deus ileso.
Obviamente, esse aspecto da função pastoral é imperativo aos ministros
de Cristo de todas as épocas e de todos os lugares, enquanto dirigem as igrejas
em que foram postos. Aliás, o Apocalipse revela que os pastores de Pérgamo e
de Tiatira foram negligentes precisamente na realização dessa tarefa, sendo esse
o motivo pelo qual o Senhor os censurou tão severamente (Ap 2.14-16, 20-23).
Conforme já referido, o vocábulo grego poimén (e o verbo poimaino,
associado a essa palavra) também aponta para a tarefa de apascentar, ou seja,
prover as necessidades das ovelhas, conduzindo-as na direção de bons pastos e
de água fresca. Com base na figura que esses termos evocam, conclui-se que o
pastor, como oficial eclesiástico, também deve apascentar o povo de Deus,
garantindo-lhe o suprimento de alimento e de refrigério espirituais.
Não resta dúvidas de que o crente precisa de alimento para a alma (Mt
4.4; 1Pe 2.2). Ora, o ofício de pastor está entre aqueles que Deus instituiu
exatamente para fornecer esse alimento aos crentes (2Tm 4.1-2), a fim de que
eles sejam equipados para o serviço dos santos, cresçam na unidade da fé,
amadureçam nas virtudes de Cristo e deixem de ser como meninos facilmente
levados por qualquer vento de doutrina (Ef 4.11-14).
Apascentar o rebanho de Cristo, porém, não abrange somente oferecer-
lhe o alimento da Palavra com o fim de transmitir conhecimento e gerar
maturidade. O pastor zeloso tem de ir além disso e, sempre com a Palavra do
Senhor em punho, deve trabalhar para satisfazer também as necessidades de
consolo e descanso das ovelhas de Jesus. Nesse aspecto, é notório que, nas
Escrituras Sagradas, a condução ao alívio e ao refrigério é uma prática
distintamente pastoral (Sl 23.1-3; Ap 7.17), sendo certo que a falta desse
trabalho é um dos motivos pelos quais as pessoas passam a viver cansadas e
aflitas (Mt 9.36).
Ora, há diversas situações em que o pastor poderá atuar como alguém
que conduz a ovelha cansada ao repouso, mas um exemplo prático dessa forma
de agir é mencionado em Tiago 5.14-15. Nesse texto, o escritor bíblico (ele
mesmo um pastor) ensina que quando alguém estiver doente, deve chamar os
presbíteros da igreja. Estes, então, orarão pelo enfermo e tentarão trazer-lhe
algum alívio tanto físico como espiritual.[63] Esse tipo de visita, marcada por
afeição, cuidado e até serena admoestação, é uma das mais tocantes expressões
do trabalho do homem de Deus ocupado em apascentar o rebanho de Cristo,
levando-lhe refrigério.
O Novo Testamento ensina ainda que o pastoreio cuidadoso das ovelhas
de Cristo é uma das provas principais do amor do ministro por seu Senhor (Jo
21.16). Conforme o ensino de Pedro, esse nobre trabalho deve ser realizado de
boa vontade, nunca por mera obrigação e em hipótese alguma movido pelo
anseio de receber alguma vantagem financeira desonesta (1Pe 5.2). Pedro diz
ainda que o homem de Deus, no exercício do pastorado, não pode agir como um
déspota dominador que subjuga e oprime as pessoas. Antes, tem de exercer sua
autoridade apresentando-se como modelo para os irmãos (1Pe 5.3).
O segundo termo designativo da atividade pastoral é “presbítero”
(presbyteros). Essa palavra também está ligada à tarefa de ensinar (1Tm 5.17),
pastorear (1Pe 5.1-2) e cuidar (Tg 5.14). Porém, o termo evoca ainda outros
deveres, os quais apontam para uma posição de destaque e de liderança (At
21.17-19).
Em seu significado básico, o presbítero é um ancião. Assim, num sentido
não técnico, o termo se refere a um homem idoso (At 2.17). Já num sentido
técnico, como nos casos em que é usado para designar os oficiais da igreja, a
palavra sugere a ideia de honorabilidade e sabedoria. Vista ainda a partir da
realidade cultural dos tempos bíblicos, o vocábulo “presbítero” evoca a figura do
homem revestido de autoridade que realizava a tarefa de julgar demandas e
dirimir conflitos entre indivíduos em litígio.
Ora, tanto a experiência como a própria Escritura mostram que essa
função é necessária na igreja, sendo uma forma de evitar que as disputas entre
crentes sejam levadas ao magistrado civil, contrariando o ensino apostólico (1Co
6.1-6). Sendo, pois, esse trabalho tão importante e delicado, é o pastor que,
atuando como presbítero, deverá realizá-lo ou, no mínimo, presidi-lo, aplicando
a cada caso concreto os princípios e preceitos específicos da Palavra de Deus
que sejam então cabíveis.
Realizando a importante função de julgador dentro da comunidade da fé,
o presbítero será, obviamente, alvo especial de pessoas que se sentirem
contrariadas por suas decisões. Por isso, a Escritura proíbe que acusações contra
ele sejam aceitas, exceto sob o depoimento de duas ou três testemunhas (1Tm
5.19).
No Novo Testamento, o termo “presbítero” também aparece ligado à
tarefa de receber recursos destinados ao auxílio dos carentes, indicando que os
pastores são os responsáveis por avaliar a real necessidade de cada um no
momento da distribuição da ajuda material ofertada aos pobres da igreja (At
11.29-30). Como juízes, eles também aparecem deliberando acerca de disputas
ético-doutrinárias, examinando as razões expostas pelas partes em conflito e,
finalmente, emitindo seu parecer que, estando em harmonia com a revelação de
Deus em sua Palavra, é acolhido por toda a igreja (At 15.2,4,6,22).
O terceiro vocábulo usado na Bíblia para designar o ofício pastoral é
“bispo”. O substantivo grego (epískopos) aparece somente cinco vezes no Novo
Testamento, sendo que em uma dessas vezes refere-se a Cristo (1Pe 2.25). As
outras quatro ocorrências (At 20.28; Fp 1.1; 1Tm 3.2; Tt 1.7) dizem respeito a
líderes da comunidade cristã.
Epískopos é um termo relacionado à atividade de supervisionar ou
administrar. Esse sentido se encaixa perfeitamente em um dos deveres pastorais,
ou seja, o trabalho de inspecionar a igreja de Deus, primando pela sua pureza
vivencial e doutrinária, a fim de que em tudo ela reflita o caráter do Senhor e seu
reto ensino.
Evidentemente, para realizar as funções implícitas nos termos “pastor”,
“presbítero” e “bispo”, o ministro eclesiástico precisará ter um amplo
conhecimento bíblico e teológico (2Tm 2.15). Sem isso, seu trabalho destruirá a
igreja, arruinará vidas e, do ponto de vista bíblico e espiritual, será um fracasso
completo.

O diaconato

Apesar de não conter nenhuma vez a palavra “diácono”, o texto de Atos


6.1-6 é comumente aceito como o trecho bíblico que narra as origens do
diaconato. Nesse texto os homens ali escolhidos tinham como função o
atendimento das necessidades de pessoas carentes. Eram, pois, diáconos no
sentido literal da palavra, cujo significado é designativo de um indivíduo que
presta serviço ou auxilia.
Segundo João Calvino, na igreja primitiva havia duas classes de
diáconos, ambas voltadas para o serviço aos pobres:

O cuidado dos pobres foi confiado aos diáconos.


Todavia, na Epístola aos Romanos, lhes são referidas duas
modalidades: “Aquele que distribui”…[e]…”aquele que faz
misericórdia”…(Rm 12.8). Uma vez que certo seja estar ele
a falar dos ofícios públicos da Igreja, de mister é haja
havido dois graus distintos de diáconos. A não ser que me
engana o julgamento, no primeiro membro da cláusula
designa ele os diáconos que administravam as esmolas; no
segundo, porém, aqueles que se haviam dedicado a cuidar
dos pobres e dos enfermos... Se recebemos isso… duas serão
as modalidades de diáconos, dos quais uns servirão à Igreja
em administrando as cousas dos pobres, outros em cuidando
dos próprios pobres.[64]

É digno de nota que, no desempenho dessas funções sociais, os primeiros


“diáconos” deveriam ser homens que preenchessem três requisitos básicos (At
6.3): ter boa reputação; ser cheio do Espírito Santo (Ef 5.18); e ser cheio de
sabedoria (At 6.9,10). Os dois últimos itens relacionam-se intimamente, ou seja,
os diáconos deveriam ter sabedoria concedida pelo Espírito.
Tendo sido instituídos a princípio com o simples objetivo de aliviar o
trabalho dos apóstolos, a função que os diáconos exerciam nos primeiros dias de
sua existência sequer tinha um nome formalmente fixado. Como título
designativo de um oficial da igreja, o termo “diácono” só surgiu mais tarde, e é
uma variação da palavra grega diakonia (serviço), ou do verbo diakonéo (servir),
ambos encontrados em Atos 6.3-4. Com efeito, é nas epístolas que encontramos
esse termo já evoluído, sendo usado com relação a um grupo restrito de homens
que tinham o ofício de diáconos (Fp 1.1; 1Tm 3.8).
Pelo fato de serem responsáveis desde o princípio por facilitar o trabalho
dos ministros da Palavra, as funções dos diáconos se ampliaram com o passar do
tempo à medida que as responsabilidades dos ministros se tornavam mais
numerosas. De conformidade com os costumes atuais, suas funções geralmente
se resumem nas seguintes atribuições:

1. Cuidar dos necessitados. Como já dito, essa foi a primeira função


dos diáconos, sendo para o exercício dela que foram constituídos. Um
conselho diaconal que não exerce essa atividade dentro dos moldes
bíblicos deve rever seus objetivos.

2. Participar dos processos disciplinares. Toda a igreja deve participar


dos processos disciplinares, conforme o ensino de Jesus em Mateus 18
e de Paulo em 1Coríntios 5. Contudo, a experiência mostra que muitas
vezes a natureza do caso exige o acompanhamento e a participação
prévios de um grupo mais restrito de pessoas maduras que tenham
estrutura emocional e espiritual para analisar com sigilo os diversos
problemas em seus diversos ângulos, antes de tudo ser levado à igreja.
Essa atividade é geralmente (mas não obrigatoriamente) realizada
pelos diáconos e protege o pastor, evitando que ele se exponha sozinho
a situações perigosas ou que impliquem imensas cargas emocionais.

3. Funcionar como grupo de conselheiros para o pastor. A Bíblia diz


que na multidão de conselheiros há segurança (Pv 11.14), bom êxito
(Pv 15.22) e vitória (Pv 24.6). Daí o supremo valor de um conselho
diaconal constituído de homens sérios, experientes e maduros. Eles
ajudarão o pastor a tomar decisões de modo que a possibilidade de erro
seja reduzida. Também conversarão sobre os prós e os contras desta ou
daquela medida e, nos casos em que o problema deva ser levado à
igreja, já terá sido debatido vastamente, podendo ser apresentado de
forma mais objetiva, o que poupará tempo e discussões inúteis na
assembleia. Eventualmente, o conselho dos diáconos também valerá
nas horas em que o pastor tiver de tomar decisões pessoais ou quando
novos rumos e desafios estiverem diante da igreja.

4. Zelar pela decência e ordem na igreja. Os diáconos atuam também


como auxiliares do pastor na manutenção da ordem e decência na
igreja. É recomendável que, a cada domingo, sejam escalados diáconos
de plantão que observem com atenção o desenrolar dos cultos,
repreendendo com docilidade as pessoas que eventualmente se
comportem de forma inadequada.

5. Resolver problemas de natureza econômico-administrativa. Agindo


na área de ação social e atuando como conselheiros do pastor,
inúmeras vezes os diáconos se verão às voltas com problemas de
natureza econômico-administrativa. Nesses casos, terão de agir em
conjunto com o departamento de finanças ou outros órgãos que tenham
competência para atuar nas áreas em questão. Dentro ainda desse
tópico, há igrejas que conferem exclusivamente aos diáconos poderes
para deliberar acerca do salário do pastor e de outros ministros e
funcionários. Essa conduta é positiva, pois evita que o pastor e outras
pessoas se sintam expostos e constrangidos durante discussões
públicas acerca de quanto devem receber mensalmente.
6. Supervisionar o procedimento, o ensino e as necessidades dos
ministros. Muitas vezes, a igreja local fica à mercê de homens
inescrupulosos que assumem o cargo de pastor e causam grandes
prejuízos à causa do Mestre. Frequentemente, esses homens agem
livremente, sem haver quem se coloque diante deles e os impeça de
continuar sua obra tão destruidora. Se ocorrer de algum membro sábio
e corajoso se insurgir contra o falso pastor, é logo excluído, não sem
antes sofrer os mais severos e injustos ataques. A igreja, porém, que
conta com um bom conselho diaconal, estará protegida dos ataques de
falsos pastores. Percebendo que o pastor da igreja tem mantido
conduta escandalosa ou ensinado doutrinas estranhas ao cristianismo,
o grupo de diáconos se reunirá, independentemente de o pastor
convocar a reunião ou concordar com ela, e decidirá o que fazer diante
de tão sério problema. O fato de esse grupo ter alcançado “justa
preeminência” (1Tm 3.13) fará com que a igreja acolha suas decisões,
pondo fim a obra pastoral ruim. Dentro desse assunto, é bom lembrar
que a realização de reuniões do conselho diaconal sem a presença do
pastor é prática comum e legítima. Para se reunirem, os diáconos não
precisam de autorização. Basta que o presidente do conselho diaconal
convoque o grupo para uma reunião sempre que julgar inconveniente a
presença do pastor em face do assunto que será tratado. Finalmente,
nos diáconos o pastor encontrará também um grupo atento às suas
necessidades físicas, emocionais, espirituais, sociais e profissionais.
Percebendo que o pastor tem enfrentado problemas nessas áreas, os
diáconos estudarão um modo de lhe oferecer apoio e amizade,
proporcionando-lhe maior alívio.

7. Cuidar da ceia do Senhor. Tradicionalmente (não necessariamente)


são os diáconos que cuidam dos preparativos e da distribuição da ceia
do Senhor. Para melhor funcionamento desse serviço, é comum existir
escalas em que figurem o nome dos que deverão providenciar e
distribuir os elementos. Quem geralmente faz essas escalas e as
comunica aos líderes é o presidente do conselho diaconal, um diácono
escolhido pelo próprio grupo com o fim de representá-lo.

Na Bíblia, os diáconos desfrutam da posição que a igreja lhes atribui por


intermédio da imposição de mãos dos pastores (At 6.6). Na prática mais
recomendável, são os pastores também que indicam os candidatos ao diaconato.
A investidura é posteriormente aprovada ou não pela assembleia.
É melhor que seja assim porque a indicação dos diáconos, se feita pela
igreja, pode colocar o pastor em situações delicadas. Pode ocorrer de o pastor ser
contra determinada indicação por motivos que, em razão de sua função, só ele
conhece. Se a igreja indicasse e o pastor, por motivos que merecessem sigilo, se
opusesse à indicação, isso exporia o nome do membro indicado a comentários
maldosos e exigiria do pastor explicações que nem sempre ele pode dar.
A investidura numa função de tanta responsabilidade só pode ser feita
após um período de experiência (1Tm 3.10) em que os candidatos serão
observados pelo pastor e pela igreja. Somente após o término do tempo de prova
é que os membros da igreja terão condições de votar sabiamente na aprovação
daqueles que farão parte da liderança como diáconos. Uma vez investidos na
função, os novos líderes deverão exercer as atividades a eles atribuídas. Deve
ficar claro, porém, que o diácono só poderá exercê-las na igreja que reconhecer e
solicitar seu trabalho.
Em muitas igrejas, o cargo de diácono é relativamente vitalício (pois o
diácono pode ser definitivamente afastado do cargo se deixar de ter as
qualificações bíblicas exigidas). Porém, isso não significa que alguém que foi
consagrado ao diaconato exercerá necessariamente essa função em qualquer
igreja de que se tornar membro.
Se ocorrer de um diácono mudar de igreja, continuará sendo diácono,
pois foi consagrado a esse cargo e investido nele por quem legitimamente tinha
poder para tanto. Porém, será diácono de direito, não de fato. Para ser diácono de
fato, exercendo suas funções, deverá ser convidado pelo pastor e ter sua
indicação aprovada pela igreja. Nesse caso, não haverá necessidade de nova
cerimônia de consagração.
Trata-se, portanto, de procedimento semelhante ao adotado no caso de
pastores. Efetivamente, nenhum ministro se torna pastor de uma igreja pelo
simples fato de se tornar membro dela. Num caso assim, o ministro será pastor
de direito (uma vez que adquiriu esse título ao ser ordenado), mas não de fato, só
podendo pastorear se para isso for convidado pela igreja.

Requisitos bíblicos para ser diácono

A lista de requisitos pessoais exigidos dos diáconos encontra-se em


1Timóteo 3.8-13 e é curioso observar que várias qualidades que devem estar
presentes na vida dos pastores também são impostas a essa classe de oficiais da
igreja.
Com efeito, assim como o bispo, o diácono não deve ser inclinado a
muito vinho, nem voltado para a obtenção de lucros desonestos (aischrokerdés).
Da mesma forma que o pastor, o diácono deve ser irrepreensível (anénkletos),
marido de uma só mulher e também um homem que mantém os filhos e toda a
casa sob boa direção e sábia autoridade.
A explanação mais detalhada desses requisitos já foi feita no item
anterior, onde foram expostas as necessárias qualificações dos bispos. Contudo,
o ensino paulino inclui determinações relativas aos diáconos que não estão
presentes nos textos de 1Timóteo e Tito que tratam dos pastores. Isso não
significa que os bispos não precisam demonstrá-las em sua vida e conduta (até
porque estão implícitas nas diversas virtudes que se requer deles), mas sim que,
ao pensar na figura do diácono, o apóstolo achou por bem destacá-las,
certamente levando em conta a natureza de suas funções.
A primeira dessas determinações é que o diácono seja um homem
respeitável. Respeitabilidade é qualidade que deve estar presente nos cristãos em
geral (1Tm 2.2; 3.11; Tt 2.2). Porém, para os diáconos, essa exigência é ainda
mais forte. A palavra usada por Paulo aqui (semnós) aponta para a pessoa
venerável e nobre, que desperta reverência nos outros. Trata-se de um adjetivo
grego que abrange não só a postura exterior da pessoa, mas também seu
temperamento. Isso precisa ser levado em conta porque alguém pode ter postura
que inspire respeito no dia a dia da vida social e, contudo, demonstrar-se
desprezível e reprovável no modo como reage em face das eventuais
contrariedades da vida.
Do diácono também se exige que seja homem de uma só palavra. A
expressão grega que consta do texto (dílogos) pode significar “não difamador”, o
que seria um requisito essencial para quem, no exercício de suas funções,
constantemente toma conhecimento dos problemas pessoais dos outros. Parece,
contudo, mais correto entender o termo no sentido de “não ser alguém de
conversa dupla”.
Assim, o diácono não pode ser pessoa que diz uma coisa enquanto tem
outra em mente. Também não pode dizer uma coisa a um homem e outra a outro.
Suas palavras têm de ser expressão da verdade, sem duplos sentidos e revestidas
de valor e peso notáveis.
Na prática, essa qualidade deve receber maior destaque no
relacionamento dos diáconos com os demais líderes, pois, na busca do bem da
igreja, o grupo de oficiais deve nutrir fidelidade mútua. Não se pode, pois,
conceber que, durante suas reuniões, os líderes da igreja tenham um bom
relacionamento, mas que isso seja seguido de comentários maldosos feitos às
escondidas.
Paulo prossegue dizendo que o diácono deve conservar o mistério da fé
com uma consciência limpa. Essa determinação impõe que os componentes
desse grupo de oficiais eclesiásticos sejam homens de clara e firme convicção
cristã; homens que preservam o corpo doutrinário sadio e nele perseveram.
A expressão “mistério da fé” diz respeito às verdades que a razão, por si
só, não pode alcançar, mas que foram divulgadas pela revelação divina, ou seja,
refere-se aos ensinos contidos no Novo e no Antigo Testamentos (Rm 16.25-26;
1Co 2.7-10). A guarda dessas doutrinas deve ser acompanhada de consciência
limpa, isto é, a consciência livre de mácula e de coisas vergonhosas, só adquirida
por quem vive retamente.
É necessário ainda que o diácono seja casado com mulher respeitável,
não maldizente, temperante e fiel em tudo. O modo como o apóstolo Paulo
escreve em 1Timóteo 3.11 não deixa claro se ele tinha em mente as esposas dos
diáconos ou mulheres investidas no cargo de diaconisas. Os comentaristas
bíblicos estão divididos e, qualquer que seja o caso, deve-se levar em conta que
as mulheres da igreja primitiva, ainda que prestassem serviços semelhantes aos
dos diáconos (e.g., ajuda a pobres e doentes), como era o caso de Febe (Rm
16.1-2), jamais eram investidas na autoridade própria de um oficial eclesiástico,
mantendo-se a liderança da igreja nas mãos dos homens (1Co 14.34; 1Tm 2.9-
15).
Assim, é possível que Paulo se refira aqui a um grupo de mulheres que
servia a igreja, mas sem exercer a autoridade própria dos oficiais ou, o que é
mais provável, a alusão às mulheres diz respeito às esposas dos diáconos,
afirmando que suas qualificações deviam ser semelhantes às exigidas de seus
maridos. Essa última alternativa é corroborada pelo v. 12, que mostra que Paulo,
quando escreveu essas linhas, estava pensando no lar do diácono casado.
Sem as qualificações expostas, não é possível alguém se tornar diácono.
Também é verdade que, se alguém for consagrado ao ministério diaconal e,
depois de algum tempo, perder as qualificações mencionadas, deverá ser
afastado do cargo por tempo indeterminado até que volte a satisfazer os
requisitos bíblicos.
Finalmente, é bom observar que, ao concluir sua lista de qualificações, o
apóstolo Paulo aponta dois resultados do bom desempenho do diaconato: “Justa
preeminência” e “muita intrepidez na fé” (1Tm 3.13). O primeiro significa que o
bom diácono se tornará um homem de influência e granjeará o respeito da
comunidade em que ministra; o segundo significa que desenvolverá coragem e
confiança tanto para anunciar o evangelho (At 7.51-60) como para se aproximar
de Deus em profunda comunhão (Ef 3.12).

O ministério da mulher na igreja

O padrão de liderança espiritual adotado pela igreja de Deus é


estritamente neotestamentário e não leva em conta tendências modernas ou
culturais. Por isso, nela, a liderança é masculina, do mesmo modo que era
masculina a liderança espiritual da igreja nos tempos dos apóstolos (1Co
14.34,35; 1Tm 2.11,12; 3.1-13; Tt 1.5-9).
É verdade que, conforme afirmam alguns defensores da ordenação de
pastoras, no século 20 as mulheres conquistaram espaço em várias linhas de
frente, uma conquista que se iniciou por causa da ausência de homens como mão
de obra no período imediatamente posterior à Primeira Guerra Mundial.
Amauri Mascaro Nascimento, citando Alain Touraine e Bernard Mottez,
diz:

A I Guerra Mundial precipitou o movimento de


penetração da mulher nas oficinas. Em 1900, na Grã-
Bretanha, todavia, não ultrapassaram a proporção de 10%
do efetivo dos empregados e, pouco antes da guerra, passam
a constituir ¼. Com a guerra, 200.000 mulheres
ingressaram nas oficinas; em 1911, foram 185.000; em
1931, 580.000; em 1951, 1.200.000, mais da metade do
efetivo. Na França, em 1954, 48,3% dos empregados do
setor secundário e 52,5% do setor terciário eram mulheres,
somando 26% da força do trabalho subordinado. Nos
Estados Unidos, passaram de 3,7 a 27%.[65]

Essa necessidade do pós-guerra intensificou-se em face do tão acelerado


progresso tecnológico que marcou o século 20 e abriu espaços que até então
eram não só inexistentes, mas também inimagináveis para as mulheres dentro da
esfera social.
Deve ficar claro, no entanto, que já no século 18, com a Revolução
Industrial, um grande contingente de mulheres passou a integrar a força de
trabalho, numa proporção nunca vista anteriormente, o que, indubitavelmente,
também cooperou para a formação do cenário que hoje se vê.
Também acerca disso escreve o professor Amauri Mascaro Nascimento:

Por ocasião da Revolução Industrial do século XVIII, o


trabalho feminino foi aproveitado em larga escala, a ponto
de ser preterida a mão de obra masculina. Os menores
salários pagos à mulher constituíam a causa maior que
determinava essa preferência pelo elemento feminino […] O
processo industrial criou um problema que não era
conhecido quando a mulher, em épocas remotas, dedicava-se
aos trabalhos de natureza familiar e de índole doméstica. A
indústria tirou a mulher do lar, por 14, 15 ou 16 horas
diárias, expondo-a a uma atividade profissional em
ambientes insalubres e cumprindo obrigações muitas vezes
superiores às suas possibilidade físicas.[66]

O mesmo autor, na obra citada, oferece ainda uma visão clara do enorme
espaço que a mulher passou a ocupar no processo de produção naqueles dias.
Diz ele:

A situação das mulheres não era diferente… Em fins do


século XVIII trabalhavam em minas, fábricas metalúrgicas e
fábricas de cerâmica. A tecelagem, no entanto, passou a
absorvê-las em maior escala. No estabelecimento Dollfus-
Mieg, em Mulhouse, havia 100 homens, 40 menores e 340
mulheres, proporção considerada normal na indústria têxtil.
Na mesma época, na fábrica de porcelanas de Gien, a
quinta parte dos efetivos era feminina. Em Creusot havia
algumas mulheres que trabalhavam nas escavações de
carvão, mais precisamente 250, de um efetivo de 10.000
pessoas… Em Londres, por volta de 1830, cerca de metade
do trabalho do ramo de indumentária era realizada por
mulheres. Contribuiu muito para esse estado de coisas o
emprego cada vez maior da máquina de coser, inventada por
Thimonnier em 1830 […]. Essa máquina não necessitava de
qualquer energia muscular e permitia a uma mulher fazer o
trabalho para o qual antes eram necessárias 6 ou 7 […].
Reconheça-se, no entanto, que não cabe à Revolução
Industrial a iniciativa da utilização da mão de obra
feminina. As mulheres sempre trabalharam. A fábrica e os
novos sistemas apenas intensificaram a sua participação no
mercado de trabalho que aumentou muito.[67]

Todos esses dados revelam que os espaços conquistados pelas mulheres


na atualidade foram abertos por causa de necessidades econômicas seguidas de
avanços tecnológicos que, como sempre, tiveram forte impacto sobre a
sociedade em geral. Isso, posteriormente, atingiu a igreja, deixando fora de
dúvida que a ordenação de mulheres é o resultado tardio de um processo
histórico e não de um processo exegético.
Na verdade, quando algum debatedor que rejeita a ordenação de
mulheres apela para a exegese de textos bíblicos, seus oponentes evitam o
campo hermenêutico, dizendo apenas que as passagens que fazem restrições ao
ministério feminino na igreja foram produzidas dentro de um contexto social
machista, próprio do mundo antigo, não devendo ser aplicadas no novo ambiente
em que funciona e se desenvolve a igreja contemporânea.
É sabido que a sociedade antiga era mesmo machista. Porém, de modo
nenhum se pode aceitar que os escritores bíblicos se deixaram influenciar tão
largamente pela mentalidade do mundo em que viveram. Ao contrário, o que se
percebe é que o advento do cristianismo deu impulso a uma verdadeira
revolução no modo que a mulher era vista na sociedade tanto judaica como pagã
dos primeiros séculos.
Com efeito, a fé pregada pelos apóstolos destacou o valor da mulher,
realçou a importância do seu papel, incentivou o respeito que a ela é devido e a
colocou em posição de igualdade com o homem diante de Deus. Toda essa
revolução, porém, não deixou de estabelecer distinções funcionais entre ambos
os sexos, ou seja, foi uma revolução que, mesmo rejeitando o extremo machismo
reinante naqueles dias, manteve nítidas as diferenças de papéis do homem e da
mulher, tanto na família como na igreja.
É nesse ponto que a revolução cristã difere da revolução feminista do
século 20. Esta desconsiderou as bases teológicas que explicavam o porquê das
restrições impostas pela igreja às mulheres e teve como base principal, conforme
dito, as necessidades econômicas oriundas do primeiro grande conflito mundial e
do progresso tecnológico. Isso, somado à ausência de uma justificativa para a
limitação do papel da mulher, fez com que, nas últimas décadas, alguns traços
funcionais distintivos entre homens e mulheres passassem a se confundir.
É difícil calcular os prejuízos dessa confusão. Há quem lhe atribua
especialmente a má formação moral e psíquica das crianças de hoje, bem como a
fragilidade dos vínculos familiares.
De fato, na sociedade de outrora, percebia-se uma distinção bastante
definida entre os papéis do homem e da mulher: geralmente, o homem saía de
manhã para trabalhar, enquanto a mulher ficava cuidando das crianças e da casa.
Na sociedade moderna, as funções dos dois não são tão distintas. Muitas
vezes o homem e a mulher trabalham e, nas “horas de folga”, cuidam da casa.
No final das contas, as crianças têm uma relação muito pobre com a família e
deixam, por isso, de receber elementos essenciais à formação de sua estrutura
emocional, de suas capacidades afetivas e do seu caráter.
Além disso, o modo de vida de seus pais ensina pouco sobre o que é
devido ao “papai” e o que é devido à “mamãe”. Desse modo, as crianças
crescem sem saber direito quais funções específicas deverão exercer quando
formarem suas próprias famílias, o que contribui para a frustração nos
relacionamentos matrimoniais e o consequente aumento do número de divórcios.
Enquanto a liberdade ou a igualdade das mulheres permaneceram como
um traço geral da sociedade moderna, a igreja não sofreu grandes afrontas.
Porém, a confusão funcional entre homens e mulheres da sociedade avançada
começou a se infiltrar na igreja — e livros e debates sobre ordenação feminina,
incomuns em outras épocas, surgiram tentando oferecer a palavra final sobre o
assunto.
Nessas discussões, os defensores do pastorado da mulher sempre
apresentam os argumentos acima mencionados: “Vivemos numa época em que a
mulher conquistou grandes espaços; e os textos bíblicos que limitam as funções
da mulher na igreja devem ser considerados impraticáveis hoje em dia por
revelarem apenas o modo de pensar do homem antigo”.
Independentemente, porém, do que se diga ou pense na atualidade, o fato
é que, no que se refere ao procedimento da mulher na igreja, os cristãos têm
diretrizes bem objetivas na Palavra de Deus. Essas diretrizes foram observadas à
risca pelas igrejas dos tempos antigos, com as quais, sem dúvida, os crentes de
hoje têm muito que aprender.
Sabe-se, por exemplo, pelo testemunho literário, que a mulher teve papel
extremamente dinâmico nas diversas atividades ministeriais da igreja antiga.
Pelo fato de os cristãos daqueles tempos olharem com admiração os seus
mártires, qualquer evidência de rejeição de prazeres era enaltecida como virtude
e, por isso, as virgens que pertenciam às diversas comunidades cristãs exerceram
nos primeiros séculos do cristianismo funções de destaque.
Isso ocorreu principalmente na igreja oriental, em que as funções das
virgens passaram mais tarde a se identificar com as das viúvas. Estas últimas,
quando preenchiam as qualificações de 1Timóteo 5.9-10, eram “inscritas” como
membros de um grupo ministerial cujas responsabilidades implicavam a prática
da oração e de boas obras, bem como o auxílio a mulheres doentes.
Digno de nota é que, mesmo vistas pelos membros da igreja com olhos
do mais profundo respeito e apreciação, a evidência literária demonstra que as
viúvas, ou qualquer outra classe de mulheres, eram proibidas de ensinar na igreja
ou de batizar. Em toda a igreja antiga, o consenso era que elas não podiam
exercer funções consideradas então como tipicamente masculinas.
Os documentos antigos também apontam para o fato de que existia no
período pós-apostólico uma ordem de “diaconisas”. Sem embargo, esse termo
não tinha nada que ver com o modo que é usado hoje. As diaconisas da igreja
antiga não eram líderes, mas sim auxiliadoras que tinham suas funções
claramente definidas. Seus deveres terminavam onde começavam os dos bispos
e tinham o objetivo de ajudá-los quando os serviços deles se tornavam
inadequados pela força das circunstâncias.
Desse modo, elas eram chamadas a ministrar a outras mulheres quando a
ocasião não era favorável ao serviço de um bispo ou diácono. Eram elas que
auxiliavam no batismo de senhoras ou moças numa época em que essa
ordenança era realizada com o candidato totalmente despido. Elas visitavam
outras mulheres crentes e ministravam às doentes. Assim, o ministério delas era
extremamente importante na igreja, porém, direcionava-se unicamente às
mulheres.
Como se vê, dentro da comunidade cristã antiga, as distinções funcionais
entre homens e mulheres eram bem delineadas. Isso não ocorria por questões
culturais. Na verdade, se os cristãos antigos se deixassem levar pela cultura
reinante na sociedade daqueles dias, as mulheres não teriam tido espaço nenhum
dentro da igreja.[68]
A verdade, porém, é que as limitações funcionais da mulher tiveram
como base a herança doutrinária deixada pelos apóstolos. Foi de fato a doutrina
cristã, não a cultura judaica ou pagã, que impôs limites ao papel da mulher na
igreja.
H. Wayne House escreve:
O ensino da igreja apostólica era, e a prática da igreja
antenicena confirma, que as mulheres receberam um novo
status na igreja, o qual dificilmente teriam tido no mundo
antigo. Mesmo com esse reconhecimento de sua dignidade
idêntica à do homem, ainda assim, restrições foram feitas
com respeito à mulher por causa do entendimento apostólico
acerca da relação entre masculino e feminino presente na
criação e na queda. Às mulheres não era concedido
ministrar numa posição de autoridade espiritual sobre os
homens na vida da igreja. Isso inclui a proclamação pública
das Escrituras a homens e funções pastorais tais como a
ceia do Senhor e o batismo.[69]

Essas limitações ao ministério da mulher mencionadas por Wayne House


baseavam-se em textos como 1Coríntios 14.34-37 e 1Timóteo 2.11-14. Quem
observa essas passagens percebe que o apóstolo Paulo em nenhum momento
embasa suas restrições às funções das mulheres em argumentos voltados para a
cultura ou os costumes de seu tempo. Em vez disso, o apóstolo põe como
fundamento para as restrições ao papel da mulher na igreja as seguintes
doutrinas: a inspiração bíblica; a doutrina da criação; e a doutrina da queda.
Em 1Coríntios, Paulo diz que o que escreve sobre o ministério da mulher
é “mandamento do Senhor” (v. 37), o que implica o ensino acerca da inspiração
divina daquilo que acabou de dizer no texto, não sendo aceitável que algum
crente o questione. Já em 1Timóteo, todas as suas orientações se fundamentam
no fato de primeiro ter sido formado Adão e depois Eva (doutrina da criação), e
no fato de Adão não ter sido enganado, mas sim sua mulher (doutrina da queda).
O que Paulo escreveu, portanto, sobre o ministério feminino na igreja,
não se baseou nos costumes do seu tempo, mas sim em dogmas inquestionáveis
para o povo de Deus. Ele não deixou aos crentes de hoje apenas vestígios acerca
de como a mulher era vista ou tratada em seus dias. Ele lhes deixou uma herança
teológica e vivencial; algo que deve ser defendido e aplicado com seriedade no
dia a dia da igreja local de hoje, do mesmo modo que foi no período apostólico e
na igreja antiga.
Em face disso tudo, não há na igreja zelosa pastoras nem diaconisas. Isso
não significa que as mulheres não possam realizar um trabalho abençoado junto
à comunidade da fé (Rm 16.1-2). Na verdade, a elas pode ser confiada a
educação cristã dos pequeninos, a visitação de pessoas enfermas e idosas, o
ensino de classes de senhoras, o trabalho em comissões especiais, a organização
de campanhas, o envolvimento direto com evangelização e missões, o
desempenho de cargos da diretoria estatutária e inúmeras outras atividades. Os
cargos de liderança espiritual, porém, são reservados a homens.
Deve ficar bem claro que não existe nenhum tipo de superioridade
espiritual em alguém pelo simples fato de ser do sexo masculino. Em Cristo,
todos desfrutam a mesma posição diante de Deus (Gl 3.27-28). Também não se
deve questionar a competência ou capacidade de alguém por ser mulher.
Simplesmente, a igreja de Deus deve adotar um modelo de funcionamento
bíblico e com ele conviver de modo pacífico, sem preconceitos ou menosprezos.

Superioridade ontológica e superioridade funcional

Para que o posicionamento bíblico acerca do ministério feminino não


seja acusado de machista ou preconceituoso, é necessário que se entenda a
diferença entre superioridade ontológica e superioridade funcional.
A superioridade ontológica diz respeito à supremacia que um ente tem
sobre outro como ser (ontos, em grego, significa “ser”). Por exemplo, o homem
é um ser superior aos animais ou às árvores. Por outro lado, é inferior a Deus.
Por isso, é correto dizer que existe uma hierarquia ontológica entre Deus, o
homem e o cavalo, estando Deus no topo da pirâmide e o cavalo na base.
Ora, não é esse tipo de superioridade que existe entre o homem e a
mulher. Como seres, os dois estão no mesmo nível, nenhum se situando acima
do outro, ambos desfrutando de igualdade ontológica inquestionável.
A concepção religiosa, filosófica ou cultural que nega isso “coisifica” a
mulher, tende a reduzi-la a um animal falante e acaba por destruir sua dignidade.
De fato, quando se adota a crença na inferioridade ontológica da mulher, os
homens se dão ao direito de comercializá-las, escravizá-las, torturá-las e até
matá-las.
Diferente da superioridade ontológica é a superioridade funcional. Esta
não diz respeito às distinções ligadas essencialmente ao ser, mas sim ligadas aos
cargos e funções que cada ser, ontologicamente igual, exerce numa determinada
instituição ou comunidade.
Assim, numa família, por exemplo, enquanto há igualdade ontológica
entre pai, mãe e filhos, existe uma hierarquia funcional entre eles, estando o
marido/pai no topo da pirâmide e os filhos, na base (Ef 5.22-6.1; 1Pe 3.1-2).
Numa empresa, numa escola, numa corporação militar, num estado,
enfim, em qualquer organização humana existe (ou deveria existir) uma
hierarquia funcional para que tudo tenha bom andamento. Isso ocorre sem que
ninguém possa dizer que o chefe, diretor, general ou presidente seja um ser
superior aos seus subordinados. De fato, somente seu cargo é superior. A
diferença entre o que ocorre nesses casos e o que ocorre na igreja é que nesta a
distinção funcional está ligada ao gênero por força do ensino bíblico.
É, pois, essa superioridade funcional entre homem e mulher que deve ser
ensinada e vivida na igreja, e não a superioridade ontológica, destacando-se que,
mesmo sendo seres de valor, dignidade e capacidades iguais, homem e mulher
foram dispostos funcionalmente por Deus de forma desigual, ocupando o
homem a posição de líder no lar e na igreja, enquanto a mulher, nessas duas
instituições, atua como auxiliadora.
Perguntas frequentes

1) Como se dá, na prática, o chamado de um indivíduo para o ministério


pastoral?
O chamado para o ministério pastoral se realiza sob dois aspectos: o interno e o
externo. O chamado interno é o desejo que a pessoa tem de ser pastor (1Tm
3.1). Sem esse anseio não se pode dizer que alguém é vocacionado. É verdade
que o chamado dos profetas do AT conflitava, às vezes, com a vontade deles (Êx
4.10,13; Jn 1.1-3), mas não é assim no caso do chamado para o ministério
pastoral.
Quanto ao chamado externo, trata-se da decisão da igreja que vê num de seus
membros um ministro de Cristo em potencial. O chamado externo é visto em
Atos 14.23, onde se fala das igrejas elegendo seus presbíteros.
Se faltar um só desses fatores, a vocação pastoral será inexistente.

2) A Bíblia apresenta regras claras sobre liderança eclesiástica?


É claro que sim. Podemos enumerar as seguintes:

1. Não negligenciar o espírito de servo (Mt 20.26-28; Lc 22.26).


2. Não esquecer que sua função lhe foi confiada pelo próprio Senhor (At
20.24; Cl 4.17).
3. Não lançar novos fundamentos doutrinários (1Co 3.10-11).
4. Não se afastar do padrão de excelência (1Co 3.12-17; 2Tm 4.5).
5. Não fomentar tensões (1Co 16.12; 2Co 2.1).
6. Não recusar o perdão (2Co 2.10-11).
7. Não negligenciar a família (1Tm 3.4,15; Tt 1.6).
8. Não se descuidar do estudo da Palavra (2Tm 2.15; 3.16-17).
9. Não tolerar a heresia e o pecado (2Tm 2.22; Ap 2.2,6,14-15,20).
10. Não ser contencioso (2Tm 2.23-24).
11. Não buscar o interesse próprio (1Pe 5.2; Fl 2.3-4,19-20).
12. Não ser dominador (1Pe 5.3; 3Jo 9-10).

3) O pastor não tem também a obrigação de fazer visitas regulares nas casas?
O texto de Mateus 25.34-36 fala sobre visitar doentes e presos, dizendo que essa
é uma prática que distingue os justos dos injustos. No entanto, a passagem não
se refere a uma atividade pastoral, mas sim a algo que se espera de todos os
discípulos de Cristo. Note-se ainda que as visitas mencionadas têm como alvos
específicos os doentes e presos e não os crentes que estão vivendo vidas
normais.
Ademais, é preciso notar que o contexto indica que as pessoas visitadas
mencionadas na passagem não são doentes e presos comuns, mas sim discípulos
de Jesus que adoeceram, foram encarcerados, fugiram para outras terras e
passaram privações por causa das tragédias que marcarão o tempo da Grande
Tribulação e por causa da perseguição contra os justos que haverá naqueles
dias (Mt 24.7-10). Nada se diz, portanto, no texto, sobre qualquer suposto dever
pastoral de ir regularmente às casas dos membros da sua igreja.
Na Bíblia, só existe a menção de um tipo de visita especificamente pastoral. É a
hipótese prevista em Tiago 5.14. Ainda assim, a iniciativa para a realização
dessa visita parte do enfermo que chama os presbíteros para orar por ele. Tiago
também fala de visitar órfãos e viúvas nas suas necessidades (Tg 1.27), mas o
significado desse texto não aponta para a mera prática de ir à casa de alguém,
mas sim para gestos que aliviem os fardos dos menos favorecidos. Ademais,
Tiago 1.27 não é um texto dirigido exclusivamente a pastores. Seu alvo são os
crentes em geral.
Não há, portanto, nenhuma exigência bíblica que obrigue o pastor a fazer
visitas sociais, didáticas, admoestatórias ou de aconselhamento. Todos esses
aspectos do envolvimento do pastor com os membros da igreja podem ser feitos
em diferentes contextos, sendo a visita no lar somente mais uma opção.
Assim, não é correto impor ao pastor o dever de ir à casa dos irmãos com
regularidade. Essa prática é boa, conforme a experiência mostra, e em alguns
casos pode ser a única alternativa que o ministro do evangelho tem para
alcançar certos objetivos. Contudo, a prática da visita regular não pode ser
elevada à categoria de obrigação pastoral.
Quanto aos perigos ligados ao costume de fazer visitas constantes aos lares,
vejam-se Provérbios 25.17, Mateus 23.14, 1Timóteo 5.13 e 2Timóteo 3.6.

4) Como o pastor deve lidar com membros ranzinzas, que vivem reclamando e
criticando tudo?
A princípio, ele deve admoestá-los brandamente, usando as Escrituras para
mostrar que essa atitude é pecaminosa (Ef 4.29-32; Fl 2.1-2,14; Cl 3.12-17). A
permanência no erro dará ensejo a processos disciplinares (veja-se cap. 5 ).
Casos mais sutis e que inviabilizam a aplicação da disciplina bíblica, podem ser
resolvidos se o pastor orientar a ovelha insatisfeita a procurar outra igreja. Ao
fazer isso, porém, o líder não deve transmitir a ideia de raiva ou desprezo.
Nessa hipótese, o pastor pode dizer ao membro descontente algo mais ou menos
assim: "Irmão, nossa igreja, assim como qualquer outra, tem suas virtudes e
seus defeitos. As virtudes tentamos preservar; os defeitos tentamos superar, mas
nem sempre temos sucesso. Também temos nossas características próprias,
nossos estilos e costumes. Ocorre que, pelo que vejo, esse nosso perfil não o
agrada, fazendo com que o irmão se sinta sempre descontente e insatisfeito. Não
é bom que alguém venha à igreja e se sinta assim. Por isso, creio que o irmão
deveria buscar outro lugar para se congregar. Há muitas igrejas boas por aí
afora e, certamente, Deus tem preparado uma que se ajuste melhor aos anseios
e expectativas do irmão".
Seja qual for o caso, o que não pode ocorrer em hipótese alguma é o pastor se
retrair e, intimidado, tentar agradar os que vivem descontentes. Se agir assim,
seu ministério girará sempre em torno dessas pessoas e ele será, praticamente,
submisso a elas, agindo com medo e fazendo de tudo para conquistar sua
aprovação. Então, a igreja inteira perceberá essa fraqueza e o líder perderá o
respeito de todos.

