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(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Mouro, Clovis Para
Dialética Radical do Dmsil Negro I Clovis Moura.-- São Antônio Fernandes Neto
l>aulo. EdJLora Anita, 1994 Ari Cunha
Nelson Schor
Bibliografia Manuel Correia de Andrade
Giselda Laporta Nicolelis
1.Ncgros -Brasil I. Titulo. M. Paulo Nunes
João Batista Borges Pereira
Kabenguelc Munanga:
93-3560 CDD-305.896081 Amigos.
Índices para Catálogo Sistemático
1. Brasil : Quelitão Racial : Negros · Sociologia 305.!196081
2 . llr.hil : Negro :Identidade: Soctologia 305.896081
3. Negros no Brasil: Sociologia 305.89608 1

Copidesque: Maria Beatriz de Melo


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Printed in Brazil
1994
SUMÁRIO

I- Do Escravismo Pleno ao Escravismo Tardio 13

O Escravismo Pleno ............................................................................. 35


Brasil Reino e Brasil Independente: o escravismo consolida-se .... 45
Do fastígio ao início da crise ............................................................... 48
Rasgos fundamentais do escravismo pleno ...................................... 50

O Escravismo Tardio ........................................................................... 52


O escravismo moderniza-se e o Brasil fica dependente ................. 53
Estratégias de dominação do escravismo tardio .............................. 57
No setor urbancrindustrial o Brasil moderniza-se e endivida-se .. 59
A tecnologia nova serve à estrutura arcaica ...................................... 61
Modernização escravista e endividamento externo ........................ 63
A Tarifa Alves Branco ............................................................................ 66
A Lei da Terra .......................................................................................... 69
O escravismo tardio descamba no capitalismo dependente ........ 79
Rasgos fundamentais do escr.Jvismo tardio ...................................... 82
A Let Eusébto de Qteiroz ..................................................................... 85
A Guerra do Paraguai ............................................................................. 90

Conclusões ................................................................................................. 99

H - População, Miscigenação, Identidade Etnica e Racismo ........ 123

O negro e o colonialismo end6geno de Portugal ........................... 125


População e miscegenação no Brasil ................................................. 130
A diâspora negra no Brasil .................................................................... 134
Dinamismo demográfico da escravidão no Brasil ............................ 141
Miscigenação e idenndade ~mica ···································-······-··········· .. 149
A perda parcial da Identidade ~mica .................................................... 155
"Tcx:la história é remorso."
Particularidades do racismo brasilwo ··················-·-····················-·· 158
Carlos Drummond de Andrade
III- Linguagem e Dinamismo Cultural do Negro ............................ 173

As culturas africanas transformam-se no Brasil em uma


cultura de resistência ................................................................................. 177
Cultura de resistência ............................................................................... 181
Autodefesa da cultura oprimida ............................................................ 182
O negro na literatura brasileira ........................................................... 183
A imprensa negra ....................................................................................... 185 A Cidadania Confiscada
Da produção limitada ao negro dividido culturalmente ................ 189
O intelectual negro dividido: Arlindo Veiga dos Santos ................. 193 "Oassificam-se geralmente na nomenclatura de móveis
Linguagem, repressão e ansiedade do cativo ....................................... 196 todas aquelas cousas, que inteiras e salvas por natureza,
e propriedade se pcx:lem mover, ou se movem a si
mesmas de hum lugar, não difftnndo as m6veis das
semovmtes como as cousas arrancadas quais a areia, a
N- Especificidade e dinamismo dos movimentos greda, as árvores, os ramos delas; os frutos mttálicos,
de São Paulo ..............·-·········-......................-............................................._. 209 ouro, prata, cobre. tstanho, chumbo, ferro (bem enten-
dido, depois de avulsados e separados das minas); os
O negro urbano emergente: novos aspectos da questão racial .............. 211 frutos dtpois de separados da terra; por mais que
Doisuniversosnegrosesuadinâmicadivergenteem São Paulo .......... 219 prcx:luzidos em prédios de Morgados, Prazos ecleSJãsti-
O problema eleitoral e o movimento negro ._..................................... 228 cosetc.:- Ousua'IJOJ, as&is, Cavalos,gadast maisarrimais
A beleza negra e a auto-afirmação cultural ............_,_.......................... 234 tJIIe se mOfJam."
Valorização da estéttca africana ..............................._................................ 236 (José de Melw Freire; Commtário às
Livraria matriz de consctência étnica ..................................................... 240 lnstüui{íies do Dimio Civil Uaitano)

Conclusões ....................................................................................................... 244


I
Do Escravismo Pleno ao
Escravismo Tardio

História da Escravidão: Um Diálogo Entre Hamlet e Polôoio?

Hamlet:- Estais vendo aquela nuvem em forma de camelo?


Polônio- Pela Santa Missa: Parece, de fato, um camelo!
Hamlet- Creio que parece mais uma doninha.
Polônio:- É ceno! o dorso ~ de doninha.
Hamlet: - Ou uma baleia?
Polônio:- Uma baleia, realmente muito semelhante.

Shakespeare
Do Escravismo Pleno ao Escravismo Tardio

Tentaremos demonstrar, neste capítulo introdutório, para melhor


compreensão do que iremos expor posteriormente e esclarecermos os
t>lementos teóricos que manterão a articulação com a parte empírica e
f o~ tua! deste livro que, no Brasil, a escravidão teve duas fases distintas não
Jpenas no seu aspecto demogdfico, mas, também no social, econômico,
politico e cultural.
Uma fase ascendente, até 1850, quando foi extinto o tráfico
internacional de escravos. Outra descendente, de desagregação paulatina.
Começa com a Lei Eusébio de Qleiroz, que estrangula a dinâmica
demográfica via tráfico internacional, garantindo o seu desaparecimento
efetivo. A esses dois períodos que se articulam, reestruturam e se
desarticulam de acordo com a d inãmica específica de cada um chamamos,
respectivamente, de escravismo pleno e esuavismo tardio. Na primeira fase
(e devemos considerar aqui, também, a contribuição demográfica e
econômica do escravismo indígena tão importante no início da coloni-
Zclção) estrutura~ em toda a sua plenitude a escravidão (modo de
produção escravista) a qual iráconfigurarpraticamente o comportamento
das classes fundamentais dessa sociedade: senhores e escravos. Isto levará
a que as demais camadas, segmentos ou grupos, direta ou indiretamente,
também tenham a sua conduta e seleção de valores sociais subordinados
J essa dicotomia básica.
Os antagonismos sociais, econômicos e étnicos verificados nessa
época, as convergências e divergências ideol6gicas e de comportamento
que surgiram nessa sociedade são, fundamentalmente, decorrentes das
posições estruturais e do dinamismo dessas duas classes no espaço social.
São conflitos antagônicos ou parciais, conscientes ou inconscientes nos
seus rasgos de ação social.
Não desejamos, com isto, ignorar a existência de outras formas
complementares ou alternativas de trabalho durante a fase do esuavismo
plmo, nem outros níveis não substantivos de conflitos ou reajustes de
interações especialmente naquelas áreas onde urna parcda de escravos
domésticos (por isto privilegiados) aceitava sem revolta ou restrições
visíveis, interiorizando os valores do sistema, com ele convivendo através
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Dlslét/cs nsdical do Bras// Negro Do êscravlsmo Pleno ao êscravismo Tardio

de um comportamento ambíguo. Mas, do ponto de vista teórico 1nais Em primeiro lugar afirmam que o escravo não era uma simples
abrangente (visão de totalidade) temos de destacar que foram as contra- máquina (coisa) como queriam os seus senhores e certos sociólogos
dições estruturais que determinaram (de forma positiva ou negativa) a afirmam, com o que estamos de acordo. Mas, para essa corrente de
dinâmica desse processo e ensejou, nas suas linhas mais gerais e significa- cientistas sociais neoliberais a mtt:noridade humdna do escravo não se
tivas, do ponto de vista de dinâmica social, a passagem do escravismo para manifestava através de revoltas ou atitudes divergentes, mas de acomoda-
o trabalho hvre. ção. Com esta visão o escravismo se e~tabilizaria, as contradições ficariam
A composição da classe escrava, por outro lado, era profundamente semi-anuladas por pára<hoques sociais num contexto de senhores e
diferenciada ocupacionalmente e isso irá refletir-se na sua condutcl quer escravos estávd ou relativamente estável e cheio de espaços neutros, nos
em relação aos demais escravos, quer em relação à classe senhorial. Não quais os escrclVOs poderiam viver com relativa estabilidade e os senhores
se pode ver cada escravo como uma unidade uniforme, destacada de cada com relativa segurança. Essas relações adaptativas e neutralizadoras das
contexto específico onde se encontrava no processo da divisão do contradições inerentes ao sistema, atuariam, assim, como um mecanismo
trabalho. Quando dtZemos que a contra<lição fundamental no regime moderador e gerador de uma psicologia de empatia que caracterizaria a
escravista era a que existia entre senhores e escravos, isto se aplica de forma essência do sistema.
genérica e abrangente (teórica) e serve como indicador para se ficar A do escravo nesta perspectiva reagiria, sempre, ou quase sempre,
sabendo quais as forças que impulsionaram oprocessodedinâm1ca social. mas de maneira significativa ou preponderante, positivamente, à uma
Isto nlo exclui a exist~ncia de grupos ou segmentos escravos que se negociação e nunca em direção a formas de rebeldia ativas e/ou passivas
mantiveram impassíveis, estáticos, dentro dessa contradição (pois ela era onde ele reencontraria a sua condição humana.
objetiva e independia da consciência que o escravo tinha da sua existência) A sua estrutura de personalidade, a sua inferioridade era montada no
sem friccioná-lo, aceitando conviver e sobreviver dentro do sistema. Nesta sentido de receber passivamente ou semipassivamente os mecanismos
posição ele se integrará em um universo adaptativo, neutro, sem perspec- controladores do sistema, porém nunca, ou quase nunca, para receberem,
tiva do devir emergente. Podemos dizer que esses escravos se adaptavam assimilarem, um reflexo antiinibidor e contestador: uma consciência
aos valores escravistas, em maior ou menor grau, de forma consciente ou crítica. Seria à base desse comportamento tugociadc que se explicariam
inconsciente, parcial ou total. E com isto produzic~m áreas de estabilidade certas particularidades do escravismo brasileiro quando comparado ao
no sistema escravista. A produção e o seu ritmo (quando foram escravos que existiu nos Estados Unidos e noCanbe. Aqui, "entre Zumbi e PatJoão
produuvos) dependerá do tipo de comportamento desses escravos, como o escravo negocia"•. Esta sena a síntese hegeliana das relações entre
o nível de desgaste econômico do mesmo dependerá do comportamento senhores e escravos no Brasil. O meio termo seria a realidade, o jeilinho e
de escravo não adaptado a esse tipo de disciplina do trabalho. Convém as acomodações dariam o dhos do nosso sistema escravista.
destacar, também, as dlferençasculturais dos escravos provindos da África No entanto, a dinâmica básica do sistema escraVIsta e a sua superação
e que aqUI influíram no tipo de comportamento dos seus membros. estrutural está nos confutos entre as classes que eram substantiv•s nesse
Como podemos ver o modo de produção escravista tem corno modo de produção. Qle algum tipo de relacionamento alternativo entre
componente estrutural ma1s importante as contradições entre senhores e escravos e senhores existiu ninguém põe em dúvida, mas, se ele fosse típ1co
escravos. E é essa d1cotomia contraditória que lhe é werente que e determinante da dinâmica entre essas classes Jamais o escravismo entraria
Impulsiona a dinâmica social e não as áreas de estabilidade parcial que nele em crise e seria substituido por outro modo de produção, pelo menos no
existiam. prazo em que foi. Teria de ficar esperando as contradições externas para
Por outro lado, atualmente há uma tendência de cunho neoliberal destruí-lo e isto não aconteceu, embora fatores ex6genos também tenham
de su bestimaro conflito e dar-se mérito à acomodação por parte da massa contribuído perifericamente na sua última fase. Gostaríamos de citar aqui
escrava, vendo-se nisso uma estratégia do escravo (em abstrato) que um trecho de K. Marx o qual nos parece de fundamental importância para
procurava criar um espaço social, cultural e econômico próprios, no qual a compreensão teórica do assunto: "A feudalidade também tinha o seu
a convivência com o seu senhor era conseguida através de um pacto, um proletariado - a servidão, que encerrava todos os germes da burguesia. A
acordo implicito e negociado no qual as contradições eram assimiladas produção feudal tinha também dois elementos antagônicos, que se
e substituldas pela convivência, se não harmônica pelo menos estável e designam pelo lado bom e lado mau da feudal idade, sem se considerar que
consensual. é sempre o lado mau que acabava levando a vantagem sobre o bom. E o

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0/sl~llca Radical do Brasil Negro Do Escravismo Pleno ao Escravismo Tardio

lado mau que produz o movimento que faz a história, constituindo a luta. um certo grau de concessão é mais proveitoso do que a continuação do
Se na época do reinado do feudalismo, os economistas, entusiasmados conflito.
com a virtude cavalheiresca, com a boa harmonia entre os direitos e os Se o equiHbrio de poder permanece depois de celebrado o acordo este
deveres, com a vida patriarcal das cidades, com o estado de prosperidade pode ser elaborado para proporcionar normas consensuais de compon;r
da indústria doméstica nos campos, com o desenvolvimento da indústria menta para os membros de ambos os grupos. Mas é possível que se atinja
organizadaporcorporações,mestradosejufzosdeoflcio,enfim,comtudo somente um compromisso instável, caso em que ambos os lados
o que constitui o lado bonito da feudalidade, se tivessem proposto o permanecerão preparados para o reinício do conflito"4 •
problema de eliminar tudo o que obscurece esse quadro - servidão, O que se vê- sem muito esforço de análise teórica- é que do ponto
privilégios, anarquia- que teria acontecido? Teriam sido destruídos todos de vista de John Rex, parte-se do conceito de conflito como básico, para
os elementos que constituem a luta, e sufocado no seu germe o chegar-se à conciliação como eventual, secundário e conjuntural. Os
desenvolvimento da burguesia. Teria sido colocado o problema absurdo cientistas sociais brasileiros, que estão procurando rever (ou reabilitar?) o
de eliminar a história"2• modo de produção escravista no Brasil, partem do conceito de conciliação
Usando como metodologia este fio condutor exposto tão bem por comoocentralesubstantivoeodacontradição(conflito)comooeventual_
K Marx, procuramos analisar e interpretar a dinâmica do escravismo no e o acessório. Parece-nos claro, portanto, que o sociólogo ou historiador
Brasil, isto é, a partir das suas contradições estruturais, desde a primeira ao procurar as causas da dinâmica social de um modo de produção e os
edição do nosso livro Rebeli.õts da Senzala, publicado em 1959'. mecanismos que o fizeram ser substituído por outro, deve procurar nas
Desejamos dizer com isto que sempre tivemos uma posição teórica contradições e nos conflitos as causas geradoras dessa dinâmica e não nas
oposta à daqueles cientistas sociais que igualam o fundamental, ao áreas neutras e estáticas de conciliação existentes no sistema.
secundário; o substantivo, ao adjetivo; o conjunto, ao detalhe; o objetivo, No entanto, no Brasil há atualmente uma corrente que procura
ao subjetivo e o comparativo ao analógico. Procuram, assim, por questões através de outras disciplinas, como a Demografia Histórica, explicar de
ideológicas algumas vezes invisiveis pelo recurso da erudição de fichário, forma pontificai e algumas vezes dogmática o nosso desenvolvimento
que substitui o conhecimento, demonstrar que no modo de produção social e étnico durante a escravidão e a substituição do primeiro pelo
escravista brasileiro a conciliação, a barganha, o acordo sobrepôs-se ao trabalho livreS.
conflito e ao descontentamento; a pacificação à violência e a empatia à Não queremos negar o valor desses estudos como ferramentas
resistência social, política e cultural nos seus diversos níveis. Para eles, os auxiliaresdaSociologia e da História. Esses trabalhos compõem um painel
sociólogos e historiadores que trabalham com a categoria da contradição rico e variado de informações, devendo ser convenientemente valorizado.
e do confhto como elemento central da dinâmica social estariam se O que nos parece um exagero flagrante é elevá-los a última instância do
deixando influenciar por elementos emocionais e:xt:racientíficos, ideo/6gi- conhecimento, sem nenhuma mediação teórica com as ciências sociais no
ros ou por uma visão não científica das relações senhor/escravo. No seu conjunto, especialmente a Sociologia e a História. Através de técnicas
entanto, há uma série de soci6logose historiadores trabalhando atualmen- de abordagem sofisticadas e quantificadoras de detalhes, tentam, por
te, cada um a seu modo, com o conceito do conflito (portanto da exemplo, demonstrar a inexistência de barragem social e étnica permanen-
contradição) como elemento explicado r da dinâmica social. O professor te contra o escravo e mesmo o liberto no processo de transformação do
John Rex- que não é marxista -escreve por exemplo: "Como acontece escravo em homem livre, e, posteriormente, após a Abolição, na transfor-
entre os grupos, primeiro devemos deixar claro os pontos de conflito em mação do ex~scravo em cidadão.
seus objetos distintos. Podemos descobrir que existem áreas de concordân- A partir daí esses cientistas sociais aproveitando-se analiticamente de
cia, inclusivequanto à maneira pela qual o conflito pode ser levado avante. detalhes passam a demonstrar: a) que a família escrava existia com os
Mas, desde que existe um conflito de objetivos, deve-se esperar que cada mesmosvaloreseestabilidade atuais, ou seja, a família nuclear, monogâmica,
grupo procure forçar o outro a seguir um comportamento que, na pior de acordo com os padrões de legitimação do tempo (casamento religioso
das hipóteses, não interfira com a realização dos seus próprios objetivos via Igreja Católica); b) a existência de um vasto eJpafO negro de negociações
e, na melhor das hipóteses, realmente os promova. Se cada grupo fiZer isso, (o termo é usado por esses cientistas sociais como se houvesse possibilidade
deverá haver algum tipo de disputa de poder usando várias formas de de negociação sem igualdade de direitos) no qual senhores e escravos
poder, seguindo-se algum tipo de conflito até que cada lado reconheça que podiam conviver, através dessa conjuntura sem grandes conflitos; c) Essa

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Dlal6tlcn Radical do Brasil Negro Do Escravismo Pleno ao Escravismo Tardio

população escrava adaptava-se total ou significativamente a essa convivên- Qieremos insistir neste detalhe: quando se estuda cientificamente as
cia o que lhe permitiria, inclusive, criar uma cultura da escravidão, relaçõesestabelecidasdeum modo de produção na sua totalidade, procura-
transformando-se em uma unidade acima dascontradiçõesdo sistema, em se ver quais são aquelas relações matsimportantesem comparação àquelas
uma unidade cultural neutra ou pelo menos adaptada aos padrões secundárias no processo da dinâmica no período estudado. Evidentemen-
escravistas. te, são encontradas áreas nas quais as relações de frações de classes são
Qieremos deter-nos mais analiticamente em dois aspectos: a possi- pacíficas, neutras e até coloquiais. Elas possibilitam que o modo de
bilidade de uma empatia social, através de vastos espaços imunes ao produção possa funcionar e estabelecer um espaço no qual o trabalho
conflito e a possibilidade, a partir daí, de ser possível a formação e possa ser realizado sem choques e com isto se justifique a sua existência
desenvolvimento de uma a1ltura da escra1Jid!io. no campo da segurança social e produtividade. Se todos os escravos fossem
Ora, o aparelho administrativo montado na Colônia tinha dupla rebeldes o modo de produção escravista não teria existência, porque a
finalidade: defender os interesses da Coroa e garantir a segurança dos produção seria impossível socialmente e um modo de produção s6 se
senhores da insurgência negra escrava, que se mostrava dinâmica e JUStifica exatamente pela produção nele contida.
constante nessa fase do modo de produção escravista (escravismo pleno). Mas, isto não explica ou esgota o assunto nem os mecanismos da
Se, de um lado, esmeravam-se na defesa dos direitos do Rei, da segurança dinâmica do escravismo. O seu agente motor está justamente no oposto
da classe senhorial e eficiência da máquina administrativa local, de outro da harmonia e da cooperação, nas contradições que uma parte da classe
estruturavam-se militarmente para conterosescravos (africanos e também produtora do valor se abstém dessa produção. E é justamente essa parcela
índios) que se recusavam ao trabalho, quer através da fuga individual, quer escrava que representa em diversos graus diferentes a negação do sistema
através de quilombos que se organizavam em toda a Colônia. Durante o de produção existente. Nem Zumbi nem Pai João. Com isto ficaríamos
tempo em que o escravismo pleno funcionou, os negros viviam em um com o escravo que faz acordo com o colaborador do sistema (e aqui
verdadeiro corpo-a<orpo com os senhores e as autoridades. emprego o termo colaborador no seu sentido estritamente econômico)
O eixo da dinâmica social desse periodo passa pelo comportamento aquele que pela sua produção (e toda produção exige uma disciplina no
do escravo rebelde ou descontente e as medidas das autoridades para trabalho) consolida esse modo de produção. Ora, se todos os escravos
impedi-lo. Isto não quer dizer que todo escravo fosse um quilombo la ou fossem disciplinados, fizessem acordos, aceitassem a cultura da escravidão
fugitivo. Em qualquer sociedade dividida em classes a consciência dos seus segundo os critérios de concessão do senhor, então, como diria Marx, a
antagomsmos não atinge a totalidade dos seus membros, nem seria isso hist6ria pararia.
possível. Qiando voltamos a repetir que a dinâmica desse tipo de Esta visão do detalhe, de análise de casos, de~ usada por alguns
sociedade passa pelo antagonismo entre escravos e senhores queremos cientistas sociais brasileiros na esteira dos norte-americanos, faz com que
assinalar que toda a máquina ideológica, administrativa e militar estava muitos deles procurem fazer uma releitura do que foi a escravidão no
montada objetivando manter o equzlíbrw sociale de somente seria possível Brasil via papel-<:arbono dos segundos.
se houvesse uma estrutura de contenção capaz de mantê-la equilibrada. Zumbi? PaiJoão? Aapresentaçãodessa dicotomia como sendo aquela
Esse equillbrio era conseguido através do chamado controle social. exposta pelos sociólogos e historiadores brasilriros que trabalham com a
Evidentemente, no conjunto das relações estabelecidas nessa sociedade categoria da contradição e do conflito é caricata e destituída de seriedade.
existiam áreas de colaboração social do escravo e wmpreensão de alguns Ninguém, até hoje, ao que eu saiba, quis transformar a população escrava
senhores. Mas, essas relações sociais não tipificam aquelas que produzem como composta de heróis na sua totalidade, ou como sambos. Mas, o que
e dão conteúdo c\ dinâmica social nos seus diversos níveis e se expressam nos parece serconsiderado é que independentemente desse julgamento de
justamente no antagonismo de interesses e da alocação de cada uma dessas valor de heróis e vilões, deve-se ver qual o tipo de comportamento que,
classes no espaço social. Qlerer ignorar isto é pretender que as relações de na dinâmica social, contribuiu para o seu aceleramento ou para a inércia,
coma to cotidiano individual e rotineiro entre os componentes das duas a estagnação e a conservação das relações de produção escravista via
classes em antagonismo nos níveis de colaboração, adaptação e de tquilíbrio social
acomodação tão estudadas no Brasil pela Antropologia tradicional são Esta racionalização das relações durante o escravismo (beirando ao
aquelas qu~.: caracterizam o sistema escravista, é supor-se que a inércia social funcionalismo sociológico) e ao mesmo tempo a sua simplificação,
é o fator de mudança e transformação da dinâmica social. transformou-se em um simples fluir, como se não tivesse sido um processo
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011116/tca ntJd,cal do Brss1l Nogro Do Escravismo Pleno ao Escrav1smo Tardio

contro~ditório que passou por diversas fases durante a sua existência e não porque as leJS econômicas que regem o funcionamento dos dms sistemas
tive~se diferenças regionais marcantes c relevantes durante o seu transcur- são específicas de cada um.
so. Objetivando precisar mais a forma como a escravidão no Brasil Para se compreender a rdcionaliádlit' que se desenvol~ através da
tr.mscorreu, tentamos uma periodização da mesma, deixando o estabele- dominaçãoeconômica e extra~onóm ica no modo de produção escraVIsta
cimento da delimitação das áreas regionais e suas diferenç.ts e níveis de temos de dirigir a nossa 6tica não para o comportamento bom ou mau
dinam1smo (regionalização) para possível trabalho postenor. dos seus agentes principais - senhores e escravos, mas para a tolalulade do
Nessa tentativa de periodização diVIdi mos o escravismo brasile1ro em comportamento dos componentes da sua estrutura, isto é, valores SOClais
duas fases fundamentais: e mstrumentos materiais que garantiam o seu equilíbrio através da coerção
1) Escravismo pleno (1550 aproximadamente, 1850). atra-económiCôl como: o tronco, a gargalheira, o anjinho, o açoite, a
2) Escravismo tardio (1551-1888). prostituição forçada, a desarticulação fOtmiliar, a cristianização compul-
Por que esta periodização? Em primeiro lugar, porque mesmo não sória, a etiqueta escnva em relação ao senhor, o homossexualismo
tendo havido uma modificação estrutural nas relações de produçilo imposto, a tonun nas suas diversas modalidades; e, por outro lado, os
escravistas, durante a sua existência no Brastl, podemos registrar, a panir fatores extralegais de desequillbrio dessa rdcúmalidade como: a desobedi-
do final do primeiro período, modificações tangenciais e r~ionais ~ncia do escravo, a malandragem, o assassfmo de senhores e feitores, a fuga
importantes. Aliás, para sermos mais analít1cos devemos d1zer que essas individual, a fuga coletiva, a guemlha nas estradas, o roubo, o qutlombo,
modificações tendenciais não foram naciomumente uniformes, mas a msurreição urbana, o abono provocado pela mãe escnva, o infantiddio
sofreram um processo de diversificação regional permanente. do recém-nascido, os métodos anticoncepcionais empíricos e a participa-
Em segundo lugar, seria simplificar demais, como aliás acontece ção do escravo em movimentos da plebe rebelde.
muitas vezes, ver-se o sistema escravista no Brasil com as mesmas Esses dois lados do escravismo compõem uma unidade, uma
caracterlsticas durante os quase quatro séculos da sua duração. Durante Ma/idade e é sobre ela que se projeta a raa'ona/idade do sistema. Não há msso
esse longo período causas internas e externas influlram para que cenos nenhum Julgamento de valor ou implica considerar se os senhores são
rasgos e particularidades da sua estrutura sofressem modificações, inici- bons e os escravos ruins ou vice-versa. Isto compõe a raaonaluladt do
almente imperceptíveis por irrelevantes ou ioobservadas, mas, com o $isrema escravista e, por isto, dá conteúdo à sua normalidade e somente
correr do tempo ficaram mais significativas e visiveis. o~nalisaodo a sua totalidade estrutural com valores contraditórios podere-
Conforme já havíamos assinalado anteriormente6, essas mudanças mos compreendê-lo. Faz pane da lógica do sistema.
realizam-se em dois períodos, podendo ser r~strados como nodais. Não Por isto, achamos que o problema dc1 dinJmica social do escravismo
vamos no momento insistir nas panicularidadesdessa periodização, 1sto n:io se prende apenas a elaboração de uma relação fatual, um rol de
será feito no decorrer do livro, porém apenas salientar a necessidade de t'Xemplos de episódios, de detalhes que se sucederam isoladamente, mas
considerá-la como marcos capazes de situar mais precisamente o nasci· a visâo da sua transformação estrutural através da fricção nos diversos
mento, apogeu, decadência e decomposição do modo de produção níveis dessa estrutura e que a impulsiOnaram internamente e criaram
escravista no BrOtSll ,,qudas condições objetivas e rubjetivas para sua superação. Essas contra-
Estõt visão sociologicamente mais precisa poderá expliCôlr ou fuer dições fuiam pane da raaonaliJ.de do sistema escravista e da sua
compreender não apenas a composição de grupos e segmentos e a sua t'~rutura, dão-lhe conteúdo, formam a sua totallliade e nonnalúlade.
ôlloc<Jção no modo de produção escrOtvista, as suas mudançOts de st.llus Muitos dos estudos que estão sendo fettos no Brasil, segundo
durante o seu transcorrer, o papel das camadas intermediárias livres, bem pensamos, não panem de uma análise estrutural do escravismo, mas de
como, também, as lutas de resistência social, cultural e hntCôl dos escravos uma visão analógica mais do que comparativa, tendo como referencial·
nos seus diversos níveis e nos seus respectivos períodos. modelo o sistema escravista nos Estados Urudos via autores como
Temos de ver que o dinamismo da sociedade escravista, como Cenovese e outros da sua escola. A analogia, o fato analisado a partir de
unidade produtora, tinha de estabelecer mecanismos de funcionamento uma posição já aceita como matriz ciendfica patenteada substitui a
t: dt'ftsa capazes de fazê-la justificável econômica, social e politicamente. comparação daqui para lá, isenta de pressupostos preestabelecidos (e o
Isto exigia uma racionalidade interna do escravismo. Acontece que a velho Durkheim já dizia que para se ter um conhecimento sociológico
r.uionaltilddtdesse modo de produção não é a mesma do capitalismo, isto preCiso, o sociólogo deverá afastar·se de todas as pré-noções) isto equivale

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Otalt1tics Aaútcal do Blasi1 Negro Do Escrsv1smo Pleno ao Escravismo Tardio

diur que esses julgamentos de valor implícitos na análise e conclusão do encerrados nos asilos, devem aprender uma profissão; os ociosos, as moçc~s
modo de produçloescravista no Brasil deverãopassarporuma reformulação sapatetras,o pessoal dos conventos podem serobrig.tdos a trabalharem nas
profund.l, quer teórica quer metodol6gica para não continuarmos na manufaturas; as crianças devem ir ao aprendiZado. Para os operários, a
posição de Polônia respondendo ao ddírio de Hamlet missa no iníciododia, o silêncio ou cânticos durante o trabalho; as multas;
o açoite ou a gol ilha em caso de erro; a JOmada de doze a dezesseis horas;
os ba\.Jcos salãrios; a ameaça de prisão em caso de rebelião"'.
A primeira vista essa situação é exatamente igual a dos escravos no
2 Brasil e, ao se analisar apenas formalmente as duas situações chega-se à
conclusão que os dois tipos de sistema de tr.tbalbo se equivalem. No
entanto, se aparentemente são iguais- pelo nível de exploração em horas
de trabalho e mesmo o uso de apardhos de supücio- as situações n:io se
Esta posição influenciada - teóric.l e institucionalmente - da podem comparar. Na primetra o trabalhador est.tva sujeito a norm.ts
Soctologia e da Hist6ria nos países do chamado Terceiro Mundo em contratuais, isto é, teoricamente voluntárias, e, ao mesmo tempo, part:Jci-
relação ~s fontes culturais dos países desenvolvidos, vem sempre acompa- pante do mercado e suas flutuações atra~s das osctlações dos salários, do
nhada de uma postura de subordinação tdeol6gica. As perspecttvas de preço da sua força de trabalho e da aquisiç;io de bens de consumo. Ele,
análise, os projetos e a produção acadêmica que lhe dão conclusão mesmo submetido a formas abusivas de coerção, tinha o direito de mudar
coinctdem com o circuito fechado do pensamento distribuído pelas voluntariamente de patrão, deixar de trab,1lharou exigir melhor pagamen-
instituições acadêmicas dessas nações hegemônicas. Esse processo to. Era, por isto mesmo, malgrado as condições opressivas a que estava
de formador, reificador leva a se procurar analogias entre o produzido na submetido, um ser livre, isto é, um ser que não era dono apenas da sua
matriz e a nossa realidade. Decorre, como já dissemos, uma ciência de mterioridade (o corpo do escravo pertencia ao seu senhor), mas dispunha
semeUmlÇas, de analogias, sem que as dtferenças possam ser consideradas, livremente do seu corpo para loco mover-se e atuar como agente produtor.
aspa rticularidades destacadas, as contradições analisadas e os diferenciais Essas_regras, mesmo nas condições odiosas apostas acima, tinham de ser
entre realidades diversas possam ser estabelecidos. Como podemos ver, as respettadas porque o mercado não podia ser criado independentemente
ciênctas sociais brasileiras ainda não têm kn011'-bo'll?. dele, mesmo com a existência do exército mdustrial de reserva. É verdade
Este processo de raciocínio anal6gico estimula ou determina mUltas que a mercadoria {por ele produzida) não llie pertencia, mas ele ao
vezes níveis de prestígio acadêmico, tendo o cientista de procurar no Brasil imprimir nela o seu trabalho, cnando valor, parttcipava do mercado no
elementosq ue justifiquem asconclusõesdas matrizes. Temosde encontrar nível em que recebia um salário que também agia attvamente no mercc1do.
correspondências entre a realidade estudada pelos cientistas das matrizes J.í o escravo circulava como mercadoria, tdêntica àquela a qual ele pr6prio
e a realidade brasileira produzia. E é nesse nível de relações econômicas que o escravo é ,
Há, por isto, alguns cientistas sociais nacionais que, ao discutirem a socialmente (()isificado.
última fase da escravidão no Brasil referem-se ao escravo de ganho como Isto porque para ele não havia nenhum contrato, mas a posse absoluta
sendo metade escravo metade livre. Em face disto temos de tecer algumas do seu corpo como propriedade pessoal. Todo o trabalho produzido por
considerações sobre a amdiçiio do Kr rxr.zvo. ele durante o decurso da sua vida não lhe pertencia. Nada revertia
O problema do escravo, ou seja, a sua caracterização essencial (de posteriormente para ele. O que consumia era um tipo de ração animal
essêncta) não pode ser conceituado pela forma como ele é tratado por (muitas vezes porele pr6prio produztda) fomecida pelo senhor para repor
alguns senhores, alimentado, vestido e educado. Sua condição podta, a sua força flsica capacitada para o tipo de serviço escolhtdo por ele.
mesmo, em certas circunstâncias - e esta particularidade foi muito Por outro lado, se o homem livre produzia mercadoria, o escravo era
explorada pela literatura escravista, daqui e dos Estados Unidos, daquela também mercadoria e poderia servend ido juntamente com o saco de café
êpoca- ser igualado a algumas categorias de trabalhadores livres europeus. por ele produzido. O seu trabaU1o não era recompensado e os alimentos
Em nível de castigos, por exemplo. Descrevendo as condições do povo que recebta, assim como as roupas, não eram pagamento, mas material
trabalh.tdor na França, por volta de 1664, Michel Beaud diz: "ao mesmo sufictente para a manutenção da máquina e colocá-la em situação
tempo, é o brutal aprendizado da disciplina manufatureira. Os mendigos, operactonal. O escravo, por isto, podta até possuir alguns bensconcedtdos

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D1aléiiCB RadiCal dO Bras/f Negro Do Escravismo Pleno ao Escravismo Tarcfo

pelo senhor. O que ele não possuía nem podia ter era a posse do seu possui o corpo como livre instrumento de sua vontade. A subordinação
próprio corpo e a capacidade de trabalho de que ele estava investido. Esses absoluta a que está submetido advém-lhe da expropriação de qualquer
dois tipos de trabalhador não são por isto idênticos, quer estejam propriedade. Expropriado dos meios de produção, não se toma livre,
trabalhando de ganho ou no eito. O trabalhador livre pode, dependendo proprietário natural de si mesmo para vender sua força em troca de salário
de épocas ou regiões, ter um tratamento mais coercitivo do que o escravo. (sabemos que a troca por salário in nalura é corrente nas economias em
Mas isto para discipliná-lo no trabalho, quando a critério do patrão não que os trabalhadores são proprietários dos instrumentos de trabalho). Mas
está cumprindo com normas contratuais. Já o escravo era castigado sem a propriedade de si mesmo é um atributo que impede aos expropriados,
necessidade de nenhuma norma de Direito, pois era uma propriedade no modo de produção capitalista tornarem-se escravos. No escravagismo
privada do senhor e sobre ela o Estado não tinha poder de intemr 9• a expropriação toma o trabalhador escravo; no modo capitalista toma-o
Esse aspecto de mercadoria já se corporifica na relação entre o escravo lrtJre'112•
e o traficante que é o elo intermediário na sua comercialização. Com E é exatamente neste nível que o circuito se fecha.
propriedade escreve neste sentido Carlos Simões: "para o traficante, o
escravo é apenas mercadoria viva em estoque e como tal, todo o seu fluir
é custo de manutenção quantificável pelo valor dos meios de subsistência.
Em condições estáveis de mercado, deve desembaraçar-se dela. O senhor 3
definitivo, ao contrário, deve utilizá-la imediatamente, a fim de que
reproduza o capital investido e sua própria manutenção, trabalhando o
resto do tempo gratuitamente. Daqui decorrem duas observações: pninei-
ro, o valor do escravo está diretamente relacionado com os custos da sua Dando continuidade a essa análise critica de certos conceitos atuais
obtenção, que são diretamente relacionados com os custosdo apresamento que circulam no âmbito das ciências sociais, queremos nos referir ao de
e ao de sua manutenção. Estes custos correm por conta do comerciante bmha camponesa. Para alguns historiadores e sociólogos do Brasil,
escravistaevariamdeacordocomaquantidadedisponíveldoestoqueque, seguindo a esteira dos seus colegas dos Estados Unidos e do Caribe, teria
inclusive, pode propiciar desperdício de escravos; segundo, os senhores existido uma brecha camponesa, também aqui, durante o regime escravista.
definitivos devem sustentá-los e ainda aos filhos (e aos velhos se Neste sentido, o mais qualificado defensor da sua existência é
prevalecerem razões humanitárias), trabalhe ou não, recebendo em troca inquestionavelmente Ciro Flamarion S. Cardoso. Depois de estudar
toda a força do trabalho escrava" 10• cntlcamente a bibliografia pertinente no Sul dos Estados Unidos, Caribe
Mas, não é apenas essa transação comercial através do traficante que francês e Caribe espanhol, aborda o problema da brecha camponesa no
legaliza a posse do escravo. Qyem compra uma mercadoria roubada não Brasil. Passa a examinar a sua existência num texto que é mais uma
tem direito sobre a mesma pois foi ilegitimamente comprada. No polêmica às posições do historiador Jacob Gorender do que uma
particular K. Marx esclarece: "a propriedade sobre o negro não lhe parece comprovação fatual e especialmente conceitual da sua existência13•
obtida por meio da instituição da escravatura como tal, e sim pelo ato Outros historiadores e sociólogos, alimentados por uma literatura
comercial de compra e venda. Mas, não é a venda que cria esse direito, que procura indiretamente reformular a estrutura do sistema escravista
apenas o transfere. É necessário que o direito exista antes de poder através de brechas: - brecha camponesa, de ganho, feminina, da casa
transformar-se em objeto de venda. Uma venda não pode produzi-la nem grande, do eito etc, procuram, com isto, fragmentar e mesmo pulverizar,
uma ~rie dessas vendas, continuamente repetidas.. Geraram esse direito através de inúmeras vertentes, o bloco fundamental e eixo dinâmico das
as relações de produção"11• relações s6cio-econômicas globais que configuram a essência dialética do
A propriedade sobre o escravo é absoluta. Se ele trabalha de ganho em modo de produção escravista no Brasil. Com isto diluem o problema
atividade na qual há uma relação monetária ele (escravo) é exterior a essa fundamental de luta de classes no que ele tem de substantivo, isto é, as
transação, embora a realize materialmente. Daí acreditarmos que esses relações entre a classe senhorial dona dos meios de produção (incluindo
escravos, embora privilegiados na divisão do trabalho (quando são a pessoa do escravo) e a classe oprimida mais importante: a classe escrava.
escravos de ganho ou a/11gados na zona urbana) continuam escravos como Esta fragmentação, por um lado leva-nos a um relativismo sociol6gico
os outros.. Achamos, por isto, como Carlos Simões que: "O escravo não chegando quase a negar a ciência no seu sentido mais profundo.

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Dialética Radfcal do Brasil Negro Do Escravismo Pleno ao Escravismo Tardio

O trecho brecha camponesa foi criado por Tadeus I.epkowski 14 para alienado (socialmente), da sua condição humana. Não é portanto
designar um tipo de exploração agrícola individual ou familiar do escravo camponês ou protocampon!s. O que acontece no caso é que o senhor
em terra do seu senhor, para o seu sustento e da sua familia. Em alguns autoriza, isto é, consente (exercendo a sua condição de proprietário de um
casos, havendo excedente o escravo poderia, dependendo de autorização ser humano e da terra) ao escravo praticar essa função (atividade)
implícita ou explícita do seu senhor, comercializá-lo ou acumulá-lo. Esse compulsoriamente. O que, aliás, ê característica de todo trabalho escravo,
conceito ganhou ampla circulação entre os historiadores da escravidão. como uma estratégia radonaliztulora a fim de conseguir maior soma de
Mas, para nós, o conceito corno é aplicado, mesmo como sendo sobretrabalho, tirando-lhe o tempo de lazer, sendo, por isto, também uma
apenas urna variável semântica, com o significado a ele conferido é forma de coerção extra-econômica por ele exercida.
cientificamente insustentáveL Não configura, portanto, uma posição de independência camponesa
Em primeiro lugar dá a entender a existência de uma brecha de - protocampesinato- mas, pelo contrário, mais uma forma de subordinação
trabalho camponês (de homens livres, portanto) dentro da área agrícola e coerção extra-econômica. O fundamental é a essência alienada desse tipo
da economia escravista. Isto porque o termo camponês, ao contrário do de trabalho e não a divisão interna do mesmo estabelecida pelo senhor.
que alguns dizem, é claro e já definido conceitualmente nas ciências Ninguém melhor do que Dostoiévski descreveu esse tipo de trabalho
sociais, incluindo-se a economia. Significa um homem livre Guridicamen- quando diz referindo-se ao comportamento dos condenados a trabalhos
te livre) o qual através do seu trabalho, explorado pelo proprietário da forçados na Rússia:"Comefeito, osdetentosaindaqueembaraçadospelos
terra, ou na sua, se é possuidor de uma gleba, insere-se corno trabalhador ferros transitavam livremente na prisão. Aborreciam-se, cantavam, traba-
para comercializar aquilo que ele produz, quer para si ou para o lhavam, fumavam seus cachimbos e bebiam aguardente (os beberrões,
proprietário da terra, quer para o mercado aberto mediante detalhes entretanto, eram bem raros). Organizavam mesmo ã noite jogos de cartas.
contratuais com o respectivo dono- no caso de não ser proprietário- ou Constatei que os trabalhos não eram árduos e não constituíam a
outros agentes mercantis se o for. Por esta razão (e outras) conforme já foi verdadeirafod~a do presídio. Compreendi bem mais tarde, porque esse
dito, a brecha camponesa na sua acepção restrita seria um tipo de trabalho trabalho era duro e excessivo; não pela dificuldade que apresentava e sim
agrícola executado por homens livres (camponeses) engastado na estrutu- pela razão muito simples de que era forçado, constrangido, obrigatório.
ra do sistema escravista. Somente executado por temor ao chicote. O camponês, sem dúvida,
Não é por outra razão que aqueles trabalhadores que recebem salários trabalha mais do que o forçado. Labuta noite e dia; é no seu próprio
no campo não são camponeses, mas assalariados agrícolas. Situam-se na interesse que se cansa. Também sofre menos do que o condenado que
categoria de operários. São, portanto, vendedores da sua força de trabalho trabalha sem qualquer lucro ou proveito pessoal. Veio-me um dia a idéia
no mercado capitalista, tendo como retribuição o salário, fato que os de que se quisesse reduzir um homem a nada, punindo-o cruelmente,
coloca na mesma categoria do trabalhador de uma fábrica em nivel de esmagando-o de tal forma que o mais temerário assassino tremeria diante
exploração da mais-valia. O que interessa neste quadro não é a produção, desse castigo, e se amedrontaria antes da hora, seria bastante dar ao seu
o produto em si, mas as relações sociais concretasque são estabelecidas para trabalho um caráter de completa inutilidade, de verdadeiro absurdo. Os
produzi-la. Exatamente por esta razão o assalariado agrícola não é a mais trabalhos forçados, tais como são atualmente, não apresentam nenhum
camponês, pois realiza uma relação contratual na qual ele vende a sua força interesse para os condenados. Não têm ao menos a mínima razão de ser.
de trabalho por uma determinada quantia fixa em dinheiro (salário). Da O forçado fabrica tijolos, cava a terra, tece, constrói. Todas as suas
mesma forma o escravo ao plantar uma parcela de terra pertencente ao ocupações têm um sentido, uma finalidade. Às vezes o detento se interessa
seu senhor não estabelece outro tipo de relação (feudal ou capitalista) mas pelo que faz. Qy.er então trabalhar com mais afinco, com mais amor. Mas
esta relação continua escravista, aumentando o sobretrabalho do escravo é contrariado: obrigam-no, por exemplo, a carregar água de uma tina para
e dando um lucro suplementar ao senhor. O termo brecha camponesa é, outra e vice-versa, a reduzir areia em p6 ou a transporta rum monte de terra
portanto, impróprio para definir o que o autor se propôs. de um para outro lugar, ordenando-lhe, em seguida, o contrário. Estou
Em segundo lugar, o escravo que trabalha por consentimento do seu persuadido que ao fim de poucos dias o detento se estrangulará, ou
senhor em um pequeno lote de terra, plantando nessa parcela produtos cometerá mil crimes que o conduzirão à pena de morte, preferível a essa
agrícolas em pequena escala para uso pessoal, como atividade suplementar vida de humilhações e tormentos. Conclui-se que castigo igual seria outra
às suas tarefas ordinárias, jamais perde a sua condição (essência) de ser tortura, mais uma vingança bárbara do que uma correção. Além disto,
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Di Mt1 " /1acltcDI do Brasil Negro Do Escrav1smo Pleno ao Escravismo Tardio

completo <Jbsurdo, pois com tais sistemas não atingem nenhum fim produzia para a exportação, aumentando, por outro lado, a tax.l de
jlmitic.ávti"~>. sobretrabalho do escravo e de lucro para o senhor.
&ta análise genial de Dostoiésvski vem demonstrar como em O camponês (homem livre, portdnto) este, s1m, mesmo na estrutura
qualquer parte da diVIsão do trabalho onde o trabalhador estiver do regime escravista poderá abrir bolsões de trabalho e/ou influência
exrrn·ndo o seu serviço como escravo a al~naçik) o envolve. A coirifica{iib social, econômica e cultural independentemente do trabalhador escravo,
J4J(l.l/doescravocontinua completa. Podem ter havido casos isolados onde romo agregado, trabalhador de condiçiio, mm'ro etc, como aconteceu no
o senhor não tenha usado desse direito, concedendo um certo espaço de Nordeste açucareiro e poderão ser considerados historicamente um
JÇào maior para que ele assim pudesse dispor de um excedente da roça. protoCdmj)(sinato dentro da estrutura do modo de produção escravista. Mas
M.u o seu direito, em abstrato, continuava existindo, não o usando por isto porque eram homens juridicamente livres (donos do seu corpo e da
n.lo necessitá-lo ou não querê-lo. Isto evidentemente não representava sua força de trabalho) e por isto estavam sujeitos a outras leis econômicas,
uma braha camponesa ou um protocampesí'nato, como alguns cientistas mesmo atuando na estrutura escraVIsta. Em outras palavras: seriam
sociais, no sentido de cop1ar esquemas teóricos vindos de fora, tentaram módulos de traballio camponês (e, por isto, não escravista) produzindo
e tentam usá-lo. artigos de consumo para uso de uma sociedade escravista, dentro das leis
Esses módulos de produçlo, pelas relações estabelecidas entre o de mercado lavre.
produtor da riqueza (valor) e o detentor dos meios de produção não Isto, como vemos, é diametralmente oposto lquilo que foi chamado
chegam a constituir um protocampesinato em nenhum dos seus aspectos de bm.ht.~ camponesa por Tadeusz Lepkowski. No particular, Maria Sylvia
sociol6g1cos e econômacos, mas se inserem nos quadros das relações de de Carvalho Franco tem um livro sobre essa atividade de trabalho livre
produção escravistas, constituindo uma das suas variáveis. no modo de produção escravista que esclarece o assunto e demonstra a
Se fosse de outra maneira haveria a possibilidade de emergir, como toul desvinculaçlo desse tipo de atividade com a chamada brecha
continuidade desse protocampt.rinato de origem escrava - trabalhadores rampontsa16•
escravos nas bmh.zs camponesas - na sociedade de trabalho livre que As discussões verificadas no Brasil sobre o conceito de bmba
substitui o escravismo, uma massa camponesa dela oriunda. Tal fato, r«mponrs.z centram-se na enumeração fatual de que os senhores de
porém, não ocorreu no Brasil de modo Significativo pelo menos. escravos cediam voluntariamente (uma negoc1ação em~ de igualdade
A chamada brecha camponesa no Brasil se for estudada a partir dé! entre o senhor e o escravo é especulaçdo romântica) pedaços de terras
distribuição de renda da terra, deixa de existir. Isto porque no sistema o~os ~us escravos para que eles praticassem uma agricultura de subsis-
escravista entra no custo de produç.io da mercadoria produzida nas têucla, e, em alguns casos, havendo excedentes, comercialiZassem essa
unidades do senhor a alimentação do escravo, assim como, no sistema produção, quase sempre com o próprio senhor que os revendia no
capitalista entra o combusúvel que aciona a máquina da empresa. No mercado livre. Mas, o que deve ser discutido não é a veracidade,
sistema escravista o escravo é arrolé!do como capital fixo. Ele é reposto, Creqüência e/ou detalhes desse tipo de concessão senhorial. Essa
assim como é reposta uma parte da máquina desgastada no processo de concessão mnguém discute. O que se discute é se os escravos que
produção. No sistema capitalista o trabalhador tem de alimentar-se ~s suas plantavam nessas terras eram camponeses ou protocampes1nos, ou se
custas através de uma mercadoria que de possui e que permite a sua continuavam escravos. O conceito de brechú camponesa é sociologica-
restauração flsica. Essa é a causa pela qual o trabalhador assalariado é mente insustentável porque deseja transferir o tipo de atividade
considerado capital vanável. Desta forma, somente será justific.ível falar- produtiva de uma categoria (o escravo) para outra (o camponês) através
se de uma brech.z camponesa se ela compusesse uma outra unidade de uma interpretação analógica. O escravo jama1s poderá ser qualifica-
produtiva independente daquela existente no ststema escravista, com do ou confundido com o camponês simplesmente porque o trabalho
características de trabalho campon~ (isto é, livre) o que não aconteceu no do camponês exige a existência de um trabalhador livre, o que não
Brasil. Pelo contrário. Produziu-se um tipo de escravo que plantava os .tcontece com o trabalho escravo que exige um trabalhador sem a posse
meios de sua própria subsistência nas terras que lhes foram indicadas e do seu ser. No Brasil poder-se-á provar ad nauseum a existência desse tipo
permitidas pelo senhor para eles produzirem ou suplementarem a de dtvisão do trabalho estabelecido pelo senhor a uma parcela de
produção escravista na área de produtos alimenúcios, conseguindo, com escravos. Isto não esclareceria nada. O termo é falho conceitualmente
isto, diminuir o custo de produção da mercadona que o próprio escravo e não fatualmeme.

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O l t/Cilll llc;lli do 81BS1I Negro Do Escravisroo Pleno ao Escravismo TSidio

lornu conclusiva ou satisfatória. Por isto, há três vertentes a considerar


4 como hip6teses:
a) Que houve esse tipo de economia alternativa, isto é, houve uma
dmâmica interna nos grupos quilombolas capaz de proporcionar essa
('('onom1a informal de maneira significativa no conjwuo da economia
Outro aspecto da questão hrtcha camponesa é se houve formação de c , 1 tvtsta, continuando ap6s a Abolição;
uma economia quilombola dentro do modo de produção escravista em b} Q!Je esse tipo de economia alternativa não teve possibilidades de
d~corrênc_i~ da 1uta dos_escravos e o estabelecimento de produção agrícola tt.tu~rormar-se em um modo de produção autônomo ou em um<~
n~SSC~s reg1oes.. No particular - com t'Xceçlo, talvez, de Palmares - não se ,., nuomia alternativa que continuasse após a Abolição como segmento
constguiu definir no Brasil de maneira precisa a formação, destnvolvi- J•lodutivo;
memo e possível destruição (ou conservação) desse tipo de econom1a e a c) Q!Je esse tipo de economia quilombola teve um desenvolvtmento
formaçJ? de outra da quilombagem, os stus vínculos de ligação com a r.tz.oávt'l, mas não resistiu à destruiçlo militar dos quilombos, não
econom1a colo mal, a sua possível independência (ou possíve1s vinculosde de1xando vestígios ponderáveis em conseqü~ncia da morte ou dispt'rsão
dependência), o seu ciclo de evolução e as possibilidades - pelo menos dos r.eu~ lubitantes..
teori~amente ~d~ssa economia transformar-se em uma proposta ou práxis Para nós, essa produção quilombola, pelo menos no caso particular
polltlca«onomtca ou econõmico-politica embutida no modo de produ- elo Bras1l e com base nos poucos informes de que dispomos (uma
ção que substitui o escravismo em conseqüência da sua dinâm1ca mterna concluSilo provisória, portanto), não se configurou em um protocamptsmato,
durante a escravidão. llliiS fo1 uma economia de resistência destinada à sobrevivência dos
Não cabe, contudo. insistir no assunto por falta de informações sobre c1Lulombose não tevecontinuidade na economiadetrabalho hvre em face
esse tipo de economia no Brasil, mas, o que queremos deixar registrado d.t forte repressão contra eles. Tanto 1sto tem apoio histórico que na
~ que esse t1po de economia quilombola somente se mamfesta como l{tpilblica de Palmares, como nos quilombos mineiros, fluminenses,
negt~ção estrurural e dinâmica (porque de protesto) à economta tradicio- g.n'l( hos, pernambucanos e de outras regiões onde os quilombos se
nal e estabelecida: a econom1a escravista. amt;~laram, não encontramos uma continuidade na economia ap6s a
De fato, uma economia quilombola dentro da estrutura escravista Abohção porque foi destruída antes..
pelo menos no Brasil, ao contrário do que aconteceria com umaeconom1a ll.í, contudo, algumas comun1d.1des que se conservaram como
camp~:mesa- esta última já bem analisacf.1, especialmente pelo pensamento contmuação de quilombos, mas estas nlo podem ser considerados
maoosta - deve ser repensada de forma que possamos conceituá-la e SoC'gmentos representativos e relevantes, que teriam dinamizado no seu
vermos o seu grau e nivel de import.lncta e os seus vestíg1os no Brasil atual wiiJUnto a agncultura na passagem do escravismo para o trabalho livre.
pdCil não ficarmos apenas na constatação do passado. Não foi evidente- l'm outro lado, não se pode negar que os quilombos criaram áreas de
~ente outro modo de produção dentro do sistema escravista (ou teria .a11v1dade agrlcola de subsistência proporcionando uma economia alter-
s1do, com particularidades e leis econômicas específicas?). nativa protocampesinal durante o período em que existiram.
Ora, ao contrário do que acontece com os camponeses, não h.í na Podemos apresentar, para início de anáhse, os segumtes focos que
literatura conhecida uma análise fatu.1l e teórica da economia da poss1wlmente podem significar a existência de uma economia quilombo! a
quilombagem no Brasil, ou seja, da economia quílombola: os espaços md~pendente:
geogr.íficos ocupados, o seu ritmo de produção, condições de traball1o .1) A República de Palmares;
níveis de acumulação, meios e forma de comunicação com a soc1edad~ b) Os papa-méis de Alagoas;
abrangente, distribuição interna de t'xcedentes, d1vtsão interna do traba- c) Os qu1lombos de Goiana e Catuc.\, em Pernambuco;
lho por idades e sexos e inúmeros outros detalhes estruturais. d) Os Calungas, de Goiás;
Por isto achamos que a visão da economia quilombola no Brasil e a e) Os quilombos da região amazonense.
possibilidade de um protocampesinato em decorrência deve ser a análise e Qu.mto a Palmares, já existe uma hterarura relativamente abundante,
i1~terpmação de uma realidade histónco-social e econôrmca que ainda, cmoor.t toda ela baseada em documentação dos seus repressores 17• Por
nao está comodamente vertida para o d1~urso das ciências sociais de 1sto, ujo iremos insistir no assunto". Em relação aOSfJdpú·méisde Alagoas
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OtJI/tii>CJl RfiiiJC81 do 8rBSJI Negro Do Escrav1smo Pleno ao Escravismo TardiO

u b1bliografi.1 équase m~istente e uma pesquisa de campo deveria ser feita. Nr.~:rar, na comunidade negra Tapagem, no Alto Trombeta, Pará, organi-
I lá os trab.dhos de Dirceu Lindoso, Manuel Correira de Andrade e Décio r do 1)('1.1 Ar.roeta{Jo das Comumdades RntMntstzntrs dos QJ.alombos do
Frtius, m.ts, ndo se fez um tró!balho bist6nco-comparauvo para se Atuudpll' dr Orixunmá. Como resultado dessa ~eumao ~a tu a C.zrta do N
constatar, ou não, a existência de descendentes dos JUpú-mb.s na atual 1 rm)IJ/m /tJíus Ntgr.u que fot endereçada as autondades, às outras
população camponesa da regtão onde eles atuaram. Sena uma oportuni- n mumd.tdes e a pessoas e enodades mteressadas em prese~á-las da
dade para se constatar, ou não, se se na a ecooomiacamponeSd ali existente IIIIÇdO, ~ for executado o projeto de exploraçao da bauxtta, a ser
continuação por descendência daqueles negros que participaram da dell('uvo!VIdo pelas empresas ALCOA e BIU.ITON, nas terras d~s
Cabanagem de Vicente de Paula no século XIX "· rem.anescentes desses quilombos. O documt'nto apela para que seja
Em relação aos quilombos de Goiana e Catucá, o mesmo trabalho re peuado o inciso das Disposições Transit6rias~a atual Constitui~ãoque
deveria ser feito, além do mais porque sabemos que trabalhadores livres m<~nda preservar as terras das comunidades qu1lombolas sobrev~ventes.
alemães foram posteriormente ocupar as terras desses quilombolas. Pode Esse conjunto de quilombos amazonenses também poderá configurar
ser- por hipótese -que tenha haVIdo uma fratura na continuidade das outrJ hm:ha camponesa existente durante o regune escravista e que perdura
suas atividades agrícolas, com a cheg.1da dos trabalhadores livres (artistas) tl~ hoJe13 .
para atuarem na região, se é que houve agricultura nesses quilombos. St' nos Calungas, porém, podemos ter mformações a respeito do seu
Qteremos salientar que nos documentos assinados pelo comandante da p.1ssado, nas outras áreas de ex-quilombos, espec1almeme da região ?e
expedição que foi exterminá-los não encontramos nenhuma referência l t 1nmbetas, nos são desconhecidas. É todo um trabalho de pesqwsa
agricul~ra nos mesmos, o que é de estranhar pois quase sempre há l1·.t6nco-comparativa que está por fazer-se para podermos .afirmar, c~m
referêncta às lavouras dos negros, quando os quilombos eram agricolas2o. :.c-~urança, se houve, durante a escravidão uma economta alten~allva
Sobre os Calungas de Goiás acreditamos ser o grupo negro que tem (r i.1da pela agricultura dos quilombos e que remte como umdade
todas as caracterlsticas de ser remanescente de um quilombo, ou meU1or, p10dutiva até hoje. Mas, tudo são hipóteses e somente pesquisas no local
de vários e sobre o qual se tem o maior número de informações. A poderiio confirmar. . .
comunidade toda Situa-se nos municíp1os de Monte Alegre, e Cavalcante Somente depois disto poderemos comprovar a eXJstênc1~ de uma
e segundo tradição nasceram no século XVIII com aeconomia mineradora. /rf((:ha cl.lmponesa- vá lá o termo- oriunda de uma econom1a quil~~bola
Calcula-se que a comunidade Calunga ex1ste há mais de 150 anos e no sistema escravista e a sua continuidade na atual estrutura agrana do
atualmente tem cerca de 5 mil habitantes. Está divid1da em três núcleos Bmil.
nos vãos de Almas, Muleque e Calunga-Cootenda. A pnncipal hipótese
sobre a sua origem é a de serem descendentes de escravos fug1dos de
Espírito Santo, Bah 1a, Goiás e de iili permanecerem isolados, conservando
características culturais próprias. O Escravismo Pleno
O forte caráter comunitário dos calungas pode ser constatado
durante as festas, como, por exemplo, a de Nossa Senhora da Abadia, de
5 a 16 de agosto no vão de Almas. Esse ciclo de festejos se inicia com São
João e termma com Nossa Senhora das Ne~s. significando uma pausa no Chamamos de aaavismo pleno àquele período da escravidão que se
trabalho para o reencontro com amigos, ficando o sentimento religioso estende no Brasil do ano de 1550 (+ou -) at~ aproximadamente 1850,
para segundo plano. quando é jurldica e efetivamente extinto o tr~fico inter~ac1onal de
A base da agricultura dos Calungas é a mandioca, transformada, ali escravos africanos. Abrange, portanto, todo o penado colomal, a fase do
mesmo, em polvilho e farinha. Os Calungas são possivelmente uma brtcha reinado de D. João VI, o Império de D. Pedro I e de D. Pe~ro D. Nesse
camponesa que sobreviveu à escravidão21• longo perlodo de mais de trezentos anos, estrutura-se e dma~lZa-se o
Resta fazer referência aos quilombosda região amazonense registrados modo de produção escravista no Brasil com todas as caracterlstJcas. que
de forma pioneira por Vicente Salles22 e atualmente estão se tornando determinarão o comportamento básico das duas classes fundamentaiS da
visíveis através de atitudes reivindicatórias e de participação política e sua estrutura social: senhores e escravos.
soctal. Neste sentido, em junho de 1991, fm realizado o N Enamtro Raú.n Os demais segmentos, grupos, instituições, autoridades e mesmo

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Di..119tlca Rad1cal do Bras// Negro Do Escravismo Pleno ao Escravismo Tardio

.
parcelas. de trabalhadores livres estavam, direta ou indiretamente a ele
subordmados. Na área dos trabalhadores livres produtores de uma
•s.~uidoresde uma linhagem pura, sem sangue de negro, judeu ou herege.
O 01reito da época, em consonância com os interesses da classe
economia de subsistência e ainda maqumtstas, ferreiros, artesãos e outras !õtllhoriaJ e da Metrópole, aplicava uma série de punições reguladas pelas
categorias não quahficadas, todos estavam h gados por laços de subordi- Ordenações do Reino, os códigos Manuelino e posteriormente Filipino
nação, di retos ou ind1retos, aos senhores de terras, os quais permitiam que aqui tinham valor de Lei. "Essas leis- escreve Rodolfo Garcia- eram
também a existência de rendeiros e pequenos plantadores sem voz ativa ,, .. Ordmações que em vtrtude do nome do rei que as promulgou (fazendo
nos negócios da Colônia rdormar as Ajõnsmas no meado do século precedente), se ficaram
Na área administrativa, os governadores gerais e vice-reis, depois, dC'nominando Manuelínas, as quais, aditadas e melhor redigidas, se
eram diretamente subordinados a PortugaL Com a chegada do primeiro promulgaram de novo nopnnclp!o do século seguinte, reinando um dos
Governador Geral, Thomé de Souza, a centralização administrativa fez llihpes de Castela, pelo que ficaram chamando Código Filipino, do qual
com que o exercício do poder ficasse mais forte e regulamentado. muttas disposições vtgoraram entre nós até a promulgação do Código
Competia a essa autondade velar pela obediência às leis do rei, manter a Criminal em 1830, do Código do Processo, em 1832, e até os nossos dias
ordem pública, além de administraras relações entre portugueses e índios, com a promulgação do Código Cívil"16.
dirigir as operações de defesa em geral, obrigar os concessionários de É dentro dessa estrutura rígtda administrativa, judiciária e politica-
sesmarias a construir fortificações, mcentivar a construção naval, distri- mente que a sociedade brasileira funcionará, sem modificações substan-
buir sesmarias em torno da nova cidade (Salvador), controlar a penetração Ciais na sua essência até praticamente 1850. Durante esse período o
do interior, prover cargos públicos e conceder títulos de cavaleiros a quem número de escravos - inicialmente índios, posteriormente africanos -
julgasse merecedor. ascenderá constantemente. Gandavo dtrá, cerca de 1570: "Os mais dos
A parte fiscal ficava com o Provedor-mor. Este era incumbido de moradores que porestascapitaniasestãoespalhados, ou quase todos, têm
refazer a maneira como as rendas da Colônia estavam sendo arrecadadas, suas terras de sesmarias dadas e repartidas pelos Capitães e Govemadores
organizar o serviço de alfândega e fisco, tomar conhecimento dos litígios da terra.
com a Fazenda Real, ordenar e fiscalizar serviços de funcionários da E a primetra coisa que pretendem adquirir, são escravos, que neles
Fazenda e ajudar o Governador GeraL lhes fazerem suas fazendas e se uma pessoa chega na terra a alcançar dois
O Judiciário foi também centralizado na pessoa do Ouvidor Geral pares, ou meia dúzia deles (ainda que outra coisa não tenha de seu) logo
ao qual estavam subordinadas as medtdas a respeito de crimes até a morte tem remédio para poder honradamente sustentar sua família: porque um
natural contra "escravos, peões, cnstãos e gentios livres". lhe pesca e outro lhe caça, os outros lhe cultivam e grangeam suas roças
Com esta centralização racionalizava-se o sistema de governo da e desta maneira nem fazem os homens despesa em mantimentos com seus
Colônia, dando-lhe unidade administrativa e judiciária, e, ao mesmo escravos, nem com suas pessoas"27•
tempo, criavam-se as condições de reprimir as revoltas de negros e índios, O cronista já caracterizava a soctedade da colônia como tendo a
sendo que esses últimos se mostravam cada vez mais aguerridos, chegando grande propriedade e o trabalho escravo como bases, tanto assim que
ao ponto de matarem o capitão-mor Pereira Coutinho24 • É também por escreve: "pois daqui se pode inferir quanto mais serão acrescentados as
essa época que os africanos escravos começam a demonstrar a sua fazendas daqueles que ttverem duzentos, trezentos escravos, como há
inquietação, tendo-se notícias de um quilombo atacado em 1575. Mas, as muitos moradores na terra que não têm menos desta quantia e daí para
atividades desses "negros da Guiné alevantados" já eram registradas bem . "li
ama .
antes deste ataquelS. Ao mesmo tempo em que cresc1a a população escrava, de um lado,
A produção, por outro lado, era escoada para o exterior (Portugal) via do outro a rebeldia desse elemento se fará sentir: os índios através de
monop6lto comercial exercido pela Metrópole, através do Conselho guerras constantes e violentas contra os colonos, e os africanos através de
Ultramanno. Esta organização do sistema escravista através do Governo movimentos coletivos como Palmares e outros grandes ou pequenos
Geral, a parttr de 1549, vem demonstrar a necessidade que tinha Portugal quilombos, ou no seu cottdiano com fugas individuais, em grupos,
de pôr em ordem a Colônia Poroutro lado, a chegada de Thomé de Souza descaso pelo trabalho, dehnqüência ocasional contra os feitores, senhores
proporcionava a concessão de sesmarias àqueles que provassem ser homens e membros de suas famt1ias. A repressão a essa rebeld1a por parte do Estado
dt qualidadt, isto é, além da condição de donos de escravos serem escravista, por 1sto mesmo, era uma força necessária e eficaz para poder

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Oial(ltlca Rad1Cal do Brasil Negro Do EsC!avismo Pleno ao EsC!avismo Tatdio

manter o tquilíbrio socia4 enquanto a força fo~ um elemento desse fJ' nhor era obrigado a investir na compra do escravo africano (na
equilibno. Era, portanto, um equilíbrio que tinha como base principal o unpossibilidade de manter o equilíbrio da força de trabalho através do
antagonismo entre senhores e escravos e as medidasdecontrole social dos huho) para onde derivava grande parte dos seus lucros. Se calcularmos que
senhores. lC il' 1 de 10 milhões de africanos entraram no Brasil via tráfico interna-
Por outro lado, seria ingênuo supor-se, no Brasil, um modo de liOII.II, no período que vai do inicio do século XVI ao meado do século
produção que se auto-satisfizesse na área de circulação e do consumo; fosse XIX. adquiridos pelos senhores durante a Colônia e outros setores
um escravismo patriarcal, fechado, e se regulasse apenas e tão-somente 111ttressados nesse tipo de mão-de-obra até à época da extinção do tráfico,
pelas relações estabelecidas internamente. Seria também ingênuo supor- 1lc:xiemos imaginar, aproximadamente as proporçõesdasdespesas que eles
se que esse escravismo, por estarligado ao capitalismo mercantil das nações 11veram com esse tipo de investimentos e os lucros que proporcionaram
consumidoras dos seus produtos tivesse internamente, regulando-o, as leis , ,o~ traficantes. Era um tipo de investimento micial oneroso e de curta
de mercado daquelas nações. O modo escravista de produção que se duração, se levarmos em conta que a vida útil de um escravo era de sete
instalou no Brasil era uma unidade econômica que somente poderia ,. d<'Z anos, sem incluirmos entre os riscos possiveis as constantes fugas
sobreviver rom e para o mercado mundial, mas, por outro lado, esse •nthvtduais, a formação de quilombos, as guerrilhas nas estradas, os
mercado somente podia dinamizar o seu papel de comprador e acumu- ~111ddios e as insurreições urbanas29.
lador de capitais se aqui existisse, como condição indispensável, o modo Por estas razões, somente o trabalho escravo e não outro tipo de
de produção escravista. Um era dependente do outro e se completavam. tr.lb.Jlho, mesmo compulsório e expolíativo poderia dar resultados
Daí muitas confusões teóricas ao interpretar-se esse período, quando se compensatórios ao novo ti pode empresa que se estabeleceu no Brasil. Fora
procura estender as leis econômicas do capitalismo, especialmente do disto, o sistema global que regulava as relações metrópole-colônia entraria
capitalismo mercantil ã estrutura e à dinâmica da sociedade brasileira em crise ou colapso. Ao mesmo tempo, o que as colônias compravam das
existente na época. metrópoles (e o caso Brasileiro é o mais característico) eram produtos
Não podemos deixar de reconhecer, por outro lado, que, no setor perecíveis ou de consumo pessoal como vinhos, queijos, tecidos, bacalhau,
comprador, como na sua contrapartida, o vendedor, tivessem havido farinh<Hio-reino (trigo) e outros necessários ã manutenção da máquina
relações mercantis entre si. Mas, as relações de produção escravistas eram, produtora à subistência da classe senhoria130•
no entanto, o suporte fundamental que configurava as suas bases Dissemos que somente a escravidão era a forma de trabalho adequada
estruturais e determinavam todos os demais níveis do relacionamento ao sistema colonial porque somente ela, através da exploração econômica
sociaL Em outras palavras: as relações escravista de produção eram as e extra«onômica do trabalhador, com um nível de coerção social
fundamentaiseasquedeterminavam internamente a suadinâffilca. E essa despótico e constante, poderia extrair o volume de produção que fizesse
economia por outro lado, que já foi chamada de uma "vasta empresa com que esse empreendimento fosse compensador. O montante de
comercial" somente poderia desenvolver-se e vender a sua produção mvestimentos e a sustentação de uma camada improdutiva (inclusive
substantiva se fo~ compradora de uma mercadoria indispensável: o escrava) levava a que somente com o trabalho escravo houvesse a
escravo. E aqui se conclui a definição de Caio Pr.tdo Júnior: era uma posstbilidade de lucros compensadores, quer para o vendedor, quer para
empresa comercial cujo modo de produção era o modo de produção o comprador. O investimento inicial para a montagem de um engenho
escravista. de açúcar era vultoso e sobre este particular assim se refere J. Lúcio de
Sem o fluxo permanente da compra dessa mercadoria viva o sistema Azevedo: "para se estabelecer o que se chamava no Brasil de mgmho rtal
escravista não poderia sobreviver e desenvolver-se. Ela era a mola (os pequenos designavam-se por engenhocas) eram precisos grossos
propulsora de tudo aquilo que dava vida ao sistema e que, ao chegar, era cabedais. Só os aparelhos para o fabrico, moendas, taches de cobre,
ordenada de acordo com a sua divisão interna do trabalho. caldeiras, importavam perto de dez mil cruzados; cinqüenta negros de
Se quase toda a produção ia para o mercado externo, por outro lado, ambos os sexos, porque as mulheres também trabalhavam no campo e na
eram os senhores obrigados a investir na compra do escravo, para onde fábrica, cinco mil cruzados, mas também havia engenhos com cento e
desviavam grande parte dos lucros advindos da comercialização dos seus cinqüenta peças de escravatura; mais quinze a vinte juntas de bois; carros,
produtos no mercado internacional. barcos, porque os transportes eram quase sempre por água; ferramentas
Se toda essa produção ia para o mercado externo, por outro lado o e utensílios; tudo isso somaria pelo menos vinte mil cruzados. Não entra

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Dla/111/co Radical do Brasil Negro Do Escravismo Pleno ao Escravismo Tardio

mslo o custo das terras e edificações; nem o capital necessário para o de oh)C'tos de troca, pentes, espelhos, facas, cachaça, fumo e os aparelhos
movimento da casa, manutenção do pessoal e salários; porque se, como dr , o menção como ferros, correntes e outros instrumentos do gênero,
diz um especialista do assunto, os escravos são as mãos e os pés do senhor de , 1pitJl para compra de mercadorias, despesas portuárias, impostos e
mgmho, havia também trabalhadores livres, indispensáveis, empregados 11111 r.as mais, tudo isto constituindo uma deJpesa onaosa dos seus agentes.
na fábrica ou de diferentes oficios, geralmente brancos, do reino ou Todas essas despesas, quer da parte passiva (produtores coloniais) quer
mestiços. Daqui provinha-se avaliar-se em 40, 50, 60 mil cruzados e mais, dJ ,,tnld (compradores das metrópoles) tinham de ser cobertas pelo
o cabedal de um destes proprietários, que eram a aristocracia da terra; e lillbrctrabalho do escravo que era quem produzia todo o valor nesse tipo
viviam à lei da natureza, com gastos de ostentação e luxo iguais aos da corte de comércio.
e de que se espantavam os estranhos vindos às colônia$11• Q!lerer dizer-se que o modo de produção existente aqui era capita-
Qlanto ao pessoal auxiliar e não produtivo e que era sustentado pela ~~~IJ, porque estava diretamente ligado ao capitalismo europeu na sua fase
renda do engenho, Antonil refere-se a ele da seguinte forma: "Servem ao mercantilista e com ele estabelecia relações mercantis através daquilo que
senhor de engenho em vários oficios, além dos escravos da enxada, e foice fiC convencionou chamar de divisão internacional do trabalho, não se
que tem nas fazendas, e na moenda, e fora dos mulatos e mulatas, negros rusteota se partirmos da análise das relações de produção que existiam
e negras de casa, ou ocupadas em outras partes; barqueiros, canoeiros, .tqut. É que há confusão entre divisão internacional do trabalho e divisão
calafates, carapinas, carteiros, oleiros, vaqueiros, pastores e pescadores. tnternacional do comércio (mercado). Acontece que os dois termos não
Tem mais cada senhordestes necessariamente hum mestre de açúcar, hum t~m o mesmo significado sociológico. A divisão internacional do trabalho
banqueiro, e hum contra-banqueiro, hum purgador, hum caixeiro no seria aquela divisão estabelecida nas diversas áreas onde a mercadoria era
engenho, outro na cidade, feitores nos partidos e roças, hum feitor mor produzida através do trabalho escravo (no nível de relações de produção),
do engenho: e para o espiritual hum sacerdote e cada um destes oficiais como o açúcar, fumo, algodão, metais preciosos para o mercado consu-
tem soldada"32• midor e pelas classes senhoriais de cada região produtora. E a divisão
Tanto esse capital fixo como o variável o senhor de engenho tinha internacional do comércio seria a divisão entre si das áreas de mercado
de dispor, controlar, para manter a empresa em condições operacionais, comprador pelas nações que dinamizavam, no lado ativo, o mercado
isto exigia, portanto, um alto investimento e, em contrapartida, um alto internacional. As duas coisas são, como vemos, bem diferentes.
padrão de exploração do trabalho, sem isso o empreendimento não seria Na divisão internacional do trabalho (compulsória também por
econômico. Somente a escravidão, com o seu rígido aparelho de domina- fazer parte do lado passivo do sistema colonial) temos os territórios
ção e controle, poderia satisfazer aosrequisitosexigidos para que a empresa coloniais com estruturas de produção divididas internacionalmente e
colonial fosse um sistema lucrativo para vendedores e compradores. subordinadas a mecanismos de procura externos.
Um complexo agroindustrial tão custoso, sem depender diretamente Essa divisão internacional do trabalho era aquela verificada em toda
das leis do mercado livre porque ele era controlado pelo mooop6lio a vasta extensão do que se convencionou chamar de Afro-América e esta
comercial da Metrópole, somente era viável se nele funcionasse um era constituída por um "conjunto descontlnuo de regiões marcadas pela
mecanismo econômico que tivesse como força de dinamismo o trabalho imigração forçada de africanos e por influxos culturais poderosos
escravo. O engenho, no período descrito por Antonil (início do século provenientes da África, embora a escravidão negra não tenha estado
XVIII), era uma unidade produtiva constituida levando-se em considera- ausente de região alguma do continente americano, convém ressalvar a
ção o pr~requisito de que somente poderia ser dinamizada através desse denominação de Afro-América s6 para as partes de tal continente onde
tipo de trabalho. As leis econômicas que funcionavam no interior dessa ela chegou a ser a relação de produção predominante; onde portanto, a
economia, especialmente a extração de todo o sobretrabalho, através da presença africana teve maior importância.(...). Caribe (Antilhas, Guia nas),
coerção econômica e extra-econômica do trabalhador era uma das leis do boa parte do Brasil, porções relativamente reduzidas da América Espanho-
modo de produção escravista e não de qualquer outro. la continental (costa do Peru, partes do que são hoje Venezuela e
Devemos notar, ainda, que o investimento do senhor de engenho era Colômbia, etc) e o Sul dos Estados Unidos"33•
o da parte pa.rsiva do sistema colonial. Não menor o exigido do setor ativo É sobre esta vasta extensão geográfica que se estende a divisão
(metrópoles). Este consistia em frota de navios, tripulação em geral, internacional do trabalho escravo, e atua como força compulsória para que
alimentação da tripulação(edosescravosquandoera navio negreiro) além os produtos coloniais sejam capazes de suprir a baixos preços o mercado

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OIDiélfcs Rsdlcsl do Brasil Negro Do Escravismo Pleno ao Escravismo Tardio

metropolitano de açúcar, fumo, cacau, algodão e outros produtos, além - c~ravas mucamas e demais escravos de serviço doméstico
de metais preciosos. No caso particular do Brasil (como também nas - e~ravds amas de leite
demais áreas de trabalho escravo) para que a diVJsão desse upo de trabalho - escravas cozinhetras
functonasse radonalmmte houve a necessidade de uma estratificação social - escravos cocheiros etc.
no interior das relações escravistas, necessária e que se diferenciava de
acordo com o gênero produzido. De um modo geral, porém, podemos O) Escravos de ganho nos ttntros urbanos:
ver esta estratificação no interior das relações escravistas no Brasil da - escravos barbeiros
seguinte maneira, embora de forma não definitiva ou completa: - escravos mUims
- tscravos (as) vendedores (as) ambulantes
A) Escravos do cito ou destinados a atividades extrativas: - tscravos carregadores de ptanos, pipas e outros objetos
1) Na agropecu~ria nas suas diversificações regionais. - tscravos músicos componentes de orquestras dos senhores
2) Escravos ocupados em atividades diretamente extrativas (congonha, - escravas prostitutas de g.mho
borracha, .algodão, fumo, etc). - escravos mendigos de ganho
3) No~ agroindústria dos engenhos de açúcar e suas atividades awnhares.
4) Nos trabalhos das fazendas de café e algodão e outras atividades E) Outros tipos de escravos:
duetamente ligadas a esse tipo de produção agrícola. - escravos dos cantos (de ganho)
5) Escravos na pecuária no Rio Grande do Sul e outras regiões. - escravos soldados da Nação
- escravos do Estado
B) Escravos na mineração: - escravos de conventos e igrejas
1) O escravo doméstico. - escravos reprodutores
2) O escravo do eito e de atividades aftns. O escravo doméstico urbano - escravos de aluguel
poderá ser sulxlividido assim:
- escravos ourives Esses diversos estratos ocu pactonaisdos escravos, consideravelmente
- escravos ferreiros diversificados na divisão do trabalho e no nível de favores senhonais, se
- escravos mestres de oficinas articulavam e se mtegraVllm mternamente, mas somente no espaço social
- escra._,s pedreiros escravo que lhe era permitido. Esse movimento interno, provocado pela
- escravos taverneiros mobilidade social vertical e/ou horizontal, é estancado nos limites da sua
- escravos carpinteiros fronteira de classe.
Podemos ver pela relação acima que uma parte da população escrava
- escravos barbeiros
executava trab.libosque não produziam v..t!ore estavam incluídos na parte
- escravos calafates
da população que, direta ou indiretamente, era sustentada pela parcela de
- escravas parteiras escravos produtivos. Essa estratificação produzia também uma hierarquia
- escravos co"nQS dentro dos quadros da escravidão e influirá, por seu turno, no compor-
- escravos carregadores em geral. tamento do escravo e nas suas att tudes de acettação ou não da sua situação.
A maior presença pessoal do senhor com os escravos domésticos, se de um
O escravo do cito e de atividades afins poderá ser subdividido em: lado aliVJava esse setor de trabalhos mais pesados e duros, submetia-os, por
-escravos tra balhadoresnas minas de ouro nas suasdiversasespecialidades outro lado a uma vigilância di reta mato r. Quanto aos escravos do eito, a
- escravos extratores de diamantes nas suas diversas especialidades. vigilância e os mecanismos de coerçlo exercidos por feitores, com a
ausência dos donos, levava a que quase sempre os castigos chegassem a
C) Escravos dom~sticos nas cidades e casas grandes em geral: nlveismuito mais severos e desumanos, o que levava muitas vezes à morte
-escravos carregadores de liteiras o cativo torturado. De qualquer forma, nos dois setores, os escravos
- escravos caçadores estavam sujeitos à exploração econômica e extra«onômica. No caso da

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Dl..'lllii1C.1 Rad1C8/ do BraSil Nogro Do Escravismo Pleno 80 EscrBVISfTJO Twd10

mulher escrava esse nívd de exploração extrapolava para o seu uso sexual o monopólio, mas na qual os senhores de engenhos não controlavam o
por parte do senhor ou prepostos, fato que se desdobrava no seu preço do escravo:
engrdvidamentoe multiplicação do plantei na base do principio do partur "Para se compreender os eventos ~e 1817, 1821 ~ 1824 tor~a-se
VtJIIIfllr tlt'nlrt. nrcessário fazer uma reflexão sobre a soc1edade nordesuna no penodo.
Como ~mos, no nivtl das relações de produção internas temos uma A.sstm a classe dominante era formada por grandes propnetários de terra
estrutura escravista com todas as suas características fundamentais. No e de e~ravos que se dedicavam à cultura da cana-de-açúcar e à pecuária
nível da distribuição, Cll'culação e comercialização temos relações mercan- bovina. Eles possuíam a terra e produziam para exportaçã?, ~as esta era
tis dos senhores de escravos, donos das mercadorias exportáveis com o controlada por comerciantes portugueses. ,rambém, ?t~cilmente os
capital das metrópoles em nivel internacional propnetários tinham acesso aos car~s. pubh~o,s. ma1s Importantes.
Assim, como o fundamental para se caracterizar um modo de Ltmitavam-se a obter posições como ofic1a1sde mtl1c1as e a ocup~r cargos
produção são as relações de produção, não podemos deixar de reconhecer nas câmaras municipais. Os altos comandos militares, a alta mag1stratura
que este faro determina todos os outros. O trabalho escravo, internamente
e os cargos do go~mo ficavam em geral com funci~nános de carre1~a, em
d1stribuído e dinamizado através de níveis diferenciados da extração do
sobretrabalho e da exploração económica e extra-econômica do escravo, sua maioria portugueses. Os exportadores de açucar e de alg~~~· os
foi o fator que proporcionou a dinâmica que se processou nos outros chamados comissários, recebiam a produção dos grandes propnetanos e
níve1sde interação e enseJOU a possibilidade do sistema colonial desenvol- a exportavam, recebendo uma comissão, ao mesmo tempo que importa-
ver-se. vam os produtos consumidos pelos propriet~rios, sem alt~mat1va de
Podemos ver, por outro lado, o nível de subordinação da economia controlar a exportação, ficavam na depeudênc1a dos comerc1antes e em
brasileira ao centro explorador<amprador. Era uma economia que não geral se individavam. . .
permitia a acumulação de excedentesedecapitaisintemosem proporções Essa dependência econômica era muito danosa .ls atiVIdades dos
suficientes ã aberturél de uma via independente de desenvolvimento. Este produtores que dependiam totalmente das importaçõe~ dos prod}lt~s de
estrangulamento, porém, não era apenas econômico, mas também fiscal, consumo, assim como do abastecimento de escravos vmdos da Afnca e
pois um verdadeiro alude de dlzimos, impostos, obrigações e contribui- ~ndidos a preços elevados"~.
ções arrecadados pelos funcionários do Reino, determinava que quase O trecho acima demonstra, com muita clareza, o processo de
nada ficasse na Colôma para reinvestimento técnico e acumulação dependência que o sistema escravista no Brasil sofria na sua totalidade ~la
capitalista. econo101a da Metr6pole ou de seus represe o tames. Por 1sto, essa produçao,
Durante a existência do escr.zvismo pinto o fluxo de escravos era uma para dar lucro ao produtor interno (senhores de engenho~ e escravos) e
constante, com diferenças regionais, conforme veremos quando estudar- desempenhar a sua função de abastecedor do mercado mtemac1onal,
mos a dinâmica demográfica da escravidão. Poroutro lado, oelastecimento somente poderia funcionar satisfatoriamente na ~ase do sobretrabal~o
progress1vo do mercado externo exigirá que esse modo de produção se escravo e de nenhum outro tipo de exploração, po1s de outra forma nao
estabeleça com as suas características fundamentais, sendo que a mais seria lucrativo nem para o pólo produtor (colônia}, ~em para ? pólo
Importante era a ex1stênc1a do escravo como produtor-mercadoria e distribuidor e/ou consumidor (metrópole). Sena um s1stema
produtor de mercadoria. O sistema que funcionava como regulador da antieconômico.
produção das colônias - quer na sua quantidade, quer estabelecendo o
ritmo de rotatiVIdade dos produtos nativos a serem adquiridos - era Brasil Reino e Brasil Independente:
também o responsável pelo supnmento de escravos. Com isto, forma-se o escravismo consolida-se
um mcuito fechado articulado no sentido de subordinar as economias
coloniais na sua totalidade e não apenas em alguns aspectos particulares.
Nessa sociedade fechada, baseada no monop6lio comercial (até a A VInda de O. João VI para o Brasil (1808), ~compa~ha~o de sua
vinda de O. João VI, em 1808), a própria classe de senhores de escravos não Corte, com magistrados, nobres, militares, corpo dlplomáttco,.mtelectu·
mantinha a hegemonia e controle da comercialização do produto nem ais, conselheiros, clero e politicos num total de cerca de 10 m1~ pessoas,
do preço dos escravos. Por esta razão, escreve Manuel Correia de Andrade, determinou uma série de mcxlificaçõesde comportamento e de tnteresses
reportando-se a uma situação já posterior à abertura dos portos, isto é, sem na cidade do Rio de Janeiro. Medidas como a abertura dos portos a todas
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1J1, ti61!C8 Radical do Brasil Negro Do Escravismo Pleno ao Escravismo Tardio

.1s llcJÇoes, proposta feita por Cairu, criaram as condições para um repondo satisfatoriamente o seu plantei de escravos e produzindo, do
mmércto internacional livre dos entraves asfixiantes do monopólio mesmo modo, aquelas matérias para o mercado externo, agora mais
c.olomal, embora continuasse uma série de mecanismos que limitavam a chversificado e complexo. Pelo contrário, consolidou-se.
ltvre ação dos produtores nacionais.. Em 1798, dez anos antes da chegada de D. João VI ao Brasil, a sua
Essa liberdade de comércio bem pouco significou para o Brasil no população escrava era de 1.582.000, perfazendo 47/)0/o do seu total. Em
n~vel de livre escolha de mercado, pois todas as nações que poderiam ser 1818, três anos antes do ~u regresso (26 de abril de 1821) tinham entrado
cltentes dos nossos produtos estavam envolvidas nas guerras napoleôntcas, 350.000 escravos africanos, elevando, com isto para 52,50/o o seu percentual
restando-nos a Inglaterra como última alternativa. O processo de desen- no total da população brasileira.
volvimento interno desse período ·irá acontecer superestruturalmente, Durante o reinado de O. Pedro I o tráfico dinamizou-se ainda mais
preservando-se a forma fundamental de trabalhoquecontmua a produzir e os traficantes tornaram-se personalidades importantes no Rio de Janeiro.
todo o valor dessa economia. José Honório Rodrigues escreve a respeito que "(...)Maria Graham obteve
Ao contrário de ler havido uma crise na reposição dos plantéis de cladosde mais 21.000 e quase 30.000 negros importados entre 1821 e 1822.
escravos, a importação de africanos cresce como a demonstrar que esse O oficial alemão Schlichthorst fez o mesmo cálculo: 20 a 30 mil escravos
desenvolvimento seria tanto mais eficaz e dinâmico quanto mais fosse eram importados e vendidos no Rio deJaneiro e cercanias. Era um negócio
executado pelo trabalho escravo. muito animado, no qual os traficantes investiam grandes capitais,
Caio Prado Jr. denomina o período que vai da chegada do príncipe especialmente por estarem temerosos de que a Grã-Bretanha acabasse por
regente à promulgação da Lei Eusébio de Qyeiroz de Era do likralirmo, impor o fim da importação. Disse ele que quando chegava um negro
sem acrescentar, todavia, que esse liberalismo era um liberalirmoesrravirtals bronco entre 15 e 20 anos era comprado por 150 mil réis; uma rapariga
isto é, o seu discurso liberal ia até os limites das relações existentes e ; valia menos. Um ano depois, o mesmo negro valia 200 mil réis.
sociedade civil brasileira continuava não admitindo a população escrava O alemão chegou em abril de 1824 e em 1825 já a importação devia
nos seusquadros institucionais. Por isto mesmo, todas aquelas benfeitorias, ter subido aniveis mais altos. Os traficantes eram os negociantes mais ricos
q~e favoreceram e urbanizaram o Rio de Janeiro e outras regiões, foram da cidade, e muitas de suas casas podiam ser consideradas verdadeiros
fettas pelo tra~alh~ escravo. A mesma coisa podemos dizer com o que pal!icios"39•
aconteceu no mtenor, quanto a produção das fazendas de cate ou dos Somente com a Lei Eusébio de Qyeiroz - proibindo o tráfico
canaviais do Nordeste que continuavam a produzir dentro das 'mesmas internacional - concretamente surgirá o embrião de uma burguesia
técnicas e os mesmos instrumentos de trabalho da era colonial. epidérmica que nasce muito tarde como classe e que não podia desempe-
As tentativas de implantação da siderurgia, com técnicos importados nhar aquelas funções dinamizadoras atribuídas a uma burguesia clássica
- Vamhagen, Eschwege - tinham, também, como suporte básico de nos moldes europeus.. Aquilo denominado por Caio PradoJr. de OImpério
dinâmica operacional o trabalho servil36• escravocrata e a aurora b1trguesa (1850-1889} é o período no qual o
. M~smo os movimentos contestadores que surgiram - no plano escravismo entra em crise progressiva e a que denominamos de escravismo
tdeol6g~co, portanto - antes ou logo depois da Independência, como a tardia.
revol~çao pernambucana de 1817, a Confederaçao do Equador de 1824, Essa burguesia que ~ inicia no segundo e último período do
a Sabmada de 1837, não colocaram nos seus programas politicosa abolição escravismo era uma burguesia auxiliar, condicionada, dependente, apên-
da escravidão. E não podia ser de outra forma. O escravismo satisfazia dice e colaboradora dos interesses dos compradores, vendedores ou
econômica e socialmente e ninguém pensava ou articulava um movimen- investidores da nova Metrópole: a Inglaterra. Os seus espaços econômicos,
to que objetivasse substituí-lo por outro regime de trabalho37• sociaiseculturaisjá estavam tomados, as iniciativas pioneiras e acumuladoras
O caso de José Bonifácio, no processo da Independência é típico de de capitais já haviam sido ocupadas e funcionavam independente da sua
como qualquer idéia que procurasse criticar, mesmo tangencialmente, a liderança. Passou, a partir dai, a ser uma burguesia subalterna, que
escravidão era repelida antes de ser submetida a uma análise critica desempenharia funções caudatárias, porém, jamais assumiria o seu papel
objetiva38• social e político de transformadora de uma nova etapa histórica da nossa
A chegada de D. João VI, bem como a proclamação da Independência sociedade através de uma proposta de nova ordenação social.
não alteraram a estrutura social e econômica do Brasil que continuou A vinda de D. João VI, e, posteriormente, a Independência não

46 47
Dlalátlca Radical do Bras// Negro Do Escravismo Pleno ao Escravismo Tardio

criaram nenhuma crise estrutural no sistema escravista. Se, como já se como, também, pela existência e prática de uma legislação terrorista que
dtsse, esses dois acontecimentos marcam o fim do sistema colonial e a v.ti dos açoites à pena de morte imposta em contrapartida pelos senhores.
constituição de uma economia mercantil escraVIsta, do ponto de vista do O sistema escravista consolida-se nessa fase. O número de escravos
modo de produçJo nenhuma crise foi constatada~0. cresce constantemente e a produção através desse tipo de trabalho cria o
Apenas houve uma transferêncía dos mecanismos reguladores do cltma de fastígio da classe senhorial. Esse fausto era obrigatório e fazia
sistema para o Estado Nacional. Do ponto de vista estrutural, no entanto, pJrte do elhos social dos senhores. O seu prestígto, especialmente nas
o que se viu foi a consolidação desse modo de produção com o ctdades, era avaliado não apenas pela sua renda, mas, também, pelo
fortalecimento da classe senhorial. O aumento da importação de escravos número de escravos não produtivos que o cercavam. O comparecimento
e a dinamização da política de exportação é um sintoma disto. à missa aos domingos não era apenas um ato religioso, mas, também, um
Tanto na fase do chamado sistema colonial quanto na da chamada ritual de poder o qual se exteriorizava no número de escravos acompa-
economia mercantil escravista, a essência do modo de produção não nhantes. A emulação do poder passava pelos rituais simbólicos de
mudou: a mesma exploraçJo do sobretrab,!lho do escravo através de prestígio dos membros da classe senhonal, sendo um deles a forma como
formas econômicas e extréH!conômicas; jornadas de trabalho de 14 e até se exibiam em certos atos.
16 horas de duração; castigos corporais; taxa negativa de natalidade; Isto impunha uma situação de total dommaçâo sob o elemento
mortalidade espantosa entre os componentes da classe escravizada o que escravizado produtor, condições desumanas de tratamento, um ststema
determinaria (numa fase como na outra) uma taxa delucroscompensadora, despótico de controle social, e, finalmente no setor público um aparelho
capaz de justificar e criar as condições para a sua permanêncía e de Estado voltado fundamentalmente para defender os interesses dos
dinamismo. senhores e os seus privilégios.
Em 1830, já na fase denominada de economia mercantil escravista, Para que essa situação pudesse ter êxito, e esse dinamismo obed~cesse
com o Estado Nacional como mecanismo regulador e controlador do ao ritmo exigido e não entrasse em crise, foi criado o tráfico com a Africa
sistema, o Brasil conseguiu colocar-se como o maior produtor mundial o qual supria de novos braços aqueles que morriam ou eram inutilizados
do café, isto bem demonstra como o modo de produção escravista não para o trabalho nas condições do regime escravista: morte em epidemias
sofreu nenhuma crise nesse perlodo. Pelo contrário, os seus mecanismos de varlola, cólera, sarampo, ou nas engrenagens e caldeiras dos engenhos,
de defesa ficaram mais próximos. A própria lei que surgiu nesse ano (por ou mutilações que os deixavam aleijados, cegos, com deftciências que os
injunções da política internacional) proibmdo o tráfico, nunca foi colocavam sem condições de trabalhar. Muitos deles, nesses últimos casos
cumprida, prova da força que possuíam internamente os produtores de eram alforriados para que aliviassem o senhor do ônus de alimentá-los.
cafe e a classe senhorial das outras áreas que usavam o trabalho escravo Desta forma, o fluxo permanente de africanos permitia ao senhor níveis
como mão-de-obra adequada a esse ttpo de economia. de exploração altíssimos e uma margem de lucros que permitia a
manutenção desse aparelho de luxo e fausto.
Esse fastigio, que decorria da exploração extrema do escravo produ-
Do fastígio ao início da crise tivo, tinha, por outro lado,intema e externamente, fatores de deterioração
contínuos ou intermitentes em face da estrutura de tipo colonial dessa
Pelo que ficou dito acima, compreende-se que a fase do acrttvismo economia. O monopólio comercial- até 1808- determinava um nível de
pleno caracteriza-se pelo fato das relações de produção escravistas domina- transação mercamil unilateral, pois a parte compradora era quem
rem quase totalmente a dinâmica social, econômica e poUtica. Nessa fase, estabelecia os preços. Com isto, os senhores locais tinham de aceitar aquilo
o número de escravos em regiões como a Bahta, Maranhão, Minas Gerais que lhes era imposto. Mas, por outro lado, o preço do escravo era
e Pernambuco em alguns momentos é maior do que a de homens livres. estabelecido praticamente pelos traficantes ou por seus intermediários,
Por outro lado, como reflexo imanente dessa realidade, as lutas entre fato que onerava ainda mais o seu preço. Enquanto o tráfico conseguia
senhores e escravos são um fato normal, e se manifestam numa seqüência equilibrar a demanda de novos braços para a lavoura e outras atividades
de módulos de resistência ao cativeiro que vão da intermitência nacional as coisas se equilibravam e a aparêncta de prosperidade contínua
da quilombagem, às fugas, suicídios, crimes individuais contra os permanecia à superflcie. Q!ando, porém, por qualquer pretexto ou razão
senhores, feitores e prepostos, guerrilhas, assaltos nas estradas e engenhos, esse equilibrio se rompia, os senhores começavam a murmurare protestar

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0Jal~tlca Rad1cal do Brasil Negro Do Escrav1smo Pleno ao Escravismo TB!dío

contra aquilo que julgavam uma exploração unilateral contra eles. a) A eficiência na produção para o mercado externo via traballio
Esta economia não permitia, portanto, a acumulação interna de I'$Cf,lVOj
cap1tais em nível capaz de poder dar um passo de mudança econômica b) O controle das constantes revoltas e outras formas de desconten-
e social qualitativo e fossem transformadas as relações de produção tamento dos escravos que desgastavam sua estrutura e poderiam pôr em
fundamentais. Com isto, ficava quase estagnado o seu dinamismo interno aasco a sua eficiência em nível de produção e equ1líbrio social.
no nivel de reprodução contínua do trabalho escravo quase que de
maneira circular, sem uma espiral ascendente que rompesse as barreiras Mas, concomitantemente, conforme veremos depois, inicia-se e
estruturais. O escravismo criava os seus próprios mecanismos de estagna- drsenvolve-S(' um processo de modernÍZA{iio sem mudança social em
ção econômica e social in temos e era estrangulado externamente deforma d tversos aspectos da sociedade escravista, especialmente naquelas áreas que
quase completa pelo pólo de poder da Metrópole. O latifúndio escravista st" dinamizavam com o surgimento da produção cafeeira e com isto
(mesmo nas regiões da pecuária) era, por essas razões a forma fundamental mudam as táticas de lutas dos escravos, passando a usar mais as formas
de propriedade substantiva do sistema. Instalou-se, até 1850 no Brasil, pass1vasde resistência. No Norte e Nordeste, porém, essa modern0tçiic não
nacionalmente, com particularidades regionais e históricas, o modo de se manifesta de forma visível ou relevante e o aparelho de Estado
produção escravista, em toda a sua plenitude, até quando não é mais continuará vigilante contra os atos de rebeldia (quilombagem) dos
possível a reposição da população escrava. escravos. Nessas áreas não penetradas pela modernizJ.lção e que se situam
como módulos arcaicos do modo de produção escravista em transforma-
ção, as preocupações das autoridades continuarão permanentes contra as
Rasgos fundamentais do escravismo pleno revoltas dos escravos. Um documento elucidativo neste sentido é o ofício,
datado de 30.09.1869, do presidente da provincia do Maranhão, Franklin
América de Menezes D6rea, enviado a todas as Câmaras Municipais,
Nesse período, que vai até mais ou menos 1850, podemos dizer que, soücitando-llies as seguintes informações:
com variáveis regionais, os rasgos fundamentais que o caracterizavam são
os seguintes: "1) Q.tal o número ao menos aproximado da população escrava no
município;
1) Monopólio comercial da Menópole (até 1808). 2) Q.tal o número de escravos fugidos e a quem pertencem;
2) Produção exclusiva de artigos de exportação para o mercado 3) Q!Jal o número e denominação dos quilombos existentes, com
mundial, salvo a produção de subsistência pouco relevante e que somente declaração de suas localidades;
era suficiente em face do baixíssimo nível do poder aquisitivo (poder de 4) Qlal o número presumido dos habitantes dos mesmos quilombos,
compra) dos consumidores. livres ou escravos, e desde quando se acham estabelecidos;
3) Tráfico de escravos da África de caráter internacional e o tráfico 5) Qgais os mais importantes deles e cuja importância é mais
triangular como elemento mediador e mecanismo de acumulação na prejudicial à manutenção da ordem pública;
Metrópole. 6) Em que se empregam esses quilombolas, se têm vivido pacifica-
4) Subordinação total da economia de tipo colonial à Metrópole e mente;
impossibilidade de uma acumulação interna de capitais em nível que 7) Q.tais os quilombos que têm s1do batidos, quando, por ordem de
pudesse determinar a passagem do escravismo para o capitalismo não quem e com que resultados;
dependente. 8) Se os quilombos se comunicam com os índios das tribos que se têm
5) Latifúndio escravista como forma fundamental de propriedade. sublevado;
6) Legislação repressora contra os escravos, violenta e sem apelação. 9) Se comerciam e com quem;
7) Os escravos lutam sozinhos de forma ativa e radical contra o 10) Se consta que estão armados e municiados"41 •
instituto da escravidão.
Esses mecanismos permitirão o funcionamento do sistema escravista, Verifica-se que naquelas áreasonde a modernÍb.lfãO não havia chegado,
ensejando: a quilombagem ainda preocupava de forma direta as autoridades e sobre
50 5l
01alálica Radical do Brasil Negro Do Escravismo Pleno oo Escmvismo Tardio

a sua dinâmica era que o aparelho do Estado exercia vigilância e se (hfcrença. Essas contradições e/ou desestruturação manifestam-se das
acautelava. O documento citado é rico de preocupações e demonstra 11!.11S v.~riadas formas, quer na área do trabalho, onde elas sJo mais agudas,
como os escravos daquela área ainda lutavam de forma independente quer no nível ideológico, gerando idéias em grupos e organizações que
(com possível aliança com os índios levantados) o que não acontecia mais l liS&Illl a reproduzir o que tem de modemo, isto é, a ciência e a tecnologia
nas áreas atingidas pela modernização. Dois anos antes da Lei do Ventre i1Vdnç.1das. Mas, por outro lado, ao serem aplicadas essa ciência e essa
Livre, no Maranhão, o governador da Província ainda via nos quilombos tecnologia elas irão servir aos detentores do poder, às suas instituições e
uma ameaça à estabilidade da escravidão. elrtt•s execuroras desse poder, que representam o passado e criam olveis de
Por outro lado, não se pode negar uma série de modificações nas áreas re5i~tê ncia à mudança social. Em outras palavras: o mod~rno passa a servir
mais dinlmicas do escravismo, como Minas Gerais, Rio de Janeiro e São ao .~rc.liro. Isto poderá ser feito de várias formas em cada caso concreto:
Paulo. Nessas áreas verifica-se um processo de modernização relativamen- ()li por uma ruptura radical, ou por uma série de reformas parciais,
te importante no setor tecnológico e há uma série de reformulações de drpendendo do potencial objetivo das classes que compõem essa socieda-
medidas políticas procurando estabelecer táticas reordenadoras do com- dr rm conflito e/ou conciliação.
portamento das classes em fricção e recompondo a classe senhorial para No caso da sociedade escravista brasileira, a sua peculiaridade é que,
os desafios que a decadência do sistema começa a revelar no seu conjunto. rm pleno f mal do século XIX, quando um avanço tecnológico, cientifico,
É a partir daí que as classes médias começam também a se sensibilizar com e rconômico revolucionava as relações sociais nos principais países da
a substituição da mãcxle-obra e os grupos políticos procuram realizar as Furopa e dos Estados Unidos, com repercussão na área periférica, esses
primeiras medidas para a substituição do escravismo. liOVOS recursos tecnológicos e científicos eram aplicados em um país ainda
Com esse processo de modernização injetado, que modificava rse ravista.
tecnologicamente o escravismo, sem modificar-lhe a estrutura naquilo que Esta particularidade, ao nosso ver, é a linha central que deve ser
ela possuía de fundamental, mas, ao mesmo tempo, subordinando a ob!'.ervada ao analisar-se a última parte do escravismo brasileiro, os
sociedade brasileira às forças de dominação que ao mesmo tempo a conflitos emergentes, e a forma compromissada como a Abolição foi feita
modernizAvam, iniciou-se a última fase do escravismo, o escravismo tardio. e eiS seqüelas conseqüentes que perduram até hoje.