5) Existem crentes que, pelo seu modo de ser, assim que chegam na igreja vão
logo ganhando espaço, assumindo tarefas e tomando iniciativas. Como lidar com
esses casos?
Muito simples. Corte as "asinhas" depressa. Pessoas assim geralmente agem em
igrejas que têm liderança fraca, mas pastores de pulso firme também têm que
lidar eventualmente com elas, pois muitas vezes essas pessoas querem testar a
liderança pra ver até onde podem ir. Na verdade, há casos de excessos absurdos
em que o indivíduo mal chega na igreja e já assume a postura de líder,
convocando reuniões, manifestando suas opiniões e questionando o modo de
funcionamento das coisas. Diante de pessoas com esse perfil, o pastor e os
demais líderes da igreja devem de pronto obstruir a busca de espaço do crente
recém-chegado, chamando-o ao lado e dizendo que ele não tem autorização
nenhuma para tomar aquelas iniciativas, devendo permanecer no seu lugar de
novato. Infelizmente, muitos pastores que passam por essa situação acreditam,
por ingenuidade, que estão sendo abençoados com a chegada de um irmão (ou
um casal, ou ainda uma família) dinâmico e cheio de entusiasmo. Mais tarde,
porém, descobrem que não deviam ter dado espaço tão depressa a um
desconhecido e que a presença daquele novo irmão na igreja é fonte mais de
problemas do que de soluções.

6) Como deve agir a mulher que acredita ter dons ligados à atividade pastoral ou
diaconal?
Ela deve realizar o pastoreio dos irmãos (cuidado, conselho, consolo, etc.), sem
exercer o pastorado (o cargo de líder oficial da igreja). Também poderá exercer
a diaconia entre os santos (serviço, ajuda, socorro, etc.), sem assumir o
diaconato (a posição de líder dentro da comunidade). Muitas senhoras fazem
isso, sendo extremamente úteis à igreja de Deus (Rm 16.1).

7) Foi dito neste capítulo que a mulher não pode ser líder na igreja. É possível,
porém, que ela, sem ser líder, pregue ocasionalmente nos cultos?
Muitos entendem que sim, afirmando que, nesses casos, a mulher pregaria
debaixo de uma autoridade que lhe fosse emprestada pelo pastor. Contudo, não
existe base nenhuma para se aceitar a noção de “autoridade emprestada”.
Aliás, se isso pudesse ser feito, então, qualquer pessoa poderia assumir o
púlpito da igreja, desde que o pastor lhe “emprestasse” sua autoridade.
Assim, em vez de buscar refúgio em conceitos ilusórios de autoridade, o que se
deve fazer é respeitar a autoridade real da Bíblia. Nela é clara a proibição de a
mulher ensinar na igreja, ficando óbvio que se ela o fizer, exercerá autoridade
cabível somente aos homens e inverterá o modelo proposto na doutrina da
criação, desconsiderando também um dos efeitos da Queda (1Tm 2.11-14).

8) O ministro de Música não é também um oficial da igreja?


O cargo de ministro de Música não figura entre os ofícios eclesiásticos
apontados no Novo Testamento. Trata-se de uma criação recente que surgiu
para suprir as necessidades da igreja no campo do louvor congregacional e das
apresentações musicais litúrgicas (coros, quartetos, orquestras, etc.).
Obviamente, não existe nada de errado em manter esse cargo na igreja. No
entanto, todos (inclusive o ministro de Música) devem compreender que essa
função não tem relação nenhuma com a liderança espiritual da comunidade, nos
termos fixados pelo ensino apostólico. Isso significa que o ministro de Música
não é um tipo de pastor, nem mesmo um diácono no sentido técnico do termo.
De fato, o chamado “ministro de Música” deve ser visto como um membro
comum da igreja que atua na área musical, coordenando esse aspecto da vida
eclesiástica sob os auspícios da liderança bíblica.
Capítulo 8 – O PATRIMÔNIO MATERIAL DA IGREJA
As verdades bíblicas devem permear cada aspecto da vida da igreja. A
administração dos seus bens materiais não é exceção.
É evidente que toda igreja, grande ou pequena, rica ou pobre, detém a
posse ou a propriedade de um determinado número de bens. O modo como essas
coisas são usadas pelos crentes, além do grau de cuidado que recebem deles,
reflete algo de sua visão acerca do senhorio de Deus sobre tudo que a igreja tem.
Em tempos passados, quando se falava sobre esse assunto, a palavra
mordomia era bastante frequente na boca dos cristãos. Ao pronunciar esse termo,
os crentes reconheciam que, mesmo as coisas materiais mais simples, pertencem,
na verdade, a Deus, sendo dever dos santos apenas cuidar delas com zelo
elevado, como servos que administram os bens do seu senhor.
Essa noção, porém, parece ter-se apagado um pouco da mente dos
cristãos, fazendo surgir na igreja a concepção equivocada de que não há nenhum
problema em usar o que lhe foi dado ao bel-prazer, como se o que é material
tivesse pequena importância e como se noções de ordem, limpeza, estética e
preservação não fizessem parte dos ideais cristãos.
Tudo isso deve ser corrigido na igreja que anseia refletir em sua prática a
natureza e o caráter de Deus. Para que essa correção seja feita, porém, o povo
santo deve resgatar os antigos fundamentos doutrinários da mordomia cristã
mencionada supra. E não somente isso, mas também deve construir uma
concepção bíblica acerca do espaço que possui, domina e sobre o qual exerce
influência praticamente completa.

Os fundamentos bíblicos da mordomia cristã

A palavra mordomia é tradução do termo grego oikonomia, cujo


significado básico denota a administração ou gerenciamento de uma casa
habitada. Geralmente, o vocábulo correlato oikónomos (mordomo, gerente ou
tesoureiro) é traduzido nas bíblias em português como despenseiro, encarregado
ou administrador.
No NT, o conceito de mordomia abrange o uso cuidadoso dos dons
espirituais que o Senhor concede a cada crente em particular (1Pe 4.10), a
proteção, divulgação e manejo da sã doutrina (1Co 4.1-2) e o bom trabalho
pastoral (Tt 1.7). Aqui, porém, a mordomia cristã será considerada sob um
aspecto mais estrito, focalizando somente o modo como a igreja local deve
cuidar do seu patrimônio material. Nesse sentido, uma boa definição para a
expressão em pauta é a seguinte: mordomia cristã é a administração
responsável e sábia dos bens pertencentes a Deus que foram confiados ao
cuidado do seu povo.
As bases teológicas da mordomia cristã podem ser resumidas em quatro
proposições:

1. O Senhor é o criador de todas as coisas, de maneira que tudo lhe


pertence no céu, na terra e no mar. Sendo ele o dono de tudo, todas as


coisas que os homens recebem (e a vida dos próprios homens! — Sl 24.1)
são, a priori, dele (Dt 10.14; Sl 50.9-12; Ag 2.8).
2. Os homens detêm a posse e o uso das coisas graças à bondade e

liberalidade de Deus que é o único titular de sua propriedade (1Cr 29.14; Jó


1.21; Sl 104.27-28; Mt 6.25-34; At 14.17; Tg 1.17).
3. Os crentes, conhecendo as verdades acima mencionadas, devem zelar

pelo que está em seu poder (Gn 2.15; Pv 24.30-31), usando tudo para a
honra e glória do dono supremo de tudo que há (Pv 3.9; Mt 25.14-30; At
4.36-37; 2Co 9.7-15).
4. Os bens materiais colocados por Deus sob a administração do seu povo e

a própria administração deles são, um e outro, passageiros, de maneira que


não deve haver apego excessivo nem aos bens nem ao uso deles, sob o risco
de se tornarem fins em si e não meios que viabilizam o serviço santo (Sl
62.10; Lc 12.15-21; At 2.45; 4.31-35; 5.1-11; 2Co 8.1-4; Hb 13.5; 1Jo
3.17).

É essencialmente sobre esse fundamento quádruplo que a igreja deve


construir o modo como fará uso de todo o seu patrimônio, bem como as medidas
que adotará para protegê-lo e mantê-lo em ordem.

A teologia do espaço

Além das noções básicas de mordomia cristã, o uso e o cuidado do


patrimônio material eclesiástico devem também se sustentar sobre aquilo que se
pode chamar de uma teologia cristã do espaço, ou seja, um grupo de verdades
ligadas ao modo como Deus lida com a extensão que rodeia tudo e todos e na
qual a criação inteira está inserida.
A construção de uma teologia assim designada deve partir da afirmação
de que Deus é o criador do espaço e, por isso, é também senhor dele. É
necessário, pois, lembrar que não somente a matéria veio à existência por um ato
criador divino, mas também, e necessariamente, o espaço que essa matéria ocupa
em suas variadas formas.
Aliás, se for aceito que o universo veio à existência pela palavra que
Deus pronunciou (criação pelo Fiat — Gn 1; Hb 11.3), então é preciso
reconhecer que, antes de criar qualquer outra coisa, o Senhor primeiro criou o
tempo (pois as sílabas que compõem as palavras são pronunciadas
cronologicamente, uma após a outra) e o espaço (pois o som das palavras
pronunciadas se propaga no espaço e o que veio à existência precisava de espaço
para ocupar).
De fato, o espaço foi criado por Deus e a ele pertence, sendo que disso
decorrem importantes questões práticas. Por exemplo: sendo Deus o senhor do
espaço, como a igreja e o crente em particular devem preenchê-lo? Outra
questão: se o espaço é parte da criação e um dia a criação será redimida, como o
cristão e sua igreja podem hoje mesmo resgatar o espaço, fazendo o reino
vindouro ser percebido desde já também nesse aspecto?
No tocante à primeira pergunta, está fora de dúvida que a igreja deve
santificar todo espaço a que tem acesso e sobre o qual tem algum grau de
autoridade ou influência. Isso não significa fazer cultos de consagração de
templos (tema que será tratado no Capítulo 9), mas sim usar o espaço de modo
agradável a Deus, deixando-o livre de tudo que desonre o Senhor e fazendo de
cada salão, cômodo, corredor ou saguão da igreja um ambiente em que Cristo
seja glorificado.
Obviamente, sendo Deus o senhor do espaço, a igreja não pode permitir
que o ambiente que ocupa e administra seja usado para a prática da impureza, da
mentira, da fraude, da desonestidade e da intriga. Antes, o lugar confiado pelo
Senhor ao seu povo deve ser um espaço no qual ele é obedecido, inclusive por
ser seu verdadeiro dono.
Quanto à segunda pergunta formulada supra, de fato, a Bíblia ensina que
a criação um dia será redimida da corrupção do pecado (Rm 8.18-22). Sem
dúvida, isso abrange o espaço. Aliás, basta olhar ao redor para perceber como o
pecado afetou não somente o que (as coisas), mas também o onde. Por toda parte
são vistas a feiura, a desorganização, a sujeira, a desolação e o mau gosto. E isso
não se percebe somente em favelas e becos. A própria arquitetura e a arte
contemporânea parecem ter perdido a noção de beleza, de ordem e de estética, à
medida que o homem foi se afastando da visão de que Deus é o criador e o
senhor de tudo.
Um dia, porém, conforme ensina a Escritura, quando o reino milenar de
Cristo finalmente se estabelecer neste mundo, todo espaço será redimido dos
efeitos do pecado e haverá completa beleza permeando tudo. Toda a realidade
criada — matéria, tempo e espaço — estará livre do cativeiro da corrupção e o
conhecimento de Deus encherá toda a Terra, “como as águas cobrem o mar” (Is
11.6-9).
Ora, o Novo Testamento convida os cristãos a, na medida do possível,
trabalhar para que as bênçãos futuras do reino de Cristo se realizem em alguma
medida desde já (Rm 13.11-14; Hb 12.28). Por isso, o crente que espera a
redenção do espaço atua de modo a tornar parcialmente real, aqui e agora, aquilo
que será plenamente real quando Cristo voltar. Assim, a igreja de Deus sempre
se preocupará em tornar bonito e bem-cuidado todo espaço que administra,
sejam as paredes de seus salões, seja sua área externa, ou mesmo sua cozinha e
seus sanitários.
A igreja que aguarda o reino e sabe que é seu dever antecipar seus efeitos
até onde a realidade presente permite eliminará dos espaços que tem sob seus
cuidados toda feiura, toda desolação, toda sujeira e toda desordem. Assim, as
pessoas verão, nos lugares em que os cristãos vivem e convivem, verdadeiras
partículas do reino vindouro e poderão enxergar uma “pontinha” de como será
todo espaço redimido quando, afinal, tudo estiver sob o cetro adorável do
Senhor.
Uma teologia do espaço deve também considerar o modo como o próprio
Deus se relaciona com o espaço que criou, sendo certo que isso revelará muito
do seu caráter e da sua vontade. Nesse aspecto, é notável que, no relato da
criação, Deus preenche o espaço com beleza e ordem (Gn 1). Também no
período do êxodo, é nítida a preocupação do Senhor em fazer com que as doze
tribos de Israel ocupassem seu espaço no deserto dentro de um programa
predefinido de organização (Nm 2). Ele também fixou ordens ligadas à limpeza
do acampamento, afirmando que a razão daquelas leis residia no fato de o povo
ser santo e de o próprio Senhor andar no meio do arraial, não sendo do seu
agrado ver coisas indecentes nos lugares de habitação temporária de Israel (Dt
23.12-14).
Ainda na época do êxodo, o valor que o Senhor dá à beleza e à arte como
fatores que devem dignificar um lugar pode ser visto no tabernáculo e nas peças
que o guarnecem. Nesse templo portátil, Deus exigiu que tudo fosse belo,
benfeito e organizado (Êx 25-27; 30.1-21), qualidades que foram reproduzidas
com excelência ainda maior no templo construído posteriormente por Salomão
(1Rs 5-6).
Algo da forma como Deus lida com o espaço pode, inclusive, ser visto no
túmulo de Jesus, local em que também ressuscitou dos mortos. O relato de João
diz que, quando entraram no túmulo na manhã de domingo, os discípulos
perceberam que o corpo de Cristo não estava mais ali. Então viram o lenço que
estivera sobre a sua cabeça enrolado (Gr. entylísso) e posto num lugar à parte (Jo
20.7). É significativo que o glorioso Senhor do universo, ao romper vitorioso os
grilhões da morte, mostrou a sublimidade de seu caráter ao arrumar e deixar em
ordem o local em que jazera, antes de, enfim, deixá-lo e mostrar-se aos
discípulos.
Em tudo isso, é possível ver o valor que o Deus verdadeiro dá ao espaço,
ornamentando-o sempre com tudo que é decente e aprazível, usando-o como
cenário de cuidado e esmero, a fim de ensinar aos crentes de todas as eras um
modo de vida ordeiro, limpo e bem-arrumado para que, vivendo assim, eles
também anunciem ao mundo algo mais das virtudes do Senhor que os resgatou
de toda forma de sujeira e caos. Ora, em nenhum outro lugar, essas lições devem
ser postas mais em prática do que na verdadeira igreja de Deus.
Uma pergunta importante

Toda doutrina bíblica corre o risco de ser mal entendida e mal aplicada. Quais os
perigos da má compreensão da mordomia cristã e da teologia do espaço?
Se a doutrina da mordomia cristã não for bem compreendida, poderá
desembocar numa proteção tão intensa do patrimônio da igreja que as pessoas
mal poderão usá-lo, sentindo-se sufocadas sob inúmeras restrições. Por isso, a
concepção correta da mordomia cristã deve levar em conta que o Senhor coloca
bens nas mãos dos crentes não somente para que eles cuidem deles, mas também
deles desfrutem. Do contrário, a igreja se tornará serva e não beneficiária do
seu patrimônio.
Quanto à teologia do espaço, o perigo de sua má compreensão é tentar tornar o
espaço tão belo ao ponto de se gastar dinheiro com luxos desnecessários.
Quando isso acontece, o desejo de resgatar o espaço atingido pela Queda acaba
levando à má mordomia dos recursos, pois estes passam a ser empregados em
futilidades.
Assim, no afã de cuidar do seu espaço, resgatando a beleza e a ordem que Deus
tanto preza, a igreja deve primar especialmente pela limpeza, pela boa
arrumação e por uma estética moderada e equilibrada, livre de luxos inúteis.
Capítulo 9 – DESVIOS EVANGÉLICOS
Os tempos atuais têm se revelado imensamente férteis na produção de
desvios e heresias dentro do contexto dito evangélico. Na verdade, é difícil
imaginar um ambiente em que a prática de distorção das Escrituras seja maior do
que a percebida hoje dentro das igrejas de origem protestante.
Na verdade, ao que parece, muitas igrejas que se denominam evangélicas
concedem a si mesmas certas liberdades no campo da hermenêutica, da ética, da
liturgia e da eclesiologia aplicada que nem mesmo as seitas mais danosas jamais
ousaram arrogar para si. Essas liberdades, obviamente, têm produzido desvios
horríveis que maculam o nome do cristão diante da sociedade, exibindo a todos
um cristianismo caricaturizado, bem diferente daquele ensinado pelo Senhor e
pelos seus santos apóstolos.
Em face dos prejuízos que esses modelos têm gerado para a verdadeira
igreja do Senhor, o crente de hoje deve evitá-los a todo custo, retomando à
mesma postura do pastor anabatista Menno Simons (1496-1561), líder da
reforma radical que floresceu no século 16 e fundador da Igreja Menonita:

Irmãos, digo-lhes a verdade, não minto. Não sou


nenhum Enoque, não sou nenhum Elias, não sou ninguém
que tenha visões, não sou profeta que possa ensinar e
profetizar algo além do que esteja escrito na Palavra de
Deus e seja compreendido no Espírito. [...] Mais uma vez,
não tenho visões nem inspirações angélicas. Nem as desejo,
para não ser enganado. A Palavra de Cristo, por si só, é
suficiente para mim.[70]

Para estimular os membros da igreja de Deus a imitar Menno Simons em


seu apego à Palavra de Cristo, fugindo assim dos chocantes desvios evangélicos
da atualidade, este capítulo tratará de alistar esses mesmos desvios, expondo
suas principais ilusões sob a luz da Bíblia.

O pentecostalismo [71]

Ao longo de sua história, a igreja cristã tem enfrentado três graves


perigos: o paganismo, o papismo e o pentecostalismo.
O paganismo ameaçou a igreja logo nos primeiros anos de sua existência,
especialmente por meio de um misto de religiões, filosofias e fábulas que mais
tarde ficou conhecido como gnosticismo. Esse modelo exercia forte atração
sobre os cristãos menos preparados porque, além de oferecer experiências
místicas, como visões e coisas do tipo (Cl 2.18), também impunha aos seus
seguidores normas de conduta que pareciam piedosas — regrinhas como “não
pode isso, não pode aquilo” (Cl 2.20-23). O maior atrativo do gnosticismo,
porém, estava na alegação de que seus adeptos formavam uma elite espiritual
detentora de um grau de espiritualidade e conhecimento (gnosis) que outras
pessoas eram incapazes de ter.
O papismo, por sua vez, desenvolveu-se em decorrência de processos
muito mais longos e complexos, iniciados já no século 2, e que culminaram no
surgimento de uma espécie de príncipe eclesiástico com autoridade universal,
supostamente dotado de infinitos poderes temporais e espirituais — uma espécie
de deus, reconhecido, aliás, como infalível!
Por causa do papismo, a igreja medieval ficou muitas vezes nas mãos de
homens inescrupulosos, imorais e corruptos que, em nome de Cristo e em
benefício próprio, cometeram atrocidades como as guerras das Cruzadas, os
crimes da Inquisição e a exploração impiedosa do povo por meio da venda de
relíquias e de indulgências. O caos e a vergonha a que o papismo lançou a igreja
deram ensejo à Reforma Protestante do século 16.
O terceiro perigo, o pentecostalismo, é de todos o mais recente e também
o mais danoso, posto que abriga elementos dos dois primeiros e, conforme será
demonstrado, trouxe prejuízos para o cristianismo que nem mesmo os piores
inimigos da fé foram capazes de causar nesses 2 mil anos de história eclesiástica.
O surgimento do movimento pentecostal geralmente é datado de 1906,
ano em que William Joseph Seymour, um pregador afro-americano, iniciou
reuniões num barracão na Rua Azuza, número 312, em Los Angeles, EUA.
Nessas reuniões, a ênfase era a busca do batismo com o Espírito Santo, o que
Seymour cria ser uma experiência mística pós-conversão, acompanhada pelo
falar em línguas.
Ora, a Bíblia ensina que o batismo do Espírito Santo é dado a todos os
crentes, sem que eles precisem se esforçar para obtê-lo (1Co 12.13; Gl 3.2).
Também ensina que isso ocorre no momento da conversão (Ef 1.13), sem
nenhuma necessidade de ser evidenciado pelo dom de línguas, já que, na Igreja
Primitiva, esse dom era dado somente a alguns (1Co 12.30).
Contudo, os seguidores de Seymour criam que o batismo do Espírito
Santo era uma espécie de segunda bênção (a primeira bênção seria a conversão)
dada por Deus somente a quem a buscasse com orações, jejuns, clamores,
lágrimas e vigílias.
Por isso, testemunhas oculares relataram que, na Rua Azuza, as pessoas
passavam dias e noites gritando, chorando, gemendo, uivando, pulando, girando
e se contorcendo, enquanto clamavam pela “bênção”. Já os que eram “batizados”
balbuciavam o que criam ser línguas estranhas e, em êxtase, caíam no chão, onde
ficavam rolando ou se sacudindo, numa manifestação frenética de loucura total.
Outros, ainda, desmaiavam e ficavam deitados por horas a fio, inertes como se
estivessem mortos.
Tudo isso, pensavam, era necessário e valia a pena, pois o batismo do
Espírito Santo, uma vez recebido, elevaria o crente a um novo e mais rico
patamar espiritual, tornando-o participante de uma elite de homens santos e
fazendo-o desfrutar de uma vida repleta de experiências poderosas e
arrebatadoras com Deus.
Foi dito aqui que o primeiro grande perigo que ameaçou a igreja de
Cristo foi o paganismo manifesto em doutrinas gnósticas. Com isso em mente,
note-se que o pentecostalismo demonstrou ser um dos maiores danos que já
sobrevieram à igreja porque, com sua ênfase numa doutrina jamais ensinada nas
Escrituras, trouxe de volta para o cristianismo precisamente aquelas velhas
noções pagãs, apegando-se ao êxtase, ao frenesi espiritual e, especialmente, ao
principal conceito gnóstico da existência de uma elite espiritual que se situa
acima dos crentes comuns.
Então, como ocorreu com o gnosticismo nos séculos 1 e 2, a
possibilidade de provar emoções novas e de fazer parte de uma elite espiritual
fez com que o pentecostalismo atraísse uma imensa massa de pessoas ávidas por
experiências místicas e sedentas por conquistar o reconhecimento e a admiração
dos seus correligionários.
Conforme dito anteriormente, a segunda maior ameaça sofrida pela igreja
ao longo dos séculos foi o papismo. Ora, o pentecostalismo também não deixou
de fora os principais elementos desse mal. Com efeito, além de trazer novamente
para a igreja de Cristo o velho paganismo combatido pelos pais apostólicos do
século 2, o movimento pentecostal trouxe também, para a igreja evangélica, o
velho papismo combatido pelos reformadores do século 16. A diferença é que o
papismo pentecostal é um papismo múltiplo e numeroso.
De fato, se no romanismo foi acolhida a figura de um papa apenas, no
movimento pentecostal ocorreu a proliferação de um exército de pequenos papas
locais, todos reivindicando autoridade divina e infalibilidade absoluta sob os
títulos de bispo, apóstolo, profeta ou patriarca.
Essas figuras alegam que Deus lhes fala diretamente e, à semelhança dos
pontífices medievais, não aceitam que suas opiniões ou condutas sejam
questionadas por ninguém e em nenhum grau. Também à semelhança dos papas
renascentistas, muitos líderes pentecostais exploram a boa-fé do povo e juntam
tesouros para si, vendendo quinquilharias que dizem ser santas e dotadas de
poder.

Os seis males do pentecostalismo

Se o pentecostalismo abriga elementos do paganismo e do papismo, há


também outras razões muito mais perceptíveis que comprovam que essa vertente
dita evangélica prejudica a causa cristã. Para expor essas razões, basta descrever
o pentecostalismo como uma fábrica de seis males: heresia, superstição, falsos
irmãos, hipocrisia, desordem e desilusão.
Por que o pentecostalismo pode ser considerado uma fábrica de heresias?
A resposta é simples e lógica: crendo que Deus fala diretamente aos seus
apóstolos e profetas, bem como àqueles que foram agraciados com a “segunda
bênção”, os pentecostais raramente valorizam o estudo teológico, a exegese ou
mesmo as lições mais elementares da hermenêutica bíblica. Para que — dizem
muitos deles — se afadigar na análise do texto bíblico, no aprendizado das
línguas originais ou na leitura de obras de profundidade doutrinária se Deus nos
fala diretamente?
Aliás, no afã de ressaltar essa fábula, alguns pastores pentecostais mais
criativos deixam uma cadeira vazia ao seu lado no púlpito, afirmando que aquele
lugar é ocupado por um anjo ou pelo próprio Espírito Santo que, pondo-se ao seu
lado, sussurra as coisas que ele deve dizer à multidão.
Agravando essa situação, grande parte dos líderes pentecostais se opõe
ferozmente ao estudo da teologia, dizendo que “a letra mata” (2Co 3.6). Ora, o
claro contexto dessa citação é suficiente para mostrar que Paulo fala ali da Lei
Mosaica (a letra) e seu impacto mortal sobre aqueles que tentam ser justificados
por meio da sua observância. Para muitos pentecostais, porém, nesse texto,
Paulo, justamente o apóstolo mais estudioso do Novo Testamento (At 26.24),
reprovava o dedicado estudo da Palavra de Deus!
O resultado dessa forma de pensar é que o pentecostalismo acaba sendo
uma cadeira de balanço para os que se deleitam na preguiça intelectual e dá
ensejo para que homens sem preparo, seguindo as imaginações de seu próprio
coração e chamando tudo que lhes vêm à mente de “revelação”, ensinem aos
seus seguidores absurdos que vão desde as parvoíces mais ingênuas até as
heresias mais deploráveis e destruidoras.
Diante disso, é triste dizer, mas a conclusão a que se chega é que poucas
vezes na história do pensamento cristão existiu uma fábrica de heresias tão
produtiva como o pentecostalismo. Com efeito, os estudiosos de história
eclesiástica sabem que nem Márcion, o arqui-herege do século 2, nem os
montanistas, nem os defensores da cristologia heterodoxa que ameaçou a igreja
nos séculos 4 e 5, nem os cátaros, nem o catolicismo medieval, nem os radicais
da época da Reforma, nem as seitas pseudocristãs da atualidade superaram o
pentecostalismo na produção de doutrinas estranhas, desvios teológicos, erros de
interpretação, ensinos destruidores, lições perigosas e propostas antibíblicas.[72]
O segundo mal que a máquina pentecostal produz incansavelmente é a
superstição. Mais uma vez, a noção de que Deus fala diretamente a seus
profetas, revelando coisas novas a cada dia, fez com que o pentecostalismo
abrisse as portas para o misticismo religioso, repleto de crendices toscas
inventadas por pessoas que diziam ter recebido uma “revelação” do céu.
Os reformadores do século 16 afirmavam que a superstição é filha da
ignorância. Assim, conhecendo pouco da doutrina bíblica e fiando-se nas ilusões
de inúmeros sonhadores, muitos irmãos em Cristo foram ensinados a acreditar
em frases mágicas (“eu determino”, “tá amarrado”; “eu tomo posse”, “eu não
aceito...”), em rituais de quebra de maldição, na força maior de orações feitas de
madrugada, no poder de objetos ungidos com óleo de cozinha e até em água
milagrosa obtida por meio de um copo deixado sobre o aparelho de TV durante a
transmissão de algum programa evangélico.
Percebendo a facilidade com que as massas criam nessas coisas, homens
perversos e impostores foram atraídos para o meio pentecostal onde
conquistaram postos de liderança e se tornaram pastores de muitas ovelhas
verdadeiras de Jesus. Então, movidos pela ganância, esses homens inventaram
ainda mais superstições, criaram um amplo comércio de relíquias muito
semelhante ao que a igreja católica explorou na Idade Média e enriqueceram
vendendo cacarecos ungidos, prometendo saúde e prosperidade por meio dessas
coisas (2Pe 2.1-3).[73]
Muitos, sofrendo debaixo de graves problemas pessoais, seguiram esses
homens, acreditando que a vida ia melhorar e, então, os salões pentecostais
ficaram lotados, fazendo com que o movimento atingisse um grau de
crescimento talvez jamais visto no meio cristão.
Infelizmente, contudo, grande parcela desse crescimento não decorreu da
genuína conversão, mas da grosseira superstição. Por causa disso, a maravilhosa
fé cristã, exposta e defendida por gigantes e santos do passado, passou a ter em
vários lugares a pecha de uma religião de feiticeiros, muito semelhante à
macumba, ao candomblé, ao baixo catolicismo e ao fetichismo de tribos
primitivas.
O terceiro mal que o pentecostalismo fabrica incessantemente são os
falsos irmãos. Se, de um lado, não se pode duvidar da veracidade da fé de muitos
irmãos pentecostais, nem da nova vida que receberam em Cristo, de outro, não
há como negar que um número enorme de pentecostais jamais conheceu a
salvação anunciada no verdadeiro evangelho.
Isso acontece especialmente porque, quem se filia a esse movimento,
geralmente, o faz em busca dos milagres de Cristo e não do seu perdão. Porém,
outra causa para o grande número de incrédulos dentro dessa vertente evangélica
está no fato de que a maior parte dos pentecostais acredita, piamente, na heresia
arminiana da perda da salvação.
Consequentemente, ainda que afirmem em teoria que a salvação é
somente pela fé em Cristo, na prática, muitos pentecostais vivem tentando se
manter salvos por meio da religiosidade aparente, das práticas rituais e da
observância de regras criadas pela igreja. Em casos mais extremos, muitos deles
chegam a acreditar que preservam a salvação porque não deixam a barba crescer
ou porque nunca vestiram uma bermuda!
Tudo isso mostra, tristemente, que muitos pentecostais jamais
entenderam as boas-novas de Cristo, sendo apenas incrédulos oprimidos
tentando melhorar de vida ou buscando ser salvos pelo esforço próprio.
Obviamente, essa presença enorme de falsos crentes no meio evangélico,
produzida especialmente pelo movimento pentecostal, é uma das principais
causas do descrédito a que foi lançado o cristianismo nos tempos modernos.
A hipocrisia é o quarto mal que a máquina pentecostal fabrica. A ênfase
numa espiritualidade marcantemente exterior, com gritos, pulos e quedas no
chão, deu espaço para constantes representações teatrais. Com efeito, simulando
o que chamam de “transbordar do Espírito”, muitos pentecostais sapateiam,
rodopiam e se contorcem freneticamente, tudo para convencer os outros de que
são fervorosos espiritualmente.
Também a altíssima valorização do falar em línguas impeliu esse povo ao
fingimento ou à autossugestão, levando-os a repetir, por conta própria, três ou
quatro sílabas desconexas a fim de dar a impressão de que foram agraciados com
o maravilhoso dom descrito em Atos 2.
Buscando ainda status dentro da igreja, muitos pentecostais fingem
profetizar, quando, na verdade, somente dizem qualquer coisa que lhes venha à
mente e que possa estar relacionada à vida alheia. Naturalmente, todo esse teatro
é facilmente percebido por qualquer pessoa normal, o que transforma a fé cristã
em motivo de piadas aos olhos dos incrédulos.
O quadro descrito acima desemboca facilmente no quinto mal produzido
pelas igrejas pentecostais: a desordem. Durante os cultos de várias igrejas
pentecostais, uns riem sem parar, outros uivam; uns correm de lá para cá, outros
rolam no chão; uns dançam; e outros oram aos gritos. No final, dizem que tudo
isso é fervor ou ação do Espírito Santo e acusam as igrejas ordeiras, centradas no
estudo da Palavra, marcadas por decência, reverência e santo temor, de frias e
carentes de vigor espiritual.
Finalmente, o sexto mal que se origina no pentecostalismo é a desilusão.
Ouvindo profecias vazias e revelações inventadas, muitos crentes sinceros que
pertencem a essas igrejas criam esperanças que jamais se cumprem e que os
lançam, enfim, num poço de frustração. Quando isso acontece, para agravar a
situação, são acusados por quem diz que as ditas profecias não se cumpriram por
causa da falta de fé. Então, além de frustrados, esses irmãos passam a se sentir
também culpados, vivendo infelizes por muitos anos.
Outros, seguindo orientações que lhes disseram ter sido reveladas por
Deus, tomam decisões ou praticam coisas que põem em risco sua família, seu
casamento, sua juventude, seu futuro, sua saúde, sua carreira e seu patrimônio.
Infelizmente, inúmeros irmãos, quando enfim despertam para isso, percebem
muitas vezes que é tarde demais.
Há ainda aqueles que, numa busca cansativa pelo que acreditam ser o
batismo do Espírito Santo, entregam-se a um rigorismo cruel que os priva do
lazer (cinema é pecado!), do conforto (mulher de calça comprida? Nem pensar!),
do alegre convívio com os filhos pequenos (ir à praia com eles seria pura
carnalidade!) e até dos prazeres do leito conjugal. No fim de tudo, ao descobrir
que nada disso teve qualquer proveito, passam a se lamentar frustrados,
percebendo que foram enganados, que a vida passou e que aquilo que perderam
não pode mais ser recuperado.
Veem-se, assim, quantos males são causados pelo pentecostalismo. Como
evitá-los? Como fugir deles? Isso será visto na próxima seção.
Opções para o pentecostal realmente convertido

Muitas pessoas vão dizer que este capítulo faz confusão entre
pentecostalismo e neopentecostalismo. Dirão que, na verdade, é somente o
neopentecostalismo que realiza os abusos aqui mencionados, estando o
pentecostalismo “clássico” livre disso tudo.
Esse parecer resulta de certas distinções que foram feitas no passado
entre o chamado pentecostalismo de “primeira onda” (com ênfase no batismo do
Espírito acompanhado de línguas estranhas), o pentecostalismo de “segunda
onda”, também chamado de “movimento carismático” (com ênfase em curas e
milagres) e o da “terceira onda” (que, além das doutrinas tipicamente
pentecostais e carismáticas, adota ainda a teologia da prosperidade).[74] Sem
dúvida, essa distinção tem certo valor como forma de classificação que auxilia a
análise histórica do movimento. Contudo, a observação do cenário atual mostra
que, na prática, a referida diferenciação tornou-se obsoleta, não fazendo mais
qualquer sentido.
Com efeito, como acontece em qualquer praia em que uma “onda” logo
se mistura com outra, o mesmo ocorreu com o pentecostalismo. Por isso, hoje é
possível perceber que a “primeira”, a “segunda” e a “terceira onda” se
mesclaram, viraram uma vaga só, espumando juntas os mesmos erros e perigos.
Isso faz com que igrejas ligadas ao pentecostalismo clássico exponham doutrinas
e práticas tipicamente atribuídas ao neopentecostalismo (e vice-versa), tornando
difícil separar as duas vertentes.
Ao que parece, a diferença entre pentecostalismo e neopentecostalismo,
se houver, poderá talvez ser encontrada na eventual ênfase que cada igreja em
particular dá a um erro específico. No alicerce, porém, e em muitos
desdobramentos práticos, todo o movimento se iguala, pois as comunidades que
o compõem adotam os mesmos pressupostos, praticam e pregam basicamente as
mesmas coisas, afirmando a crença na “segunda bênção”, abraçando doutrinas e
ensinos estranhos e buscando as revelações e os portentos que acreditam ser
concedidos por Deus aos seus supostos apóstolos e profetas.
Feita essa ressalva, importa agora voltar a atenção para os crentes em
Cristo que se encontram nas igrejas pentecostais. Há muitos cristãos de verdade
nessas comunidades. São irmãos em Cristo que percebem que algo está errado,
que sentem a falta de alimento sólido, que observam inconformados aquelas
manifestações forçadas de arrebatamento espiritual, que sofrem percebendo a
ação de falsos líderes e a santidade hipócrita de pessoas que louvam a Deus com
gritos, mas tem a vida cheia de impurezas (Is 29.13).
São também irmãos que, à vezes, se sentem culpados, pensando: “Será
que o errado sou eu? Será que não tenho fervor? Será que Deus está realmente
agindo aqui e só eu não estou vibrando? Por que não sinto vontade de gritar e
pular? Por que não consigo falar em línguas? E quanto a essas profecias, curas e
orações barulhentas? Será que só eu percebo que são forçadas?”.
Há muitos irmãos amados que enfrentaram esses dilemas no meio
pentecostal e que hoje estão num aprisco bíblico. Outros, porém, geralmente por
causa de vínculos sociais e afetivos, ainda vivem nesse meio, mesmo se sentindo
incomodados e pouco à vontade. Para esses crentes de verdade, há quatro
opções:

1. Permanência com influência. Nessa primeira opção, o crente


permanece na igreja em que está, tentando mudar as coisas. Trata-se de
uma decisão nobre, mas a experiência mostra que tem poucos
resultados. Ademais, essa opção tem se mostrado perigosa, pois,
geralmente, com o passar do tempo, os crentes que a adotam ficam
indiferentes diante do erro. Aos poucos, sem que percebam, tornam-se
menos rígidos em seus julgamentos. A constante e tácita convivência
com o desvio faz com que, para eles, o mal se torne normal (e até
engraçado). O resultado final é que, sem alimento espiritual e com as
faculdades amortecidas, seu testemunho entra em colapso, seu
casamento começa e enfrentar crises e seus filhos, quando crescem,
correm para o mundo, dizendo que tudo na igreja não passa de
representação barata.

2. Ecclesiola in ecclesia. Essa expressão, que significa “pequena igreja


dentro da igreja”, foi usada especialmente pelos puritanos da Inglaterra
para se referir a pequenos grupos de crentes verdadeiros que se
reuniam para cultuar a Deus de maneira correta, sem, contudo, se
desligar da igreja maior, cheia de erros, à qual pertenciam. Essa opção
pode ser útil, especialmente porque uma ecclesiola seria um bom lugar
para levar o visitante, sem passar por constrangimentos. Além disso,
talvez seja uma forma de obter alimento verdadeiro. Porém, essa
alternativa é perigosa porque pode gerar orgulho espiritual ou até
mesmo uma forma de elitização. Ademais, a liderança da igreja maior
se indisporá com grupos assim e os problemas serão inevitáveis.
3. Formação de uma nova igreja por um grupo. A vantagem dessa
opção é o surgimento quase imediato de uma igreja séria. Porém, os
perigos dessa medida a tornam desaconselhável. Isso porque a nova
igreja nascerá com a fama de dissidente, enfrentando a forte oposição
da igreja de origem. Esta, em regra, não poupará esforços para caluniá-
la, enfraquecê-la e até destruí-la. Ainda que possa sobreviver a tudo
isso, o sofrimento decorrente dessas investidas deixará marcas que
poderiam ser evitadas caso fosse adotado um modo de agir diferente.

4. Saída individual pacífica. De todas as alternativas, essa é a melhor.


Nessa opção, o crente simplesmente se desliga da comunidade
maculada em que se encontra e se filia a uma igreja séria, onde poderá
nutrir comunhão com seus irmãos e cultuar a Deus longe de
escândalos, encenações e desordens. Conforme dito, muitos crentes de
origem pentecostal têm tomado essa iniciativa e hoje fazem parte de
outras igrejas. O senso de terem achado finalmente o seu lar, a alegria
de aprender a Palavra de Deus a partir da hermenêutica sadia e o alívio
de terem se livrado de um ambiente eclesiástico nocivo, repleto de
excessos, fazem desses irmãos os mais gratos e vibrantes crentes que
há no meio cristão.

Seja qual for a opção adotada pelo crente que pertence a uma
comunidade pentecostal, o fato é que ele não deve, de modo algum, perpetuar
sua participação ali de maneira que comprometa seu crescimento espiritual e o
de sua família. A santificação é valor inegociável e nenhum tipo de paz pode ser
nutrido à parte dela (Hb 12.14).

Estratégias perigosas

O grande avanço da causa pentecostal se deu, muitas vezes, pelos meios


comuns de expansão, como a evangelização, o trabalho missionário e o plantio
de igrejas. Contudo, nem sempre o pentecostalismo realizou suas conquistas
usando métodos corretos e honestos. Na verdade, em vários casos, o crescimento
dessa vertente evangélica ocorreu em prejuízo de muitas igrejas sérias e às custas
do bem-estar espiritual de inúmeras ovelhas, isso sem falar das dores e angústias
causadas a um número infindável de pastores e obreiros.
Entre esses métodos espúrios de expansão, dois deles se destacam dada a
grande frequência com que foram e têm sido empregados ao longo das últimas
décadas. O primeiro deles consiste em colocar em marcha um processo
relativamente lento de pentecostalização de igrejas tradicionais, dando passos às
escondidas, sem que os pastores saibam. Esse processo comumente ocorre pela
superação das seguintes etapas:

Etapa 1 – Infiltração. Um determinado indivíduo de convicções


pentecostais começa a frequentar uma igreja tradicional, mesmo
havendo várias igrejas de sua linha doutrinária próximas de sua casa.
Esse indivíduo geralmente acredita ser um enviado de Deus com a
missão sagrada de iniciar um avivamento naquela igreja “fria”. Ele,
porém, a princípio, não revela o que pensa. Isso ocorrerá lentamente
nas fases que se seguirão.

Etapa 2 – Proselitismo. Aos poucos, enquanto frequenta assiduamente


a igreja, o suposto enviado de Deus, ainda sem revelar abertamente
suas ideias, começa a fazer amizades com os membros, detectando os
mais vulneráveis e conquistando sua confiança. Junto a essas pessoas,
ele começa a disseminar ensinos pentecostais com relativa discrição,
chegando a fazer alguns discípulos. Nessa fase, já é possível notar
publicamente alguns sinais de suas tendências doutrinárias, pois,
estando mais à vontade, ele deixa escapar traços do pentecostalismo
em suas orações, durante os períodos de cânticos ou em conversas
triviais.

Etapa 3 – Reuniões no lar. Tendo conquistado a amizade mais estreita


de vários membros da igreja, o agente secreto pentecostal os convida
para uma “reunião de oração” em sua casa, sem o conhecimento do
pastor e de outros líderes que possam representar ameaça aos seus
planos. Nessa reunião, o pentecostal assume a direção de tudo, afinal
de contas foi ele quem a convocou e a reunião é em sua casa. Ali ele
propõe que os participantes orem para que Deus desperte o pastor e
faça uma obra de vivificação na igreja que está morta. Essa proposta
de oração tem dois objetivos: primeiro, acusar o pastor e a igreja de
estarem mal espiritualmente; segundo, aliviar a consciência dos
participantes, dando a entender falsamente que a reunião ali não tem
como objetivo fazer oposição, mas sim dar suporte em oração. Essas
reuniões começam a se tornar frequentes, mais membros da igreja são
convidados a participar (exceto o pastor) e, nesses “cultos”, o
pentecostal passa a expor abertamente todas as suas doutrinas e
práticas, induzindo os crentes despreparados a aceitá-las.

Etapa 4 – Divisão. O pastor (que já havia notado que algo estranho


estava acontecendo) toma finalmente ciência das reuniões “avivadas” e
tenta interferir. O grupo que, por meses a fio, ouviu sugestões de que o
pastor não tinha uma “experiência real” com o Espírito Santo resiste,
dizendo que ele está se opondo à obra poderosa de Deus. A partir desse
ponto, a igreja se divide, com pessoas dando apoio ao pastor e outras
se unindo ao grupo dissidente. No fim, um dos partidos é obrigado a se
retirar, num rompimento que deixa marcas profundas na vida de todos
e enfraquece a igreja por longos anos.

Esse método de avanço pentecostal foi muito utilizado nas décadas de


1970 e 1980, sendo enorme o número de igrejas tradicionais que foram vítimas
do que é descrito aqui. Não se deve, porém, pensar que se trata de uma estratégia
obsoleta. Na verdade, ainda hoje essa forma terrível de agir é adotada e as igrejas
bíblicas devem estar alertas a fim de que, caso esse perigo se insinue em seu
meio, o mal seja cortado pela raiz.
Especialmente os pastores de hoje — homens que aprenderam com a
história recente quão grandes são os danos causados pelo expediente descrito
acima — têm de sempre alertar suas igrejas e, estando vigilantes, devem logo no
início expulsar corajosamente do seu meio os indivíduos que chegam e dão
sinais de querer conduzir os irmãos por outros rumos doutrinários.
A segunda estratégia espúria muito usada por pentecostais no afã de
expandir sua doutrina e se apossar de igrejas inteiras é ainda mais danosa, pois,
uma vez bem sucedida em sua primeira etapa, fatalmente sairá vitoriosa no alvo
de conquistar toda a comunidade. O processo se desdobra da seguinte maneira:

Etapa 1 – Ascensão. Um pastor com convicções pentecostais,


escondendo sua linha doutrinária, é convidado para assumir o
ministério numa igreja tradicional. Ele aceita o convite nutrindo
reservas e alvos secretos em sua mente.

Etapa 2 – Mapeamento. Analisando a membrezia, o pastor detecta os


que têm inclinações pentecostais, os que são doutrinariamente neutros
e os que são mais “duros” e que jamais aceitarão suas ideias.

Etapa 3 – Avanço cuidadoso. À medida que vai ganhando a amizade, a


simpatia e a confiança das pessoas, o pastor começa a emitir frases em
suas orações, sermões e conversas com conteúdo marcantemente
pentecostal. Nessa etapa, ele também tenta fortalecer sua posição e
consolidar sua autoridade, conquistando o apoio de alguns líderes
menos rigorosos em termos teológicos. Simultaneamente, ele ainda se
aproxima dos jovens e adolescentes, ganhando sua simpatia e
aprovação, na expectativa de que, por meio deles, obtenha o apoio dos
pais e de outros familiares. Quanto mais vê sua posição fortalecida,
mais o pastor avança na exposição de suas doutrinas.