O escravismo modemiz~se e o Brasil fica dependente

O Escravismo Tardio Uma das características mais importantes dessa segunda parte do
escravismo brasileiro, que denominamos de lard10, é o cruzamento rápido
e acentuado de relações capitalistas em cima de uma base escrdvista. Com
a particularidade de que essas relações capitalistas emergentes são d inami-
Qlando dizemos, na nossa elaboração teórica, modemizdçiio sem zadas, na sua esmagadora maioria, por um vetor externo: capitais vindos
mudança, queremos afirmar que em determinada sociedade houve um de fora e instalados aqui como seus promotores dinamizadores e
progresso econômico, tecnológico, cultural e em outras partes e níveis da dtrigentes. Em face desse fenômeno quase todos os espaços econômicos,
sua estrutura sem uma modificação que a isto correspondesse nas suas que poderiam ser ocupados por uma burguesia autóctone em formação,
relações de produção, ou seja, na sua infra-estrutura. Desta forma, se, de foram ocupados pelo capital aliet1ígena, na sua esmagadora maioria
um lado, a sociedade acumula, assimila e dinamiza aquilo que o mglês.
desenvolvimento material, científico e tecnológico criou e aperfeiçoou, do Esse capital, aqui investidO de diversas maneiras e naquelas áreas
outro lado, as relações entre os homens no processo de trabalho estrategicamente relevantes para um processo autônomo de desenvolvi-
continuaram atrasadas e correspondentes a um estágio anterior e inferior mento da nossa economia, criou as razões do nosso subdesenvolvimento
ao da estrutura que avançou. Todo o suporte fundamental da sociedade que perdura até hoje de forma cada ve:z. mais traumática42.
fica, desta forma, em desarmonia com o desenvolvimento da outra parte O longo período de duração da escravidão no Brasil, que somente
que se modernizou. Cria-se uma contradição na estrutura que começa a terminará já na época da formação do imperialismo, garroteou a
produzir choques, assimetrias e conflitos como reflexos e reduções dessa possibilidade do desenvolvimento de um capitalismo nacional não

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OlalóiiCfl nadiCSI do Bras// Nsgro Do Escravfsmo Pleno ao Escravismo Tsrd10

dependente, fcllendo-nos uma nação subalternizada economicamente às aame do trabalho escravo da Mina de Morro Vdho constituiria uma
forçc1s do cc~pitalismo internactonal, com todas as implicações políticas .málise da mão-de-obra escrava utilizada na m.t1or e nldis bem sucedida
que isto determina. Ao lado desses investimentos ocuparem os espaços empresa de mineração no Brasil Imperial"...
dinlmicosda noss.J economia, ela foi acompanhada por um processo de Qtanto às estradas de ferro, elemento estratégico para o escoamento
subalternização também polltica e cultural nos colocando sempre como dos nossos produtos, que eram embarc.tdos no litoral p.ara o exterior,
devedores e culturalmente dominados pelas nações do centro, que podemos ver que os ingleses emprestavam, inicialmente, dinheiro às
comandavam o mercado capitalista mundial•3• empresas oac1onais em formação. Muitas vtzes, porém, elas eram
Os ingleses modernizaram o Brasil, mas através de estratégias de encampadas por não poderem resgatar os seus débitos. Emprestaram
subordinação- sutis ou abertas- que determinaram progressivamente, à inicialmente 700 mil libras a uma companhia de carruagens que fazia a
medida que nos endividávamos, esse processo de dependência. Desta linha de Petrópolis a Juiz de Fora, mas logo viram que o problema dos
forma, insistimos, não houve a possibilidade de formar-se urna classe transportes no Brasil requeria soluções atravts de recursos técnicos mais
burguesa nacional nas condições de assumir o comando desse desenvol- substanciais e mats modernos. Emprestaram, em razão disto, 483 mil
vimento, mas as suas capas médias - inclusive políticas - foram prestar hbras c1 Cia. Mogiana, repetindo o empréstimO de 483 mil em 1880. Os
serviços auxiliares aos grandes incorporadores estrangetros, investidores empréstimos dificilmente eram resgatados, em conseqüência das altas
e filiais de bancos ou empresas que se mstalaram aqui, transformando-nos taxas de juros e da baixa taxa cambial. Um exemplo é o da Cia. Paulista
em um simples entreposto mercantil e bancário dos seus negócios. O de Estradas de Ferro que tomou emprestada à Inglaterra a quantia de 150
processo de industriahzação foi também estrangulado, pois os ingleses mil libras, em 1871 com oprazodevinte anos para o vencimento. Devido
faziam empréstimos em condições escorchantes às poucas iniciativas à desvalorização da moeda brasileira, quando o pagamento foi feito em
nacionais, e, posteriormente, partiram para investir dtretamente nesse 1898 (dentro do prazo estabelecido no contrato) somava mais do dobro
setor. Em todas as áreas favoráveis de mvestirnento esse fato se verificará. em moeda nacional. Outras, porém, nâo conscgutram resgatar os seus
Estradas de ferro, portos, agroindústnas nordestinas(açúcar),companhias débitos.
de gás e iluminação, moinhos, cabos submarinos, companhias de seguro, Mas, mudando de tática, os ingleses passaram a mvestir diretamente
navegação fluvial, transportes coletivos e outras formas de investtmentos nesse setor. Em fins de 1880 haVIa no Brastl 11 companhias inglesas de
econômico ou de modmtiu{Jo tecnol6gica eram controladas pelo capttal estradas de ferro, tendo esse número .aumentado progressivamente,
britânico. O comércio interno e externo também não fugiam à regra, chegando, dez anos depois, a vinte e cmco. Entre elas estava a São Paulo
controlando, os ingleses, quase que totalmente os setores de importação (Braztltan) Railwey Ltda a mais importante, além da São Francisco
e exportação, tendo investido, também, na mineração. R.dilwey Co. Ltda, Conde D'Eu, Alagoas Brazilian ~ntral, Great Westem
Sobre este assunto Douglas Cole Libby escreve: "as minerações of Brazil, Bahia aod São Francisco Railwey, Paraguassu Stream Trans-
estrangeiras instaladas em Minas Gerais no século passado, a Mina de Road (comprada pela Brazilian Imperial Central Bal1ia Railwey) e Minas
Morro Velho, propriedade da Samt John d' Él Rey Mining Company, and Rio Railwey.
sediada em Londres, se destaca em termos de escala das suas proporções As mais importantes dessas ferrovias foram instaladas na área
e da sua produção aurlfera. Além de ser a matordessas miner.~ções, Morro cafeetra, principalmente em São Paulo, sem que isto tmplicasse o
Velho foi, de longe, a mats lucrativa delas. Localizada na V.Ja de Nossa abandono de investimentos em outras de mteresse como o Nordeste. Os
Senhora do Pilar de Congonhas de Sabará, municlpio de Sabará, a Mma objet1vos dos ingleses neste contexto eram bem claros: esooar as sacas de
do Morro Velho experimentou, sob a administração da companlua cate (vencida a barreira da Serra do Mar, através da construção da Estrada
inglesa, um cresctmento quase ininterrupto de 1834 a 1886. Ela chegou de Ferro Santos a Jundiaí em 1868) para o litoral, onde os navios, na sua
a concentrar mais de 2500 trabalhadores em suas operações, incluindo at~ maioria ingleses, levavam o produto para o exterior. Nesta direção de
1690 escravos. Esta concentração de cativos ~ muito notável e talvez monopolizar estrategicamente a economia nc~ctonal elegem como objeti-
corresponde à maior força escrava empregada na história da Provincia. vo prioritário a construção do porto de Santos na última década do século
Tais números são sugestivos da dependência da Companhia St. John com XIX, o primeiro no Brasil com caracterlsticas modernas.
respeito ao trabalho escravo e indicam a importância da participação deste No setor bancário o mesmo fenômeno acontece. O London and
nos novos processos produtivos introduzidos pelos ingleses. Assim, um Brazilian Bank, com um capital de um milhão e meio de libras esterlinas,
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Diafética Radical do Brasil Negro Do Escravismo Pleno ao Escravismo Tardio

todo mglês, estabeleceu-se no Rio de Janetro em fevereiro de 1863, com 1 111 .1 1 d~ ponta que fechava o circuito da comercialização da merca-
filtats na Bahia, em Pernambuco, Santos e no Rio Grande do Sul. J, •• P uuponada. Importavam as mais diversificadas mercadorias, tais
Durante o primeiro ano os seus neg6ctos montaram a mais de dois 1110' m.mteiga, conservas, açúcar especial, cerveja, arenque, canela,
milhões de libras esterhnas. Na mesma ocasião, o Banco Brasileiro e l!lv,uulr, tintas, óleo de linhaça, betume, alcatrão, pólvora, salitre, gesso,
Português foi incorporado com as matnzes em Londres, sendo todo inglês I , obrr, ft'rragens, barbante, lona, vela, fazenda de lã e carvão. Até patins
o milhão de libras de capttal. Por volta de 1913 os ativos dos bancos I ra &d o conseguimos importar. Como se pode ~r da lista, essas
bntânicos que operavam no Brasil, constituíam quase 30 por cento dos rn~rcad or i as não tinham outra utilidade senão o consumo. Os ingleses
attvos locais de todos os bancos nacionais e estrangetros, e mais de I nunav.Jm também facilmente o mercado de tecidos, mandando para
cmqüenta por cento dos ativos de todos os bancos estrangeiros que •qua lenços, bnm de linho, castmiras, merinós, filó branco, paramentos,
operavam no Brasil. r nd.ts de algodão, meias etc, que eram revendidas no varejo por firmas
Entre as firmas britânicas qut> :!htavam no Brasil na área de navega- merctais britânicas.
ção, podemos enumerar a Anglo-Brazilian Stream Navegatton Company, hto redundou na destruição, total ou parcial, da indústria artesanal
a Pacific Stream Na~gation Company, a London Belgium, Brazil and e esta foi substituída pelos produtos andustrializados importados da
Ri~r Plate Stream Packet Company, a Rt>al Companhia Anglo-Luso- ln&Jaterra. Dtsta forma, até as roupas para os escravos, antes feitas por
Brasileira, a Merchant Stream Ship Company Limited, a Blue Star Line, tr. ados nacionais através da indústna artesã foram substituídos por
a Maranham Straem-Ch ip Company, a Nelson Line, a Booth Steamship te aclos importados, pois, segundo alguns fazendeiros, saiam mais baratos.
Company, a Harrison Line, a Price Line, e a White Star Line. Essas I > amtrumentos de trabalho como facões, machados, foices, enxadas, já
companh ias de navegação fluvial eram complementadas pelo controle do vanh.un de há muito sendo importados para o trabalho dos escravos.
comércio costeiro quase de propriedade dos ingleses, no perlodo de 1866- l'odemos conJecturar que esses escravos, que já operavam com instrumen-
89. lns de trabalho ingleses e que depois iriam se vestir com tecido também
Controlavam não apenas a navegação (]uvial e costeira, mas, também, 1111 portado, jamais podiam su porque o trabalho escravo, até neste detalhe,
o comércio exponador e importador, assim como os seguros que eram contribuía para ennquecer os capttalistas da Inglaterra. Era a modermza-
feitos para proteger a carga de café embarcada em navios ingleses e cujos çao sem mudança soctal que produz ta essa dialética irômca, uma negação
seguros eram feitos na Inglaterra. O serviço postal também passou a ser da negação hegeliana do sistema. Em outro nível, nas relações internas,
controlado pela Inglaterra. Em 1850 foi concedido contrato de serviço Pt•ter L. Etsenberg procurando Interpretar a mesma realidade global,
com a Royal Mail Stream Packet Company, depois de dez anos que o seu rscreveria: "Sustento que a modenuzação- no sentido de progresso e de
fundador )ames Mac Qleen haver afirmado: "a Grã-Bretanha de posse de reorgamzação da produção - e a conversão para o trabalho livre não
todos os meios de comunicação te na garantido, para ela grande in(]uência restabeleceram a rigid~ da indústria do açúcar em Pernambuco. Além
polltica." dasto, os agentes da modernlLlção, os plantadores amparados pelos
Os ingleses conseguiram, j.l em 1840, que metade da exportação do go~rnos, aproVI!itaram o proct'sso para consolidar a própna posição na
cafe fosse feita por firmas britânicas, pots inúmeros comissários e teonomia e na soctedade local. Portanto, não houve mudança, no sent1do
corretores eram ingleses ou essa importação e exportação se faziam atrav~s dt> uma nova d tst nbutção de poder e de renda"45 •
de filiais de firmas inglesas aqui instaladas como a Wilson & Sons. O pano dt> fundo arcatco do escraVIsmo continuava imóvel, enquan-
Isto levou a que o mercado brasileiro fosse mundado de mercadorias to os outros nívets da sociedade se movimentavam procurando ajustar-se
inglesas. Mas, isto também era controbdo por eles, pois, em 1850, de àquelas condições de dependência que a .lrea do trabalho livre estava
acordo com notícia de jornal da época, os fardos que chegavam da abrindo.
Inglaterra para o Rio de Janeiro (em navtos ingleses) eram encammhados
para sessenta e três comerciantes dos quais quarenta e um eram ingleses. Estratégias de dominação do escravismo tardio
Daí um ingl~s que esti~ra no Brasil ter dito ao Times de Londres em 3
de março de 1897: "Q!tando eu cheguei ao Brasil em 1859, havia casas Os senhores de escravos aproveitaram o processo de modernização
importadoras inglesas estabelecidas em todas as cidades costeiras". Essas e, ao mesmo tempo, de dependência para manterem os seus privilégios
casas importadoras dedicavam-se também ao comércio varejtsta, numa de classe e sobrevi~rem à passagem do escravismo tardio para o trabalho

56 51
Da~ttca Radteal elo 8tasil Negro Do EscravrsrrKJ Pleno ao Es cravtsrrKJ Twdio

livre. Ficaram na de~ndência dessas forças econômicas mcxkmudoras. No setor urbano-industrial o Brasil
Mas, ao mesmo tempo, conseguiram estabelecer táticas de manipulação moderniza-se e endivida-se
polhica para, de um lado, apoiarem esse processo modemizador-
subaltemizador, mas, de outro, conservar os seus interesses e privilégios A pJrttr do ano de 1850, deslocado o pólo de dinamização da
que unham como suporte as relações arcaicas no campo, no caso a «o no mia escravtsta brasileira, de~oca-se, também, o fluxo de investimen-
permanênaa da escravidão ou, com o seu témuno, a conserv;a~o dos to mgleses os quats se transferem em grande parte para o Sudeste, São
interesses das oligarquias latifundiánasqueconstltuíam a classe senhonal. l'<~ulo e Rio de jane1ro, especialmente para o primeiro. Ai se concentra e
A passagem da escuvidão para o mbalho livre não afetou por 1sto os desenvolve auva mente a aphcação desses capitais ingleses até a Abolição,
imeresses dessas oltgarquias, pois, ao perderem os escravos, muitos deles IHtllnuando após o golpe m1htar republicano.
já onerosos por serem membros de um estoque envelhecido,contmuaram Companhias de gás de propriedade inglesa, no ano de 1876 havia no
com a posse da terra, sim bolo econômico e social do poder. E essa tática Rto de !Joeiro, Slo Paulo, Santos, Salvador, Fortaleza e Rio Grande do Sul.
apelou para uma solução alternativa que permittsse a essa oligarquia N.t m~dtda em que o Brasil se urbanizava, os ingleses se instalavam e
continuar na posse da terra: a vinda dos im1grantes. dominavam a produção de bens de consumo obrigatório. Não havia
Tanto na época do escravismo pleno como no tudio, os ingleses brecha em que as necessidades de modernização (consumo) .!parecesse
sempre in~suram naquelas áreas de pique econômico, como foi com a r.c m que os ingleses nelas não se instalassem e a dinamizassem em promto
agromdústria de açúcar no Nordeste, na época do fastígio da exploração ptóprio.
canavieira. Por esta razão, até 1850 as matares firmas exportadoras inglesas Mas, os ingleses não apenas dinamizavam a 1!todernult.Uk brasileira,
se situavam no Nordeste. As exportações de açúcar eram enviadas para a (c)mO, em contrapartida, procuravam impedir o desenvolvimento da
Inglaterra e iam através de firmas exportadoras bntânicas. As exportações nossa eronomta, especialmente no setor bancário, ferrovi.írio e mdustnc1l
de açúcar no Nordeste aumentaram durante o período de 1850-75 e os uascentes. No part1cular do setor mdustrial é significalivo como procede-
ingleses eram privtlegiados devido à anulação dos direttos alfandegários r.un quando alguns brasileiros procuraram competir com eles na área
de exportação do açúcar para a Grã-Bret.mha. Os exportadores eram os onde estavam interessados em investir. O exemplo de Mau.í é ilustrativo
mats importantes e influentes agentes do Nordeste, até que o açúcar 1,. >rque imciou a sua carreira sob a proteção dos ingleses e teve a sua falência
começa a cair tanto em importâncta, quer absoluta, quer relativa e o cate decretada por solicitação deles em conseqüência de sua proJeção como
surge como substituto tdeal para o mercado comprador inglês. clpitalista e investidor nacional. No particular, escreve o historiador
Em 1834, aproximadamente, três Oitavos do açúcar, metade da safra Nelson Werneck Sodré: "Mauá nao lutana a~nas com a reststência do
de café e cmco oitavos do algodão eram em barco~dospor conta dos ingleses, IJtJfúndio, levantadas pelos seus representantes políncos; lutaria também
embora, excetuando-se o algodiio, muito pouco desses produtos fosse c-ontra os investimentos britânicos que disputavam agora a renda
realmente desembarcado na Inglaterra. Do café embarcado no Rio, por nacional, buscando instalar-se nas áreas mais rent.í~is, sob o regime de
exemplo, m;us de trezentas e cmqlienta mil sacas eram enviadas para os mtegrais garantias, e particuhrmente as de transporte, marítimo e
Estados Unidos, enquanto asllhas Britânicas rttebiam menosdeduzentas terrestre, e dos serviços públicos. Suas iniciativas, por isso mesmo, vão
mil. As cidades hanse.íttcas recebiam umas três mil sacas menos que a sendo dificultadas e transferidas para os ingleses. Num fi> caso, o da
Inglaterra, enquanto a Áustna importavA mais de cento e vinte mil sacas. &taniam Gardm Rail Company a americanos. Pleiteia garantia de juros
Desta forma a Inglaterra ficava como a grande redistribuidora do para a sua ferrovia e não obtém. Obtém-na os ingleses para as suas empresas
nosso cafe, aufenodo enorme lucro nessa operaçJo de comercialtzação, ferroviárias na Bahia e no São Franwco e de Pernambuco e ao São
embora a met.tde da colheita do cate do Brastl fosse comprada ~la Francisco. A sua companhia de iluminação do Rio, passará a ser a 1bt Rw
Inglaterra, somente um qutnto da mesma era consumido nas llhas de janmo Gas Company limiltd; a sua companhta de navegação no
Britâmcas. O restante era renegociado com o mercado euro~u e norte- Amazonas passará a ser aAmazon Str'(am Natttgation; a sua concessão para
americano. Tanto os oligarcas do Nordeste como da área do café, lançamento do seu cabo submarino, vai servir ã Br.w!um Submarmt
consc1eotesdessa situação, procuraram manipular uma tática de compro- Tekgrapb Company; os seus esforços para a construção da ferrovia do Rto
miSSO tendo como perspecttva o fim do trabalho escravo e .1 conciliação a Minas, terminarão ~la organiza~o, em outras mãos, da 7k Mmas and
de seus interesses. RiodtJantiro &ilwey Company, com a diferença de tratamento: enquanto
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Dia/tJtica Radical do Brasil Negro Do Escravismo Pleno ao Escravismo Tardio

o projeto ou empresa é nacional, crescem as dificuldades, faltam as (l tl.th.tlhoescravo em pleno funcionamento e que, também, entrará como
garantias; quando passam à gestão externa, acabam as dificuldades, Ullt w mponente das barreiras que uma burguesia fraca e nascente pudesse
crescem as garantias. O caso mais característico é o da estrada de ferro de ll'<.t·nvolver de forma autônoma. Esse escravismo tardio tinha como
Santos a São Paulo, prolongada depois a Jundiai. A autorização para a 11111 .1 dJs suas características a violenta alta de preços da mão-de-obra
construção foi dada a Mauá, em 1856; o privilégio era de 33 anos, com rso.1va e do valor do pr6prio escravo que subira substancialmente a partir
garantia de juros de 5<vo sobre o capital de 2.900 mil libras, garantia cl.• protbição do tráfico internacional em 1850.
provincial posterior de 20fo, e auxilio direto do governo de 100 mil libras. O escravo já não era mais comprado a baixo preço como no
A Bahia ao São Francisco conseguira, a contar de 1856, quando apenas c·-c: r.IVlsmo pleno. E em certas áreas a função do escravo também mudava.
organizada, garantia imperial de juros de 7% para o capital de 1.800 mil No Rto de Janeiro principalmente abriam-se casas para a venda de escravos
libras, prazo de concessão de 90 anos e privilégio de zona de 5léguas de r.tw di! cmnis.rão- e para seus donos os escravos não eram instrumento
cada lado em igual período; a Pernambuco ao São Francisco conseguira dr trabalho, mas mercadoria em consignação para ser revendida com
a garantia de juros de 5% sobre o capital quefosse nea:s.rário, prazo de 90 anos lucros.
e privilégio de zona em igual período, mas eram ambas, desde o inicio,
empresas britânicas. Mauá mandou realizar os estudos técnicos da
ferrovia ligando Santos a São Paulo, organizou a empresa, levantando o A tecnologia nova serve à estrutura arcaica
capital necessário ao início das obras.. Logo, nas palavras do pr6prio Mauá,
surgiu uma dificuldade imprevista: os agentes fmanceirosdo Brasil os srs.
N. M. Rothschild & Sons, que haviam anteriormente consentido que sua Tivemos de nos referir antes que em determinados momentos a
firma aparecesse no prospedus para dar prestígio à combinação criada, tecnologia nova serve a uma sociedade arcaica. No Brasil um exemplo do
exigiram então, em pagamento daquela concessão 20 mil libras dos papel dessa morkmimçíio dentro da estrutura escravista é a instalação do
primeiros fundos recolhidos do público efetivamente, tendo de Castro telégrafo. Sabemos que, dentre outras medidas tomadas para modernizar-
consultado o Sr. Penedo e assegurando-lhe este ser o meio de garantir a se o Brasil Imperial, o telégrafo foi uma das mais importantes porque
mbscriçã.o, teve de Castro de ceder a mais esta exigência, realizando-se em dinamizou a área da comunicação de forma radical. A necessidade da sua
seguida a subscrição das ações,(...) Começaram as obras e surgem novas tmplantação, segundo o historiador Pedro Calmon, deveu-se à preàsão
dificuldades: os empreiteiros ingleses Robert Sharp e Filhos, estão às de controlar-se o contrabando de escravos ap6s a Lei Eusébio de Q.Jeiroz,
portas da falência, há uma dívida da ordem de 200 mil libras, os capitalistas de 1850. Segundo ele, Eusébio de Qteiroz precisava de comunicação
ingleses, conluiados com os empreiteiros, negam os pagamentos feitos por rápida com o litoral, para avisar as patrulhas que impediriam o desembar-
Mauá e cerceiam-lhe o crédito em Londres. Mauá leva a questão aos que de negros- extinto que fora o tráfico. Pediu aos professores de Física
tribunais brasileiros, ganha na instância superior, mas cumpre-se decisão Paulo Cândido e Guilherme Schucb de Capanema que estudassem o
contrária de instânàa inferior. é a justiça inglesa que deve decidir, e esta telégrafo elétrico. Este último deu-se intetramente ao empreendimento.
decide, muitos anos depois pela prescrição e sem entrar no mérito"46• Dirigiu a repartição Central até a queda do lmpério. Em 11 de março de
Poreste caso isolado, mas significativo, podemos ver como os ingleses 1854 estava inaugurada a primeira linha, entre o Paço de São Cristóvão,
além de se apoderarem daquilo que havia de mais dinâmico e lucrativo o Ministério da Guerra e as povoações marítimas mais pr6ximas47•
na economia brasileira, bloqueavam o desenvolvimento brasileiro através, O telégrafo continua estendendo-se e alcança Petrópolis em 1855,
entre outras coisas, do protecionismo governamental que os beneficiava Vit6ria em 1855, Natal em 1878, Fortaleza em 1881 e Belém em 1886.
de forma acintosa. Em 1860, Te6filo Otoni referia-se a uma "oligarquia Havia, em 1889, 18.825 quilômetros de linhas«.
tenebrosa" que impedia o crescimento do capitalismo nacional e o Se o telégrafo foi instalado, segundo o historiador citado, para evitar-
pr6prio Mauá escrevia que não compreendia "por em contribuição as se o contrabando de escravos, a sua contrapartida também era verdadeira:
forças produtivas do Brasil, pagando em ouro ao estrangeiro (e somente ele serviu como veículo de comunicação para mandar prender negros
o estrangeiro, tal é a disposição da lei) a melhor parte do produto do seu fugidos, com rapidez. Osorganizadoresdo Clube do Cupim, em Pernambuco,
trabalho nos anos felizes". ao darem fuga a uma leva de escravos incluíram um chamado Matias e
Essa situação de alienação da nossa economia se realizava ainda com o seu proprietário, ao saber da fuga, telegrafou solicitando que o
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Dialética Radical do Brasil Negro Do Escravismo Pleno ao Escravismo Tardio

mandassem prender ao chegar a barcaça com os fugitivos à barra de Areia r ele que essa modernização foi aproveitada pelos escravistas em
Branca, onde foi feita a caprura49• 110 pr6pno.
Outro exemplo do papel social repressordessa modernização dentro 1\ 1nr ma co1sa podemos afirmar das ferrovias que modernizaram os
de uma estrutura escravista é o seu uso, em São Paulo, no mesmo sentido. 1 dr 11 .111sporte no Brasil, na sua maioria inglesas, por sinal. Eram
Os fazendeiros de cafe acionavam-no constantemente como meio de l 1111.10 .tpenas para escoar mercadorias para as estações de embarque,
comunicação, avisando as autoridades das fugas de escravos para que elas 1 tall ur.nte portos, ou fazerem conexão com as que che,g~vam ao ~ito:al
ficassem cientes e tomassem as medidas cabiveis. Neste sentido é 1 ul1 111, m.ts, tambêm, para transportar tropas para os SJtlos de agttaçao
elucidativo e caracteristico o relato do chefe de polícia Barreto de Aragão, jll tl 111hol.1, depois de avisadas as autoridades - pelo telégrafo - pelos
em dezembro de 1887 no qual afirma: "Havendo chegado ao conhecimen- uh rcs de escravos para capturarem esses grupos de negros fugidos nas
to da Presidência por telegramas particulares de fazendeiros de Itu, 1l lvr1 1s regiões paulistas servidas por estradas de ferro.
Indajaruba, Capivari e Piracicaba que grande número de escravos se tinha r:~sa mod~mização era, portanto, sociologicamente ambígua. Um
revoltado e vagava por aqueles municípios, furtando-5e ao serviço de seus x euplo dessa ambigüidade é o fato de ter sido cnada uma Loteria
senhores, aos quais intimidavam para conceder-lhes imediatamente carta N.a tcuulcom alei de 1871 (Lei do Ventre Livre) para reverterosseuslucros
de liberdade e pagar-lhes salários, confirmadas essas notícias pelas 11 , lu11do de Emancipação destinado à compra de liberdade dos escravos.
autoridades policiais desses 1uga res, ainda acrescento que uma leva de cerca ) senhores de escravos ou possuidores dos mesmos, no entanto,
de 130 escravos do Barão da Serra Negra, no município de Piracicaba, pmvcttavam-se de sua existência legal e faziam rifas que corriam
depois de conflitos que promcaram e em que tomaram parte na fazenda, [ll'dc•cendo aos seus números e paradoxalmente rifando escravos como
sendo quase vítima dos seus ferozes instintos o referido Barão, se p1 1\ 111 ios entre os acertadores. É o que se pode ver, através de um anúncio
encaminharam fugidos, para os lugares em que os mencionados os tio~ t 1dade de Fortaleza de pouco antes da Abolição:
aguardavam, para uma revolta geral, tomou V. Excia. a deliberação de fazer
seguir uma força de cerca de 46 praças de cavalaria e infantaria, sendo 26 - Qyem tiverem (sic) os bilhetes com os números da rifa anexa a loteria
desta área e 20 daquela, determinou-se que em companhia dessa força de , h, Rio de Janeiro que se extraiu no dia 27 de julho do corrente ano haJa
cerca de 46 praças de cavalaria e infantaria, sendo 26 desta arma e 20 •Ir lpresentá-los ao abaixo assinado para receberem o que por sorte lhes
daquela, determinou-se que em companhia dessa força, seguisse eu uu:
também, para providenciar como entendesse, a fim de pacificar esses Casa N2 4.438
escravos, prender os criminosos e tomar outras deliberações"50• Sítio N2 5.260
A nova tecnologia, como se vê funcionava de forma ambfgua, e, no Escrava Nº 3.621
contexto escravista, servia para dinamizar os mecanismos de defesa e os Cavalo N2 1.306
métodos de controle contra o escravo fugido. Era, portanto, uma
modernização que tinha como função social o controle da mudança Era, em conclusão em processo de modemízaçiio que estabelecia toda
processada na estrutura da sociedade escravista da época, em beneficio da uma constelação de valores na interação dos diversos grupos e classes, toda
classe senhorial. ela, mesmo modernizada, subordinada, no fundamental, aos interesses do
Qyando foi iniciada a navegação a vapor, este é ourro indicador a ser capitalismo internacional (inglês), da classe senhorial dona de escravos e
computado, uma modernização importantissima na área dos transportes, de grandes parcelas das chamadas camadas livres desse modo de produção.
os traficantes dela se aproveitaram para instaurarem o vapor nos navios Os escravos, como podemos ver, estavam totalmente privados dos seus
transportadores de escravos, armando tumbtiros com essa nova fonte de beneficios e direitos de cidadania.
força, o que serviu para diminuir o trajeto da viagem da África para o
Brasil. Essa inov'dção tecnológica tambêm desempenhou o papel de Modernização escravista e endividamento externo
modemizador das técnicas do tráfico. Mais uma vez o moderno prestava
serviços ao arcaiu:J. A medida, no entanto, não foi muito eficiente porque Acompanhando o processo de modernização injetada em um modo
aumentou o número de mortos africanos, especialmente entre aqueles de produção escravista, o Brasil endivida-se progressivamente com os
colocados perto das caldeiras dos navios. De qualquer maneira ê outro agentes financeiros internacionais. O processo de dependência econômi-
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Oíal4/1ca Radical do Bras11 Negro Do Escrsv1smo P/600 ao Esaav1smo Tardo

ca e financeira progride à medida que esse tipo de modernização avança. nhorc$ de escravos (agricultores) queixavam-se disto no Congresso
&m falarmos nos diversos emprésttmos contraídos pelo Brasil no início dcol:l reahzado, por iniciativa do governo, em 1878. A falta de créditos
do pnme1ro 1mpé rio ou seja o reconhecimento da divida de Portugal para lve1s é um;~ das tônicas desses fazendeiros51 •
que a nossa Independência fosse reconhecida pela Inglaterra, imeressct- ())mo vemos, esses empréstimos não favoreceram sequer a economia
nos, aqm, aqueles empréstimos contraídos após as pnmeiras mamfesta- 11 td 1cionJl que já entrara em crise depois da proibição do tráfico negreiro.
çõessociaisdoescravismotardio.Convémdlzerqueessesempréstlmoseram I scs emprésumos se diluíam em diversos níveis de compromissos, nada
feitos através de condições altamente onerosas, com mecanismos de prociult.l me não davam retomo à dinâmica da nossa economia. Era uma
intermediação que nos prejudicavam enormemente e praticamente n•~•tuina de endividamento em cadeia e progressiva.
impediam o seu resgate no prazo estabdecido, ficando o Brasil, desde A cnse vtnha de mais longe e Andrade Filgueira dirá em 1844 {ano
emiio, como cliente pagador de juros escorchantes e consecutivos, sem d" tarifa Alves Branco e seis anos antes da Lei da Terra) "o povo já perdeu
conseguir sair do circulo vicioso de pagar os juros e continuar devendo. 11 confiança na única indústria que alimenta a nossa riqueza, a indústria
Embora o nosso interesse central seja a divtda externa brasileira no agrlcola. Os capitais s6 procuram emprego em apólices, não enxergando
período do esuavismo tardio não podemos detXar de registrar os emprés- gurança em outra pane"53.
timos que contraímos antes, po1s eles se constituem num amtinuum que Na cid.tde de São Paulo, além da aplicação em títulos de empresas de
vai da nOSSd Independência e ainda não termmou. serviços e bancos, o aumento de capitais investidos no setor mobiliário
Procurando explicar as causas do nosso permanente défictt público, cresce qualitativamente. Escreve neste sentido Zélia Maria Cardoso de
que nos obrigava a contrair esses empréstimos, escreve Heitor Ferretra Mello: "ao decllnio da participação do escravo corresponde o aumento da
Lima: "outro fator de desequilíbrio financeiro que sofremosdocorna das propriedade mobiliária. Mas não foi somente esta que ampliou seu lugar
constantes remessas para o exterior que tínhamos de fazer. Um estudioso ua riqueza; novas formas de valores mobiltários, panicularmente as af{xs
de nossas finanças calcula que de 1850-1851 a 1890 as remessas para o aumentaram a sua participação. Temos agora a renda capitalizada sob a
exterior foram de 60.345.000 libras (Carlos Inglês de Souza: A an.uquu forma de imúz~is e a~ Sob este ponto de vista, tais indicadores
mon~tJn..usuas am~qübtcias. Qlad rossin6ticosdo movtmento fin.1nce1ro representam um instrumente. de medida das tr.tosformações que se
no Brasil). Com efeito, além dos pagamentos de juros e amontZações que operaram progressivamente a partir dos anos 70 do século XIX'.
tínhamos de fazer dos empréstimos que contraímos no extenor, havia Afirma a me:.m.t .1utora: "Apartude 1870, osmveotárioscomportam
ainda a remuneração dos investimentos aqu1 fettos, os pagamentos dos contas bancárias a sugerir modtficaçôes que estão a ocorrer nesta
fretes e seguros do nosso comércio exterior, ;~s despesas com .1 nossa soc1edade. Traduz a aparição e desenvolvimento de técnicas financeiras
diplomacia, as remessas dos estrange1 ros .1q ui reSidentes etc, reunindo um novas, elas mesmas ligadas à inovações econôm1cas e portanto constitui
montante que ultrapassava nossa entrada de divisas, baseada quase que outra medida de desenvolvimento da economia capitalista (...) Depois de
somente nos saldos do comércio extenor"~ 1 • aparecer um caso de conta em banco (1855), começam a aparecer casos de
Como se poderá concluir sem muito esforço, a economia da fase do dinheiro deposttado a juros, eletras bancá nas, dois em 1863, seis na década
mravtsmo tardio não suportava a sangna monetána que o nosso tipo de de 70, onze nos anos 80 e seis entre 1890/95!>4.
desenvolvimento dependente exigia. Isto. porém, não era tudo. Se o Na cidade de São Paulo, provi neta líder no dinamismo do uabalho
Impéno,de um lado, garant1a u.xasde lucros aos que vinham investtr no escravo, podemos ver essa modernu.apio na d1reçãodaeconomia capitalista,
Brastl, do outro lado, dava garant1as humilhantes para que os nossos sem que, contudo, as relações escraVIstas fossem abaladas nas suas bases
emprésumos fossem realizados favoravelmente. Para que isto acontecesse estruturais. O exemplo citado, tirado da realtdade paulistana possivdmen-
tivemos durante decêmos muitos impostos e taxas, rendas alfandegárias te tenha encontrado similares no Rio de Ja~tro ou em Minas Gerais. O
e até rendas ferroviárias empenhadas em garantia do pagamento desses ceno ~que no esuafltsmo tardio já se cristalaava um espirito de poupança
empréstimos. Essa teia de dominação das finanças internacionais, durante e acumulação mdividual que poss1velmente tenha sido reciclado como
o últ1mo perlodo do escravismo no Brasil, criou internamente uma outra capital, embora insignificante para a criação de uma acumulação sufici-
de suborno e corrupção administrativa, dificultando ainda mais o resgate ente que livrasse a estrutura do escravismo tardio da sua condição de
desses compromissos. Nesse rosário de empréstimos a lavoura também se dependência. Niio foram criadas as condições, insistimos, para a deflagração
quetXava por não ter uma comrap.1nida equivalente nesse processo. Os de um processo de acumulaçào suficiente para que se criasse uma

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Dialética Radical do Brasil Negro Do EscrsvJsmo Plano ao Fscravismo 7ardio

burguesia mdependente, capaz, de um lado, de estabelecer aquelas Se a T.1rifa Bernardo de Vasconcelos neutralizou privilégios interna·
condições necess.ínas para estruturar e desenvolver um mercado interno • nnas, estabeleceu tarifas alfandegárias irris6rias. Por o~tro lado, o
dinamicamente satisfat6rio de raízt's internas (nacionais), e, de outro, 11 llildo de comércio anglo-brasileiro que somente de~ na exptur em 1843
competir com os capitais estrangeiros aqui já mvestidos em áreas I 1 umlateralmente revogado pela lei de 30 de novembro de 1841, o que,
estratégicas remá~is e socialmente dominadoras. Ficou como uma força t undo alguns autores, teria motivo~do da po~rte da Inglaterra o RtO
menor nesse processo de tnodmtÍ7dfdo e mdivid.unmto. Esse processo de 111fr<ltrtf'6.
modernização foi, também, o processo de decomposição do escravismo Ali.is, essa lei inglesa poderia ser incluída no pacote de medidas que
no Brasil. anJm possabilitaroescravismotardio.A Tarifa Alves Branco entra já como
Nesse processo de decomposição e ao mesmo tempo de preparaçáo urn.1mt'dida protecionista à indústna nascente. Em outras palavras: entra
ao ad~nto do trabalho livre no Brasil, muitos antecipando o escravismo o mo um componente capitalista no OOJO d.ts relações econômicas e
tardio, mas, abrindo-lhe as perspectivas do seu desenvolvimento, foram 1:ais que caracterizam esse período. Esse protecionismo, por um lado
estabelectdas cinco medidas modulares par.J a sua conclusão. procurava resguardar aquelas forças mterllds que tinham necessi?ade da
nação de um proletariado livrto qual estava sendo composto bastcamen·
~gundo pensamos foram as seguintes: te pelo imigrante. O negro escravo via, assim, antecipadamente barradas
1} A Tarifa Alves Branco (1844) as possibilidades de . ao sa1r das senzalas· enconrrar espaços para a sua
2} A Lti da Terra (1850) ulle~ração na nova ordem econômica cujas premissas estavam sendo
3} A Lti Eusébio de Queiroz (1850) danamizadas. Heator Ferreira Lima, neste sentado escreve: "para mu1tos,
4} A Guerra do Paraguai (1865-1870) ,uuda hoJe, a Tanfa Alves Branco não podia ter um caráter protec.ioni:.la,
5) A polftica imigrantista. porque, dazem, não tínhamos indústria a defender, sendo a medtde~, por
i~~. de caráter fiscal. A prova, no entanto, de sua preocupação com o
problema andustrial, está nessas palavras que faziam pe~rte da su.1
A Ta rifa Alves Branco 1 u~tiftcaçáo: 'a mdústria manufatureira naciott.~l, em todos os povos,
constitui o primearo, o mais seguro e maas abundante escoadouro de sua
A TarifaAl~sBrancoirá racionalizaroescravismo,jácom um car.íter agricultur.1, e a agricultura nacional, em todos os povos, constitui o mais
protecionista a um setor industrial quase inexistente, mais fOitdealizada SL"guro e o mais abundameescoadouroda su.1 indústria'. Em síntese, o que
como uma projeção no sentido de abrir as perspectivas para a absorção se pode dizer da Tarifa Alves Branco de 1844 é que eld, além de ser um
da mão-de-obra estrangeira que sobr.1sse do pl.mo rural contragolpe àatitude inglesa, tinha por fint~lidade aumentar a arreca?ação
Antes da Tarifa Alves Branco, vigorava a Tarifa Bernardo de alfandegária e desse modo melhorar a situação do Tesouro Naca01_1aL
Vasconcelos como mstrumemo regulador das importações e exportações Resumindo o significado da tarifa de 1844 e!>Creveu um econom1st.1
no Brasil, que é de 1828. Ela determinava que os direitos de qumquer moderno: 'Com a política econômaca, Al~s Branco pretendaa: a)
mercadorias e gênerosestrangeiros ficassem igualmente ftxados para todas estimular a criação de indústrias nacaon.us; b) obngar a Inglaterra a
as nações em 15<vo sem distinções de procedência. Segundo Afonso de modificar a sua tarifa sobre o açúcar brasileiro, base mesmo de nossa vida
Toledo Bandeira de Mello, essa medida tinha em vista anular as vantagens econômica; c) criar novos mercados de trabt~lho; d) aumentar a receita do
de nação mais favorecida que as potências obtiveram em tratados por pais' " s7• , • ~
ocasi:io do reconhecimento da nossa independênciaSS. A intenção de abrir novos mercados de trabalho atraves da cnaçao
Para o mesmo autor, as primeiras nações assim favorecidas foram de mdústrias, significaria, como se pode concluir sem muito esforço•.a
Portugal, 1825; França, em 1826; Inglaterra, Áustria, Prússia, Hansa, criação de um setor de trabalhadores [if,m nas brechas da economaa
Estados Unidos e Países Baixos em 1827; e Dinamarca em 1828. Com a escravista. No caso particular do Brasil, com a politica de desvalorização
Tarifa Bernardo de Vasconcelos os tratados comerciais ficaram pratica· do trabalhador nacional, especialmente do negro e do não-branco para
mente sem efeito quanto às vantagens de nação mais favorecida pois os esse tipo de atividade, significava estimular a vinda de trabalhadores
direitos de 15% foram aplicados indistintamente às mercadorias de todas estrangeiros brancos capazes de dominar "técnicas ~ais a~ançadas d~
as potências. produção" e branquear a nossa população, segundo a adeologa.a predom1·

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Dtaii!Jtica Radical do Brasil Negro Do Escravismo Pleno ao Escravismo Tardio

nante. Os escravos, como fica muito claro, estavam excluídos desse 1" 1h 1 uma dupla finalidade: fucai e protecionista. Alves Branco previa uma
processo de mobilidade social, bloqueados pela sua condição de cor e classe lltc.KIJçào de 18 mil oontos p:>r ano rom essas tarifas, mas, em seu relat6rio
e por isto mesmo impossibilitados de competir nesse processo de prod .Hna com bastante conttmdência os disígnios da industrialização
modemÍZI:lfÍÜJ na área do trabalho. 11o;ubstanciados nessas medidas protecionistas. 'Um povo sem manufatura fica
"?-crescente-se a isto todas as variantes da ideologia do branqueamento 111pre na dependência dos outros p:>vos, p:>r oonseguinte ~m p:>der fazer
- r:ac1stas - da sociedade brasileira preconizada pelas nossas elites 11.111\.IÇÕeSvantajosas, nem avançar um só paoo na carreira de sua riqueza.' E mais
deliberantes e poder-se-á ver até que ponto essa 11uma de mão-de-obra em h.mte-: 'É mister que com fe finne nos fatos que temos diante dos olhos,
potencial da parte do escravo estava exduida desse processo. Além das 111udtemosem demanda da indústria fabril em grande, p:>r meio de uma tarifa
!nten~es protecioni.stase fiscais havia embutida, sul>-repticiamente, uma 11111.Ümente aperfeiçoada, e de mais em mais aromodada ao desenvolvimento
mtençao de moderrnzaro Brasil sem a participação do negro, ou seja, sem 111) país'".\8,

aquela população que continuava escrava. Era como se estivéssemos em uma sociedade de economia livre. Não
Ja.iro. de Abreu co~corda com Heitor Ferreira Lima no aspecto &r computava a realidade de sermos uma sociedade escravista e, por isto
protecJOI1lsta (o que equ1vaJe a dizer numa visão capitalista da reforma) mesmo, para conseguirmos ser uma sociedade industrial teríamos de
quando escreve: "o ano de 1844 é um marco histórico da nossa política 1bolir o trabalho escravo. Nisto a tarifa é omissa. O aceno à industriali-
alfandegária com a famosa Tarifa Alves Branco." ,,tção não levava em consideração o fato de termos uma grande massa de
Justificando o seu pensamento c1ta o próprio Alves Branco que no 1· o~balbadores ainda considerada aJira e por isto incapaz de poder
seu relatório de 1845 assim se expressa: "Sendo o primeiro objeto da tarifa p.Jrticipar desse modelo de modernização e uma superestrutura jurídica
preencher o déficti.e~ que há anos laborao país, era meu dever fazer que r política que legalizava esse sla/HS qt~o, brecando qualquer possibilidade
a nova taxa de due1tos, que compreendesse a maior soma de valores de mudança social nesse sentido. Haviam duas sociedades no Brasil para
portados, fosse tal, que provalvelmente o preenchesse; e porque a renda os reformuladorcs da nossa sociedade. O ara~iaJ que não era elemento de
?os 200/oqueemgeral pagavamasmercadoriasestrangeiras trazidas ao país cogitação de modificações e por isto deveria ser ignorado. E um projeto
tmportava d.e 12 a 1,5 mil cont~s, era evidente que, para se consegUir aquele modt:rno que não considerava esse mundo e poderia modernizar o Brasil
~m, cumpna eleva-la em ma1s lWo e tal é a razão por que em geral a descartando o lado ara~ÚXJ como parte do nosso su social O modelo de
importação estrangeira é tributada em 300/o. industrialização nos quadros do escravismo era mais uma proposta
Acima desta cota foram taxadas de 40 a 60% as mercadorias 1deol6gica de se modernizar o Brasil sem se <::onsiderar nossa realidade
e~trangeiras que já são produzidas entre nós, como certas qualidades de estrutural. Com isto mantinha-se uma sociedade arcaica idealizando-se
VJdros, o chá etc; aquelas que podem ser substituídas como são o uma dinâmica impossível de serconseguida dentro do modo de produção
calha~aço, ?uines. da L1dia etc; aqueles que temos equivalentes de escravista no que ele tinha de fundamental.
perfe1çao sat1sfat6na, como são o mogno e outras madeiras finas etc; Sobre esse dilema ideol6gico que estava por trás dessa proposta
aquelas que pelo seu extenso consumo, e preço moderado podem, sem protecionista nada foi dito, mesmo por aqueles que tentaram analisá-la
vexame do povo, pagar uma alta imposição como os vinhos etc. Foram a partir de uma visão de progresso linear da nossa sociedade. O lihera/iJmo
taxadasabaixodaquela cota, isto é, de 25 até 20fo, aquelas mercadorias como esO"avÍJta teve na Ta rifa Alves Branco um dos seus momentos mais
a farinha, o peixe salgado etc; aquelas que são empregadas dentro do país expressivos de manifestação e prática p:>lítica. Reformar o Brasil,modemúA-
em muitos místeres e artefatos, como a folha-de-flandres, de cobre, ferro Io de acordo com as experiências e modelos Iiberais sem se considerar que
etc; aquelas que são objetos próprios para a instrução como livros, e mapas éramos uma sociedade baseada no trabalho escravo foi uma constante
etc; aquela: q~e .dentro de um pequeno volume encerram grande valor, daqueles ideólogos que desejavam ver o Brasil moderno dentro dos quadros
como galeoes, J6Jas e pedras preciosas; aliviando finalmente de toda a custa arcaicos da escravidão.
de pagamentos, pela utilidade que podem prestar à nossa indústria, as
máquinas de vapor que, conquanto tivessem sido até hoje livres de direitos, A Lei da Terra
pagavam contudo 5% de expediente e armazenagem adicional."
Depoisdetr.m~~raspalavrasdopróprioAlvesBrancosobreosobjetivos Vejamos, agora, um outro mecanismo regulador e controlador
datarifaJairodeAbreuconcluique"As.sim~ndo,achamadaTarifaAlvesBraJn> montado para equilibrar e preservar os interesses dos senhores fimdiários

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Dtalétictl Radical do Brasil Negro Do Escravismo Pleno ao Escravtsmo Tardio

diante dc1 possibilidade de uma Abolição com a integração dos ex-escravos p•muiam possibilidades monetárias ou de crédito privilegiado para
na sociedade via doação de terras pelo Estado aos egressos das senzalc1s. O adquiri-la seriam os novos proprietários.
pensamento de qual seria a posição dos negros ap6s se verem livres, foi Se analisarmos mais detidamente não apenas esta passagem do poder
sempre uma preocupação presente desses políticos e dos proprietários de decisório sobre a aquisição da terra, mas o seu significado sociológico mais
terras. Era uma interrogação preocupante porque, pela legtslação vigente unportante ao propriciar possibtltdadesdecontratos àquelascamadasque
o Estado era o proprietário das terras e somente a ele, através de doações, poderiam adquiri-la através da compra- populações livres- poderemos
as terras podiam ser adquiridc1s. concluir que, à medida que se afastou o poder público do dever social de
Em face desta problemática, surge, em 1850, a chamada Lei da Terra, doar aos ex-escravos (quando saíssem do cativeiro) parcelas de terras às
ou seja a lei n2 601 pela qual o Estado abria mão do seu direito de doar quJis tinham direito "por serviços prestados" e nas quais pudessem
e colocava as terras no mercado para a venda aquem dispusesse de d 111heiro mtegrar-se, como propriet~rios, na conclusão do processo abolicionista,
para adquiri-las. Com esta reviravolta o Estado passa a ser mero vendedor criou as premissas da sua marginalização social.
e não distribuidor das terras de acordo com o iuteresse público. No Com essa lei os escravos beneficiados com a Abolição ficariam
particular escreve EmíliaViotti da Costa: "No começo da colonização a impedidos de exigir ou solicitar terras ao poder imperial como indeniza-
terra era vista como parte do patnmôn10 pessoal do rei. A fim de adquirir ção consegUida "por direito" durante a escravidão.
um lote de terra, tinha-se que sohcttar uma doação pessoal. A decisão do Por outro lado, possibilitava ao colono estrangeiro, pelo menos
ret para a concessão do privilégio er-.1 baseada na avaliação do pretendente, teoricamente, através dos seus recursos monetários ou com a ajuda da
o que tmplicava considerar seu sta/ur social, as suas qualidades pessoais e comunid.1de da qual eram originános, ou órgãos de solidanedade, de
seus serviços prestados à Coroa. Desta forma, a aquisição de terras, apesar adqum-las para si e para sua família. Proporcionou ao colono estr.mgeiro
de regulamentada pela lei, derivava do arb11num real e não de um direito a possibtlidade da sua aquisição, ou, em último recurso, emigrar para
inerente ao pretendente. Por volta do século XIX o conceito foi modift- outro país (como a Argentina), ou o regresso à pátria de origem. Aos ex-
cado.A terra tomou-se domínio público, patrimônio público, patrimônio escravos estas alternativas não existiam. A Lei da Terra, se de um lado
da nação. De acordo com a Lei da Terra, de 1850, a única maneira de se democralu.ava as possibilidades da sua aquisição mediante compra ao
adquirir terra era comprando-a do governo, o qual atuaria como mediador governo, o que provocou na prática foi uma barreira real para os ex-
entre o domínio público e o provável proprietário. A relação pessoal que escravos após a Abolição, de adquiri-las. Conforme diz ainda muito bem
anteriormente existia entre o rei e o pretendente transformou-se numa Emília Viotti da Costa: "na primetra f.tse a propriedade da terra conferia
relação impessoal entre o Estado e o pretendente. Em vez de uma dádiva prestigio soctal, pois implicava o reconhecimento pela Coroa dos méritos
pessoal concedida pelo rei segundo as qualidades pessoats do indivíduo, do beneficiário. Na segunda fase, a propriedade da terra representa
a terra podta ser obtida por qualquer pessoa com capttal suficiente. prestígto social porque implica poder econômico. No primeiro, o poder
Quando a terra era uma doação real, o rei tinha o direito de impor cenas econômico derivava do prestígio social; no segundo caso o prestígto
condições, regulamentando o seu uso e a sua ocupação e limttando o derivava do poder econôrnico"60•
tamanho do lote e o número de doação recebida por pessoa. Q!tando a A Lei da Terra tinha, no fundo, um conteúdo político. Ela deu um
terra tornou-se uma mercadoria adquirida por indivíduos, as decisões cunho liberal àaquisição de terras no Brasil, mas visava impossibilitaruma
concememes àsua utilização passaram a ser tomadas por esses mesmos"59• lei abolicionista radical que incluísse a doação pelo Estado de parcelas de
Segundo podemos concluir do pensamento da historiadora Emília gleba aos libenos, e, de outro, estimular o imigrante que via, a partir daí,
Viotti da Costa, a médio e curto prazos, quando os escravos fossem a possibilidade de transformar-se em pequeno proprietário, aqui chegan-
libertados, não haveria mais nenhuma possibilidade de um decreto do.
aboliciomsta radical que incluísse no seu texto a doação, por parte do O problema da terra já vinha sendo estudado durante algum tempo
governo imperial das terras capazes de fiXá-los nas terras pertencentes à e é discutido pela primeira vez no Conselho de Estado em 1842. Um
Nação. Pelo contrário. Dado o seu grau de descapitalização (quase projeto foi formulado nesse sentido e apresentado à Câmara dos
absoluto, por sinal) no momento em que fossem libertados, as terras lhes Deputados no ano seguinte. Tinha como objetivo, além de regularizar a
seriam mercadoria de aquisição impossível. Com este mecantsmo jurídico situação de formas de apropriação não legais como também estender o
a terra emrou no mercado tendo o Estado como vendedor. Aqueles que controle geral da propriedade da terra no setor governamental o qual
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Diall§tica Radical do Brasil Negro Do Escravismo F'fono so Csc1svfsmo Tardio

passaria a ser,a parurdaí,o proprietário Úlllcoe únicoagemecomercializador sem aumentar a agricultura como se pretendia, ames lhe tem estreitado
das terrc1s. Isso cna ria condições para, atr<tvésde um imposto sobre a terra, e dificultado a povoação progressiva e unida, porquanto há sesmanas de
o governo obter recursos para subsidic1r a imigração, único recurso 6, 8 e mais léguas quadradas, possuídas por homens sem cabedais e sem
reconhecido como capaz de resolver o problema da mão<le-<>bra na escravos, que não s6não as cultivam mas nem sequer c1svendem e repartem
agricultura. Apartntememe a posse da terra ficava mais difkil, pois, por quem melhor as saiba aproveitar, originando-se daqui que as
mesmo o colono estrangeiro via-se na contingêucta de amealhar soma populações do sertão se acham muito espalhadas e isolad_as por ~uScl dos
considerável para comprá-la, ao invés de arrend.Ha de terceiros ou ocupar imensos terrenos de permeio, que senão podem reparttr e culttvar por
espaços devoIutos. O que se desejava, em última instância, era, através dessa serem sesmanas; seguindo-se também daqut VIver a gente de campo
estratégta de modtmuJJçJo conservar-se a grande propriedade, mas com o dtspersa e como feras no meio de brenhas e matos, com sumo prejuízo
trabalhador lavre amportado, descartando-se, assim, defmitivamente, a da administração de justiça e da civilização do país; parece-nos por todas
integração do trabalhador nacional, especialmente do ex-escravo negro, essas razões mutto convenientes que, seguindo-se o espírito da lei do Sr.
ap6s a Abolição. O. Fernando sobre essa matéria, que servtu de fonte ao que está
Diz por isto com razão Emília Viotti da Costa: "Se olharmos mais determinado na Ordenação, Livro 42, tit 43, se legisle, pouco mats ou
de perto o projeto de lei e os argumentos daqueles que o defenderam na menos o seguinte:
Câmara dos Deputados, torna-se 6bvio que os legisladores queriam 12) Q!Ie todas as terras, que forem dadas por sesma~as e _não se
fomentar o desenvolvimento do sistema plaltta!Üm, no que constituia a acharem cultivadas, entrem na massa dos bens nactonats, deaxando
base da economia brasileira. Eles estavam dtspostos a dar ao governo o somente aos donos das terras meia-légua quadrada, quando muito, com
poder para controlar a terra e o trabalho, apenas para assegurar o sucesso a condtção de começarem Jogo a cultivá-las em tempo determinado que
da economia tipo planlúlion. Em relação à terra o governo não era visto parecer justo.
como proprietário, mas como um representante do povo, de quem 22) ~e os que têm feito suas as terras s6 por m~ra _ posse, e nl? por
derivava seu poder para controlar a tem1 e o trabalho. De acordo com as titulo legal, as hajam de perder, exceto o terreno que JCÍ ttverem culttvado
modernas idéac~s de lucro e produtividc1de, os legisladores procuraram e mais 40 geiras acadêmicas para poderem estender a sua cultura,
forçar o proprietário rural a usar a terra de uma maneira mais racional. determinando-se-lhes para isso prefLXo.
Conscientes da nt'Cessidade de um novo ttpo de trabalho para substituir 32) Que de todas as terras que reverterem por esse modo à nação e de
o escravo, t'les (('COrreram à imigração como fonte de trabalho"••. todas as outras que estiverem vagas, não se d~m mais ~smarias gratuitas,
Como podemos ver nessa fast" do escr.avismo elaboram-se mecanis- senão aos poucos casos abaixo apontados; mas se vendem em porções ou
mos estratégicos que possibilitariam, ap6s essa fase tardta do escravismo, lotes que nunca possam exceder de meia légua quadrada, avaliando-se
a chegada do trabalho hvre de acordo com os interesses da classe senhorial segundo a natureza e bondade das terras e a grira acadêmica de 400 braças
e os segmentos e grupos a ela aderidos. quadradas, em 60 réis para cima, e procedendo-se à demarcação legal.
Tem razão, por isto o historiador José Luciano Cerqueira ao afirmar: 42)Que haja uma caixa ou cofre públtcoem que se recolha o produto
"quando se discute as formas de transição escravismo/trabalho livre,oque dessas vendas, que será empregado em favorecer a colonização de europeus
está em jogo é ganhar tempo para consolidar uma determinada forma de pobres, lndios, mulatos e negros forros a quem se darão de sesmaria
apropriaç;!o da terra"62• pequenas porções de terreno para o cultivarem e se estabelecerem'63•
Ora, esse problema, básico desde o mício da nossa colonização, que
I
A visão sociol6gica de José Booúlcioem 1821 é muito mais avançada
vinha sendo equacionado de longa data encontra saída com a lei de 1850. do que a VIsão polltica dos elaboradores da let de 1850 e mesmo dos
Pela mesma razão José Luciano Cerqueira cita José Bonifácio que já se I abolicionistas de um modo geral. Isto porque José Bonifácio não tira ao
preocupava com o problema. Diz ele: "José Bonifácio, em suas lmtru~ Estado o direito de doar, mas recomenda que essas doações sejam feitas
ao GO'l~rno Proois6rio de São Partio aos dtpulados da Província àr Corta também a índios, mulatos e negros forros. Alei 601,no entanto, ao colocar
Portugtttsas pura se Condraimn ~n &!açJo aos Negócios do Brasrl. Nesse as terras do Estado àvenda exclui essas camadas plebéias da possibilidade
documento - José Bonifácio - que é de 1821, já colocara o seguinte: prâtica de acesso às mesmas e impede o surgimento de qualquer projeto
'considerando quanto convém ao Brasil em geral, e a essa Província em abolicionista radical que exija obediência àquela recomendação de José
particular, que haja uma nova legislação sobre as chamadas sesmarias, que Bonifácio. Pelo contrário. Há nela um dispositivo autorizando que se faça
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Duillétlcs Radical do Brasil Negro Do Esetav1smo Plrmo ao Escrovisrno TardiO

um caixa com a venda desses terrenos para favorecer a sua compra por Verifica-se no textodeCouty,queenquantoosescravos permanec1am
parte do imigrante. 110 seu status de semoventes e por isto sem nenhuma possibilidade de
Conforme dissemos anteriormente ao invés de se liberalv.dr a posse p.tnic1parem desse processo de mobilidade social e os não-brancos
da terra atraws da sua compra, o que o gO\'l'mo estava fazendo era impedir c.unponeses compunham uma população que se margtnahzava progres-
a sua democratização. Enquanto isto, o número de camponeses sem terra 11\.lmente, na população de imigrantes estrangeiros 1á se cri.tva uma
se multiplicavam com a crise do sistema tscravista. Em 1883, Louis Couty c.1mada proprietária, descontente por nâo possuir terras que a igualasse
afirmava, analisando ess.1 satuação: "A presença de escravos e jumo deles rm nível de prestígio e poder aos grandes produtores de cafe, cana e
vários milhões de camponeses, caboclos ou antigos agregados, sem ma nd IOCcL
atividades e necessidades, que amda não são cidadãos úteis, pois não votam Não queremos com isso, dizer que a vid.1 do imigrante tenha sido um
e não tro~balham de mesm.1 maneira contínud, são a verdadeard causa dc1 mar de rosas. Mas o ceno é que ele nessa fase de passagem da escravidão
ausência d.1 riquez.1 de valor das culturas e também da msufici~ncia de para o trabalho hvre teve muito mais oportunidade de se transformar em
impostos e das arrec.1dações. Todos s.1bem que bastaria dc1r aos 8 malh<ks proprietário do que o escravo na mesma época, o qual não teve nenhuma.
de habitantes do Brasil a Jtividade dos habitantes dos Estados Umdos e Como escreve Peter L E1semberg com multa propriedade: "O
da Austrália para que todas as dificuldades atuaas fossem mais ou menos custo relativamente baixo de estabelecer-se na ativ1dade cafeeira
resolvidas""". também aumentava a possib1bdade do imigrante, um dia, tornar:
Dtzi.t ainda referindo-se ao mesmo assunto: "existe uma outra fonte se propnetário de terras no Bras.!. Para preparar seu produto para
de mão-dt'<>bra que muitos velhos brasileiros ainda acreditam suficientes a ex~ortação o cafeicultor tinha de colher, lavrar, secar, lunpar,
hoJe. Refenmo-nos .tos 5 ou 6 milhões de camponeses mestiços que estão dassdlcar, catar e ensacar- todas operações meramente manuais e
espalhados pelo Brasil, não só nas fazendas de negros do Rio de ]c1neiro mednicas. Mesmo se completamente mecanizadas, a colhetta, o
e São Paulo, m.1s até bem mais longe, em Goiás, Mato Grosso até mesmo beneficiamento e a classificação custanam no máximo um ou dots
nos confins da Amazônia"~. contos. O produtor do açúcar, por sua vez, tinllJ de cortar e moer
Couty, um imigranusta convicto, achava, no entdnto, que essa a cana, e transformá-la quimtcamente em açúcar ou álcool. Um
popuhçao desajustada por não possu1r terra não poderia resolver o investimento substanc1al em máquinas era inev1tável e a moderni-
problema da mão-de-obra que se apresentava. zação, como v1mos, custaria oo mínimo 50 contos Noio quero
Para ele o importante eram medidas que factlitassem a aqui- sugenr que os itahanos se tornaram fazendeiros em uma geração,
sição ~e terras pelos imigrantes. Era esta, t.1mbém, a opiniâo de ap6s a chegada ao Brasil, pots Michel M. H ali demonstrou que "tais
Antôn1o Prado. Coutyescreve por isto: "Em São Paulo os italianos est6nas de sucessos eram raros. Porém, os promotores da imigração
ou os alemães que conseguiram econom1zar como colonos contra- em São Paulo podiam proporcionar maiores estímulos e os
tados encontraram facilmente para comprar, ao redor das cidades imigrantes unham ma1so que escrever para a sua p.ítria, do que seus
de Campinas, Limeira e S.lo Paulo, terras incultas parecidas com companheiros Pernambucanos"~·.
as das regiões marginais das estradas de ferro, que geralmente não Zule1ka M. F. Alvim fez um levantamento do núm~ro de imigrantes
são próprias para o café; mas, como demonstra o Sr. Antônio Prado itahanos que se tomaram propnetános logo após .1 Aboliçao. Ela escreve:
numa carta Interessante que transcreveremos mais adiante, esses "tanto em 1905 como em 1920, constatou-se que os propriet.írios italianos
colonos que são pequenos proprietános não estavam satisfeitos predommavam na araraquarense: 1.189 propnedades ~m 1905 e 2.630
porque suas pequenas culturas não lhes dão cond1ções de prospe- para toda a região.
ridade rápida. Tornam-se logo muito numerosos; concorrem entre Em 1905 a araraquarense era aquilo que os sociólogos chamam de
si nas vendas dos legumes, do milho e do feijâo e sobretudo invejam 'região de fronteira'. A implantação do café n~~Y .írea se deu entre 1890.
as plantações vizinhas do café, cana e mandioca, que produzem 1910e ainda manteve sua importância depo1s d~ 1930. Podemos afirmar,
grandes lucros. Numa palavra - continuam descontentes porque então, no caso italiano, que a grande concentrl'lçao da pequena proprie-
sentem-se obrigados a colonizar terras virgens de segunda qualida- dade, em números absolutos, cammhou paralelam~nte à fronteira de
de. É necessário evitar esse descontentamento, se quisermos fazer avanço do cafe para o Oeste"68 •
o povoamento espontâneo"". Podemos ver, portanto, nessa fase do escraVIsmo tard1o, do ponto de

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Dial~tlca Radical do Bros/1 Negro Do EscraVIsmo Pleno ao Escravismo Tardio

vista da população que se estruturava e reestruturava, com a entrada dos Os senhores de engenho, por outro lado, ocupavam assim melhor as suas
imigrantes, três niveis de estratificação principais: terras, dtspunham de braços par.1 as lavouras e de pessoa.s .que os
a) Osescravosquecontinuavam sem nenhum direito e possibilidades IKOmpanbassem nas lutas contra vizinhos(...) Os mora~ores vtvtam em
de mobilidade quase igual a zero; choupiDas e na maior pobreza, dispondo apen.1s de estetras e panelas de
b) Uma população camponesa composta de mestiços e negros livres barro, mas andavam sempre armados com uma faca chamada ptixriru. e
sem terra; de uso proibido pelas autoridades'"''.
c) A população composta de imigriDtes que i~ possuia terra, Nessas economias, quer do Sudeste quer do Nordeste, com as suas
constituindo-se em uma camada de pequenos proprietários. diferenças regionais, a Lei da Terra de 1850 desempenhou a m~sma
Na din.imic.1 desse processo que culminará com a Abolição em 13 de função: impedir a plebe e as populações que est~vam prestes ~ satr do
maio, diminui a população escrava, aumenta a de camponeses sem terra, estado de cativeiro, tivessem acesso l mesma. Cnou os mecamsmos de
descendentes de negros e indios- mestiços de um modo geral- e articula- dependêncl3 dos sem terra que perduram até ~1oje. . .
se uma came~da que se destaca da população de imigrantes e se constitui Neste sentido Costa Porto em um estudo SJStem~uco sobre o ststema
em pequenos proprietários. O d treito do acesso àterra é portanto aduido sesmaria! e asconseqüênaasda let 601 assim retrata a situaçJo de um modo
na prática das duas primetras popula~s, permitindo-se, atrdvés da geral após a sua promulgação: "O problema fund.iário brasileiro? e~ 1.850,
poupança individual, ou apoio instituctonal, a posse da terra aos se repartta em quatro situações dist.it:tas que a let6?1 trata de dtsctpil?ar:
imigrantes bem sucedidos. a) terras constituindo o dommto legal de pr~v:dos, q~e as havtam
Isto nas regiões onde se criaram mecanismos para que a empresa de recebido de sesmaria, preenchendo todas as condtçoes legats, figurando
imigração fosse montada e funcionasse. E nas outras regiões do pais? como smneiros kgílimos;
Manuel Correia de Andrade analisando essa situação de transição da b) solo pedido de sesmaria, mas cujo beneficiário não. havia
escravidão para o trabalho livre no Nordeste, especialmente na região de cumprido alguma exigência essencial, donde nã.o Ih: hav;~ adqumdo o
Pernambuco, onde os senhores de engenho em decadência não tinham domínio legal, podendo apontar-se como sesmmo n~o kg~unado; . _
capitais suficientes para importar imigrantes, escreve: " Era freqüente c) áreas simplesmente ocupadas por meros possetros, stmpiessttua{dO
nessa região, os senhores de engenho por não poderem adqutrir escravos d(foto que não assegurava nenhum sentido de legitimidade em termos de
ao alto custo, para suprir a necessidade de braços, facilitaram o estabele- dominio; .
cimento de moradores em suas terrascom aobrigaçãodetrabalharem para d) finalmente nem distribuídas nem mesmo ocupadas- genenca-
a fazenda. Esses trabalhadores tinham permissão para derrubar trechos de mente chamadas urras tkvol11tas pertencentes "l N açao - "70.
matas, levantar choupanas de barro ou de palha, fazer pequeno roçado e Prosseguindo na análise da Lei da Terra o. m~smo aut?~ escreve:
dar dois ou três dias de trabalho semanal por baixo preço, ou gratuito, ao "tirante as terras de fronteiras, pois, a lei 601 ltqUtda defimhvame?te
senhor de engenho. aquela tradição vinda desde 1534, abolindo .t distribuição de sesmanas,
Surgiu, assim, aquilo que se chamou mor.dom d( amdt{:io constitu- encerrando o velho JUltrndlismo estatal, de distribuir solo gratuitamente.
indo grande parcela dos trabalhadores do campo na segunda metade do Qyem quisesse terras do Estado tena . d e compra-'las.,.,,.
século passado e .ué os nossos dias. Esses moradores procuram colocar-se Concluído, Costa Porto afirma inapelavdmente: "ao lado da nonna,
sob a tutela do senhor de engenho; naquela época no interior nordestino a sanção do artigo 22: se alguém se apoderassc: de terras devolutas, como
não se gozava de nenhuma garantia governamental. Os senhores de vinha sendo praxe, ou ocupasse terras alhetas nelas tkm1b~nd~ mato,
engenho, embora as doações de terra se fizessem então, em proporções pondo-llies fogo etc, seria despejado à força, perde~do as ben~ettonas por
bem menores que na época de Duarte Coelho, quando as sesmanas acaso efetuadas, pagando os danos causados e SuJettando-se, amda, à pena
podiam ter dtmensões tlimitadas- passaram a ter a extensão máxtma de de dois a seis meses de prisão e multa de 100$000" 12 •
quatro léguas de comprido por uma de largo em 1695- detmham grandes Partindo da compreenslo da função scletora dessa lei, Alberto Pa~s
latifúndios e em suas terras eram senhores absolutos. Os desordeiros, os Guimarães afirma: "foi então que se projetou d Lei 601, a famosa Let ~a
ladrões de animais agiam abertamente na região açucaretra criando uma Terra talhada sob medida pelo ftgurino dos novos senhores do Impéno
situação incerta para a população. Alguns deles, como Antônio Bernardo e mais iarde senhores da República- os latifundiários cafezistas de São
e o Cabeleira, ficaram famosos e vivem ainda no cancioneiro popular(...) Paulo"73•
76 77
Dialética Radical do Brasil Negro Do EscraVIsmo Pleno ao Escravismo Tardio

E prossegue o mesmo autor na análise desse instrumento jurídico 1~1que doe as terras do Estado aos escravos libertados após a Abolição.
afirmando: "inspirada como temos visto, nos postulados da cokmizaçiio Estava fechado o circuito, estabelecendo-se a profilaxia que impediria
sistemJtica de Wakerfield, a ui da Terrc1 visava fundamentalmente a três 1 mobilidade da sociedade brasileira rumo a um estágio com possibilida-
objetivos: 1) proibir as aquisições de terras por outro meio que não a des iguais para todos os seus filhos. Depois disto a Abolição poderia vir
compra (art. 12) e, por conseguinte, extinguir o regime de posses; 2) elevar sem nenhum susto ou trauma para as classes senhoriais. Tudo ficou sob
os preços das terras e dificultar sua aquisição (o art. 14 determina que os controle.
lotes deveriam ser vendidos em hasta pública, com pagamento à vista, As principais diferenças existentes entre o imigrante e o escravo
fixando preços mínimos que eram considerados superiores aos vigentes podem ser analisadas no quadro seguinte:
no país); e 3) destinar o produto das vendas de terras à importação de
"colonos".
Contudo, conclui Alberto Passos Guimarães, "as resistências à
promulgação dessa lei foram muito grandes, bastando ver que o projeto O escravismo tardio descamba
apresentado em 1843, demorou no Senado sete anos, voltando para a no capitalismo dependente
Câmara, depois de várias alterações, siJ no ano de 1850. Nesse mesmo ano,
durante sua dtscussão, um deputado teve ocasião de mamfestar suas Tudo isto demonstra como uma série de medtdas e acontecimentos
preocupações quanto às conseqüências que dela poderiam resultar e registradosquaseconcomitantemente ã aboliçJo do tráfico intemacional,
advertia: 'esta lei(...) siJ serve para pôr em conflito toda a propriedade do veto transformar o sistema escravista em um ercra?Jrsmo tardio. Isto
país; por isto(...) deve ser muito meditada, muito descutida porque pode determinará, por outro lado, uma s~ne de modificações no comporta-
ser um presente funesto e muito fatal que se faça ao país'. Por fim, mesmo
aprovada, ficou sem ser executada durante quatro anos, até surgir seu Diferenças de condições culturais, econômicas polfticas e
Regulamento, bc~ixado em 1854"7~. sociais entre os escravos e os imigrantes
Os preços flXados pelo Estado foram de tal maneira proibitivos em na fase do escravismo tardio
termos de mercado que poucos foram os negócios realizados até 1858,
quando o governo resolve, por pressão de politicos imtgrantistas, permitir
o pagamento das terras parceladamente. Tavares Bastos um imigrantista Situação Cultural
ortodoxo, depots de uma análise dessa lei a partir dos mteresses dessa
Imigrante Escravo
política, afirma em seqüência: "por agora, enquanto não se forma a
corrente de imigração espontânea, é preciso riscar essa preocupação de - Conservação do grupo de famflia de - Destruição dos grupos familiares e li·
ganhar com as terras públicas, de tirar recena da sua venda. Isto será origem que se transferiu como unidade nhagens com o tráfico mutilando a sua
exequível mais tarde em escala tal que compense toda a grandiosidade para o pais receptor. ancestralldade inclusive com o esqueci-
destes primeiros tempos"7s. mento dos seus nomes de origem.
Essa análise leva-nos a conclutr, sem muito esforço de racioclnio
teórico, que o objetivo não era vender terra, mas vendê-la ao imigrante, - Conservação nesses grupos familiares - Destruição das diversas línguas africa·
aliás chamado porTavares Bastos de "descendentes de raças ctvilizadas"35. da llngua originária, possibilitando a nas e a sua substituição, através da sub·
A política programada para uma manobra de hranquedmmlo no seu interação em nível de unidade de comu· missão,pelalínguadosenhor. Desarticu·
nível ideológtco nada tem a ver com o favorecimento à integração das nicação. lação do aparelho de comunicação do
populações brasileiras compostas de negros, mulatos, mamelucos e não- escravoatravésdesuas próprias línguas.
brancos em geral. Com essa montagem seletora e discrim matória no setor
·Coincidência da religião dos imigrantes ·Suas religiões eram identificadas como
agrário, essas populações ficam nosespaçosmarginaisdeestrutura agrária. com a da área receptora. bárbaras, animistas e inferiores ecomba-
Ela é montada, pelo contrário, para que a corrente migratória tenha tidas como transgressões aos padrões
possibilidadesconcretasdeconseguir ser proprietária no Brasil. Finalmen- religiosos oficiais e doninantes.
te, resguarda-se o latifúndio escravista de ver aprovada no Parlamento uma

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Do Escravismo Pleno ao Escrav1smo Tardio
Dial~llca Radtcal do 8ras11 Negro

Situação econômica Situação Social

Imigrante Escravo Imigrante Escravo

·Cidadão ·Semovente ·Direitos regidos pelo Código do Império • Nenhum direito, nemcomoestrangeiro,
ao nlvel de estrangeiro. nem como cidadão.
·Trabalhador livre • Trabalhador escravo.
• Proiação jurfcica de ser puncb com • Direitosdoserhofedo Estadode~ni­
·Interação em uma sociedade aberta de •Permanêocia ~só ria em um espa- castigos corporais. lo 1rdusivecomdiversas formas de tortu-
COf11Jeliçâ:> social no processo de mobi· ço social fechado na interação com os ra açc4tes, tronco, a"inhos, gargalheiras
idade. demais grupos esegmefltos no processo etc.
de mobilidade, somentepassardoparaa
sociedade aberta, com restrições, na • Uberdade de se organizarem em asso- ·lf1l>Ossibilidade de organizar-se de for·
qJalid<Kle de kbelto através da alfoma. ciações culturais e de auxmo mútuo. ma independente a não ser de forma
ilegal o que sempre despertava o temor
• Possibilidade de aquisição de terras • Impossibilidade total do direito à posse de.
através da poupança individual, familiar da terra.
ou de financiamento. mento quer dos senhores quer dos legisladores, bem como no comporta·
mento do próprio escravo. Para conse.JVar o cativo, cujo preço aumentara
• Direito de locomoção livre. • Locomoção tutelada pelo senhor.
de forma drástica e contínua, surgem :,~s primeiras leis protetoras logo após
a Guerra do Paraguai, acontecimento que foi um modificador importem·
tíssimo na desarticulação do escrtmis1110 plmo. Por outro lado, o escravo
negro que até o final do~ primetra fase do escravismo (1850) lutara sozinho
com sua rebeldta radtcal e como condutor político independente contra
o estatuto d.1 escr<IVldJo, começa a ser visto através de uma ótica liberal.
Situação polltica As manifestações humanistas, nnanríp,,uumistas se sucedem e o siUncio é
rompido discutindo-se à luz do dia a substituição da escravidão pdo
Imigrante Escravo trabalho ltvre. E as posições que refltrem uma consciência crític.t contra
• Apào enilora não satisfatóno das • Nertu.m apoio pâltico das regões de a instttuiçlo também aparece, especialmente entre a mocidade boêmia e
embaixadas dos parses de origem e ongem das suas famflias que se frag· alguns grupos adq>tos de um liberalismo radical em cujo bojo de
dassuasfamRias~agiamcomogru­ mentaram com o tráfico ou de governos relV!rxhcações incluía-se a Aboliç:io.
pos de pleSSão jmto a essas erOOalxa- ildependentes que não eXIStiam. Neste contt'xto, de revis.io ideológica da chamada opinião púbLca
das e ao gcwerno brasileiro. sensívd às modificações proct'ssadas nas relações internas da sociedade
braSJ leara, surgem as primeiras leis protetorasque se sucedem: LLJdo Vmtn-
·Propaganda imtgrantista na illl>rensa · Propaganda racista mostrando a escra• 1nm (1871}, úz dos Stxagmários (1 895), L~1 q/(~ o:tmgue a pma do açmle
mostrando os Imigrantes como traba- vidão como superada e o negro como (1886), úz que proíbe a venda separada duscr,;wos td.wdos (1869) e outras que
lhadores supenores. aológica, pSicológica e culturalmente in- objetivam proteger o escravo como n1ercadoria valorizada pela impossi-
ferior para ingressar no trabalho livre. bilidade da sua reposição como antigamente. Nesse sentido, algumas
provincias decretam antecipadamet)tC extinta a escravidão nos seus
·Possibilidades de regressar ao pais de • Impossibilidade absoluta de regressar territórios. No Amazonas ela se extil)gue em 1884, nesse mesmo ano no
origem ou ir a outros palses se estives· às suas regiões de origem. Nem mesmo
sem insatisfeltos com as suas condi- os africanos livres foram repatriados. Ceará e em Porto Alegre.
ções de trabalho. Paralelamente, a escravidão regionaliza·se e aquelas antigas áreas de
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KO
D1alética Fladlcal do &astl Negro Do Escravismo Pleno ao Escravismo T81dio

prosperidade da sua primeira fase - e.rcravismo plmo .- entram em O:>mo vemos, no e.rcravismo tardio entrecruzam-se e superpõem-se
decadêncaa ?~?do lugar ao surgimento de uo:a econom1a nova que se relações escravistas e capitalistas, conforme veremos analiticamente mais
desenvolvera Ja com0 segundo ciclo do escraVismo no Brasal. adiante. Mas há uma característica particularizadora e significativa, senão
a preponderante: essas relações capitalistas, naquilo que elas têm de mais
Rasgos flindament.ais do escravismo tardio importante e significatiVO, não surgem quase nunca da nossa acumulação
imerna, mas, foram injetadas de fora, implantadas por todo o complexo
Essa nova fase, para nós, já representa o estágio de decomposição subordinadorque atuava dinamicamente no p6loextemo, condicionando-
estrutural do modo de produção escravista e terá os seguintes rasgos nos econômica, social e culturalmente. Era um transplante vindo do
fundamentais: centro para a periferia, sem contrapartida. Pelo contrário, éramos o
receptor e o centro injetor de tudo aquilo que entendíamos por
1- Relações de produção escravistas diversificadas regionalmente de motkrnÍZdçio no sentido do modelo capitalista. O:>m isto, há alterações
forma acen.tuada, lo<:alizadas na parte que dinamizava uma economia significativas no comportamento da classe senhorial e dos segmentos a ela
nova, espeetalmente no Rio de Janeiro e São Paulo, onde se concentrará subordinados ou influenciados e dos escravos por extensão.
de forma preponderante a população escrava. As grandes lutas radacaas e violentas que vão dos séculos XVII até a
2 - Parcelas de trabalhadores livres predominando em algumas primeira pane do século XIX entram em recesso. A composição étnica e
regiões, quer nas áreas decadentes, quer 11aquelas que decolaram com o numérica da classe escrava sofre transformações entre o primeiro e o
café. segundo períodos.Já não são mais escravos vindos da África, masnascados
3 - Concomitâ11cia de relações capitalistas (de um capitalismo já no Brasil. O seu número também decresce de tal maneira que já são uma
su bord mado ao capital monopolista) e permanência de relações escravistas minoria demográfica. Estão, por outro lado, diversificados mais tntensa-
(Mina de Morro Velho). mente na divisão do trabalho e se urban12am em cidades como Salvador,
4 - Subordinação no nivel de produção industrial, comunicações, Recife e Rio de Janeiro, trabalhando de ganho ou de alugel. Sofrem,
tra~s~nes (estradas d~ ferro), portos, iluminação a gás, telefone etc. ao também, a influência do papel das leis protetoras que passam a funcionar
capat~ mglês; no OÍ\>el de relações comerciais, subordinação ao mercado ap6s a Guerra do Paraguai, acontecamento que, por seu turno, também
mund1~ .e sua realização, internamente, em grande parte, ~.r casas dará aos ex~scravos que de lá voltaram, uma visão mais nítida da
comercaa:s estrangeiras, 0 mesmo acontecendo no setor banamo e de cidadania, vtsão que eles transferirão aos cativos que ficaram na produção.
exportaç~s. Tudo isto acompanhado de uma série de transformações sociais como a
5 - Urbanizaçã0 e modemlZdfào sem mudança nas relações de abertura de estradas de ferro, portos (aos quais muitos se engajarão como
produção fundamentais. trabalhadores), além de ecos da campanha abolicaonista.
6- Tráfico de escravos interprovincial substituindo o intemacional. Nesta segunda fase do escravismo novos mecanismos reguladores
Aumento do seu Preço em conseqüênc•a influirão também no comportamento dos senhores. O encarecimento do
7- r rabalhad~r livre importado desequilibrando a oferta de força de escravo, as leis protetoras, a opinião pública e a imprensa são mecanismos
trabalho e desqualiftcando 0 nacional. que passam a influir no tratamento dado aos escravos, embora, na sua
8 -Empresas de trabalho escravo. essência, continue tão despótico e irracional como no seu início. Tudo isto
9- Empresas de trabalho lavre como a colônia de Blumenau. produz um novo alinhamento entre escravos e senhores nessa fase do
10 - Empresas de trabalho livre e escravo como no sistema de parce- modo escravista que se decompunha.
ria de Ibicaba em São Paulo e outras fazendas. Uma coisa, porém, não se altera: o escravo continua como proprie-
11- lu fluência. Progressiva docapat.!l monopolista (estrangeiro) nesse dade, como coisa, ou, para usarmos um conceito economico, ele continua
processo. sendo capital fuco, da mesma forma como era considerado nas Ordena-
12 - Legislação protetora. substituindo a repressora da primeira fase. ções Filipinas e Manuelinas. Na sua essência, portanto, a situação
13 - Luta dos escravos em ahança com outros segmentos sociais. A fundamental do escravo permanece a mesma, com modificações apenas
resistên~~ pa~iva SQ bstitui a insurg~ncaa ativa e radical da primeira fase. periféricas e secundárias nas táticas controladoras da sua .rebeldia e
Os abolac1omstas aSsumem a hegemonia do processo. racionalizadoras do seu trabalho.

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D~al4t ca RadJcs/ do Brssil Negro
Do Escravismo P19f'P so EscraVIsmo Twdo
Mesmo assim, há transformações, também, no comportamento do
escravo. Não apenas pelas modificações tátiCas, mas por manipulações A Lei Eusébio de Queiroz
estratégicas da classe senhorial. O tráfico 1nterprovincial desarttcula, ma1s
uma vez, a população escrava, desfazendo multas vezes o grupo famíha. De todas as medidas tomadas para o desenvolvimento do e1a.zvismo
A lei que regula e procura proteger a família escrava não permitindo ma1s t.lrdto e a sua soluçJo no capitalismo dependente a J.,ei de 4 de setembro
a sua fragmentação na venda, faz se quase fora do tempo, pois é de 1869. de 1850, conhectda como a LúEusébiodeQttirozfo1 a mais direta nos seus
Ela surge mais como medida rt'produtor.z e não protetora, porque as objetivos e eficiente nos seus efeitos, foi inquestiona~lmente aquela que
famílias po~ssam a ser matnzes de novos escro~vos no momento em que a atingiU de forma definitiva o escraVIsmo pleno, nesse período de
reprodução desses elementos para o trabalho produtivo começa a trans1ção.
escassear. Proibindo a continuidade do tráfico 111ternacional de africanos,
Se na yrimeira fase do escraVIsmo esta desarticulaçáo verificava-se estancou a grande fonte de reprodução da mã<Hie..obra cativa, determi-
ainda na Mrica o mesmo uá acontecer aqUJ na segunda, quando os nando o seu fim em período rüo muito longo. Esvaziou, assim, a
escravos são vendidos das outras províncias para São Paulo e R1o de dinâm1ca demográfica que sustentava a escraVIdão.
Janeiro, especialmente a primeira. A Lei que 1mpede essa desarticulação Por essa lei, as embarcações brasileiras encontradas em qualquer
familiarchegasomentedurante a Guerra do Paraguai, para 1mpedira total parte, e as estrangeiras nos panos, enseadas, ancoradouros ou mares
fragmentação do acasalamento esc ravo, po1s a população negra foi aquela territoriais do Brasil, tendo a seu bordo escravos, cola importação ficou
que mais sofreu em conseqüência do confl1to, conforme já vimos. Junte- pro1bJda pela l..e1de 7de novembrode 183t,ou os tivessem desembarcado,
se a 1sto o grande n\1mero de homens convocados, todos eles JOvens para devenam ser apreendidas pelas autoridades ou pelOS navios de guerra
se entender as intenções do legislador. brasileiros. Naquelas nas quais não fossem encontrados escravos a bordo,
Paralela mente há ~uhstanciais modificações ediferenciaçõt:s tangenciai~ nem os tivessem desembarcado proximamente, ma5 nas qua1s se encon-
na econom1a bra~ile1ra no seu conjunto. Superposta) ~~ relações de trassem sinais de que se empregaram no tráfico de escravos, seriam
produção escrav1o;ta~ implantam-se do cxtcnor, relaçõescapital!stasdepen- Igualmente apreendtdascomo se est1vessem fazendo tentativas de tmpor-
dentes. O capital monopolista internacional- fundamentalmente inglês- tação de escravos. No seu artigo 29 o governo imperial comprometia-se a
em um complexo cerrado e dmlmico de dominação naquilo que t1 estabelecer normas reguladoras da caracterização de negreiros. Os outros
economia brasileira deveria dinamizar !.e tivesse força~ewnômicas internas anigos da let n;io são menos conclusi\'OS e t.uativoS:
(acumulação) de cf~:tuar essa mudan(,.a qu;lhtativa a fim de sa~r do . "Art. 311 - São autores do crime de imponação, ou de tentativa dessa
escravi~mo c entrar na senda do dc:.cnvolvimcnto capitaiJst<l autônomo. O •mportação, o dono, o capitão ou mestre, o p!loto e o contramestre da
escravi~mo brasileiro, no seu final, ou seja, na etapa do eJCTtJTIZJIIIO tardio, já embarcação,e sobrecarga. São cúmplices a equipagem e os que coadjuvarem
era uma anacronismo aberrante em todos o~ \I.:US níveis c..~truturais - o desembarque de escravos no território brasileiro ou que concorrerem
econôm1co, social, tultural e p~1col6gico- e sua decomposição vcnfica·sc para ocultar ao conhecimento da autorid.Jde, ou p.tra os substituir à
sjmuhancamentc au mk1o da dominação imperiali<>ta que entra em cena aprecns.io no mar, ou em ato de desembarque, sendo perseguido.
como ator principal do processo de estrangulamento do no~ desenvol· Art. 49 - A importação de escravos no t rrit6rio do Império fica nele
vimento como nação. Conforme já d1ssemm em pane, a grande duração considerada como pirataria, e ser.í pumda ~los seús Tribunais com as
do escravi~mo brasiletro k'\'OIH> a encontr.u-se com aquelas forças penas declaradas no art. 22 da Lt1 de 7 de novembro de 1831. A temanva
econômtcas ex6gcnas de dom mação que não t mham ma1s Interesse em e a cumplicidade serão punidas segundo as regras dos arts. 34 e 35 do
exponar mercadoria\ mas, capitais. Ncs~ processo, longo e permanente C6digo Criminal.
de dominação, preparam-se as premi~as para a abobção <.c processar de tal Art. 52 - As embarcações de que tratam os arts. lg e 29 e todos os barcos
forma que tanto ~a~ f<)rças externa~ como os antigos membros da clas<.c empregados no desembarque, ocultação ou extraviOS de escravos, serão
senhonal encontrem no trabalho l1vre a contmuidade e m:mutenção dos vendidos com todd a carga encontrada a bordo, e selJ produto pertencerá
llt!US privilég1os existentes dur;mre o escr.tVJSmo. Essa conclu~ão que teve aosapresadores, deduzindo-se um quano para o denvnciante, se o houver.
uma longa história fo1 determinada por um proccs!>O contínuo de E o Governo, veriricadoo julgamento de boa presa, retribuirá a tripulação
dominação que foi confundido como sendo progrtsJO e m()(ÚnÚ7.il{dO. conforme as leis a respe1to.
Art. 62 - Todos os escravos que forem apreendido.sserJo reexportados,
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Dialética Radicar dO Brasil Negro Do Escrav1smo Pleno ao EscraVIsmo Tard10

por conta do Estado para os portos de onde tiverem vindo (...) ou para de Penlilmbuco,em 1855,obtendovam r~rcussão inclusive política em
qualquN outro fora do Império, que mais comreniente parecer ao facedos pt>rsonagens implicados eda re<IÇdO.tgressiva da Tnglaterr.t, c1través
Go~rno: e enquanto essa reexportação~ não ~ri ficar, serão emprt'gados dos seus representantes.
em trabc~lho debaixo da tutela do Go~rno, não sendo em caso algum Diz neste parttcular um historiador que se iniciav.1 então, o
concedidos os seus serviços a particulart's. desenvolvimemo de um fato histórico conhecido como o l:Xsembdrqut dt
An. "P • ~ão se darão passaportes aos navtos mercantes para os portos Smirluém e que comportava implicações as mats profundas, atingindo
da Costa da Afnca sem que seus donos, capitães ou mestres também nossa sobe rama. E revelaria, também, neste drsembt~rque de Serinhaém, o
tenham ilssinado termo de não recebt'rem a bordo deles escravo algum; envolvimento dc1s melhores famflias aristocráticas da zona do Nordeste
prestando o dono fiança de umc1 quc1ntlil iguc1l ao valor do navio e Cilrgcl, em atividades negreitas, e nem o irreqUieto Padre Pinto de Campos era
a qual fi<~nça só ser~ levantada se dentro de 18 meses provar que foi totc~lmente c~lheto a esse tipo de transação. Allldd mats: as investigações das
exatamente cumprido aquilo que foi estabelecido. autoridades iugles.as revelariam, também, .1 suspeição do Presidente da
Art. 89 • Todososapresentamesdet'mbarcações.deque tratamosc~rts. Província, o conselheuo José Bento. Nc1 hist6ri.1 da cl1egada desse navio
1 e 211, assim como a liberdade dos~rc1vos apr~ndidos no alto-mar, ou
11 negreiro foram envolvidos o con~lheiro Drummond, Francisco de Paula
na costa, .mtesdo desembarque, no ato dele, ou imediatameme depois em Cavalcânti Wanderley e o prCSJdenteda Província.José Bento, sobre o qual
armazénse dep6sitos sitos nas costas e porto~, serão processados e julgc~dos h.avia a suspeita de hav~r sido avis.ado do desemb.arque e foi substituído
em primeira instância pela Auditoria d.1 M.1rinha, e em seguidc1 JX'IO do cc1rgo em 1886. Mas, o caso de $(rinhc1ém terminou com a maioria dos
Conselho do Estado. O Governo mc~rcclr.Í em regulamento a formc1 do africanos apreendida nos engenhos dos Cavalcântis.
processo em primeira e segunda instlncia, e poderá criar Auditores de "Em 11 de novembro de 1855- prossegue o mesmo histonador-
Marinha nos postos onde convenha, devendo servir de Auditores os Juízes nove dos africanos subtraídos do palha bote er,un localizados nas senz.alas
de Diresto das respectivas comarcJs, que pc1ra isso forem dessgnc~do~. do engenho Cachoeira Velha de Serinhaém, pertencente ao major In.ícto
Art. 99 · Os Auditores de Marinhd serdo tgualmentecompetentes p.1ra de Barros Wanderley, primo de Chuo C:úçddor (o presidente da Província
processar e julgar os réus mencionados no art. 3. como era ch.amado José Bento CM) c de João Manud de Barros
De SUdS decisões haverá para dS Rebções os mesmos recursos e Wanderley""·
apelações que nos processos de respons.abihdade. O mesmo autor continua invtnt.uiando onde se encontr.1v.a o
Os compreendidos no art. 39 da Lei de 7 de novembro de 1831, que restante desses .africanos contrabandeados, afim1ando: "em 6 de fevtreiro
não estão designados no art. 3 destd Lei, continuarão a ser process.ados, e de 1856, nas matas do engenho Tabatinga,limítrofedoengenhoSerrinha
julgados no foro comum. que é ocupado por Manuel Batista Barros Wc1nderley, Francisco de Barros
Art. 10 · Ficam revogadas qu.mquer disposições em contr.íno." Wanderley e Manuel Campelo de Barros W.mderley, aquele genro e os
Esta lei entrou imediatamente em vigor, produzindo verdadeiro dois últimos filhos do coronel João Manuel de Barros Wanderley,
pânico entre os traficantes e aquelt's mteressados, direta ou indsretamcnte, conssgnat.írio do palhabote, foram localiz,sdos outros escravos.
no comércio de- escravos. O legssl<1dor invocou a Lei de 7 de novembro Em 19 de março de 1856 foram t'ncontrados mais dois escravos nas
de 1831 que ninguém cumpna e paradoxalmente, quando ela foi invocada matas do engenho Serrinha, pertencente .lquela família Wanderley.
em outro contexto (a discussão da Lei do Ventre Livre) alguns deputados Segundo Menezes Drummond em seu M~mori.J4 os nove primeiros
afirmaram que da não se encontrava massem vigor. O certo, po~m, é que escravos tt'riam sido comprados por 9.000SOOO; tgual preço aos dez outros
.as autoridades governamentais atacJram definitavamente o contr.Jb.mdo. e os dois últimos teriam custado 1.300$000.
Os propriet.írios das embarcações pres.as njo encontravam mais espaços Os doze últimos escravos, continud Menezes Drummond, teriam
de manobras políticas, ou chsc.Jnas jurídic.as respaldadoras e eram stdo adquiridos, através do Or. Jo~ Felipe de Souza Leão. "Todo esse
pumdos. dinhesro fos ttrado da Tesourana da Fazend.1, pel.1s verbas Repressão do
Houve, é verdade, tentdtivas de se burlar a lei. Muitas foram Trdfico e Políctd Secreta"- afirma asnda Menezes Drummond.
imt'dsdtamente frustradas e apreendtdas as suas cargas pelas autoridades Menezes Drummond enumera dtverS.Js apreensões que se realizaram
brastlelfas. No particular, um acontecimento marcou época: foi o por todo o illlO de 1856, em engenhos da famlli.1 Wanderley.
desemb;~rque de um contrabando de :africanos em Serinhaém, Provincia Nos drqutvos do conselheiro N.tbuco de Araújo fomos encontrar
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Dla/~1/ca Radical cb Brasil Negro Do Escravismo Pleno ao Escravismo Tardio

uma "Relaçao dos africanos que foram apreendidos no palhobote apresado O govemo imperial repelia, assim a acusação inglesa de desídia ou
na Barra de Serinhabn em outubro de 1855e deposilddosnesta cidade nosArsmais l!lr$1110cumplicidade das autoridades pernambucanas, mas silenciou e
de Marinha de Guerra e no Colégio dos Óifàor': documento datado de 19 de 11 '' protestou contra os termos da nota inglesa que repetia a ameaça dos
agosto de 1856 e elaborado pelo dr. Policarpo Lopes Leão, então secretário 1 111hoes dos cruzadores ingleses voltarem a operar e patrulhar as nossas
do Palácio da Presidência de Pernambuco. I !1.1'>.
A relação "fala de 179 escravos, tendo falecido 42, a saber: de diarréia, Nessa fase agonizante do tráfico os contrabandistas muitas vezes
23; de c6lera, 11; de tísica, 2; gastroenterite, 3; e do coração 2"n. IIIUd.!Vam de táticaeenconstavam o barco em loca1sdesertos substituindo
O que aconteceu no periodo que vai da chegada do navio negreiro 1 orga por escravos velhos, os quais seriam depois confiscados. O
até o final do processo, é uma taJ seqüênciadecumplicidades, participação uqueduque Maximiliano de Habsburgo esteve de passagem pelo Brasil
ou conivência entre as autoridades que determinou a intervenção do r·m 1860 e testemunhou uma dessas engenhosas operações, assim a
cônsul inglês no caso. de-.crevendo: "Uma outra importância de Itaparica e degradante para a
Não se conformando com a forma como a averiguação dos fatos e humanidade: no seu litoral distante, pouco habitado e pouco vigiado,
a pumção dos responsáveis pelo contrabando estava sendo conduzida, o .linda hoje, indo de encontro às leis, entra clandestinamente carne
cônsul inglês - Cowper - em Pernambuco, entrou em ação e foi até humana. Recentemente, desses misteriosos navios, fácil de ser identifica-
Serinhaém ouvir como estavam se comportando as autoridades locais e dos pela construção e forma, circulou pelo litoral, de maneira suspeita. S6
conclui que a tripulação do barco fora avisada em tempo a fim de fugir dc•pois de longo espaço de tempo, a autoridade lerda abriu os olhos, e o
e houve negligência. Informa isto ao Encarregado de Negócios Estrangei- vagaroso navio guarda-costas foi acionado em direção à ilha. Todas as
ros da Inglaterra. Afirma ainda que José Bento removeu as autoridades lunetas da Bc~hia acompanharam sua rota, para observarem o espetáculo
policiaise judiciaisda cidade na época do contrabando, ficando Serinhaém que se desenrolava. Logo, porém, terminou a palpitante naumagia. O
acéfala, sem nenhuma autoridade para reprimire punir o ato criminoso. c~cossado condutor de escravos lançou ao mar 300 de seus fardos vivos e,
Aponta inúmeros outros fatos incriminadoresdas autoridades brasileiras. como uma enguia, conhecendo bem as águas navegáveis, escapuliu oceano
Em conseqüência dos fatos narrados pelo cônsul, o Fortgn 0./fue afora. Por sorte e porque sabiam nade~ r, os pobres escravos alcançaram o
dirige-se agressivamente ao governo brasileiro responsabilizando as suas litoral próximo e, desde então, pertencem ao governo de Sua Majestade,
autoridades pela forma negligente como estava se processando a punição que os enviou para a nova construção da ferrovia, para alegria secreta dos
dos culpados dizendo que, em face disto "S. M. seria obrigada a recorrer ricos senhores da Ballia.
ao emprego rigido dos poderes conferidos aos cruzadores bntânicos pelo E aí vejam, aconteceu um milagre: o Governo tinha assumido 300
ato de 1845 (Bi//Abertkm- CM) por isso que as autoridades brasileiras na escravos jovens, fortes e belos, de ambos os sexos, e, algumas semanas
Província de Pernambuco não s6 mostraram frouxidão que importava depois, o bando tinha se transformado em anciões, aleijados e alquebra-
quase conivência na questão do negreiro chegado a Serinhaém em dos, um milagre, portanto, no sentido negativo. A co1sa aconteceu
outubro de 1855 senão também que essas autoridades não quiseram simplesmente assim: os senhores da redondeza trocaram todos os seus
recorrer a medidas legais e eficazes a fim de descobrirem ou de prenderam, refugos de escravos pela carne fresca da ferrovia. O número por cabeça
quando forem descobertas, as pessoas comprometidas nesse negócio"78• permaneceu o mesmo nas listas do Governo, e os criadores de escravos
O governo brasileiro, em contrapartida, por intermédio do seu renovaram admiravalmente seu material. Renovações clandestinas de tal
ministro de Neg6cios Interiores respondeu estranhando os termos da natureza, do elemento escravo não devem acontecer raramente. O
nota do governo inglês e justificando o seu comportamento no epis6dio. Governo é por demais fraco e tem, além disto, pouca d1sposição para
Rebateu a pecha de negligente e a de possivel conivência com os combater esse mal com eficiência. A maioria dos funcionários são, eles
contrabandistas de africanos. O imperador O. Pedro li referiu-se a esse próprios, grandes senhores de escravos. É verdade que, às vezes, é feita per
incidente na sua Fala do trono de 1856 dizendo, "a respeito das l'onor d~llafirma, uma pequena investigação, por causa de alguns escravos
providências tomadas para a repressão do abominável tráfico de escravos, que parecem ter sido contrabandeados. Mas há, também, para isso, uma
alguns aventureiros ousaram tentar novas especulações, mas, a vigilância solução: os senhores de escravos instruem os indivíduos suspeitos, que
do meu governo, auxiliado pela opinião pública, conseguiram malográ- naturalmente ainda não falam o português, por bem ou por mal, a
las, como espero que sempre aconteça." responder 'Minas' a cada pergunta dos juízes. 'Como você se chama?'