Etapa 4 – Revolução. Percebendo que tem a igreja quase inteira ao seu


lado, que os doutrinariamente neutros não vão se opor a ele (inclusive
para não “perder os jovens”) e que os “duros” não têm mais força para
fazer frente a ele, o pastor declara que chegou a hora de um
“despertamento espiritual” naquela igreja. Então, as mudanças
ocorrem num ritmo bastante acelerado. Preletores pentecostais são
convidados para realizar uma “conferência de poder”, pessoas são
ungidas com óleo, manifestações bizarras começam a ocorrer e são até
mesmo estimuladas nos cultos, experiências sobrenaturais são
compartilhadas nos sermões, enfim, uma verdadeira revolução
acontece na igreja.

Etapa 5 – Domínio total. O pequeno remanescente que discorda de


tudo que está ocorrendo já vinha sentindo certa hostilidade por parte
do pastor. Agora, porém, os ataques a eles são menos discretos, sendo
feitos até mesmo do púlpito e com o apoio da maioria. Percebendo
esse estado de coisas, esse remanescente fiel não vê outra saída senão
procurar outra igreja, deixando, inclusive, nas mãos dos pentecostais
todo o patrimônio eclesiástico construído por crentes zelosos do
passado.

Essa segunda estratégia é bastante frequente ainda na atualidade. Por


isso, antes de convidar um pastor para assumir o ministério local, a igreja deve
lhe fazer perguntas específicas relativas ao seu posicionamento em face das
doutrinas pentecostais. Questões como “o que o senhor pensa sobre o dom de
línguas?”, “qual a sua opinião acerca do batismo com o Espírito Santo?”, “o
senhor acredita que há apóstolos e profetas hoje?”, ou ainda, “o que o senhor
diria a alguém que alega ter o dom de curas e milagres?” podem ajudar bastante
os membros a não cair em armadilhas. O preço pago pelo descuido é tão alto que
vale a pena a igreja ser rigorosa ao máximo na hora de avaliar um candidato ao
seu pastorado.

A prática de falar em línguas

Seguindo na esteira do pentecostalismo, é comum nos dias atuais alguns


cristãos afirmar que têm o dom de línguas. A boa hermenêutica, porém, mostra
ser impossível que esse dom exista hoje. De fato, o que se vê atualmente são
manifestações estranhas sendo chamadas de dom de línguas.
Para verificar o quanto isso é verdade, basta assistir a um culto em que as
pessoas aleguem falar em línguas. Então será possível perceber que o que ocorre
ali é a simples emissão de sons ininteligíveis ou a pronúncia repetida de duas ou
três sílabas sem sentido. E, o que é pior: se alguém argumentar que aqueles
sonidos repetitivos não encontram paralelo em nenhum idioma do mundo,
responderão que estão a falar línguas “estranhas” ou línguas de anjos!
Quão longe está essa prática do verdadeiro dom de línguas existente nos
dias da igreja primitiva e descrito nas páginas do Novo Testamento! Ali é
demonstrado que o referido dom era uma capacidade sobrenatural dada por Deus
aos cristãos daqueles tempos. Essa capacidade consistia em falar sobre as
grandezas do Senhor em idiomas que nunca tinham aprendido (At 2.5-11), com
o propósito de indicar o juízo vindouro para os judeus incrédulos (1Co 14.21-22)
e, por meio da interpretação, edificar os ouvintes salvos (1Co 14.6-9, 27-28).
Ao contrário do que alguns pastores ensinam hoje em dia, o Novo
Testamento não diz em lugar algum que todos os crentes tinham de falar em
línguas (1Co 12.8-11, 28-30). Também não há na Bíblia nenhuma relação entre a
prática desse dom e a maturidade espiritual. Aliás, na igreja de Corinto havia
todos os dons (1Co 1.7) e, no entanto, Paulo diz que seus membros eram
crianças em Cristo (1Co 3.1-3). Na verdade, para Paulo, os cristãos deviam
preocupar-se mais com o amor do que com o dom de línguas (1Co 13.1-3).
É importante também salientar que as línguas de que fala o Novo
Testamento eram de natureza terrena (At 2.4,6,8,11; 1Co 14.21-22). De fato, no
Novo Testamento, duas palavras são empregadas para se referir às línguas:
glossa e dialektos. Essas duas palavras denotam sempre línguas terrenas. O fato
de a Bíblia em português na versão Almeida Revista e Corrigida (ARC) da
Imprensa Bíblica Brasileira (IBB) apresentar a expressão “língua estranha” (1Co
14.2,4,5, etc.) pode dar a impressão de que as línguas eram de natureza angélica
ou coisa parecida. Mas é importante notar que, no texto original do Novo
Testamento, a palavra “estranha” não aparece.
Nos tempos da igreja primitiva, quando o dom de que se trata aqui ainda
existia, algumas normas estabelecidas pelo apóstolo Paulo regiam o seu uso. Em
primeiro lugar, somente duas pessoas ou, no máximo três, podiam falar em
línguas no culto público e, ainda assim, esses dois ou três deviam falar um de
cada vez (1Co 14.27). Não era permitido o uso do dom sem que houvesse
intérprete (1Co 14.27-28), pois isso tornaria seu exercício inútil para a igreja e
sem proveito para o visitante (1Co 14.9, 16-19, 23-25). Finalmente, às mulheres
era proibido falar em línguas durante o culto público (1Co 14.34). Se exercido
dentro dessas regras, o dom de línguas não podia ser proibido (1Co 14.39-40), e
a aceitação das diretrizes mencionadas era evidência de que a pessoa era
espiritual (1Co 14.37-38).
Compare-se tudo isso com o que se faz hoje em dia e facilmente se
conclui que não há nada de bíblico no suposto dom de línguas praticado por
alguns crentes atualmente. Acresça-se a isso o fato de o dom de línguas,
conforme será demonstrado, ter cessado, deixando evidente que o que se vê
atualmente é simples resultado de autossugestão ou algo que vários crentes,
geralmente por influência do grupo a que pertencem, acabam fazendo com uma
pequena parcela de esforço próprio, sem contar com nenhuma atuação
sobrenatural de Deus.
Mas por que, afinal, pode-se dizer com tanta convicção que o dom de
línguas não existe mais? Basta um ligeiro passeio pelas Sagradas Letras e pela
história para que essa pergunta seja respondida satisfatoriamente.
No Novo Testamento, a permanência de um dom estava ligada ao seu
propósito. Uma vez atingido esse propósito, já não havia mais razão para a
existência do dom. De fato, em 1Coríntios 13.8, Paulo diz que o dom de línguas
era temporário — “línguas cessarão”.
No que diz respeito ao propósito do dom em análise, somente uma
passagem do Novo Testamento o aponta com clareza. Trata-se de 1Coríntios
14.22. Nesse texto, Paulo afirma que o propósito das línguas era ser um sinal.
Isso significa que o objetivo principal das línguas não era a edificação pessoal de
quem as falava. Ainda que o crente que falava em línguas fosse edificado, Deus
queria que esse fosse especialmente um dom de sinal, não somente de edificação
particular. Isso mostra o erro de alguns que dizem que só falam em línguas
sozinhos, para a sua própria edificação. Essa prática é contrária ao propósito do
dom. Ele devia ser um sinal e, por isso, tinha de ser público. Se o dom de línguas
fosse praticado a sós, não seria propriamente um sinal como Deus queria que
fosse.
Outro detalhe muito importante à luz desse texto é o grupo de pessoas a
quem o dom de línguas se destinava. Paulo diz que línguas constituem um sinal
para os incrédulos. Duas perguntas surgem naturalmente diante dessa afirmação:
“Sinal de quê?” e “Para que tipo de incrédulos?”.
As respostas a essas perguntas podem ser encontradas no mesmo texto de
1Coríntios. Se o próprio v. 22 for observado atentamente, será possível perceber
que suas primeiras palavras indicam o desfecho de um pensamento. Paulo
escreve “de sorte que” para concluir um assunto. Essa conclusão se baseia no
que está escrito no v. 21, em que Paulo cita Isaías 28.11. Usando esse texto do
Antigo Testamento, ele diz qual é o propósito das línguas na igreja. Resta agora
estabelecer a relação entre Isaías e esse propósito.
O contexto de Isaías 28 mostra que os líderes de Israel rejeitavam as
mensagens claras do profeta de Deus. Apesar de os discursos de Isaías serem
claros e simples, havia grande resistência a eles por parte dos líderes religiosos
do seu tempo. Então, como uma forma de castigo por essa resistência, Deus diz
que não lhes falaria mais de modo simples e claro. Em vez disso, levantaria
estrangeiros que falariam uma língua que eles não entenderiam. O juízo de Deus
viria pela mão daqueles estrangeiros e, ao ouvirem sua língua, desconhecida para
eles, os israelitas deveriam reconhecê-la como um sinal do juízo de Deus contra
os que rejeitaram sua mensagem dada primeiro de forma clara.
Algo semelhante também pode ser observado em Jeremias 5.10-15. Nos
tempos de Jeremias, Deus enviara profetas a Israel dizendo que o julgaria por
causa de seus pecados. Mais uma vez, porém, os israelitas rejeitaram a
mensagem de Deus e seus profetas. Israel duvidava das ameaças de juízo feitas
por Deus mediante seus mensageiros e dizia que os profetas não passavam de
vento (v. 12-13). Diante disso, nos v. 14-15, Deus diz o que faria. Por terem
rejeitado sua mensagem e seus mensageiros, Deus trataria os israelitas de outra
forma, levantando contra eles uma nação que falaria uma língua que eles não
conheciam. Isso seria um sinal de que os israelitas estavam sob o juízo de Deus
por terem rejeitado sua mensagem e seus mensageiros.
Esse modo particular de Deus agir com o povo de Israel quando ele se
rebelasse já havia sido predito em Deuteronômio 28. Deus diz nesse capítulo
que, se a sua mensagem fosse rejeitada, ele amaldiçoaria o povo (v.15). Uma
dessas maldições está no v. 49, que mostra que, se Israel não ouvisse a voz de
Deus, ele falaria de outro modo com a nação. Nos versículos 45 e 46, é
interessante notar que as maldições relacionadas em todo o capítulo seriam um
sinal para sempre.
Portanto, sempre que os mensageiros de Deus fossem rejeitados pelos
israelitas, em qualquer geração, Deus forçaria Israel a ouvir uma língua que não
entendia como sinal de que estava sob seu juízo. É importante observar que
somente para a nação de Israel Deus falou dessa maneira, e nunca para os
gentios.
Esse princípio está, conforme visto, no Antigo Testamento. Paulo, porém,
lança mão dele no Novo Testamento para mostrar qual era o real propósito das
línguas na igreja, a saber: ser um sinal de juízo para os incrédulos de Israel.
A relação entre esse princípio do Antigo Testamento e o dom de línguas
na igreja pode ser melhor compreendida se for considerado quem foi o profeta
supremo enviado por Deus a Israel. Na Epístola aos Hebreus (evidentemente
uma carta escrita aos judeus), o autor diz em 1.1-2 que, “nos últimos dias”, o
mensageiro de Deus fora o seu próprio Filho. Contudo, como se sabe, aquela
geração rejeitou o Filho de Deus.
Durante seu ministério terreno, Jesus alertara os judeus do seu tempo
acerca do perigo que corriam de cair na maldição de Deus. Em Mateus 23, ele
diz que o Senhor traria uma condenação sobre aquela geração que serviria como
castigo pelo sangue de todo justo assassinado nos tempos antigos, desde Abel até
Zacarias (v 34-39). Jesus dizia assim que Deus traria sobre aquela geração uma
condenação inédita por ela ter rejeitado o Filho dele. Mais uma vez, como nos
tempos de Isaías e Jeremias, as maldições de Deuteronômio 28 estavam prestes a
cair sobre os israelitas rebeldes.
É de conhecimento geral que, no primeiro século da era cristã, Israel
estava sob o domínio de Roma. Os judeus, estando muito tempo em contato com
os romanos, eram conhecedores de sua língua. Além disso, por esse tempo, o
Império Romano era tão poderoso que não havia outro império que pudesse vir
contra os judeus falando uma língua desconhecida. Foi então que Deus usou sua
igreja para dar o sinal de que aquela geração estava sob juízo por ter rejeitado
seu mensageiro supremo.
Algo importante para lembrar é que a primeira vez que o dom de línguas
se manifestou foi em Atos 2, ou seja, depois da total rejeição do Messias pelo
povo judeu. Nem mesmo Jesus jamais falara em línguas. Em Atos 2, depois de a
igreja ter falado em línguas, Pedro dirigiu-se aos “varões judeus” (v. 14) e lhes
chamou a atenção para a coisa horrível que haviam feito com Jesus (v. 22-23).
No versículo 40, Pedro indica que aquela geração estava prestes a sofrer uma
condenação horrível — “Salvai-vos desta geração perversa”. Ele disse isso de
modo significativo no primeiro dia do dom de línguas e exortou seus ouvintes a
mudar o modo de pensar sobre Jesus e assim escapar do juízo que viria sobre
aquela geração.
Quando, afinal, o juízo representado pelas línguas na igreja veio sobre
aquela geração de judeus? Jesus, certa vez, refletiu sobre a cidade de Jerusalém e
chorou por causa do que ia acontecer. Disse que os inimigos a destruiriam,
mostrando assim o tipo de juízo que estava prestes a vir. Esse juízo veio de 66 a
73 d.C. Aquela geração de judeus rebelou-se contra o Império, e Roma inundou
a Palestina com soldados que, liderados pelo general Tito, mataram mais de um
milhão de judeus. A cidade de Jerusalém e o templo foram destruídos e milhares
de israelitas foram vendidos como escravos.
Algo curioso, entretanto, aconteceu. Registros históricos antigos mostram
que, antes da chegada dos romanos, todos os judeus crentes abandonaram
Jerusalém e foram para o Leste do rio Jordão, onde passaram a morar na cidade
de Pela.[75] Quando os soldados romanos chegaram a Jerusalém, nenhum cristão
judeu pereceu no massacre!
Tendo servido assim como sinal para os judeus incrédulos da destruição
que havia de vir por mãos de estrangeiros, o dom de línguas cumpriu seu
propósito e, uma vez concluído o juízo em c. 70 d.C., o exercício desse dom
cessou. Seu propósito foi atingido e, por isso, não havia mais razão para que
permanecesse. É por isso que se pode dizer com segurança que o dom de línguas
de que falam as Escrituras não existe mais nos dias de hoje.
Àqueles que, com base em 1Coríntios 14.39, dizem que não se deve
proibir o falar em línguas, deve-se responder que a igreja de Deus jamais faz
essa proibição. E isso por um motivo muito simples: não é possível proibir o uso
de algo que não existe mais. Proibir hoje o falar em línguas seria o mesmo que
proibir a caça aos dinossauros. Ora, é sabido que os dinossauros foram extintos
há milhares de anos e não há como nem porque proibir que sejam caçados. O
mesmo ocorre com as línguas. Não é possível proibir o uso delas, uma vez que
deixaram de existir há séculos. O que na verdade é e deve ser proibido na igreja
são manifestações desordenadas que às vezes são chamadas de dom de línguas.
Outras considerações importantes ligadas ao debate sobre o dom de
línguas são as seguintes:

1. O fato de esse dom não existir mais não significa que Deus não
pode realizar milagres na área da comunicação. Deus tem poder para
fazer com que, em alguma situação especial, duas pessoas de idiomas
diferentes se comuniquem de forma surpreendente. Se isso, porém,
acontecer, não será correto dizer que houve uma manifestação do dom
de línguas, pois, conforme visto, não era assim o funcionamento desse
dom (quem o tinha o usava com frequência na igreja), nem era seu
objetivo quebrar as barreiras linguísticas entre as pessoas (tanto que
exigia a atuação de intérpretes). Por isso, diante da hipótese levantada,
o certo será dizer que ocorreu um milagre no campo da conversação.

2. A afirmação de que o dom de línguas está em vigor não conseguiu


ainda produzir nenhuma prova séria e observável de sua veracidade.
Com efeito, se esse dom ainda existe, em que local é possível
encontrá-lo? Até agora, tudo que os defensores da atualidade das
línguas têm apresentado são sonidos ininteligíveis, algo muito
diferente do que ocorreu em Atos 2, quando idiomas reais foram
falados. Isso é de surpreender, pois a afirmação de que o dom de
línguas bíblico existe ainda hoje deveria ser provada facilmente pela
simples apresentação de centenas ou milhares de crentes que falam
outros idiomas sem jamais tê-los aprendido. Essa prova, contudo,
nunca foi produzida.

3. As línguas de anjos mencionadas em 1Coríntios 13.1 não servem de


base para afirmar que o dom de línguas envolve linguagem estranha e
ininteligível. Na verdade, a expressão usada por Paulo representa
apenas um recurso retórico muito comum que tem como objetivo levar
uma hipótese ao nível do absurdo (uma forma de hipérbole) a fim de
reforçar um determinado ensino ou argumento. Ademais, anjo algum
jamais aparece na Bíblia falando uma língua ininteligível. Na verdade,
mesmo a noção de que os anjos têm seus próprios idiomas distintos é
inaceitável, pois significaria que sobre eles sobreveio um juízo
semelhante ao que houve em Babel (Gn 11.1-9). Finalmente,
considere-se que, se os anjos falassem uma língua específica deles,
dificilmente seria do tipo que é ouvido nas comunidades pentecostais,
posto que os sons emitidos nessas igrejas, conforme facilmente se
percebe, correspondem a quinze ou, no máximo, vinte palavras
pronunciadas repetidamente sem estrutura frasal e sem significado.

4. Segundo pareceres médicos e/ou psiquiátricos, falar em línguas é,


algumas vezes, um mero distúrbio de linguagem observado em alguns
doentes mentais que acreditam ter inventado uma língua nova[76] ou
ainda a linguagem pessoal de psicopatas que adotam esse
comportamento como forma de diversão.[77] A diferença é que esse tipo
de glossolalia muitas vezes cria neologismos e pode, assim, ser
traduzida, algo que não ocorre na glossolalia pentecostal.[78]
Informações desse tipo deveriam levar os pentecostais a serem mais
criteriosos em sua avaliação da glossolalia em vez de simplesmente
taxar de carnal e incrédulo qualquer pessoa que questione a validade
das línguas.

5. Estudos linguísticos, ao analisar a prática da glossolalia no meio


pentecostal, têm concluído que as línguas faladas nesse contexto,
diferente do que ocorria nas igrejas do NT, não são línguas em
hipótese alguma. De fato, os linguistas não puderam detectar na
experiência pentecostal um sistema de signos, ou seja, um sistema em
que conceitos ou ideias sejam transmitidos por meio de sons (as
palavras). O que há nesses casos é o som destituído de conceito, a
emissão de ruídos articulados numa sequência de fonemas sem
significado — uma fala sem língua ou uma língua imaginária![79] Por
causa disso, diferente do que ocorreu em Atos 2, por exemplo, as
"línguas" de hoje nunca comunicam nada. Tão somente um indivíduo
simula falar um idioma e os demais apenas o observam, sem entender
coisa alguma e também simulando provar algum enlevo espiritual
naquele instante.

6. O ensino comum entre pessoas do movimento pentecostal de que as


línguas mencionadas em Atos 2 eram humanas, mas as mencionadas
em 1Coríntios eram de outra natureza esbarra no fato de que em
1Coríntios 14.21-22, Paulo faz referência aos idiomas das nações
gentílicas para explicar o propósito do dom de línguas, o que revela
que ele tinha em mente um fenômeno da mesma natureza daquele
narrado por Lucas em Atos dos Apóstolos. Outrossim, o argumento
que afirma que as línguas de Atos eram diferentes das de 1Coríntios
porque quem usava estas últimas falava “mistérios” (1Co 14.2) não é
válido, pois a palavra “mistério” empregada no texto significa apenas
que as línguas então faladas permaneciam enigmáticas, não sendo
entendidas pelas pessoas em geral. O próprio v. 2 indica esse sentido
ao enunciar a frase “porque ninguém o entende”.

7. Análises modernas da glossolalia religiosa feitas por linguistas com


o auxílio de tecnologia computadorizada descobriram que, na cadeia
de sons emitidos pelos que exercitam o suposto dom, é impossível
fazer qualquer segmentação que aponte para a existência de palavras
específicas. Também não há qualquer indício de sintaxe. Ademais, a
transcrição dessas falas revelou que nelas não existe nenhum fonema
estranho à língua materna do falante. Tratam-se, assim, apenas de
produções vocais fundamentadas em próprio sistema fônico de quem
fala, com a utilização estrita de alguns sons que se repetem
excessivamente durante a experiência de "línguas", numa sequência
variável e com características de declamações ou recitações. Nesse
último aspecto, nunca há, por exemplo, entonações interrogativas,
interrupções para se pensar no que vai dizer ou retomadas para
correção — fatores presentes na fala de qualquer idioma verdadeiro.[80]
Aliás, é impossível que a experiência pentecostal dominante abranja
línguas verdadeiras, pois há muito mais variações glossolálicas do que
línguas reais. De fato, existem mais de nove milhões de glossolalistas
(dado do início da década de 80), cada um praticando uma ou mais
formas diferentes de "línguas estranhas", enquanto só existem três mil
línguas verdadeiras no mundo.[81]

8. Entre alguns pentecostais existe o ensino de que Deus concede uma


língua estranha específica para cada diferente indivíduo, a fim de que a
pessoa ore na “nova língua” que Deus lhe deu, ou seja, numa língua
concedida somente a ele. Esse ensino não encontra respaldo em
nenhuma linha da Sagrada Escritura. É simples invenção.

9. A ideia tão comum entre os pentecostais de que o falar em línguas é


uma prática que foi resgatada por eles no início do século XX,
inaugurando uma nova fase de vigor espiritual para a igreja,
desconsidera a realidade histórica de que a glossolalia sempre esteve
presente em formas deturpadas de cristianismo desde os seus
primórdios. Ao tempo da igreja antiga, o herege Montano (157-212) e
seus seguidores alegavam falar em línguas. O corrompido catolicismo
medieval também fornece diversos exemplos de personagens tidos
como "santos" que afirmavam praticar a glossolalia. Alguns deles são:
Hildegard von Bigen (1098 – 1179), São Domingos (1170 – 1221),
Santo Antônio de Pádua (1195 – 1231), São Vicente Ferrer (1350 –
1419), São Francisco Xavier (1506 – 1552), São Louis Bertrand (1526
– 1581), São João D’Ávila (1500 – 1569), Santa Teresa D’Ávila (1515
– 1582), São João da Cruz (1542 – 1591) e Santo Inácio Loyola (1491
– 1556). O fato desses nomes estarem ligados ao romanismo tão tosco
como foi o vivenciado na Idade Média, deveria ser levado em conta
quando se diz que o falar em línguas marca uma época de maior
vitalidade espiritual na igreja.[82]

10. Na visão pentecostal, na glossolalia o que importa não é o


significado das palavras, mas sim o significado da experiência. Como
ocorre na magia, em que o mágico não se preocupa com o significado
de "abracadabra", mas apenas com o que acredita que o
pronunciamento dessa palavra produz, também o pentecostal se
concentra na experiência, atribuindo validade a ela por se sentir bem
ao exercê-la. Nesse aspecto também se afasta das Escrituras, pois estas
ensinam que o significado do que era dito por quem falava em línguas
era essencial, tanto que esse dom só podia ser exercido da igreja
quando houvesse intérpretes.

11. Um olhar atento para o contexto pentecostal mostrará que muitos


passaram a exercitar o dom de línguas depois de o terem aprendido
formalmente. Em algumas igrejas até mesmo cursos de glossolalia são
oferecidos, mostrando que não há nada de sobrenatural nessa prática.
Além disso, é comum ex-pentecostais afirmarem que falavam em
línguas por indução, autossugestão ou pressão do grupo. Sabe-se,
porém, que a prática desse tipo de exercício é perigosa, pois produz
certo alívio mental (pois, entre outras coisas, o indivíduo se vê livre
das leis que regem a linguagem) e físico (pelo uso descontraído dos
órgãos que produzem a fala). Por causa disso, essa prática vicia,
fazendo a pessoa buscar mais e mais satisfação na experiência extática,
o que pode gerar comportamentos bizarros, práticas anormais,
preguiça intelectual, enfraquecimento do raciocínio lógico,
autoengano, frustração e culpa.[83]

12. Dentro de cada comunidade pentecostal específica, as línguas


faladas pelos membros são sempre parecidas, com uma recorrência de
sons comum a todos. Há sempre, na verdade, uma grande repetição de
combinações vocálicas e consonantais, indicando uma padronização.
Isso mostra que as pessoas que falam "línguas estranhas" seguem
inconscientemente um padrão geral fornecido pela sua comunidade e
aprendido por meio da convivência. Mesmo repetindo basicamente os
mesmos sons vez após vez — sons semelhantes aos produzidos por
quase todos os demais membros da mesma igreja — os pentecostais
acreditam que, a cada nova experiência com línguas, dizem coisas
novas e diferentes das faladas pelos demais.[84]

13. O fato de que as línguas faladas pelos pentecostais na atualidade


são falsas, além de receber o apoio da exegese bíblica, passou também
a contar com provas científicas. Isso porque em 2006, uma equipe de
cientistas da Universidade da Pensilvânia realizou experimentos num
grupo de pentecostais enquanto eles praticavam a glossolalia. Usando
técnicas específicas de medicina nuclear, os cientistas avaliaram o
fluxo sanguíneo em determinadas porções do cérebro dessas pessoas e
descobriram que as regiões associadas à linguagem não, eram ativadas
durante o exercício do "dom", mostrando que os pentecostais não
estavam falando língua alguma. Por outro lado, a análise revelou que
porções do cérebro fortemente associadas ao aprendizado inconsciente
e à memorização implícita (regiões ricas em "neurônios espelho")
ficavam mais ativas durante o "falar em línguas", deixando claro que
os pentecostais estavam apenas reproduzindo ou imitando sons que
ouviram em suas igrejas ou em outras reuniões. A equipe de cientistas
verificou ainda que durante a experiência de "línguas estranhas", a
parte do cérebro que coordena e integra atividades conscientes e
inconscientes (o tálamo) entra em atividade mais intensa. Em meio a
isso tudo, a pessoa "sente" que o "dom" está "fluindo naturalmente",
tem uma sensação agradável e experimenta certo alívio do estresse.
Todas essas conclusões tiraram o debate sobre línguas do campo da
opinião pessoal, revelando de forma objetiva que a glossolalia
moderna não tem nada de sobrenatural, sendo algo muito diferente do
que os cristãos experimentaram em Atos 2 e nas igrejas do século 1.[85]

14. As manifestações de "línguas estranhas" ou de "línguas de anjos"


apresentam semelhanças muito grandes com as línguas naturais. Essas
semelhanças envolvem: nítidas segmentações em grupos respiratórios
(ritmo, pausas e tonicidade); organização de sílabas combinadas de
forma rígida; recorrência de elementos que compõem palavras
(morfemas); e padrões definidos de marcação ou de acento tônico. Isso
mostra que quem fala essas "línguas", na verdade as cria usando os
mesmos elementos das línguas naturais, adotando-os como modelo e
os organizando de forma semelhante, sem expor qualquer indício de
sobrenaturalidade. Outra evidência da naturalidade dessas
manifestações é a seleção e exacerbação que, inconscientemente, o
falante faz de recursos fônicos adequados somente à função expressiva
da fala (não há preocupação com a função comunicativa), mostrando a
inclinação de fazer com que a língua se encaixe melhor no ambiente
alvoroçado dos cultos pentecostais.[86]

15. A análise linguística da glossolalia pentecostal mostra a construção


de uma língua a partir de um conjunto limitado de sons pertencentes ao
universo idiomático do falante.[87] No contexto brasileiro, por exemplo,
esse conjunto fica estrito aos sons utilizados para falar a língua
portuguesa. O falante, porém, não usa todos os sons do português
durante a prática glossolálica, mas um número muito menor. De fato, a
média de segmentos utilizados é de nove sons consonantais e apenas
seis variações vogais. No caso de pessoas de baixa instrução, cujo
vocabulário é pequeno, as variações glossolálicas são ainda menores.
A predominância e repetição de alguns dos sons que compõem os
pequenos conjuntos sonoros usados pelos que falam em "línguas"
depende claramente da preferência do falante. Sequências ou sílabas
que tenham conotação grosseira ou chula são claramente evitadas.

16. A alegação de que a experiência com línguas eleva a pessoa a uma


vida espiritual de maior qualidade não tem sido confirmada em
hipótese alguma. Escândalos sexuais, fraudes financeiras, disputas
políticas, intrigas pessoais, crises familiares, hipocrisias, mentiras e
chocantes desvios de caráter são comuns nas igrejas pentecostais,
precisamente entre pessoas que afirmam falar em línguas, sejam
líderes ou membros comuns. Por outro lado, é possível verificar uma
vida cristã equilibrada em inúmeros crentes que, ao longo de décadas
de serviço e de bom testemunho, nunca tiveram qualquer experiência
com línguas. De fato, se o dom de línguas, segundo dizem, promove o
crente a um nível mais alto de maturidade cristã, então as igrejas
pentecostais fornecem a maior prova de que as línguas faladas por seus
membros não são verdadeiras.

17. O registro histórico e o relato de testemunhas recentes apontam


para a possibilidade de muitas experiências com línguas serem
procedentes de atuação demoníaca. Estudiosos afirmam que, nas
antigas religiões de mistério, o falar em línguas era procedimento
comum. Também as seitas modernas adotam essa prática.[88] Ademais,
há testemunhos recentes de pessoas que, em visita a um determinado
país, ouviram blasfêmias serem proferidas em sua língua materna
durante manifestações de glossolalia ocorridas em igreja pentecostais.
Com efeito, o texto de 1Coríntios 12.3 dá indícios de que algumas
manifestações extáticas comuns nos dias de Paulo levavam as pessoas
a pronunciar blasfêmias.

18. A glossolalia não está associada apenas ao cristianismo em sua


vertente pentecostal. Registros históricos informam que, no Egito, ao
tempo de Ramsés XI (1100 – 1070 a.c), um jovem adorador de Amon,
após ter oferecido sacrifícios ao seu deus, foi por ele possuído e
começou a falar uma língua estranha. Séculos depois, Platão afirmou
na sua obra, “Fédon”, que nos seus dias várias pessoas praticavam a
fala extática sob possessão ou inspiração divina. No século 1 a.C.,
Virgílio disse na “Eneida” que as pitonisas sibilinas da Ilha de Delfos
falavam línguas estranhas como resultado da sua união com o deus
Apolo. Em transe, elas diziam coisas sem nexo, palavras confusas e
enigmáticas, sem nenhum sentido. Fenômenos semelhantes ocorriam
no culto egípcio a Osíris, no mitraísmo dos persas e nos Mistérios
Eleusianos. Em tempos mais recentes, a glossolalia pode ser
encontrada no catolicismo da Renovação Carismática, no espiritismo,
onde o fenômeno é chamado de xenoglossia ou mediunidade poliglota
(havendo também alegações de se falar línguas extraterrestres), nos
rituais indígenas, no xangô, no candomblé e no xamanismo, onde as
línguas faladas são reproduções de sons emitidos por animais. Esses
dados deveriam promover uma cautela maior por parte dos
pentecostais e não uma postura tão aberta às línguas como se verifica
nesse meio. Também deveriam servir como incentivo para a revisão de
seu conceito de línguas como evidência de alta condição espiritual.[89]

19. A acusação de que as igrejas tradicionais são opositoras do dom de


línguas precisa ser revista, pois quem de fato deprecia esse dom são
exatamente os pentecostais. Isso porque são eles que reduzem o dom
de línguas ao mero pronunciar voluntário e grosseiro de sílabas
desconexas, enquanto as igrejas tradicionais honram e enaltecem esse
dom, afirmando que se constituiu num dos milagres mais
extraordinários testemunhado nos dias dos apóstolos: a magnífica
capacidade de alguém falar perfeitamente outro idioma sem jamais tê-
lo aprendido!
20. Os pentecostais afirmam que os tradicionais blasfemam contra o
Espirito Santo por não aceitar as manifestações que ocorrem em suas
igrejas, especialmente o que chamam de dom de línguas. No entanto, o
que realmente ofende o Espírito Santo é atribuir a ele a emissão de
sonidos toscos e banais. Da mesma forma, o Santo Espírito é ofendido
quando dizem que ele é a fonte de profecias inventadas, revelações
falsas, curas imaginárias, ensinos heréticos, comportamentos bizarros e
desordens chocantes.

As considerações acima enumeradas devem ser levadas muito a sério


pelos crentes, pois, na igreja de Deus, tudo deve corresponder à verdade e
nenhum espaço deve ser concedido dentro dela para encenações grotescas que
desfiguram a santa fé e fazem do culto cristão um show de desatinos.

O dom de profecia

Geralmente, os crentes que aceitam a continuidade do dom de línguas


também acreditam na atual existência de profetas.
É verdade que o dom de profecia esteve presente na igreja durante o
século 1 e que seu papel foi vital para o funcionamento, o ensino e o
encorajamento das comunidades cristãs da época. Contudo, o fato é que os
profetas deixaram de existir antes que raiasse o sol do século 2. Na verdade,
dentro do contexto eclesiástico dos tempos apostólicos, o fenômeno da profecia
tinha propósitos e conteúdos que apontam para a sua total extinção nos dias de
hoje.
Considerem-se, em primeiro lugar, os propósitos do dom de profecia.
Quais eram os objetivos das profecias pronunciadas naqueles tempos? A leitura
cuidadosa do Novo Testamento deixa isso muito claro. Veja-se, por exemplo, o
que diz Efésios 3.4-5: “Por isso, quando ledes, podeis perceber a minha
compreensão do mistério de Cristo, o qual noutros séculos não foi manifestado
aos filhos dos homens, como agora tem sido revelado pelo Espírito aos seus
santos apóstolos e profetas”. Paulo prossegue, então, falando acerca de uma das
doutrinas do Novo Testamento que compõem o “mistério de Cristo”, antes
oculto, mas agora revelado aos seus servos.
Esse texto mostra que o objetivo principal das profecias dadas no século
1 era revelar doutrinas desconhecidas por pessoas de outras épocas, doutrinas
que os apóstolos registraram nos livros e cartas do Novo Testamento e que
deveriam servir de base para a fé e a prática das igrejas de Cristo nos séculos
porvir.
Isso fica ainda mais claro em Efésios 2.20, onde Paulo ensina que a
igreja é edificada sobre “o fundamento dos apóstolos e profetas”. Por
“fundamento” entende-se aqui o conjunto de doutrinas que servem como alicerce
para a igreja; doutrinas sobre as quais ela constrói todas as suas mensagens e
toda a sua maneira de funcionar e agir. Uma vez que esse fundamento foi trazido
à luz pelos apóstolos e profetas do Novo Testamento, Paulo, sendo apóstolo,
pôde escrever: “Segundo a graça de Deus que me foi dada, pus eu, como sábio
arquiteto, o fundamento...” (1Co 3.10).
Por isso, dizer que existem profecias hoje equivale a dizer que as bases
doutrinárias da igreja ainda não estão prontas, que novas doutrinas ainda estão
por ser reveladas, que o Novo Testamento não está completo e que a igreja, 2 mil
anos depois de fundada por Cristo, ainda está na fase inicial de construção de
alicerces. Ora, isso é inaceitável para qualquer crente dotado de bom senso e de
maturidade. Por isso, não há como acolher a ideia de que existem profecias ainda
hoje.
Para mostrar que o dom de profecia não existe mais, além de estudar seu
propósito central, é preciso também observar qual era seu conteúdo. Na verdade,
parte disso já foi analisada quando foi dito que o objetivo principal da profecia
era revelar doutrinas outrora ocultas. Obviamente, se esse era um dos seus
objetivos centrais, é claro que o conteúdo da profecia era predominantemente
doutrinário.
Aliás, foi por isso que Paulo escreveu aos romanos dizendo que, se
alguém profetizasse, sua profecia deveria ser de acordo com “a proporção da fé”
(Rm 12.6). Isso significa que a profecia dita por alguém deveria estar em
harmonia com a fé já revelada, jamais a contradizendo. Sabendo, assim, que as
profecias tinham conteúdo doutrinário, Paulo recomendava cuidado,
admoestando os profetas a jamais pronunciar qualquer ensino que não estivesse
de acordo com a verdade já vinda à luz.
Foi também por saber do conteúdo doutrinário das profecias que Paulo
escreveu aos coríntios, ensinando que durante os cultos deveriam falar dois ou
três profetas e os demais deveriam julgar o que era dito (1Co 14.29). Esse
julgamento tinha por propósito avaliar a profecia, a fim de verificar se ela se
harmonizava com todo corpo doutrinário entregue por Deus à sua igreja.
O conteúdo da profecia eclesiástica também envolvia consolo, sempre
em harmonia com a revelação dada (At 15.32), e, mais raramente, o anúncio
prévio de eventos vindouros não corriqueiros, mas que causassem grande
impacto sobre as igrejas espalhadas pelo mundo (At 11.27-28; 21.10-11).
Como se vê, o conteúdo das profecias do Novo Testamento era muito
diferente daquilo que é “profetizado” hoje em dia. De fato, na atualidade, os
supostos profetas se limitam a contar visões e sonhos, à semelhança dos falsos
mestres dos tempos apostólicos (Cl 2.18). Também tentam adivinhar quem na
congregação está com algum problema (“tem alguém aqui com dor na coluna!”)
[90]
ou a predizer bênçãos imaginárias para alguém (“o Senhor revelou que seu
marido vai voltar para casa!”), criando esperanças vazias, gerando culpa nos
corações aflitos (“a profecia não se cumpriu e seu marido não voltou porque a
irmã não teve fé!”) ou induzindo as pessoas a erros graves na vida.
Uma vez que as profecias modernas se resumem nesses pronunciamentos
ocos e enganosos, isso robustece a afirmação de que o dom de profecia não
existe mais, conforme Paulo previu em 1Coríntios 13.8-10. Assim, se quiser ser
protegida do erro, da mentira e do desvio, a igreja de Deus deve fugir dos
profetas atuais e edificar sua fé e comportamento unicamente sobre as Escrituras,
onde a revelação dada aos verdadeiros profetas está presente, fornecendo as
bases doutrinárias e éticas da igreja de todos os tempos.

Curas e milagres

As igrejas pentecostais são afeiçoadas a supostas curas e milagres.


Algumas delas chegam a realizar cultos de libertação, prometendo a realização
de milagres com hora marcada e atraindo, assim, pessoas oprimidas, doentes e
vítimas de problemas difíceis. É comum em algumas dessas igrejas até mesmo o
comércio de objetos que, segundo afirmam, têm o poder de proteger e livrar dos
mais diversos males.
No tocante às curas, os mestres dessas igrejas se apoiam geralmente em
Isaías 53.4 para defender a ideia de que o cristão não deve ficar doente nem se
conformar com nenhum abalo em sua saúde, mas, pela fé, apropriar-se do total
livramento das enfermidades que, segundo dizem, Cristo obteve em favor dos
homens.
“Ele tomou sobre si as nossas enfermidades”, repetem. Logo, concluem
que o cristão que tem fé pode repreender a doença e viver livre dela. Muitas
pessoas são atraídas por esses ensinos e os abraçam com absoluta convicção.
Algumas, quando adoecem, chegam ao ponto de se esconder a fim de que aquilo
em que creem não fique exposto a questionamentos.
Falta a essas pessoas o conhecimento da lição elementar de que, na
Bíblia, muitos crentes maduros enfrentaram sérios problemas de saúde, sendo a
doença uma experiência comum na vida do crente neste mundo (At 9.36-37; Gl
4.13-14; Fp 2.25-27; 1Tm 5.23; 2Tm 4.20).
No tocante especificamente a Isaías 53.4, é preciso compreender o
significado desse texto levando-se em conta que o profeta o compôs adotando
uma forma de paralelismo muito comum na poesia hebraica — o paralelismo
sinônimo (Isaías 53 foi escrito na forma de poesia). Esse recurso literário
consiste em afirmar uma mesma verdade em duas frases (ou trechos) paralelas,
de maneira que a segunda declaração apenas repete a primeira usando
sinônimos.[91]
Levando isso em conta, é fácil perceber que Isaías 53.4 deve ser
entendido em paralelo com o v. 5, o que leva à conclusão de que as
“enfermidades” e “dores” de que fala o profeta são as “transgressões” e
“iniquidades” do povo. Observe-se que foi precisamente esse o entendimento
que Pedro teve dessa passagem em 1Pedro 2.24, texto em que o apóstolo ensina
que o que Cristo carregou em seu corpo sobre o madeiro foram “os nossos
pecados”.
Ademais, mesmo que o entendimento decorrente do paralelismo seja
desconsiderado, isso em nada fortalecerá o entendimento que os pentecostais
têm da passagem. De fato, a análise do texto livre de qualquer consideração
quanto ao estilo literário mostrará, no máximo, que Isaías 53.4 deve ser
interpretado como se referindo apenas ao ministério terreno de Cristo. É
precisamente isso que mostra o Evangelho de Mateus que, citando a passagem
de Isaías, afirma que ela se refere à obra terrena do Messias, marcada pela
realização de curas sobrenaturais.
Sendo um autor bíblico, compondo um evangelho inspirado por Deus,
Mateus pôde atribuir ao texto de Isaías um sentido mais amplo do que aquele
que a passagem tinha de início. O resultado disso, porém, não foi a afirmação de
que os crentes em Cristo não devem aceitar as doenças, mas sim que Isaías 53.4
se cumpriu também quando Jesus, durante seu ministério aqui na Terra, curou,
com o simples uso de suas palavras, os numerosos doentes que lhe foram
trazidos (Mt 8.16-17).
Sobre curas e milagres, é preciso ainda que o crente conheça as verdades
a seguir alistadas, a fim de que não se deixe levar pelas tendências atuais e a
igreja de Deus não seja maculada por ensinos e práticas reprováveis:
1. Os milagres não são numerosos em todas as épocas abrangidas pela
Bíblia. As Escrituras abrangem, pelo menos, sete mil anos de história.
Ao longo desse tempo, houve longos períodos em que poucas ou
mesmo nenhuma atuação divina sobrenatural ocorreu. Na verdade, a
análise da história bíblica mostra que a realização intensa de milagres
teve lugar somente em três épocas: os anos do êxodo, o tempo de
ministério de Elias e Eliseu e os dias de Jesus e seus apóstolos. Isso
mostra um padrão específico do modo como Deus intervém no drama
humano, destacando que a operação de maravilhas não faz parte do seu
plano principal de ação.

2. A realização de milagres nunca serviu como prova de


espiritualidade ou de santidade. A Bíblia narra que os sacerdotes
egípcios pagãos, quando se viram diante dos sinais realizados por
Moisés, fizeram milagres semelhantes (Êx 7.8-12, 20-22; 8.6-7). No
Novo Testamento, há o registro das palavras de reprovação que Jesus
“naquele dia” dirigirá contra os incrédulos que, no nome dele, fizeram
“muitos milagres” (Mt 7.21-23). A realização de maravilhas por
homens perversos e impostores é possível porque Deus não é a única
fonte de poder sobrenatural. Ele é a fonte suprema, mas não exclusiva
de poder. Satanás e seus anjos também são poderosos e realizam sinais
pela mão de seus servos (Mt 24.24). Aliás, será com a força do poder
satânico que o anticristo e o falso profeta que hão de vir realizarão
feitos extraordinários, obtendo o apoio e a adoração do mundo inteiro
(2Ts 2.9; Ap 13.2-4, 11-14).

3. O pregador deve ser avaliado pela mensagem que anuncia e não


pelos milagres que realiza. Em Deuteronômio 13.1-5, é ensinado que
se alguém realiza um sinal espetacular e prega uma mensagem
contrária ao ensino de Deus em sua Palavra, deve ser rejeitado, não
importa quão grande ou espetacular tenha sido o milagre que fez. É a
mensagem que prega que mostrará se alguém é de Deus (2Jo 9-11).
Deve-se, portanto, observar se a pregação do “milagreiro” é bíblica. Se
não for, milagre e mensagem terão de ser rejeitados.

4. A atração por sinais espetaculares é perigosa e pode ser evidência de


ceticismo e fraqueza espiritual. Jesus destacou que a busca de sinais
pode advir não de pessoas piedosas e cheias de fé, mas de homens
maus e adúlteros (Mt 12.38-39). Ele também censurou aqueles que o
buscavam por causa do pão que havia sido multiplicado (Jo 6.26). É
interessante notar que, ao ouvir essa censura, aquelas pessoas que o
seguiam pediram ainda mais sinais (Jo 6.30). Não sendo atendidas,
elas se opuseram a Jesus (Jo 6.41-42,52,60) e, enfim, o abandonaram
(Jo 6.66). Simão, o mago é outro exemplo de alguém que era atraído
por milagres, mas não tinha o coração reto diante de Deus (At 8.13,18-
23). Tudo isso mostra que, ao contrário do que é dito no meio
pentecostal, o apego a milagres não é evidência de uma fé mais forte.
Aliás, é muito perigoso sentir-se atraído por alguém só porque essa
pessoa faz ou diz fazer milagres, pois, conforme visto no item 2 supra,
é essa atitude que levará muita gente a seguir os falsos profetas e o
anticristo no fim dos tempos (Mt 24.24; 2Ts 2.9-10; Ap 13.11-15).