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Dialética Radtcal oo Brasil Negro Do Escrav/Sroo Pleno ao EscraVtsroo Tardio

Resposta 'Minas' um nome muüo comum entre os escrdvos.. 'Onde você rt;a problemáuca; tendo em 1864 sido atin~ida por uma das crises mais
nasceu?' Resposta: 'Minas', uma das províocio1s pnncipaJs do Brasil, mas pro1" mctadas, levandoaqueopânico tomasse conta da estrutura bancária
também, uma tribo multO importante de negros africanos, que fomece r c >mercial. Vários stntomas dessa crise se sucederam até que, em 1864,
aos brasileiros a melhor came humana. 'Onde você trabalha?' Resposta: ri• ~e apresentou de forma aguda e profunda. Houve retro1ção de crédito
'M mas'. M ~nas sJo as mmds de ouro e dtamantes e constituem uma
importante riquezd do país.. O juiz que naturalmente, também possui
I'·''"o comércto e a indústria. Atingiu inictalmente oiS casas concessioná-
n tS que operav.1m com o cafc. O srgundo srtor atingido foi o bancário
escravos, anota as trUM inas', arquiva os autos, c a questão está resolvida, com uma sucessão de falência e fechamento de bancos: a lO de setembro
p.tra a SdUsfação de todas as partes'nq. daquele ano a casa A J. Alves Souto & Cta. cerrou as portas inesperada-
Apesar, no ento1nto, desses recursos desrsperados dos traficantes e da mente. Foi o começo do pânico. Houve uma correria às casas de crédito
conivêneta retardatána de algumas autoridades, o certo é que essa lei e JS ma1s atmg1das foram as de Gomes & Filho e a de Monte negro Lima
impedindo o tráfico imcmacional de africanos deu o golpe de morte ao & Cta. A dívida de Alves Sou to ao Banco do Brasil já excedia 20.000 contos:
escravtJmo pleno no Brasil. A partir daí o tráfico de escravos será feito o wnco pediu ao governo a liqmdaç:io daquela casa, recebendo resposta
inrerprovmcialmcnte. Ele passará a ser o mecanismo de abastecimento de negativa. Uma ver<ioldcira operaç;io domin6 seguiu-se, tendo uma teste-
escravos para aquelas províncias onde a economia cafeetr.J estava se munlla da época assim registrado o fato: "Imagina que a pr.Jça do Rio de
cxpaodmdo. O tráfico interprovincial passará a ser o mecanismo que irá lane1ro acaba de passar pela mais forte crise que ela já tem sofndo. Basta
substttutr o africano importado e sr constituirá em um dos traços do te dlZer que o sr. Souto suspendeu seus pagamentos.. Dez mil credores e
escr.wirmo tilrdto. E, complementar a ele, o aumento do preço do escravo 50.000 contos de dívidas: Isto é 5 milhões de libras esterlmas. No sábado,
e a elevação progressiva de taxasquedificultavam esse processo mtgrat6rio. d1a 9 deste mês, o sr. Souto mandou pedir ao Banco do Brasil, ao qual já
Esse tráfico intemo foi também proibido em medida que fdvorecerá ainda devia 14.000 contos, a quantia de 900 contos, para pagamentos que tinha
mais a pai ítica irnigrantista do govemo. Era o golpe de mtsenc6rd ia dado que fazer. O BaJlCO lhos negou: o sr. Souto suspendeu tmedtatamente os
ao t:scra·llirmo plmo no Brastl. srus pagamentos.
Muitas casas de primeira ordem, que deviam dinheiro ao sr. Souto,
assmaram a favor dele letras que, pelo faro da suspensao, venciam
A Guerra do Paraguai imediatamente. Estas letras estavam em poder dos bancos, e de particu-
lares, a quem o sr. Souto as tmha cedtdo mediante pagamento em
Um fato que contribuiu stgmficativameme para a decomposição dinheiro. Essas ficaram gravemente comprometidas, porque não podiam
final do rscrúvismo lúrdio e a sua subshtuJção pelo trabalho livre, foi prever e não estavam preparadas para esse pagamemo antectpado.
indubttavelmente a Guerrd do Paragu.n Surgindo num momento em que Inúmeros credores que tinham depositado seu dinheiro no Souto
j.í se havtam tom.1do aqudas medidas, às quais nos referimos, para a senuram-se logo fortemente atingidos. Entre esses credores, é de se ter pena
transtção ser efetuadJ sem mod1ficações substantivas das fontes do poder, sobretudo de infelizes operários que são milhares deles e se tinham
ela foi .J variável dinamizadora desse processo e desempenhou o papel de pnvado da fortuna da mesa, pode-se dlZer, para guardar .1lgumas centenas
desagregador final do ststema em crise aguda. de mil ré1s para a velhice e para suas pobres famllias. Foi um alarme geral.
De todas as medtdas comentadds, estabelecidas como estratégias As ruas, sobretudo as que ficam perto da Bolsa e dos bancos, estavam
soc1ais, políllc<~s e econômic.1s para o aparecimento do escravismo lúrdio e obstruidas pelos tQ.felizes arruinados que pediam, aos berros, o fruto de
a substituiçãodo trabalho escravo pelo livre sem modificaçõestrdumáticas suas dolorosas economias.. A casa do sr. Souto em Sdo Crist6vão, foi
e radicais na sua estrutura, como acontecimento que se JUntou a essas cercada por tropas, porque se temia um ataquedosamotinc~dos(...)O povo
precitções foi a Guerra do Paraguai. afluiu de Gomes, Momenegro e Lim.1, Oliveira e Belo, Fortinho e Muniz,
A guerra afetou em proporções mUlto grandes todas as form.1se níveis Dtlon & Cia, a todos os Bancos ao mesmo tempo, para exigira pagamento
de atividades da vida nacional (trabalho, indústria, comércio, politica) e 1mediato dos bilhetes ao portador sem prazo, das quantias depositadas em
conseqüentemente as relações escravistas que Já vinham se deteriorando conta corrente; todos aqueles estabelecimentos pagaram durante três ou
desde 1850 conforme Já vimos; essas relaçoes u:io se deteriorar amdd mais quatro dias milh.Jres de contos de réts, na esperança de poder enfrentar
com o conflito. Mas, antes do seu início, d Situação ftoanceircl do Império a cnse que julgavc1m passageirc1; mas como ondas de povo continuassem
90 91
Do EscraviSmo P/t~no ao Cscravlsroo Tardio
Dialética Radical do Brasil Negro
Se no setor das finanças essa insegurança reinav<~, outros fatores
sempre a fluir, foram obrigados a fechar suas portas, menos~ Casa. ~ahia,
que ainda não suspendeu seus pagamentos, porque sofreu a mvestt p~r
último. Como c1 desconfiança crescesse sempre procurou·se 0 pr pno
t nt"gattvosa ela se somariam. Com oestancamentodo tráfico inten1acional
o escravo subira violentamente de preço, principc1lmente na regi:i82o
Sudeste. O Brasil, por outro lado, havia rompido relações oom a Ir.glaterra
banoo. O Banco do Brasil pagou dura me três dias perto df 4.r
Banco do Brasil, exigmdoo pagamento em ouro dos bilhete'desse mesmo

de r~is em ouro. Seu depósito era de 14.000 contos em oul0 · ~~e. a


con~~
e isto dificultava (mas não impedia) a tomc1da de empréstimos a
banqueiros daquele país. No Brasil, escreve J. J. 01iavenano:_"onde apesar
da quase bancarrota de 1864 a situação ~nômic~ era ma1,s est~vel {em
crédito .lO seu papel-moeda. Se isso ti~SS( continuado, todo 0 _seu ...~sdtto comparação à Argenuna CM) pelo pr6pno potenctal de pats g•8clntesco,
em ouro se te na. esgotado e entao
• seus bilhetes o -ao sendo mats garantl
. rodos a guerra iminente serviu para tirar da rua os desocupados - ll\esmo a
por valores metálicos, teriam perdido todo o cré<htoe terian s~st~ . ar
10
contragosto deles· e estimular também fomecedores etc. Os empréstimos
o único estabelecimento destinado a sustentar o crédtto d0 ~~s •r:ro. que o Império do Brasil e Argentina começ~ram a receber, nat~rdmente,
Que teria sido de nós com eSS( cataclismo? Tudo é p~pe ~c ft I tO são sangue novo na economia desses patses • a nmguém mteressa a
no país: apólices do Governo, ações dos Bancos e das estJ~ada~ e erro, dependência que eles criarão no futuro; surge uma nova daSS( borbol~
- de vánas outras 10
açoes . d ustnas,
, . saques, Ietras de cam • b"to; w od1mm
_to h a oen
te ando em torno dos governos aliados, que usufmi de todos os modos a
valor metáltco no Brastl (...) A agitação chegou a tal pontP Jue ~ as as Situação.
ruas, sobretudo aquelas onde os Bancos se acham instala os, .1caram Criou-se assim uma situação de euforia; um falso progresS(), que ao
ocupadas pelas tropas. Pensou-se mesmo em dirigir u~a peuça~ 30 correr da guerra, porém, começa a ser desmontado, para se ver desmasca·
Imperador, para obrigJ-Io a tomar uma medida enérfiCa. Qduednam rado ap6s a vitóric1 da T ripüce Aliança e os primeiros desentendimentos
march ar em massa para S-ao c nst · óvao.
- Era, en fitm, u m ver1-1a etro,
entre os aliados"82 •
movimento revoluctonáno. Esquec-i de falar-te no Banro Rurale zpoter;- Mas, o nosso objetivo aqui não é descrever a Guerra do Paraauai, mas,
rio que com 16.000 contos em contas correntes, foi por sua v~ ~meaça 0 procurar os seus efeitos no contexto do (Scrtwirmo lttrdio e o papel
de cair. Depo1s do Banco do Brasil é o nosso principal e~ta e eclment~ desempenhado pelos escravos e pelos negros de um modo ma1s abrangente
de crédito. $6 os bancos l.ondon and Branlldn Bank e Porlu!J!ese an na dinâmica de desagregação deSS( sistema. E a sua importância surge do
Br.Wiia11 Bank não fic<~ram mutto comprometidos. Mas, 1ue a1lant~, ãse paradoxo que é a participação compulsória dos escravos no Exército
os pr6pnos títulos de que são portadores, os melhores tini 05 ta vez,~ 0 brasileiro para lutarem contra um país onde não existia a escr~VJdão. O
aos poucos, em conseqü~ncia do terror crescente do povo, pe
grad u a1 mente seu va Ior.) Nessas graves cm:unstanoas,
• · o Govemo .
:r
nao
escravo não tinha alternativas a não ser lutar, mesmo contra a su~ vont.ade.
Os filhos dos senhores de escravos ficavam em casa, enquanto os senhores,
1
soube tomar imediatamente uma med1da salutar. Era pre" so passar por no seu absenteísmo óvico e patri6t1co ass1suam confortavtlmente o
cima da le1. Nao seousavJ fazê-lo. Ficamos de 9 a 16 em seSS:Í 0_pe~mat;~te, desenrolar do conflito. Por tudo 1sto não é de espantar o grande número
muitas vezes das 7 da manhã até meia-noite, na Secretil 0 da a~ ras de 6bi tos entre os escravos e os negros durante os anos que d u ro11 a guerra.
Públicas e do Comérc1o, os Ministros, o Consdho de ~ta 0 • t .os ~s J. J. Oliavenatto escreve neste sentido que o govemo ''comprou
oficiais de Gabinete. Estudavam-se deliberações enquanto a agttaçao milhares de negros escravos para lutarem no Paragua1 (...) Nio se sabe
cresc1a nas ruas"10• T precisamente quantos negros o governo comprou do~s suas próprias
.
Recon hecendo essa grave sttuaçao - em. seu d"tscur- nr. do rono,
blé" senzalc1s mas se sabe com segurança o número de negros que voltaram
pronunciado em maio de 1865, por ocasião da abertura d_a Asse m 13 hvres da'Guerra do Paragua1. Voltaram 20 mil negros depois de ~mco anos
f
Geral, sua Majestade, o Imperador, reconhece que "a falê1 1dC1a de. a1 mas de lutas, e morreram na guerra entre 60 a 100 mil - este últ~mo número
organizações econômicas bancárias em que estavam e~sttad as as consegue-se burilando as estimativas mais ~rias, que altá~ merecem
economias de milhares de pessoas, produziu no Irlês de st-tem ro 0 ano melhor crédito que as estatísticas oficiats, omissas ou mtenct()nalmente
passado uma cnse · assustadora". nJ·or estas razoes,
- r .rme escre~ um
conror mentirosas (e não raro desaparecidos muitos documentos da época)"".
historiador: "O Brasil n:io estavd em situação capaz de arc?Jr co~dos gastos O conflito resultou, de fato, dosintereSS(S ingleses na América do Sul,
de uma guerra, por ma1s · que a1gumas mentes 1evtanas· _. cons1 erassem
<r. _ especialmente no Prata, mas, internamente, serviu também, ~tme o~tras
uma simples excursão militar. O que vai resolver este unpaSS( sao os coisas, de anteparo ideológico para sustar o pensamento criuco que 1a se
empr~stimos da City, vindos em muito boa hora" 11 .
93
92
D1a/6/1ea Radical do Brasfl Negro Do Escravrsmo Pleno ao EscraVIsmo Tardio

avolumando em relação ao trabalho escravo. As idéias abolicionistas 1d,ul:ios tiveram de seguir contra a vontade, enquanto os membros das
desenvolviam-se progressivamente e o governo imperial viu no conflito I m rs St"nhoriats, seus protegidos e de políticos influemes na Corte
um pretexto fetto sob medida para neutraltz.i-las invocando o conceito de pw naneuam assistindo à guerra. Por isto, o Vlcl)ante alemão Max von
imere~s da Pátria em jogo. Passou-se ~ mvocar os chamados brios Ve1st"nquando passou no RiodeJaneirocomdestino ao Paragua1, .I época
púlrt6tuw contra aqueles que questionavam .1 escravidão no momento. O d.1 guerra, escreveu: "não tem produztdo impressão favorável o que tenho
governo recorreu a um discurso CUJa ret6nca disfarçana o desejo de vuto ate agora do exército deste país. Nas filetras estão alistc1dos somente
continutdade do trabalho servil. Haja v1sta o comportamento dos negros, mulatos e a esc6ria da população branca"•~.
gabinetes conservadores durante o conflito. As tdétas abolicionistas Fsta descrição nos mostra como as elites hr.moo se preservaram
ficaram na defensiva e o governo aproveita esse período para estabelecer m.mdando para a linha de frente aquela população dc1 qual das queria~
estratégias contmuistas que não poderá desenvolver, ap6s o conf11to, por • descartar ~r motivos socia1s e rac1ais: a r:rcóri.l, segundo c1 observação
uma série de razões que ele não conseguiu prever e controlar. Por outro de fundo rac1stc1 de von Versen. Neste episódio a ideologia do bn.mquea-
lado, conforme já di~mos, os escravos passaram a ser recrutados mmto funcionou de mododinâmico,procur;~ndo reestruturc1re reordenar
compulsoriamente e alguns fugi~m dos seus senhores para se <~ltstarem et nicamente a nossa sociedade através de uma política seletiva e ractsta na
como voluntános objetivando a liberdade prometida. Era, portanto, uma qual os membros dessas elites brdruaJ somente participavam do conflito
forma de evasão ao sistema. 8e é também alforriado pt'lo Im~rio e os ', uando partlClpavam) nos seus níveis deliberantes: postos de comando.
clldmados escravos da Naçlo são mcorporados às tropas brasileiras. Enq~anto ISto a plebe e os escravos negros formavam o grosso da tropa
Houve também- conforme assinalou Chtd~natro- compra de e~ravos que tam m.1tar ou morrer nos campos paragua1os.
por parte do governo paraenga)á-losduetamente nas tropas. O MuHstério A Let ~~~ 1.101, de 20 de setembro de 1865 (Anigo 59, §49), e, depois,
da Guerra se encarregava desse tipo de tran~ação com agentes espalhados o ~reto n 3.513, de 12 de setembro de 1865, facultavam a substituição
em diversas províncias. Prova concludente deste fato é o ofkto enviado do convocado ou recruta por outra pessoa ou pessoas ou o pagamento de
pelo presidente da Província de Mirlcls Gerais oos seguimes termos: uma mdmvJ,l{ÍÜJ ao govemo. Com esse conceito monetário de patriotismo
"Palácio, 16 de mato de 1868 eobngaçào militar, criando as possib1ltdadesdele seex1m1r, o exércttoque
O Exmo. Sr. Ricardo Gomes Llguetro apresentou-se-me querendo foH:ombater nc:> ~araguai era predomin.uHememe negro. Os negros eram
vender 18 escravos para o seMço de guerra ~gundo as ordens que tenho envtados coercmvamente em grande número para a linha de frente e
o pc~gamentodeescravoscomprados por conta do governo para o exército f~r~~l os g~a~des tmolado~ nas batalhas ali travadas. Regtstrando-se
deve ser realizado na Corte; e não podendo eu apreciar qual a urgência ptnt?t>s d~.vta)antes estrangeuos chega-se a conclusão de que no Ex~ rei to
que há atualmente para ajnda fazer-se sacrifloos desta ordem, deixet de brastleuo para cada soldado branco havia nada menos do que quarenta
f.1zer qualquer contrato com o dito Llgueiro, e o apresento a V. Exa. que e et nco negros"14•
resolverá a semelhante respeito como Julgar mais acertado. • . Em face dessa realidade J. J. Chiavenatto escreve aindc1: "As conseqü-
D. Ge. a V. Exa. M. Exmo. Sr. Conselheiro loào Lustosa dc1 Cunha enclas da Guerra do Paragua1 foram terríveis para os ne~ros. Os majs
Paranagu.l, Ministro Secretáno Estado dos NegÓcios da Guerra. fortes, em uma seleção que os tuou do eito para a guerrc1, morreram
. "14.
Jose... !utando. Os negros ~ortos somaram de 60 a 100 nul- há est1mauv.tsque
Os senhores, por outro lado, para fugirem ao dever de se incorpora- mformam até 140 mtl. Isso na freme de batalha, no Paraguai. CoteJando-
rem às tropas do Exército, envtavam em seu lugar escravos de sua se porém estimativas militares brasjleuas- Caxtas inclusive- l margem
propriedade em número de um, do1s, cmco e até mais. Com a deserção d~ htstonogr~fia oficial, dos observadores estrangetros, dos pr6prios
quase total da classe senhonal e seus associados dos seus deveres mtlitares, aliados argentmos, chega-se com relativa segurança em tomo de 90 mil
o Exército será engrossado substancialmente por escravos negros (alguns ne_gros mortos na Guerra do Paraguat. Na guerra em st, porque outros
engajados voluntariamente, mas a maioria esmagadora de forma compul- mtlhares morreram de c6lera durante a fase de treinamento, de desinteria,
s6ria), capoeiras, negros forros, mulatos, desocupados etc, caçados arbitrá- de maus-tratos nos seus 1rc1nspones"11•
ria e violentamente para serem voúmtJrnJ da pátrid. Verdadeiras razias O mais paradoxal, como já d 1ssemos, é que o Exército brastleiro d tZia-
erc1m feitas no 1ntenor e nas cidades prendendo, coagindo ou obrigando se ltbertador do povo paraguaio, quando, instttucionc~lrneme tínhamos
os membros da plebe a serem incorpor..tdos ao Exérctto. Milhares de a escravidão negra no nosso ternt6rio. Isto, por outro lado, era' explorado
94 95
Dialética Radical do Brasil Negro Do Escravismo Pleno ao Escravismo Tardia

pelos paraguaios. Q!tando os comandantes aliados en~am ao general imprimir e distribuir no acampamento o periódico denominado Cabichi
Estigarribia uma proposta para a rend_ição de U~guaiana, ~le,, na sua (.tbelha). Por meio de caricaturas e de poesias satlricas, essa folha divertia
resposta, entre outras coisas acusa o Brasil co_m uma tnterro~açao: 'Vo~as os soldados, vituperando com especial mordacidade os brasileiros, que
Excelências mostram tanto zelo em dar liberdade à naçao paraguata, r ram alcunhados de macacos"'~2 •
segundo suas próprias expressões, por que não co~eçaram Vossas Do ponto de vista de análise dos valores étnicos em jogo no conflito,
Excelências pela libertação dos infelizes negros do Bras~ I, que formar_n a verifica-se a existência de um prejulgamento contra o negro dos dois lados,
maior parte de sua população e que gemem sob a mats dura e ternvel sendo que do lado do Brasil esse julgamento tinha superposta a ele a
escravidão para enriquecer e manter na ociosidade algumas poucas existência dos grupos que o viam apenas como escravos e executavam uma
centenas de grandes do Império? " 83 • • • . prática que correspondia ao julgamento de valor e às diferenças sociais
Na mesma linha de raciocínio Sola no Lopez dmgia-se ao presidente concretas. Desta forma, se do lado paraguaio havia apenas uma visão
Mitre denunciando que prisioneiros paraguaios "na sua maior parte etnocêntrica, do lado brasileiro esse etnocentrismo tinha como suporte
foram levados e reduzidos à escravidão no Brasil, e os que, pela cor de sua a sustentá-lo as relações escravtstas. Desta realidade podemos apresentar
pele, se prestavam menos a ser vendidos, foram mandados para o E~do como situação extrema o que os brasileiros faziam com os paraguaios,
Oriental e as Províncias Argentinas, de presente, como seres cunosos, transformando-os em escravos, já que o tráfico africano havia sido extinto
sujeitos à servidão"89• . nada mais justo na lógica escravista do que transformar esses prisioneiros
Segundo Eduardo Galeano, prisioneiros foram vendtdos com? de guerra em escravos, como acontecia no escravismo clássico93 •
escravos para trabalharem nas plantações de café de São :au~o. Denunct- Esta dialética contraditória do sistema escravista manifestou-se,
ando essa situação (concordando, portanto, com a denuncta de Solano durante a Guerra do Paraguai, de um lado no sentido de se recrutarem
Lopez) Bartholomeu Mitre escreveu qu~, após_ a re~dição de Uruguaian~ escravos para defendê-lo, e, do outro, escravizarem prisioneiros de guerra
"nosso lote de prisioneiros em Uruguatana f01ma1s de 1400. Estranhara objetivando repor os claros que essa tática produziu, procurando, com
V. o número, que deveria ser maior; mas a razão é que, po~ _part7 da isto, restabelecer o equilíbrio demográfico, a viabilidade e a radonalikde
cavalaria brasileira, houve, no dia da rendição, tal roubo de pnstOnetros, da escravidão. O número de prisioneiros transformados em escravos e o
que pelo menos arrebataram de 800 a 1.000 deles, o que mostr~ a V. a número de escravos brasileiros transformados em soldados não serão
desordem dessa tropa, a falta de energia de seus chefes e a corrupçao dessa nunca computados, pois, segundo pensamos, as fontes que poderiam
gente. esclarecer esse processo ou se perderam ou foram apagadas. Isto, porém,
Pois os roubaram para escravos. Até hoje mesmo andam roubando não é o fundamental. O que desejamos destacar aqui é a lógica interna do
e comprando prisioneiros do outro lado. O comandante . G~tmarães, sistema que para sobreviver atuou usando de todos aqueles recursos que
chefe de uma brigada brasileira, escandalizado desse tráfico 10dtgno, me o poder escravtsta dispunha e o uso de um código de moral concordante
dizia ourro dia que nas ruas de Uruguaiana, tinha de andar dizendo que como mesmo.
não era paragua10. para que nao- o roubassem" 90. . Na dinâmica social desenvolvida pela Guerra do Paraguai durante o
Isto não quer dizer que os paraguaios não fossem também rac1stas. seu transcurso podemos ver como as relações escraVIstas irão se modifi-
Chamavam os soldados brasileiros de camb.í, exatamente por ser o cando e se desarticulando, havendo uma modalidade de dinâmica social
Exército brasileiro composto de negros na sua imensa maioria. O coronel que irá redundarem um realinhamentode forças sociais e étnicas que irão
Aquino, paraguaio, ao perseguir uma tropa brasileira . em retirada, caracterizar, cada vez mais, o escravismo desse período como tardio.
esporeou o cavalo lançando-se para a frente, dizendo que tlnl~a de ma~ar O escravo negro mobilizado compulsoriamente, que irá participar
alguns dos negros com suas próprias mãos, recebendo em segmda um tiro das operações militares, não terá mais a área de interação (restrita) que teria
no ventre e morrendo dois dias depois. Foi promovido a general antes de se continuasse no eito, no campo, ou como escravo de ganho, nas cidades.
morref1• O seu relacionamento será outro, a sua individualidade será diferente
Os paraguaios nos seus jornais, que circulavam _nos ca~~os de daquela que seria se ele fizesse parte dos escravos produtivos das fazendas.
batalha veiculavam diversas notas referentes ao Exército braslleuo de A hierarquia baseada na disciplina militar tinha conotações diferentes
forma depreciativa e irônica. Segundo uma _testem.ut~ha _?Cular "Lopez daqu~a existente nas fazendas. E atingia tanto o negro que fora escravo,
cuidou de aumentar os preconceitos e de atiçar a 1rntaçao, mandando como o branco livre pobre também mobilizado. O seu nível de

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0/a/élfca Radical do Brasil Negro Do Escravismo Pleno ao Escravismo Tardio

consciência era, portanto, muito mais abrangente do que aquele que mgleses, nesse ano, incluindo os empréstimos não amortizados, atingem
96
poderia ter na senzala. No particular, se o escravo negro não aproveitou 1 casa de 31.289.000 libras" •
a guerra para fugir, como aconteceu no século XVII, durante a invasão Conforme já dissemos, a polltica econômica do Império, nessa fase
holandesa, dinamizando a República de Palmares, aqueles que seguiram t.mha do escravismo, era deiXar-se dominar pelo capitaltsmo inglês
para a frente de batalha voltaram com outra visão da escravtdão. Dos lnternamenteeendividar-seexternamentecom naçõesecasasestrangeiras.
pnmetros- os escravos que ficaram nas fazendas- tmha temores. Caxias I· J Guerra do Paraguai fot um dos fatos que maiscontríbmram para essa
quediziaem carta ao Imperador, "à sombra dessa guerra, nada pode livrar- posição de quase insolvência da nossa economia e o final do modo de
nos de que aquela imensa escravatura do Brasil dê o grito de sua divina produção escravista no Brasil.
e humanamente legitima liberdade e tenha lugar uma guerra interna,
como no Haiti, de negros contra brancos, que sempre tem ameaçado o
Brasil, e desaparece dele a escassíssi ma e diminuta parte branca que há"94 • Conclusões
Caxias tinha vasta experiência em enfrentar quilombolas na fase do
escravismo pleno, destruindo os de Preto Cosme no Maranhão e o de
O que se deve concluir é que, com a passagem do escravismo pleno
Manuel Congo no Rio de Janeiro, equivocou-se quanto ao potencial
para o escravismo tardio, o bloco de poder escravista- governo Imperial,
insurrecional dos escravos na última fase da escravtdão. Se a insurreição
políticos, intelectuais orgânicos e religiosos- foram criando, cada um na
geral não aconteceu, por outro lado aqueles que foram à Guerra do
sua área de atividade, interersse e dinamismo, medidas que abriram
Paraguai adquiriram na sua maioria uma consciência crítica da sua
condição. Afirma Eunice Aparecida deJesus Parente: "terminada a guerra caminho para a substituição desse tipo de escravismo em decomposição
foi impossível manter os negros submissos, os libertos (ex-combatentes) pelo trabalho livre que já se manifestava nas brechas cada vez mais largas
exercem sobre os cativos profund.t influência, além de auxiliá-los nas no regime de trabalho dominante. Porque uma coisa era certa para todos:
fugas'"~~. a substituição do trabalho escravo pelo livre. Diante desta certeza foram
Alémdisso,dopontodevista econômico o Brasil saiu arruinado, fato abertos os leques de alternativas institucionais para que esse mesmo bloco
que veio agravar ainda mais c1 decomposição do sistema escravista na sua continuasse o seu papel na nova etapa que se avizinhava. Duas coisas
derradeira fase. Era o Brasil uma nação inteiramente endividada, com preocupavam a esse bloco de poder: o problema da mão-de-obra e o
compromtssos alienadores da sua soberania que produziam descontenta- problema da terra. Como seriam resolvidos esses dois problemas era a sua
mento e inquietação política em d tversos segmentos da sociedade, passada preocupação permanente. A mão-de-obra negra, em conseqüência de um
a febre da invocação aos brios putriótúvs como elemento justificador desse trabalho ideológico planejado tanto pelas elites dirigentes como pelos
processo de endividamento progressivo. Por isto, o governo imperial políticos e empres.írios imigrantistas, interessados na vinda do trabalha-
manobra procurando impedir um conflito maior entre senhores e dor estrangeiro que lhes daria lucros, era vista como incapaz de suprir as
escravos através de medtdas protetoras do cativo e, no plano internacional, necessidades de trabalho exigidas pela economia cafeeira. Por outro lado,
saldar os seus compromissos financeiros assumidos durante o conflito, o problema da terra, sempre sincronizado ao problema do poder, era visto
especialmente com o grupo Rothschild e o governo inglês. Um histori- como funde~ mental. Conservar-se a terra na posse dos mesmos proprietá-
ador da Guerra do Paraguai escreve neste sentido, procurando retratar rios e dificultar-se a sua aquisição por parte de outros grupos, que
com realismo a situação econômica do pais: poderiam dividir o poder com de, era uma questão a ser resolvida antes
"O Brasil ficou economicamente exaurido. Terá de recorrer aos das modificações das relações de trabalho esperadas, especialmente no
empréstimos ingleses. Entre 1871 e 1889 contrai dívidas que montam a campo. E isto foi feito com a Lei 601 de 1850.
45.504.100 libras. Seu comércio exterior está dominado por capitalistas Eram estratégias de dominação daquelas classes que assistiram à
britânicos. o care, seu principal produto de exportação, fot monopoli- modt:mÜJ.lçíkJ do sistema escravista no Brasil e procuravam nesse processo
zado pelas segui mes firmas: Schiwind Nekmnel, Ed Johsson an Co., Boje de transição sem mudança social, reordenar seus interesses e os níveis de
yCia. Apenas um nome brasileiro, o últtmoda lista. Em 1875, do volume prestígio que poderiam ser ameaçados.
de comércio de toda a América Latma com a Inglaterra 32% das As providências tomadas foram analisadas anteriormente e dão a
exportações cabe ao Brasil Império. Nesse setor,o Brasil ocupa o primeiro medida de como esse bloco de poder escravista manobrou para que a
lugar, com larga diferença em relação aos outros. Os investimentos transição se verificasse de acordo com os seus interesses fundamentais e

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Dialética Radical do Brasil Negro Do Escravismo Pleno ao Escravismo Tardio

daqueles dos quais eram internamente os seus agentes caudatários: o decomposição também ideol6gico em que se encontravam os fazendei-
imperialismo inglês. ros especialmente em São Paulo, na última fase do escravismo.
Da conjugação desses dois interesses, internos e externos- que muitas Era, também, o fim da ética e dos valores senhoriais escravistas,
vezes entravam em choques conjunturais e t6picos- foi criada a política quando os compromissos de classe eram respeitados a pantr de critérios
institucional que produziu a maneira como essa passagem se realizou. rigidamente estabelecidos consuetudinariamente, e a sua substituição no
Dai ser a segunda fase do abolcionismo um movimento simpático escravismo tardio pela ética e os valores do capitalismo, processo que
a grandes grupos de interesses e poder agrário, especialmente em São refletirá toda a modificação nas relações sociais, no processo de trabalho
Paulo. Os dois perigos estavam sob controle. O movimento imigrantista e na hegemonia de outros grupos e frações de poder que já podiam
e a Lei da Terra, de uma lado bloqueavam as grandes sobras da mão- estabelecer um projeto e o seu correspondente discurso, mas, sobretudo,
de-obra nacional e- o mais importante- bloqueavam preventivamente um comportamento que jamais seria aplicado pelos antigos senhores de
a posse da terra pela massa escrava que iria sair, mais dia menos dia, das engenhos, que tinham como palavra empenhada umfio do bigode e jamais
senzalas. O surto imigrantista iria impedir, por outro lado o acesso aceitariam a ruptura desse pacto de classe centenário.
dessa massa ao trabalho em outras atividades, colocando-a como Isto porque no último período do escravismo já funcionava uma
sobrante nesse processo. Os abolicionistas não viram isto e, dentro do nova ética: a ética do capitalismo.
liberalismo formal dominante, não perceberam como esse bloco de Os políticos abolicionistas conseguiram a hegemonia na dinâmica
poder tradicional manobrava as soluções para esses dois problemas da luta de classes e os escravos condicionavam a sua ação à determinações
fundamentais ao posterior desenvolvimento do Brasil de acordo com desses grupos. Alguns deles, como os Caffiues, em São Paulo, o Clube do
os seus interesses. Cupim, em Pernambuco, e as Bastilhas de Carlos de Lacerda, em Campos,
A visão realista de alguns fazendeiros, principalmente em São Paulo, no Estado do Rio de Janeiro, tinham até um discurso radical, pois, se
era de um pragmatismo que refletia uma visão capitalista do mercado de propunham a libertar os escravos por todos os meios. E é ai que está a
trabalho, contratando escravos fugidos de outras fazendas para trabalha- diferença. Na primeira fase da escravidão, até aproximadamente 1850, os
rem como assalariados nas suas. Aquilo que não podia ser sequer escravos não eram libertados por outros grupos politicos porque eram o
imaginado no século XVIII, dentro dos valores escravistas e que feriria sujeito da ação hist6rica. Na segunda fase, esses grupos radicais são os
frontalmente a ética social por quem assim procedesse, tornou-se normal detonadores e controladores dos níveis da ação e os escravos são o objeto
na fase conclusiva do escravismo tardio. E ai podemos ver, por outro lado, dessa ação política libertadora.
a mudança do comportamento do escravo durante as duas fases do A sociedade brasileira havia passado no período que medeia entre o
escravismo. Isto não querdizerqueosescravos não resistissem à escravidão escravismo pkno e o tardio por modificações substanciais, isto levou a que
nessa segunda fase. Mas, a forma na qual se revestia o seu protesto era sofresse um processo de diversificação e de aumento de complexidade na
passiva, não configurava um pensamento de ação radica1 97• divisão interna do trabalho, na composição da classe escrava e no bloco
Qyeremos explicitar, com isto, que nesta altura de decomposição de poder. Os agentes econômicos que dinamizavam esse peiodo já se
econômica e social da escravidão os valores éticos e que estabeleciam as situavam em outros patamaresde ação, quer ideológicos, quer econômicos
normas de comportamento senhorial também se fragmentaram. Esse e demográficos e com isto os mecanismos de mediação impediam que os
comportamento pragmático, individualista e competitivo, que fazia escravos assumissem a sua liderança.
um senhor de escravos contratar negros fugidos de outras fazendas para É verdade que eles abandonavam as cidades e as fazendas. Mas, eram
prestar serviço na sua, é uma negação daqueles valores senhoriais da fundamentalmente fugas e não confrontos. As medidas parlamentares
época do escravismo pleno, quando o espírito de solidariedade e de que se sucederam durante esse último período, por outro lado, produziu
cooperação mútua fazia parte do código de ética dos fazendeiros e uma diversificação de avaliação das mesmas entre os próprios escravos.
senhores de engenho. Era já para usarmos uma expressão comum, um Eram todas elas medidas protetoras e a massa escrava ao analisá-las tinha
"salvNe-quem-pudd' que refletia a decomposição do comportamento opiniões diferentes sobre os seus efeitos. Esta fragmentação ideológica do
senhorial como classe. Jamais um senhor de escravos, na época do pensar escravo irá refletir-se no seu comportamento sociaL Ele não será
escravismo pleno, aceitaria na sua propriedade um negro fugido de mais oquilombola ou o insurreto urbano ou das estradas do século XVIII
outra fazenda como trabalhador. Isto bem demonstra o grau de e início do XIX, mas um agente social que via como perspectiva de futuro

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Dialética Radical do Brasil Negro Do Escravismo Pleno ao Escravismo Tardio

ser um assalariado. É verdade que o quilombola não tinha um projeto c;erealizam os maus presságios daqueles que julgavam impossível realizar-
político elaborado e se contentava com o fato de negar a sua condição de if:a grande transformação sem a dupla perturbação da ordem pública e
escravo, enquanto os segundos já viam o trabalho livre com o qual da produção agrlcola; quer dizer portanto que está achada a solução do
conviviam como um objetivo a ser alcançado. grande problema, porque, sr. presidente, o fato que se dá em um
José Maria dos Santos escreve a este respe1to, "os escravos, antes da município é o mesmo que se há de produzir em toda a província, e
abolição, já haviam adquirido a consciência do trabalhadorlivre, compre- fenômeno que se opera nesta província é o mesmo que se há de operar em
endendo bem o valor econômico e a função social do seu trabalho, não todo o império"99•
resta a menor dúvida (...) Não era mais possível esperar que, mesmo tendo Q!terer ver-se, por isto, a Abolição como uma possível revolução
um prazo fLXado à sua liberdade, ainda quisessem eles trabalhar gratuita- democrático-burguesa no Brasil é no mlnimo ingenuidade, pois nenhu·
mente, quando ao fim da semana viam os colonos a receber na sede da ma das reformas que essa revolução tem por objetivo executar foram feitas
fazenda a paga do seu labor"98• com essa medida. Daí porque o problema da revolução burguesa no Brasil
Assim como economicamente o escravismo se desfazia, desaparecia é um problema polêmico, especialmente porque muitos dos que o
também no nível ideológico, e o pensamento liberal, que tinha embutido abordam tomam como paradigma as revoluções burguesas européias
no seu 1deário o trabalho livre, permeava os cérebros também de alguns como se tivéssemos de repeti-las aqui, na época do imperialismo e no
grupos escravos. Como se pode ver, a transição se realiza na sua totalidade contexto de uma sociedade que tinha até cem anos atrás como forma
e não apenas em alguns níveis. Aquilo que o historiador Décio Freitas fundamental de trabalho a escravidão e as mstitu1çõescorrespondentes.100
chama de processo de desescravu.ação de última etapa da escravidão no A Abolição não mudou qualitativamente a estrutura da sociedade
Brasil recria um novo pensamento tanto na classe possuidora de escravos brasileira. Substituiu o senhor de escravos pelo fazendeiro de café, sendo
como nas áreas de trabalho livre e dos pr6prios escravos. Os suportes do que os últimos tomaram o lugar dos primeiros como seus herdeiros
poder também se fracionam ou diminuem por força da crise econômica diretos e continuadores, cristalizando-se, por outro lado, as oligarquias
na agricultura ou porque eles se chocam com novas estruturas de regionais do Nordeste e Norte também apoiadas no monopólio da terra,
dominação mais modernas. Há nesse processo geral fatos que irão influir como os antigos senhores de escravos.
ainda mais em aspectos particulares como a Guerra do Paraguai, conforme Não podemos negar que o trabalho escravo foi substituído pelo
já vimos. Foi exatamente para resguardar-se de possíveis surpresas que o trabalho livre. Mas as estratégias de dominação antecipadamente
bloco de poder escravista criou mecanismos de defesa capazes de preservá- estabelecidas fizeram com que o anttgo escravo não entrasse sequer como
lo e aos seus interesses fundamentais quando chegasse a conclusão do força secundána na dinâmica desse processo, ficando como borra sem
processo. O que conseguiu com êxito pois manteve incólume a estrutura função expressiVa. O Brasil arcaico preservou os seus instrumentos de
da propnedade fundiária e conseguiu resolver o problema da mãO<le-obra dominação, prestigio e exploração e o moderno foi absorvido pelas forças
importando imigrantes e conservando os ex-escravos como massa margi- dinâmicas do imperialismo que também antecederam à Abolição na sua
nalizada, reserva de segunda categoria do exército industrial. estratégia de dominação.
Atuando concomitantemente no plano ideológico e político, as elites
intelectuais elaboraram e desenvolveram a ideologia do racismo como
arma justificadora dessa estratégica, qualificando o trabalhador nacional
não-branco de um modo geral, e o negro em particular, como incapazes
de enfrentar os desafios da nova etapa de organização do trabalho que se
apresentava com o fim da escravidão.
A conservação das estruturas de poder e domínio econômico
sobreviveram à Abolição e foi expressa por Campos Sales, poucos meses
antes, referindo-se à extinção da escravidão em um munid pio paulista: "O
maior merecimento desse fato, sr. presidente, é que ele deu-se em plena
paz, sem que o trabalho agrkola sofresse sequer uma pequena solução de
continuidade. Isto quer dizer, sr. presidente, que felizmente para nós não
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0/a/~tica Radical do Brasil Negro Do Escravismo Pleno ao Escrsv1smo Tsrd10
Do Escravismo Pleno ao EscraviSmo Tardio
Notas RI BEIRO, Darcy. A Uniumúf.atk /.atinCHlnuriama to desmtiOivimmlo stxial in
Rntista Civilú.ação BriiSI'Itira. RJ, ano I, n!! 3, Julho 1965. QUEIROZ, Maria
1) SILVA. Eduardo. Fntre Lmbit Paijoão, otrcratJOque negocia, in Reis. SII:VA. I u~ênia Pereira de. Dtslnt~olvim~nto das cüncuu soctaiS na Amlrica Latina t
EduiUdo. Nt!JX1a(âo t Conj/lfo -a ttnstinâa nrgra no Brasil tSCTIIfiiSta, Editora nmtn"bui(iio turoplio~; o caso brankiro. in Ciincia e Cultura, vol. 41, no 4, ~bnl de
Companhta das l.etra\ SP, 1989, pp. 13 e sgts. 1989
2} MARX, K.ul. Mislria da FikJsofia. Ed. flama. SP. 1946, p. 112. R) BEAUD, Michel. Hist6ri.a doc.api1411Smo. Editora Br.tSilien~c:. SP, 1987, p. 58.
3) Ver neste sem ido o~ meus livros&kliõesdaSmZIIla, Editora Zumbt,SP, 1959 9) MARX c:scrCYC neste sentido que força de trabalho nem ~cmprc fot um.t
- 4•. Ed. f:ditora Mercado Aberto, Porco Alegre, 1988- O nego: de bom rscratJo maradona. O trabalho nem sempre fot trabalho awL!ri~do, isto é, trabalho littrt.
amaM adadão?, Editora Conqut~ta. RJ, 1977- O pr«<ttallo de cor na liltratura OtStTIIfiO não vendia sua força dctrabalhoao possuidor de escravos,.t\\lm como
dtcordt4 Ed ttora R~enha lJ niversit.ina. SP, 1976- Os quilombos e a rtklião ntua. u boi n::io vende o produto do seu trabalho ao c<~mponô. O C:\cravo é vendido
Editora Brastliensc. SP, 1981, 7'. Edtç.io, 1987 -Brasil: raizes do prottsto ntgro, com sua força de trabalho de uma vez para sempre a seu proprietário. t uma
Editora GlobaL SP, 1983-Qjtilombos- místbtaa ao escrllfJIS1fto, r• Edição, 1987, mercadoria que pode passar das mãos de um proprietário p.1ra as de outro. Fie
3' ed , 1993 - llút6ria do mt.ro brasileiro, Editora Ática. SP, 1989, 2• ed~ 1992 mrsnto é uma mercadoria. mas sua força de trabalho n:io é sua mercadona.
e Soczolot}a do nr&ro brasiltlro, Editora Ática. SP, 1988. MARX. Karl. Trabalho assalariado e Capttal. Editora Vitória, RJ, 1954, p. 22.
4) REX. John. Pro/Jimzas fondamtn141S da /tona socio/6grca. Zahar Editora. RJ, IO) SI MÓES, Carlos. Direilc do Trabalho e modo de produção rapila!ISta. Fdi tora
1972, p. 122. Finlcy, por seu lado, analisando a sociedade política do Mundo Slmbolo, SP, 1979, p. 122.
Antigo, referC-)C c\ divisão por tllUS unprrdsa tntre conflito calmo e conflito violrnto I I) MARX, Karl. O Capi1al üv. 3, vol. 6, p. 890.
numa cvidêncid de que o conflito pode adquirir formas muitas vezes não 12) SIMÓES, Carlos. Op. Cit.. 121.
vislveis c outras vc:7.es evindenciar-se através da violência. FINLEY, M. I., A 13) CARDOSO, Ciro Flamarion. Esrraw ou Camponês?- O protoramptsillato
Polfflca no Mundo AlltlJo. Editora Zahilr, Rio de Janeiro, 1985, p. 125. ntgro nas Amlriras. Editora Bra~ilic:nsc, São P<~ulo, 1987. Sobre o Brastl,
5) Ver neste sentido as comunicações apresentadas ~o Seminário lllttr:zacional espe<;Jalmentc, pp. 114 e sgts.
toiJrt dtrtgualdade racial no Brasil contemporâneo orgaruzado pelo CEDl:PLAR- 14) LEPKOWSKI, Tadeusz. Haiti tomo I, Casa de l.ts Américas, Cuba, 1968.
FACE, UFMG, em Belo I lorizontc, 1990. A tendência de grande parte das 15) OOSfOIÉVSKI, F. Rtt:ordarão da rasa dos mortos. f:d. M,utim, SP, sjd, (2
comunicações vai neste sentido. , vols), 1'~, pp. 34/35.
6) MOURA, Clóvis. Sonologia do ntgro brasilmo, Editora Atica. SP, 1988, pp. 16) I'RANCO, Maria Sylvia de Carvalho. llometiS lima fia ordem urravocrata.
219/250. (3'. Ed.), Ed. Kairos, SP. 1983.
7) No particular, sem que isto signifique coincidência de pensamento dos seus 17) Sobre o problema da distóbuição da terra em Palm.trcs, pod~--sc consultar
autores ~obre o a~~unto ver: MOREI.., Regina L de Morais. A ptsqznsa cimtl.fira Dl-cio rreitas, Duvitiliano Ramos, Clóvis Moura c M. M. de Frcttas. Quando
t StiiS rondt, zonammtos soaais. Editora AchtmêjSocii, RJ. 1979. LAPA, J. R. do estivemos em União dos Palmares e na $(rra da Barriga como um dos
J\mdro~l. f Jist6ria t historiografia no Braril pósM, Editora Paz e Terra, R), 1985. coordenadores do Projeto Arqucol6gaeo Palmares (1992), executado pela
PRADO JR., Caio. Mttodos Smológuor, in Fundamentos, SP, n°s 7/8, Dcz.- Universidade Estadual de lllinois em convêmo com o IBEA - Instituto
Janeiro 1949. RAMOS, Guerreiro. A mhJção socio/6gica, Editora Tempo Brasrleiro de Estudos Africanista.s (primeira fase) juntamente com~ professo-
Brastleiro, RJ, 1965. Idem. lntroJurão Crfti'ca d Soao/o~ BriiSllt~ra, Edttora res Charles Orser Jr. e Pedro Paulo de Abreu Funari, constatamos que
Andes l.tda, RJ, 1957. Gorender,Jacob, Comnta Sociol6gir:as no Brasi~ tn Estudos praticamente não existe nenhum grupo ou seg~nto demogr.~fico c ~tni.co que
Sod4is, n•~ 3/4, dacmbro de 1958. MOURA, Clóvis.~ SlXJologza f!0S14 ~m ques_tão, se pudesscqualificarcomo descendente dos habttantes da an11ga ~cpubltca. Na
Editora Ciências I Iuma nas, SP, 1976. Idem, Soczologza dt la práxis, Ednora S1glo memóna coletiva as referências à República de PalmJres são muno tênues ou
XXl, M6uco, 1976. 1dem, D~tiOrtmos a csfin~ anltS qut tia nor dcd.fre, <eparata da mh icas a nJo ser quando, por iniciativa dos grupos negros do resto do Brasil,
Revista Prindptor, n° 14, SP, 1985. Idem, 2-' Congresso Brasileiro dt Sociologia. tn comemora-seodia20de novembro, datado assasstn.ttode í'umbi. A festa é feita
&fi/s/a BrúStlitnst. SP, n" 41, 1962. CLAR[, Michel T. lnttlettuaiS e unif~tnitárzos prinCipalmente em União dos Palmares. A população local, porém, n::io
na contra-rtfJOiuçiUJ. in Opinião, R], n2 204, outubro 1976. FERNANDES, demonstra possuir nenhum referencial histórico relevdnte do fato. Entre os
Florestan. A soctologia numa tra tk rt'IJolu(ào ton~L Ci~. Editor~ Naciona~ SP, moradores da Serra da Barriga. que hoje se reduzem a algumas famílias, onde
1963, Janni, Octávio: Sociologta da sociologta lall no-amencana. E~uora h~ um monumento a Zumbi erigido pelo Ministêrio da Cultur.l, exiçte uma
Civilização Hrasileir~. RJ, 1971. PINTO, L ACosta. So®fogiaedatnfl()/vmttnto. rcfcrencia mais acentuada, não apenas pelo monumento m.1s especialmente
Ed. Civilização Brasileira, RJ, I963. Idem, Sodologz"a e mudanr.a Social in RrtJisla porque mesmo à superftcie, eles encontram ancf~tos de cerâmica elalx>rados
BrasikiradeCiinrias Sociais, B.llorir.ontc, vol.l, n2 1,Nov.1961. ADUSP.Oiivro pelos palmarinos, como cachimbos e cacos de louça de barro.
ntgro da USP- o controle idtol6gico da unifJtnidadt. Editora Brasiliense SP, 1979. I 8) Sobre comunidades ou bairros negros que poJcm ter tido origem em
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Dialética Radical do Brasil Negro Do Escravismo Pleno ao Escravismo Tardio

quilombos ver: FERRAR!, Alfonso T rui i llo. Pottngi- Encruzilhada no Vale do São 23) As comunidades descendentes de quilombos que participaram desse
Frannsco. Editora Sociologia e Polltica. SP, 1960, SILVA. Maniniano). da. , ncontro foram em número de 36. Compareceram à Comu nidadc de Tapagem,
Sombra dos quilombos. Editora Barão de Itararé, Goiânia, 1974. BAJOCHI, Mari ( .omu nidade Pacoval, Comunidade Matá, Comunidade Boa Vista do T rombc·
de Naz.u;é. Negros de Ctdro - &tudo antropológico de um bairro rural em Goiás. t.t~. Comunidade Jamari, Comunidade Cachoeira Porteira, Comunidade
Ed~tora Atica, SP, 1983. QUE! ROZ, Renato S. Caipiras nrgros no vale do Rikira. S.1curi, Comunidade Batata, Comunidade Varre Vento, Comunidade Abul,
Ed1tora FFLCHjVSP, 1983, MONTEIRO, Anita Maria Queiroz. Castainho: Comunidade Coração de Jesus, Comunidade Bacabal, Comunidade Espírito
etnografia de um bairro rural de negros. Editora Massangana, Recife, 1985. SI LVA. Santo, Comunidade Terra Preta, Comunidade Boa Vista do Cumiã, Com uni·
Carlos Bencx:lito Rodrigues da.A Comunidade nt.gra dt Bomjesus. in Cadernos de Jade São Sebastião do Salgado, Comunidade Serrinha, Comunidade )<tuary,
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quilombo esquteido. in Comio das Artes (suplemento),Jüdo Pessoa. 29.9.1949, O Comunidade Jaraucá, Comunidade Monte Alegre. Comunidade Carimum,
Estado de S. Pmt!o. O Talha do não é mais do que uma longlnqüa favela, Iº set. Comunid.tde Pancad.t, Comunidade Arancuã, ComunidadcSamauffid, Comu-
1957. MOURA. Clóvis. OMimbór. inDO. Leitura, SP, set. 1984. GUSMÃO, nidade: Santa Tcrezinha, Comunidade Palha!, Comunidade Iarumã, Co muni·
Neusa Maria Mendes de.A dimmsiiopolítira da cubura no campo -rmuzluta, muitas dade Arapemii, Comunidade Tripixi c Comunidade Cristo Rei.
lutas (tese de doutorado) mimeografado. GOMES, N úbia Pereira de Magalhães 24) A morte violenta de Pereira Coutinho repercutiu na Metrópole c o Rei
e PEREIRA, Edimilson Almeida. Negras rafns mindras Os Arturos. Editora cogitou de enviar uma expedição urgente para a Colônia a fim de punir os
EDUF-MINC,Juiz de Fora. 1988, BANDEIRA. Maria de Lourdes. Temiório culpados e substitul·lo. fcrnão Álvares, provedor da c.~~ da lndia, em carta
negro em espafO branco. Editora Brasiliense, SP, 1988, FRY, Peter, Mafombura e datada de lO de fevereiro de 1547, revela os planos desse projeto. "O soberano
Caxapura: na tncruZJ7bada da idmtidadt. in Para inglis vtr, Editora Zahar, RJ, lhe escrevera mandando arm.u um navio pMa o 13rasil, para o que entraria em
1982. E.~tc artigo sobre a comunidade negra de Cafundó, São Paulo, foi escrito entendimentos com setenta oficiais, nomeados na carta, destacados par.t terras
com a co-autoria de Carlos Vogt c Maurizio Gnerre. brasileir<~s, e concertar, com o patrão-mor Fern.io Pérez e demais oficiais do
19) ANDRADE, M~nucl Correia de. A Cal1anagrm. EJitora Conquista, R], Armdlém da I ndia, a rota que a cmbarcaçlo dt.-veria seguir. O comandante da
1965. LI_NDOSO, Dlfceu.A utopia armada. Editora Pazc Terra, RJ Idem,Nrgros expedição seria Jorge Pimentel (...) Presumivelmente estas razões que Vasco
papa-mliS e negros acravos na8uerra dos Cabanas. in Andradt, Man uc I Correia de. Fernandes teria desenvolvido nas suas conversações no Paço Real, convenceram
FE~ANOES, Eliane Moury(Orgs).Atualúladedaabofição. Editora Massangana. o Soberano, se não da inexequib1lidade, pelo menos do inadequado c
Rec1fc, 1991, pp. 122/138. FREITAS, Décio. Ca/1anos- Os guerrii/Jeiror do inoportuno do seu projeto. Não se conhecem outras menções à expedição de
Imperador. Editora Graal, RJ, 1978. Jorge Pimentel. F.xatamcntedois.mosdepoisdestacdrta partia do Tejoa armada
20) Documentos dos quilombos de Goiana. pp. 7-31, 1947-1948. in &11sta do de Tomé de Souza, não para substituir o donatário Pereira, mas para criar o
lnstlluto Histórico de Goiana. Goiana. Convém salicntdr que embora existindo governo ger-al do BrasiL" CARNE! RO, Edison.A Cidade do Sah1ador 1549 -uma
agricultura nos quilombos "tais práttcas, entretanto, eram di fíccis a menm que ruonstilllição histÓIÚ4- A amquista da Amazônia. Editora Civilização Brasilci ra,
o mucambo fosse isolado e relativamente estável". SCI IWARTZ, Sruan, S. Rio de Janeiro, 1980. pp. 131/132.
Mocambos. .Qgilombos e Palmam: a resistência escrava no Brasil Colonial Separata 25) Este quilombo a que Varnhagen se refere e cuja destruição foi iniciada em
da Revista &tudos Etonômicos, SP, V. 17, n2 Especia~ 1987, pp. 61-88. Nota p. 1575, por Onofre Pinheiro é o mesmo a que se refere Capistrano de Abreu
75. quando escreve que "só depois de falecido Lourenço da Veig,l, sucessor de Luís
21) As mais importantes informaçõessobreosCalungas devem-seàantrop6loga de Brito c Almeida, foi que, por mandado de Cosme Range~ andou um
Mari de Nazaré Baiochi da Universidade Federal de Goiás que os descobriu em português por nome de Onofre cornos índios das igrejas buscando e espiando
1982 e vem tr~halhando desde esse ano em pesquisa sistemática sobre a os negros de Guiné alevantados, que por esta Bahia andam, e deu ncks, de que:
comunidade. A ela deve-se, inclusive, além do interesse acadêmico, a preocupd· tomou muitos, que se deram depois aos seus senhore~. Conf. 1''rtd1albos dos
ção social com o seu destino, de vez que há um projeto de construção de uma pn·nuirosjesultas, em &lista do lnsrillltO llist6nco, n° 57, parte t~. p. 244. o fato
barragem nos terrenos dos Calungas que se executado iria inundar todas as suas ocorrido no tempo de Luís Brito é narrado assim na mesm.t crônicd (/oc.ciL):
terra~, ~azendo dcsaparec:r a com~ nidade. Con~ra esse desrespeito não apenas "Quando os negros de Gui néalevantados deram em ca~deCristóvãodc Aguiar
ao d1rctto dessa populaçao que a h mora hA ma1s de cem anos, mas à própria c lhe mataram dois homens e lhe roubaram sua fazenda, estes índios
Constituição em vigor, a professora Baiochi vem desenvolvendo um trabalho acompanharam a Cosmc Rangel c a Diogo Dias (Vaz?) da Veig.t, que foram a
incessante para que não se cometa mais uma arbitrariedade contra essa eles, c o destruír~m. matando alguns tomando outros, que deram a seus
populaç.io negra. senhores." Este é o mesmo quilombo a que se refere Rogcr Bastide, consideran-
22) SALLES, Vicente. O negro no Pará. Editora Fundação Getúlio Vargas/ do-o o pri mciro de que se tem notícias, atribuindo sua destruição a Luís Brito
Universidade Federdl do Pará, Rio de Janeiro, 1971 de: Almeida, em 1575, afirmando que "o primeiro qu1lombo quase à época de

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Ola/6t1ca Radical do Brasil Nogro Do Escravismo Pleno ao Escrav1smo Tardio

inicio do tráfico negreiro, em 1575, c localiza-se na Bahia. Foi destruido por , 1,tr,ultJo no Drasil in Economia brasl1tira: uma visão hisL6dca. Rio de Janeiro, Ed.
Luís Brito de Almeida." BASTI DE, Roger.As rrligi&s ajrifanas no Brasi~ 2 vols, 1 tmpus Ltda, 1980.) . , .
São Paulo Editor.t Pioneira, 1971, vol I, p. 132. O que não é verdade pois esse 1 11 mcsmd corrente de cientistas sociais que estabelece uma VIda uttl do escravo
111,.10 r do que a do ,\lual operário, tenta, também, romantiZJr a fam!l~a c~ ravo~
governador1:eral não prosscgutu na empre\a, conforme Yarnhagen. Somente
foi douuído por Cosmc R..tngel c Diogo Di.u da Veiga, apó~ a morte de Luh l (UC teria sido um modelo quase puritano dentro dos quadr~ df famdtd nuclear
Brito de Almeida. ~que Bastide fez essa afirmaçlo baseado em Handelmann rc;.: nnhecida pelo casamento rdigioso (c~tólic_o). No scnt1do de repor. o
que assim se expressa ~bre o fato: "O primc!iro exemplo histórico conhecido problema dentro dos ,cus devidos ter~ h1st6r!cos, a professora Man~ ~ul7.a
foi na B.thia, em 1575, destruído pc:lo govcrnador1:eral d.tli Luís de Brito e MHrcllio escreve que "quando se analisa as sén~ _de r~str?~ paroq~1~1s de
Almctda" (con( HAI Of.IMANN, H.; Hist6nàdo Brastl Editora Melhoramen- b.ui1.ado de c:scr.tvos, tmprcss1ona os devad1sstmos md1ces de cnança\
tos, São Paulo, 1978, voL I, p. 307). O quilombo, no entanto, somente foi dcgh i m.H, com o único compneci mento da mk e a declar.tçdü de ~rem filhas
destruído definitivamcntedepois do goV~:rnodc Luís de Brito e Almeida. Éque de p.ti incógnito. o, ilegítimos escravo~ na segunda me!ade do século_XVlll
ele foi considerado destruído no tt:mpo desse go\ernador-geral, mas continuou rcproentavam 88,6% dos nascimentos cativos na par~u1a urb.tna d~ 5.io Josê
existindo, sendo efetivo~mente destruído após .1 sua morte. tio Rio de Jo~nciro; j.\ na paróquia rural de Jacarep.lgu.t, com grande~ f.m:ndiiS
26) GARCIA. Rodolfo. Fnsaw solm a hist6na polfttat t adntimstratit1as do Brasil lle cana~c-açúcar e fortes escravario~s, a ilegitimid.1dc e\crava era menor, de
(1500-1810) Editora José Olímp10, RJ. 1956, p. 74. '\9 ~o mas mesmo assim muito elevada. Na cidade de Salv.1dor, na Bah1t1, no
27) GANDAVO, Pedro de M.1galhks. /ftJt6ria da Provlnna dt Santa Cruze l~uto'p,mado, os escravos que lá nasceram quase nd sua totalidade (9fi(Vo), eram
Tratado da ltrra do Brasil Editora Obelisco, SP. 1964. p. 34. Quando Gandavo frutos de relações e:xtramatrimoniai~.
fal.1 em escravos est.í se referindo a I ndios cscr.1viZJdos. )\tOl: reflexo do pa.tucno número de escravos que chegaram a ~casar. Em 1804,
28) GANDAVO, Pedro de Mag.~lh;ies, Op. Cit. p. 35. por exemplo, numd paróquia de Ouro Preto, dos 1.614 hilhltantc.~ c.'cravm,
29) O problema da média devida do escravo est~ sendo revisto por historiadores .1pcnas 12 eram casados. A populaçlo da cidade de S.'io l'<!ulo no a no de 1798
e sociólogos brasilianistas ou anexos, que procuram maquilar o sistema ttue contava com 3.023 escravos, mo~trava 360 (11 ,9o/n) casado~ c 33 (l,lo/o)
escravista no Brasil c apresentá-lo como superior ao trab,llhauor livre no modo viúvos. E~ tas proporções v.uiavam de região pd r,• região e conforme a época, mas
de prod ução capitalista, repetição aliás, do pensamento dos antiabolicionistas ~cmpre exibindo uma dimin uta minoria escrava que chegava ao sacramento do
dos Estados Unidos que faziam a comparação entre a situação dos escr.tvos matrimônio, que legalizava as uniões conjugais. .
naquele país c a dos trdbalhadore~ europcuç. Fato que se repetiu no Bra~il, na Assim, as taxas de nupcialidadc na população escrava foram sempre batXrlS, ~s
década de trintcl com a obra de Gilberto rreyre. A mais rddical rcvis.io neste mais baixas de todas as categorias soc1ais; entre 0,5 e 3 escravos em ct~da md
sentido dtuo~lmente, ê: a preconizada por Ruben Slancs e Pedro Carvalho de: habitantes caYvanHe no pais, ao contr.\rio da popul.lçJo livre onde pdra cada
Mello que chegam t1 estimar umd opcr.1nça de vida pard o escrdVO brc~sileiro mil habitantes 7 a 10 se casavam(...) Pelas evidências que temos encontrad~, a
entre 28 e 32 anos, o que para elo "superc~ri.1 em muito as estim<~tivas de 7 a 15 maior pane dos escravos c escravas tinha como modelo ide.1l a çcr aungtdo
.1nos de vida produtiva que se Yt.\:m em narrativas de VIajantes e que vêm sendo aquele do casamento na Igreja e da famíli.1 ~nogârnic_a e ot.\vd. .
repetidil~ 'iem maior crítica n.t literatura 'iCCundária sobre a cscravid.:io." Não foram as condiçõo de vida e o~s inúmeras dtfi~~ldades Interpostas na VIda. do
precisamos de argumentos mais convinccnt~") para mostrar que essa tese é escravo que o lev.1ram a uma vida ~ual e Curuhar delíVInCUlddd de \Ua\ ra•.~~~
complemente ideológica (no ~u mau ~ntido) e nada tem a Vl:r com a V~:Cddde a frio na~. e afa\tada dos padrões propo~tos pel.l I!U'eJa e pelo F~ta~o no B~.ml •
histórico-socilológica da escravid.:io bras ilei ra. f:m primeiro lugar se considerar- MARciUO. Maria Lula; Padróts da f•mlli.l Escraw. in TrafJtSS~.t- RttllstJ do
mos o ritmo de entrada de africanos no Bu~il, o coeficiente de sobrevivência Migranu, Ano IV, n° 9, Janeiro/abril 91, p. 11~ . . ..
apresentado por esses autores mais os na~Cimentos natural\ terlamos uma 30) Sobre a\ importações brasil.cms nesse per1~0 e o ba1xo _rOOer aqumu_vo
superpopulação negro-escrava e como decorrência o seu aumento progressivo dos brasileiros dessa época, V•rg•IJO Noya Pmto escreve: os monopólios
no conjunto da populo~çJo brasileira. entregues l Companhia Geral do Comércio do Bra.\il mostram que as
Mas, ao contr.\rio, ela somente pode equ1librar·se demogsaficamentc em principaiS importações brasileiras da Metrópole, na scgund~ metade do ~u~o
conseqüêncta do tr.lfico internacional. O problema da radonalidadt ou XVII, ero~m constituldas de gêneros ali mentlc•os.c tec1dos. Aqu~la comi?" nhta
immonalidadt do SIStema escrt~VIStil é outro a~pecto que esses histonadores foi entregue o estanque dos vinhos, farinhas, azcttcs e b.tcalh;~u. E conttnua o
discutem a parti r do conceito wcberiano de radonalidadt dentro dos valores do mesmo autor: A Mtm6ria escrtta em 1708 pelo Cônsul francês, em L•s~,
capitalismo, sem verem que cada modo de produc,'iio tem a sua racionalidade transmite com mais precisão quais os tecidos e demais n:tercadori~s de ma1or
específica assim como têm as suas leis de superpopulação. Mas, pdtd esses comércio com o Brasil! (...) Fazendas comuns de l.:i, tec1dos de hnho que se
autores constatar-se a precária vida útil do escravo é fazer "literatura secundá· extraem de Portugal; baeta, sarja, outras espécies de tecidos, de l:i, meias ~e seda
ria". (SLENES, Robert e MELLO, Pedro Carvalho de. Análist tcon6mica da c chapl:us trazidos da Inglaterra e da llolanda; panos brancos denommados
108 109
Dialética Radical do Brasl1 Negro Do EscraVIsmo Pleno ao Escravismo Tardio

panicos, panos crus chamados aniagem ~rega, fc.:chos de espingarda e cobre ht.l\ilciro e os seus limites na ordem social escravista é A conscilnda libtral nos
fu~dido próprios para os engenhos de açúcar que se fiiZern vir de ll;~mburgo; m116rdios do lmpErio de Emília Vioui da Cost.t, in Da mOilarq~tia d Rtpúblira-
tec1dos da Brdanha de menor largura, droguetcs, sarjds c brocados matizados .. wmrtttos decisn'os. Ed. Brasilieme, 4'. ed. 1987, pp. 119-138. Ver também:
de todas as cores que se extraem da Prança; tab1 deseda,lafetás,linha pari! coser NrDER, Gislenc. Os compromissos ronstr1111dom do libtralismo no Brasil Ed.
e papel que se faz vir da Itália. i\l hi.tmé/Socii, Rio de JaneirO, 1979. passim.
Conclui que "este rol de artigos põe em evidência a limitação do mercado ih) GOMES, Francisco Magalhães, Nistóna da Sidrrurglll 110 Brasil. Editora
brasileiro no inicio do século XVIII,ligada nàosomentc à cscassczda população, lt.111aia. B. llonzonte, 1983, p. 129.
mas também ao restrito poder aquisitivo dos colonos" PINTO, Virgllio Noya; •more o problema da metalurgia explorada pdo trabalho escravo e a participa-
O or1ro brasi!tiro to romlrcio angloponuguls. Cia. Editora NacionaljMcc, São ç .io de estra ngci ros, escreve Francisco Magal hãcs Gomes: "o escravo negro ficava
Paulo, 1979, pp. 223/224). Para o mesmo autor essa situação somente ~·ntão sendo a principal fonte de mã<Kie-{)bra, mesmo ~pecializada. Tornou-
desap<~recerá com o advento do ouro. 'c um ponto primordial para desenvolver as fàbricas de ferro. E o empreendi-
31) AZEVEDO,João Lúcio de. Hist6rúlde Port11gul Editora Portucalcnse. Apud. mento no gênero que maior êxito obteve na Provi ncia de Minas Gerais, até o
SlMONSEN, Roben C.llist6riaEamômica do Brasil{1500-!820). 2 tomos, São .1dvcnto da nova era siderúrgica, foi a fãbrica de João Monlc.:vade. A razão
Paulo, 1937, 12• p. 168. principal do seu sucesso como industrial foi que, ele mesmo um engenheiro da
32) ANTONIL, André João. Cultura t opullncitJ do Brasil. L1vraria Progresso l~ola Politécnica de Paris e membro do corpo de engenheiros de minas da
Editora, Salvador, 1950, pp. 17/18. f rança, treinava seus escravos para o tra balho nas suas forjas catal;is. A fábrica
33) CARDOSO, Ciro Flamarion S.A A.fro-América:atscravidão no Novo Mundo. t.leMonlevade foi o único cmpreendimentoverdadeiramentedurável economi-
Ed. Br~iliensc:, São Paulo, 1982. p. 24. c.:amentc, dentro t.le uma escala maior, que existiu no Brasil. Seu organizador e
34) ANDRADE, Manuel Correia de. OfXJVOeopoder. Ed. Oficina de Livros, B. proprietário fez com sua indústria como &sina la mo& autore3 que I ralaram do
llorizonte, I 991, p. 52. Fernando A. Novais, além dos gastos de investimentos assunto, urna razoável fortuna. O outro empreendimento que o substituiu até
dos dois lados na empresa coloni.1l a induz outros elementm que impunham as proximidades do fim do s&ulo XIX, que foi a fábrica de lpanerna, s6
o trabalho compulsório, especialmente escravo para que ela fosse lucrativa: "A consc.:-guiu essa sobrevivência de mais de oito decênios à custa de subsidias
colonização da época mercantilista conforma-se no sentido profundo inscrito oficiais, pois era propriedade do governo."
nos impulsos da expansão, ou seja, é o elemento mercantilista - quer dizer 37) Ver nesse sentido: LEITE, Glacyra Lazzari. Pernamb11co 1817, estrutura t
mercant ii-<Scravista- que comanda todo o movimento colonizador. Produzir comportamentos soriais. Editora Massangana, Recife:, 1988.
para o mercado europeu nos quadros do comércio colonial tendentes a 38) Ver sobre o assunto: BONIFÁCIO, José. Representação Apmmtada à
promover a acumulação primitiva do capilal nas economia~ européias exitna Assembléia Geral úgislativa do lmpbio do Brasil sobrt a tSITa?Jatura. Pans,
formas compulsórias de trabalho, pois t.lo contráno, ou nJo se prodwia p:ra Tipografia de Firmin Oidot, MDCCCXXV. SOUZA, Octavio Tarqu!nio de.
o mercado europeu (os colonos povoadores desenvolveriam uma economia josl Bonifácio - 1763-1838. Editora José Ollmpio, R. Janeiro, 1945, pa.uim.
voltada para o próprio consumo), ou se imaginasse uma produção exportadora COST1\, Emília Viotti da. José Bonifácio: miro e história. in Da Monarq111a d
organizada por empresários que assalariassem o trabalho, os custos da produção República- momentos decisi110s. Editora 13rasilicnsc., SP. 4~. Ed. pp. 55/118.
serem tais que impediriam a exploração colonldl, e pois <1 funçãod.t colonização 39) RODRIGUES, José Honório. !ndtpuuünaa: rtVo!ução e rontra-rtvoluç.ão -
no desenvolvimento do capitalismo europeu (os salários do~ produtores diretos &or1omia e sociedadt. Livraria Francisco Alves. Editora, Rio de Janeiro 1975, 5
tinham de ser de tal nlvel que compensas~cm a alternativa t.le eles se tornarem vols, 2<l, p. 115.
produtores autônomos de sua subsistência evadindo-se do salariato: como 40) Pelo contrário_ O que se viu foi um verdadeiro boom de exportação e a
poderiam, então, funcionar os mecanismos do exrl11sit'o comercial?). consolidação política dos senhores de es<.:ravo~ que pa5saram a comandar as
Por outro lado, a produção colomal exportadora, no volume e no ritmo resoluções políticas mais relevantes c consolidar as relações escravistas do recém-
definido pelos mercados europeus, at cndem pois às necessidades do desenvol- nascido Império brasileiro.
vimento capitalista se podia ajustar ao sistema colonial organizando-se em 41) Este documento que se encontra no Arquivo Público do Estado do Maranhão
produção em larga ~cala, o que pressupunha amplos investimentos iniciais; nos foi fomecido pela pesquisadora Mundinha Araújo, nos proporcionando a
com isto ficava também excluida a possibilidade de uma produção organizada possibilidade de divulgá-lo. A essa pesquis.1dora os nosso,s agrat.lecimcmos.
à base de pequenos proprietários autônomos, que prot.luzissem sua subsistência, 42) Sobre este assumo escreve S. N. Eísen~tadt: "a modernização da Europa
exportando o pequeno excedente." NOVAIS, /oernando A. F.rtrz1tura e dinâmica ocidental e seus rebento5 diretos- Estados Unidos e os domínios da Língua
do antt~ sistema colonial Editora Brasiliense, SP, 1986, pp. 85/86). inglesa- foram os únicos casos de modernização autóctone e autogerada, isto
35) Ver PRADO JR. Caio. História EconômiCil do Brasil Editora Brasiliense, SP. é, modernização que nasceu principalmente do desenvolvimento interno da
21 edição, s/d. pp. 131-213. A mais lúcida e penetrante análise do liberalismo própria sociedade.
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Dlaldtlca Radical do Brasil Negro Do Escravismo Pleno ao Escravismo Tardio

Todos os casos posteriores de modernização ocorreram numa situaçãodiferen- 11 ~ m 1Ohoras, espere estação". As palavras "f.1 rdo" c" rolo de fll mo" designavam
~e, n~ q~al o •mpuJso para a modernização decorreu em larga medida de c•n )Wr3l escravos rugidos, que deveriam ser protegidos pelos "Caifases".
tnAu~nctas externas, mercê do impacto de novos sistemas internacionais ~ I) 11 MA, I leitor Ferreira. Histúrias po!itico~conómica e industrial do Bra.ril. Cia
polítJcos, ~~~ô_micos e intelectuais que se desenvolveram na esteira das l1duorJ Nacional, SP, 1976 (2' Ed. atualizada).
~udan~s ~ruc1a1~ da Europa ~idental (...) nosas sociedades o nívd geral de ~2) ParJ uma análise do pensamento dos agricultores expresso nas atas do
difercnoaç.to soc1al e desenvolvimento tecnológico era muito mais baixo do (':nngresso Agrícola de 1878 ver: CongressoAgríro/a., Editora l'undação Casa de
que na EuiOpa ocidental. A pirâmide social tinha o vértice mais fechado. A l~u1 Bdrbosa, RJ, 1988, bem como a introdução dcJo~é MurilodcCarvalho ao
ampla based.ocampesinato e.r~ maior e mais distanciada dos outros grupos. Os tlocumento. Ver tJmbém: EISEMI3ERG, Pctl'r L. A 11tmtalidaJc dosfoundtiros
grupos rura1s, urbanos, relig10sos ou profissionais mais autônomos eram "" Congmso/lgrfrola de 1878. in LAPA, José Roberto do Amaral (org.) Modos de
meno~ num~rosos e mais fracos, os governantes mais autocráticos. Qyanto mais produçiro e realida& !mui/tira, Editora Vozes, P~tr6polis, 1980, pp. 167-194-
nos .d1stanuamos para leste, tanto mais a Jlobreza se torna uma nobreza de Sobre a repercussão cesse congresso no Nordeste e o comportamento dos
serVJço, com pequena aut.onornia de s/4/us ou bases i ndepcndentes de propri- \Cnhores de tcrrds locais ver: MILET,I knrique Augusto. A lavortra da cana.Je-
?e
ed?de terras; ta.nt~ maJs fechado o vértice da pirâmide social; tanto menos •l(ltrar. Editora Massangana, Recife, 1989 especialmente o trabdlhocomparativo
? ~~b1to das tnslltu1ções urbanas independentes; tanto maior a importância que o autor faz entre o congresso do Sul e o que foi realizado no Nordeste. O
truc~al do estado de desenvolvimento e da mudança tecnológica c econômica." problcm:t do crédito agricola continua sendo a preocupação dos agricultores,
EISENTADT, S. N. ModemizacàJJ: proltstou nuulanç4. Ed. 7.a har, R. d cJaneiro, rn.tis do que o da m.i<Hie-obra. No particular, ver os artigos de Henrique
1969, pp. 99/100. Augusto Milet que na questão da mã<Hie-obra afora a oposição sistcr:ruitica à
43) Os d.ados ~onôrnicos do presente capítulo foram extraídos basicamente 1mportaç-ão de chineses, destaca a falta de crédito na ldvoura como um dos
~o~ scgUJnte~ ~IVros: MANCHESfER, Alan K. Prtmlinênria inglua no Brasil principais obstáculos ao seu desenvolvimento.
Ed1tora. Bras1ltense, SP. 1973. GRAHAN, Richard. Grã-Rretanha e 0 infcio da 52) Citado CARDOSO, por Vicente Licínio. A nr.1rgrm da biJ"Iória do Brasil. Cia
modem_tza{4o do Brasr1 Editora Brasiliense, SP, 1973. MAUÁ, Visconde de. Fditora Nacional. SP, 1938.
A!uo~IOgrafV: (Prefácio e anotações de Claúdio Ganns), Editora Zdio Valvcrde 53) MELLO, Zl:lid M.1ria Cardoso dc.Aittamorfom t!tt nipttZil -São Pau/o,l845-
Lm~ro ~duor S~. 1942- LUZ, Lucia Vilela da. A luta pda i!rdttstrializapio no 1895. Editora Hucitec, Prefeitura do Munacípio de S..io Paulo/Secretaria
Bras1~ Edttora Dtf~s.io Européia do Livro, SP. 1961. Bf:SOUCfiET, Lidia. Municipal de Cultura, SP, 1985, p. 110. Ver no particuldf todo o capítulo "O
M~ua ~~~~tempo. Edllora Nova Fronteira, RJ, 1978. SODRÚ, Nelson Werneck. legado dos inventários", 6}.100 e "A riqueu cativd" pp. 105 c sgts.
Hrstfma da. Bur8~rsia_ bra.ril~ra.. Editora <;=ivilização Brasileira, RJ, 1964. PRA· Ver também MEl LO,João Cardoso de. Ocapiralismot:wlio, Editora Brasiliense,
DO JR. Cru o. Hrstóna EaJnonur4do Brastl Editora Brasilicnse,SP.s/d. Q!Jando SP. 11987 (7A ediç-ão) passim.
no.\ baseamos em outrils fontes cl.1~ serão referidas em notas complementares. 54) MELLO, Afonso de Toledo Bandeira de. Polltica Conurrial do Brasil. s/
44) .~ BBY, Do~glas Cole. Trabalho escravo e rapeia/ esltmgeiro no Brasil. Editora editora, RJ, 1933, pp. 56 c sgts.
ltauata, B. l lonzonte, 1984, p. 3I. 55) Sobre o assunto assim se expressa o histo riat.lor Nelson Werneck Sodré com
45) REISEMBERG, Peter L Modernizar® smt mudanca. A indlrstriaAJ'IIcareira a sua autoridade incontestável: "Começaram a surgir no Br.tsil, as condições
em Pernami'!ICIJ 1840-1910. Rio de Janeiro- Campinas, Paze Terra, 1977, p. 17 necessárias à alteração da política de LOtai submissão ao predomínio britânico.
46} SODRÉ, Nelson Werneck, Op. Cit. ou em outros termos, a política de defesa da renda nacional, pelo estabelecimen-
47) C~LMON, Pedro. História do Bras1l Editora José Olimpio, R. J., 1959, 6 to de normas que atenuariam a sua transferência para o exterior. A~ providên·
vols, 5 , p. 1699. cias tllm inkio quando, em l843 expira o prazo do acordo firmado em 1810
48) Op. Cit. pc:la Corte de D.João,ecujocumprimento for.1 mnsfcridoà fasedaautonomia.
49) VILELA, Carneiro. O Cbtb do Cupim. Revista do Instituto Histórico e A dir.cussão a respeito tem sido in<tdcquadamt>nte confundida com a discussão
Gcogclfico Pernambucano, Recife, nll27, pp. 417427. de outro problema de que o Brasil e a I ngl.llnra eram p.utcs, o do uá!ico. Nada
50) Apu? A~Ey~oo. C?élia Maria Marti nho de. Onda negra medo branco - 0 tem em comum, cntrt·tanto, bem anali\Jll.t) as coisas, c nos limites em que
nrgrono.mUJ!,man?daseluudoslculoXIX. Editora Paze Terra. RJ, 1987, pp. 206/ acontecimentos dessa ordem c da mc~ma fasl.' pod.:rn ser divorciados um do
207. VeJ3·se também: Tekgramas solm rNJOita de acrauos em jacart~ 29 dr a,gosto outro. A iniciJtiva brit.1nica, de 1843, de altera~ os t.lircitos de entrad,t dos
dt ~~~?.· (2 caixas) Arquivo do Estado SP (1874-1896) Para constatarmos a produtos oriundas dos países benefici.1dos pelo c<cr>l\·ismo n:io ;~penas relo~ci­
amb1gu1dad~ ~o ~soda tecnologia no contexto escravista, queremos assinalar onava aqudes problt:mdscomo deixava claro o reOexo, nJ luta contra o tráfico,
que os abotictOntstas também se comunicavam pelo telégrafo através de dos aspectos não éticos ligados ã questão de concorrência: .tdmitiam os
mensagen~ cifradas. Para se auxiliar na fuga ou dar assistência a um grupo de britânicos que o e~cravismo permitia a determinados países vantagens sobre o
negros fug1dos os abolicionistas radicais telegrafavam: "Encomenda segue hoje que produziam sob ourras condições de trabalho. Deviam os produtos desses
112 113
Dla/6/ica Radical do Brasil Nogro Do Escravismo Plono ao Escravismo TBidlo

palscs, pois, sofrer uma sobrecarga que dlcançou o açúcar brasileiro, que pagarit1 c:wnômico, encontra nas fclZendas recursos suficientes p.~ra sobr~..vivc:r, em dots
63 shillingr de direitos, ao passo que o açúcar das colôni.ts britânicas pagaria ou três anos, juntar um pequeno capital. Durante esçe tempo, ele aprcnd~.: a
a pena~ 43 sdullmgt Só nesse ponto de p!Ttidd os dois problema~ se confundem. lí ngua,acli mata~ce acostuma-se ao sistema de trabalhoagricola próprio ao P.1.ís.
Porque: no ano seguinte, separando ).i um do outro, o mJnistro AJve!.\ Branco M a~. apcYr de tod.1s .1~ v.1ntagen~ que fa1.em da colonização particul.lr um.1
apn:scntdVd o projeto que: ficaria conhecido com o seu nome. &-gundo cs~c forma inicial de ad.1ptaç.io muito favorlvel ao ruropeu que chega sem capital.
projeto, a t.ni(o~ geral ad tta/ortm de 15% de Bernardo Pereira de V.t\toncclos ele \6 <~t.CÍld tal ~itu.!ç.io como uma tramiçdo que po'sa .1dquirir uma
scrü ~u~tituída por longa lista di<criminat6rio~ que, ft~ndada numa clc:vo~çdo propriedade.
gcr.ll dos direitos a médtas de 30 a40%,atingia em certos CdSOS a 6()qlo c m.ti~. Aqueles que encaram d~ forma a condição dos colonO) não deveriam se
Alve\ Branco mencionava as ncc~~td.tde) fi~ais como moti1.0 csçencio~l d.t surpreender quando aconlt.'Ce um fato como ~çe que foi comentado pda
ckv.u,Jo d.u tarifas que: propunha. Mas nJo antes de <c referir: As manufdt ura' Imprensa (italianos que tinham «onomLr.~do ornas comidcr.ívci\ numa d.u
de: algod.io da I ngl.uerra, cu.ia importaç.io no Br.uil monta anualmente a perto fvcndas do Sr. Antônio Prado (uum para o Rio da Prata. Mais ldrde,
de milh;to e mciodc: libras esterlinas, tcr.iode paguoque a Grd-Brctanha c.urcga Jc.scontcntc.s c arruinddo~,c1lguns voltar.1m p.~ra a referida propria.J.-.dc). A\\Ím,
em portos no nos~.tçúear. Aprov;~da a Ta ri (a AJv~ Br.~nco, em 1844, o governo tmigrantes estabelecidos na Província de São P.1ulo, em condiçoo prósperas,
bnt.lnico reçpondeu com o Bi/1 Abrrdttn. no ano seguinte, estabcl«endo preferiram .1s tnccrta..as da nova adapução em outro país que o~ chamava a
continuidade na confusão que se estabcl«cu entre o tr.ílico ncgretro c a luta continuar um trabalho no Bra\il em terraç qut niio lhe~ pertenciam.
inícít~da pelo Brasil para atenudr d cvc~~o de rendd nacional". SODRÉ, Nel~n Niio acrc'dito que nenhum outro motivo po.ssa ter levado esses colonos a
Wernc'Ck. llist6ria da Burgutsia BrtJStltira, Editora Civilizaç.io Brdsileir.t, RJ, c~olher o Rio da Pr.tla, d niio ser o fato de nJo lerem podido tornar~c pequenos
1964, pp. 126/127. Ainda sobre a~ conexões entre o 8111 Abudun c a~ longas proprietário~ em conuiçõcs próspcr.tS". Antonio Prado um imigrantista
discuçsõcs diplomáticas entre o Bra~il e a lngl.uerra no scnttdo de serem convicto foi eleito vice-presidente dd Açsoci,tção Auxtli.1dora da Coloniz,tção
estabelecidas tarifa~ que f.lvOr«es~em o l3ra~il no mercado açucareiro interna- em 1871. Em 1886 Martinico Pr.1do anunciou .1 fundação da Sociedade
cional em relação às medidas protecioni.\la5 inglesas a favor da produção Protetora da lmigraçJo. O interesse de Antônio Prado era niio apenas trazer
coloni.tl e~pecialmcntc da~ f ndia~ Ocidcmai~ ver o livro: BETIIEU.. I.estie. A imigrJmcs, mas f.tzê-los, também, proprietários de terras. Ver no particular:
a/.to/,{}]o do tráfico detscrafJOS no Brasi~ Editora Exprc.\são c Cu h ura/Edusp, SP, MOURA, Clóvis. Soriolo.gia do Nrgro B1usiltiro, r:ditora Ática, SP, 1988, pp. 86
1976, especialmente os capítulos: "Tráfico de escr.wos, cscrava1ur.1 e impostos c sgts.
<~çucarcirm" c" A lct Bill Abcrdccn de 1845", pp. 207/254. Acreditamos ser esta 66) EINSEBERG, Pctcr L: Op. Cu.
a obra mais U1..1alh.1dd c intcrpret.ttiv.trnc:nte correto~ sobre o a~\unlo. 67) AII.VIM, 7ulcikd M f. 8rt1fla Gnrtr. Editora Bro~çtlicn~c,SP, 2•c-d. 1989, pp.
56) UMA. I leitor ferreira, Op. Cit. 168/169.
57) ABREU, Jmne de. EtiOIM(JO da Polítira AlfondrgJria BrtJSi!tira, in N01/âas 68)ANDRADE. M.1nudCorreia de.OP0t10toPuda, ülitord0ficino~dc Livro~
dr lfojt. SP, 5 de j.tnciro de 1957. Bll, 1991.
58) COSfA, Emíli.1 Vioui dd. Políflca tk tmtJS no Brasil r nos Es1ados Unidos in 69) COSTA. &tudo sobre o Sistcm.1 &-srnaridl, Imprcnsa Uni Vl..'l'~it.í ria, Rcri fe,
Da /HtmllT;JIIil d Rtpú/1/tra, Editor.-. Bra"ltcme, SP, 4• a.l., 1987, p. 141. 1965, pp. 177 sgts.
59) COSTA. f: mil ia Vioui d.1, Op. Cit. 70) PORTO, Cmta. Op. Cit.
60) Idem, Op. Cit. 71) PORTO, Costa. Op. Cit.
61) CERQUEIRA, José Lu, ia no. O nrsro ta awh(Jo, in ANDRADE, Manuel 72) GUIMARÃES, Albc.:rto Pils<iOs.Qu.ztro slcu!OJ Jt I.Jtifúndío, r:d. Fulgor, SP. p.
Corraa de e f.ERNANOES, Eli.1ne Moury (Org~.) Atualidadt & A/10/t{iio, 19
Editora M.-.çs.-.ngaru, Recife, 1991, pp. 23 c sgts. 73) Op. Cit.
62) Loc. Cit. 74) Op Cit
63) CO UTY, Louts. O Brasil mt 1884- I:s!JO(OS soa'ológicos. Editora da Fundaçdo 75) BAS lOS, I .1varcs. Os malts do prrsmttt as trptran(llS futuro. Cia. E<.htora
da Casa de Rut Barbosd, RJ, Brd~ílid 1984, pp. 81 sq:ts. Nacional SP, 1976, p. 70.
64) Op. C it. 76) VEIGA. Gl.\u<.io. O dtstmbarqut dt Serin!Mim, in Rrrtúta do lnstiluto
65) Op. Cit.- A carta de Antônio Prddo a que o dutor se refere é a seguinte: A rtf1U0!6gico, li ist6rico e Geográfico Per na mbucano, Reei fc, n°47, pp. 2 17/328,
"Muitaç vczc.~. nas colunas deste JOrnAl, mantlc\lct a opinião que .1 colonização 1975.
j
particular, tal como é feita em nossa provlncia, não satisfaz os dc.çejos do 77) Loc. Cit.
imigrante agricultor, que procura tornar-~e proprictJrio da terra valorizada pelo 78) l.oc. Cit.
SC\l trab.llho. 79) I IABSBURGO, Maximiliano de. Bahia /860. Esbo(OS de tlia!,(m, Editora
Se o imigrante que se estabelece como colono particular é trabalhador c Tempo Br.t~ileiro, RJ, 1982, pp. 153/154.
114 115
OllJMtlca Radical do 8ras11 Negro Do ESCIOVIS/'00 Pleno ao Escr:JVIS/'00 Tardio