5. O fator mais eficaz na produção da fé salvadora é a pregação e não a


realização de milagres. Há quem acredite que os milagres são
necessários para levar as pessoas à conversão. Porém, os inúmeros
milagres realizados por Moisés, Elias, Eliseu, Jesus e os apóstolos
mostram que isso não é verdade. De fato, ainda que muitas pessoas
tenham crido no evangelho ao ver um grande prodígio (At 9.42), o
efeito avassalador e transformador que seria de se esperar sobre as
multidões que testemunharam todos aqueles feitos milagrosos nunca
ocorreu. Na verdade, a força dos sinais na produção da fé sempre
esteve aquém do esperado, sendo o efeito dos prodígios, na maior
parte das vezes, apenas um entusiasmo passageiro. Isso ocorre porque
Deus determinou que a salvação das pessoas acontecesse por meio da
pregação (1Co 1.21). Paulo escreveu que o evangelho (não o ato
milagroso) é o poder de Deus para a salvação de quem crê (Rm 1.16) e
afirmou que a fé salvadora se instala no coração dos homens por
intermédio dos ouvidos e não dos olhos (Rm 10.17). O próprio Jesus
disse que se alguém não ouve as Escrituras (“Moisés e os profetas”)
não poderá crer ainda que veja uma pessoa ressuscitar dentre os
mortos (Lc 16.31).

6. Os milagres dos tempos apostólicos começaram a diminuir já no


século 1. Conforme exposto no item 1 supra, o período apostólico foi
uma das três fases da história em que feitos sobrenaturais ocorreram
com bastante frequência (At 5.15-16; 6.8; 8.13). Isso aconteceu porque
os milagres tinham por objetivo autenticar a mensagem nova que
estava sendo pregada pelos apóstolos (Mc 16.20; At 14.3; 2Co 12.12).
Porém, tão logo esse tempo de autenticação ficou para trás, os sinais
miraculosos foram se tornando mais esparsos. Já nos anos 60 do
primeiro século as curas sobrenaturais eram raras (Fp 2.26-27; 1Tm
5.23; 2Tm 4.20) e o autor da Carta aos Hebreus se referiu aos feitos
milagrosos como pertencentes ao período da primeira geração de
cristãos — a geração que viu a mensagem dos apóstolos ser
autenticada por meio de sinais e prodígios (Hb 2.3-4). Note-se ainda
que nas listas de dons elaboradas por Paulo (Rm 12.6-8; 1Co 12.8-
10,28; Ef 4.11), os dons de curas e de operação de milagres são
mencionados somente em 1Coríntios, escrita no ano 55. Listas
produzidas pouco tempo depois, como as de Romanos (escrita em 57-
58) e Efésios (escrita por volta de 61) não mencionam esses dons,
indicando que haviam entrado em fase de declínio, se é que já não
tinham desaparecido totalmente.

7. Curas e milagres podem acontecer em qualquer época, inclusive a


atual. Os dons de curas e de operação de milagres eram capacidades
dadas por Deus a alguns crentes de erradicar doenças e de realizar
maravilhas fora da ordem natural das coisas (1Co 12.8-10,28). As
pessoas que tinham esses dons curavam tudo e a todos (At 5.16), sendo
capazes, inclusive, de ressuscitar mortos algumas vezes (At 9.36-41;
20.9-12). Conforme visto no item 6, esses dons deixaram de existir já
no século 1. Isso, contudo, não significa que o Senhor, eventualmente,
não faça ainda hoje obras grandiosas, além da compreensão humana.
Antes, significa que, quando Deus realiza feitos assim, ele o faz em
resposta à oração dos crentes em geral e não por meio de indivíduos
dotados por ele com capacitações sobrenaturais, como era o caso dos
apóstolos e dos crentes que tinham dons de operar milagres. Por isso,
os cristãos que, ao enfrentar um sério problema, perceberem que a
solução está fora do alcance humano, devem buscar o milagre de Deus
na oração e na súplica (sua e de seus irmãos — Tg 5.14-18)[92] e não
nas supostas habilidades dos “curandeiros” atuais, sabendo que, muitas
vezes, o Senhor pode ter um “não” como resposta (2Co 12.7-9).

8. Muitos milagres atuais são extremamente duvidosos. Os líderes


evangélicos que dizem realizar milagres sempre os fazem em benefício
de pessoas que a multidão que assiste a eles não conhece. Isso torna
impossível a comprovação até mesmo da existência da doença, sendo
comuns as fraudes. Esses líderes também não apresentam qualquer
comprovação válida de que tenham, de fato, realizado uma cura
espetacular. Além disso, as curas que dizem operar em público são de
doenças que não podem ter sua melhora verificada de pronto, sendo
casos de enxaqueca, tendinite, dores na coluna, tumores internos, etc.
Ademais, é estranho que ponham seus “dons” em operação somente
em programas promovidos por eles mesmos, em lugares e horários
previamente marcados — e nunca em hospitais, leprosários ou locais
atingidos por grandes tragédias ou epidemias —, o que mostra que
contam sempre com um ambiente de fácil controle e manipulação.
Além disso, os casos de cura real que acontecem nesse meio sempre
envolvem doenças funcionais e psicogênicas (e.g., dores, palpitações,
problemas respiratórios, rigidez muscular, etc.), ou seja, enfermidades
contra as quais o organismo reage por meio da sugestão, do otimismo
ou da força de vontade. Doenças orgânicas, isto é, que não podem ser
curadas por meio desses fatores (e.g., ferimentos, cegueira, surdez,
cálculos renais, tumores, tetraplegia, etc.) nunca são sanadas pelos
pastores milagreiros. Nada disso se encaixa no modelo de curas
mostrado na Bíblia. Ali, são apresentados casos de doentes que eram
conhecidos por todos (a realidade da doença podia, assim, ser
verificada), doentes que eram curados nas casas, nas ruas, nas praças e
em qualquer hora e lugar, e doentes que eram curados completa,
imediata e definitivamente de todos os tipos de enfermidade. Vê-se,
assim, que em nada as curas atuais se assemelham ao que aconteceu
nos tempos de Jesus e dos apóstolos.

Levando tudo isso em conta, a igreja de Deus afastará de sua prática


qualquer forma de reunião ou campanha que tenha como alvo produzir curas e
milagres. Seus membros também, sendo “cristãos velhos”, ou seja, crentes do
tipo que se protege do erro pelo conhecimento da sã doutrina, jamais
participarão de programas desse tipo, sabendo que a obra poderosa de Deus se
realiza dentro de contornos bem diferentes daqueles que se veem nos espetáculos
enganosos que marcam o meio evangélico atual.

A busca de sucesso e prosperidade

Muitas igrejas da atualidade adotam a teologia da prosperidade, um


modelo doutrinário que propõe que a vontade de Deus é que os crentes sejam
sempre abençoados financeiramente, tendo também sucesso em todas as demais
áreas da vida.
O principal expoente dessa vertente teológica é Kenneth Erwin Hagin
(1917-2003), que propôs, inclusive, que o sucesso material ou a vitória sobre as
doenças e outros males são possíveis por intermédio da fé expressa em palavras,
ensino chamado de “palavra da fé” ou “confissão positiva”.[93]
Assim, para os teólogos da prosperidade (ou triunfalistas, como também
são conhecidos), o crente pode obter vitórias nesta vida por meio de declarações
confiantes (“eu determino”, “eu não aceito”, “eu tomo posse...”), por meio do
uso da fórmula “em nome de Jesus”, ou por meio de palavras de ordem dirigidas
até mesmo ao próprio Deus (“eu reivindico”), sendo que, quando o ideal da
pessoa é eventualmente alcançado, essa se torna a maior evidência de que ela
tem uma fé robusta e madura.[94]
É bom destacar que o ensino de que as palavras do crente têm poder
tomou formas e alcançou desdobramentos surpreendentes. Mestres triunfalistas
alegam “liberar o poder de Deus” com algumas frases que dizem. Outros
chegam a afirmar que, em muitos casos, o falecimento de um paciente em estado
terminal não pode acontecer enquanto os crentes da família não concordarem
unânimes em fazer uma oração “liberando a morte”! Sem o pronunciamento
dessa autorização, Deus, segundo dizem, não pode levar o doente.
Vê-se, assim que, para os mestres da teologia da prosperidade, os crentes
têm certo grau de autoridade sobre Deus, além de direito completo às bênçãos
dele, podendo reclamá-las com ousadia. Nesse sentido, alguns afirmam
categoricamente que é errado dizer a frase “seja feita a tua vontade” durante as
súplicas, pois isso, segundo entendem, revela falta de fé e pode impedir que o
que é buscado seja finalmente alcançado. Outros, levando seus ensinos às
últimas consequências, concluem que a oração é desnecessária, devendo ser
substituída por declarações de vitória, por determinações de sucesso completo e
por reivindicações de direitos junto ao trono celeste. Na verdade, alguns pastores
que acolhem esse modelo doutrinário ensinam seus seguidores a “perdoar Deus”
por, em algum momento da vida, não ter concedido o que lhes era devido.
Os pastores triunfalistas ensinam ainda, e de modo bastante veemente,
que outra forma de demonstrar fé e obter então as sonhadas bênçãos materiais é
por meio de contribuições financeiras dadas às suas igrejas. Segundo eles,
quanto mais a pessoa ofertar, maior será a demonstração de sua fé
(especialmente se estiver passando por apertos financeiros) e, por isso,
certamente essa pessoa será recompensada por Deus com notável prosperidade e
sucesso em todas as áreas da vida.
As comunidades que acolhem essa heresia raramente pregam sobre o
pecado, a salvação pela fé em Cristo ou sobre a vida de santidade, resumindo-se
a mensagens em ensinos ligados à confissão positiva e em apelos insistentes para
que as pessoas demonstrem sua fé contribuindo de modo pródigo com a igreja, a
fim de obter sucesso financeiro e outras conquistas como curas, restauração de
casamentos ou vitórias sobre algum vício. Todos os testemunhos dados pelos
fiéis versam apenas sobre essas coisas e têm por intuito reforçar os apelos dos
pastores.
A teologia da prosperidade ensina, assim, um outro evangelho,
divulgando heresias e blasfêmias assustadoras e apresentando o sucesso
financeiro como um elemento da redenção que Cristo obteve na cruz, algo
jamais pregado pelo Senhor e seus apóstolos. Por isso, esse “evangelho” deve ser
rejeitado com todo vigor pela igreja de Deus (Gl 1.8-9).
Algumas verdades cristãs sólidas que servem para desmascarar o
triunfalismo são as seguintes:

1. O poder de criar novas realidades a partir do pronunciamento de


palavras é detido apenas por Deus (Gn 1.3; Sl 148.5; Hb 11.3).
Quando a Bíblia fala sobre a força das palavras humanas, refere-se
apenas ao cuidado que se deve ter com a língua, já que o mau uso dela
em ofensas, mentiras, blasfêmias e calúnias, tem o “poder” de criar
sérios problemas (Pv 18.21; 26.28; Mt 15.11,18; Tg 3.5-9), enquanto o
uso sábio da palavra traz alento, sabedoria e paz (Pv 12.18; 15.2,4).

2. Somente Deus tem autoridade absoluta na administração e


distribuição de suas bênçãos. Ele concede o bem e o mal a quem quer,
quando quer e conforme quer (Êx 4.11; Jó 1.21; 2.10; Lm 3.27-28,38-
39; Rm 9.15-18). Ninguém pode questioná-lo, obrigá-lo ou se opor a
ele no modo como executa seus desígnios (Is 43.13; 45.9; Rm 9.20-
21), até porque o Senhor é absolutamente soberano (Is 46.9-10) e tudo
que faz é bom, santo, perfeito, sábio e totalmente justo (Dt 32.4; Is
40.13-14; Ap 15.3). A soberania e a sabedoria de Deus também
apontam para o fato de que o homem não tem o poder de manipulá-lo
por meio de palavras, orações, rituais ou fórmulas específicas. O
infinito entendimento, o imenso senhorio e a suprema liberdade do
Senhor o colocam muito acima da possibilidade de ser controlado por
alguém que, descobrindo um suposto jeito de influenciá-lo, “aperta os
botões certos” (Jó 23.13).
3. A censura ao uso da expressão “seja feita a tua vontade” é um
ataque frontal ao próprio Cristo que orou desse modo e ensinou seus
seguidores a fazer exatamente assim (Mt 6.10; 26.42). Aliás, Tiago
censura seus leitores por fazerem planos ousados de obtenção de lucro
sem nunca reconhecer humildemente que só teriam sucesso se essa
fosse a vontade de Deus (Tg 4.13-16). Nesse sentido, vejam-se
também o entendimento e a postura dos escritores bíblicos em Atos
16.6-7, 1Coríntios 16.7 e Hebreus 6.3.

4. A noção de que a oração é desnecessária também contraria


frontalmente o ensino bíblico mais elementar (Rm 12.12; Ef 6.18-19;
Fp 4.6; Cl 4.2-3; 1Ts 5.17,25). Ademais, substituir a oração humilde e
dependente pela exigência ousada é uma demonstração tão chocante
de irreverência, petulância, destemor, orgulho, atrevimento e blasfêmia
que nenhum verdadeiro convertido seria capaz de aceitar (Hc 2.20),
posto que, para o homem transformado, a serena sujeição a Deus está
acima dos desejos pessoais (Jó 1.21; Lm 3.27-31,38-39; Mq 6.8; Hc
3.17-18; 2Co 12.7-9).

5. As promessas bíblicas de prosperidade material (assim como as


ameaças de miséria) foram dadas a Israel ao tempo da Lei e seu
cumprimento dependia da estrita observância dos preceitos mosaicos
(Dt 28.1-14). Essas promessas (e também as ameaças — Dt 28.15-68)
não se aplicam à igreja que, como se sabe, é uma realidade nova,
surgida nos tempos apostólicos (Ef 2.15-16; 3.4-6) e distinta do Israel
nacional (Rm 9.3-4; 10.1; 11.11,25-26). Ademais, a dispensação da Lei
teve seu fim (Jo 1.17; Rm 7.4-6; 2Co 3.7-11; Gl 3.19,24-25; Cl 2.13-
14; Hb 7.12,18-19; 8.6-7,13; 9.10), havendo a obra de Cristo
inaugurado a Nova Aliança (Lc 22.20; Hb 12.24). Nessa Nova Aliança
nada se diz sobre prosperidade material (Hb 8.8-13).

6. O evangelho verdadeiro coloca a condição da alma muito acima da


prosperidade material, sendo sua mensagem focada na felicidade
eterna futura e não na riqueza passageira presente (Mt 16.26). Por isso,
a Bíblia não vê como absurdo o fato de alguém perder bens e posição
após a conversão ou por causa dela, mostrando que, de fato, isso pode
acontecer com muitos crentes (Fp 3.4-8; Hb 10.32-34).

7. Ao contrário do que ensinam os mestres da prosperidade, as pessoas


ricas em fé são exatamente as pobres (Tg 2.5). Uma boa prova disso se
encontra na figura de Pedro. O livro de Atos mostra que ele não tinha
ouro nem prata, mas mesmo assim foi capaz de, pela fé, curar um
paralítico (At 3.5-8). Além disso, todos os apóstolos, homens de fé,
foram colocados por Deus debaixo das mais terríveis penúrias
materiais (1Co 4.9-13; 2Co 6.4-10). O mesmo aconteceu com outros
que o autor de Hebreus alista entre os grandes heróis da fé (Hb 11.36-
39).

8. Paulo ensina que Deus, ao administrar sua graça salvadora, deu


preferência aos pobres, aos pequenos e aos fracos, a fim de humilhar
os de nobre nascimento e os poderosos deste mundo (1Co 1.26-29).
Isso mostra que, para Deus, a prosperidade material dos homens não
provoca necessariamente o seu deleite.

9. Na Bíblia, em vez de serem exemplos de fidelidade e de vida cristã


robusta, os ricos são apresentados como pessoas de fé muito frágil e de
vida que tende com mais facilidade para os prazeres carnais e as
perversidades (Mc 10.25; Lc 12.13-21; 16.19-23; 1Tm 6.17-19; Tg
5.1-6; Ap 3.15-17). Logo, não há nenhum estímulo na Bíblia para que
o crente almeje ser alguém demasiadamente próspero. Em vez disso, o
texto sagrado desencoraja o desejo de ficar rico, ensinando que a
situação econômica equilibrada é a mais recomendável para o homem
que teme a Deus (Pv 30.8-9; 1Tm 6.8-10).

10. Ao contrário do que propõe a teologia da prosperidade, não é


correto buscar a Deus tendo em vista a obtenção de bens materiais
(1Tm 6.3-8), pois isso pode servir de laço (1Tm 6.9-10). Jesus mesmo
censurou aqueles que o seguiam por causa do pão que ele multiplicara
(Jo 6.26-27).

11. Os pastores da prosperidade se encaixam perfeitamente no perfil


dos falsos mestres que, segundo a Bíblia, ambicionam dinheiro na
prática do ministério (2Co 2.17; Tt 1.11), consideram a piedade fonte
de lucro (1Tm 6.5,9-11), são buscados por pessoas cheias de cobiça
(2Tm 4.3-4), exploram os crentes com palavras blasfemas e fictícias
(2Pe 2.1-3,18-19) e se comportam vergonhosamente (Jd 4,11-16).
Diferente desses líderes, o pastor bíblico é um homem livre de avareza
(1Tm 3.3; Tt 1.7; 1Pe 5.2).
12. Diante dos pobres que há na igreja, não é dever dos pastores
ensiná-los a anelar por riquezas (Mt 6.19-21; 1Tm 6.9-10), mas sim
encorajá-los a trabalhar (1Ts 4.11-12; 2Ts 3.10-12), ajudar os que são
mais pobres do que eles (2Co 8.1-5) e se contentar com o que têm
(1Tm 6.8; Hb 13.5). No caso de haver pobres que realmente não
podem obter sustento, o dever do pastor é exortar os parentes dessa
pessoa a ampará-la (1Tm 5.4,8,16). Também é tarefa do pastor
admoestar suas ovelhas para que ajudem seus irmãos na fé que, por
forças alheias à sua vontade, não podem obter pão (Rm 15.26; Gl 2.10;
6.10; Ef 4.28; 1Jo 3.17).[95]

Um dos lados mais tristes da realidade criada pelo evangelho da


prosperidade é que, geralmente, seus seguidores, depois de doar aos líderes tudo
que têm, percebem angustiados que foram vítimas de grave engano doutrinário.
Então, vão se queixar aos pastores e estes lhes dizem que o que os impediu de ter
sucesso foi a falta de fé. Assim, esses infelizes vão para casa (se ainda tiverem
casa!) sem os poucos bens que antes possuíam e com uma enorme carga de culpa
no coração.
A verdadeira igreja de Deus pode evitar que esse e muitos outros danos
recaiam sobre as pessoas ensinando-lhes as verdades alistadas supra e
combatendo veementemente qualquer indício dessa destruidora heresia.

Quebra de maldições

A doutrina sobre a quebra de maldições consiste no ensino de que as


pessoas, crentes ou não, são em geral alvos de maldições proferidas contra elas,
normalmente num acesso de indignação, cólera ou algo semelhante.[96] Segundo
esse ensino, a mãe ou mesmo a professora que disse à criança rebelde: “Você vai
se dar mal na vida, não será ninguém se continuar assim”, já pronunciou, com
isso, uma maldição contra o menino. Essas supostas maldições sempre “pegam”,
pois, conforme visto, para os mestres dessas ideias, as palavras humanas têm
poder.
De acordo com essa doutrina, outra forma de as maldições alcançarem
uma pessoa é uma espécie de transmissão hereditária. Em suas igrejas, os
quebradores de maldição ensinam que os pecados e práticas cultuais diabólicas
dos ancestrais são suficientes para colocar uma pessoa sob maldição, pois,
contrariando o ensino de Ezequiel 18.1-20 e João 9.1-3, afirmam que essas
culpas são transmitidas de geração a geração.[97]
Esses mesmos mestres dizem que o resultado dessas maldições é que o
amaldiçoado passa a ter problemas de comportamento de difícil solução
(alcoolismo, adultério, acessos de ira, etc.), enfrenta graves e constantes crises de
saúde (diabetes, câncer, obesidade, miopia...), não prospera e nada do que faz dá
certo (aqui se encontra o vínculo entre essa doutrina e o ensino que proferem
acerca da prosperidade material, já mencionado acima). Faz-se então necessário
quebrar a maldição a fim de que o indivíduo desfrute uma vida feliz e abundante.
Mas como?
De acordo com os mestres dessas doutrinas, a solução geralmente é fazer
orações especiais que precisam ser aprendidas ou participar de cultos de
livramento. Especificamente no caso de maldições originadas nos antepassados,
a “vítima” tem de orar a Deus pedindo que lhe seja revelada a geração em que a
maldição teve origem e, então, pedir perdão pelo pecado do ancestral que lhe
deu causa. Outros dizem que é preciso fazer regressões mentais até o momento
em que a maldição foi adquirida, a fim de quebrá-la ali, na própria raiz.[98]
Por isso, em algumas igrejas são realizadas campanhas de libertação das
quais os interessados na “quebra” devem participar. Segundo entendem, no final
dessas campanhas a maldição terá sido anulada pelas orações, unções e palavras
de ordem dos pastores. Em outros casos, pessoas supostamente habilitadas na
arte de quebrar maldições vão a uma casa em que, num dia designado, se reúnem
todos os membros (crentes ou não) de uma determinada família que acredita ser
oprimida por maldições. Ali se realiza um culto especial com orações e
repreensões a maus espíritos. Quando tudo acaba, os membros da família
acreditam estar libertos. Se a sorte da família não mudar, a explicação é sempre a
mesma: falta de fé por parte de alguém.
Outras comunidades realizam retiros especiais em que as pessoas são
induzidas a fazer regressões mentais até o tempo da origem da maldição.
Chegando a esse ponto por meio da memória ou da imaginação, o indivíduo
pode enfim quebrar o mal que lhe foi lançado, fazendo uma súplica ou
pronunciando uma palavra de ordem.
Na Bíblia, é impossível encontrar apoio para essas noções e práticas. O
que as Sagradas Escrituras ensinam é que todos os homens estão debaixo de
apenas duas maldições: a maldição do Éden e a maldição da Lei.
Pela maldição do Éden, a mulher passou a ter grande sofrimento ao dar à
luz, dificuldades de relacionamento surgiram no âmbito conjugal, a terra passou
a produzir espinhos e ervas daninhas, o trabalho árduo tornou-se necessário para
a obtenção do sustento e a morte sobreveio à humanidade (Gn 3.16-19).
No tocante à maldição da Lei, esta é lançada sobre todos os que
transgridem os santos mandamentos de Deus (Pv 3.33; Gl 3.10). Essa maldição
torna os transgressores condenáveis e merecedores do castigo eterno (Gl 3.12).
Uma vez que todos os homens desobedecem às prescrições do Senhor (Rm 3.10-
12), todos são malditos diante dele e, consequentemente, estão separados de
Deus, aguardando o castigo eterno (Rm 3.23).
A solução para a maldição do Éden não pode ser obtida na presente era,
estando reservada para o futuro, quando Deus criar “novos céus e nova terra”
para a eterna habitação dos salvos (Ap 21.1). Ali, diz o Apocalipse, não haverá
maldição (Ap 22.3).
No que diz respeito à maldição da Lei, Deus proveu a solução por meio
da obra substitutiva de Cristo na cruz. Nesse sentido, Paulo afirmou que Cristo
nos resgatou da maldição da Lei fazendo-se ele próprio maldição em nosso lugar
quando foi pendurado no madeiro (Gl 3.13). Por isso, quando alguém crê em
Cristo, imediatamente se beneficia do sacrifício dele e é resgatado para sempre
da terrível maldição que o levaria ao inferno (Rm 5.1; 8.1). Se, todavia, o
homem permanecer rebelde, não crendo em Cristo, não entregando a vida a ele,
enfim, não o recebendo como salvador (Jo 1.12), “a ira de Deus sobre ele
permanece” (Jo 3.36) e o próprio Senhor o chama de maldito (Mt 25.41).
Vê-se, assim, que as duas únicas maldições reais que pesam sobre o
homem têm sua forma precisa de solução. Quaisquer outras maldições são
apenas invenções, como também são invenções as fórmulas que apresentam para
saná-las.
De fato, o ensino bíblico mostra que os salvos, especialmente, não têm
nenhuma razão para se preocupar com qualquer maldição proveniente de seus
ancestrais nem de quem quer que seja. Paulo ensina que os crentes são novas
criaturas, que para eles as coisas velhas já passaram e tudo se fez novo (2Co
5.17). Ele diz também que não há porque os cristãos se preocuparem com as
coisas que para trás ficam, devendo, ao invés disso, manter os olhos fixos em seu
futuro glorioso (Fp 3.13-14). O ensino de Paulo vai além, e ele afirma que
nenhuma condenação há para os que estão em Cristo (Rm 8.1) e que, por isso,
não precisam viver atemorizados (Rm 8.15), pois o Senhor os protege e deles
cuida com zelo sem igual (Rm 8.31-39).
O Novo Testamento enfatiza que a obra de Cristo em favor dos crentes
foi suficiente para libertá-los do poder do pecado (Cl 1.13) e fez deles membros
da raça eleita, da nação santa (1Pe 2.9), um povo ricamente abençoado (Ef 1.3),
contra quem as portas do inferno não podem prevalecer (Mt 16.18). Portanto,
acerca dos salvos pode-se dizer o que Balaão foi forçado a dizer acerca de Israel:
“Como posso amaldiçoar a quem Deus não amaldiçoou? (...) Ele abençoou, não
o posso revogar... Pois contra Jacó não vale encantamento, nem adivinhação
contra Israel... Benditos os que te abençoarem e malditos os que te
amaldiçoarem…” (Nm 23.8a, 20b, 23a; 24.9b).
Assim, os rituais de quebra de maldição são desnecessários para os
crentes. Todavia, se alguém não é crente, o único modo de livrar-se das duas
reais maldições que lhe pesam (a do Éden e a da Lei) é render-se a Cristo. Contra
essas duas maldições, de nada valerá participar de cultos barulhentos, fazer
orações especiais ou coisas semelhantes. Somente pela fé em Cristo o indivíduo
pode deixar de ser maldito e tornar-se bendito. Portanto, para o incrédulo,
qualquer ritual de quebra de maldição é inútil.
Ora, se a quebra de maldição é desnecessária para o crente e inútil para o
incrédulo, para que serve então? Para nada! Logo, não há por que perder tempo
com essa prática supersticiosa inventada em anos recentes.
Concluindo esta seção, é importante destacar o real significado de duas
passagens bíblicas muito usadas pelos proponentes da doutrina da maldição
hereditária: Êxodo 20.5-6 e Romanos 5.12. Diante desses dois textos é preciso
fazer as seguintes ressalvas:

1. Êxodo 20.5-6 não trata de maldições hereditárias, nem de qualquer


tipo de feitiço que eventualmente esteja sobre os filhos dos perversos,
mas sim da experiência comum das famílias cujos ancestrais viveram
longe dos caminhos de Deus. Evidentemente, homens que não andam
sob o temor do Senhor deixam para seus filhos e netos uma herança de
sofrimentos, desajustes e erros que os afetam ao longo de toda a vida.
Ademais, os ímpios tendem a gerar uma prole que segue seus passos
de impiedade, trazendo ainda mais miséria sobre si e outros membros
da família. É ao sofrimento decorrente disso tudo que o Senhor se
refere quando diz que visita a iniquidade dos pais nos filhos, devendo
ser ainda lembrado que essa não é uma ação que ele realiza sempre.
Na verdade, quando o filho de uma pessoa perversa se volta para o
Senhor, muitos males (se não todos) decorrentes de sua criação
perversa são evitados, passando a pessoa a obter o favor do Senhor, o
que se pode facilmente verificar na história bíblica (2Rs 16.1-4
cp.18.1-7) e na experiência comum.
2. O ensino de Romanos 5.12 aponta para o impacto do pecado de
Adão sobre toda a sua descendência. É preciso, contudo, lembrar que,
conforme se depreende do próprio texto em questão, Adão ocupava o
lugar de representante da humanidade inteira (vejam-se o v. 19 e 1Co
15.21-22). Por isso, seu ato de rebeldia afetou todos os homens. Essa
posição, contudo, era exclusiva de Adão e não há na Bíblia nenhum
indício de que outras pessoas possam ocupar posições semelhantes em
relação aos seus descendentes. Aliás, Ezequiel 18.1-20 realça
exatamente o contrário, destacando que a responsabilidade pelo
pecado de um indivíduo é pessoal e intransferível.

A chamada ‘Restauração Apostólica’

Muitas igrejas de hoje acreditam na continuidade do apostolado. Isso tem


como causa um movimento recente denominado “restauração apostólica”,
promovido a partir dos anos 1990, especialmente no âmbito pentecostal.[99]
A verdade, porém, é que a igreja de Deus sempre teve de lutar contra
tendências desse tipo. De fato, o título de apóstolo foi reivindicado por falsos
mestres já nos dias do Novo Testamento (2Co 11.13-15; Ap 2.2) e a doutrina da
existência de apóstolos posteriores aos Doze tem marcado seitas como o
mormonismo e desvios como o romanismo. Este último defende há séculos a
continuidade do apostolado na figura do papa.
A análise desse erro ao longo da história da igreja cristã mostra que seus
proponentes arrogam para si o título de apóstolo ou investem seus preferidos
nessa função geralmente movidos pelo amor ao dinheiro, à grandeza e ao poder.
Com efeito, gigantescos impérios financeiros têm sido construídos pelos
“apóstolos” contemporâneos, mostrando o real objetivo por trás do que chamam
de ministério cristão. Também reivindicações de autoridade absoluta são feitas
por esses homens que escravizam pessoas, exploram a gente ignorante e
condenam qualquer um que avalie ou questione seus ensinos absurdos.
A Bíblia silencia acerca de qualquer ideia referente à continuidade
apostólica e, por isso, os crentes de outrora jamais acolheram esse desvio. De
fato, a simples análise das Escrituras protege o crente de cair no engano proposto
pelos expoentes da restauração apostólica. Essa proteção tem como base a
distinção que existe no Novo Testamento entre o apóstolo no sentido geral e o
apóstolo no sentido técnico.
No sentido geral, a palavra “apóstolo” designava apenas um missionário
pioneiro, já que o significado básico do termo é mensageiro. Nesse sentido mais
abrangente, Barnabé, por exemplo, foi chamado de apóstolo em Atos 14.14.
Já no sentido técnico, o vocábulo “apóstolo” tinha aplicação bastante
limitada, designando apenas aqueles que viram o Senhor ressurreto e foram
investidos diretamente por ele na função apostólica (At 1.21-22; 1Co 9.1; Gl
1.1), recebendo também, da parte de Deus, revelações doutrinárias especiais que
serviram e ainda servem como fundamento doutrinário para a igreja (Ef 2.20;
3.4-5).
Nesse sentido técnico e estrito, os apóstolos só existiram no século 1,
quando Deus lançou os alicerces teológicos, éticos e funcionais da igreja (Ef
2.20), sendo seu número limitado a apenas doze componentes (Ap 21.14).
As marcas distintivas desse pequeno grupo eram as seguintes:

1. Eles eram missionários pioneiros e, nesse aspecto, se


assemelhavam aos apóstolos no sentido geral (Rm 15.20; 2Co 10.13-


16).
2. Eles eram testemunhas oculares da ressurreição (1Co 9.1; 15.8).

3. Eles não se autoinvestiam na função apostólica (Rm 1.5; 2Co


11.13; Ap 2.2).
4. Eles realizavam prodígios milagrosos (2Co 12.12).

5. Eles não entravam nessa função por intermédio de outros homens,


mas somente por ordem direta de Cristo (Gl 1.1, 11-12). A única
exceção que ocorreu no caso de Matias (At 1.21-26) foi provavelmente
por causa do caráter provisório de seu papel como décimo-segundo
apóstolo.
6. Eles eram canais de revelação doutrinária inédita (1Co 15.3; Ef 3.4-

6).
7. Eles eram colocados por Deus numa posição de desprezo, miséria e

sofrimento (1Co 4.9-13).

Se alguém não apresentasse essas marcas, poderia ser chamado de


apóstolo no sentido geral e não técnico, isto é, poderia ser, no máximo, um
missionário pioneiro. Para ser, contudo, um apóstolo no sentido técnico e estrito,
cada um desses traços devia ser real em sua vida. Ora, é evidente que os
apóstolos contemporâneos não apresentam nenhuma das marcas
supraenumeradas, sendo, portanto, absolutamente falsos.
Na exposição do funcionamento correto da igreja de Deus, é muito
importante destacar que o apóstolo no sentido técnico, já nos tempos do Novo
Testamento, foi perdendo a posição de liderança absoluta na igreja, cedendo
lugar aos bispos ou pastores.
Isso pode ser visto claramente no modo como a forte liderança do
apóstolo Pedro é nublada pelo decisivo governo de Tiago que era pastor e que
não fazia parte do grupo dos Doze. De fato, Pedro mostra temor diante de uma
comitiva que Tiago enviou a Antioquia (Gl 2.11-13) e, no Concílio de Jerusalém,
a palavra final e decisiva foi dada por Tiago e não pelos apóstolos Pedro e Paulo
(At 15.13ss).
Ademais, em Atos 21.17-26, há sinais de que a liderança da igreja de
Jerusalém passou a ser formada apenas por presbíteros (v. 18), havendo ainda
evidências de que o apóstolo Paulo reconhecia a posição daqueles homens,
chegando a prestar-lhes relatórios e a seguir suas orientações.
Tudo isso dá indícios de uma mudança de primazia já na igreja primitiva
que, aos poucos, foi substituindo a liderança apostólica pela pastoral. Afinal,
com a morte dos Doze ainda no século 1, o cargo de apóstolo no sentido estrito
desapareceu de maneira definitiva.
É, portanto, pertinente a observação de Joachim Rohde:

Depois de Atos 16.4 os apóstolos não são mais


mencionados e Lucas apresenta os anciãos [ou pastores],
com Tiago, o irmão de Jesus, à sua frente, como a nova
liderança da comunidade de Jerusalém, postulando uma
espécie de conselho superior para a igreja em geral (21.18).
[100]

Evidentemente, o desejo de ser apóstolo tem como causa o anseio de


galgar uma posição mais elevada na igreja, suplantando, inclusive, o cargo
pastoral. Esse mau anseio se baseia na visão equivocada de que o apóstolo está
acima do pastor.
Porém, conforme visto, no Novo Testamento a liderança máxima dos
apóstolos só perdurou durante algum tempo, cedendo depois lugar aos bispos.
Isso serve para mostrar, entre outras coisas, que, mesmo que existissem
apóstolos ainda hoje, eles em nada seriam superiores aos pastores, sendo estes os
líderes que Deus designou para conduzir sua igreja depois que os Doze
cumpriram seu papel específico antes mesmo do fim do século 1.
Assim, nenhuma igreja bíblica deve se curvar aos apóstolos atuais, uma
vez que todos são falsos e, mesmo se fossem verdadeiros, seu papel de liderança
na igreja não poderia superar a autoridade pastoral.

Avivamentos estranhos

Influenciadas por falsos mestres, inúmeras pessoas acreditam que as


práticas bizarras que hoje se veem em muitos cultos evangélicos são prova de
avivamento. Para essas pessoas, a igreja avivada, ou seja, a igreja em que o
Espírito Santo está realmente atuando é aquela em que todos gritam, sapateiam,
dançam e choram freneticamente. A crença geral é num tipo de “avivamento”
em que não há nada de arrependimento, confissão, santificação, consagração ou
transformação, mas somente barulho e confusão.
Em certas comunidades, essa forma bizarra de “avivamento” chega a
excessos incríveis, com pessoas emitindo sonoras gargalhadas, rolando no chão,
latindo, rosnando e uivando como animais ou imitando bêbados cambaleantes.
[101]
Todas essas práticas chocantes são atribuídas ao poder do Espírito Santo em
atuação notável sobre o seu povo.
Será, porém, que essas manifestações tresloucadas são mesmo evidência
da ação do Espírito na vida de alguém? Será que o Espírito que moveu os
profetas no Antigo Testamento (1Pe 1.11), atuou na vida e no ministério de João
Batista (Lc 1.13-15), ungiu o Messias prometido (Lc 4.16-19), capacitou a igreja
para o testemunho do evangelho (At 1.8) e inspirou os escritos da Bíblia (2Pe
1.20-21) é o mesmo espírito que faz pessoas ficarem latindo de quatro no chão
da igreja ou rolando freneticamente entre os bancos da congregação?
É óbvio que não. Na verdade, no Novo Testamento, as pessoas
dominadas pelo Espírito Santo faziam uma só coisa: testemunhavam
ousadamente acerca da sua fé por meio da pregação e do viver piedoso (At 1.8;
4.8-13,31; 6.3; 11.22-24). Assim, os atos de histeria que se veem em muitas
igrejas hoje em dia não refletem nada do verdadeiro avivamento espiritual.
Outro equívoco comum é considerar avivado qualquer movimento que
Deus use para promover conversões. Todo crente deve lembrar que ser usado por
Deus não é prova de vigor espiritual, uma vez que Deus usa quem quer, até
mesmo os piores incrédulos!
De fato, a Bíblia mostra que o diabo foi usado por Deus na vida de Jó e
de Paulo a fim de que esses homens conhecessem melhor o Senhor e sua graça
(Jó 42.5; 2Co 12.7-9). Demônios foram usados pelo Senhor para que os planos
dele se realizassem (1Sm 16.14; 1Rs 22.20-23). Pessoas e até nações incrédulas
foram usadas por Deus no cumprimento de seus propósitos (Is 10.5,6; At
4.27,28).
Também na história da igreja cristã é possível ver Deus usando
instituições religiosas terrivelmente corrompidas para promover a conversão de
seus eleitos. Lutero e os demais reformadores de primeira geração são exemplos
de conversões ocorridas dentro da Igreja Católica Romana, num tempo em que
essa igreja era um verdadeiro covil de malfeitores.
Não há, portanto, porque considerar avivado um movimento
simplesmente porque é usado por Deus na salvação dos perdidos. Tampouco
deve o crente estranhar quando o Senhor usa igrejas falsas ou mesmo as mais
horríveis seitas pagãs para cumprir seus desígnios salvadores. Além do mais, é
necessário destacar que o verdadeiro crente, quando convertido em contextos
assim corrompidos, logo percebe, pelo Espírito Santo que nele habita (1Jo 2.20-
21,27), que ali não é seu lugar e depressa foge para dentro dos muros de uma
igreja que prega a verdade.
Também bastante comum na atualidade é o pensamento errado de que a
igreja avivada tem um crescimento estrondoso. Ainda que muitas vezes Deus
abençoe a igreja viva com crescimento numérico, o aumento de membros de
uma comunidade evangélica não é necessariamente prova de que se trata de um
movimento cheio de vigor espiritual.
Na verdade, Jesus nunca disse que o evangelho e a sã doutrina teriam
grande aceitação neste mundo. Antes, ele falou que a pregação da verdadeira fé
atrairia um número reduzido de pessoas (Mt 7.13-14; 22.14; Lc 12.32; 13.22-28)
e em seu ministério provou quanto isso é verdade (Jo 6.66). Além do mais, disse
que o que teria grande aceitação seria a mentira, e o que se multiplicaria seria a
iniquidade. Já o amor, procedente de corações transformados, esse se esfriaria
em quase todos (Mt 24.11-13).
Assim como Jesus, Paulo e João também afirmaram que a doutrina
verdadeira teria poucos seguidores e que as fábulas teriam imenso sucesso entre
os homens (2Tm 4.1-4; Ap 3.4), o que faz crer que o rápido e descontrolado
crescimento numérico de uma igreja é prova, muitas vezes, de que seus líderes
não pregam a sã doutrina.
Com efeito, os crentes não podem esquecer o fato de que “onde estiver o
cadáver, aí também se ajuntarão abutres” aos montes, saltando histéricos sobre a
carne pútrida da pregação mentirosa (Mt 24.28).
Todas essas noções distorcidas acerca do que é uma igreja avivada
devem, portanto, ser rejeitadas e substituídas por um conceito fundamentado nas
Escrituras e não nas invenções de falsos mestres. Ora, à luz da Bíblia, uma
possível definição de igreja avivada seria a seguinte: aquela cujos membros são
doutrinariamente maduros, têm uma vida reta de santidade, se dedicam ao
serviço a Cristo e demonstram alegria por sua salvação numa adoração
vibrante e numa comunhão dinâmica e amorosa. Qualquer grupo que se diga
avivado e não se encaixe de forma alguma nessa definição é orgulhoso, engana-
se a si mesmo e, com suas desordens e desatinos, mancha o bom nome da igreja
de Deus diante dos homens.
Era precisamente isso o que acontecia na igreja de Corinto. Ali os cultos
eram marcados pelo uso errado do dom de línguas (que na época ainda existia) e
por grande confusão (1Co 11.20-21; 14.19,23). Apesar disso, aqueles crentes se
consideravam a nata do cristianismo e andavam cheios de si (1Co 5.2). O
apóstolo, porém, lhes escreveu dizendo que, na verdade, eles eram imaturos,
carnais (1Co 3.1-2), tolerantes com o pecado que reinava em seu meio (1Co 5.1)
e desunidos (1Co 1.10-13; 6.7; 11.18). Paulo os enxergava como pessoas
carentes até de noções básicas de decência e ordem, chegando a ter de lhes
ensinar como se comportar durante os cultos (1Co 14.26-40).

O princípio do santuário

Entre os erros mais comuns cometidos no meio cristão está também o


princípio do santuário. Segundo esse princípio, o edifício que a igreja usa para
realizar seus cultos e reuniões é um templo, ou seja, uma espécie de lugar
sagrado em que habita a divindade, um recinto em que o piso, as paredes e os
móveis que o guarnecem são revestidos de santidade especial que jamais deve
ser maculada.
Que esse princípio está errado é evidente, em primeiro lugar, porque o
cristianismo é uma religião sem templos. Desde os seus primórdios, a igreja
cristã nunca foi obrigada por qualquer disposição divina a ter um lugar santo
onde seus membros devessem se reunir. Se os cristãos de Jerusalém se reuniam
no templo (At 2.46), é preciso lembrar que aquela magnífica construção feita por
Herodes[102] pertencia ao judaísmo, não ao cristianismo. Além disso, não se deve
esquecer que os crentes de Jerusalém se reuniam nos imensos pátios e pórticos
do templo (ali não existiam auditórios) porque, sendo judeus, mantinham ainda
certos costumes judaicos relativos à prática da oração (At 3.1).
Também é preciso frisar que, como todos em Jerusalém naqueles dias, os
cristãos viam os amplos espaços do templo como lugares de convívio social,
muito convenientes para seus encontros e para a pregação do evangelho ao povo
(At 3.11; 4.1; 5.21,25,42).[103] Ainda, porém, que nutrissem esses costumes, a
pregação de Estevão proferida diante do sinédrio mostra que até os crentes
judeus do período neotestamentário sabiam que “o Altíssimo não habita em
casas feitas por homens…” (At 7.48-49).
Além do mais, é sabido que a igreja do Novo Testamento, mesmo em
Jerusalém, se reunia nas casas dos crentes (At 2.2,46; 5.42; 12.12). Esse fato se
torna ainda mais notório quando são observadas as comunidades cristãs
espalhadas pelas diversas cidades distantes de Jerusalém, onde o templo judaico
estava. Todas aquelas comunidades se reuniam nos lares, sem jamais se
preocupar com a edificação de um “santuário” (At 20.20; Rm 16.5; 1Co 16.19;
Cl 4.15; Fm 2).
Aliás, para o cristão da igreja primitiva, a construção de templos era uma
prática tipicamente pagã (At 14.13; 19.27,35; 1Co 8.10). Tanto que, ao que
parece, foi só no limiar do século 3 que o princípio do santuário começou a
integrar o pensamento cristão. Prova disso é que o mais antigo templo cristão já
encontrado é uma casa-igreja em Dura-Europos, que foi construída por volta de
232 e destruída em 258.[104]
A suposta conversão do imperador Constantino, ocorrida por volta do
ano 312, imprimiu o princípio do santuário com força ainda maior na
mentalidade da igreja. Segundo o notável historiador Edward Gibbon, a partir
dessa época esse princípio foi totalmente assimilado pelos cristãos. Com isso, as
ideias pagãs sobre edificações dedicadas aos deuses foram cristianizadas e os
templos de Júpiter e Minerva foram consagrados a Cristo.[105]
Desde então, muitos líderes eclesiásticos passaram a ensinar que as sedes
em que as igrejas locais se reúnem são templos e, com base nisso, inventaram
novos rituais e estranhas restrições que têm ares de piedade, mas não servem
para nada.[106]
Por exemplo: muitas igrejas realizam “cultos de consagração” quando
terminam a construção de um “templo” novo. Essas consagrações, comumente,
abrangem móveis e utensílios como bancos, instrumentos musicais e microfones.
Outras igrejas consideram o púlpito a parte mais sagrada do “santuário” e não
permitem que ninguém sequer pise ali, exceto os pastores e os pregadores (como
os faxineiros fazem para limpar essas áreas?). Outras ainda proíbem que se entre
no “templo” fora do horário dos cultos e censuram quem conversa ali depois de
findas as reuniões.[107]
Além da criação dessas práticas, regras e rituais, o acolhimento do
princípio do santuário também passou a ser usado por líderes inescrupulosos
para manipular as pessoas ignorantes, subjugando-as e, então, tirando proveito
delas.
Isso passou a ser feito por meio da construção de imensos santuários,
dotados de grande majestade arquitetônica. É sabido que esse tipo de
suntuosidade imprime nas pessoas um senso muito forte de pequenez e
insignificância, fazendo-as resignar-se diante da imensidão e do luxo que as
cerca. Ora, esse sentimento de baixeza também remove das pessoas comuns
qualquer disposição crítica, faz crescer nelas uma reverência cega e inibe toda
sua capacidade de perceber erros, abusos, desvios e mentiras propagados dentro
daqueles grandiosos recintos.
De fato, contemplando as colunas gigantes de um opulento e luxuoso
edifício religioso, ao som de uma música solene, esplêndida e inebriante, o
homem simples é tomado de assombro, sente-se esmagado em face de tanta
“glória” e facilmente se curva diante de qualquer coisa que ali veja ou escute.
Além disso, impressionado com toda aquela falsa majestade e percebendo o forte
sentimento de contemplação, arrebatamento e espanto que o invade, esse homem
tende a interpretar sua tocante experiência como uma prova de que Deus de fato
está naquele lugar e, afinal, duplamente enganado, é levado pelos líderes desses
“templos” a satisfazer todas as suas vontades.
Como se sabe, esse expediente tão eficaz na manipulação da gente
ignorante é muito antigo e comum, sendo usado com bastante habilidade pela
igreja católica (basta observar a opulência de suas basílicas), por seitas como o
mormonismo e por várias igrejas que se dizem evangélicas.
Tudo isso jamais teria espaço entre os crentes de hoje se os verdadeiros
ministros da Palavra cultivassem uma visão melhor elaborada acerca do que a
Bíblia diz sobre santuários, em especial o templo usado na época do Antigo
Testamento. Ora, mesmo um estudo superficial desse assunto revelará que sua
análise deve envolver dois aspectos: o interno e o externo.
Em seu aspecto externo, o ensino bíblico sobre o templo judaico aponta
para as disposições dadas por Deus sobre o local em que devia ser construído o
edifício (Dt 12.4-14), suas dimensões, a maneira que seus móveis e utensílios
deviam ser dispostos, os detalhes acerca das práticas a ser realizadas em suas
dependências e as normas gerais sobre sua utilização (Êx 25-30).
Já o aspecto interno do ensino sobre o templo realça os santos princípios
que cada um dos fatores externos visava a transmitir. É o autor de Hebreus quem
ensina claramente que o templo judaico, com suas formas e utensílios, era uma
representação de verdades e princípios eternos (Hb 9.1-10). Ora, é sabido que
esses princípios são imutáveis e permanentes, enquanto as regulamentações de
natureza exterior são mutáveis e passageiras.
A efemeridade do que é meramente exterior no tocante ao templo pode
ser comprovada pelo próprio testemunho histórico. O templo de Jerusalém foi
destruído pelo general Tito no ano 70 d.C. e jamais foi reconstruído. Aliás, o
próprio Senhor predisse essa destruição quando seus discípulos se revelaram
admirados com as imensas colunas do templo de Herodes (Mt 24.1-2). Diga-se
de passagem que, nessa ocasião, o Mestre mostrou que o entusiasmo com
monumentos religiosos de pedra, tão comum ainda hoje, é vão.
Além disso, mostrando a importância passageira do templo em seu
aspecto físico, Jesus disse em outra ocasião, quando conversava com a mulher
samaritana, que a época de adorar a Deus levando em conta lugares físicos
chegara ao fim (Jo 4.19-24).
O que importa, portanto, para a igreja de Deus é o “aspecto interno” do
ensino sobre o templo. O que significavam todas as disposições exteriores
ligadas ao santuário? Para quais verdades apontavam aquelas prescrições? Como
a igreja pode observar e viver essas verdades hoje, num tempo em que santuários
de pedra não têm mais valor algum?
Em resposta a isso tudo, é preciso destacar primeiramente que o ensino
bíblico sobre o templo indica a necessidade que o homem tem de um mediador
para ter acesso a Deus. No templo, o “lugar santíssimo” ficava separado do
“lugar santo” por um véu que só o sumo sacerdote transpunha uma vez por ano,
a fim de oferecer sacrifícios por seus próprios pecados e pelos do povo (Hb 9.2-
4,6-8).
Isso significava que o acesso a Deus permanecia fechado (Hb 9.8),
aguardando um mediador perfeito, por meio de quem o pecador pudesse se
achegar ao Pai. Como se sabe, o mencionado mediador é o Senhor Jesus Cristo
(1Tm 2.5-6; Hb 9.11-12,15; 12.24). Foi, talvez, por esse motivo que, quando ele
morreu, o véu do templo se rasgou de alto a baixo (Mt 27.51). Isso
provavelmente mostrou, entre outras coisas, que o caminho do homem para
Deus acabara de ser aberto.[108]
A implicação prática desse fato é que o cristão pode agora se aproximar
de Deus com confiança (Hb 10.19-22) e junto dele desfrutar de boa comunhão,
misericórdia, graça e auxílio (Hb 4.16), sem precisar, por exemplo, da ajuda de
um sacerdote a quem deva se confessar.
O fato de o véu ter-se rasgado também mostra que a necessidade do
templo como veículo de acesso a Deus desapareceu. Isso significa que construir
um templo hoje equivale a afirmar que a obra de Cristo não foi suficiente para
abrir o caminho do trono da graça para o pecador, necessitando ele ainda de
lugares sagrados e rituais especiais para se achegar ao Senhor e obter o seu favor
(Hb 9.8).
Em segundo lugar, o estudo das verdades que subjazem a figura do
templo mostra que a ira de Deus suscitada pelo pecado humano só pode ser
aplacada por meio de sangue (Hb 9.22). A justa indignação do Senhor contra
toda iniquidade exige propiciação, e esta só pode ser feita com a morte. A
existência do altar no templo, bem como todos os rituais de sacrifício pelo
pecado ali realizados, aponta para essa realidade (Lv 16).
Isso tudo explica a necessidade da morte de Cristo, destacando sua
importância singular, uma vez que o Novo Testamento ensina que, por sua
morte, Cristo fez propiciação pelos pecados (Rm 3.25; 1Jo 2.2; 4.10), desviando
do crente a ira de Deus (Rm 5.1,9; 8.1) ao lhe oferecer um sacrifício perfeito e
definitivo, suprindo assim uma necessidade que os sacrifícios realizados no
templo judaico não podiam suprir (Hb 9.11-12; 10.11-14).
Nesse aspecto em particular, a morte de Cristo mostra ainda quão
desnecessário o templo se tornou, pois sendo ali o local em que os holocaustos
eram feitos, sua importância desapareceu tão logo o Senhor ofereceu a si mesmo
como sacrifício final e completo pelos pecados, feito uma vez por todas (Hb
7.26-27).
O caráter marcantemente sangrento dos rituais realizados no templo
também revela o quanto Deus é santo e não pode suportar a iniquidade (Hc
1.13).
Assimilando essas verdades ensinadas simbolicamente pelo sistema
sacrificial do Antigo Testamento, o cristão entenderá melhor o sentido da cruz e
também verá com maior nitidez o quanto Deus odeia o pecado (Hb 10.26-31), já
que este só pode ser punido com a morte (Ez 18.4; Rm 6.23) e, considerando
essas coisas, tentará viver uma vida grata e reta (Hb 12.28-29).
Outra verdade que deriva da análise do templo do Antigo Testamento
advém do seu papel na centralização da religião israelita. O estudo do templo
mostra que Deus se preocupou muito em criar um núcleo central para o culto
verdadeiro. Com efeito, o Senhor proibiu que diversos templos fossem
construídos em Canaã. Sua ordem era que somente um fosse edificado no lugar
que ele próprio escolhesse (Dt 12.4-14). Na verdade, construir um santuário em
outro local equivaleria a criar uma nova religião, sujeita a outro deus (1Rs 12.26-
33).
Evidentemente, a centralização do culto determinada pelo Senhor tinha
por propósito preservar a unidade nacional e evitar que as doze tribos de Israel
espalhadas pela Palestina, em contato com as diferentes formas cananitas de
culto pagão, dessem origem a alguma espécie de sincretismo religioso,
comprometendo com isso a qualidade moral e espiritual de toda a nação que,
então, sofreria fatalmente as terríveis consequências da quebra da aliança (Dt
28.15-68).
Para evitar, ou pelo menos retardar tudo isso, a lei de Deus determinava
que o templo fosse um só, sendo instalado no local que Deus escolhesse (Dt
14.23; 15.20; 16.2; 17.8), ao que Josué obedeceu e instalou o tabernáculo em
Siló (Js 18.1), onde permaneceu por cerca de trezentos anos, até os dias de
Samuel (1Sm 1.3).
Posteriormente, nos dias de Davi, um novo local para o templo foi
escolhido pelo Senhor na cidade de Jerusalém (1Cr 21.18 – 22.1; 2Cr 6.6). Nesse
lugar, Salomão construiu um magnífico santuário (2Cr 3.1). Depois disso,
nenhum outro local foi escolhido por Deus para a edificação de sua casa. Os
templos edificados pelos judeus depois do exílio babilônico[109] foram todos
construídos no mesmo lugar que o Senhor indicara a Davi.
De todo esse cuidado de Deus em exigir a manutenção de um núcleo
central e singular para a adoração, depreende-se que ele quer que o culto ao seu
nome seja sempre livre de contaminações. O sincretismo religioso e o tão
pregado ecumenismo são abomináveis aos olhos dele, pois implicam a mistura
de atos legítimos de culto com práticas e crenças supersticiosas, próprias de
religiões demoníacas.
Fuja, portanto, a igreja cristã de qualquer tipo de associação com o
romanismo, o islamismo, o hinduísmo[110] e com as seitas que parecem cristãs e
não são.[111] Que esse zelo ocupe mais a mente dos pastores de Cristo do que o
vão cuidado de consagrar paredes de tijolo e móveis de madeira.
Do estudo do templo também é possível auferir o princípio de que o culto
a Deus deve ser regido por determinações que emanam da sua vontade soberana
(Hb 8.5). Quando alguém observa as inúmeras regras divinas que regiam os atos
cultuais dentro do templo no Antigo Testamento, conclui facilmente que é falsa a
ideia de que a adoração ao Senhor pode ser feita da maneira que o adorador bem
entende.[112]
A liberdade concedida por Deus, ao contrário do que muitos pensam, não
é liberdade sem fronteiras (Gl 5.13; 1Pe 2.16). Os interessados nesse tipo de
liberdade devem renunciar à condição de seres humanos e viver como animais a
dar vazão a todos os impulsos de seus instintos naturais. Mas façam isso nos
campos e florestas, não durante a adoração ao verdadeiro Deus. Pois o culto
cristão não deve ter espaço para baderneiros, mas sim se desenvolver dentro dos
limites da decência, da ordem, da reverência, do temor e de tudo que é aceitável
(1Co 14.40; Hb 12.28).
É também estudando o ensino bíblico sobre o templo judaico que o
crente descobre princípios eternos acerca da contribuição financeira para a obra
de Deus. Sabe-se, por exemplo, que, no Antigo Testamento, o dízimo devia ser
levado ao templo (Ml 3.10). Ora, essa determinação tinha por objetivo proteger o
princípio de que os bens materiais devem ser usados para honrar a Deus, sendo
aplicados em seu serviço (Pv 3.9).
Portanto, ainda que, pelo fato de não haver mais o templo, seja
impossível hoje cumprir à risca o preceito de Malaquias 3.10, permanece
intocável o princípio acima exposto. Assim, todo cristão que quer agir de
maneira responsável deve cooperar financeiramente para que a obra de Deus seja
mantida e levada adiante neste mundo (At 4.34-37; 11.29-30).
Eis, assim, alguns exemplos do aspecto interno do ensino bíblico sobre o
templo. O problema de muitas igrejas, conforme visto, é o apego às normas
acerca do santuário em sua face externa, ignorando que a época do santuário de
pedras ficou para trás.
Isso tem gerado preocupações e enormes gastos com a construção de
suntuosos edifícios, tem levado pessoas a gastar tempo precioso com o
planejamento de cultos solenes de consagração de santuários e seus utensílios e
tem feito pastores se desgastarem com a criação e manutenção de regras acerca
do que pode ou não ser feito na “nave” dos seus templos.
Todas essas enormes parcelas de tempo, trabalho e dinheiro poderiam ser
melhor direcionadas se uma compreensão maior das Escrituras reinasse no meio
evangélico. Com efeito, quantos esforços deixariam de ser empregados em vão
se todos os crentes atentassem para o ensino de Jesus à samaritana, quando disse
que o período de adoração a Deus em templos ou lugares sagrados havia
chegado ao fim (Jo 4.19-24)! E que dizer dos ensinos de Paulo, de Pedro e do
autor de Hebreus que, unânimes, insistem em afirmar que o templo cristão são os
próprios crentes (1Co 3.16; 6.19; Hb 3.6; 1Pe 2.5)?
Quem quiser, pois, consagrar um templo a Deus, consagre-se a si mesmo;
e quem quiser ter reverência dentro de um templo, tenha reverência em si
mesmo. Da mesma forma, se alguém quiser glorificar a Deus num santuário,
glorifique-o em seu próprio corpo, com cada membro que o compõe; e se algum
cristão quiser adorar o Pai num lugar sagrado, adore-o dentro de si mesmo, no
templo de sua alma, e de todo o coração, pois é esse o tipo de adorador que o Pai
procura (Jo 4.23-24).
Ora, o que é numeroso e patente não exige busca cuidadosa. Só o que é
raro e difícil de ver requer a diligência da procura. Que todo crente seja, pois,
parte da classe quase extinta de homens e mulheres que se preocupam em adorar
a Deus no verdadeiro santuário do coração.
Duas Perguntas

1) É possível que ocorram conversões em igrejas cheias de desvios?


É claro que sim. A graça salvadora de Deus não é impedida pelos desatinos dos
homens. Já foi dito neste capítulo que os reformadores do século 16 se
converteram dentro da Igreja Católica, precisamente numa época em que essa
igreja era uma das instituições mais corruptas do mundo. Casos assim são
possíveis porque, mesmo participando de igrejas corrompidas, as pessoas têm
ali algum contato com a Palavra de Deus ou ouvem alguma porção da verdade
em meio a todas as heresias que são propagadas nessas comunidades. Isso,
muitas vezes, desperta a pessoa para a fé verdadeira e a conversão então
ocorre. Via de regra, porém, os convertidos não permanecem nessas igrejas.
Guiados pelo Espírito Santo que neles passa a habitar, logo percebem que há
algo errado na comunidade de que fazem parte e passam a buscar uma igreja
saudável doutrinariamente.

2) Se não há templos cristãos, é certo vender mercadorias nas dependências da


igreja?
Essa pergunta é baseada no texto de Mateus 21.12-13, o qual mostra Jesus
expulsando e censurando os cambistas e vendedores que faziam comércio no
templo de Jerusalém, um lugar sagrado. Conforme visto, porém, a era do templo
passou. Por isso, não há nenhum problema em ter, por exemplo, uma cantina ou
uma livraria funcionando na igreja. O que é bom evitar, porém, é o comércio
individual e habitual em que alguém monta sua “banquinha” de produtos num
canto da igreja e começa oferecê-los aos irmãos. Isso fatalmente gera
transtornos, perturbações e constrangimentos. Já vendas mediante catálogos e
encomendas, a princípio, não têm problema, desde que o “vendedor” não viva a
importunar os crentes, tentando transformar o rol de membros numa carteira de
clientes.
Capítulo 10 – IGREJAS PÓS-MODERNAS
A geração que nasceu nos últimos quarenta anos não teve o privilégio de
conhecer os tempos em que o meio evangélico era dominado por igrejas
decentes e ordeiras. Quatro décadas atrás, se algum crente fosse visitar uma
igreja evangélica qualquer, dificilmente se depararia com todas as bizarrices que
hoje imperam nas comunidades por aí afora.
De fato, mesmo nas igrejas pentecostais que havia, não era possível notar
tantas expressões de frenesi e desequilíbrio como agora. Além disso, essas
igrejas eram poucas e pequenas. O mais comum era a existência de comunidades
em que as pessoas se comportavam de maneira normal e prestavam cultos
caracterizados em sua maioria por hinos clássicos, leituras, apresentações corais
e sermões bíblicos. É claro que nessas igrejas existiam problemas e muitas vezes
se ouvia falar de escândalos sexuais ou financeiros ocorridos aqui ou acolá.
Contudo, o que predominava era um cristianismo ordeiro, distinto, mais solene e
honroso.
Esse modelo ficou gravado na mente de muitas pessoas que viveram
naqueles tempos e a lembrança dele as faz procurar igrejas atuais que o
reproduzam. Porém, os que nasceram durante ou após as grandes mudanças
avivalistas dos últimos quarenta anos, jamais conheceram o antigo e correto
padrão.
Por isso, se antes os crentes em geral estranhavam o menor excesso
quando visitavam uma igreja, hoje eles se sentem deslocados quando entram nas
raras igrejas normais. Como têm somente um modelo desfigurado em mente,
anelam encontrá-lo em qualquer lugar e se decepcionam quando participam de
um culto nos moldes que deve ser, ou seja, com decência, ordem, equilíbrio,
ensino e adoração reverente.
Essa falta de bons referenciais coloca os critérios dos crentes na busca de
uma igreja num nível muito baixo. Sendo os paradigmas modernos tão
deformados, qualquer coisa que se ofereça como padrão eclesiástico novo é
aceito de pronto. Para crentes que dizem sim aos mais horríveis monstros
litúrgicos, que mal haveria em aceitar um bichinho deformado qualquer? Quem
dorme com lobisomens não se importa em tomar café com um duende!
Tem sido em parte por causa da ausência de referenciais na mente das
pessoas e também devido à presente falta de boas opções eclesiásticas que as
igrejas pós-modernas e emergentes têm aflorado tanto. A maioria dos crentes da
presente geração nunca viu uma igreja séria para que tenha um perfil definido
que possa anelar e buscar. Também está cansado da futilidade do único modelo
que conhece. Então, passa a se envolver com novidades para, muito cedo,
perceber que a comunidade a que se filiou é simpática e dinâmica, mas está bem
longe de ser uma igreja ajustada ao que Deus quer — uma igreja capaz de suprir
suas necessidades espirituais.
Entre essas novidades de hoje existem as igrejas pós-modernas cujas
marcas e modelos expõem-se a seguir.

Marcas gerais

Pós-modernidade é a expressão usada para descrever os últimos trinta ou


quarenta anos, fase em que o homem ocidental desistiu da busca racional da
verdade, afirmando que ela é múltipla e subjetiva. Segundo a visão pós-moderna,
cada indivíduo tem a sua verdade particular, sendo todas as concepções
existentes igualmente válidas e dignas de respeito.
A visão pós-moderna invadiu a igreja de maneira que até mesmo as
denominações históricas foram contaminadas, deixando de lado a firme defesa
da verdade única do evangelho e dando espaço para uma “mente mais aberta”,
contrária às concepções cristãs sólidas, agora taxadas de “fundamentalistas” ou
“radicais”.
Basicamente, as igrejas pós-modernas apresentam quatro traços
distintivos: hermenêutica subjetiva, discurso conciliador, afrouxamento
ético/moral e ênfase excessiva na liberdade humana.
A hermenêutica subjetiva (ou relativista) é a forma de análise bíblica que
não se preocupa com a busca de um significado fixo e único no texto sagrado.
Os pregadores que atuam nessas igrejas não se empenham na tentativa de
descobrir a intenção autoral quando trabalham sobre uma determinada porção
das Escrituras. Antes, crendo que a verdade é múltipla, atribuem ao texto
sagrado o sentido que acham melhor ou mais conveniente. A pregação pós-
moderna é, assim, mais uma exposição de percepções e insights pessoais do
pregador do que uma apresentação objetiva do que a Bíblia realmente diz, com
suas inevitáveis implicações e aplicações para a vida das pessoas.
Essa leitura subjetiva da Bíblia não fica, contudo, limitada ao púlpito das
igrejas pós-modernas. Seus membros também a praticam. Por isso, é comum
ouvir indivíduos que pertencem a essas comunidades dizendo: “Essa passagem
tem várias interpretações” ou, quando são confrontados à luz da Bíblia por causa
de algum erro que cometem, se evadir afirmando: “Desculpe, essa é a sua
interpretação dessa passagem. Eu entendo esse texto de forma diferente.”
Conforme se vê, a hermenêutica adotada nas igrejas pós-modernas
esvazia a Bíblia de sua autoridade. Atribuindo ao texto sagrado um universo
infinito de sentidos, a Bíblia se torna para essa nova classe de cristãos um livro
inútil para ensinar, repreender, corrigir e educar na justiça (2Tm 3.16). Além
disso, sob a ótica de que a Bíblia tem múltiplos sentidos, todos igualmente
aceitáveis, qualquer crente sincero que tentar “impor” a compreensão natural do
texto a outro membro da igreja, tentando admoestá-lo como irmão, é
imediatamente visto como orgulhoso, como alguém que pensa que só a visão
dele é a certa, como pessoa que não tem o fruto do Espírito, pois não ama até o
ponto de respeitar o ponto de vista do outro.
Assim, quem quiser obter a simpatia dos membros das igrejas pós-
modernas deve ser “politicamente correto”, jamais se manifestando contra o
modo muitas vezes absurdo como os outros compreendem as questões tratadas
na Palavra de Deus.
Isso conduz ao segundo traço das igrejas pós-modernas: o discurso
conciliador. Não havendo uma verdade fixa, ou somente um sentido nos escritos
bíblicos, qualquer forma de religião ou de espiritualidade deve ser considerada
válida, segundo o pensamento dos crentes pós-modernos. Portanto, o caráter
exclusivo do cristianismo, a forma como sempre se apresentou na história como
o singular detentor da única mensagem que pode salvar o homem (Jo 14.6; At
4.12; Ef 4.4-5; 1Tm 2.5), é totalmente desprezado no discurso evangélico pós-
moderno.
Como resultado, as igrejas que adotaram essas noções jamais denunciam
os erros doutrinários propostos pelo espiritismo, pelas religiões orientais ou
pelas seitas pseudocristãs. Na verdade, é mais fácil (e mais comum!) atacar
crentes convictos, acusando-os de terem visão estreita e radical, do que reprovar
os falsos credos.
Aqui é importante fazer uma ressalva. Não é que os cristãos pós-
modernos concordam com as doutrinas espíritas ou com os ensinos das seitas ou
mesmo com as lições das religiões orientais. O que ocorre é que, para eles,
concordar ou não com essas doutrinas (ou com qualquer outra) é irrelevante.
Segundo os pastores e membros dessas igrejas, o que deve ser levado em conta
na avaliação dos diferentes credos é que todos supostamente perseguem os ideais
supremos de construir uma sociedade com menos sofrimento e de oferecer paz e
consolo ao triste coração humano. De acordo com o discurso cristão pós-
moderno, só isso é relevante, sendo precisamente nesse ponto que qualquer
forma de espiritualidade ou de religiosidade se iguala ao cristianismo, tanto em
importância como em validade.
O fato de as religiões em geral terem cosmovisões ou sistemas
doutrinários diferentes do que é ensinado na Bíblia é, pois, assunto secundário
para a nova mentalidade cristã, um detalhe sem importância, já que, não havendo
verdade fixa, o essencial é a sinceridade de cada um na adoção de suas crenças, a
busca (comum a todas elas) por um mundo melhor e a tolerância com quem
pensa diferente.
Por isso, o pensamento cristão pós-moderno é tão conciliador. Nele não
há espaço (e nem motivo) para o discurso bíblico que condena o erro, se opõe ao
desvio e denuncia a mentira. O homem pós-moderno não entende que agir assim
faz parte do dever cristão (Mt 22.29; 2Co 10.5; Gl 3.1-3; 2Tm 2.25-26). Para ele,
o crente zeloso que exorta e corrige é soberbo e sem amor.[113]
O terceiro traço das igrejas pós-modernas, o afrouxamento ético/moral, é
consequência lógica tanto da hermenêutica subjetiva como do discurso
conciliador. Com efeito, atribuindo à Bíblia uma variedade ilimitada de sentidos,
o cristão pós-moderno, em situações que exigem a tomada de decisões no campo
moral, fatalmente escolherá a interpretação mais cômoda, que melhor se ajuste
aos seus interesses pessoais. Ademais, adotando um discurso conciliador
embasado na crença de que a verdade não é única, o novo cristão aplicará essa
forma de pensar também às questões éticas, dizendo que não se podem condenar
as opções de comportamento de ninguém.
Unindo isso tudo, o resultado é previsível e óbvio: as igrejas pós-
modernas, invariavelmente, revelam posicionamentos muito frouxos em relação
a temas como namoro misto, sexo fora do casamento, divórcio,
homossexualismo, envolvimento do cristão com o mundo e uso de álcool,
cigarro ou mesmo drogas. Em decorrência dessa frouxidão, os membros das
igrejas pós-modernas que adotam posturas claramente antibíblicas acerca dos
temas mencionados, ou de outros assuntos ligados à ética cristã, não recebem
qualquer correção. Na verdade, nada diferente poderia ser esperado, pois, como
já dito, na visão pós-moderna, dizer o que é errado é errado!
Cabe aqui uma observação importante: o fato de as igrejas pós-modernas
apresentarem tão nítida frouxidão ético/moral talvez seja a causa do seu
espantoso crescimento. Multidões lotam seus salões não na busca de santidade,
conhecimento e correção, mas de qualquer discurso que gere conforto e bem-
estar, longe do incômodo produzido pela pregação da pura Palavra de Deus,
capaz de ferir as consciências e infundir arrependimento. É que, conforme disse
o profeta Jeremias, “a palavra do Senhor é para eles desprezível, não encontram
nela motivo de prazer” (Jr 6.10). Além disso, sabe-se que é próprio da natureza
humana corrupta cercar-se de mestres que não se opõem às suas paixões (2Tm
4.3).
O último traço do evangelicalismo pós-moderno é a ênfase excessiva
dada à liberdade humana. Nesse modelo, o crente não é apenas livre para
interpretar a Bíblia como quiser e, consequentemente, adotar o modelo ético que
quiser. Sua liberdade vai além. Mais do que ser dono de suas verdades e dos seus
caminhos, o cristão pós-moderno considera-se também dono do seu destino!
Ocorre o seguinte: a mente pós-moderna tem dificuldades para aceitar a
presciência de Deus ensinada na Bíblia (Is 46.8-10; Jo 21.18-19), pois, no seu
entender, se Deus conhece de antemão o amanhã, então o futuro é fixo e o
homem, no fim das contas, não é livre. Esse dilema é real para qualquer cristão,
estando sua solução escondida na mente insondável de Deus, verdade que deve
ser suficiente para aquietar qualquer questionamento (Rm 9.19-20).
Diante dessa dificuldade, porém, o crente pós-moderno não passa
apertos. No afã de resguardar a liberdade do ser humano, resolve tudo dizendo
simplesmente que Deus não conhece o futuro, estando o porvir aberto à
influência do homem que pode escrevê-lo a partir do livre exercício de sua
vontade. Essa concepção de Deus e suas relações com o mundo é uma das
características do modelo teológico denominado Teísmo Aberto.
Percebe-se, assim, que a hipervalorização da vontade livre do indivíduo é
a mola mestra do pensamento cristão pós-moderno. Conforme visto, a partir de
suas concepções, o crente é livre para atribuir às Escrituras o sentido que quiser;
é livre para construir a ética que quiser e é livre para dirigir a história como
quiser. Trata-se do império do indivíduo cuja abrangência chega ao ponto de
destronar o próprio Deus a fim de preservar a supremacia da liberdade humana.
No fim das contas, o impacto mais desastroso dessa mentalidade sobre a
Sã Doutrina é a criação de um deus impotente e ignorante, que lamenta as
desventuras da raça humana, mas que pouco pode fazer, já que a administração
da história depende também do homem e qualquer interferência divina soberana
implicaria imposição de vontade, tornando Deus culpado por não agir de modo
“politicamente correto”.
Não restam dúvidas, pois, de que o deus do cristianismo pós-moderno
não é o Deus das Escrituras. Trata-se de outro deus, com tremendas limitações. É
lamentável, mas o que se deduz da análise desses conceitos é que criou, pois, o
Homem um deus à sua própria imagem, à imagem do Homem o criou...

Igrejas emergentes

As quatro marcas das igrejas pós-modernas apresentadas aqui não


abrangem de forma alguma a totalidade das características dessas igrejas. Há
outras manifestações do pensamento pós-moderno no meio evangélico e uma das
que mais têm chamado a atenção nos últimos anos é o movimento denominado
“igreja emergente”.
É muito difícil encerrar esse movimento numa definição, pois as diversas
igrejas associadas a ele têm diferentes ênfases e maneiras de expressão, todas se
apresentando como comunidades cristãs emergentes. Porém, um conceito
genérico talvez seja possível nos seguintes termos: igrejas emergentes são igrejas
pós-modernas engajadas na busca de formas práticas de funcionamento que
sejam aceitáveis e atraentes para os homens de hoje.
A pergunta crucial, pois, do “movimento igreja emergente” é: como a
igreja pode se tornar relevante e atraente para a sociedade atual pós-moderna?
Sendo certo que as respostas a essa questão variam muito, o conceito de igreja
emergente tem abrangido diferentes modelos eclesiásticos que vão desde o total
abandono de qualquer padrão tradicional ou formal de culto até a adoção de
práticas e símbolos intensamente místicos e rigidamente litúrgicos.
No tocante à sua apresentação e formato, podem-se dividir as igrejas
emergentes em quatro classes distintas:

1. Conformistas. As igrejas emergentes conformistas entendem que o


homem pós-moderno busca manifestações mais livres de religiosidade,
sentindo aversão por qualquer expressão formal ou tradicional de
adoração, posto que liturgias assim, segundo entendem, refletem uma
mentalidade estreita e rígida demais. Por isso, os cultos e atividades
das igrejas emergentes conformistas buscam reproduzir formas
seculares de entretenimento, especialmente shows musicais, danças e
“baladas” nos quais recursos visuais e eletrônicos de ponta são
empregados (globos espelhados, gelo seco, canhões de luz, etc.), além
de desfiles de moda, apresentações de capoeira e formações de blocos
de carnaval. Os cristãos emergentes conformistas entendem que
nenhum descrente permanecerá numa igreja se, ao chegar, encontrar os
irmãos em oração ao som suave do prelúdio. Daí a necessidade de
medidas práticas que sejam sensíveis às expectativas do incrédulo pós-
moderno. Evidentemente, essa preocupação também se reflete na
pregação. Geralmente, os pastores dessas igrejas evitam falar sobre
pecado, condenação, cruz e arrependimento. Esses assuntos, no seu
entender, espantariam os descrentes da atualidade.

2. Místicas. As igrejas emergentes místicas se opõem frontalmente às


conformistas no que diz respeito ao modo como o culto deve ser.
Segundo seus representantes, o homem pós-moderno está cansado de
espetáculos e shows com efeitos especiais. Essas coisas, dizem, estão à
disposição das pessoas em qualquer lugar e o tempo todo. Por isso, no
tocante à religião, o mundo pós-moderno nutre uma expectativa mais
espiritual, que deve ser acompanhada de símbolos e práticas místicas.
Adotando essa visão, algumas igrejas evangélicas americanas têm
usado cruzes, incenso, velas, colunas e altares de oração em seus
cultos, produzindo um ambiente sombrio semelhante ao das antigas
catedrais católicas.[114] No entender dos líderes dessas igrejas, essas
coisas servem como atrativo para o homem pós-moderno que anseia
por experiências espirituais intensas.

3. Pluripartidárias. Esse modelo de igreja emergente focaliza o fato de


que, para a mente pós-moderna, há muitas verdades sendo todas
igualmente válidas. Transportando esse raciocínio para o
funcionamento da igreja, tais instituições oferecem aos seus
frequentadores uma espécie de self service teológico. Assim, em suas
escolas de ensino doutrinário há classes para calvinistas, para liberais,
para pentecostais e para várias outras vertentes. As igrejas emergentes
pluripartidárias dizem não se identificar exclusivamente com nenhum
desses modelos, recusando qualquer rótulo. Seus líderes entendem que
toda concepção doutrinária é válida e deve ser respeitada. A visão
oposta só serve para criar divisões que atrapalham o crescimento da
igreja e a consecução dos seus objetivos.

4. Ultrainformais. Igrejas emergentes ultrainformais apegam-se à


desconfiança que o homem pós-moderno nutre contra o caráter das
instituições em geral. Seus expoentes ensinam que as igrejas nos
moldes institucionais criam barreiras para o evangelho ao tentar impor
sobre as pessoas a visão de um só indivíduo ou de uma pequena
minoria que, aliás, se beneficia da estrutura formal estabelecida.
Reagindo a isso, as igrejas emergentes ultrainformais recusam tudo
que ameace institucionalizar o grupo. Por isso, em regra, defendem a
realização de cultos nos lares (nunca em supostos templos ou edifícios
religiosos), opõem-se a todo tipo de hierarquia eclesiástica, desprezam
formalidades litúrgicas (o culto busca ser uma celebração livre,
criativa e artística em que todos participam de forma espontânea
usando talentos pessoais como música, poesia, pintura e dança),
evitam filiar-se a qualquer denominação religiosa e recusam-se até
mesmo a criar um rol de membros. Os representantes desses grupos
afirmam que seu modelo é o único verdadeiramente neotestamentário
e recorrem a textos como Atos 2.46-47 para tentar provar o que dizem.

É claro que há igrejas emergentes que, na medida do possível, combinam


características de duas ou mais diferentes classes. Todas, porém, têm algo em
comum: obter sucesso na atração dos descrentes de hoje, propondo formas de
religiosidade que lhes satisfaçam as expectativas, jamais se insurgindo contra os
pressupostos de sua cosmovisão secular.
A crítica bíblica aos modelos de igreja emergente aponta três erros
básicos presentes na raiz de suas propostas. Esses erros são pilares sobre os quais
todo o pensamento emergente acerca do culto é construído. Se tais pilares forem
removidos, o edifício inteiro cairá. Ora, essa demolição é muito fácil. Na
verdade, um leve sopro da verdade é suficiente para fazer esses pilares de isopor
vir abaixo.
O primeiro erro que subjaz o pensamento dos defensores da chamada
igreja emergente é a crença na falácia de que as conversões a Cristo ocorrem
como resultado de táticas e artifícios humanos. Os líderes das igrejas
emergentes, ainda que digam não estar comprometidos com nenhum “rótulo”
doutrinário, na verdade são ferrenhos defensores da teologia arminiana, segundo
a qual o homem tem em si a livre capacidade de “tomar uma decisão por Cristo”.
A partir dessa concepção, o trabalho desses ministros se transforma na
elaboração incessante de estratégias de convencimento. Seus esforços se voltam,
assim, para a criação ou descoberta de técnicas que sejam mais eficazes na
atração do não crente. O pastor da igreja emergente sonha, portanto, em
encontrar métodos que sejam capazes de persuadir o incrédulo a usar seu “livre
arbítrio” de modo certo, recepcionando afinal o cristianismo.
Essas noções, contudo, estão muito longe do ensino bíblico. Para
começar, é preciso lembrar que, segundo o Novo Testamento, o incrédulo é um
cadáver espiritual, insensível às coisas do Senhor e incapaz de desejá-las (Rm
3.10-11). Por isso, a conversão do pecador nunca tem como causa primária a
vontade do homem, mas sim a de Deus (Jo 1.13; 6.65; Tg 1.18). Prosseguindo na
análise bíblica, descobre-se que, sendo o homem tão insensível às coisas
espirituais, somente Deus tem o poder de atraí-lo (Jo 6.44), sendo inútil o uso de
táticas humanas para isso.
Aliás, é bom lembrar que o Senhor atrai o pecador perdido, não por meio
de iscas artificiais, mas pela atuação sobrenatural do Espírito Santo que
convence de forma eficaz a mente entorpecida (Jo 16.8; At 16.14; 1Co 12.3).
Como o Espírito faz isso? Usando estratégias de marketing? Não! Ele usa a
pregação da Palavra, já que Deus determinou que somente por intermédio dela a
salvação fosse operada (Rm 10.17; 1Co 1.21; 1Pe 1.23).
A Bíblia ensina ainda que, dada a condição deplorável do homem, é o
próprio Deus quem, afinal, lhe concede a fé. Na verdade, o texto sagrado ressalta
que ninguém pode crer em Cristo sem que isso lhe seja concedido pelo Pai (Jo
6.65; At 11.18; Rm 8.30; 9.18; Ef 2.8; Hb 12.2).
Assim, à luz das Escrituras, os diversos pregadores pós-modernos que
anelam despertar no incrédulo o desejo por Cristo com atrativos artificiais são
como a criança que tenta acordar o cãozinho morto mostrando-lhe o prato de
ração. A pobre criança, ao agir assim, mostra que não compreendeu as suas
próprias limitações, nem a ineficácia da ração, nem tampouco o estado horrível
em que se encontra o cachorrinho.
O segundo equívoco do pensamento emergente é a crença de que o culto
cristão deve ser planejado tendo como alvo o homem, posicionando-o no centro
de tudo.[115] A Bíblia se insurge contra essa falácia. Em Mateus 4.10, Jesus
aponta o Senhor Deus como o único personagem em torno do qual o culto deve
se desenvolver. Cristo ensina ainda que a verdadeira adoração não é a que se
preocupa com aspectos cultuais exteriores a fim de satisfazer as expectativas das
pessoas (Jo 4.20-21). Segundo ele, a adoração genuína é aquela em que o
homem fixa seu coração exclusivamente em Deus, ansiando cultuá-lo de forma
sincera, num louvor que emana da sua própria alma (Jo 4.23-24). Ora, um
adorador assim não se ocupa de agradar incrédulos ou quem quer que seja. Seu
alvo exclusivo durante o culto é honrar e enaltecer o Senhor.
Ademais, o autor de Hebreus ensina que, enquanto cultua, a alma do
crente deve estar mergulhada em reverência e santo temor (Hb 12.28-29). Isso
significa que a mente do cristão deve se voltar totalmente para Deus durante o
culto, lembrando-se da sua grandeza, santidade e justiça e preocupando-se,
assim, em evitar qualquer coisa que o desonre ou desagrade. Essa e somente essa
deve ser a preocupação do crente enquanto adora.
Por isso, se de um lado o cristão emergente pergunta: “Será que os
irmãos estão gostando do culto? Será que os incrédulos estão entusiasmados?
Será que os visitantes estão satisfeitos e pretendem voltar?”, de outro, o cristão
bíblico faz as seguintes indagações: “Será que o Senhor está se agradando do
que estamos fazendo aqui? Será que a nossa adoração está sendo sincera e
reverente? Será que o que estamos dizendo nos cânticos, nas orações e na
pregação correspondem à mensagem que Deus ordenou que protegêssemos e
proclamássemos?”. Esse segundo conjunto de perguntas reflete quem deve ser o
singular e verdadeiro foco de qualquer gesto cultual.
Intimamente relacionado ao segundo desvio das igrejas emergentes está o
seu terceiro erro. Este consiste em acreditar que a adoração a Deus pode ser
realizada conforme bem entendem os adoradores. Movidos por essa crença, as
igrejas emergentes dão ao culto o formato que acham mais conveniente,
atrelando-lhe práticas estranhas, nascidas a partir das percepções de seus líderes
ou criadas segundo o bel-prazer dos responsáveis pelo planejamento de suas
reuniões.
Esse erro decorre da falta de conhecimento daquilo que, em teologia, é
tecnicamente chamado de Princípio Regulador do Culto, segundo o qual
somente Deus pode determinar o modo como deve ser adorado.[116] Ora, esse
princípio parte da verdade de que Deus revelou na Bíblia como quer que o
adorem, tendo feito isso para evitar que os homens caíssem no erro de prestar-
lhe um culto maculado por práticas nascidas na mente corrompida.
O amparo bíblico para o Princípio Regulador do Culto pode ser visto
tanto no Antigo como no Novo Testamento. Nos tempos da Antiga Aliança,
todas as prescrições fixadas pelo Senhor acerca da forma como deveria ser o
culto no Tabernáculo e, posteriormente, no Templo, deixam claro que somente
Deus detém o direito de definir como deve ser o culto que lhe é devido (Dt
12.13-14). No Novo Testamento, o culto aceitável ao Senhor abrange orações
(At 13.1-3), louvor cantado (Ef 5.19), celebração das ordenanças, comunhão (At
2.42,46), exercício dos dons (1Co 14.26), leitura e exposição das Escrituras
(1Tm 4.13).
Nem sempre um só culto abrangerá todos esses fatores, mas deve-se
reconhecer que é lícito (e necessário) incluí-los na liturgia, sempre primando
pela decência e pela ordem (1Co 14.40). Por outro lado, cerimônias de
homenagem a este ou aquele indivíduo, decisões administrativas, apresentações
de coreografia ou dança, práticas de entretenimento, uso de objetos religiosos,
momentos de trato com demônios e outras invenções devem ser afastadas do
culto público na busca de moldá-lo àquilo que o Senhor requer e não ao que as
pessoas anseiam ver ou fazer.
Os três erros básicos aqui apontados são cometidos pelos diferentes tipos
de igreja emergente alistados anteriormente: as conformistas, as místicas, as
pluripartidárias e as ultrainformais. No entanto, duas palavras ainda precisam ser
ditas sobre o desvio das místicas e das ultrainformais.
Conforme dito, as igrejas emergentes místicas são aquelas que, em suas
reuniões, usam cruzes, velas, incenso, cortinas escuras e vários objetos cultuais,
tudo com o propósito de criar um ambiente lúgubre que, segundo dizem, é capaz
de satisfazer o anelo religioso do homem pós-moderno.
Ainda que aleguem que o uso desses recursos seja bíblico, o fato é que é
simplesmente impossível encontrá-los nos cultos realizados pelas igrejas locais
do Novo Testamento. Aliás, a atmosfera cultual lúgubre presente nos cultos da
Idade Média, atmosfera que essas igrejas pretendem reproduzir, jamais resultou
da análise de textos bíblicos, sendo, na verdade, o desdobramento da corrompida
teologia escolástica que marcou a época e também da pessimista visão de mundo
que permeou a mente dos homens daqueles séculos.
De fato, segundo a teologia escolástica, na missa, o sacrifício de Cristo
acontecia literalmente, sendo a catedral (aliás, construída em forma de cruz), o
lugar sagrado em que esse sangrento holocausto se repetia vez após vez. Daí a
atmosfera melancólica e sombria daqueles imensos edifícios que, como túmulos
medonhos, abrigavam dentro de si o “corpo eucarístico” de Cristo.
Além disso, deve-se considerar que os séculos 11 a 13, período em que se
ergueram as grandes catedrais europeias, o mundo estava imerso num ambiente
geral fúnebre, estando a realidade da morte presente de forma contínua na mente
das pessoas. As guerras, a fome e a miséria decorrentes dessas mesmas guerras,
a queima pública de hereges, as epidemias de peste bubônica e outras doenças,
tudo isso fazia com que o homem medieval tivesse uma visão lutuosa da vida, o
que se manifestava no culto cristão, sempre sombrio e repleto de imagens e
símbolos tenebrosos.
Ora, a realidade evangélica atual não compartilha nada disso. A teologia
protestante (pelo menos “oficialmente”) não adota nada da concepção
escolástica e o contexto histórico-cultural em que as igrejas emergentes se
desenvolvem não tem nada de lúgubre, estando mais voltado para a diversão e o
entretenimento numa intensidade jamais vista em qualquer outra fase da história
humana.
Assim, o ambiente criado pelas igrejas emergentes místicas é apenas um
arremedo da liturgia medieval, uma reprodução teatral grosseira do culto
escolástico, a montagem de um cenário repleto de componentes artificiais que
não traduzem nem o ensino bíblico, nem a teologia evangélica, nem o momento
histórico atual. Ao que parece, trata-se de apenas mais uma estratégia de
marketing religioso destinado a causar impacto em jovens fascinados pela
temática fúnebre ou atraídos por qualquer coisa que tenha coloração mística.
Considere-se agora, especificamente, as igrejas emergentes
ultrainformais. Conforme se viu, os proponentes desse modelo entendem que
qualquer grau de institucionalização deve ser evitado na igreja, a fim de que o
formato neotestamentário seja preservado.
Para entender essas igrejas, é preciso frisar que a mente pós-moderna,
mergulhada no pluralismo relativista, tende a resistir a qualquer forma
institucionalizada de agrupamento humano. Isso porque as instituições, em regra,
nutrem uma forma oficial de liderança, além de normas fixas de funcionamento,
fatores esses que inibem a livre expressão de pensamento e de ação de seus
membros.
É por isso que as igrejas emergentes ultrainformais insistem num tipo de
funcionamento totalmente espontâneo, livre de elementos organizacionais tais
como prédios de educação religiosa, grupos de oficiais eclesiásticos, sequências
litúrgicas, departamentos e quaisquer outros aspectos próprios de uma instituição
formal.
Geralmente, essa proposta é acompanhada pelo argumento de que as
igrejas neotestamentárias não eram unidades institucionalizadas, de modo que
seus membros se reuniam no contexto informal dos lares, livres dos complexos
mecanismos organizacionais de hoje, os quais, segundo entendem, servem
apenas para manter uma minoria intransigente em privilegiados postos de
controle.
A pergunta que a análise crítica dessa proposta levanta é a seguinte: será
mesmo que as igrejas do Novo Testamento não tinham nenhuma marca
institucional? A resposta a essa pergunta, quando construída sobre bases bíblicas,
desfere um terrível golpe contra a visão ultrainformal. Sim, pois desde o evento
de Pentecostes (c. 30 AD) até a composição do Livro de Apocalipse (c. 90 AD),
ou seja, ao longo de um período de, aproximadamente, sessenta anos, a igreja
primitiva desenvolveu uma estrutura de funcionamento que passou de um alto
grau de informalidade para a fixação de um modelo institucional
comparativamente complexo, criado a partir das necessidades que as
circunstâncias foram impondo com o passar do tempo.
Assim, se no ano 30 AD tudo que havia era a liderança dos apóstolos,
dedicados somente à oração e ao ministério da Palavra (At 6.4), naquele mesmo
tempo surgiu um grupo eleito pela comunidade cuja responsabilidade era cuidar
das mesas das viúvas (At 6.1-6). Já a partir daí pode-se ver o germe da
institucionalização, com a prática do voto por parte dos membros (At 6.3,5) e a
criação de um grupo autorizado para a realização de funções distintas (At 6.6).
Em termos de nível de organização, portanto, a igreja de Atos 6 é diferente da
igreja de Atos 2!
E as mudanças continuaram. Ao fim da Primeira Viagem Missionária (c.
47 AD), as igrejas fundadas por Paulo e Barnabé assumiram um formato
diferente daquele inicialmente visto em Jerusalém. Com efeito, nas novas
comunidades, o povo também aparece votando, dessa vez, porém, para escolher
presbíteros (At 14.23).
Logo em seguida, em cerca de 48 AD, a liderança eclesiástica apostólica,
tão ligada ao modelo informal da igreja recém-inaugurada, começou a dar sinais
de declínio. A supremacia da voz do bispo Tiago, pondo fim aos debates do
Concílio de Jerusalém (At 15.1-29), indica o início do fim da primazia dos
apóstolos como chefes absolutos da igreja local. Essa percepção deve ser válida
porque, no Concílio de Jerusalém, estavam presentes Pedro (até então o líder
máximo da comunidade cristã em Jerusalém) e Paulo, ambos apóstolos. No
entanto, o destaque da narrativa de Atos recai sobre a participação de Tiago (At
15.13-21), um pastor cujo parecer foi acatado na íntegra pela assembleia, que
novamente participou das decisões por meio do voto (At 15.22).
Vê-se assim a ascensão da figura do bispo. Recorde-se ainda que, cerca
de dez anos depois, quando viajava para Jerusalém, Paulo se dirigiu aos
presbíteros de Éfeso (um grupo também denominado “presbitério”, cf. 1Tm
4.14), apontando-os como os líderes legítimos da igreja (At 20.17,28). Ora, a
convocação de um concílio, a promoção de eleições em assembleia e a formação
de presbitérios nas igrejas locais, tudo isso dá sinais óbvios da lenta
institucionalização da igreja, menos de trinta anos depois da sua fundação.
Componentes que marcam a igreja do Novo Testamento como uma
instituição bem-organizada podem ser encontrados também nas epístolas. Por
exemplo, em Romanos 12.8, Paulo fala do dom de quem preside, dando a
entender que, por volta do ano 58 AD, a igreja cristã já contava com indivíduos
que se destacavam dentre os demais, liderando e dirigindo a comunidade. Esse
fato é também percebido na Carta aos Efésios (c. 61 AD), em que Paulo
menciona quatro categorias distintas de líderes eclesiásticos, todos capacitados
por Deus com vistas ao “aperfeiçoamento dos santos” (Ef 4.11-12).
Outro exemplo se encontra em Filipenses 1.1. Esse texto mostra que o
grupo que, por volta de 30 AD, foi eleito para servir as mesas das viúvas (At 6.1-
6), isto é, os diáconos, em cerca de 61 AD, transformou-se num conselho de
oficiais da igreja, ao lado dos bispos e distinto da assembleia como um todo.
Torna-se, assim, evidente que aquela equipe voltada apenas para o
trabalho assistencial, num período aproximado de trinta anos galgou uma
posição eclesiástica mais elevada. Aliás, os “diáconos”, como passaram a ser
chamados, começaram a exercer um papel tão sério como líderes que, em cerca
de 66 AD, Paulo escreveu a Timóteo dizendo que os mesmos requisitos impostos
a quem desejasse ser bispo deveriam também ser exigidos dos que quisessem ser
diáconos. A única exceção parece ter sido a aptidão para ensinar (1Tm 3.8-13).
Ademais, é impossível fazer alusão às Epístolas Pastorais (1 e 2Timóteo
e Tito), sem lembrar que essas cartas, escritas em meados da década de 60, não
somente mostram uma liderança institucional na igreja (1Tm 3.1-13; 5.22; Tt
1.5-9), como também revelam a fixação de uma liturgia (1Tm 2.1; 4.13-14),
além de regras de funcionamento que os crentes deveriam observar a fim de que
se comportassem adequadamente na “casa de Deus” (1Tm 3.14-15).
Na organização mais complexa que já havia por volta de 66 AD, há até
uma ordem de viúvas, na qual as participantes só podiam ser inscritas se
preenchessem certos requisitos enumerados pelo apóstolo (1Tm 5.9-12). As
mulheres inscritas nessa ordem receberiam provisão material da igreja.
Não são somente as cartas de Paulo que mostram a institucionalização da
igreja. Especialmente no tocante a uma liderança definida, as Epístolas Gerais
(Hebreus, Tiago, 1 e 2Pedro, 1, 2 e 3João e Judas) também apontam para essa
realidade (Hb 13.7; Tg 5.14; 1Pe 5.1-5). O fato de existirem já naqueles dias
líderes corruptos e dominadores (2Pe 2.1-3; 3Jo 9-10; Jd 12), não era causa para
a informalização da igreja. Pelo contrário, esse perigo mostrava quão importante
era o estabelecimento de um governo eclesiástico forte ao qual a igreja pudesse
se submeter sem correr qualquer perigo (Hb 13.17).
Quanto ao modelo de liderança eclesiástica centralizado na figura de um
só pastor, padrão tão comum hoje em dia, é possível vislumbrar seu embrião já
nos tempos do Novo Testamento. De fato, a figura do “bispo monárquico” que
tanto marcou a igreja a partir do século 2, pode encontrar suas raízes nos
pastores das sete igrejas do Apocalipse (Caps. 2-3), cada um atuando como líder
máximo de uma comunidade cristã específica (Ap 1.20).
Quão diferentes são entre si, portanto, as igrejas do Novo Testamento
quando observados os diversos estágios em que se encontram no seu lento
processo de organização. Realmente, a igreja de Jerusalém, sob a liderança de
Pedro, é marcada por quase completa informalidade. A de Éfeso, porém, debaixo
da autoridade de Timóteo, tem todos os traços de uma instituição religiosa
madura, com um presbitério, um conselho de diáconos, um processo fixo para a
formação e investidura de líderes, um conjunto de regras objetivas de
funcionamento, várias normas relativas ao culto e uma associação formalmente
organizada de mulheres carentes.[117]
Assim, é vazia a crítica das igrejas emergentes ultrainformais, não
havendo nada de antibíblico no modelo de funcionamento de igreja como
instituição. Além disso, ao que parece (e a experiência aponta nessa direção), os
defensores da plena informalidade não estão realmente interessados em
reconstruir o modelo neotestamentário. Tudo indica que o que verdadeiramente
almejam é evitar associar-se a uma igreja num grau maior de compromisso,
livrando-se, inclusive, dos incômodos de viver sob a autoridade eclesiástica
instituída pelo próprio Deus. O fato é que a busca da informalidade pode ser, na
verdade, a fuga da responsabilidade.
Uma questão frequente