80) SODRt:., Nelson Werncclc, Op. Cit. tunl...:m pelo ingresso de libertos e de escnvos, em grande núm<.:ro: a maio~a
81) Citado por Nelson Werneck Sodré, Op. Cit. li• t rop.1 rt.-gular que combateu no exterior era constituíd.t por negros; depo1s
82) CHIAVENATI O, Julio José. Gmodd10 Anunrano: a Guerra do Para,guat; ok rarrcgar o f.udo do trab.tlho, carrcg;tri,tm o fardo da guerra. Ma~ voh~nam
Pditora Brasilien~c, SP, 6'. ed., 1979. 1u país com novo espírito, com capacidade muito mais o~mpl.t de analLsar a
83) CIIIAVENA'ITO, Júlio José, Op. Cit. MX i l-Jade escravim bra~1leira."
84) Documento tr.umrito por SENA, Marina de Avellar. Compra t Vtnda de Jlnl•ma MiiLtar do 8r11.t1~ Editora Civih1~1çlo Bwilcira, RJ, 1965, p. 143.
f.smn10f (em Minas Gtrau), s/ editora, Belo llorizonte, 1977, p. 39. 86) VERSEN, Max von. 1/istória da Gurrra do Parusuai, Editora ho~tiaiajUSP,
Além da compu pelo governo de esero~vos para serem mcorporados como 197t.., p. I 00 - Esta SllU.lÇÀO de poder convocdr um escravo para ~rem em seu
volunt~nos, havia um processo de 1ndução e momo coação por parte do lu~H levou a um nível de corrupçâo imprevisível c fo1 assim dc:scnto por uma
governo junto aos senhores de escravos para que fizessem doaçõo. to que se tC\Iemunha da época: "Começou o rccrulamentode<iOrdenadocom osseu_s tons
deduz dessa circul.H r~crvada enviada pelo Gmerno Provincial de S.io Paulo de barbaridade. Os homens vá11dos for.1m procurados como fcr.t\; parc:c1a que
a tod<ts as Câmara\ MuniCipais da província c na qual se lê: 1' Scç.lo do Palácio " Bahia tomava a peito fornecer o pessoal nl'Ccssã.rio às f~nç<'ks de guerr~.
do Governo de São Po~ulo, 13 de Dezembro de 1866. Varqavam-se casa~ ••manc.tvam~e rapazes ocultos nos armínos e outro mó_ve1s
Roc:rvado domé)ticos. Às vaes cro~m filhos arnmos de f.tmllia que uma tmh~cnção
Tornand<>se cada vez mai~ urgentes a neces~1dade de remeter-se para o P<~raguai qualquer apontara com c<~ta sentença: "Va1 de presente ao Lopez" Os co~n­
novos contingentes de guerra, vou fazer um novo apelo aos sentinx:ntos d.mtcs de b.ttalhõcs uns potentados na época: designavam os guardas, munas
patrióticos des~ C.imara, apre:st:ntando-lhcs um meio, que, sendo convenien- vc::JC\ sem atender l condiçoo exigidas na lei. Os comand.tnt~-s supenores
temente: aplicado, poc.lc traduzir coma na:c~.hia prontidão o mais s.uisfat6rio tmnaralll-'lc s1mpbmente soberanos; d v.1idadc c o ódio co_loco~v.Jm ~c~ ma de
resultado. 1udo. Quem nJo liUcrid vestir farda po~gava uma mensalidade, a JUIZO do
Sabem V. Mercês que S. M. O imperador, possuído do mais ardente patriotis- c.:omo~ndante como auxilio .is despesas com o fJrdamento da mÚ\I(il c ttnha a
mo, libertou 190 escr.wm da ~ua propriedade particular, para mandá-los como dcs•gnaç-lo decontribu1nte. O cidadão que n.io se prestava ao scmço dd Guar~a
~ldados, em auxílio dos nos\os irmãos que, com a maior denodo pleiteiam a Nacional aprescntav.t um subslltuto, a quem o povo deu o nome d_e p.!taquetra
causa da pátria. porque além do \Oido, que: era de noventa r(is di.irios, recebia, p<trtlcular_mentc,
Alguns capitalistaH fazendeiros desta Clpito~l, de Campinas e de outros pontos uma grati ficaç.lo do substituído. Tam~m o indivíduo rnrut.Jdo ou destgnado
da Província, têm jj procurado imitar c~r,c nobre exemplo de abnegaç.lo que para o exército rxxl•d obter escUS.J, dandu um homem por \1, ·'quem ~ga":!
com tanta magnanimidade acaba de d.~r o nosM) Imperador. ler ta quantia, prcvio~mcnte ajustada ou compro~v.1 um escravo paro~ \urntllul-lo.
Se V Mercês procur.Hem tnstnuaresta idéta grand1osa nos ânimos dos homens QUERJNO, Manuel. A Bahia dt outror11, l~htora Progresso, S.tlvador, 1946,
aba~t ados desse municlpio, tenho a profunda convicção de que ai achariio pp. t 82/l 83.
tam!Xm V. Mercês imitadores. 87) C IIIAVENAnO,J.J.- Op. Cit.
A honra, a digmdade, a glória do Brasíl acham-se empenhadas nessa luta que 88) Apud lliOMPSON, George. Guerra do Paraguai, &li toro~ Conqu1sta, RJ, s/
sustentamos na República do Paraguai. d.
~mister pois que n.io poupemos sacr1fiCIOS p<~ra conservar intactos C\~C:S bens 89) Loc. Cit.- A denúncia de Sola no l.opa é 1 mplic_itamc:nte rl:onh':ida pelo
prt.xiosos, que nos foram legados por nm'tm pais, afim de: que (l0\5amos Conde D'Eu qu.mdu .tfirma refc:nnd<Hc l d1stnbutção dos pm1onc1r~), ~pós
tran~mitir a nossos filhos igualmente intacto\. a vitória de Urugua1a na: "Os soldados prisioneiros serlo igual mente: t.h~tubutdos
Espero pois que V. Mercês, bem convcnmlm dd Mntidadc da caus.t que pelos 1rês governos aliados e os do terço que ao Br.~sil coubc.r scr.io <:_mprc:gad~s
sustentamos, bem como da necessidade de dcfend('-la a todo custo, façam o na construção de estrada~ na provincio~." (Conde D'Eu: Vtagtm Mtfttar ao Rlo
maior empenho em obter esse serviço dos c1dadãos abastado~ desse município, Grand~ do Sul. Editora Itatiaia, BH 1981, p. 102). ~óbvio que num país em que
que por certo querer lo tornar-se imitadores dc:s\e sublime ra~go de .1mor da vigorava o modo de produção escravi~t.a, c;\~ prisioneiros tcnc1m de ~uhrneter­
p~tria, tão nobremente manifestado por S. M. c já aceito por alguns Paulistas. \e ao tipo de trabalho escravo que lho ~cria Imposto.
Ocus guarde a V. Mcr(~ 90) Apud. 11-iOMPSON, George. Op. Cit.
(a) José Tavares Bastos. 91) Op. Cit. .
(Ms. existente no Arquivo Municipal de Tietê- SP). 92) Ver neste sentido o trabalho de F. Riop.trdcnse de Macedo que an.thsando
85) PRUDENTE, Eunice Aparecida de Jesus. llrtronrtito e igualdade j1trfdira no o papel do jornc1l paraguaio de trincheira intitulado Caúichu~ que circulava
Bras11- a cidadania ntgra em qu~stão. Editora Julcx-livros, SP, 1989, p. 63.- Nelson durante a guerra entre os soldados paraguaios, sempre destacava, c?~o
Werneck Sodré confirma tanto o fato como A mudança de: pcn~tmcntos desses elemento critico o fato de o Exército bu~ileiro ser composto na sua matona
c~ ravos que lutaram no Paraguai, escrevc:ndo: "Essa composiçJo ser io~ afetada de negros, quasc;cmprc ex-escravos. O c~utor do artigo afirma que "afor.t alguns
116 117
Dralética RadiCal do Bras/f Negro Do Escravismo Pleno ao EsctSVISmo TsrdiO

tcxtm em ~:u.nani que w prc.urnc -.ejarn dirigido) dtretamentc: ao povo c outras pessoas principais, o general Cabral introduz o Sr lnornt on, que veio
paraguaio, a maioria ~c ocupa princ:Ípcilmente com o comb.nente braçiJeiro. 1~ ddade em carruagem escoltada por um destacamcmo de cavalaria; veste o
Neste sentido .1 gravur.1 dcsc:mpcnh.t importante papel p<m o brasileiro uniforme diplom.ítico com a comendil da Ordem do B.tnho. Dcpoi~ da~ três
C<'ncorria com o maior número de dno~lf.tbt:tos. Desde o frontispício, cuja 1rwrências do t:\tilo pronuncia um longo di$CUrSO c:m francê~. c em seguida
gravura pcrmant.'Ce em todm os número,, a alu<Jio é direta ao sc:u atraso. As C' lllr~ ao Imperador a carta da rainha Vitória. Responde-lhe o Imperador
vopcl\ atacando furim.tmcntc um negro era alu~odc:prcciaúv-a à instituiç.ioda tgualmente em francês; e logo em seguida .1 música d.t Ntitrl>i, que e~t.í p<~~tada
c'lr<tviJJo, úniw paÍ\ lJUe aiml.1 .1 fll.lntinha na América do Sul. o l.tdo de fora, toca Good JatJt tht f2!um mclodi.t que bem longe c:st.ív.tmm de
No momo \C:ntido \dO alguns textos qu<tndosc rcfcrcm a macacos, rabo grande, ' upor que vi~~crnos ouvir aqui no fundo da Província do Rio Grande do Sul.
rabo cuno etc, nmquais, ~undo Alfrl-doM.Seifcrhold, historiador paragu.Jio, De: wde, o Sr. Thornton, c:m traje ctVJl vrio visitar-nos 4 barraca de: Augu~to.
não sedcvcvcr nc:n hum \dhordc: raci\rno;obcdecid, pdocontr.írio, .is condições ~ muito intc:rosantc a conversa do mtnistro ingi.:S. E.~tcvc ainda há pouco
e~pcciais da luta, J nl'Ce-.sido~dc: de kvantar o mor.1l da própria tropa: o Paragua1 tempo em Auunção, onde está acreditado, corno em Buc:noç Ai rcs, ed.í curiosas
não tinhd escrdVO\ c fX>\\UÍd elevado ínJicc de alfabetização. 1nforffidÇÕCS acerca do despotismo paragu.tio. Refae também mmo o cxérctto
É pos\Ívcl até qut: c\s.ts critic.l\ negativas .i composição do Exército brastleiro p tr.tguaio assassinou, na Província de: Corriente~. uma família inglesa inteira.
tenh.1m influído posttiv.lmentc no comportamento posterior dos comand.m- Só nchcfc de família se .salvou, apeurdetercm-no os bárbaros inva\ort:~ Jcixado
tes. N:io foram poucos os cgrl'S<.O\ que ~e tornaram abolicionistas e republica- lOm quatro feridas, c pôde vir a Buenos Aires cont.tr o fato." (D'Eu Condl-:
nos, influtndo b;tçtante n..1s cscoiJs mtl1tares da época. Não se pode dizer o VIJJf,an militar ao Rio Grandt do Su~ Editora Itatiaia, B.ll. 198 1, pp. 106/107.
mesmo da M.mnh.l que dté o começo do século atual conservdva o castigo 94) Apud C IIIAVENATIO, Op. Cit.
corporal que h.wiJ ~ido abolido em 16 de novembro de 1889 (...)A convocação 95) PRUDENTE, Eunice Aparecid.1 de Jesus, Op. Cu.
dos efetivos para <1 formação da tropa apara:1.1 tctmbém. Ao menos duas das 96) POMER. León. ParagwZL· Nossagut"a rontra tsst soldado, llditor.t Global, 21
maiores xilogr.tvur•.s .ltcnt.Jm pdta e:;te tema, representando negros amarrados ,.d, Slo Paulo, sjd, p. 50.
uns .1m outro~ c arra~tados pelas ruas. Em um deles a legend.t cxphc11: 97) Ne.~tc particular escreve com precisiio ZiiJ.t Mhli.1 Gricoli· "0, escravos
Voluntánm <..1.1 P.ttrtil". MACFDO, R1opardense !-=.A XIlogravura usada romo 1: o\ im1gr.10tes não foram ouvidos através de su~s própnas vozes. llnvi.t um

am1a na Gtttrr.l do Paraguai in D. O Lmura, SP, 10 de dezembro de 1991, pp dc.locdrncnto entre a ação e a representação, com çu)CIIOS diferentes. Os
5/6. antclectu.tiç fal.IVam c:m nome das elas~ subalternas. ()ç .!holicionistas ficavam
93) Já vimos como o Conde D'Eu implicitamente reconhece o trabalho c1rcunscn tos d um espaço muito restrito da quest.io dil Abolição. Eram
compulsório dos pri\ionciros paraguaio~ no Br.Hil O interessante a anotar~e majoritanamentc: românticos. Concebiam o e~ravo como herói, corno aquc:lc:
é quc: e-.sa guerra de: conqui\t.t era financi.1d~ pcl.t Inglaterrd que ~c: dtt.ta a que tinha força de luta, ou corno marginal, bilnc.Jido idiotiz;~do. A nlo~cr at ravés
campci d.t luta contra o tr.Hico c a cscravidJo no mundo. Mais significativo é de grupo\ muito minoritários, como os dirigidm por Antônio Bento, por
anotar-se que o Brasil c a Inglatc:rra c:stav.1m de relações diplom.íticas cortddas c:xc:mpb, que organizou a ação dos c.tifa?.cs - htndtdos que atac~tvam as
até a dl.'-IM.l\iiO de Guerra ao Paragudi. Com este fato .t Inglaterra vitori.ma fazend.1s, roubavam os escravos c os levavam para a libt:rd.adc: -, ou então por
assume uma ~titudcdeconciliaç.ioc mc.smosubaJternidadcc reata relações com Luiz Gama, que também fez críticas bastante significativa\ no encaminhamento
o Bra~il. Sobre otc: ato de reatamento significativo assim se refere o Conde dado à quc:st.ioda Abolição,osdc:mai\, tomo Nabuco, Pawxlmo, cntrcoutrm,
D'Lu: "Chegou ao Sul, por terrd, o Sr. I hornton, mmistro britânico c:m Buenos analisav-.1m .1 escraVIdão sob o ponto de vi~td l'Uropc:u. Erc~m os polms dt Paris
A1rcs. Vc:m encarregado pelo governo da Rainha para exprimir ao Imperador que ~fnam como se a escravidão fosse: algo distantce alheio à rCdlid.1dc, e nada
o seu pt.'\<~r pclt~s violências lfUC ht~viam pr.uicado os navios da cstaçJo inglesa mais concreto sobre a população negra aparecia n.t~ discuu~
no Rio dc:J.lnt~ro c:m 1863, cpcl.1 ruptura das rci.JÇÕCS diplorn.íticas que se lhes Com a aboJiçjo da escravatura, este problema poht1co-jurídico termina, mas a
seguiu c que até hoje tem durado. O Imperador marcou o dia dc: amanhã c a cwsc tr.tbalhadora propriamente dita sofre um ~éno processo de pulvt:riuçJo.
hora de mc:io-<.lia para o receber na barraca, com toda a solenidade quc: as A ma~ escrava empreende sistemática fuga das fazenda\ povoc1ndo o horror
circumtânciaç comportav;~m Foram convid~dos para asSIStir às cerimônias os dos Vfll:aúundos. quc: se recusavam a aceitar um sistema de tr.tbdlho que, diga~c
comandilntes dc: todos <H corpos. de passagem, ningu~m escolheria para si. Com efeito, a marc.1 dJ propriedade
Cada um se veste o melhor posslvcl p.ua esta solenidade diplomática. Torn.t- rural era mu1t0 forte para aqueles negros, c permtnc:cer no espaço sJgntficava
sea arm.~r .1 barr..ICd com d\ vdd\ c: bandeiras; até se d~cobre um tapete. Ao l.tdo continuar submetido, uma vez que não havia controle sobre o cumprimento
se forma um bat..tlh;io de linha completo; além dos oficiais convocados, mui tos da lei." JOKOI, Zild:~ M~rcia Gricoli. Lutas Soriats naAmérira Latina, Editora
outros vieram, desejosos de assi~tir a esta satisfação que se vai dar à honra Mercado Aberto, P. Alegre, pp. 61/62)
nacional. 98) SANTOS, José Maria dos. Rtpubliatnos Paulistas e a abolirão, Livraria
Tendo o Imperador colocado ao fundo da barraca e a seus soldados o ministro Martins, SP, 1942, p. 316.
118 119
Do Escravismo Pleno ao Escravismo Tardio
Dialética Radical do Brasil Negro

\u1x:rior de Agriculrura de Mossor6, 1984- DECCA, Edgard de. O si/lndo dos


99) Apud SANTOS, José Maria dos. O p. cit. p. 316/317. O historiador Décio
rlt'nritlos. Editora Brasiliense, SP, 1981 - ~AUS'fO, Boris. A rtvofztçí:W de 30-
Freitas deu-se conta desse processo de diferenciação do escravismo brasileiro
nessa última fase. Refer~e. por isto, a tJm processo de desescravização
/uJforio,grajia e histón'a, Editora Brasiliense, SP, 1972. Estes são algtJns tÍttJ!os que
'11Udll1, de formas as mais diversas, a revolução burguesa no Brasi~ o que vem
progressivo durante a sua trajetória. Em cima desse raciodnio levanta o
dtmonstrar como é ainda um assunto inconcluso c problemático nas nossas
conceito de formação social de transição para o seu último período, aquele que
• 1~ncias sociais.
denominamos de escravismo tardio. Assinala, por OtJtro lado, a regionalização
e diferenciação em cada área do mesmo, mostrando assim a necessidade de
estudos, levando-se em conta essa particularidade. Diz ele: "A formação
escravista brasileira não desapareceu por força da lei no ano de 1888. A lei
apenas consagrou a nível jurídico uma transformação econômico-social que se
operara a partir da supressão do tráfico. O que houve foi um lento processo de
desintegração que se diversificou de região para região. Mcd rou por toda parte
uma pluralidade de relações de produção, nenhuma das quais em sua forma
pura. Durante um longo período as relações de produção apareceram
entremisturadas numa tal conftJsão que não há como determinar qual a que
exercia dominância. No estado atual de investigação histórica, manda a
prudência que se fale apenas em formação social de lranrição. FREITAS, Décio.
Escravos e senhorts de escravos, Editora Mercado Aberto, P. Alegre, 1983, p. 162).
Essa dinâmica do nosso escravismo foi vista também, de forma lúcida por
ALMEIDA, Vil ma Paraíso Ferreira de. Escravismo e Transição- O Espírilo Santo
(1850..1888), Editora GraaJ, RJ, 1984 - Embora sendo um esrudo regional. a
autora faz colocações que avançam na direção da identificação do final do
regime servil no Brasil como sendo um escravismo tardio no seu conjtJnto.
100) Sobre o problema da revolução democrático-burguesa no Brasil ser
encaradadediversosângulosdeobservação,análiseeinterpretação:FERNANDES,
Florestan. A revolu{iio burguesa no Brasi~ 3• Ed. Ed. Guanabara, Rio de Janeiro.
1987,IANNI, Octavio.Ocidodarevo/uçãobur,guesa, Editora PazeTerra, RJ, 1984
-ROlO, Marcos Del.A c/asseoperárúl na rtVOiuçãobur,guesa, Editora Oficina de
Livros, BI-1, 1990. SODRÉ, Nelson Werneck. Capitalismo e revolufiio burguesa no
Brasi.~ Editora Oficina de Livros BH, 1990 - Idem, Hist6ria da Burguesia
Brasileira, Editora Civilização Brasileira, RJ, 1964 -Idem, Introdttçãoà ttvolufli.D
brasileira, Editora Civilização Brasileira, RJ, (2•. ed. 1963), MELO,João Manuel
Cardoso de. O Capitalismo tardio, Editora Brasiliense, SP, 1988 - BASTOS,
Abguar. Hist6ria da polllial rtVO!Jtciondria no Brasil EJitora Conquista, Rio de
Janeiro, 2 vols, 1969. Idem, Prestes e a revolução soda~ Editora Ucitec, SP.
BASBAUM, Leôncio. Hist6ria Sincera da &páblú:a, Editora Alfa Ômega,
SP,1986, 4 vols. - BARBOSA, Lima Sobrinho. A verdade sobre a ttvolução de
outubro, Editora Alfa Ômega, SP, 1983, 3". Ed.- SANTA ROSA, Virgílio. O
sentido do tentntfsmo, Editora Alfa Ômega, SP, 1983, 31 . Ed.- PRADO JR., Caio.
A rtfJOiuçí:W brasileira, SP, 1966. ANDRADE, MantJel Correia de. Escravidão e
trabalho "livrt" no Nordeste, Editora Asa, Recife, 1985- GORENDER, Jacob.
A burguesia brasileira, Editora Brasiliense, SP- MASEO, Antônio Carlos. Ertado
e burguesia no Brasil- origens da lllltocracia burguesa, Editora Oficina de Livros,
B. H., 1989- OUVEIRA, Franklin de. Rtvo/ufáo e contra-revoluçí:W no Brasil,
Editora Civilização Brasileira, RJ, 1962, 2!. Ed. -OCfAVIO,José.A rtfJOittçí:W
estatíztuia- um estztdo sobre a formação do centralismo em 30, Editora Escola
121
120
11
População, Miscigenação,
Identidade Étnica e Racismo

Sou nobre, e de linhagem sublimada,


Descendo, em linha reta dos Pegados,
Cuja lança feroz desbaratados
Fez tremer os guerreiros da Cruzada!

Minha mãe, que t de alcantilada,


Vem da raça dos Reis mais afamados;
- Blasonava entre um bando de pasmados
Certo parvo de casta amormada.

Eis que brada uma ~ralta retumbante:


"-Teu avô, que de cor era latente,
Teve um neto mulato e mui ~dante!"

Irnta-se o fidalgo qual demente,


Trescala a vil catinga nauseante,
E não pode negar ser meu parente!

úJiz. Gama

123
PoputaçiJo. M•scigenaçtJo. ldenttdtKJe ltn1ca e Racismo

O negro e o colonialismo endógeno


de Portugal

A v•·ntura colonial dos povos europeus, a parttr do skulo XY, não


I 11pcn.ts um ato de expansionismo geográfico, com o objetivo de
mq,u1r novas áreas de dominação e rotas comerciais e marítimas. Este
1.. ·rto horizontal e vislvel desse processo violento. Mas foi, também,
1 rtnnpltcador étnico e um mutilador e estrangulador cultural.
mplt\cHior étnico porque mtroduziu compulsonamente nas ã~as
I IIIZacbs- América do Norte, Caribe, América do Sul- o componente
11 11110 que veio não apenas dinamizar demograficamente essas áreas,
tílmbém, involuntariamente consolidar, com o seu trabalho o
uvnnto nessas colônias. Mutilador e estrangulador cultural porque
1 pel.t violêncta, dmta ou indireta, os seus pad~s culturais e valores
I~ 1\ us<~ndo para isto desde a morte e a tortura até a catequese refinada
llflted,t de evangelização para dominar os povos escravizados.
Se no plano cultural assim procediam, no plano social alocavam essas
•I ç&s - de nativos e negros afncanos importados - nos estratos
r nl41dos de trabalho. Uma diVls.io do trabalho ngidameme
rqutze~da colocava as populações aut6ctonesou afncanas unportadas
' h tmns patamares da escala SOCial, impondo como critério extremo
1111nle o estabelecimento da escravidão e da servidão.
I te l01 o grande traumatismo do sistema colonial criado e consoli-
ll ))()I lllJIS de quinhentos anos e do qual ainda não nos curamos
!mente porque novos mecanismos de subordinação neocolonial
I lllulram as primittvas e mais rudes técnicas de dominação.
No '.1so particular de Portugal - que está ligado ao que estamos
lt uulo - esse desequilibrio étnico-social teve início com a fuga dos
11 I!lOS mats JO~ns para a a~ntura colonial, a cnse da agricultura em
11~11C'1a disso e a necessidade de braços alienígenas para o trabalho
1~1 mente agricola e em outras attvidades nãoquahficadas.J. Lúc1o de
lo e~reve neste sentido: "Voltando ao Tcjo as naus traziam aquela
1lt1 I lo ele negros- negros chamavam os portugueses não somente os
n s, IIIJS a qualquer raça diferente, baço de tez - etíopes, índios,
~ htnc1s e americanos cujos braços passavam a fazer na metrópole

125
D1a/l1tlca Radical do Brasil Negro Populaçoo. M.scigenaçtJO. Identidade Etnica e Racismo

o trabalho que a empresa béltca arrebatava. Substituição degradante na 16nias.. Mas, não apenas de riquezas: também de trabalhadores que
q~~id.tde. Esta influência de geme exótica era pasmo dosestrangei ros, qut 111 ompulsorit~mente para a Metrópole a fim de serem escravtZados.. Esse
VISitavam o pais, e inqu1etava os na tu ra1s"1. I naJitsrno end6geno de Portugal, conforme já frisamos, decorreu, de
Portugal, como vemos, por uma ~ri e de razões parttculares (baSICa- 11 I do de sua decadência e despovo.1memo, e, de outro, da posse de
mente pela sua decadência econôm1ca e demográfica) teve de fazer com lltlfu•~sde além-marcapazesdeenriquecer uma camada parasitária que
que relações de exploração colonial-escravista funcionassem dentro das ,_ cl.t ostentação e do fausto em c1ma de uma população local de pobres
suas próprias fronteiras, fato não ocorndo, pelo menos de modo 1111~r.'aveis, mas incapaz de investir para dinamizar a economia de
s1gnificativo, em outros países coloniz.!dores como a França, Ingl.Herra e 1111gal.
Holanda. Em Portugal houve um singular colonialismo end6geno: 01 I~ colonialismo eod6geno surgiu da necessidade de Portugal repor
ne~ros e ~a m trazidos e alocados nas camadas sociais de trabalho co mpul- l raços para o trabalho, subtraldos pelas guerras e aventuras, bem como
s6no. Nao era, portanto, por um preferência .uávica de manter relações x upação das colônias. E o negro africano foi trazido e escravizado para
com etni.1s exótiCdS que assim procedia, mas por uma necessidade da sua 1 rtr esse v.ícuo demográfico. . .
economia decadente, com uma populaçlo trabalhadora insufictente em losé Ramos Tinhorão chega mesmo a afirmar que os htstonadores
conseqüência da sua expansâo marftima. Mas, se de um lado Portugal nugueSt·s têm uma tendência a subestimareSS.t população negra porque
traz1a essa gente nq;ra, por outro colocava·a naqueles espaços socia11 I r.e prendem mv.uiavelmente aos números fornecidos por Zurara na
desqualificados, praticando no seu term6rio aquilo que reproduztna nas u J(>nica de Guiné que apenas se refere a "fi) hamemos", até 1448. Mas,
suas colôntas de além-mar: a escravidão. 1111do o mesmo autor, Duarte Leate demonstrou que além dos 927
N~ caso de Portugal, a decadência econômica foi acompanhada de 11l1Yo~ ft>itos segundo Zurara, de 1441 a 1448, pelos navegadores sob <~S
uma cnse demográfica, obrigandC>O a praticar aquilo que chamamos de 1 I m do mfante D. Henrique e de D. Pedro não corresponder à realidade
colonialismo end6geno. Oliveira M.utins teve oportunidade de referir-se cativos levo~dos por Antão Gonçalves e Nuno Tristão em 1441,
ao problema. Se atentarmos na descnção que ele faz de Portugal, as rel.!çôel ufo• me co~rta régt.1 de 22 de outubro de 1433, foram 38 e não 11 como
de r.1ça e classe entre a popul.1ção local e as trazidas para o país, veremos rr"· u Zurara, e em 1444 os mouros conduzidos por Lançarlote a Lagos
como se assemelham às que foram implant.tdas no Brasil pelos coloniza- c, 1 1 235 mas 650 como atestana o navegador Dtogo Gomes), a
dores: "aJustiça era um mercado, no retno e na Índta; e a nobreza ingênita, J 1ç o fica provada porumacanade 25 de setembro de 1448dopr6prio
~ue alé.m se trad~ia em ferocidade, traduzia-se em Portugal num luxo 1 D. Afonso V".
~mpertmente e mtserável. Era uma ostentação j.í não era um orgulho Ainda José Ramos Tinhorão escreve, no sentido de estabelecer o total
tngênuo. As classes sociais estavam confundidas, e os plebeus olhavam I 11 Mico de escravos África-Portugal, que: "o .1utor português que ma1s
com desdém as profissões mecânicas pdra irem à Índia b..aalbar, afidalg<~r­ rillr)samente especulou com base nessa realid;~de de números projetados
se. Não haveria barbeiros, nem sapateiros, nem artífices se não fossem os • 1 111 ir de um quadro fornecido por informaçoes. S('toriais, mas d~ certa
de fora" 2• l•mUI conclusivas, foi Vitorino Magalhães Godmho (...) Propoe um
O mesmo autor descreve desta forma o comportamento de um I ulo de c1fras do tráfico de escravos entre o cabo Branco e Serra Leoa
português que voltou rico da aventura da india: "O pobre mordia-se de ntJr do meto do século }N e até 1505' em que, além de chegar àquele
tOveJa, dtantedoluxo insultantedoque tomava da Índta rico, e se passava 1 nt.lllte estimado de 1.000 a 2.000 cativos obtidos nas investidas
na Rua Nova com um estado oriental. Precedaam-nodois lacaios, seguidos rrd•n6rias, até 1448, estabelece um raciocínio b.1se.1do em indtcad?res
por um tercetro com um chapéu de plumas e fivelas de brilhantes, um
quarto com o capote, e, em roda da mula, preciosa de jaezes e luzidia, um
I11 t6ricos que conduz a um total surpreendente: de 1441 a 1505 tenam
d levados da África para Portugal 'pelo menos umas 140.000 cabeças
qumto segurava a rédea, um sexto ta ao estribo amparando o sapato de hunl.ln.ls poss1velmente 150.000' " 4•
sc:da, um sétimo levava a escova para afastar as moscas e varrer o pó, um P..1ra nós, mesmo estes dados não são conclusivos. O mesmo autor
01tavo a t?alh~ para limpar o suor da besta à porta da igreja, enquanto o 1110 ll.t como os negros foram usados como escravos, em Portugal, na agro-
amo ouvta massa. Eram todos oito escravos pretos, vestidos de cores In lú~uia das ilhas atlânticas e em obras públicas, serviços de bordo,
agaloadas de ouro e prata" 3• 11 rbalhos portuários, de carga e descarga, remadores de galés e barcos de
Era uma sociedade em plena decadência 1ue 1a suprir-se de riquezas 1 lll JX>rte, vendedores de água, vendedores de carvão (ambulantes),

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Dialética Radical do Brss/1 Nogro Populaçllo. Misctg9naçl1o, Identidade ttnlca e Racismo

removedores de dejetos para o serviço público municipal, vendedores de tlllmores e destinados, por isto mesmo, ao trabalho compulsório
água (ntgras dopou), de peixe, artesões, negros de ganho e no campo na (r 1,1Vo), uma das marcas do colonialismo em relação às populações
a~ltivaçiio da ltrrú, além de muitas outras modalidades de trabalho N lon izadas.
compuls6rio. P.ua José Capela os invasores europeus do continente africano
Analisando a estrutura e a dinâmica dessa situação, Tinborãoescreve: r t~comraram atrás de si uma secular experiência nessa prática. No caso
"Na verdade o que o exame mais detido da realidade econômica r pecifico, essa atividade vem dos tempos pré-romanos e sob o domínio
de Portugal durante o século X:V parece indicar é que a desativação do Imperial foi estabelecido grande tráfico de escravos, mantendo os
sistema interno de exploração agrícola, com base na servidão - Vl&lgodos esse comércio mas, a substituição da grande pela peq~ena
disfarçada ou não -, tendo libertado grande massa de trabalhadores, propriedade agricola, com o esfacelamento do Impéno Romano, ahada
agora livres para escolherem a vida nas cidades ou a aventura da ts idétas do cristianismo diminuiu a sua importâncta. Apesar dessa
navegação (opção ao seu alcance pela concentração de grandes d uninUição a presença do escravo em Portugal não desapareceu nunca
interesses na área do comércio exterior), conduziu ao incremento do Segundo o mesmo autor essa presença está comprovada por documentos
emprego do trabalho escravo no próprio reino, pela sua possibilidade canoriais..
de superexploração constituir a continuidade de funcionamento da Nos séculos XII e XIII esse comérCio era realizado por todo o pais e
estrutura arcaica e ultrapassada, com um projeto tão avançado quanto l"(!Utparava-se ao gado cavalar, segundo o depoimento ?e Manuel Helena
o da produção colonial de bens para o mercado mundial"~. 11J sua obra Os escrlolvos tm PortugaL A escravatura vma manter-se até os
Além do mais, existia uma situação de decadência demográfica em trmpos modernos e quando os portugueses pa~sara~ ao contin_eme
Portugal, decorrência de séculos de polltica colonial fazendo com que os .1Cncano já tinham uma tradição escravista que se mten~tficou depots da
africanos negros trazidos dessa aventura fossem escravizados para suprir ~ua diminuição que se seguiu ao esfacelamento do Impéno Romano. Para
os seus claros populacionais na área do trabalho. ()S portugueses o faor escravos nada tinha de novo para a aventura que
Comentando esta situação demográfica, Oliveira Martins escreve: [omeçava.
"A diminuição da população progredia sempre, desde o princípio Escreve textualmente José Capela que: "assim foi com toda a
do século XV, e os sucessivos reveses nac1ona1S fizeram com que dois anos naturalidade que o tráfico de escravos as inscreveu, quase ?e imedia~o,
depois de Alcacequ1btr, uma resenha que então se fez, se visse não atingir como a grande mina da~ nossas conquistas e d~scoberta: a~ncanas. ~ nao
a um milhão toda a população do reino. De 18 a 50 anos não haVIa mais ater-nos à idéia que functonou apenas na traveSSia do Atlanttco, a cammho
de 18.000 homens, excluindo a nobreza e a gente que podta servir a das Améncas.. Fotlogo, desde o mício, canalizado para Portugal, onde, no
cavalo"6• sul a nova mãcxie-<>bra começou a substitUir os brancos nos oflctos. A
Asstm, como pode ser visto, a chamada "predispos1ção do português eo'mpanhia de Lagos, que explorava o comércio das descobertas,
de se relacionar com raças txlxirul' nlo é um fenômeno que teve a sua fundou-se em 1444, e naquela ctdade, haVIa o depósito da. recolha dos
gtnese nas colônias e o seu relacionamento com as populações coloniza- escravos. A Cw d.l Gmné, que por 1481-1482 passou para Lisboa, com a
das.. É também, e principalmente, o resultado de um fenômeno inverso: destpução de Ctsa da G11mé t Mina e que VIria, mais tarde, a ser a Ctsa
a necessidade de trazer milhares de negros africanos para escravizá-los na da lndia. Para os escravos se destinou, depois, a Casa dos escravos (...).
própria Metrópole e com eles conviver, num colonialismo end6geno Segundo o Su1n.lr10 tk úsboa, de Cristóvão Rodri~es de Oliveira, esc.rito
marcando fundamentalmente o comportamento do português não na por 1551, na população de Lisboa (100.595) haVIa 9.950 esc~vos.. Tnnta
direção de uma dtmocracia raaa/, mas, pelo contrário na de um compor- anos depo1s, segundo avaliação de Matteo Zane, a populaçao da capttal
tamento que tinha a imagem do negro 1mhricada na imagem do escravo. era de 200.000 pessoas, das quais um terço eram negros.
Nesse processo complexo e contraditório Portugal foi um caso A abundância de escravos foi tal em Portugal que passaram a ser tema
17
particular. O sistema colonial foi um desarticulador étnico não porque de quadros e ditos populares e influenciaram a toponimia' • •
ensejou a miscigenação, mas porque hierarquizou etnicamente as popu- Damião de Goes, o cronista da colonização portuguesa e CUJa morte
lações que nas colônias não faziam parte do seu aparelho de dominação. até hoje não foi esclarecida, afirma, em 1541, que ~alculava ,a e_ntrada de
Daí vermos a miscigenação subordinada a uma escala de valores na qual dez a doze mil africanos anualmente em Potugal, VIndos da Afnca Negra,
os negros, índios e outras etnias ou segmentos étnicos serem considerados além dos que iam de Marrocos, Saara, Índia e do Brasil. Dai Clenardo

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0/aláttca Radical do Bras ti Negro Populaçao. M;sctgenaçao /dentid:1d9 Élntca e Racismo

escrever: "escravos pululam por toda parte. Todo o serviço é feito por •n 1mente trazida para o trabalho escravo ·deve ser estudado levando-
negros e mouros cc1tivos. Portugal está a abarrotc1rcom essa rc1ça de geme. t'm consideração o sistema de dominação/subordinação que foi
Estou em crer que em Lisboa os escravos c as escravas são mais que os 1r.11eg1camente montado, os elementos de controle social e de repressão
portugueses livres de condição." lttalllzados pelo grupo populacional dominante/colonizador como
Por aí se vê até onde o trabalho do c1fricano escravo era presente e partlho repress1vojorganizador e a ideologia justitlcatória que essa
significativo na sociedade portuguesa da época. lr\llura de denominação produztu.
Em conseqüência de todos esses fc~tos,José Capela conclui: Nos países poliétmcos, formados em conseqüência dessa expansão
"A escravatura, portanto, radicc1da nos hábitos nacionais desde antes t[) folonial1smo, essas populações foram alocadas inicialmente em
da nacionalidade, encontraria nas descobertc1s um campo de manobra paços SOC1a1s deltmttados rigidamente pelas forças domin.tdoras que
fácil. Como quer que fosse, vinha ao encontro de uma necessidade 1Jbrleceram o papel, o status e a função de cada uma no processo de
h1st6rica que não era exclusiva de Portugal: a revolução burguesa de 1383- 11 1h.ilho e o seu nível de valorização SOCial e étnica. Dessa forma, não
1385 acentuou a políuca comercial-marítima de Portugal e o desvio para Ih uve uma d1stnbuição populacional horizontal, igual1tána, mas ela foi
.1 empresa ultramanna de grandes massas de população. Os escravos eram vrnicalizada socialmente .i medida que .JS sociedades dominadc1s pelo
mão-de-obra necesslria a um ststema em desenvolvimento acelerado e i lonialismo se diversificavam internamente e ficavam estruturalmente
sumptuária do mesmo. Logo a seguir, seriam as Américas a exigi-las em m.us complexas. Essa distribuição popul.lcional realizou-se dentro de
grõ~ndes quantidades"•. .adrões normativos étnicos impostos pelas metrópeles.
A escraVIdão em Portugal, embora não se possa falar de um modo Houve, portanto, uma imbricaçao entre etnia e .ftatur, etma e valores
de produção escraviSta português, vinha de épocas imemori.us, e, "' c lilis e etnia e papéis sociais e cultura1s. Estabeleceram-se criténos que
paradoxamente, irá se desenvolver com cl chamada revolução burguesa de lrterminaram a posição de cada grupo ou segmento étnico nos diversos
1383 a qual, dmam1zando a economia portuguesa, exigirá trabalho 11lve1s de estratificação, com barreir;~s e fronte1ras que impediam o
compulsório nas construções e outros upos de auvidades. Em seguida, ao processo de mobilidade social em nível de 1gualdade de cad.1 etnia
que se dedll2, o sistema de expans.io colonial lusitano passa a exigir a dominada em direção ao cume da pirdmide social.
população escrava não mais no seu território com a mtensidade de Podemosdizerque,com isto, ficou estabelecido que na sua base estava
antigamente, mas nas suas colônias da América. 11 população escrava, inici~lmente das etnias nativas e posteriormente das
populações trazidas da Africa e os seus descendentes. Nas camadas
llllt'rmediáricJs as diversas formas de mestiçagem, e, finalmente, a
População e miscigenação no Brasil populcJção composta dos colonizadores que ocupavam o seu cume.
Em segundo lugar, queremos demonstrar como essas populações
~llle>dominadas iriam praticamente ser imobilizadas, como, também
Vamos agora situar historicamente o problema que decorreu em r 1abeleceram-se mecanismos imob1hzadores e inibidores para essas
conseqüência dessa situação da Metrópole colonizadora e o Brasil, e, e em 1 .Jitlcldas etnicamente inferiores, as qudiS, ao mesmo tempo, se multipli-

seguida, analisar as ideologias de rejeição étnica e social crit~das pelo •oiVdm via miscigenação. Por outro lado, todo o sistema administrativo,
aparell1o de dominação aqui implantado, que era uma extensão d.1quele uuhtare religioso erd também estruturado para ser a reprodução daqueles
existente em Portugal. Procuraremos, também, demonstrar como esse v.1lores de dommaç:io étnica que a cada grupo miscigenado era concedido
aparell10 de dommação determinou ou influiu poderosamente sobre a pdo colonizador.
situação onde essas populações, descendentes desses segmentos étmcos A miscigenação (fato biológico) por outro lado, não criou uma
historicamente dominados estão situados atualmente, imobilizados ou democracia racic1l (fato sócio-político). Elcl estava subordinada a mecanis-
semi-imobilizados no SIStema sócio-cultural existente no Brasil. mos sociais de dominação, estruturas e técnicas de barragem e sanções
O problema de uma nação-pais ou área que se formaram após a rdi~iosase ideol6g1cas. Esse conjunto de elementos eestratégias inibidoras
expansão do sistema colonial e teve como componente demográfico cktc:rninava o imobilismo ou semi-imobilismo social, cultural e politico
membros de diversas etnias na composição da sua estrutura sócio-racial, dasvastascamadas miscigenadas, isto porque os espaços sociais que davam
ou seja, a populaçiio nativa, a dominadord<olonizadora e aquela compu!· st.Jius econômicos ou de prestigio social ou cultural lhes eram vedados,

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Dla"'llca Radical do 81asíl Negro Popu/açSo. Miscigonaç:Jo, ldMtldade Étnica e Racisroo

pois esses mecanismos de sel~ão étntca compulsórios reproduziam 01 I" tVIl<'gtou os dominadores via estrat~ia ~e ~ncessão de terras. Até hoJe,
nlvets de poder econômico, social e cultural das estruturas de poder trll~s dessa estratégia do monop6ho mtctal da terra e de ~er _os
dominadoras que representavam os tnteresses da classe senhorialloal e lrscendentes das suas linhagens não sofreram nenhum processo stgntfi-
da Cone e o poder do Estado português. dltVO e desarticulador, nenhum processo de compressão Jurídica, social
No Brastl historicamente podemos dizer que a população do r cultural capazes de desarticulá-los estruturalmente de modo substanaal,
colomzador, ou seja, poruguesa, foi sempre, até o século XIX menor do J!rtlllanecendo quase todos com patrimônios e status quase inalteráveis
que a população das etnias dominadas (índias e africanas e seus descen- n·, p6lo dominador11 • • • . •
dentes) e, em conseqüência, o aparelho de dominação quer militar, quer ~anto ao indio, particularmente, o prtmtttvo habttante, a sua
ideol6gico tenha de ser violento, porque era uma simples continuação do 1• IJet6ria é bem diferente do grupo portugu~s que chegou como
aparelho de Estado português. O Brasil não possuía Estado próprio. Isso, dominador. Se fizermos uma estimativa de 4 milhões de índios na
portanto, fazia parte da mecânica defensiva do sistema colo mal escraVIsta, descoberta - há quem esttme em muito mats- o processo foi o mverso.
dirigido, em última instância, pelo Estado de PortugaL Por tsto mesmo, Sc~undo Darcy R.tbeiro, depois da fase genocldica da ocupação, de 1900
essa minoria conseguia dominar. ~amo à população portuguesa mictal Mté 1957 exttnguiram-"SC 87 grupos tnbats como comumdades étmcas.
e o seu desdobramento demográfico posterior, escreve Artur Ramos: "Na Md!S de 301Vo das tribos desaparecidas pertencem a zonas que foram
sua Viagtm ao Brast!Spix e Martius conSignaram que antes da chegada do conqUistadas pela economta pastoril e 45\Vo. pela economia extrativa
rei, a população do Rio de Janetro podta ser calculada em 50.000 almas, (l·rupos de caucheiros, seringueiros, castanh<'tros e outros coletores de
sendo o número de habitantes de cor superior ao dos brancos. De 1808 produtos florestats) u. . .
a 1817 vieram da Europa uns 24.000 portugueses, além de bom número Atualmente esse extermínio prossegue através de grupos de ganmpet-
de ingleses, franceses, suecos, alemães e italianos, aqui estasbelecidos 1os e representantes de empresas tra nsnacionais. Os lndios~estribaliz~dos
depois da abertura dos portos, como negociantes, técnicos e artesãos ou que se incorporaram aos camponeses pobres também sao persegutdos,
simples operários. A população total do pafs podia ser calculada em mais expulsos das terras ou assassinados. . . ,.
de quatro mtlhões de habitantes pelas alturas de 1819'09 • A paror da época assinalada por Darcy Ribetro uma poltttca
Esse fluxo lusitano que representava a estrutura de poder dominante dtsmwlvtmmtuta e de modunuiatk fez com que as coisas se agravassem
inictal -amda segundo Artur Ramos- sempre em mmoria étmca, detinha, ainda mais. As fronteiras avançam, vlo ocupando terras indígenas,
no entanto, o controle sobre a população poliétnica numericamente assassmando cactques e procurando, mutta~ vezes, inclui~ ~s índios e~
supenor. De acordo com ele, "segundo dados do Departamento Nacional projetos econ6mtcos predat6rios e anttecol6gicosque ~bJettvam extratr
de Imtgração, de 1884 a 1944 apenas 1.227.304 indivíduos de nacionali- as riquezas do subsolo daquelas terras. Sobre essa sttuaçao escreve Dalmo
dade portuguesa entraram no Brasil"10• de Abreu Dalari: "A invasão de terras indígenas e a passividade do 6rgão
A população branca inicial, minoritária em relação ao contingente governamental de proteção ao lndio estlo ligadas àvisão desenvolvimentista,
demográfico de índios, negros e mestiços, conforme veremos depois, mas que não dá qualquer valor à pessoa humana, não leva em conta que os
politicamente dominante, é que irá miscigenar-se com essas etnias não- índios t~m os direitos de cidadãos e jamais admitiu a hip6tese de fazer o
brancas, majoritárias mas dominadas. O seu status de dominação quer no desenvolVImento econômico rom o lndio e não rontra o índio.
setoradministrativo,querepresentavaopoderdaMetr6poledominadora, Os mvasores de terras são, às vezes, meros aventureiros audaciosos
quer no militar e econômico, patrimonial ou social constituíam a que pretendem obter nqueza rápida de qualquer modo. Outras vezes são
estrutura de poder. Essa estrutura exerceu os mecanismos de dominação empresários e empresas de aparência respeitável, com ampl~s recursos
selecionadores, criou barreirasdedominaçãoétnica, estabeleceu as formas técnicos e cálculos muito preci:os quanto ao provetto economtco que
de JUlgamento de brancos e nlo-brancos, de homens livres e escravos, podenam tirar do solo ou do subsolo da terra dos indígenas. Mas e~ todos
conseguiu evitar que existisse qualquer forma significativa de ascensão dos os casos a invasão é e~timulada pela quase certeza, baseada na expenêncta,
escravos (ind ios e negros) que não fosse extralegal, através das guerras dos de que não haverá grandes obstáculos, pois o índio não dispõe de recursos
indios contra os invasores e dos quilombos negros, insurreições e para agir sozinho e a Funai tem autonomia limitad.t, estando hmttada aos
guerrilhas por parte destes últimos. As alforrias não chegavam a compor objetivos do governo"13•
uma variável ponderável nesse contexto. Por outro lado, a Metr6pole À essa expansão civilizadora, para Darcy Ribetro "três são as reações
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018/él!ca Radical do Brasil Negro Populaçao. MIScigenaçlJo. Identidade Étnica e Racismo

possíveis dos indígenas. A fuga para territórios ermos, com o que apenu • Yolllo\vel ideol6gica que é a posição assumida pelos demógrafos e
adiam o enfrentamento. A reação hostil aos invasores, que transtorna toda hl lllliadores em geral, no sentido de diminuir o total da mancha negra
a vida tribal pela imposição de um estado de guerra permanente em que 11• ~ Jt!US respectivos países. A ideologia do branqueamento entra como
o funcionamento de muitas instituições se torna inviável e outras têm de 11111 f.ttor que deve ser computado ao analisarmos os resultados dessas
ser dramaticamente redefinidas. A saída final é a aceitação do convívio 1 UJlltsas hit6ricas. Muitos interesses se cruzam para que não se consiga
porque este representa efetivamente, uma fatalidade inelutáveL Nela caírA 1111 1 .tproximação mais exata das proporções do tráfico que durou mais
necessariamente cada tribo, seja ao funde longos períodos de fuga ou de Ir quanhentos anos e foi um dos elementos da acumulação do
prolongada resistência afinal tornada impraticável, assente na esperança JpiiJlismo europeu. No particular escreve Walter Rodney: "Um
de controlar a situação"14 • uudo recente sugeriu a cifra de dez milhões de africanos desembarca-
Sem querermos fazer uma análise estrutural e dinâmica do assunto, I ''com vida nas Américas, nas Ilhas do Oceano Atlântico e na Europa.
desejamos destacar como, hoje, os mecanismos de inferiorização étnica Vu 1o que é um número bastante baixo tem sido aproveitado por
1 .adêmicos europeus apologistas do sistema capitalista e da sua longa
criados pelos primeiros colonizadores ainda exercem a sua estratégia
luta de brutalidades na Europa e fora dela, na tentativa de se apagar a
através de outras formas de controle e sujeição capazes de manter a
n doa do tráfico europeu de escravos, acharam que era conveniente
população indígena lesada e inferiorizada. Com isto, aquilo que se omeçar por m1oamizar esses números. (A verdade é que qualquer
chamou pro<aso civzlizatório e que antes se chamava catequese e evangelização t)tnputo da importação de africanos que se baseie exclusivamente no
dos povos pagãos manteve os remanescentes das antigas populações rr r tstro de sobreviventes é necessariamente defeituoso dado que havia
indígenas reduzidas a apenas 185 mil (1982), marginalizados e 111111ta gente que tinha especial interesse em contrabandear escravos e
subaltemizados. 1r ter os dados). Não obstante, mesmo se se aceitar a baixa cifra de dez
Queremos salientar, porém, que as tribos sobreviventes estão, no '!ailhôes como uma base da avaliação do impacto da escravatura na
momento, reavivando a sua identidade étnica, fato que determina um Africa no seu todo, as conclusões que daí podem ser legitimamente
nível de consciência dos seus direitos étno-políticos bem mais dinâmicos deduzidas espantarão aqueles que tentaram fazer luz sobre a experiência
e abrangentes. Contudo, esse renascimento da consciência será combatido cl.l rapina de africanos de 1445 a 1870" 16•
e possivelmente neutralizado por estratégias de controle das atuais Há, contudo, autores que estimam em doze milhões o total de
estruturas de poder e oligarquias territoriais. A chacina ocorrida em ,,fri canos trazidos especaalmente para as Antilhas, colônias espanholas
28.03.88 de 14 índios em Ticuna, no Igarapé Capacete, atravésde uma ação t' Brasil 17• Halps estima que de 1517 a 1807 não menos de que cmco
organizada pelo madeireiro Oscar Castelo Branco, mostra como a m ilhões de africanos foram importados pela América e incorporados
estratégia genocídica do tempo do descobrimento, embora modernizada .to seu sistema de trabalho, especialmente nas púmtations dos Estados
continua no seu dinamismo. A Funai, ao invés de tomar medidas de Unidos, Brasil, Cuba e outras regiões de colonização espanhola na
proteção e punição, demitiu os professores índios que denunciaram a América do Sul. Os cálculos de E. E. M orei, citados por Artur Ramos,
chacina. Em agosto de 1988 os criminosos foram postos em liberdade por estabelecem os seguintes números para o período de 1666 a 1800:
sentença do Tribunal de Recursos 15•

1666-1789 Uma rnéda de 70.000 escravos per am.m importados para


A diáspora negra no Brasil as colônias americanas, ou um total de 3.500.000.
1752-1762 Só Jamaica importou 71 .115 escravos.
1759-1762 Só Guadalupe importou 40.000 escravos.
Com as populações africanas e seus descendentes o fenômeno se 1776-1800 Uma média de 74.000 escravos per am.m foram importadol
repete, embora com métodos e estratégias diferentes. para as oolônias americanas, ou um total de 1.850.ro>.
Po r outro lado, as estimativas sobre o número de africanos
enrrados e distribuídos para a América do Sul, Caribe, América do Média anual: pelos ingleses, 38.000; pelos portugueses, 10.000;
Norte e outras regiões, variam muito e a existência do contrabando de holélMeses, 4.000; franceses, 20.CXX>edinamruqueses, 2.000
africanos dificulta ainda mais essa avaliaçâo. Inclui-se nessa dificuldade
FONTE: Artur Ramos- fts Culturas Negras no Novo Mundo.