De que maneira a igreja atual pode se tornar relevante para o homem do século
21?
A igreja sempre será relevante seja em que século for, desde que preserve a
tarefa dada exclusivamente ela de anunciar com fidelidade o único caminho
para a salvação do homem perdido. Se, porém, querendo atrair e agradar os
descrentes do seu tempo, a igreja mudar sua postura, seus valores, seu discurso
e sua conduta, amoldando-se à cultura depravada que a cerca, sua relevância
desaparecerá e ela se tornará apenas uma opção secundária de lazer ou uma
alternativa passageira de congraçamento social.
Capítulo 11 – O AUXÍLIO MATERIAL NA IGREJA
A maioria dos membros da igreja de Deus é composta por pessoas de
poucas posses. De fato, não há entre os crentes muitos de nobre nascimento, nem
um grande número de homens poderosos e influentes.
A leitura dos antigos registros históricos mostra que sempre foi assim. Na
verdade, os pagãos viam na condição social dos cristãos em geral mais uma
causa para zombar do evangelho e dizer que a fé pregada pela igreja era a fé dos
ignorantes, dos iletrados, da gente de baixo nível social — uma doutrina indigna
de ser seguida por pessoas nobres e de boa formação.
O que os inimigos de Cristo não sabiam é que a condição social dos
crentes já tinha sido percebida e comentada pelo apóstolo Paulo, o qual
apresentou uma explicação teológica para essa realidade.
De fato, Paulo disse que Deus chamou poucas pessoas grandes segundo
os padrões do mundo para que a verdadeira sabedoria fosse predominantemente
propriedade dos fracos e dos que nada são. Dessa forma — ensinou ele — a
sabedoria dos nobres e dos poderosos seria confundida e humilhada e ninguém
poderia se vangloriar na presença de Deus (1Co 1.26-29).
Sendo, então, a igreja marcada pela presença de pessoas pobres,
constantemente ela tem de lidar com a questão da ajuda aos carentes. Nessa
matéria, porém, ao contrário do que muitos pensam, as Escrituras não deixam o
povo de Deus à mercê de suas próprias percepções e julgamentos. Antes,
estabelecem diretrizes claras, as quais devem ser observadas pela igreja caso esta
queira obedecer em tudo à palavra do seu Senhor.

Diretrizes bíblicas para a ajuda aos carentes

Conforme destacado, desde os primeiros dias de sua existência, a igreja


cristã teve de lidar com o problema dos membros carentes de auxílio material.
Na verdade, foi o agravamento desse problema que impulsionou a criação do
diaconato (At 6.1-6).
Desse modo, não há como a igreja voltar as costas para a realidade dura
da existência de pessoas que, temporária ou permanentemente, precisam ser
assistidas não só no âmbito espiritual e emocional, mas também com alimentos,
roupas e, às vezes, até moradia.
A palavra de Deus disciplina essa matéria. Antes de tudo, porém, cada
crente em particular precisa saber que, no tocante à assistência aos pobres, tudo
indica que deve ser observada a seguinte ordem de prioridade:

1. As pessoas da própria família (1Tm 5.8);


2. Os irmãos da igreja a que o cristão pertence (Gl 6.10);


3. Os crentes de outras igrejas ou desconhecidos (At 11.29-30; 1Co


16.1-4; 2Co 8.1-4,24; 9.1-2, 11-14);


4. Os incrédulos conhecidos (Pv 3.27,28; 14.21; 21.10; Rm 12.17,20);

5. Os incrédulos não conhecidos (Mt 22.37-40).


Note-se nessa lista que os crentes carentes devem ter prioridade sobre os
incrédulos. Isso deve ser assim porque o auxílio material deve fazer com que os
necessitados deem muitas graças a Deus, glorifiquem o nome dele por causa da
liberalidade do seu povo e orem em prol dos seus irmãos que os ajudam,
nutrindo grande afeto por eles (2Co 9.11-15). Ora, esses efeitos só podem ser
obtidos quando a assistência material é dirigida a crentes.
A ordem de prioridade apresentada aqui é útil principalmente para o
crente como indivíduo, o qual, com frequência, se vê diante de pessoas que
olham para ele esperando alguma ajuda material. Se o cristão não tiver critérios
embasados na Palavra de Deus, cometerá erros e injustiças nesse campo,
desconsiderando o que tem primazia e aplicando mal os recursos que Deus lhe
dá.
Os princípios de ajuda a pessoas carentes aplicáveis à vida do crente
individual devem, entretanto, ser aproveitados, o máximo possível, na formação
de uma filosofia de ajuda material a ser adotada pela igreja como instituição.
Porém, há também normas específicas dirigidas à igreja como um todo, as quais
versam sobre o modo que ela deve atuar no sustento dos menos favorecidos.
É dito, por exemplo, com meridiana clareza, que a igreja jamais deve
ajudar pessoas que enfrentam dificuldades porque não trabalham. O apóstolo
Paulo chega a afirmar que quem não trabalha deve passar fome (2Ts 3.10). De
fato, a igreja que auxilia pessoas acomodadas incentiva a ociosidade, o mau
testemunho, a maledicência e as intrigas (2Ts 3.11; 1Tm 5.13).
É verdade que, muitas vezes, ocorre de o indivíduo não estar trabalhando
por não conseguir emprego. Nesse caso, a liderança terá de avaliar as
particularidades da questão: o irmão desempregado tem por hábito ser
inconstante em todos os seus empregos? É mau funcionário e, por isso, sempre é
demitido? O crente desempregado está procurando emprego com real dedicação?
Os empregos que lhe são arranjados têm sido rejeitados por ele sob pretextos
injustificáveis? Tudo isso deve ser avaliado com bastante seriedade pelos líderes
antes que a ajuda financeira seja dada.
Ainda no nível de igreja como instituição, a prática da ajuda financeira
aos membros deve seguir dois princípios básicos: a necessidade real e a
temporalidade.
Por necessidade real entende-se a situação caracterizada por inevitável
penúria, em que a pessoa, por motivo legítimo, não tem de onde tirar recursos
para sua alimentação, moradia, saúde e vestuário.
Esse princípio é absoluto, ou seja, não tem exceções. Desse modo, a
igreja nunca se verá obrigada a ajudar financeiramente quem não esteja
enfrentando essa circunstância (como, por exemplo, quem contraiu dívidas e
pede ajuda financeira para não ser protestado ou executado).
O princípio da necessidade real está previsto em 1Timóteo 5.3-6,16, em
que Paulo fala das mulheres que são verdadeiramente viúvas, ou seja, mulheres
idosas da igreja (com sessenta anos ou mais) que não apenas tinham perdido o
marido, mas também não contavam com filho ou neto algum que as pudesse
ajudar. Senhoras naquela situação deviam ter seus nomes inscritos numa lista
especial para receber auxílio da igreja, desde que tivessem também um histórico
de bom testemunho e serviço (1Tm 5.9-10). Membros que não estivessem nessas
circunstâncias não podiam se inscrever (1Tm 5.11-13).
O segundo princípio (o da temporalidade), intimamente relacionado ao
primeiro e dele decorrente, aponta para o fato de que a ajuda financeira a
membros carentes não é necessariamente permanente. A ajuda deverá cessar
assim que a situação de necessidade real chegar ao fim. Ora, é evidente que
cessando a necessidade, o auxílio não será mais justo. É bom ressaltar que a
ajuda também poderá cessar quando os líderes perceberem que a necessidade
perdura em razão de negligência ou comodismo do auxiliado.
O princípio da temporalidade é relativo, pois haverá casos excepcionais
em que a ajuda se perpetuará. Isso ocorre, por exemplo, no caso de pessoas
inválidas ou de bastante idade que vivem sozinhas, sem nenhum parente, e
recebem apenas uma pequena pensão mensal. Casos como esses trazem em seu
bojo situações que dificilmente se alterarão — e a igreja terá de ajudar o
indivíduo nessas condições talvez até o fim de sua vida.
No tocante à ajuda material da igreja dirigida a pessoas incrédulas, é bom
dizer que essa conduta não é regulada pelo Novo Testamento. Em toda a
literatura neotestamentária, a preocupação da igreja com os carentes tem sempre
como objeto os irmãos na fé. Se não houver pessoas carentes numa determinada
igreja local (o que dificilmente ocorre), então essa igreja direcionará sua ajuda a
pessoas carentes de outras igrejas (At 11.27-30; Rm 15.25,26; 1Co 16.1-4; 2Co
9.1,2, 12-14).
Concluindo, deve ficar bem claro que a administração e o uso do
dinheiro da igreja são assuntos muito sérios. Todo centavo que entra para o
caixa, proveniente dos dízimos e ofertas, deve ser usado com responsabilidade e
critérios que se harmonizem com a Palavra do Senhor, o qual, em última análise,
é o dono de todos esses recursos, sendo os crentes apenas administradores.
Por isso, os líderes cristãos, ao deliberar acerca da ajuda material a
alguém, não devem se deixar levar por apelos emocionais ou por temores de
desagradar a uns e outros, ou ainda por situações que gerem constrangimento.
Acima das circunstâncias, do agrado aos homens e das fortes emoções está a
Palavra de Deus, que deve ser sempre aplicada, seja em que caso for.
Em regra, é bom que os pastores detenham a palavra final acerca de
quem deve receber recursos destinados ao suprimento de necessidades materiais,
julgando eles conforme a necessidade de cada um e a partir do conhecimento
especial que têm do seu rebanho. Ao que tudo indica, essa foi a prática adotada
em Atos 11.29-30.
Com efeito, a experiência pastoral ensina que, se o crente em particular
assumir essa tarefa, será facilmente movido pelas aparências e pela manipulação
de quem se mostra excessivamente carente e acabará suprindo necessidades
ilusórias, deixando os realmente necessitados vivendo em desamparo. Por isso, o
crente que quer ajudar os irmãos carentes de sua igreja deve pedir orientação ao
pastor que, quase sempre, saberá distinguir quem realmente precisa de quem
apenas parece precisar.

A proposta liberal

Os membros da igreja de Deus devem tomar cuidado ao se envolver com


comunidades evangélicas que dão muita ênfase ao trabalho social. Isso porque
essa tônica pode ser decorrente não da concepção cristã acerca do sofrimento e
da pobreza, mas sim de tendências doutrinárias liberais.
O liberalismo foi um movimento teológico que surgiu no século 18 e que
acolheu a cosmovisão reinante na modernidade gerada pelo iluminismo. Essa
cosmovisão dava lugar de supremacia à razão (a lógica humana — e não a
revelação bíblica — define o que é verdadeiro), propunha o funcionamento
uniforme da natureza (a ordem natural não se altera; logo, não existem milagres)
e cria no progresso da humanidade pelo uso da razão, do avanço científico e da
educação moral.
Os teólogos liberais perceberam que a visão de mundo desse tipo não
atribuía nenhum sentido às doutrinas ortodoxas cristãs, uma vez que estas entram
em choque com a mentalidade científica moderna. Por isso, temas como a
transcendência divina, a inspiração bíblica, a divindade de Jesus, a morte
expiatória de Cristo, a ressurreição e o juízo eterno foram totalmente rejeitados
pelos teólogos liberais ou, no mínimo, reinterpretados em termos meramente
morais ou simbólicos. Seu objetivo com isso era tornar o cristianismo atraente e
relevante para as novas gerações que não estavam mais dispostas a sacrificar a
razão, aceitando o sobrenatural.
Como, porém, manter as portas de uma igreja abertas quando o coração
de sua mensagem é removido? Em outras palavras: como a igreja poderia
continuar existindo e fazendo alguma diferença se a doutrina do Deus-homem
que morreu e ressuscitou para livrar os pecadores da condenação eterna é,
segundo diziam, somente uma fábula inspirada em velhos mitos pagãos?
Despojada de sua mensagem fundamental, não seria melhor que a igreja fechasse
suas portas e colocasse seus prédios à venda?
A resposta dos teólogos liberais a essas questões foi a seguinte: a igreja
deve mesmo abandonar seus velhos dogmas tão inaceitáveis para a mente
científica moderna, mas pode, ainda assim, continuar funcionando e até se tornar
relevante para o mundo desde que abrace a tarefa de educadora moral e agente
de auxílio social. Em vez de ser, portanto, a proclamadora de um evangelho sem
sentido e de histórias bíblicas fantasiosas, a igreja deveria agora mostrar sua
importância para o mundo agindo como uma promotora de valores éticos e como
uma entidade assistencial.
Filósofos e teólogos como Immanuel Kant (1724-1804), Albrecht Ritschl
(1822-1889) e Adolf Harnack (1851-1930) restringiram então o cristianismo ao
âmbito da ética e, especialmente Ritschl e Harnack, realçaram a tarefa da igreja
de promover o reino de Deus e a fraternidade universal transformando este
mundo por meio de gestos práticos de amor e de justiça.
Os danos doutrinários do liberalismo foram devastadores e são
percebidos claramente ainda hoje em muitas igrejas e seminários em que essa
vertente teológica permanece viva a ativa. Com efeito, como resultado de suas
propostas, os dogmas cristãos foram desacreditados, sendo hoje ridicularizados
em alguns círculos teológicos. Também uma nova concepção de Deus foi
adotada: ele passou a ser apresentado como um espírito universal imanente que
está por trás da natureza, da história e da cultura e que evolui com elas (Hegel),
sendo também o Todo, a realidade infinita da qual o homem depende e faz parte
(Schleiermacher) — um conceito bem diferente do Deus pessoal, livre, soberano
e transcendente apresentado na Bíblia. Também a crença na salvação de toda a
humanidade foi desenvolvida pelos teólogos liberais, como desdobramento
teórico de suas ideias.
Em termos de eclesiologia aplicada, porém, o legado do liberalismo foi a
construção de uma mentalidade em que a igreja mostra especialmente sua
relevância à medida que atua como escola de valores éticos ou associação de
amparo aos necessitados e às vítimas de injustiça social.
Essa mentalidade, ao que parece, se tornou bastante popular no Brasil na
década de 1970 graças ao forte impacto causado pelo livro Em seus passos o que
faria Jesus?, de Charles M. Sheldon.[118] Numa atmosfera de notável entusiasmo
liberal, marcada ainda pelos atraentes desafios propostos por obras como a de
Sheldon, muitas igrejas passaram a abrir creches, distribuir alimentos, fazer
campanhas de agasalho e oferecer cursos de alfabetização aos menos
favorecidos.
Ainda que essas ações não fossem erradas em si mesmas, todas eram
desdobramentos de uma teologia que negava ou deixava em segundo plano a
mensagem pura do evangelho e tentava resguardar a relevância da igreja,
transformando-a numa entidade assistencial, com pouca ênfase no ensino, na
pregação, na santidade e na disciplina.
A ironia disso tudo pôde ser vista no fato de que, ao tentar dar relevância
à igreja, privando-a da sã doutrina e dando-lhe uma função social, o liberalismo
a tirou do seu foco principal e acabou por diminuí-la. De fato, em muitos casos,
a igreja, única detentora da mensagem de salvação, envolveu-se em distrações
assistenciais, pondo de lado a pregação da cruz. Adotando um discurso
demagógico, sentimental e apelativo, ela deixou de cumprir a missão dada por
Deus de distribuir a verdade salvadora e passou a cumprir tarefas que cabiam ao
Estado, distribuindo sopa e cobertores.
Em outras ocasiões, igrejas que se deixaram levar pelos discursos sociais
se tornaram organizações realmente inúteis e até prejudiciais, dando ajuda a
famílias e indivíduos desocupados, financiando indiretamente, dessa forma, o
ócio, a bebida, a farra, a prostituição e as drogas. Também algumas igrejas,
seguindo as mesmas aspirações de “causar impacto” na comunidade em que
estavam, tornaram-se verdadeiramente banais, promovendo campanhas de
proteção a animais, realizando cultos de oração pelas árvores ou formando
grupos que distribuíam abraços aos transeuntes na rua (!).
Assim, o povo que deveria formar um exército de soldados que defendem
corajosamente a fé e a verdade, foi, em alguns casos, transformado num grupo
de escoteiros sentimentais que acariciam gatinhos abandonados nas praças.

A proposta da chamada Missão Integral

Em julho de 1974, reuniu-se em Lausanne, na Suíça, o Primeiro


Congresso Internacional de Evangelização Mundial, com o objetivo principal de
definir a identidade e a missão evangélica no mundo contemporâneo.
Os líderes reunidos em Lausanne revelaram preocupação com muitas
ameaças atuais dirigidas contra a igreja. Eles perceberam corretamente que uma
dessas ameaças eram as propostas liberais que privavam o cristianismo da
genuína mensagem bíblica. Posicionando-se, então, contra esse e outros perigos,
os teólogos de Lausanne reafirmaram algumas doutrinas centrais da fé e se
dispuseram a estimular a igreja a oferecer novamente ao mundo o evangelho
verdadeiro.
Envolvidos nessas reflexões e debates, alguns teólogos presentes em
Lausanne, especialmente os procedentes da América Latina, como René Padilha
e Samuel Escobar, ambos palestrantes no congresso, insistiram na afirmação de
que esse evangelho verdadeiro, ao ser anunciado, deveria abarcar ações de
impacto social, econômico e político. Mesmo participando de um congresso
antiliberal, o fato é que esses teólogos suspiravam os ares assistencialistas
soprados pelo liberalismo da época e pela Teologia da Libertação, tão influente
em seus países de origem.
Assim, segundo eles, o envolvimento da igreja com as necessidades
sociais da humanidade era parte integrante de sua tarefa de testemunho cristão.
No entender desses teólogos, para que o evangelho fosse anunciado de forma
integral, era preciso acentuar o que entendiam ser sua “dimensão social”.
Os teólogos de Lausanne acolheram substancialmente essas concepções
e, ao fim do congresso, produziram um documento denominado Pacto de
Lausanne (redigido por John Stott) que, mesmo sendo claro e enfático em seus
enunciados ortodoxos (como a afirmação da autoridade bíblica, a rejeição do
universalismo e a crença no retorno literal de Cristo), deixou-se infiltrar por ecos
da Teologia da Libertação, um modelo de forte coloração liberal.
De fato, o Pacto de Lausanne afirmou que a igreja deve mostrar interesse
“pela libertação dos homens de todo tipo de opressão” e que “a evangelização e
o envolvimento sócio-político são ambos parte do nosso dever cristão”.[119]
É verdade que o Pacto de Lausanne, sendo predominantemente
ortodoxo, declarou expressamente que a ação social não é evangelização, que a
libertação política não é salvação (Artigo 5) e que a igreja não pode se identificar
com nenhum sistema social ou político, nem com ideologias humanas (Artigo 6).
No entanto, apesar dessas ressalvas, pastores de tendências liberais e
marxistas, considerando as conclusões do congresso muito tímidas no tocante ao
papel social da igreja, deram ênfase aos enunciados do pacto que lhes eram mais
convenientes. Então passaram a falar sobre a missão integral da igreja com uma
tônica nitidamente libertária e esquerdista, algo certamente jamais pretendido
pelo próprio texto do Pacto de Lausanne.
Foi assim que a expressão Missão Integral da Igreja passou a ser
fortemente relacionada com um “evangelho” que é pouco mais do que a defesa
de uma ideologia política igualitária, contrária à distinção entre classes — uma
ideologia que insiste na necessidade de grandes intervenções sociais por parte da
igreja mas que, em geral, não dá nenhuma ênfase à cruz, ao perigo da perdição
eterna e à necessidade de arrependimento do pecador diante do Deus santo. De
fato, o evangelho proposto pelos defensores liberais e marxistas da Missão
Integral da Igreja acaba por encher estômagos (às vezes!), deixando os corações
vazios (sempre!).
Obviamente, a igreja de Deus deve recusar o discurso assistencialista da
chamada Missão Integral. Os princípios e prioridades relativos à ajuda aos
carentes, conforme elencados aqui, estão todos expostos nas Escrituras e é com
eles que o povo de Deus deve se comprometer e não com vertentes filosóficas,
sociológicas ou partidárias de esquerda que são, na verdade, versões evangélicas
da Teologia da Libertação.
A igreja de Deus deve fugir disso tudo não só porque a ênfase exacerbada
na ação social a afasta de sua tarefa essencial de proclamadora da cruz e do
arrependimento. A igreja deve fugir disso tudo porque a proposta aparentemente
piedosa da Missão Integral é apenas um reflexo mais ou menos velado da
teologia liberal e libertária que permanece viva e que não aceita a realidade da
perdição eterna, anunciando, por isso, uma salvação meramente política e social
no presente.
Além disso, é preciso destacar que, ao contrário do que muitos crentes de
hoje pensam, nunca foi dever nem responsabilidade da igreja ser fonte de
socorro material para o mundo. Com efeito, a igreja jamais foi idealizada por
Deus como uma organização que tem por obrigação reduzir a pobreza e o
sofrimento das pessoas do mundo. Se, conforme visto, ela tem essa
responsabilidade em relação aos domésticos da fé (Gl 6.10), isso de modo
nenhum se estende à sociedade como um todo.
Essas afirmações podem chocar os ouvidos dos cristãos modernos,
familiarizados que estão com os constantes apelos da Missão Integral, mas a
verdade é que Deus jamais colocou sobre os ombros da comunidade da fé a
tarefa de melhorar o mundo por meio de programas sociais ou obras
assistenciais. Absolutamente, nada na Bíblia ensina ou mesmo sugere isso.
Israel, o povo da aliança, nunca recebeu essa incumbência em face das nações a
quem deveria anunciar o Deus verdadeiro e as igrejas neotestamentárias jamais
foram instadas a isso.
Há quem diga que as mensagens dos profetas do AT eram centradas em
apelos sociais e que a igreja deve acolhê-las também nesse aspecto. Porém, essa
percepção está equivocada. Ainda que condenassem os pecados sociais de seus
contemporâneos, os profetas não viam isso como sua preocupação central, mas
sim como evidências adicionais de que o povo havia abandonado os preceitos da
aliança com Javé. O centro de suas denúncias era, na verdade, a apostasia
religiosa da nação. Esse era o quadro maior de que as opressões sociais eram
apenas mais um componente. Por isso, na visão dos profetas, a solução para as
injustiças que tanto atacavam era o arrependimento e não a implementação de
programas assistenciais.[120]
Por isso, é errado dizer (como fazem muitos proponentes da Missão
Integral) que os profetas eram reformadores sociais urbanos e que a igreja
precisa ouvir suas mensagens como uma espécie de voz dos oprimidos. Na
verdade, a única tarefa que cabe à igreja diante do mundo é pregar o evangelho
da cruz, o evangelho do Deus verdadeiro que dá salvação eterna e completa.
Esse evangelho, quando acolhido por alguém por meio da fé, acaba por
enobrecer a pessoa, tirando-a da ignorância, da vadiagem, da sujeira, das más
companhias, dos vícios e da criminalidade.
Vê-se, assim, que o real convertido sofre e promove um impacto que se
faz sentir não apenas na sua vida espiritual, mas também no seu trabalho, nas
suas escolhas políticas, na sua avaliação do direito e das leis, nas suas
concepções éticas, no seu comportamento moral, na sua visão e prática
econômica e na importância que passa a dar à educação.
O indivíduo transformado pela fé também começa a agir em prol do seu
semelhante (especialmente seus familiares e irmãos em Cristo), não movido por
conceitos marxistas ou por tendências político-filosóficas, mas sim por uma
santa inclinação que passa a ter como criatura nova (2Co 5.17). Ele é o homem
que furtava, mas agora não furta mais, antes trabalha para socorrer o que tem
necessidade (Ef 4.28).
Todo esse impacto social do evangelho não é, contudo, o alvo final do
trabalho da igreja diante do mundo que a cerca. É “apenas” o efeito
transformador comum que o Espírito Santo opera no homem salvo. Mais uma
vez: o alvo supremo da igreja diante dos perdidos é tentar livrá-los da
condenação do pecado, mostrando que a única forma de se proteger da ira de
Deus é buscando refúgio na cruz de Cristo. Realizando essa tarefa proclamativa,
a igreja verá pecadores sendo salvos do inferno e, como um “bônus”, os verá
também sendo libertos de inúmeras outras formas de opressão, inclusive a social.
Note-se que o evangelho de Cristo sempre produziu esse efeito
magnífico, basta observar a mudança de vida de incontáveis indivíduos
alcançados pela graça salvadora no decorrer da história; basta também olhar para
os inúmeros hospitais, creches, escolas e abrigos fundados por cristãos ao longo
dos séculos, muito antes de surgir qualquer proposta liberal ou de “missão
integral”. Isso tudo mostra quão desnecessários são os apelos demagógicos
desses movimentos e leva a suspeitar de que se trata apenas de artifícios para
transformar a igreja numa aliada na promoção de doutrinas heréticas e ideologias
de esquerda, sob o disfarce de serva de Cristo.
Por isso, se a igreja quer realmente causar impacto no mundo, concentre
seus esforços na pregação do evangelho autêntico, destacando a obra de Cristo, o
arrependimento, a fé e o livramento do castigo eterno. Isso fará com que ela veja
o homem perdido ser liberto da ira vindoura e de muitas desgraças presentes. Se
não cumprir essa tarefa, não verá nem uma coisa nem outra.
Possíveis questões

1) Qual deve ser a resposta do crente às pessoas em geral que lhe pedem
socorro?
Este capítulo desaprova os projetos sociais eclesiásticos que reduzem a igreja a
uma entidade assistencialista e fazem com que ela se desvie de seus alvos
principais, os quais envolvem a pregação, o ensino, a santidade e a disciplina.
Quanto ao cristão individual, é seu dever ajudar qualquer pessoa que lhe pedir
socorro (Mt 5.42; Rm 12.20), tendo apenas cuidado para não ser enganado por
pessoas de má-fé e por aproveitadores (Pv 3.27; 2Ts 3.10). O crente também
deve evitar se comprometer em ajudar alguém deixando seus familiares e seus
irmãos na fé sem amparo (Gl 6.10; 1Tm 5.8; 1Jo 3.17).
Ainda no tocante ao âmbito individual, há cristãos que criam entidades
humanitárias ou associações filantrópicas. Essas iniciativas são bastante
louváveis e não há nada de condenável nelas, desde que esses grupos não
deixem de pregar o evangelho puro, não tentem desviar a igreja de sua tarefa
principal de proclamação e pratiquem o ensino bíblico de socorrer primeiro os
da família da fé.

2) Não há nada que a igreja, como instituição, possa fazer para aliviar o
sofrimento deste mundo e reduzir as injustiças sociais?
É claro que há. Uma boa sugestão é a igreja cooperar como entidade
mantenedora de instituições beneficentes cristãs que tenham zelo evangelístico.
Se a igreja tiver condições financeiras, poderá destinar verbas para essas
instituições, ajudando no sustento do seu trabalho. Isso a envolverá na obra
central de evangelismo e a tornará presente numa esfera mais ampla da vida
social, sem comprometer a verdadeira razão da sua existência e sem perder o
foco do seu trabalho. A ajuda da igreja a essas instituições, porém, deve ser
dada sem prejuízo do amparo aos membros necessitados da própria comunidade
ou de irmãos de outros lugares que enfrentam miséria e calamidade (veja-se a
lista de prioridades acima).
Capítulo 12 – O CASAMENTO
A banalização do matrimônio é uma das marcas da sociedade
contemporânea — uma marca presente tanto no contexto secular como cristão.
Com efeito, não é somente a mídia, os governos e as instituições
antiDeus que apregoam o afrouxamento dos laços matrimoniais. Também
pastores, escritores cristãos, igrejas, seminários e denominações inteiras
propagam discursos que são verdadeiras apologias à fragilidade do vínculo
conjugal, dando ensejo e estímulo a separações e fazendo com que seus índices
de incidência atinjam níveis surpreendentes.
Raras são as comunidades e solitários são os líderes evangélicos que se
opõem ao divórcio. Mais raros ainda são os crentes que se insurgem contra o
recasamento. E toda essa “tolerância”, na maior parte das vezes, não repousa
sobre a análise bíblica séria ou sobre a reflexão madura acerca de um tema tão
crucial para a felicidade das pessoas e para o bem da igreja.
Em vez disso, a defesa do casamento solúvel é construída sobre jargões
pobres (“você tem o direito de ser feliz com outra pessoa”), sobre bases
teológicas fracas expostas em retórica barata (“nosso Deus é o Deus da segunda
chance” ou “Deus não quer que fiquemos com alguém por mera obrigação”) e
sobre uma hermenêutica que faz malabarismos com passagens da Bíblia (um dos
exemplos mais chocantes é a defesa do recasamento com base em Ageu 2.9: “A
glória desta última casa será maior do que a da primeira...”).
Isso tudo produz práticas erradas das quais a igreja de Deus deve fugir.
Para tanto, é preciso que os crentes corrijam suas ideias sobre o santo
matrimônio e construam uma estrutura conceitual bíblica e sólida acerca do
tema. Essa construção deve partir da análise do que, de fato, produz o vínculo
matrimonial.

Os três elementos que perfazem o casamento

Quando e em que circunstâncias nasce o vínculo matrimonial entre um


homem e uma mulher?
A resposta a essa pergunta é fundamental porque, enquanto não houver
vínculo conjugal unindo um casal, obviamente não existirá casamento, sendo
então impossível falar em divórcio, novas núpcias ou qualquer outro assunto
ligado à ética matrimonial.
Por isso, antes de lidar com as complexas questões ligadas ao ensino
bíblico acerca do matrimônio, é preciso determinar quando o casamento se
perfaz, isto é, quando se torna existente na experiência do homem e da mulher
que nutrem uma relação de afeto.
A partir da análise das Escrituras, é possível concluir que o vínculo
matrimonial se perfaz quando ocorrem três fatos: a decisão livre de casar, o ato
solene de união e o intercurso sexual.

1. A decisão livre de casar. Para que o casamento seja considerado


existente, é preciso que os cônjuges tenham se unido de livre vontade,
isto é, sem a força ou a influência dos vícios da vontade (coação, erro e
dolo).
A antiga cláusula “deixará o homem pai e mãe” (Gn 2.24) implica um
ato espontâneo, em que o indivíduo decide sair da casa paterna e
iniciar um novo núcleo familiar. Obviamente, para que essa vontade
seja exercida livremente, não podem haver coação, ameaça ou
constrangimento (o famoso casamento com “uma arma nas costas”).
Tampouco haverá o livre exercício da vontade no caso das pessoas que
são induzidas a erro pelas circunstâncias, como na situação em que os
cônjuges descobrem mais tarde que são irmãos entre si.
Também estará ausente o exercício livre da vontade no caso de um dos
envolvidos ser maliciosamente enganado e, então, levado a se casar —
algo que jamais faria caso tivesse conhecimento da totalidade dos fatos
que lhe foram sonegados. É o caso da mulher que se casa e depois
descobre que seu marido já é casado há muito tempo, tendo esposa e
filhos em outro lugar. É ainda a hipótese da esposa que logo descobre
que seu marido não tem interesse sexual por ela e que se casou apenas
para encobrir sua homossexualidade. Em casos assim, é evidente que a
vontade foi viciada pelo dolo (a intenção de enganar), não tendo sido
exercida livremente.
Uma vez verificado o fato de que não houve a decisão livre de casar,
conclui-se que o vínculo conjugal jamais surgiu e que o casamento
pretendido nunca se perfez, sendo inexistente de fato.
É importante salientar que, no caso de erro ou dolo, para que o
casamento não se perfaça, o fato oculto deve ser de tal natureza que, se
fosse conhecido antes, a pessoa não se casaria. Ninguém, portanto,
pode alegar que seu casamento não se perfez porque, à época da união,
desconhecia fatos de segunda importância.

2. O ato solene. O ato solene é a formalidade que oficializa e dá


publicidade ao casamento, diferenciando-o do concubinato ou da mera
convivência íntima. Dependendo da cultura em que se realiza, o ato
solene pode assumir diferentes formas. Pode ser a celebração de um
pacto nupcial consubstanciado num contrato escrito (como ocorria na
Palestina a partir do período interbíblico[121]), pode ser um evento
festivo (como os banquetes de bodas mencionados nos evangelhos),
pode ser composto pela entrega formal de um dote ou de presentes
nupciais (como em Gn 24.52-54 e 34.12), pode ser uma cerimônia
religiosa (como os casamentos feitos na igreja) ou um rito jurídico
(como os enlaces realizados em cartórios).
Dentre os elementos que perfazem o casamento, o ato solene é o mais
desprezado na atualidade. Até mesmo pastores se referem a essa
formalidade como algo desnecessário e irrelevante, dizendo que só
produz um “pedaço de papel” (a certidão de casamento).
Contudo, de forma surpreendente, a Bíblia mostra que o ato solene é
fundamental para que o casamento exista, sendo o único elemento que
distingue o matrimônio do concubinato e o cônjuge do simples
convivente.
Começando pelo Antigo Testamento, é possível notar que os escritores
sagrados fazem diferença entre a figura da esposa e a da concubina
(2Sm 5.13; 19.5; 1Rs 11.3; 2Cr 11.21; Dn 5.2). Qual era, porém, a
principal distinção entre essas duas posições? É simples. A esposa
havia se casado formalmente, por meio de uma cerimônia específica.
[122]
Já a concubina havia entrado no relacionamento de convívio por
outras vias, às vezes até como escrava (Gn 30.3-4 cp. 35.22). Daí a
evidência de que, no AT, o ato solene é essencial para que o casamento
se perfaça.
Corroborando essa ideia, observe-se, por exemplo, o Salmo 45.8-15.
Esse texto mostra o grau de pompa e de formalidade a que uma
cerimônia nupcial podia chegar, tudo para que um real matrimônio se
efetivasse. Ora, isso jamais foi exigido no caso de relações de
concubinato.
No Novo Testamento, a necessidade do ato solene como fator
fundamental para a criação do vínculo matrimonial é percebida
especialmente no ensino de Jesus. Em seu diálogo com a mulher
samaritana (Jo 4.16-18), o Senhor disse que ela tinha tido cinco
maridos (homens com quem se casara) e o que tinha então não era seu
marido, apesar de estar com ela.
Nessa passagem, o Mestre dá a entender que a simples convivência
não perfaz o casamento. Daí afirmar que o sexto homem não era
marido da samaritana. O casamento não havia ocorrido de modo
formal. Logo, não era considerado existente pelo Mestre.
O entendimento de que o ato solene é o único fator que distingue o
casamento do concubinato, sendo essencial para que alguém se torne
cônjuge e não apenas convivente era uma noção amplamente aceita
nos tempos antigos. O Rabino Meir, que viveu por volta do ano 150,
quando perguntado sobre a diferença entre a esposa e a concubina,
respondeu: “A esposa dispõe de um contrato de casamento, a
concubina não o possui”.[123]
Esse entendimento tem amplo amparo bíblico, deixando claro que a
ausência de ato solene faz da convivência de um homem com uma
mulher um modo de vida irregular, reprovado por Deus e sem o poder
de gerar o vínculo conjugal.
Assim, os envolvidos nesse tipo de situação são apenas solteiros que
vivem juntos e a separação de ambos, caso ocorra, sequer exigirá o
expediente do divórcio. Ademais, como solteiros que são, após
separados poderão se casar com outra pessoa caso queiram, desta vez
cumprindo as eventuais formalidades.

3. O intercurso sexual. A base bíblica para a relação sexual como fator


que perfaz o casamento está em Gênesis 2.24: a frase “serão ambos
uma só carne” tem clara conotação sexual (1Co 6.16).
O intercurso sexual é o ato sexual em seu sentido pleno, sendo
excluídas desse conceito as carícias íntimas e outras práticas sexuais
que não envolvem o intercurso propriamente dito. Sem esse ato sexual
pleno, ou seja, sem o real intercurso, o casamento não existirá.
Essa é uma das razões pelas quais é impossível que haja casamento
entre pessoas do mesmo sexo. “Parceiros” nessas condições são
capazes de trocar carícias ou praticar extravagâncias de ordem sexual,
mas é impossível que realizem um intercurso sexual por razões físicas
e inadequações orgânicas impostas pela própria natureza.
É preciso destacar aqui que o intercurso sexual só é considerado uma
prática santa dentro do contexto matrimonial (Hb 13.4) e que tem por
objetivos consumar a união do casal (Mt 19.5-6) e promover a
felicidade e satisfação dos cônjuges (Pv 5.15-19; Ec 9.9; 1Co 7.9),
protegendo-os, assim, da imoralidade (1Co 7.1-5).

Eis aí os três elementos que perfazem o casamento. Se um só deles


estiver ausente, o vínculo conjugal não existirá. Com efeito, se não houver a
vontade livre, surgirá uma relação no mínimo questionável ou controvertida. Já
na ausência do ato solene, virá à luz somente uma relação biblicamente irregular
de concubinato. Finalmente, caso não exista intercurso sexual, o matrimônio
igualmente não existirá, surgindo apenas uma relação de mera convivência.
Havendo, porém, a ocorrência dos três fatores, o consórcio matrimonial
se concretizará, produzindo os efeitos mencionados mais adiante.

Ressalva: o casamento religioso

Não existe na Palavra de Deus nenhuma prescrição acerca do que é


chamado de “casamento na igreja”. Na verdade, essa prática não é mencionada
nenhuma vez em todo o Novo Testamento. Tampouco é possível encontrar nas
Escrituras qualquer indício de que uma das tarefas do ofício pastoral seja realizar
casamentos. Aliás, o “casamento religioso” não pode ser embasado em nenhum
texto da Bíblia, posto que em momento algum os autores sagrados tratam desse
assunto.
Assim, cerimônias cristãs de enlace matrimonial são atos solenes
originados certamente no desejo antigo de buscar a bênção de Deus para a união
entre um homem e uma mulher. Essa prática passou a fazer parte da tradição
cristã e parece ser um bom costume que, aliás, acaba por suprir um dos
requisitos para que o casamento se perfaça (o ato solene). Contudo, os crentes
não devem elevar as solenidades cristãs de enlace à categoria de exigência
divina, pois isso seria ir além do que está disposto na própria revelação escrita de
Deus.
Isso, entre outras coisas, significa que, para se unir em matrimônio, um
casal não precisa “casar na igreja”, podendo perfazer sua união por meio de ritos
meramente jurídicos (o chamado “casamento civil”) ou culturais (celebrações,
gestos simbólicos, reuniões solenes, etc.).
Porém, se o casal for crente, é aconselhável que promova uma cerimônia
religiosa nos moldes da tradição, não para cumprir preceitos bíblicos, posto que,
conforme já dito, não existem, mas para suprir a formalidade necessária ao
casamento da maneira que melhor promova a fé e também para evitar ferir os
escrúpulos de irmãos mais sensíveis à observância dos bons e antigos costumes
do cristianismo.

Os dois efeitos do casamento

Tão logo o vínculo conjugal se complete pelo preenchimento dos três


requisitos elencados neste capítulo, dois efeitos são produzidos. São os dois
efeitos básicos do casamento, a saber, a convivência e a indissolubilidade.
Ambos estão previstos em Gênesis 2.24: “Por isso, deixa o homem pai e mãe e
se une à sua mulher (convivência), tornando-se os dois uma só carne
(indissolubilidade)”. O primeiro é considerado o efeito programado, o segundo
pode ser chamado também de efeito não programado.

1. Convivência, o efeito programado do casamento — A convivência é


o efeito programado do casamento porque quem se casa obviamente o
faz com o objetivo assumido e consciente de conviver. De fato, ao
deixar pai e mãe, o indivíduo que se une ao seu cônjuge tem planos de
morar sob o mesmo teto, construindo um lar, um patrimônio e uma
história ao lado da pessoa com quem se casou.
O casamento é o fator que legitima essa convivência e a Bíblia mostra
que esse efeito programado da união conjugal deve ser regido por
diretrizes que o próprio Senhor fixou, a fim de que seja feliz,
realizador e edificante.
A primeira lição que emana das Escrituras sobre a convivência do
casal casado é que ela deve ser marcada por uma vida sexual dinâmica
(Pv 5.15-19; 1Co 7.3-4). Na verdade, o texto sagrado ensina que os
cônjuges não devem se privar mutuamente, exceto por consentimento
mútuo, e isso somente por algum tempo, com o objetivo exclusivo de
se dedicarem à oração. Depois desse período, devem se unir
novamente, para que Satanás não os tente, aproveitando-se da
dificuldade dos cônjuges em se conter por mais tempo (1Co 7.5). O
apóstolo Paulo é bastante direto ao tratar desse assunto, mostrando que
o casal que não tem uma vida sexual ativa e constante está longe do
ideal de Deus e se mantém exposto a perigos.
A convivência do casal também deve ser marcada pela sujeição (Ef
5.21). O marido deve se sujeitar à sua mulher movido pelo amor, do
mesmo modo como Cristo se sujeitou em amor à igreja (Ef 5.25).
Algo, porém, deve ficar bem claro nesse ponto: assim como Cristo é o
líder da igreja, também o marido é o líder do lar (Ef 5.23; 1Tm 3.4,12).
Por isso, a sujeição do marido não é do tipo que obedece, mas sim do
tipo que se sacrifica (Ef 5.25b). Se acaso o marido se sujeitar à esposa
como quem obedece, inverterá o modelo estabelecido por Deus e o lar
ficará desestruturado.
Algo também importante a se destacar é que, ao se sujeitar
sacrificialmente à esposa, conforme estabelecido na Bíblia, o marido
deve ter como alvos sublimes protegê-la e sustentá-la, bem como
aperfeiçoá-la espiritualmente (Ef 5.26-29).
Se o traço principal da sujeição do marido é o amor que se sacrifica, o
traço principal da sujeição da esposa é o respeito que se rende. Sua
sujeição é, portanto, do mesmo tipo que a igreja deve a Cristo (Ef
5.22,24). Isso implica auxílio (Gn 2.18), dedicação (Pv 31.13-27),
obediência e o reconhecimento de que as rédeas do lar estão nas mãos
do esposo (1Pe 3.5-6).
Os cônjuges também devem conviver livres de amarguras, rancores,
brigas e disposições ofensivas. Em vez disso, a esposa deve ser
pacífica, dócil e serena (Pv 31.12; 1Pe 3.1-5) e o marido deve ser sábio
no trato com sua mulher, tributando a ela honra e cuidado especial
(1Pe 3.7).

2. Indissolubilidade, o efeito não programado do casamento — A


indissolubilidade é o efeito não programado do casamento porque não
depende do planejamento, da vontade ou mesmo da ciência dos noivos
para que seja produzido. Quando duas pessoas se casam, preenchendo
os três requisitos que perfazem o casamento enumerados acima, a
indissolubilidade surgirá, quer os cônjuges queiram ou não, quer
saibam ou não, quer concordem com isso ou não.
Que o vínculo conjugal é insolúvel se depreende de textos como
Mateus 19.6, Romanos 7.2 e 1Coríntios 7.39. De fato, as duas últimas
referências mostram que o único fator que tem força para quebrar o
liame matrimonial é a morte. Nem a decisão dos envolvidos, nem os
sentimentos das partes, nem o afastamento dos cônjuges, nem os erros
do casal, enfim, nada exceto a morte tem o condão de destruir o elo
que foi estabelecido entre um homem e uma mulher casados entre si.
Obviamente, essas afirmações suscitam a seguinte pergunta: e quanto
ao divórcio? A Bíblia não mostra que há casos em que esse expediente
pode ser usado, pondo fim ao matrimônio?
Sim. Ainda que Deus odeie o repúdio (Ml 2.14-16) e Jesus ensine que
a causa básica da separação de um casal seja a dureza de coração (Mt
19.6-8), a verdade é que o divórcio é tolerado na Bíblia em dois casos
específicos: em razão de relações sexuais ilícitas, como o adultério (Mt
5.32; 19.9), e quando o cônjuge incrédulo quiser se apartar do cônjuge
crente (1Co 7.12-13,15). Nessa segunda hipótese, o texto bíblico deixa
claro que a iniciativa da separação deve ser do incrédulo.[124]
Sem dúvida, há algumas situações que não se encaixam nas hipóteses
acima, nas quais a separação dos cônjuges é inevitável. É o caso, por
exemplo, do marido que expõe a perigo a vida e a integridade física da
esposa e dos filhos, espancando-os violentamente. Também é o caso
do pai que estimula a corrupção dos filhos, ensinando-os a roubar ou a
usar drogas, tornando impossível a convivência familiar.
Situações terríveis assim, ainda que não sejam previstas na Bíblia,
muitas vezes justificam o divórcio, uma vez que põem em risco
valores que estão acima da unidade conjugal — valores como a vida e
a integridade moral e física. Contudo, deve-se frisar que, antes de
chegar ao ponto de se separar, o casal deve empregar todos os recursos
possíveis para que a unidade familiar seja preservada.
Tendo sido demonstrado aqui que o divórcio é admitido na Bíblia em
algumas poucas hipóteses, deve-se agora fazer a seguinte ressalva: o
divórcio de que a Bíblia trata tem força para destruir o efeito
programado do casamento (a convivência), mas não o efeito não
programado. Isso significa que, mesmo com o advento do divórcio, o
vínculo matrimonial entre um homem e uma mulher casados entre si
perdura, sendo um elo estabelecido por Deus que só se dissolve com a
morte de um dos cônjuges.
É por causa disso que a Bíblia não aprova o recasamento de pessoas
divorciadas. Com efeito, à luz do texto sagrado, o casamento de
alguém separado, cujo ex-consorte permanece em vida, implica
adultério para ambas as partes envolvidas (Mc 10.11-12; Lc 16.18; Rm
7.3; 1Co 7.10-11).
Daí se conclui que o divórcio, conforme abordado na Bíblia, tem força
menor do que aquela que lhe é dada no âmbito jurídico. Se, de um
lado, a lei civil entende o divórcio como o expediente que dissolve o
vínculo conjugal e, consequentemente, abre a possibilidade de se
contrair novas núpcias, de outro, o Novo Testamento atribui a esse
recurso eficácia mais restrita.
De fato, segundo as Escrituras, o divórcio é capaz de interromper
somente a convivência do casal, sem, contudo, destruir o elo que
vincula o marido e a mulher. Esse elo, mesmo com o divórcio,
permanece intacto, fazendo de ambos “uma só carne” — algo que
perdura misteriosamente pelo poder de Deus até o advento da morte.
Ora, sendo a morte o único fator que quebra o vínculo conjugal, é
evidente que o casamento de viúvos é lícito (1Tm 5.14). A única
ressalva feita pelo apóstolo Paulo referente a esses casos é que o viúvo
crente se case com alguém que também seja cristão (1Co 7.39). Na
verdade, o casamento entre um crente e um incrédulo nunca é
aprovado na Bíblia que, aliás, condena qualquer associação intensa da
luz com as trevas (2Co 6.14-16).

A cláusula de exceção

Nos tempos do Novo Testamento, os judeus abrigavam na mente algumas


sérias diretrizes acerca do casamento. Por exemplo, eles sabiam que, no caso de
adultério, tanto o homem como a mulher envolvidos deviam ser executados (Lv
20.10 cp. Jo 8.3-11). Eles também conheciam a restrição que pesava sobre os
sacerdotes que, por exercerem uma função santa, não podiam se casar com uma
prostituta, nem com uma moça que não fosse virgem ou com uma mulher
divorciada (Lv 21.7).
Dentre os trechos da lei que tratavam sobre o casamento, talvez a
passagem de Deuteronômio 24.1-4 fosse a que mais causava controvérsias.
Segundo esse texto, uma mulher que tivesse se divorciado e casado novamente
não poderia voltar para o seu ex-consorte, nem mesmo se o seu segundo marido
morresse (Dt 24.2-4).
É provável, porém, que a parte mais discutida do texto de Deuteronômio
24 fosse o versículo 1, que dizia que o marido podia dar certidão de divórcio à
sua esposa caso encontrasse nela algo que não fosse do seu agrado. Como é
praticamente impossível definir nessa passagem o limite exato do direito dado ao
marido que quisesse se divorciar, os rabinos da época defendiam opiniões
divergentes, sendo uns mais liberais, enquanto outros se mostravam bastante
rigorosos em suas concepções.
No tocante a esse assunto, as escolas rabínicas mais conhecidas que se
opunham entre si eram a de Hillel e a de Shammai. Stuart Weber resume muito
bem a concepção dessas duas vertentes:

Em Israel, durante o primeiro século, o divórcio e o


novo casamento eram temas tão polêmicos quanto são hoje.
A escola de pensamento do rabino Hillel nutria visões
bastante liberais sobre o assunto, admitindo o divórcio por
qualquer motivo. Hillel aceitava o divórcio até no caso de
uma refeição malcozida ou se o marido visse uma mulher
que considerasse mais atraente. Já a escola do rabino
Shammai era bem rigorosa, permitindo o divórcio somente
por motivos graves, especialmente o adultério.[125]

Inspirados, assim, nessas discussões sobre o divórcio, os inimigos de


Jesus, movidos especialmente pelo desejo de colocá-lo à prova, perguntaram-lhe
certa vez se era permitido ao homem se divorciar de sua mulher por qualquer
motivo (Mt 19.3). A resposta do Mestre destacou então a origem sobrenatural do
casamento (Gn 1.27) e a indissolubilidade implícita na expressão “uma só carne”
(Gn 2.24), frisando afinal que marido e esposa não devem se separar (Mt 19.4-
6).
Diante dessa reposta, os fariseus recorreram a Deuteronômio 24.1,
precisamente o texto que diz que o homem pode dar certidão de divórcio à sua
esposa, caso não se agrade dela. O claro objetivo deles era acusar Jesus de
ensinar lições contrárias às Escrituras.
Nesse ponto, porém, Jesus enunciou uma importante verdade: Deus não
criou o divórcio e, então, o inseriu na lei, como pensavam muitos judeus da
época (e ainda pensam muitas pessoas hoje). Não! Ele havia apenas dado
instruções para regulamentar uma prática desordenada inventada pelos homens
por causa da dureza do seu coração (Mt 19.8).
Em seguida, Jesus acrescentou: “Eu, porém, vos digo: quem repudiar sua
mulher, exceto no caso de relações sexuais ilícitas, e casar com outra comete
adultério” (Mt 19.9). Como se vê, sua concepção acerca do divórcio é rigorosa,
permitindo que se recorra a esse expediente somente em caso de “relações
sexuais ilícitas”.
No aspecto referente à possibilidade do divórcio, o ensino de Jesus é, de
fato, bastante claro. O problema que se levanta em face de Mateus 19.9 é que a
expressão “exceto no caso de relações sexuais ilícitas” (a chamada cláusula de
exceção) parece aceitar a possibilidade não só do divórcio, mas também do novo
casamento, pelo menos para a parte que foi vítima da infidelidade do seu
cônjuge.
Essa impressão que o texto passa, contudo, não deve enganar o estudioso
da Bíblia. Isso porque, na verdade, à luz da gramática grega e do ensino geral do
Novo Testamento, a cláusula de exceção pronunciada por Jesus só pode ser
aplicada ao repúdio e não ao novo casamento.[126]
De fato, um número notável de grandes exegetas é unânime em dizer
que, no texto em questão, a exceção é aplicável apenas ao divórcio,
permanecendo vedado o segundo casamento, mesmo em casos de adultério.
É o que explica o doutor em línguas bíblicas Carlos Osvaldo Cardoso
Pinto:

As palavras de Jesus em Mateus 19.9, conforme


entendidas por todos os comentaristas cristãos até o século
XVI (com a única exceção, Ambrosiastro, no século IV),
declarava que recasamento depois de divórcio implica
adultério para todos os envolvidos... Essa posição, menos
popular e praticamente mais complexa, entende que a frase
“exceto em caso de relações sexuais ilícitas” (a chamada
“cláusula de exceção”) modifica apenas a frase “Se um
homem se divorciar de sua mulher”, o que, em linguagem
técnica, se chama prótase (oração condicional) e não a
frase seguinte, “e casar com outra comete adultério”, que
os eruditos chamam de apódose (oração principal).[127]

Continuando sua exposição, o professor afirma que “a gramática e a


estatística do Evangelho de Mateus exigem que a cláusula de exceção se refira
apenas à frase que a precede”. Daí conclui que “o sentido das palavras de Jesus
em Mateus 19.9 seria, portanto: ‘O marido não pode repudiar (divorciar-se de)
sua mulher a não ser que ela seja culpada de comportamento sexual ilícito.’ E
mais: ‘Quem se casar depois de repudiar sua esposa comete adultério’.”[128]
Ao fim de toda essa discussão, alguém poderá perguntar: Por que o nexo
matrimonial é tão forte até o ponto de somente a morte poder quebrá-lo? A
resposta a essa questão está no fato de o casamento não ser um simples contrato
firmado entre duas partes, produzindo efeitos meramente naturais. Antes, o
casamento tem origem divina, produzindo nexos que ultrapassam a compreensão
humana.
Recorde-se mais uma vez que, segundo a Bíblia, quando duas pessoas se
casam, ambas se tornam uma só carne (Gn 2.24), passando a existir um elo tão
forte entre elas que a simples separação de corpos ou a distância geográfica é
incapaz de quebrar.
Trata-se, portanto, de um elo mais forte que o da filiação. Com efeito,
todos sabem que o vínculo natural entre pais e filhos é fortíssimo, de maneira
que ninguém deixa de ser filho pelo simples fato de não conviver mais com os
pais. Ora, se é assim no caso do elo natural de filiação, muito mais forte deverá
ser considerado o elo sobrenatural do casamento em que as partes são tidas como
“uma só carne”, algo jamais dito acerca da relação pai/filho.
Vê-se, desse modo, que a ética cristã do casamento é extremamente
elevada e deve ser defendida a todo custo nos dias modernos. Aliás, é
significativo que João Batista, o primeiro mártir do Novo Testamento, foi preso e
decapitado precisamente por defender a ética bíblica do matrimônio (Mt 14.3-
12), o que deveria inspirar os cristãos modernos a se dispor muito mais na defesa
desses mesmos valores.
Concluindo, em face de tudo que foi dito, a igreja de Deus não pode
concordar com o segundo casamento de alguém cujo cônjuge ainda esteja vivo.
Por isso, essa igreja não incentivará nem promoverá o casamento de pessoas
nessa condição, apontando o erro de quem segue nessa direção.
Entretanto, é bom destacar que pessoas divorciadas que chegam à igreja
já tendo constituído nova família não devem ser rejeitadas. Evidentemente,
nesses casos, não há nada que fazer senão aceitar a situação tal qual se encontra,
pois seria muito prejudicial forçar a dissolução do segundo casamento e quase
sempre impossível viabilizar a restauração do primeiro. Por isso, crentes nessas
condições devem ser recebidos normalmente na igreja, sendo-lhes apenas vedada
a ocupação de cargos de liderança ou orientação espirituais (1Tm 3.2,12).
Perguntas frequentes

1) É necessário que o crente se case na igreja?


Não. Conforme visto, o casamento na igreja não é sequer mencionado na Bíblia.
Já foi exposto que nos tempos do AT existiam formalidades muito diferentes das
realizadas em igrejas cristãs. Também nos tempos do NT, os casamentos
seguiam rituais que envolviam cortejos, banquetes e festividades. Essas são as
formas de casamento mencionadas na Bíblia. Nenhuma cerimônia na igreja é
mencionada, ainda que essa seja uma boa e útil tradição.

2) Uma pessoa que convive há décadas com outra, tendo filhos e bens em
comum, sem, no entanto, casar-se, tem vínculo conjugal com seu consorte?
Não, não tem. O vínculo conjugal não se perfaz com a passagem do tempo, nem
com o nascimento de filhos, nem com a aquisição conjunta de bens. Tudo que a
passagem do tempo faz numa relação de convivência entre um homem e uma
mulher não casados é tornar seu pecado mais velho, pois qualquer conúbio
carnal fora do matrimônio é pecado.
Como dito acima, para que o vínculo conjugal se perfaça, é preciso que haja
vontade livre, ato solene e intercurso sexual. No caso em pauta, falta o ato
solene. Portanto, não há vínculo conjugal unindo o casal hipotético mencionado
na pergunta.

3) É possível que alguém estabeleça vínculo conjugal com mais de uma pessoa?
Sim, é errado, mas é possível. A Bíblia vislumbra essa possibilidade, fazendo
alusão a homens com mais de uma esposa (recorde-se os vários personagens do
AT e também 1Tm 3.2,12).
O fato é que sempre que se realizarem os três fatores que perfazem o casamento
(vontade livre, ato solene e intercurso sexual), o vínculo surgirá, mesmo que o
outro cônjuge ainda esteja em vida. Isso, no entanto, gerará uma condição de
bigamia (ou até poligamia), reprovada na Bíblia.

4) A pessoa que se divorcia e se casa novamente, estando o seu ex-consorte


ainda em vida, não passa a viver em adultério permanente?
A relação sexual inaugural da pessoa que contrai novas núpcias estando o seu
ex-consorte ainda em vida é uma relação adulterina, como se depreende de
Mateus 5.31, 19.9 e Romanos 7.2-3.
Essa relação, porém, uma vez consumada e estando presentes os outros dois
elementos que perfazem o casamento (a vontade livre e o ato solene) gera
vínculo, tornando o novo consorte um cônjuge de fato. A partir daí, não se pode
mais dizer que as relações sexuais do novo casal são adulterinas, posto que
ambos estão realmente casados entre si.
O que se poderá dizer é que vivem numa situação irregular de bigamia (o que
impede o exercício de cargos de liderança na igreja, nos termos de 1Tm 3.2,12),
mas não na condição de adúlteros (o que os impediria até de serem membros da
igreja), posto que o casamento deles existe e é real, ainda que seja irregular.[129]
É bom frisar que na igreja do NT havia homens com mais de uma esposa. Do
contrário, Paulo não teria de fazer as restrições encontradas em 1Tmóteo
3.2,12. Talvez os homens a que Paulo se refere fossem considerados maridos de
mais de uma mulher por terem se casado novamente estando o ex-cônjuge ainda
em vida. É curioso, porém, que não há nenhuma ordem para que aqueles
homens sejam disciplinados por viver em adultério. Existe somente a orientação
para que não assumam cargos de liderança espiritual. Esse é um forte indício de
que o recasamento não implica adultério permanente. Se fosse assim, não
haveria como manter aqueles homens mencionados em 1Timóteo 3.2,12 na
membrezia da igreja.

5) Como tratar os casais que chegam à igreja e não são casados, vivendo uma
relação de concubinato?
O pastor deve orientá-los a suprir o elemento que falta para o surgimento do
vínculo conjugal — no caso, o ato solene. Isso poderá ser feito por meio do
casamento civil.

6) Como receber na igreja os casais que vivem em concubinato, mas um dos


conviventes é divorciado?
O ideal é que se separem e que a parte divorciada se reconcilie com o ex-
cônjuge ou simplesmente fique só (1Co 7.10-11). Porém, muitas vezes, a
convivência de um casal assim é muito antiga, tendo gerado filhos e muitos
liames entre os cônjuges. Nesses casos, a separação entre ambos e/ou a volta do
divorciado para seu cônjuge anterior são, geralmente, impossíveis ou podem
trazer danos ainda maiores às pessoas envolvidas (especialmente os filhos).
O fato é que várias situações com as quais o pastor e a igreja precisam lidar
não têm solução perfeita. Então, o melhor é reduzir os erros até onde for
possível, fazendo apenas com que o casal se case, saindo pelo menos da relação
de concubinato.
7) Como o pastor deve lidar com a ameaça de ser punido pelo Estado, caso se
recuse a realizar casamentos homossexuais?
Ele deve enfrentar corajosamente a situação, mantendo-se firme em suas
convicções. Na Bíblia, é ensinado que as ordens das autoridades humanas não
podem ser postas acima da Palavra de Deus e que os santos devem preferir o
castigo humano a se curvar diante de ordens que contrariam a vontade do
Senhor (Dn 3.13-18; 6.6-10; At 4.18-20).

8) Que orientações seriam úteis para o pastor seguir na realização de uma


cerimônia de casamento?
Devido à profunda preocupação de harmonizar todos os atos da igreja com o
que está disposto na Palavra de Deus, somente casamentos entre pessoas que
não estejam em jugo desigual devem ser realizados pelo pastor. Assim, ele
jamais deve celebrar a cerimônia de enlace de um crente com um incrédulo
(1Co 7.39; 2Co 6.14-16).
Também em face de suas convicções ético-doutrinárias, sempre fundamentadas
na Sagrada Escritura, o pastor não realizará casamentos entre pessoas
divorciadas (Mt 5.31; 19.9).
À igreja que quer ser zelosa, recomenda-se que todas as cerimônias de enlace
feitas em suas dependências sejam realizadas pelo seu próprio pastor. A
eventual participação de outros pastores na cerimônia deverá ser precedida de
cuidados, pois não se pode admitir que programas conduzidos por pessoas sem
nenhum preparo comprometam a identidade e o bom nome da igreja diante do
número enorme de convidados presentes a esses eventos.
Visando também à preservação de sua identidade, a igreja cuidadosa terá
controle sobre as participações especiais nos programas de casamento,
cuidando para que sejam feitas somente por pessoas crentes.
Capítulo 13 – A LIBERDADE E A CONDUTA CRISTÃ
Com a proliferação das seitas evangélicas, acompanhada da crescente
ignorância do povo acerca do que a Bíblia ensina, um número enorme de pessoas
que se dizem cristãs passou a se sujeitar a severos sistemas de conduta
inventados por homens, sempre sob a ameaça da perda da salvação para aqueles
que tentam se livrar desses jugos.
Normas que restringem a vestimenta, o corte de cabelo e o uso de
maquiagem para as mulheres; regras que vedam a ida ao cinema, à praia e aos
estádios de futebol; leis que proíbem ouvir música secular e assistir à televisão;
e, especialmente, regulamentos que impõem a guarda de dias e a abstenção de
alimentos fazem parte da vida religiosa de muita gente que, sob a ilusão de estar
fazendo o que Deus manda, vive debaixo de intensa escravidão.
O fato é que a liberdade para a qual Cristo libertou o homem salvo (Gl
5.1) não é nem de longe conhecida por esse povo infeliz que, quando se vê
cansado sob o peso de tantas exigências, busca alívio na hipocrisia, na farsa e na
tentativa de fazer as coisas às escondidas.
A igreja de Deus não compactua com essas ou outras formas de
escravidão. Nela a liberdade do crente é preservada e protegida como um bem
precioso conquistado na cruz (1Co 7.23) — um bem do qual o cristão deve
desfrutar com sabedoria, equilíbrio, maturidade e amor.

Os critérios para o desfrute da liberdade cristã

O cristianismo não é uma religião caracterizada por proibições. Com


efeito, o apóstolo Paulo ensina que todas as coisas são lícitas para os crentes
(1Co 6.12; 10.23), e que o servo do Senhor não deve se deixar escravizar por
regrinhas tolas (Cl 2.20-23). Por isso, a igreja de Deus não mantém nenhum
conjunto de normas legalistas que diga o que o crente pode ou não fazer.
Contudo, é preciso levar em conta que, no mesmo texto em que Paulo diz
que todas as coisas são lícitas, também diz que nem tudo convém e que o crente
não pode se deixar dominar por nada (1Co 6.12). Noutra passagem, o apóstolo
acrescenta que, apesar de todas as coisas serem lícitas, nem tudo edifica (1Co
10.23b).
Paulo declara ainda que não é certo fazer qualquer coisa que escandalize
ou entristeça um irmão, mesmo quando o que se faz não seja necessariamente
errado (Rm 14.21; 1Co 8.13; 10.32). Ele explica que isso deve ser levado muito
a sério porque o amor se situa acima da liberdade (Rm 14.15; 1Co 8.9; Gl 5.13).
Assim, para desfrutar de sua liberdade de maneira sábia, o crente deve
avaliar suas ações sob a luz de quatro perguntas:

1. O que faço ou pretendo fazer convém a um cristão?


2. Esse modo de agir edifica?


3. A prática que tenho adotado está me escravizando?


4. Ao fazer isso, algum irmão em Cristo fica escandalizado, triste ou


decepcionado comigo?

Se responder honestamente a essas perguntas, o crente, mesmo livre do


pesado fardo das regras legalistas, evitará, por exemplo, as diferentes formas de
excesso (na comida, na bebida ou no lazer), o modo de vestir impróprio (1Tm
2.9-10; 1Pe 3.3-4) e a escravidão ao trabalho, à TV, à Internet ou às redes
sociais. Ele também será tolerante e paciente no trato com os irmãos que nutrem
escrúpulos diferentes dos dele.
Desse modo, a vida do crente maduro jamais será pautada por regrinhas
sem fim. O que determinará sua conduta serão os critérios acima elencados, os
quais são mais sólidos e eficazes do que meras normas exteriores.
É por isso que, na igreja de Deus, os membros não são forçados a usar
esse ou aquele tipo de roupa, não são ensinados, no caso das mulheres, a usar ou
deixar de usar maquiagem, não são proibidos de ouvir música nem de assistir à
televisão, não são ensinados a evitar este ou aquele alimento (Mc 7.15-20; Rm
14.1-3,6; 1Tm 4.1-5; Hb 13.9), nem são exortados a guardar o sábado, o
domingo ou outro dia qualquer (Rm 14.5; Gl 4.10,11; Cl 2.16-17).
Em vez disso, o que é exigido de cada um é que aja levando sempre em
conta o que convém, o que edifica, o que não escraviza e o que não fere a
consciência dos irmãos. Nenhuma outra carga pode ou deve ser colocada sobre
os ombros dos crentes.

As festas e símbolos religiosos

Ainda que para alguns, o assunto pareça de pouca relevância, é notável o


número de pessoas que procuram orientação pastoral no tocante a ser lícito ou
não ao cristão ter em casa um pinheirinho de Natal ou comprar um ovo de
Páscoa. Muitos desses questionamentos surgem como resultado de preocupações
reais, uma vez que há vários líderes eclesiásticos dizendo que semelhantes festas
(especialmente por causa das datas em que são comemoradas) e seus respectivos
símbolos são de origem pagã e, por isso, o cristão deve se afastar de tudo que
está ligado a essas coisas.
Esse modo de ver as coisas, porém, não é correto. Na verdade, as bases
sobre as quais essas opiniões se fundamentam são excessivamente frágeis e não
suportam o confronto histórico ou bíblico, sendo apenas uma espécie de
“terrorismo psicológico” travestido de zelo espiritual, tudo com o objetivo
infantil de impressionar os mais simples com sua aparência de seriedade.
Em primeiro lugar, deve-se salientar que as origens pagãs de um costume
não podem, por si só, torná-lo inválido ou reprovável. Inúmeros são os
elementos da cultura moderna que surgiram da mais detestável superstição pagã
e, no entanto, são recebidos por crentes e incrédulos com toda a naturalidade. Na
verdade, é impensável e até tola a mera sugestão de bani-los.
Vejam-se alguns exemplos: o costume de a noiva vestir-se de branco para
a cerimônia do casamento, a instalação de lareiras dentro de casa, a construção
de muros nos limites das propriedades, o uso de colares, pulseiras e outros
ornamentos, a realização de festas de aniversário... Todas essas práticas tão
comuns no dia a dia das pessoas de hoje são apenas alguns exemplos de
costumes que nasceram no seio da religião pagã dos povos antigos, sempre com
conotações cultuais e com o objetivo de obter o favor de falsos deuses.
Acresçam-se a isso tudo os conceitos atualmente tão familiares de
adoção, cidadania, propriedade e herança, todos oriundos do paganismo pré-
cristão.[130] Ora, se a origem pagã de algo o torna ilícito, como os crentes devem
reagir a isso tudo? Devem remover as lareiras de suas casas? Devem quebrar
seus muros? Devem proibir que as moças da igreja se casem de branco? Devem
evitar festas de aniversário? A simples menção dessas questões mostra quão
absurdo é o rigor de quem se insurge contra enfeites de Natal ou ovos de
chocolate!
O fato é que, se a origem pagã de uma prática constituísse fator suficiente
para que essa mesma prática fosse rejeitada, os cristãos não poderiam sequer
praticar esportes, já que os jogos olímpicos, nas suas mais diversas modalidades,
surgiram no contexto religioso helenista da Antiguidade.[131]
Em face disso tudo, é possível deduzir o seguinte princípio: quando o
crente se vê diante de um determinado costume, não deve olhar para as suas
origens, mas sim para o propósito com que o referido costume é praticado no
presente. É a partir dessa análise que se deve concluir se tal costume é bom ou
mau.
Esse princípio será denominado aqui Princípio da Legitimidade de
Propósitos. Tendo-o em mente, será possível perceber, por exemplo, que não há
nada de errado em ter lareira em casa, pois, ainda que essa prática, quando se
originou entre os pagãos, tivesse por propósito manter acesa a chama dos deuses
nos lares (daí o nome “lareira”), hoje seu propósito é outro: o homem moderno
que constrói uma lareira quer apenas aquecer sua casa, nada mais.
Se esse mesmo princípio for aplicado a certos costumes que há nas
igrejas de hoje, será possível descobrir facilmente que os propósitos com os
quais são observados nem sempre são reprováveis, nada havendo de errado em
mantê-los.
Considerem-se agora, à luz disso tudo, as eventuais (e improdutivas!)
controvérsias sobre pinheirinhos, ovos de Páscoa e coisas do gênero. Se os
pagãos dos tempos antigos veneravam o pinheiro como símbolo de imortalidade,
ou davam ovos de presente para manter viva a crença nos deuses da fertilidade,
ou mesmo adoravam (num determinado dia) esta ou aquela “deusa-mãe”,
nenhum desses propósitos persiste atualmente quando alguém enfeita um
pinheiro no Natal, compra ovos de Páscoa ou comemora o Dia das Mães.
Os pinheiros de Natal de hoje têm propósitos meramente ornamentais,
distribuir ovos de Páscoa tem o simples alvo de deixar as crianças contentes e
comemorar o Dia das Mães tem como objetivo somente dizer a elas um “muito
obrigado” de forma mais especial.
Tudo isso é muito lógico. Contudo, não é só com a ajuda do raciocínio
lógico que o crente deve adotar o princípio da legitimidade de propósitos. Na
verdade, esse princípio está presente nas Sagradas Escrituras de modo
surpreendente!
De fato, há algumas notáveis ocasiões em que a Bíblia atribui
pecaminosidade ao propósito de uma prática — e não à pratica em si. Por
exemplo: no Antigo Testamento, Deus proíbe fazer imagens de escultura (Êx
20.4). No entanto, o mesmo Deus ordenou que dois querubins de ouro fossem
fabricados e colocados sobre o propiciatório, cobrindo a arca da aliança (Êx
24.17-22). Também é dito no livro de Números que o Senhor ordenou que
Moisés fizesse uma serpente de bronze para a qual os israelitas picados por
serpentes deviam olhar a fim de ser curados (Nm 21.4-9).
Desses exemplos se conclui que o pecado não estava em fazer uma
imagem, mas sim no propósito com o qual a imagem fosse feita. As imagens de
ouro dos querubins sobre a arca tinham o propósito de ilustrar a presença, a
santidade e a glória de Deus; e a imagem da serpente de bronze tinha o propósito
de curar os israelitas que para ela olhassem, simbolizando também a morte de
Cristo, que, como aquela serpente, seria “levantado” um dia (Jo 3.14-15). Uma
vez que o propósito daquelas imagens era bom, nada havia de errado em
construí-las e, de fato, o Senhor mesmo ordenou que as fizessem.
Vale insistir, portanto, no fato de que o pecado não está em ter ou fazer
uma escultura, mas sim no uso que se faz dela. Aliás, deve-se lembrar que
quando Deus proibiu que se fizessem imagens, mostrou que o erro seria adorá-
las e curvar-se diante delas (Êx 20.5). Quando o propósito das imagens fosse a
ornamentação ou a ilustração, como visto acima, nada havia que condenar.
A citada história da serpente de bronze, quando considerada em seu todo,
ilustra ainda mais o princípio da legitimidade de propósitos. A Bíblia mostra que,
enquanto o objetivo daquela imagem foi fazer com que os israelitas exercitassem
sua fé ao olhar para a serpente esperando a cura, ou enquanto permaneceu
apenas como um símbolo de Cristo, que também um dia salvaria todos os que
para ele olhassem, nada houve de errado em manter a serpente de bronze entre o
povo.
Quando, porém, o propósito com que a mantinham mudou, e os israelitas
passaram a guardá-la com o objetivo de adoração, queimando-lhe incenso e
chamando-a de Neustã, foi necessário destruí-la (2Rs 18.1-4). O bom propósito
pelo qual foi feita foi substituído por um propósito perverso e, por isso, não foi
possível dar continuidade à sua preservação.
Fica, pois, provado que as Escrituras Sagradas admitem o princípio
exposto aqui, a saber: muitas vezes, a manutenção de certas práticas ou costumes
é válida dependendo das razões que a motivam. Em outras palavras, uma mesma
prática pode ser certa ou errada, dependendo do propósito com o qual é mantida.
Desviar-se de passar por debaixo de uma escada pode ou não ser pecado.
Se alguém se desvia para evitar o azar, como fazem os tolos em geral, comete o
pecado da superstição. Se, entretanto, alguém se desvia porque vê a
possibilidade de uma lata de tinta cair na sua cabeça, demonstra prudência.
Note-se que, em ambos os casos, a conduta é idêntica. Contudo, cada
hipótese é motivada por razões distintas: uma reprovável, outra não. No primeiro
caso, o que se desvia da escada incorre no desagrado de Deus; no segundo, o que
se desvia demonstra cautela, o que Deus aprova, já que sempre censura os
incautos em sua Palavra.
Aplicando tudo isso à questão de festas cristãs tradicionais (notadamente
o Natal e a Páscoa) acompanhadas de seus símbolos tantas vezes mantidos
dentro de casa e da igreja, conclui-se que nada obsta a sua manutenção, uma vez
que os propósitos que abrigam são aceitáveis e em nada perniciosos.
É importante que uma ressalva seja feita aqui. Se essas práticas deixam
pessoas da igreja escandalizadas e confusas, o melhor será não mantê-las. A paz
no seio da igreja é mais importante do que a decoração — e é melhor manter a
unidade do que as tradições.
A liberdade de que os crentes desfrutam na casa de Deus ou em qualquer
lugar deve ser limitada pelo amor aos irmãos, conforme já foi destacado (Rm
14.15-16,19-21; 15.1-3; 1Co 8.9-13). Se o uso dessa liberdade faz alguém sofrer,
que se abra mão dela, pois nenhum proveito haverá em iluminar um pinheiro
com lâmpadas coloridas e deixar o próprio coração na escuridão do descaso e da
indiferença para com os que, entre os santos, estão incomodados e tristes.
Duas questões

1) Os pais crentes podem deixar seus filhos participar de festas juninas e das
comemorações de Halloween?
Se o propósito das festas juninas é manter acesa a tradição cultural e religiosa
do povo brasileiro em seu aspecto de veneração a Santo Antônio, São João e
São Pedro (e esse parece ser o caso), então nenhum crente deve participar
delas.
Ainda que certo tom de inocência e ausência de malícia permeie essas
comemorações, é inegável que as escolas, na busca de seus objetivos sociais,
que incluem situar os pequeninos no ambiente cultural em que nasceram, e no
dever de ensinar aos alunos de modo ilustrativo as tradições do seu povo, nunca
poderão deixar de dar às festas juninas cunho fundamentalmente católico-
romano. Tanto isso é verdade que as imagens dos “santos” celebrados estão
sempre presentes nessas festividades.
Sendo, portanto, esses os objetivos dessas festas, os pais cristãos não devem
permitir que seus filhos participem delas e devem aproveitar a oportunidade
para ensinar aos pequeninos que os crentes em Cristo têm um só Deus e é
somente a fogueira de adoração a ele que deve ser mantida sempre acesa no
coração (Dt 6.4-7).
Quanto às comemorações de Halloween, é possível que um de seus objetivos,
além da diversão, seja a banalização do mal sobrenatural, criando e nutrindo a
mentalidade de que os poderes de trevas são apenas temas de brincadeiras.
Mais uma vez, se for esse o caso, os crentes não devem de forma alguma
cooperar com o sucesso desse tipo de evento.

2) Se não é errado fazer imagens para fins decorativos ou didáticos, por que os
crentes não usam figuras e estátuas somente com esses objetivos?
Na verdade, os crentes usam imagens religiosas com esses objetivos. Os livros
infantis adotados nas classes de crianças das igrejas evangélicas são repletos de
figuras de Maria, de José, de Jesus, dos profetas e dos apóstolos. Em muitas
igrejas evangélicas também existem quadros com temas bíblicos e até cruzes
ornamentando as paredes. Nenhum crente se opõe a isso porque sabe que o
objetivo dessas figuras é o ensino e a decoração, nunca a veneração.
Já no tocante à questão das imagens esculpidas, a história eclesiástica alerta
para o fato de que seu uso, mesmo para fins de decoração, não é recomendável.
Os vários séculos de história do cristianismo revelam que, por alguma razão,
diante de estátuas de natureza religiosa, o vulgo, movido pela ignorância e pela
superstição, logo passa a venerá-las, desvirtuando o propósito original para o
qual foram feitas (Veja-se o já citado texto de 2Rs 18.1-4).
Por isso, a igreja cuidadosa não tem nenhuma imagem de escultura, nem mesmo
para fins de estética. Essa foi uma lição aprendida a partir da longa
observância de fatos passados.
Capítulo 14 – A PRÁTICA DE ENFRENTAR A MORTE
A igreja de Deus, representada na pessoa de cada um dos seus membros,
deve aprender a se comportar adequadamente diante da morte. O estilo de vida
do crente verdadeiro não é mera representação teatral que, em face dos mais
profundos sofrimentos da vida, permite tirar a máscara de santidade e revelar
desespero e ódio contra Deus. Ao contrário, a verdade é que no enfrentar das
situações realmente difíceis, nas quais é impossível manter qualquer grau de
hipocrisia ou falsa piedade, a magnitude do caráter cristão maduro desponta com
brilho ainda maior.
Que situação mais difícil o homem pode enfrentar do que a morte? É ela
o terrível legado que a humanidade herdou dos seus primeiros pais, que
desobedeceram ao Criador no Éden (Gn 2.15-17; 3.19; Rm 5.12). É o pagamento
indesejado que o ser humano recebe por ter pecado (Rm 6.23). É o fim para o
qual cada um caminha a passos largos (Ec 12.1-7). Mais do que isso, é o inimigo
inexorável que vem no encalço de todos para, no inevitável dia do encontro,
deixá-los prostrados, sem exceção (Lc 12.20).
Que é ensinado na igreja de Deus sobre o modo como o cristão deve se
comportar diante da morte? Conforme o entender dos mestres dessa igreja, qual
deve ser a postura do crente quando um ente querido seu parte desta vida? Como
ele pode ajudar de modo real e significativo os enlutados? E quando a morte,
enfim, o vier chamar, como deverá proceder?
As respostas dadas a todas essas perguntas devem ter como fundamento
as Sagradas Escrituras. É na Bíblia que se obtêm respostas claras e precisas para
todas as questões relacionadas à morte, o cruel e último inimigo.

Práticas salutares para o crente enlutado

O Livro Sagrado mostra que, quando se perde um ente querido, a tristeza


e o choro diante de fato tão doloroso não são censuráveis.
Davi, homem de Deus, pranteou amargamente a morte de seu filho
Absalão (2Sm 18.32-33). Marta e Maria foram consumidas de tristeza pela
morte de Lázaro, morte essa que levou o próprio Senhor Jesus, doador da vida,
às lágrimas (Jo 11.33-35). O historiador Lucas conta que, quando Estevão
morreu apedrejado, homens piedosos o sepultaram e fizeram “grande pranto
sobre ele” (At 8.2). O mesmo Lucas narra o quanto os crentes de Jope choraram
a morte de Dorcas, irmã amada por todos daquela igreja (At 9.36-39).
Com efeito, inúmeros são os exemplos de homens e mulheres de Deus
que choraram muito quando viram seus queridos mortos.
O apóstolo Paulo ensina que, quando o falecido é crente, o desespero por
sua morte deve ser evitado. Entretanto, Paulo não diz que é errado se entristecer
nessas ocasiões. Na verdade, diz apenas que o cristão não deve se entristecer
“como os demais que não têm esperança” (1Ts 4.13). Conforme se deduz do
ensino do apóstolo, esse tipo de tristeza tão comum nos incrédulos só se aloja no
coração de um crente quando ele esquece o fato de que os salvos ressuscitarão
um dia.
De fato, para Paulo, a amarga tristeza dos incrédulos enlutados está
associada à sua falta de esperança. Logo, segundo o apóstolo, os crentes não
devem se entristecer como eles, uma vez que, cientes da ressurreição futura, têm
real esperança (1Co 15; 1Ts 4.13-18). E, não bastasse essa bendita certeza, vem
ainda em auxílio dos crentes enlutados a lembrança do lar celestial, presente
morada das almas dos santos que partem deste mundo (Lc 16.22; 23.42-43; Fp
1.21-23; 2Tm 4.18).
É claro que esses consolos não funcionam na hipótese de o defunto ser
incrédulo. Porém, mesmo nesses casos, não fica o crente desamparado, pois
conta com a atividade sobrenatural do Consolador Divino, que lhe alivia as mais
profundas dores (Jo 14.16-17; Rm 8.26-27), podendo ainda descansar na
realidade da soberania de Deus.
Segundo a Bíblia, uma prática que pode ajudar muito o coração enlutado
é o isolamento temporário. Esse isolamento tem por propósito o dedicar-se à
oração e não deve ser feito em prejuízo de deveres e responsabilidades comuns.
Isso se aprende com o exemplo do próprio Mestre. Quando Jesus recebeu
a notícia de que João Batista havia sido decapitado (Mt 14.1-12), procurou um
lugar isolado (Mt 14.13). O grande assédio de uma multidão doente e faminta
interrompeu seu retiro por algum tempo (Mt 14.13-21). Porém, depois de
cumprir seu trabalho, ele buscou novamente o isolamento e orou só, sobre o
monte (Mt 14. 22-23). Mateus diz que esse isolamento em razão do luto durou
cerca de dez horas (Mt 14.25)!
Talvez os crentes entristecidos pela morte de alguém ficassem surpresos
com o efeito restaurador e didático dessa prática. Infelizmente, o que se veem
com frequência são cristãos enlutados derramando o coração diariamente diante
de amigos, psicólogos, pastores e conselheiros. É claro que isso tem seu lugar e
valor, mas nada pode substituir a busca do consolo de Deus, diante de quem se
deve derramar o coração todo o tempo (Sl 62.8; Mt 11.28-30; Fp 4.6-7) e em
cuja Palavra é possível encontrar alívio para a alma (Sl 19.7; 119.50).
No episódio narrado por Mateus e citado acima, é notável outro exemplo
deixado pelo Mestre. O texto mostra que, mesmo entristecido pela morte tão
cruel de João, o Senhor Jesus Cristo, ao invés de ser amparado, amparou os
outros. Ele socorreu uma multidão necessitada, quando seu próprio coração
sofria (Mt 14.14, 19-21). Nisso também os crentes devem imitar seu Salvador.
Devem ser como o trigo que, esmagado, produz pão puro para alimentar os que
estão ao redor.
Outra lição acerca do comportamento do crente enlutado está no livro de
Jó. Todos conhecem a tocante história desse homem piedoso que perdeu bens,
saúde e filhos em meio a uma tempestade de provas que o Senhor lhe enviou (Jó
42.11). Todos também conhecem aquelas que talvez sejam suas palavras mais
marcantes, pronunciadas logo depois que recebeu a notícia da morte de seus
filhos: “…o Senhor o deu, e o Senhor o tomou; bendito seja o nome do
Senhor!”. O texto bíblico diz que Jó fez essa declaração após ter se lançado em
terra, em atitude de plena adoração a Deus (Jó 1.18-21).
Isso mostra que, quando está enlutado, o cristão deve fazer que de seus
lábios flua o louvor decorrente do reconhecimento da soberania de Deus. Trata-
se de um gesto chamado pelo autor da carta aos Hebreus de “sacrifício de
louvor” (Hb 13.15), ou seja, um louvor associado à dor, que brota do coração
sangrento de quem sofre. Esse tipo de louvor só pode ser esperado do homem
que confessa Jesus Cristo e descansa na certeza de que todas as coisas o Senhor
realiza de conformidade com sua vontade boa e soberana.
Por isso, quando morre um ente querido, não é correto o crente ficar
perguntando inconformado por meses e anos a fio: “Por quê? Por quê? Por
quê?”. Na Bíblia está escrito que é pecado discutir com Deus e questionar suas
ações (Jó 38.1-2; 40.1-2; Is 45.9; Rm 9.20). Proceder desse modo pode ser
evidência de fé rasa, de má compreensão de quem é o Senhor e de disfarçada
revolta contra sua vontade soberana.

A prática de lidar com os enlutados

Convém agora falar acerca de como o crente deve agir diante de pessoas
que sofrem a dor da separação ocasionada pela morte de um parente ou amigo. É
comum nessas ocasiões que vários indivíduos tentem desempenhar o papel de
consolador, dizendo palavras com as quais pretendem suscitar certo conforto nos
que pranteiam.
Infelizmente, porém, esses consoladores (alguns deles se apresentam até
como pastores!), muitas vezes, dizem as mais grosseiras tolices e devaneios,
acreditando que seus ares artificiais de sabedoria podem emprestar autoridade às
palavras absurdas que proferem. Um diz que o incrédulo morto descansou (!);
outro, que, de algum lugar, a alma do defunto estará cuidando agora daqueles
que aqui permanecem; e outro, ainda, fica enaltecendo virtudes imaginárias do
falecido, suscitando dúvidas nos presentes sobre se vieram ao velório da pessoa
certa.
Todas essas demonstrações de ignorância são absolutamente infrutíferas.
É na Bíblia que se aprende como ajudar os enlutados. Paulo ensina em
1Tessalonicenses 4 com que palavras se devem consolá-los. Ele diz nos
versículos 13-17 que, assim como Jesus morreu e ressuscitou, Deus, mediante
Jesus, um dia trará juntamente em sua companhia os crentes que morreram. Diz
ainda que o Senhor, depois de dar sua palavra de ordem, uma vez ouvida a voz
do arcanjo e ressoada a trombeta de Deus, descerá dos céus, e os crentes mortos
ressuscitarão. Diz também que os cristãos que estiverem vivos nesse dia serão
arrebatados junto com os que hão de ser ressuscitados e, entre nuvens, todos
subirão ao encontro do Senhor nos ares e, então, estarão para sempre com ele.
Depois de expor tudo isso, Paulo diz: “Consolai-vos, pois, uns aos outros
com estas palavras” (v. 18). Por isso, todos os cristãos devem conhecer a fundo
“estas palavras”. Isso os tornará mais úteis no auxílio dos que sofrem em razão
da separação, evitará que emudeçam diante dos que, inconsoláveis, pranteiam a
morte de alguém e colocará freio nos desvios que os indoutos proclamam em
momentos tão propícios à reflexão da verdade.
Evidentemente, as palavras que Paulo escreveu servem apenas para o
consolo dos que choram a morte de crentes. No texto analisado, o apóstolo
ensina sobre a tranquilidade que se pode ter quando se pensa nos mortos em
Cristo (1Ts 4.16).
Em se tratando da morte de incrédulos, nenhuma palavra agradável pode
ser dita a respeito do estado ou do lugar em que a alma deles se encontra. Isso
porque a Palavra de Deus é extremamente amarga quando fala sobre o destino
eterno dos que não receberam Jesus Cristo, crendo nele como Salvador de sua
vida. Tais pessoas, segundo as Escrituras, estão condenadas ao tormento eterno
no inferno, preparado para o diabo e seus anjos, onde o verme não morre e o
fogo nunca se apaga! (Mt 25.41,46; Mc 9.43-48; Lc 16.19-31; Jo 3.36; 2Ts 1.7-
9; Jd 13; Ap 20.11-15).
É claro, porém, que o cristão deve ter tato. Há maneiras sábias e ocasiões
mais propícias para dizer essa verdade aos queridos de um incrédulo que morreu.
Por isso, na hora mais pesada do luto pela morte de um perdido, é recomendável
que o crente concentre suas conversas e discursos não na condição espiritual do
defunto (que já não importa mais), mas na condição espiritual dos ouvintes. Esse
proceder preservará o que realmente é importante e livrará o crente de situações
embaraçosas.
É evidente, entretanto, que se alguém perguntar sobre o destino da alma
do falecido incrédulo, o cristão terá de, cuidadosamente, dizer a verdade. O
consolo enganador é obra do mundo e do diabo, não dos ministros de Cristo. E é
melhor os ouvidos dos enlutados serem alertados por verdades dolorosas que o
coração deles ser iludido com uma falsa paz.
Uma forma sábia de agir diante de perguntas embaraçosas formuladas
nesses momentos é fazer o interlocutor chegar a suas próprias conclusões. Basta
lhe responder brandamente com perguntas do tipo: “A Bíblia diz que só os
crentes em Cristo são salvos. Ele era crente em Cristo?”. Respondendo a essa
questão, o interlocutor chegará às suas próprias conclusões, sejam elas tristes ou
não. Caso responda que não sabe, então o servo do Senhor deverá dizer: “Se não
sabemos se ele morreu tendo fé em Cristo ou não, também não podemos saber
onde a alma dele está”.

O crente em face de sua própria morte

Finalmente, é mister que o crente aprenda, ele mesmo, a morrer. Não


somente a vida do cristão deve servir de exemplo de piedade a todos, mas
também a sua morte (Rm 14.8). Não há dúvida, contudo, de que aprender essa
lição não constitui preocupação presente na mente das pessoas. Afinal, pensam,
no momento fatal não bastará fechar os olhos e partir? O que haveria de
aprender?
O problema é que, por estar despreparado para a morte, o crente poderá
demonstrar fraqueza, covardia e falta de fé diante dela. Enfim, poderá dar
péssimo testemunho exatamente no momento em que sua postura mais deveria
falar ao coração de todos. Pior, depois de dar esse exemplo ruim, não terá
oportunidade de consertar a situação, nem de se explicar diante de quem assistiu
ao vexame, uma vez que a morte é experiência única (Hb 9.27). Quem se
comportou mal no momento de sua partida deste mundo, jamais terá uma
segunda oportunidade.
Os crentes verdadeiros devem se preocupar em honrar o Salvador em
tudo. O Senhor Jesus deve ser engrandecido no corpo do cristão, quer pela vida,
quer pela morte (Fp 1.20). Daí a importância desse tema.
Para morrer de modo exemplar, é fundamental, primeiro, que, nos
momentos finais, o crente mantenha a serenidade (Sl 23.4). É natural que certo
grau de agonia permeie os sentimentos do moribundo, mesmo sendo ele cristão
maduro, visto que a morte, até a mais branda, é sempre amarga. O próprio Jesus
sofreu diante da iminência dela (Mc 14.32-36) e, embora sua agonia não tivesse
como causa apenas o morrer fisicamente, mas toda a terrível experiência de
fazer-se maldição em lugar dos pecadores (Gl 3.13), é inegável que, sendo
plenamente humano, Cristo experimentasse o ardente desejo de viver.
Sendo a morte a experiência que marca o instante em que corpo e alma
têm de, finalmente, se separar (Gn 35.18; Ec 12.7); sendo ela o momento em que
é preciso deixar para trás tudo o que foi construído e todos os amados deste
mundo (Ec 5.15; Lc 12.20); sendo ela o golpe temido por qualquer ser vivo —
uma vez que todos, sem exceção, têm ao menos o instinto de autopreservação e
forte apego à vida, que inegavelmente é boa, já que dada por Deus —, não é de
estranhar que, ao morrer, as pessoas, mesmo crentes, experimentem certa dose
de angústia.
No que estiver a seu alcance, porém, desde que a morte não seja súbita
ou precedida de longo período de inconsciência, deve o cristão, ao enfrentá-la,
esforçar-se por demonstrar firme confiança e até promover a edificação dos que
o cercam em momento tão difícil.
Era assim que Paulo dizia estar pronto para enfrentar a morte. Quando
ele escreveu aos filipenses, estava preso (Fp 1.12-14) e sabia que havia uma
pequena possibilidade de ser condenado à morte. Em face disso, em vez de
revelar preocupação, medo ou insegurança, suas palavras demonstram
entusiasmo, coragem e ousadia (Fp 1.20-21). É que o justo sempre tem
esperança, ainda que veja a morte vindo ao seu encontro (Pv 14.32).
Para se comportar dessa maneira, algo que também pode ajudar muito é o
cristão fazer o que estiver ao seu alcance para deixar em ordem os negócios que
estão sob sua responsabilidade. Essa lição, o próprio Deus ensinou ao rei
Ezequias quando lhe revelou, por meio do profeta Isaías, que sua morte era
iminente (2Rs 20.1).
A preservação da tranquilidade diante da morte é ainda possível
especialmente se o cristão mantiver vivas cinco lembranças: o Senhor está com
ele naquele instante difícil (Sl 23.4); a morte é inimigo já vencido por Cristo
(1Co 15.3,4; 2Tm 1.10); pelo fato de Cristo viver, seus servos também viverão,
já que um dia serão ressuscitados como ele foi (Jo 6.40; 11.25; 14.19; 1Co
15.52; 2Co 4.14; 1Ts 4.16); sua alma vai para o céu assim que seus olhos se
fecharem nesta vida (Sl 49.15; Lc 16.22; 23.43; Fp 1.23; 2Tm 4.18; Ap 14.13); e
Jesus morreu para livrar também do medo da morte, não havendo, portanto,
razão para se aterrorizar com a sua aproximação (Hb 2.14-15).
Além de demonstrar serenidade, outro procedimento recomendável para
o crente que está morrendo é dar orientações sábias àqueles que o Senhor lhe
confiou nos dias desta vida. Vários homens de Deus agiram desse modo quando
perceberam que seus momentos finais se aproximavam. Assim fizeram Moisés
(Dt 32.44-50), Josué (Js 23-24) e Paulo (2Tm 4.1-8), bem como o próprio
Senhor Jesus Cristo (Jo 14-16).
Nem mesmo no leito de morte, o cristão pode esquecer que uma das
grandes responsabilidades que Deus lhe impõe nesta vida é a orientação de
pessoas colocadas por ele sob sua responsabilidade, sejam elas filhos, esposa,
alunos ou quaisquer outras sobre as quais exerça certo grau de influência. Por
isso, é bom terminar a jornada neste mundo realizando essa tarefa.
Assim, evite o cristão perder minutos finais preciosos com o costume
comum de enumerar desejos pessoais vazios do tipo “enterrem meu corpo na
cidade tal”; “não me sepultem sem que antes cheguem todos os meus parentes”;
ou ainda “não se esqueçam de cantar o meu hino preferido no funeral e de ornar
o caixão com flores brancas”. Em vez de perder tempo dizendo o que as pessoas
deverão fazer com seu corpo morto, o cristão deverá mostrar o que elas deverão
fazer com seus próprios corpos vivos.[132]
Em suas horas finais, o crente deve também fazer das promessas e dos
feitos passados de Deus os seus assuntos principais. Essa prática edifica e
consola os circunstantes, além de gerar profunda paz no coração de quem está
partindo.
José, em seus últimos momentos, trouxe à memória de seus irmãos as
promessas de Deus quanto à posse da terra de Canaã (Gn 50.24). Moisés, em
meio às bênçãos que no dia de sua morte proferiu aos filhos de Israel, apontou-
lhes as obras que o Senhor havia feito em benefício deles (Dt 32.1-43). Também
as expressões da benignidade do Senhor e o conteúdo das suas promessas foram
o tema das últimas palavras de Davi (2Sm 23.1-7).
Esses exemplos mostram que, às portas da morte, o coração do cristão
deve estar repleto de gratas lembranças do passado e da doce expectativa quanto
ao futuro glorioso e tão próximo. Por isso, é de esperar que fale dessas coisas, já
que a boca fala daquilo que está cheio o coração (Lc 6.45).
Que ao morrer o crente também demonstre aos que estiverem ao seu
redor que em seu coração não existem rancores e mágoas contra eventuais
inimigos ou desafetos. Morra o cristão como também morreu seu Senhor Divino:
perdoando os que mais o feriram nesta vida e suplicando o favor de Deus sobre
eles (Lc 23.33-34).
Hora tão solene quanto a hora da morte do crente — minutos tão cheios
de significado, já que precedem o momento em que a alma bem-aventurada irá
ao encontro de Cristo — não pode ser manchada por demonstrações de ódio e
contenda. Por isso, todo crente deve partir deste mundo como partiu também
Estevão, isto é, em plena paz: paz consigo mesmo (At 6.15), paz com seu Senhor
(At 7.55-56, 59) e paz com todos os homens (At 7.60).
Finalmente, antes do último suspiro, o cristão deve esforçar-se para que
suas últimas palavras sejam uma oração de autoentrega a Deus. É que o cristão
que tanto imitou Cristo na vida, naturalmente também desejará imitá-lo na
morte. Ora, nosso Senhor crucificado bradou ao morrer: “Pai, nas tuas mãos
entrego o meu espírito!” (Lc 23.46). Estevão, crente piedoso, fez também o
mesmo quando, acometido de terríveis dores, orou dizendo: “Senhor Jesus,
recebe o meu espírito!” (At 7.59).
Ainda dentro deste assunto, existe a importante questão de se o crente, ao
ver a morte se aproximar, deve pedir mais anos de vida ao Senhor. Há quem
suspeite que isso seja sinal de medo, despreparo e fraqueza.
De fato, não há dúvida de que o cristão deve buscar grau tão elevado de
realização na obra cristã que o faça ter a morte como único anelo em certo ponto
da vida (Lc 2.25-32; Fp 1.23). Nem sempre, porém, esse estado já foi alcançado
pelo crente quando o dia da sua morte chega. Além disso, já foi dito que é
natural até mesmo o homem salvo enfrentar certa dose de angústia em face da
morte.
Nada obsta, pois, que, nos momentos em que vê a vida se esvair, o
cristão peça a Deus o prolongamento de seus dias. Não há nada de errado nisso.
O rei Ezequias o fez e obteve resposta positiva do Senhor (2Rs 20.1-7).
Erradamente, muitos pastores ensinam que a longevidade que Deus
concedeu a Ezequias em resposta às suas súplicas foi, na verdade, castigo por
sua insistência na oração. Dizem que nos quinze anos a mais que o Senhor lhe
deu, Ezequias cometeu o terrível erro de mostrar tudo que possuía aos
embaixadores do rei de Babilônia (2Rs 20.12-19; 2Cr 32.24-31) e teve um filho
idólatra, assassino e feiticeiro chamado Manassés, o qual induziu o povo a
inúmeras abominações (2Rs 21.1-9,16), fatos esses que poderiam ter sido
evitados se o rei tivesse aceitado a morte assim que ela lhe foi anunciada.
Diante disso, alguns professores da Bíblia concluem que não se pode
insistir com Deus nos pedidos de oração, nem mesmo quando a pessoa está triste
com a gravidade de uma doença que a levará à morte. Se isso for feito, dizem, as
consequências do atendimento do pedido poderão ser terríveis!
Quem ensina essas coisas, porém, não refletiu o suficiente sobre o texto
das Sagradas Escrituras e demonstra conhecer bem pouco o ensino bíblico sobre
a oração e a história veterotestamentária.
Em primeiro lugar, deve ser observado que o rei Ezequias não insistiu
com Deus em sua oração. A Bíblia diz que ele orou apenas uma vez (2Rs 20.2-3)
e no mesmo instante o Senhor lhe respondeu por intermédio do profeta Isaías
(2Rs 20.4-5). Além do mais, mesmo que o rei tivesse insistido, nada haveria de
reprovável nisso. Ao contrário, sua conduta teria sido correta, uma vez que o
próprio Mestre ensinou que se deve insistir na oração (Lc 11.5-10). Na verdade,
os homens de Deus sempre agiram assim (Dt 9.18; At 12.5), e alguns deles só
pararam quando o próprio Senhor ordenou (Dt 3.23-26; Jr 14.11; 2Co 12.7-9).
Em segundo lugar, é preciso salientar que o nascimento de Manassés não
foi uma consequência má da oração de Ezequias, mas sim um fato de extrema
relevância para a continuidade da linhagem davídica pela qual o Messias viria ao
mundo. Era, na verdade, necessário que Manassés nascesse, uma vez que sua
figura seria fundamental para a continuidade da linhagem messiânica (Mt 1.10).
Além disso, sabe-se que o filho de Ezequias, apesar de ter sido um dos reis mais
diabólicos que houve em Judá, no fim de sua vida se arrependeu e se tornou um
piedoso servo do Senhor (2Cr 33.10-16).
Logo, ao contrário do que dizem, a resposta de Deus ao clamor tristonho
de Ezequias não foi castigo, mas uma bênção belíssima, verdadeira
demonstração de misericórdia e amor (2Rs 20.5-6). Isso porque o Senhor não
atende a súplica do coração aflito de modo vingativo pela insistência e
importunação. Por esse motivo, pode sim, o moribundo clamar por mais tempo.
O Senhor não o castigará por isso. Antes, responderá conforme o seu querer e a
multidão de suas misericórdias, concedendo o melhor para aquele que o busca
no desespero.
De tudo que foi dito, conclui-se que somente quem aprendeu a viver
dignamente saberá morrer dignamente. É ao longo da vida que se adquire
estrutura para enfrentar com intrepidez a morte. Quem, ao longo do viver, jamais
cultivou a serenidade, o senso de responsabilidade, a meditação sobre a Palavra
de Deus, o compartilhar de suas bênçãos, o falar de suas promessas, a
preocupação com os que estiveram sob seus cuidados, o perdão, a vida de oração
e de autoentrega e a busca do socorro em Deus nunca na verdade viveu como
cristão e, por isso, também não deve esperar morrer como cristão. Pois é vivendo
a vida cristã virtuosa que o homem se prepara para morrer a morte cristã
virtuosa. É vivendo do modo que se deve morrer que se morre do modo que se
deve viver.
Dúvidas frequentes

1) No céu, os salvos se lembram das pessoas que conheceram na terra ou das


coisas que lhes aconteceram aqui?
Há quem ensine que a alma do crente, ao entrar no céu, deixa de ter ciência da
existência do inferno ou de outras coisas ruins que possam ameaçar a sua
felicidade. Dizem que, se no céu a alma tiver conhecimento dessas coisas, ficará
triste, e o lar eterno, que é doce, em face dessas lembranças, se tornará amargo.
Contudo, não há a menor razão para crer que a alma do salvo sofra algum tipo
de amnésia quando entra no céu. Na parábola do rico e Lázaro, Jesus mostra
Abraão tendo a mais plena consciência do sofrimento do rico no inferno e do
anterior sofrimento de Lázaro na terra (Lc 16.25). Também em Apocalipse 6.9-
11, veem-se as almas dos mártires clamando diante de Deus. A simples leitura
desse texto mostra que eles tinham consciência de que haviam sido brutalmente
mortos por seus perseguidores, além da consciência de que o Senhor tomaria
vingança contra os seus inimigos, e que vários de seus irmãos ainda vivos na
terra deveriam ser mortos como eles mesmos haviam sido.
É, pois, infundada a ideia de que, no céu, o crente será mais ignorante do que é
agora. Lá, ao contrário, seu conhecimento será muito mais amplo. Ele se
lembrará de quem foi neste mundo e poderá identificar aqueles que conheceu na
terra (Elias e Moisés puderam ser identificados quando apareceram no monte
da transfiguração, de acordo com Lc 9.28-33), saberá que Deus o livrou do
pecado, da morte e do inferno (aliás, essa será a base do seu louvor eterno, cf.
Ap 7.9-10), saberá que sua salvação só pôde ser obtida graças ao sacrifício
sangrento de Cristo (Ap 5.8-10) e, finalmente, saberá que muitos estão
eternamente perdidos (Lc 16.25).
Apesar de ter consciência disso tudo, a alma salva não será acometida de
tristeza alguma, pois, ainda que não anule nenhuma porção do conhecimento da
verdade que há no crente, Deus lhe dará um coração inabalável, no qual será
impossível a tristeza se alojar (Ap 21.4).

2) É errado cremar os corpos dos falecidos ou doar os órgãos dos mortos?


Não, não é errado. Ao tempo da igreja antiga, os cristãos não cremavam seus
mortos porque essa era uma prática ligada à religiosidade pagã que os cercava.
Por isso, não querendo ser confundidos com doutrinas falsas, os crentes apenas
sepultavam seus entes queridos. A rigor, porém, nada há de errado em cremar
um cadáver. A Bíblia diz que a morte faz a pessoa voltar ao pó (Gn 3.19) e a
cremação apenas acelera esse processo.
Não há, portanto, porque reprovar essa prática. Ademais, os crentes sabem que
na ressurreição seus corpos serão restaurados, não importa o grau de
decomposição ou de destruição em que se encontrem (Dn 12.2,13; 1Co 15.22-
58; 1Ts 4.16).
No tocante à doação de órgãos, obviamente a Bíblia silencia. A doutrina da
ressurreição, porém, mostra que essa prática não representa prejuízo nenhum
para o crente que, naquele dia, terá seu corpo totalmente restituído. Isso indica
que o cristão que doa seus órgãos, não os doa de fato. Somente os empresta por
algum tempo!

3) É errado ir ao cemitério visitar o túmulo de pessoas falecidas?


Nos dias da igreja antiga, os cristãos, especialmente do Norte da África, tinham
o hábito de visitar os túmulos dos mártires para ali celebrar festas em sua
homenagem. Isso originou certas crendices e práticas de veneração que os
pastores da época tiveram de censurar com muita razão.
A ida, porém, ao cemitério com o simples objetivo de honrar a memória de um
falecido ou refletir de maneira mais centrada sobre o que ele significou não é
um procedimento errado. O crente só deve evitar a intensificação de sua tristeza
por meio dessas visitas. O ideal é que, com o tempo, esqueça a realidade do fim
da vida no presente e olhe para a promessa do fim da morte no futuro.
CONCLUSÃO – AS PEDRAS DE CARBURETO
Os caçadores de rã são familiarizados com um curioso minério: o
carbureto. Empregam-no como combustível para as lanternas peculiares que
usam em suas incursões noturnas pelos brejos.
Quando eu era criança, participei de uma dessas “caçadas”.
Acompanhando um tio que apreciava muito a carne desse anfíbio, aventurei-me
mato adentro em busca do animal, cuja carne, a bem da verdade, nunca tive
coragem de por na boca.
Para um menino, aquela aventura se tornaria inesquecível: entrar no brejo
à noite; as instruções sobre os lugares preferidos pelas rãs nessa hora; os golpes
velozes da fisga… Quanta novidade! De tudo, porém, o que mais me deixou
intrigado foi a lanterna de carbureto. Nela eu via perplexo algo que parecia
mágico.
As pedras do tal minério, que na aparência externa não sugeriam nada de
especial, quando colocadas em contato com a água, produziam um efeito que eu
jamais vira ou imaginara. Começavam como que a ferver. A água borbulhava e
fumaça, gases e calor eram produzidos. Meu tio explicou que aquilo fornecia o
combustível para manter acesa a chama da lanterna. Não fossem as pedras de
carbureto, o grande fenômeno que eu testemunhava não ocorreria — e a lanterna
seria inútil.
As doutrinas da Palavra de Deus são como pedras de carbureto. Muitos
olham para elas e não veem nada de especial ou fantástico no modo que se
apresentam. Até entre os crentes é raro ver-se pessoas vibrando mesmo diante
das mais fascinantes doutrinas cristãs. O que há de errado?
É que as doutrinas bíblicas têm um ambiente dentro do qual manifestam
toda sua maravilha e todo seu poder. Há um contexto em que elas surtem efeito
fantástico e espetacular. E esse ambiente, sem o qual as doutrinas cristãs
parecem pedras frias, é a igreja. A igreja é a água em que as verdades
doutrinárias fervilham e revelam toda sua força. Sem ela os ensinos bíblicos não
têm nenhum campo em que possam demonstrar quão eficazes são.
Todavia, a igreja que não acolhe a sã doutrina ou não a preserva não
ferve. É água sem calor, inútil como combustível para suprir as necessidades
espirituais de seus membros.
Precisamos da água e do carbureto. Um sem o outro tem pouca ou
nenhuma utilidade. Precisamos da igreja e da teologia. Uma sem a outra não
produz efeito algum. Sem a teologia a igreja é morta: um simples aglomerado de
gente nutrindo-se com programas sociais e intrigas antissociais. Sem a igreja, a
teologia não tem onde ser aplicada — consequentemente, é impossível verificar
seu valor prático, sua utilidade e seu poder.
A razão disso é muito simples: a teologia do Novo Testamento originou-
se por causa da igreja. Foi a igreja que motivou sua existência. Tudo que foi
produzido pelos escritores neotestamentários teve como alvo a edificação, a
correção, o aprimoramento e o crescimento do povo que Cristo comprou com
seu próprio sangue (At 20.28).
Qualquer outro propósito para a teologia é secundário. O homem que a
usa exclusivamente para sua satisfação intelectual, não a mergulhando no
contexto eclesiástico e mantendo-se, ele mesmo, longe da igreja, jamais poderá
vislumbrar sua real grandeza nem compreendê-la em sua plenitude. Tal homem
saberá expressões gregas, latinas e alemãs; aprenderá definições complexas e
impressionará muita gente. Sentir-se-á muitas vezes inchado de orgulho quando,
em suas palestras, em diversas igrejas (com as quais tomará o cuidado de nunca
se comprometer profundamente), apresentar seu show de conhecimento aos
ouvintes, que a ele assistem boquiabertos. Mas a dimensão completa da teologia,
ele jamais compreenderá realmente, pois não a verá em ação, funcionando no
ambiente em que foi produzida e para o qual é direcionada.
Um “teólogo” assim terá compreensão muito rasa da relevância das
doutrinas que ensina para o ser humano nas mais complexas e variadas situações
em que ele se encontra ao longo da vida. A teologia, para esse homem, será
pouco mais que um belo quadro que ele se deleita em contemplar. Seus limites,
porém, não ultrapassarão a madeira que o emoldura.
É claro que um quadro tem valor. Mas as doutrinas da Palavra de Deus
são mais do que mera obra de estética. Elas podem e devem ser aspiradas,
sorvidas, apalpadas e saboreadas pelo homem salvo — e é só na igreja que esse
fenômeno, esse borbulhar das pedras na água, é testemunhado e provado pelo
estudioso das Escrituras. Isso ocorre, nunca é demais frisar, por uma razão muito
simples: a teologia do NT originou-se na igreja, com ela e para ela; e é na igreja
que percebemos sua verdadeira dimensão.
Na igreja, tão grande a teologia aparecerá, tão relevante para todos, tão
eficaz para todo e qualquer problema que o teólogo comprometido com o corpo
de Cristo, percebendo tão tocante imensidão, será um homem mais humilde, o
que dificilmente ocorrerá com o teólogo que vive longe da igreja.
Este último, por jamais enxergar a real grandeza, maravilha e utilidade do
objeto de seu estudo, viverá na ilusão comum a muitos intelectuais de que ele é
que é grande. Será, por isso, homem orgulhoso, inacessível, incapaz de suportar
ofensa, implacável com quem de algum modo expõe suas fraquezas e sempre
pronto para tratar os outros com desprezo. Isso mostrará que, no fundo, no
fundo, ele não conhece realmente a teologia. Se conhecesse, diante do
gigantismo e dos insondáveis mistérios da fé, perceberia quanto é pequeno e
dependente e seria a pessoa mais humilde da Terra.
Por ser a igreja o campo em que a teologia mostra toda sua força; o
ambiente em que a eficácia, a infalibilidade e a sobrenaturalidade desta se
evidenciam; e o ambiente em que esta se movimenta e age, é de esperar que todo
pastor seja teólogo e que todo teólogo seja pastor.
A teologia tem de ser o instrumento de trabalho do pastor, o seu cajado. A
igreja será o campo em que, com seu instrumento em punho, trabalhará. Se o
ministro não conhecer teologia, será como o pastor de ovelhas sem cajado: não
terá instrumento para trabalhar e, em regra, usará instrumentos inadequados. O
teólogo que, por sua vez, não atuar de modo fixo e comprometido numa igreja,
será como o pastor que tem cajado, mas não vai ao aprisco ou não acompanha as
ovelhas no pasto. As pessoas o observarão e ninguém saberá ao certo por que,
afinal de contas, ele tem um cajado.
Muitos pastores, em vez de usar o verdadeiro cajado, vivem a buscar
artifícios para promover o despertamento e a motivação de sua igreja. Alguns
frequentam cursos e compram livros sobre técnicas “infalíveis” para o sucesso
no ministério. Tudo isso, porém, não passa de bobagem. São recursos que
servem apenas para transformar o pastor num “marqueteiro” de baixa categoria.
Os ministros precisam é de coragem. Coragem para sair com o cajado a
campo, coragem para lançar as pedras na água e não se assustar com o borbulhar
que produzem. É isso que deve fazer o ministro de Deus. Em todo este livro
mostramos isto: a teologia em alguns de seus aspectos e o modo como deve ser
mergulhada no contexto eclesiástico. O fato é que a “receita” para a realização
de um bom ministério junto ao povo de Deus é mais simples do que se pensa.
O que não pode ocorrer, em hipótese alguma, é o pastor ter medo. Não
foi espírito de temor que lhe foi dado (2Tm 1.7). Peguemos, portanto, as pedras
na mão. Elas parecem tão frias, não é mesmo? Mas sejamos ousados e
mergulhemo-las na água. Ouviremos um ruído. Não, não será o ruído de
multidões afluindo porta adentro (aliás, é hora de os pastores abandonarem esse
sonho ingênuo, ao mesmo tempo infantil e soberbo)[133]. Nem tampouco será o
ruído incômodo de frenéticos instrumentos musicais a acompanhar louvores
barulhentos e pouco produtivos. Antes, será o alvoroço de cristãos nominais
incomodados com a verdade e, o que é mais importante, o burburinho de
vibração de vidas comovidas, de crentes autênticos a despertar para a beleza e
profundidade da Palavra de Deus, de gente impressionada com a descoberta de
verdades acerca das quais nunca nada ouviram, apesar de membros da igreja há
vários anos.
Podemos dizer que esse ruído será o som de uma espécie de revolução
que ocorrerá na vida cristã dos santos; o início de um fervilhar constante e
aquecedor na igreja local; o fim da água morta e quase inútil. A igreja vibrará, se
purificará, se alegrará. Seus membros sentirão muitas vezes o coração arder
durante os cultos, do mesmo modo que ardia o coração dos discípulos no
caminho de Emaús enquanto o Senhor lhes expunha as Escrituras (Lc 24.32).
Lancemos depressa, portanto, as pedras na água. Não teremos de esperar
muito para ver os resultados. E esses são os únicos resultados que realmente
importam. Somente eles poderão ser levados em conta no estabelecimento das
distinções entre uma igreja viva e uma morta.
PRINCÍPIOS GERAIS LIGADOS À PRÁTICA DA IGREJA DE
DEUS
Os princípios comentados neste livro estão grafados em itálico e negrito, com
indicação de página.

1) PRINCÍPIOS RELATIVOS À LIDERANÇA PASTORAL


Princípio da proteção do valor real
No exercício efetivo de suas funções, o líder deve estabelecer somente normas
que protejam valores morais ou materiais de reconhecida relevância.

Princípio da alteridade
Ao dirimir conflitos interpessoais, o líder não deve tomar qualquer medida ou
decisão sem antes ouvir ambas as partes.

Princípio da via menos gravosa


A solução de problemas de qualquer natureza deve seguir a via menos gravosa
para todos os envolvidos, sem prejuízo da justiça e da verdade.

Princípio da reserva normativa


Nenhuma exigência poderá ser feita pelo líder aos seus subordinados ou aos
membros da igreja em geral sem uma ordem ou uma norma clara que a preceda.

Princípio do equilíbrio
O rigor da exigência deve ser temperado com bom senso e a dureza do castigo
deve ser mesclada de misericórdia.

Princípio do limite de competência


O pastor não tem autoridade para, sem ser consultado, decidir questões
relacionadas à vida particular dos crentes, exceto no caso em que essas questões
afetem a pureza, o nome e os interesses da igreja.

2) PRINCÍPIOS RELATIVOS AO FUNCIONAMENTO DA IGREJA


Princípio da supremacia das Escrituras
A tradição e o costume não devem se sobrepor às Escrituras, mesmo quando isso
contrarie o desejo expresso da maioria.

Princípio da santidade como valor supremo


A paz dentro da igreja não deve ser promovida ou mantida com o sacrifício da
santidade.

Princípio da responsabilidade do agente


As Escrituras não podem ser invocadas na defesa ou abrandamento do erro, nem
a sua ignorância pode ser alegada para suprimir a culpa do transgressor.

Princípio da congregacionalidade
Em matérias que não envolvem a preservação da sã doutrina, a vontade expressa
da assembleia de crentes formalmente reunida se situa acima da vontade da
liderança formalmente constituída.

Princípio da legitimidade da origem


Uma igreja só pode ser gerada sob os auspícios de outra, excetuando-se somente
os casos de real impossibilidade.

Princípio regulador do culto


Nada pode ser praticado durante o culto a Deus que não tenha sido
expressamente estabelecido, determinado ou permitido por ele próprio nas
páginas da sua revelação escrita.

Princípio da legitimidade de propósitos


A legitimidade de um costume não depende de suas origens, mas sim dos
propósitos com que hoje é observado.

3) PRINCÍPIOS RELATIVOS ÀS OFERTAS TRAZIDAS À IGREJA


Princípio da exclusividade
As ofertas dedicadas ao serviço de Deus devem vir somente das mãos do seu
povo redimido, em especial daqueles que, como parte desse povo, contribuem
livre e espontaneamente.

Princípio da obediência
As ofertas aceitáveis a Deus são aquelas que procedem de vidas santas,
marcadas por arrependimento, retidão e busca sincera da vontade do Senhor.

Princípio da responsabilidade
O crente que quer contribuir financeiramente para a causa do Mestre deve fazer
isso na igreja de que participa, seja como membro, seja como assíduo
frequentador, ainda que a ajuda dirigida a outras comunidades de linha ortodoxa
seja aceitável, desde que eventual.

4) PRINCÍPIOS RELATIVOS À AJUDA DE PESSOAS CARENTES


Princípio da preferência
O socorro da igreja dirigido a pessoas carentes deverá ter sempre como alvo
preferencial os irmãos na fé.

Princípio da necessidade real


A igreja de Deus só oferecerá amparo material a crentes que, por motivos alheios
à sua vontade e conduta, não podem trabalhar e, assim, passam por inevitável
penúria, sendo ainda defeso o auxílio dirigido a pessoas cuja família imediata
tem condições de sustentar.

Princípio da temporalidade
A ajuda material a irmãos carentes deverá cessar tão logo termine a condição de
necessidade real.
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SOBRE O AUTOR
Marcos Granconato é pastor-titular da Igreja Batista Redenção, em São Paulo.
Formou-se em teologia no Seminário Bíblico Palavra da Vida. É graduado em
direito pela Universidade São Francisco de Bragança Paulista e mestre em
teologia histórica pelo Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper.

Notas do prólogo
[1]
Nos tempos da Inquisição, “cristão velho” referia-se ao católico da Península
Ibérica que estava acima de qualquer suspeita de heresia. Já “cristão novo”
denominava o judeu convertido que passara a ser perseguido com severidade,
acusado de praticar o judaísmo secretamente em casa. Veja-se K , M.
AYSERLING

História dos judeus em Portugal. São Paulo: Pioneira, 1971. M , Frédéric.


AX

Prisioneiros da Inquisição. Porto Alegre: L&PM, 1991. Veja-se tb. N , ORTON

Howard W.; N , Anita; N


OVINSKY , Luiz; J
AZÁRIO , Aleksandar. A Inquisição.
OVANOVIK

Folha de S. Paulo, São Paulo, 15 mai. 1987. Folhetim.

Notas do capítulo 1
[4]
Nesse sentido, veja-se especialmente S , Francis A. A verdadeira
CHAEFFER

espiritualidade. São Paulo: Fiel, 1980. p. 192-209.

Notas do capítulo 2
[16]
C , João. As institutas ou tratado da religião cristã. Vol. III. São Paulo:
ALVINO

Casa Editora Presbiteriana, 1985. p. 119.

Notas do capítulo 3
[29]
S , José Gonçalves (Edit.). O Didaquê ou O ensino do Senhor através dos
ALVADOR

doze apóstolos. São Paulo: Imprensa Metodista, 1980. p. 75.

Notas do capítulo 4
[52]
A
H . De correptione et gratia, XIV-XVI. In C
GOSTINHO DE IPONA , Op. Cit.,
ALVINO

III:XXIII:14, p. 426.

Notas do capítulo 5
[60]
G , Edward. Declínio e Queda do Império Romano. São Paulo: Companhia
IBBON

das Letras, 1989. p. 224.

Notas do capítulo 6
[62]
Note-se que nesse texto a palavra traduzida em várias versões como “mais
velhos” é presbyteroi, termo que designa pastores. Aliás, o contexto da
passagem (v. 1-4) favorece esse entendimento.

Notas do capítulo 7
[63]
O emprego do óleo mencionado nesse texto tinha objetivos simbólicos (a
representação do favor de Deus vindo sobre o enfermo) e humanitários (o óleo
era usado para dar refrigério). Em nada essa prática se assemelhava ao
curandeirismo evangélico que se vê hoje em dia.

Notas do capítulo 9
[70]
W , John C. (org.). The complete works of Menno Simons. Scottdate:
ENGER

Herald Press, 1956. p. 310. Citado por G , Op. Cit., p. 278.


EORGE

Numa outra grande igreja, o pastor disse que estava pensando em


“reconsagrar o templo”, pois um conjunto de americanos havia apresentado
ali músicas impróprias para a adoração. A medida correta teria sido
interromper a apresentação e admoestar os americanos. Se algo devesse ser
“reconsagrado”, talvez fosse a vida deles.
Ainda em outra igreja houve um “culto especial de consagração da nova
bancada”. Durante o evento, a congregação foi obrigada a permanecer
pacientemente em pé por um período interminável. Jovens, velhos,
mulheres e crianças só puderam se sentar nos novos bancos depois que a
“consagração” foi consumada!
[108]
O rasgar do véu também pode indicar a indignação de Deus (como alguém
que rasga as vestes) diante da morte do seu Filho, ou o prenúncio do juízo
sobre o templo (Mt 23.38), consumado em 70 AD. Nesse sentido, veja-se
N , John. The Gospel of Matthew: a commentary on the Greek text. Grand
OLAND

Rapids/Michigan: Eerdmans, 2005. p. 1211-1214.


[109]
D ANIEL- R , Op. cit., p. 233-4.
OPS

[110]
A associação da igreja com o romanismo é proposta pelo ecumenismo. Já a
associação com o hinduísmo é mais sutil e surge quando os crentes passam a
crer, por exemplo, que “há poder em suas palavras”. Essa crença é não só o
corolário da doutrina hinduísta acerca da divindade do homem, mas também o
principal fundamento das práticas tanto antigas como modernas de feitiçaria.
Para mais detalhes sobre o assunto, veja H , David; M M , T. A. La
UNT C AHON

seducción de la cristianidad. Grand Rapids: Editorial Portavoz, 1988.


[111]
Quanto à associação da igreja com seitas que se parecem cristãs, o exemplo
mais comum é o espaço dado por alguns pastores aos adventistas do sétimo
dia. Prevalece no meio evangélico a crença errada de que os adventistas são
irmãos na fé, os quais diferem dos crentes pelo simples fato de se reunirem aos
sábados. Nada, porém, está mais longe da verdade. Os adventistas não são
crentes. Antes constituem uma seita que ensina terríveis heresias. Dentre elas,
sua doutrina sobre o “juízo investigativo” contraria Hebreus 9.11-12 e tenta
destruir a verdade acerca da consumação da obra de Cristo realizada na cruz
do Calvário. Para mais detalhes, veja V B , J. K. O caos das seitas. São
AN AALEN

Paulo: Imprensa Batista Regular, 1982.


[112]
Veja a exposição sobre o Princípio Regulador do Culto, no Capítulo 2.

Notas do capítulo 10
[113]
No Brasil, um dos livros que melhor refletem essa disposição teológica
conciliadora é M L , Brian. Uma ortodoxia generosa. Brasília: Editora
C AREN

Palavra, 2007. O prefácio à edição americana desse livro, escrito por John R.
Franke, proclama que uma de suas marcas positivas é a aceitação da
possibilidade de salvação para os que estão fora da fé cristã, recusando que a
graça salvadora de Deus esteja limitada aos crentes (p. 19). De fato, McLaren,
no capítulo 4 da sua obra, se insurge abertamente contra a pregação de Jesus
como salvador pessoal, insistindo que ele é o salvador do mundo. O propósito
do evangelismo, segundo essa concepção, seria convidar as pessoas a terem
uma vida diferente, enquanto participam da fascinante obra de Cristo de salvar
o mundo inteiro.
[114]
Essa é a proposta de Dan Kimball no livro A igreja emergente: cristianismo
clássico para as novas gerações. São Paulo: Vida, 2008.
[115]
Essa é, pelo menos em parte, a proposta de Rick Warren, em seu livro Uma
igreja com propósitos. São Paulo: Vida, 2008.
[116]
Para mais detalhes sobre o Princípio Regulador do Culto veja-se o Capítulo
2.
[117]
O NT também mostra que em meados do século 1 surgiram credos
cristãos e declarações hínicas que eram adotados pelas igrejas e que
serviam como fator de distinção entre elas e os diversos grupos heréticos
que as rodeavam (Gl 1.9; Fl 2.5-9 [talvez um hino cristão primitivo]; 2Ts
3.6; 1Tm 3.16 [também um hino cristão antigo]; 6.20; 2Tm 1.14; 2.2). A
adoção desses credos e hinos também sinaliza para as igrejas locais como
instituições bem organizadas, com identidade teológica formalmente
definida, todas comprometidas com uma tradição doutrinária específica,
cujos contornos eram claros e inegociáveis.
Notas do capítulo 11

[118]
Até onde a avaliação é possível, não se pode dizer que esse livro seja
proponente da teologia liberal. Sua menção aqui serve apenas para destacar a
contribuição que fez para a visão da igreja como agente mais presente no
campo social – uma visão que coincidiu com as propostas liberais.
[119]
O texto integral do Pacto de Lausanne em português pode ser acessado no
site www.lausanne.org ou em www.monergismo.com.
[120]
Nesse sentido, veja-se O , Op. Cit., p. 335.
SBORNE

Notas do capítulo 12
[121]
Veja-se Tobias 7.14. O livro apócrifo de Tobias foi escrito em cerca de 200
a.C. e é reconhecido como canônico pela Igreja Católica. O judaísmo e as
igrejas protestantes, porém, não o aceitam em seu rol de livros inspirados.
[122]
Nos tempos do AT, o ritual central de matrimônio era a condução simbólica
da noiva à casa do noivo, o que era seguido de festejos (Jr 16.9). No dia do
casamento, os noivos usavam trajes especiais (Ct 3.11; Is 61.10) e
participavam de um banquete com os convidados (Gn 29.21-23). Esses
costumes sofreram modificações ao longo do tempo, mas o rito cerimonial que
perfaz o casamento nunca deixou de existir (Veja-se o verbete Marriage in
A , Paul (Org.). Harper’s Bible Dictionary. New York: Harpercollins,
CHTEMEIER

1985.).
[123]
Citado por J , Op. Cit., p. 484.
EREMIAS

[124]
Há no meio cristão uma posição ainda mais restritiva que admite o divórcio
somente no caso em que o incrédulo quer se apartar. Segundo os proponentes
dessa visão, o divórcio admitido na hipótese mencionada em Mateus 5.32 e
19.9 era o rompimento das relações de noivado. Para uma discussão sobre esse
tema, veja-se K , Andreas J.; J , David W. Deus, casamento e família:
ÖRSTENBERGER ONES

reconstruindo o fundamento bíblico. São Paulo: Vida Nova, 2011. p. 243-248.


[125]
W , Stuart K. Holman New Testament Commentary (A , Max [Edit.]):
EBER NDERS

Matthew. Broadman & Holman Publishers: Nashville, Tennessee. 2000. p.


328.
[126]
Veja-se, aliás, os textos paralelos de Marcos 10.11-12 e Lucas 16.18, onde
não figura nenhuma cláusula de exceção.
[127]
P Carlos Osvaldo. O Divórcio. Enfoque, Atibaia, nov. 2000, p. 7. Veja-se
INTO,

também H William A e W
ETH, Gordon J. Jesus and divorce. London, The
. ENHAM,

Chaucer Press, 1984.


[128]
Outra possível tradução para Mateus 19.9 é: “Quem se divorciar de sua
mulher, o que só poderá fazer se ela for infiel, e se casar com outra comete
adultério”. Note-se que essa opção conecta corretamente a famosa cláusula de
exceção somente à primeira parte da hipótese – a parte referente ao divórcio.
[129]
Aqui, uma analogia pode ajudar: relações sexuais adulterinas podem gerar
filhos. Alguém poderá dizer que esses filhos são “irregulares”, mas ninguém
poderá afirmar que são inexistentes. Da mesma forma, uma relação sexual
adulterina poderá gerar um casamento irregular. Contudo, não será correto
alegar que esse casamento é irreal ou que não existe. Esse casamento existirá
sim, gerando direitos e obrigações, da mesma forma que um filho “irregular”
existe de fato e gera direitos e obrigações.

Notas do capítulo 13
[130]
Para análise mais detalhada do assunto, veja-se C , Fustel de. A cidade
OULANGES

antiga. São Paulo: Editora das Américas, 1961.


[131]
Os jogos olímpicos surgiram por volta de 884 a.C. e tinham por propósito
homenagear os deuses da Grécia antiga. Aliás, o imperador cristão Teodósio I
extinguiu a Olimpíada em 393 d.C. por considerá-la um rito pagão. A
restauração dos jogos só veio em 16 de junho de 1884, num congresso
realizado em Paris.

Notas do capítulo 14
[132]
A orientação dada no leito de morte por Jacó (Gn 49.29-33) e José (Gn
50.24-26) quanto a serem sepultados na terra de Canaã não foi expressão de
capricho tolo. Antes, constituiu ato de fé (Hb 11.22), uma vez que esses
homens criam que um dia ressuscitariam dentre os mortos e possuiriam para
sempre a terra prometida por Deus a Abraão e seus descendentes (Gn 12.7;
13.14-17; 15.7-21).

Notas da conclusão
[133]
Veja o Capítulo 9 (subtítulo “Avivamentos estranhos”) para o ensino bíblico
acerca do impacto da verdade sobre as multidões.

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