134 135
Dlalúfi~a Radical do Brasil Negro Populaçllo, Mfsclgenaç®. Identidade Étnica e Racismo

é):>rno forma indireta de se avaliar a importância e proporçôfa Número de escravos entrados no Brasil
t áfi c.CJ na formação e desenvolvimento estrutural do modo capit.tl•at.t (avaliação feita baseada em estatfsticas aduaneiras)
;rod ,_,ção, podemos apresentar alguns dados complementares, for~~t~c
~ax Weber que, aliás, minimiza a sua contribuição como ..,..,.,...... Regiões Entradas Total Total de
po~l"tante
lffiy-
na gênese do capitalismo, contrapondo-se a Somban qu
d r. .
Anuais Anual Importação
a e~nta como um os 1atores proemmentes na sua estruturaç
l~aj"(lização expostos no seu trabalho sobre a história econômic.t gtrl [}lO XVI Todo o Brasil ~.00)
o~de J:screve: "Pode-se calcular que no inklo do século XIX viviam 001 ulo XVII Brasi hol~s 3.00)
ter ·tbrios coloniais da Europa, 7 milhões de escravos. Entre t'lts • 1110 XVII Brasü português 5.00) S.<XXl 8.<XXl
monrt3 1idade era muito grande, cifrando-se, ainda no século XIX em cerc• 1JloXVIII Pará 600
de 25<1/o; em épocas,anteriores foi porém bem maior (...) De 1807 a 1841 111<> XVIII Recife 5.00)
11lo XVIII Baila 8.00)
. pO(taram-se da Mrica outros cinco milhões de escravos e o conjunt
~~~portados dali para as zonas transoceânicas pode ser comparado i (;(Ja.Jio XVIII
Q.Jio XIX
Rio
Rio
12.00)
20.00)
25.00) 2.500.<XXl
lJJ~ção de uma grande potência européia do século XVIII" 18• lolhl1850) Todo o Brasil
pop ~eferindo-se de modo particular ao comportamento da lnglatem
50.00) 1.500.<XXl
Durante o tráfico 4.850.<XXl
, á abolÍÇÍÚJ do tráfu:o. Weber afirma: "A resolução do Congresso
aparllli tiu aos ingleses esmagar o comércio de escravos dos outros, porém I ONTE: Renato Mendonça. A Influência africana no português do Brasil. RJ.
~~ jrilPediu que eles próprios oontinuassem dedicando-se a um contra· Nacional, 1935.
b do cadavezmaisintensodessa mercadoria.Assim,de 1807 a 1847,com
0
a~~1 óa e paciência do governo, foram transladados 5 milhões de escravos
da Af{ica para as colônias inglesas"19• Fontes mais recentes, embora reproduzindo, no substancial
~confrontarmos os diversos dados c números apresentados, oriun- aquelas falhas e insuficiências de método e ideologia apontadas
d s dt: múltiplas fontes, podemos dizer que hã diferenças quanto à por Walter Rodney, procuram encontrar par~metros atr~vés dos
~antidade exata dos africanos trazidos para o Novo Mundo. As inexati- quais o tráfico internacional de escravos é avahado e quant1ficado,
dões 0 1.1 .omissões apresentada~ em relação ao tr~fico negreiro no âmbi~o
rspecialrnente em relação ao Brasil frente a outras áreas onde a
rscravidão foi implanta da. .
·nterfllJctonal repetem-se e muatas vezes se ampliam em relação ao Brasil. Philip D. Curtin já procurou demonstrar, no particular, que
0
~- remos possibilidades de estabelecer o número exato de africanos o Brasil foi o grande bastião do escravismo colonial. Para ele,
l ~·dos compulsoriamente para o Brasil com o tráfico internacional. As cerca de quase 40CVo do total de africano~ t~aficado~, foram
~t" ~af ivas variam c há- conforme já dis:.emos- uma tendência entre os trazidos para o Brasil, num total de nove mllhoes e qumbentos
no~~ historiadores de minimizar o seu número em face da filosofia racial mil desembarcados no Novo Mundo segundo os seus cálculos.
d0 braflqueamento existente em grandes camadas da população brasileira Nove vezes mais do que os Estados Unidos (60/o) ~mais d.o dobro
e, erfl conseqüência de um sistema secular de dominação econômica e do que para a América Espanhola (180/o), do Car:be Ing~e~ (17CVo}
qu ial já foi interiorizada no subconsciente de grandes camadas da e do Caribe Francês (170/o). Descontando-se as tmpre~tsoes das
rac ulação brasileira, inclusive não-brancas. Essas~ imat ivasoscilam desde estimativas, temos, no entanto, em escala proporciOnal um
rp ha Pombo que afirma ter sido de quinze milhõcs2°, âs de Renato painel do que foi o tráfico negreiro no Brasil 23• Cerca de 40o/o d?
Moc donça que calcula esse tráfico em 4.830.000 11 • tráfico internacional foi canalizado para cá, 24 fato que determt-
en esse autor fez os seus cálculos baseado em estatísticas aduaneiras,
nou indubitavelmente, a estruturação e dinamização de um
modo de produção escravista no Brasi~ 25 ._ ..
excluífldo, portanto, o contrabando que os historiadores da escravidão Manipulando várias fontes estattstlcas parc1a1s sobre o
supõe& tenha iniciado em 1831, mas que já vinha se manifestando tráfico em relação ao Brasil, Herbert S. Klein fez um levantamen-
fvafllente
1 desde o século XVIII 22• to com a periodização que vai de 1531 a 1780 e de 1781 a 1855.
a 5e~ndo Renato Mendonça, o quadro de importação de africanos Segundo as f<?ntes usadas por ele,_ no primeiro período foi este
é 0 segVinte: o total aproxtmado de afncanos tmportados:

136 137
Dialética Rad1ca/ do Bras// Negro
Popufaç!Jo, Miscigenaçao. Identidade Étnica e Racismo

Estimativas de Desembarque de Africanos no Brasil Lstimativas de desembarque de africanos no Brasil-1781-1855


1531-1780
Estimativas de desembarque de africanos

Sul Norte ~édiaanuat


% sobre total de es- Olllnqüênio Total da Bahia da a cada
Penodo n!! Média 1
cravos desembarc• Bahia Bahia década
perfodo anual dos na América em
cada século (1) lotai 2. 113.900 1.314.900 409.000 390.000
Total 1.895.500 17811785 (63.100) 34.800 28.300 (16.090)
33 1700·1790 97.800 44.800 20.300 32.700
1531-1575 10.000 222
1576-1000
22 17911795 125.000 47.600 34.300 43.1 00 23.370
40.000 1.600 22
1601-1625 100.000 1796-11:ro 108.700 45.100 36.200 27.400
4.000 43
1626-1650 100.000 1001-1805 117.900 50.100 36.300 31.500 24.140
4.000 43
1651-1670 185.000 1806-1810 123.500 58.300 39.100 26.100
7.400 43
1676·1700 175.000 1811-1815 139.400 78.700 36.400 24.300 32..770
7.000 43
1701-1710 153.700 1816-1820 188.300 95.700 34.300 58.300
15.370 ~
1711-1720 139.000 1821-1825 181.200 120.100 23.700 37.400 43.140
13.900 30
1721-1730 146.3)() 1826-1830 250.200 176.100 47.900 26.200
14630 ~
1731-1740 166.100 1831-1835 93.700 57.800 16.700 19.200 33.430
16.610 30
1741-1750 185.100 1836-1840 240.600 202.lro 15.800 22.000
18.510 30
1751-1760 169.400 1841-1845 120.900 90.800 21.100 9.000
16.940 ~
1761-1770 164.600 1846-1850 257.500 208.900 45.000 3.600 37.840
16.460 ~
1771-1780 161.300 1851-1855 (1) 6.100 3.n> 1.900 900
16.1~ ~
(1) Não foi registrado nenhllll desembarque entre 1853 e 1855. Apenas um
navio, transportando aparentemente :n'l escravos, chegou ao Rio de Janeiro
(1) Esta estimativa exclui os africanos embarcados com destino à Europa ou ilhas
em 1856. (Klein)
do AUântico, cujo movimento só adqliriu Importância no século XVI.
Podemos ver, pelos dados expostos que as estatísticas ou estimativas
de Klein, aproximam-se das de Renato Mendon~a. J?evemos levar ~:n
Klein calcula para esse periodo um percentual de 30o/o em conta, no entanto, as mesmas reservas feitas ao pn~euo, fato que, altas,
relação ao total de escravos desembarcados nas Américas em cad a o próprio Klein reconhece, confessando a precanedade das fot;tes ao
século. Estimativa que se aproxima, mas com um índice pe rcentual escrever "ap6s 1830 não se encontra nenhum regtstro em arqutvo ou
menor do avaliado por Curtin para o total durante a existência do ' causa da proibição
'
tráfico. JOrnal por oficial do trá fi~oescravo naque1e ano" e: "A
despeito da grande diversidade de dados regtstrados após 1700, encontra-
Ainda Klein, baseado nas mesmas fontes, e com as restrições mos lacunas importantes. Sabe-se, por exemplo, que o porto de Salvad~r
quanto à exatt~ão por n6s apresentada em relação àqueles que foi um dos principais receptores de navios escravos. E, n~ entanto, nao
fizeram. tal avaliação, monta uma estimativa do período de 178 1 a foi encontrado nenhum registro dimensionando a qudntJdade de escra-
1855. (ctnco ~nos, portant~, após a Lei Eusébio de Queiroz que vos que lá desembarcaram de navios procedentes da África".
aboliu o trafico mternac10nal de escravos no Brasil) que é a Continua o mesmo autor demonstrando as dtficuldades de fontes
seguinte:
para um registro mais preciso do número desses africanos desembarcados
138
139
Dialética Radical do Brasil Negro PopulaçtJo. Mlsclgenaçao. Identidade Étnica e Raclsm:J

ao afir~ar: "A melhor ~ome de. dados extstentes refere-se ao porto do Rio 1830 nunca foi respettad a, tanto assim que o contrabandista no século XIX
de ~anetro. ~c:' que diZ respetto à maiona dos portos brasileiros, ru rr • urna figura respeitada e influente no Império. Descrevendo essa
realtdade, a untca série completa de dados, até agora encontrada pertence atru.t~Jo, Robert Omrad escreve: "As autoridades brasileiras de todos os
à docume~1taçã~ das. companhias e monop6ho de Pombal, p'reservada nlvt"ts cooperav<~m com os traficantes por várias razões interligadas na
pelo Arq_1uvo .Htstónco do Ministério das Fmanças em Lisboa"Z'. a111lll~ncia nacional. Além do comportamento popular já mencionado
Regtonaltzando as origens do tráfico para esclarecer a procedência rm reldção à escrav1dJo e ao tráfico escravista, havia razões práticas para
d~sses. afncan~s, assunte:' que vem sendo dtscuttdo a partir do trabalho a <"ooperação e cumplicidade das autoridades brasileiras. A situação
p10netro de Nma Rodnguesl7, Klein nos apresenta o segumte quadro: pr.ssodl de muitas autoridades brasileiras simplesmente não permuia que
~t· lrnssem irrestritamente aos princlpiosda lei de 7 de novembro de 1831
( .) Os subornos eram, naturalmente, um grande atrativo para os
EstimatJvas dos Escravos africanos uncionários públtcos. No Rio de Janeiro, alegava-se que as autoridades
Desembarcados no Brasil ponuárias recebiam 800 mil réis pela liberação de cada navio prq>arado
Por Proced•ncla Regional p.ua o tráfico (...) Mais um indicativo da tolerância oficial para com o
1701-1810 1r.ífico escravista foi o envolvimento aberto de oficiais dos altos escalà<:s
do Exército e da Marinha e o uso que faziam das próprias instalaçà<:s
Ptrfodo governamentais nos negócios do tr.ífico. Vários oficiais mil ita~s, cujo
Total Procedência controle das fortificações costetras proporcionavam-lhes uma vantagem
Costa do Marftm Angola evidente foram panicularmente not6rios. Em 1836, quando o tráfico
alegai estava se tomando mais acietável para a opinião pública, um certo
Total 1.891.400 605.500 coronel Vasques, comandante da fortaleza de São João, na entrada do Rio
1.285.900
1701-1710 153.700 83.700 de Janeiro, transformou a própria fortaleza em um entreposto de escravos
70.000
1711 -1720 139.000 83.700 (...) Dil mesma forma, os oficiais navais não resistiram à tentação e o
55.300
1721-1730 146.3)() 79.200 ministro da Marinha parece ter sido conivente com as suas atiVIdades
67.100
1731-1740 166.100 56.800 ilegais" 30•
109.300
1741-1750 185.100 55000 Houve, também, juizes que cobravam percentagens para ltberar
130.100
1751-1700 169.400 45900 navios apresados. Um dos maiores traficantes do Rio de Janeiro, José
123.500
1761-1770 164.600 38.700 125.900 Bernardino de Sá, homem influente e abastado, foi di~tor do Teatro de
1771-1700 161.3)() 29.800 São Pedro e portador do título de Bar:io da Glória de Portugal, concedido
131 500
1781-1790 178100 24.200 pela Rainha Maria da Gl6ria e oficialmente reconhecido no Brasil pelo
153.900
1791-1800 221.600 53.600 seu irmão o Imperador D. Pedro II.
168000
1801-1810 206.200 54900 1s1 roo

Mas (no que está de acordo o pr6pno KJem), ~rgio Buarque de


Holanda demonstra as formas dtfkets e as msuficiênc1as de fontes bem Dinamismo demográfico da escravidão do Brasil
como os métodos empíricos como foram elaboradas essas estimarivasl•
Voltamos a in~istir que essa população africana ao vir compulsori;
ment~ para o Brasil, devena ser bem maior do que a computada pelos Esse componente demográfico trazido compulsoriamente da África,
pesqu,•~dores que se ocuparam do assunto, pots. apesar da opimão em legalmente até 1831 e ilegalmente até aproJUmadamente 1860, foi
co~~ano de Mauricio Goulart · 29, excluía-se do período do tráfico a distribuído de acordo com as necessidc~des, os interesses e os objetavos do
vanavel contrabando, ou, quando ela é incluídc~, parte-se do pressuposto modo de produção escravista implantado no Brasil e as necessidades da
de que somente existiu a partir do século XIX, com a proibição do tráfico economia de exportação na qual ele se apoiava e dela se sustentava. A sua
quando o contrabando existiu também nos séculos XVII e XVIII. A lei d~ distribuição espacial foi feita aproximadamente da seguinte maneira:
140 141
Diafátic:l Radical do Brasff Negro Popu/açao. MiscigenaçiJO. Identidade ~tnlca e Racismo

A) Bahia, com irradiação para Serg~, onde os escravos negros p.tgando apenas um terço dos direitos da Coroa. A escassez da
africanos foram redistribuídos para os campos de plan taçãode cana- população negro-escrava e a substituição parcial (pelo menos nas
de-açúcar, fumo, cacau e para os serviços domésticos urbanos e, onas urbanizadas, e a partir do século XVIII) da escravidão
especialmente, em época posterior para os serviços de mineração na zona 1ndígena pela africana fará com que o número de africanos
diamantina; 11 Jzidos para a Colônia seja cada vez maior. Gabriel Soares de
.•.ouza atribuía, em 1587 para a Bahia, uma população de 2 mil
B) Rio de}anriroeS/kJ Paulo, onde os negros foram encaminhados para turopeus, 4 mil negros e 6 mil índios. Maior, portanto, a
os trabalhos das fazendas açucareiras e cafeeiras da Baixada Fluminense população negra e índia do que a branca.A própna população
e para serviços urbanos; negra africana era maior, isoladamente do que a européia 33 •
Essa escravaria africana que chegava aos portos brasileiros
C) Pmtambuw,AlagOdu Paraíha, Focos onde se irradiou uma enorme durante os séculos XVI e XVII era praticamente enviada ao
atividade nas plantações de cana-de-açúcar e de algodão no Nordeste do Nordeste e Leste do Brasil, especialmente ao Nordeste açucarei-
Brasil; to. O auge da prosperidade açucareira, por outro lado, fez com
t1ue a Holanda ocupasse o Nordeste e pratica mente monopolizas-
D) Maranhão, com irradiações para o Pará, região onde predominou ~e o t ráfico naquela região durante o tempo em que aqui
a cultura de algodão; permaneceu. Vieira afirmava, definindo essa situação de acordo
rom os interesses dos senhores de engenhos, "sem negros não há
E) Minas GmlLr, com irradiação para Mato Gro.rso e Goiás, com o Pernam buco e sem Angola não bá negros" 3~ .
trabalho voltado para a mineração dur.tnte o século XVIIP'. No século seguinte, essa população negro-escrava desloca-se
tm grande parte para Minas Gerais. Em 1717 a população escrava
A este esquema proposto por Artur Ramos, podemos acrescentar os mineira era de 33 mil pessoas c de 96 mil em 1723. Em 1786, para
africanos que entrar.1m diretamente para a região amazônica, conforme 362.874 habitantes, havia um total de 274.135 escravos. Na fase
pesquisas de cientistas sociais que realizaram trabalhos após a elaboração do auge das lavras calculava-se que 80o/o da população
do esquema de Ramos-17• estava m ocupadas na exploração do ouro, de forma direta
O fluxo e a distribuição espacial dos escravos afncanos na Colônia ou indireta. Mas, com a decadência do boom da mineração, a
e no Império obedeciam, como vemos, a uma estratégia imanente ao população escrava também vai decaindo e aumentando a popu-
modo de produção escravista que se estratificava no Brasil desde os seus lação livre, alforriada, composta de negros e pardos que irão
primórdios e eram subordinados às necess1dades regionais nas quais ele 1ncorporar-se à massa de desclassificados do ouro tão bem
se desenvolvia em cada período, ou ciclo, de exploração da economia da descritos e interpretados por Laura de Melo e Souza3s.
Metrópole. Em outras áreas, como a Bahia, o mesmo fato se verifica. Nos
Por este motivo estratégico, já em 1550 é enviado pela seus engenhos do 1nterior a proporção era de 100 escravos para
Metrópole um lote de africanos para <1 cidade de Salvador, a fim seis brancos no início do século XIX, índice que bem demonstra
de serem repartidos os seus membros "entre os moradores, a prosperidade dos senhores de engenho locais, e, ao mesmo
descontando-se o seu valor dos soldos destes". Isto bem demons- tempo, a sua insegurança latente face à desproporção entre a
tra a necessidade de mão-de-obra escrava naquela época recuada, população branca livre e a escrava negra. Em Salvador, no mesmo
na área onde se instalara o primeHo Governo Geral, fato período a proporção era de 14 a 27 negros para cada homem
reforçado com o apelo de Nóbrega solic1tando, um ano depois, branco.
a D. João III, a vinda de mais negros escravos para servlfcm no O mesmo fenômeno poderá ser constatado na Capitania de
Colég1o da Bahia. O alvará de 29 de março de 1559, dirigido ao Pernambuco através da próxima tabela, sobre o dinamismo
capitão da ilha de São Tomé ordenou que, em conseqüência de demográfico da população escrava e livre de 1772 a 1887.
certidão passada pelo governador do Brasd, cada senhor de De 1772 a 1887 a dinâmica demográfica de Pernambuco
engenho tinha o direito de adquirir até 120 afncanos escravos, incluindo-se livres, forros e escravos, foi a seguinte:
142 143
Dia/6tJCa Radical do Brasil Negt0 Populaçao. MlsdgenaÇIIIO. ldenlldade Étnica e Racismo

Ano Uvres Total Escravos p.ua menos do que deveria result.H dos elementos anteriores. Tal
Escravos
total(%) diferença, pouco sensível, é explicável pelas lacunas dos dados locais.
Os elementos relativos a 11 municíp1os são os recolhidos em anos
1n2-a2 239.713 .tnteriores, do que resulta ser efetivamente menor a população do que
1n5 245.000
aquela que a estatlsttca mostra existir. Como é sabido, as averbações
1810 275687
relativas a cada escravo efetuam-se à VISta das comunicações que os
1814 294.973 propnetários são obrigados a dmgir em prazo improrrog~vel, às
1815 339n8
237832 371465 estações encarregadas das matrículas. A om1ssão destas comunicações,
1819 97832 35,7
330.000 400.000 31,3 puntdas por lei mmiamente leve, e de indagações diflceis, dá freqüente
1823 150.000
1829 208.832 287140 28,0 causa a que indivíduos falecidos, ou manutidos, se conservem inscntos
00.265 na matrícula ou arrolados como escravos. Explicam-se por este modo
1832 550.000
1839 146.500 473.500 620.<XXX> 23,6 as pertubações aparentes dos coeficientes da mortalidade da população
1842 146398 498.526 644 924 22,7 escrava bem como o número relativamente pequeno das alforrias
1855 145.000 548.450 693450 20,9 atestadas por algumas estatísticas"36•
1872 89.028 752.511 841.539 10,6 Esta longa transcnção de notÍCia de um JOrnal pernambucano é
1873 100236 nca em elementos para a compreensão e a análise da população escrava
1882 84700 naquela provínc1a, na época do escravismo, destacando-se o detalhe de
1883 83835 que nessa população escrava, o sexo feminino era supenor, bem como
1800 80.338 a insignificância dos escravos alforriados através do Fundo de Eman-
1887 41.122 cipação.
Ao mesmo tempo constata-se, a diminuição dessa população
Fonte Peter L. Bsetrberg baga~ em Oauril Alden. Souza Süva, Rg.Jeira de Melo, escrava em conseqüência de 6bttos, alforriase transfer~ncias para outras
Oliveira Viama, Vieira de &xJio, Diário de Pemambuoo, Augusto Peretra da Costa províncias sem que houvesse uma perspectiva de reposição de novos
e Rodrigo AL9ssto da Silva. escravos e um equtlíbno demográfico vegetativo via nascimentos.
Convém notar que o número de alforrias voluntárias por parte dos
proprietãrios tam~m não é significatiVO, o que é surpreendente num
Trazendo mais den1entos analltiCOs e de compreensJo a essa momento em que o movimento abolicionista já estava em pleno
dinâmica demogr.íficd d.- ~pulação escro:~va em Pernambuco, vamos funcionamento, jã tendo sido fundada a Confederaçlo Abolicionista
transcrever uma notícia de JOrnal de 1886 (um ano antes, portanto, da em âmbito nacional com a participação de Joaqutm Nabuco, existindo,
que fecha a tabela acim )). É a segumte~ "Estatística recentemente também, em auvidade o Cl11M do Cupun, como grupo de pressão,
organizada reg1stra 0 se~uinte movimento da população escrava de fundado em 15 de mato de 1884 e que se dispunha a libertar escravos
Pernambuco a contar cor11 o encerramento da matrícula especial (30- por todos os meios, quer legais, quer tlega1s 17•
12-1873) até 30 de junho .do ano passado (1885). Escravos inscritos na Como vemos, a distribu1çãoe .1 dinâmica demográfica d.1 população
matricula especial: 105.0~9. Entrados desde então nos diversos muni- negro-escrava variava (ativa e/ou passivamente) de acordo com as nece~
cípios: 27.331. Saídos 110 mesmo período: 30.627. Maior número de sidades de dinamização regional que o sistema exigia, por sua ve:z.
saídos: 3.296. População (ll~triculada e averbada: 101.730. No perlodo subordinado aos intt'resses do mercado internacional. Funcionava como
acima mencionado dimi 11UIU aquela populdção pelas seguintes razões: lei essa tendência de desaparecimento demográfico da popul.ação escrava
Óbtidos: 12.554. Alforria~= 9.070. Total: 21.624. População a 30 de julho quer em termos absolutos quer relativos.
último: 78.803. Subdividi 11do-se do seguinte modo a mesma população Diwrsas estimativas ou recenseamentos foram fe1tos no setltido de
em relação aos sexos: do ?O<O masculino - 38.847. Do sexo femuuno- estabelecer-se o cômputo da população escrava em atividade no Brasil,
39.936. As 9.070 alforrias classificam-se do seguinte modo: Pelo fundo além daquelas já vistas anteriormente sobre o tráfico internacional.
de emancipação- 2.227. A título oneroso particular: 2.763. Por titulo Pod~se vt"r, por todas elas que o seu ritmo dt' crescimento no conjunto
gratuito particular: 4.080.. ~o cômputo da população existente a 30 de da população diminui criticamente ap6s a Lei Eusébio de Queiroz de
junho último (79.803 inJtvíduos) nota-se a diferença de 303 escravos 1850.
144
145
Dlal(lllca Radical do Brasil Negro Popu/aç4o. Mtscigenaçtlo, Identidade ttntca e Racismo

Podemos constatar isto através da tabela abaixo, onde é feito um Se são corretas essas cifras ou possuem diferenças não ponderáveis
levantamento dessa popubçlo escr.tva e a sua comparação com a livre e que as ponham em dúvida ou fazê-las nâo representativas da rtaltdade,
na qual se pode comprovar a ação dessa tendência demográfica de fiCldemos constatar uma tendência obJetiva da diminuição da popu-
diminuição da população escrava de 1789 a 1900: lação escrava no Brasil, como uma das suas caracteristtcas ou lets
tendenciais, ao contrário dos Estados Unidos, onde esse fenômeno
demográfico não fo1 registrado. Há, ainda, uma particularidade
'sgmficativa e intrigante: do ano de 1850, exatamente quando foi
Ano Escravos Uvres Total txtinto o tráfico internacional, até 1864 (quatorze anos, portclnto) há
1789 1 &lO.OOO utu queda de 785.000 escravos na populaçâo brasileira, o que
1800 1000.000 2.000.000 3000.000 • ,)rresponderia a mais de 30o/o do seu total. Depois, mesmo continu-
1808 1.930.000 4.396.132 .111do esse decréscimo demográf1co continuo ele não é mais tão
1817 1 930.000 4.396.132 (a) ·.1~nificativo. N ão podendo encontrar razões que possam explicar tal
1823 1143.515 2813.351 3.960866 fenômeno no seu conjunto, levantamos duas hipóteses e um fato
1830 5.340000 comprovado: as duas hipóteses seri.un él de que logo após él ext111ção
189J 2.&l0.000 5520.000 8.020000 do tráfico os senhores continuclr.lm, <~inda durante algum tempo,
1854 7.677000 lrdtando-os com a mesma brutalidade de antes, motivo pelo qual
1864 1.715.000 aumentou o percentual de mortes nos plautéis, sem haver a possibi-
1872 1.510.002 8419.n2 9.419.478 (b) ltdade de repoSIÇJO dos mesmos via tráfico internacional. Outra
1873 1 542.230
1874 1.409453 lupótese é a de que alguma epidemict, como o cólera, varíolc1 ou febre
1875 1.410668 ,11narela tenha atmgido a massa escrctva de modo especial, como, a hás,
1800 1.368097 costumava acontecer. Finalmente um fc1t0 que contribuiu em grande
1882 1.272.355 pucela para esse v.ícuodemogr.lfico foi a Guerra do Paraguai, pois esta
1883 1.211946 dizimou de 80 a 100 mil negros escravos envic1dos para os campos de
1884 1140806 batalha3'.
1885 1.000.000 Esse decrésctmo progressivo da populaçJo escravd quer tom nível
1887 637.602 .1bsoluto, quer regional poderil ser comprovado com a tabelt1 da página
1888 &lO.OOO segumte.
1890 14.333 915 Até 1850 o fluxo demográfico de africanos ser.í uma constante
1900 17 318 556 pela necessidade de reposição contínua de escravos, em conseqüência
(a) Em 1817 os dados irduem 800 mil frd10s. do alto nível de mortalidade dessc1 população. Após a proibiçao do
tráfico há um outro deslocamento demográfico de escravos desta vez
(b) Resenceamento de 1872. em direção às áreas prósperas do Sudeste e Minas que começam a
comprá-los, através do tráfico interprovinctal. Aquelas populações que
estavam fixadas no Nordeste e Norte sJo enviadas, vendid.1s como
FONTES
mercadoria pc1rc1 as novas áreas de trabalho, deslocc1das para dS novas
AdaptadodePÁDUA. CiroT de UmcapftliodaHtstónaEconômicadoBtasii,Rev. áreas que decolam em conseqüência da expansâo da cultura do café.
do A~q. Mtneipal de São Paulo XI (1945). p. 175 Mesmo assim, não bastam.
PRADO JR., Caio. História Ecooômica do Brasil. p. 330. Tanto isto é verdade que é cbamc1do o imigrante para substituí-
SMIDT, T. Unn. Brazíl, Peopleaoolnstitucion(2' ed. Baton rooge, 1954, p. 128). lo, embora nessa substttutção esteJam também imbncados mteresses
VIANNA. F J. Oliveua Resumo Histórioo dos Inquéritos censitários realizados no econômicos dos setores imigrantistas e idol6gicos (ractstas) das elites
Bmsil, Recenseamento do Brasil, 1920. (Rio de Janeiro 1922, I, 404-405-414) brasileiras. Vános níveis de interesse se conjugam nessa empresa,
coordenadas por Stanley J Stein conforme já analisamos em outro locaP 9•

146 147
Populaçoo. M/sclgenaçoo Identidade Étnica e Racismo
D!alátlca Radical áo Brasff Negro
O sistema escravista se decompunha. Em 1888, ano da Abolição era
l' .rguinte o total de escravos existentes:

Distribuição dos escravos no Brasil em 1888


Número %
Região

Norte: Pará, Piauí, Maranhão, Rio Grande 18


do Norte, Pemambuoo, Paralba, Alagoas e Sefgipe 130.000
100.000 14
Centro: Bahia, Espírito Santo e Mato Grosso

Sul: Rio de Janeiro, Distrito Federal, Minas Gerais,


São Pauo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul 480.000 68

Nota: Amazonas e Ceará já haviam libertados os seus escravos em 1884.

FONTE: Roberto Simonsen. As oonseq)êndas econômicas da abolição.


In: Revista do Arquivo Municipal, SP, ano IV, n11 XLVIl.

Como vemos era já uma escravidão bem diferente da de antes de 1850,


quando vigorava o escravismo pleno. Uma população escrava já cruzava
com o trabalho livre em diversos níveis.
Foi essa população, pouco mais de 700.000 escravos, que o movimen-
to abolicionista libertou. Uma população residual se compararmos com
o número de escravos da sua primeira fase - escravismo pleno - e, em
muitos casos, já não tinha mats função ou razão de existir.

Miscigenação e identidade étnica

O colonizador português estabeleceu no Brasil, conforme já afirma-


mos, como 61oso.6a.étnica uma escala de valores no processo miscigenatório
que ordenou a sociedade escravista de forma quase impermeável a uma
mobilidade aberta que correspondesse à sua composição étnica. A
miscigenação, fato biológtco, ficou subordinada aos diversos valores êtno-
sociais decorrentes dessa ftlosofia de ordenação social via qualificação por
ela estabelecida, criando desigualdades decorrentes não da capacidade ou
incapacidade de cada um, mas da sua cor e da sua origem de nascimento.
Com isto, a miscigenação que muitos sociólogos e antropólogos ainda
teimam em apresentar como um processo que democratizou a sociedade
brasileira, pelo contrário, hierarquizou (Vla discriminação étnica) os

149
148
Dialética Radical do 81asll Negro Populaçao. Misc1genaçao. Identidade Étnica e Racismo

estratos não-brancos nas suas diversas gradações. Sem falarmos nos negro com mulato; cabra, a mulher. 11- Curilxx.a, mestiço da raça negra
escravos que eram compulsoriamente classificados e conservados na com o indio"41 •
condição de semoventes. A esse sistema classificatório valorativo, criado pelo governo portu-
Assim, no Brasil o imenso grau de mauzes cromáticos formados. guês, feito de acordo com o seu grau de dvi!W:zfiio, Debret, apoiado em
criou, em contrapanida, uma escala classificat6ria, considerando-se o Ferdinando Dems dá a sua constituição demográfica da seguinte forma:
indivíduo ou grupo tanto mais valonzado socialmente quanto mais "Essa população segundo dados autênticos transmitidos pelo senhor
próximo estivesse do idealtipo étnico 1mposto pelo colonizador, inicial- Ferdinando Denis, cujas informações são dignas de fé, eleva-se hoje a
mente, e pelas elites de poder em seguida: o branco. Essa dinâmica 4.741.558, dos quais 2.543.889 homens livres, 1.139.669 escravos e 800.000
discriminitória foi acompanhada por uma dinâmica de julgamento social selvagens desconhecidos"42•
que a completava, pela qual à medida que esse processo discriminatório A nota de Debret deve ter sido feita depois de 1839, ano em que
se aprofundava e a população diversificava-se cromaticamente, via regressou à Europa.
miscigenação, criava-se, em contrapartidct, um julgamento de valor para O significado sociológico implícito nesse sistema classificat6rio é o
cada uma dessas diferenças. de que, nas sociedades poliétmcas, nascidas do sistema colonial, espectal-
O ideal tipo das elites brasileiras, como ideologta de prolongamento mente no caso brasileiro, há uma concordância embora não codificada
do colonizador, continou e continua simbolicamente sendo o branco. O entre o étnico e o social. Há uma estrutura social na qual se ordenam
antimodelo étnico e estético, como símbolo nacional continua sendo o lnerarquicamente, através de níveis de pressão e controle variáveis. e com
negro. diferenças irrelevantes ou pouco significativas. os membros das etnias na
Capistrano de Abreu, a seu modo, visualizou o problema quando estrutura de estratificação social das mesmas. O fato de estar a sociedade
escreveu: "Examinando superficialmente o povo, discriminavam-se logo brasileira em uma área cujos pólos iniciais de poder e dominação
três raças, oriunda cada qual de continente diverso, entre as quais nada situaram-se na metrópole colonizadora, determinou que a população
favorecia a medra de sentimentos de benevolência. Tão pouco apropria- requisitada na Colônia, dentro do modelo escravista imposto, passasse a
dos a essa floração delicada, antolhavam-sc seus descendentes mestiços. ser considerada coisa, semovente, estabelecendo distâncias socia1s
mesclados em proporção instável à receita da pele e àdosagem do sangue, mtransponíveis ou excepcionalmente transpostas, assim mesmo em
medidas naquele tempo, quando o fenômeno estranho e novo, em toda níveis individuais. O sistema escravista aqui implantado para ordenar,
a energia do estado nascente, tendia a observação e ao requinte e atiçava desenvolver ou regularquer econômica, quer social e culturalmente, tinha
os sentidos até exarcebá-los medidas e pesadas com uma precisão de que de estabelecer um aparelho tdeol6gicodedominação que o garantisse quer
nem podemos fazer idéia remota"40• simbólica quer estruturalmente, da mesma forma que tinha de estabelecer
Essa escala de valores étnicos vista por Capistrano de Abreu de modo um aparelho de repressão material com a mesma função.
empírico e meio impressionista é raoomzlv.üda progressivamente por Esse aparelho simbólico e material (ideológico-repressivo) incluiu na
outros escritores. Debret já se antecipava a ele, estabelecendo um elenco sua configuração e na sua dmâmica de pensamento a necess1dade de se
de nuances cromáticas dentro da escala de valores étnicos da sua época ver as populações au6ctones subjugadas imctalmente e os africanos para
Apresentava um sistema classificatório com a respectiva hierarquização aqui transportados em seguida, como seres que unham de humanos
étnica e a correspondente valorização social de cada uma da segumte apenas a forma, chegando-se a dtscutir se os índios tinham alma, fato que
maneira: "O governo português estabeleceu por meio de onze denomiJla- s6 foi reconhecido em 1536 pelo papa Paulo III. Os negros s6 deixavam
ções usadas na linguagem comum a classificação geral da nação brasileira de ser bárbaros ou gentios pelo bausmo, isto é, pela escravidão, como
pelo seu grau de civilização: 1 - Portuguâ da Europa, português úgítimo ou esclareceu Vie1ra43•
filho do reino. 2- Português nascido no Brasi4 de ascendência mais ou menos Achamos, por outro lado, que esse sistema ciJssi fica tório de barragem
longínqua, brasileiro. 3 - Mulato, mestiço de branco com negra. 4 - e seleção étmca poderá ser diVld tdo em dois estágios. O primeiro funciona
Mameluro, mestiço das raças branca e índia. 5 - lndio puro, habitante durante todo o ststema escravista. O segundo vai da Abolição até os nossos
primitivo: mulher china, 6- fndio civz1iz.ado, caboclo, fndio 11/tlrlso. 7- Índio dias.
selvagem, no estado primitivo, gentio, tapuia bugre. 8- Ntgro daAJrica, negro No prímeiro estágio as barreiras juríd icase simbólicas e as limitações
de nação, negrinho. 9- Negro nascido no Bras/~ criofflo. 10 -IJode, mestiço de estruturais do sistema tiravam do escravo todos os direitos, impunbam-

150 151
Dlalát{ca Radical do Brasil Negro Populaçoo. M1scigenaçoo. Identidade Étnica e Racismo

lhe um imobilismo total e vitalicio, barravam social e economicamente, 1-tnica dificultava ou impedia, a través de leis ou do costume, pela
pela coerção extra-<:eonômica, a maioria dos habitantes do Brasil até o sua cor. No entanto, esses jornais não se erguiam e colocavam nas
inicio do século XIX Os escravos, quer negros quer pardos, só podiam ~uas colunas o p roblema dos negros escravos, reivindicando a
conseguir mobtlidade social (vertical ou horizontal) de modo significati- Abolição e o fim do trabalho servtl.
vo e socialmente relevante através das fugas, dos quilombos, das insurreições Esse seccionamento ideológtco da população não-branca, que
ou do bandoleirismo quilombola. Somente através desses movimentos setoriza as suas reivindicações, que vem desde o estímulo às diferenças
radicais eles reconquistavam a liberd.1de, ou através de alforrias compradas tribais aproveitadas e estimuladas pelos colonizadores, até à rejeição ou
ou concedidas, muitas vezes qu.mdo o escravo já havia chegado quase ao indiferença dos mulatos livres de se incorporarem à luta pela abolição,
fim da existência ou ficava incapacitado para o trabalho. Mesmo os defendendo nos seus JOmats somente reivindicações específicas do seu
libertos tinham uma série de restrições ao exercício da cidadania. Se stgmento étnico é também reflexo de uma tática da classe senhorial e
africanos, eram considerados estrangeiros, se cnoulos(nascidos no Brasil) dos seus aparelhos de dommação ideológica no sentido de dividir e
podiam participar das eleições prim.írias, mas lhes eram vedadas as neutralizar a umdade de toda essa população não-branca, nas suas
dignidades eclest.ísticas, o acesso ao Poder Judtctáno, o direito ao porte diversas gradações de miscigenação e de hierarquização social. Essa
de armas e a livre locomoção noturna. "Tornar-se ltberto não era o mesmo visão competttiva dentro dos diversos segmentos não-brancos é uma
que tomar-se livre. Desta distinção encarregava-se a SOCiedade escravista de manipulação antiga que vem desde o Conde dos Arcos em relação aos
modo a perpetuar no exo('scravo as marcas da sua antiga condição servil. batuques.
M as os estigmas iam muito além do aspeçto juridico, determinando No segundo estãgio dessa estratégia, isto é, ap6s o 13 de Maio, outros
mesmo as próprias condições de vida do liberto"'". mecanismos de barragem e hierarquização étnica foram acionados e
A mesma coisa acontecia nas milícias, onde as havia compostas de dtnamizados. Usando o princípio de que todos silo iguais perante a Lei essa
negros, de pardos e milleias de brancos agindo separadamente. estratégia de barragem social se refina.
Os mulatos livres eram preteridos pela sua cor em vários cargos Isto levou a que o cidadão negro - o ex-escravo - não encontrasse
administrativos e militares. Tentando romper essa barreira étnica e de oportunidade no mercado de trabalho, na interação social global, tendo
classe, criaram uma imprmsa mulata no Rio de Janeiro que vai de 1833 a um espaço social no qual lhe permitiam uma circulação restrita de tal
1867 e terá um caráter reivindicativo e agitativo, procurando mostrar as forma que a sua personalidade, sem conseguir criar mecanismos de defesa
restrições sofridas pela sua condição. De acordo comjeanoe Berraoce de contra tal situação se deformou pela ansiedade cotidiana que dele se
Castro: "dos numerosos jomaisque então apareceram, alguns, mutto bem apoderou desde quando saiu de casa e especialmente quando reivindtcou
definidos por Nelson Werneck Sodré como a imprmsa mu/ata, tomaram cargos ou funções que a ele, por t~ticas suO.reptícias e não mais visí~is,
como lema a luta aberta contra a discriminação racial Esses jornais não lhe foram permitidos socialmente. Com o princípio de que todos sJo
dirigidos e impressos geralmente por mulatos adotaram titules iguais pn".Inte a Lei os mecanismos de barragem étnica se refinaram,
identificadores como: O Mulaio 011 o llomt>m tk Cor, O Brasiktro Pardo, O sofisticaram-se e ficaram invisiveis, tem-se a impressão de que o seu
Glbriio. O CrtJJulmbo, O Mri.l Cu.:~, e quem sabe outros mais, cujos achatamento social, econômico e cultural é uma decorrência das suas
exemplares não foram conservados e que poderiam nos ter fornecido próprias insuficiências individuais ou grupais. Essa deformação da sua
valiosos elementos para novas abordagens, no estudo das relações entre personalidade que é urna conseqüência do comportamento patológico
pretos e mulatos no Brasil. O cunho nacionalista desses jomais é das elites racistas termina segregando-<> em um gueto invisí~l. Todosesses
claramente manifesto e a lmha politica extremada republicana ou elementos fiZeram da sociedade brasileira, no nível das relações raciais,
exaltada e a razão é óbvia, pois eram os grupos que favoreciam reformas especialmente entre negros e brancos, uma sociedade neurótica e
rad icais"45• reprodutora de uma paranóia social, quer entre os brancos, quer entre os
Lutavam, portanto, por reivindicações específicas do seu status negros.
de cidadãos e contra as restrições que sofriam pelo fato de serem Analisando histoncameme esses fatos, desde o inicio da nossa
mulatos. Tinham, portanto, como objetivo conseguirem mais formação étnica e social, elaboramos um quadro procurando refletir essa
cargos na área administrativa (que lhes eram vedados), militar, junção entre o étnico e o social de acordo com a escala discriminatória da
eclesiástica e nas profissões liberais, pois o aparelho de ba rragem sociedade brasileira:
152 153
Dialética Radical do Brasíl Negro Populaçllo. Miscigenaçllo, /dentidad9 Étnica e Racismo

reorganizar e reorden:u-se cultural e socialmente através do estimulo do


Esquema do sistema de valores embutidos renascimento da sua consciência étnica, nos últimos tempos. Mas, a
no processo miscigenatório no Brasil fragmentação cromática subordinada a esse código de valores racistas
<~tingiu psicológica e existenctalmente essas camadas e segmentos
Branco O ldealtlpo étríco =SUPERIOR subalternizados econômica, soctal e etnicamente, fato que produz uma
Mulato Tipo intermediário étnica esocialmente Cruzamento do nebro com Illteriorização nelas desses valores impostos pela elite branca dominadora.
branco. Valor social: inferior ao branoo 1: com 1sto procuram em grande parte fugir simbolicamente do seu ser
Mameluoo Tipo intermediário étnica e socialmente. Cruzamento do fndlo com
rtmco e social, e da sua concretude étnica para uma realidade simbólica,
obranoo. Valorizado simbolicamente em certa época do século XIX ObJetivando reconstituir o seu su através do outro, ou seía da concretude
-Atualmente compõe a massa do campesinato pobre
caruso do dominador. As reações em contrário, verificadas no sentido de um
Cruzamento do índio oom onegro. Tipointermediário igualado étni-
ca e socialmente ao negro. Interiorizado por este motivo socialmeo reencontro com o seu ser, são mu1to recentes e somente atingiram uma
te. pequena parcela da grande comunidade não-branca do BrasiL
Pardo Tipo irx:teterminado etnicamente e pode ser.
- Mulato (também chamad:> cabra quando pobre)
- Moreno escuro. A perda parcial da identidade étnica
- Moreno claro.
- Moreno jambo etc. O processo de fricção imcrétnica durante a dinlmica do desenrolar
Socialmente qualificado pelo status social. histórico do Brasil, teve diversos niveis, oscilando no particular, do épico
fndio Tipo etnicamente folclorizado. JO covarde. Durante todo esse tempo as culturas afncanas dominadas
Sócio-politicamente tutelado. foram reelaboradas como uma cultura afro-brasileira de resistência.
Negro Anegaçãodo idealtipoétnico, social eestético escolhido pela estru- ReSIStiram de todas as maneiras, procurando, durante esse tempo
tura de poder dominante, quer no passado escravista quer no encontrar forças dinâmicas internas para não transformar-se em uma
presente. =a INFERIOR cultura lupenizada pela dominadora. Em determinado momento, com
esse processo de fricção permanente, a identidade étnica do brasileiro não-
No entanto, apesar desse sistema classificat6no hierarquizado social branco e do negro em particular entrou em um estado de perplexidade,
ecul turalmentevia valores brancos e o oegroencontrar-secomo o símbolo dúvida, ceticismo e ansiedade quanto à stiuafiio como ser, em um estado
do que é inferior estética, cultural e biologicamente, ele foi, como de semi-anomia.
povoador o maior contingente demográfico que tivemos, o maior Era a luta permanente pela preservação da sua identidade étnica que
trabalhador do período escravista e o maior disseminador cultural até o entrava em crise. Q.la ndo nos referi mos à situação das rei ações in terétnicas
presente. Apesar dd alta taxa de mortalidade existente nesse primeiro no Brasil estamos de acordo com o antropólogo Roberto Cardoso de
período e das condições negativas e coerntivas sob as quats exercia o Oliveira quando diz:
trabalho, o negro conseguiu, através de nódulos de resistência cultural e "Acreditar que a qf(estão radal do negro, por exemplo, se reduza a um
social resguardar-se da polhica semigenocíd1ca do s1stema até 1850, problema de classe social, é simplificá-la demasiadamente com o risco de
quando era peça descartável pelo seu baixo preço no mercado, em obscurecer a inteligibilidade das relações entre negros c brancos e a cair
conseqüência do fluxo demográfico mjetado através do tráfico internaci- no truísmo, segundo o qual a estrutura de classes condiciona de algum
onal. A partir daí, na fase do escrd?Jl.I11JO tardio, apesar de momentos modo o estigma étnico ou racial. Achar,poroutroladoque a especificidade
dramáticos para ele, como a Guerra do Paraguai, o comportamento da da situação do negro- ou de uma minoria qualquer · seJa de tal ordem
classe senhorial é obrigado a introduzir certas modificaões, traduzidas em que dispense a consideração comparativa de outros casos de relações
leis prol(Loraf6. mterétnicas, é empobrecer injustificadamente o campo de referência
Mas, de um modo geral, submetidos os não-brancos em geral e o empírica e, por suposto, as possibilidades de construção de modelos mais
negro em particular a um c6digoconsuetud i nário de classificação baseado abrangentes e de elaboração de teorias de maior alcance (...) A maior
em uma escala de valores a partir do idealtipo branco, procuram se colaboração entre aqueles que investigam as relações intcrétnicas no Brasil,
!54 155
Dialética Radical do Brasil Negro População. Miscígenaçao. Identidade Étnica e Racismo

sejam entre os índios e brdncos, brancos e negros, nacionais e imigrantes travam, portanto, uma luta permanente nos níveis econômicos e sociais
que desfrutem da situação de minorias, parece--nos ser altamente desejável para que os seus padrões culturais, não sejam manipulados ou mesmo
para se atingir um estado mais satisfatório sobre a dinâmica das relações hostilizados pelos grupos de fora ou pela sociedade abrangente através dos
interétnicas no Brasil, e além disso, alcançarmos uma explicação melhor seus agentes desagregadores.
de nós mesmos- membros da sociedade nacional- revelados nos outros, Qlando essa identidade étnica se dilui ou fragmenta, um dos
muitas vezes desmascarados como homens rordiais, portadores de recursos usados é a fuga do agente discriminado para uma identidade
I ,
ideologias mistificadoras da realidade interétnica - ou como se queira simbólica e ambígua. Com isto, procura refugiar-se nessa identidade
racial- entre n6s"•7 • simbólica e construída a fim de aproximar-se, o mais possível dos
Estas afirmações de Roberto Cardoso de Oliveira nos levam a outro membros do idedltipo escolhido como superior pelas estruturas de poder
nível de reflexão, mais particular e próximo: até que ponto a política do dominantes no Brasil.
dominador permitiu que se guardassem reservas de resistência étnica No que diz respeito àcor, esse fenômeno é facilmente vislv~l no ca~
suficientes para criare desenvolver uma contra-ideologia de afirmação do brasileiro. Procuram identificar-se simbohcameme com o ttpo ma1s
ne_gro como segmento étnico e agente social sem escamoteações, capaz de aproximado do branco. Com isto procuram refugiar-se em uma identi-
evltarqueo não-branco de um modo geral fugisse da sua própria realidade, dade simbólica e distorcida, como se se olhassem em um espelho
sem a necessidade de criar uma redlidade simbólica alienadora? Este deformante. Uma prova disto foi o resultado da Pesquisa Nadorral por
problema tem sido pouco estudado, quer por brancos, quer por negros. Amostra de Domiálio, realizada em 1980. Qleremos esclarecer que a
Mas, ao que parece, os grupos não-brancos, a não ser aqueles que não metodologia do IBGE (entidade responsável pela sua execução) é fazer
podem fugir à sua própria qualificação (como o negro chamado retinto, com que o próprio entrevistado determine, assuma a. sua co~. Eles,
ou o indio tribalizado) fogem muitas vezes da sua realidade étnica para pesquisadores, identificaram-se etnicamente de cento~ tnnta e sets cores
uma redlidade cromática simbólica, quase sempre mp:rzor à sua, de acordo diferentes, dizendo-se desde ror de burro quandofoge, até lz'úís, melada,pumda
com a escala de valores do dominador. E a sua identidade étnica começa para brarrro e outros designativos bizarros e mistificadores da verdade.
a desaparecer. Neste sentido, Marvin Harris conseguiu registrar nada menos do que 492
49
Aqui devemos dizer que entendemos por identidade étnica um nivel diferentes termos de significado racial simbólico no Brasi1.
de consciência individual ou grupal das suas origens ancestrais capaz de O que significa isto em um pais que se diz uma de~oc~acia rac_ial ~
determinar a aceitação, reconhecimento e sua auto-afirmação social e o laboratório modelo para todos os países com populaçoes mterétmcas.
cultural a partir desse nível de consciência alcançado. A partir daí o agente Significa que os segmentos não-brancos através de _um processo
conscientizado passa a contrapor-se aos outros indivíduos, grupos ou alienador interiorizaram os valores brancos das classes dommantes que os
segmentos que vêem na etnia a que pertence uma marca inferioriM.dora. colocaram como sendo inferiores, num trabalho subliminar cujo resulta-
Essa identidade possui uma dinâmica sócio-cultural capaz de determinar do foi conseguir que essas populações queiram fugir do seu ser, da sua
a organização de grupos ou segmentos dispostos a conservar e desenvolver concretude étnica, refugiandcrse numa identidade simbólica e defo~ma­
os seus valores e padrões étnicos entrando em fricção com os grupos da. Isto quer dizer, por outro lado, que a miscigenação n~o dem~cratlZ~U
etnocêntricos que os marcaram. Mas, numa sociedade poliémica e ao a sociedade brasileira nem aceitou os padrões culturats e étmcos nacr
mesmo tempo organizada em classes e estratos com elementos de diversas brancos como iguais. Criou em cima dessa população mi~igenada u~a
etnias em posições diferentes e mesmo antagônicas, essa identidade pode escdla de valores discriminatória da qual ela procura neuroucamente fugir.
adquirir diversos níveis desde a agressividade até a diluição no rorpus da Como vemos o sistema classificat6rio fenotípico bloqueou social-
cultura ou da sociedade abrangente. mente ao invés de,libertar, durante séculos, as oportunidades, em pé de
No caso particular brasileiro já estudamos esse fenômeno através dos igualdade, dessa população não-branca. Essa estratégia c:men~ria irá_se
conceitos de grupo.r e.rpedfi(l)S e grupos difermciddos, correspondendo os refletir na situação atudl, isto é, no perfil da estrattficaçao soctdl,
primeiros àqueles elementos que possuem e desenvolvem a sua identidade econômica e cultural dos mesmos. Foi um sistema dassificatório que
ét1lica e os segundos aqueles nos quais a identidade étnica se diluiu em conseguiu, com a roupagem de democracia racia4 o imobili.smo social dessa
diversos niveis. 48 grande massa não-branca, especialmente negra que até hoJe se encontra na
Os grupos étnicos, as comunidades negras ou bairros rurais negros base da pirâmide social.

156 157
Dla/tjtica Radical do Bras// Negro PopulaçQo, Miscigenaçflo, ldentidRde ttnlca e Rac1smo

Essa identJdade étnica ambigua e simb6hca do brasileiro vem deliberantes aplicavam essa estratégia discriminatória, através de uma
d~mon~ar, na prát1ca, ~ inexistência de uma democracia racial. pois se !>érie de t.lticas funcionando em diversos níveis e graus da estrutura,
nao se t1vesse estabelecido um sistema classificatório que discrimina elaboraram, em contrapartida, como mecanismo de defesa ideol6gica a
socialmente cada cidt~dão pela sua cor, de forma não institucionalizada fi losofia do branq~.ztMnto espontâneo VIa m1scigenação e como comple-
~as socialmente dmâmic.1, não haveria, como contrapartida, essa nece; mento apresentavam-nos como o laboratório piloto.da c?nfrate~niz~ção
SJdade neurótica de o brasileiro tugir de si mesmo, da sua cor real que o racial cujo exemplo deveria ser seguido pelos demats patses pohétn1cos.
estigmatiza étnica e socialmente. Ess.1 dupla face do comportamento das estruturas de poder racistas do
. A tra)et~ria hit6rica, soei.ti, cultural e eronômic.1 dos três segmentos Brasil será o que iremos abordar na conclusão deste capítulo.
~1cos- md1o, branco e negro- na formaçlo, estruturação e desen~l­ Podemos dizer, em primeiro lugar, que no Brasil esse p~blema
VImemo da sociedade brasileira, mostra como essa estrátegia sdetora e de (relacionamento imerétnico) foi conduzido em relaç~o ao ind1o ~ ~
barragem ou limitação do esp.JÇO soci.tl funcionou dinamicamente negro de forma diferenciada, mas com o mesmo conteudo de destrutçao
durante quatrocentos anos. Basta que se observe a situação das populações da consciência étnica e cultural de ambos.
brancas e dos seus descendentes na estrutura s6cie>«onômica brasileira Em relação ao índio, primeiro houve a fase genocídica de ocupaçJo
a situação dos indios e seus descendentes, e dos negros e seus descendente~ da terra e da destruição de milhares dos seus membros. Depois, a fase da
nessa ~~s~a estrutura. I.ogicamente, se as populações indígenas e negras criJti.miz.tçJo, da Cdt~qum, da chamada nMngrliM{Jo, ou seJa, da destruição
eram, lOt~l~~eme, ma~s n~merosasdemograficamente e se as oportuni- das suas religiões e de sanções àqueles que não aceitassem submissamente
dades soctals tivessem s1do Igualmente d1stribuidas, sem os mecanismos a religião do colonizador que exercta nesse contexto o papel de bloco
de barragem e restrições criados na atual soc1edade brasileira eles ideológico do Poder.so . .
ocuparian~ um conjunto de statu.r e exerceriam uma série de papéis S:,ciais Em segundo lugar, foi a invasão das suas terras em ntmo ráptdo e
mutto maJS numerosos do que ocorre. Tal, porém, não aconteceu. violento no inicio, e, depois, lenta e constante, a destruição daquelas tribos
. O últi~o recenseamento, de 1980, mostrou precisamente o centrá- que ainda reSIStiam à inttgrd{.iio, situação que perdura até hoje. Criou-se
no. É .~fic1ente que se diga, em relação ao negro, que participa o Estatuto do Índio no qual os seus direitos foram regulados pelos brancos,
compettttvamente na economia global do capitahsmo dependente (o sem que eles pudessem intervir como agente social e cultural ~inâmico~51
mesmo não acontece com o índio que se o faz é em um nível não Mas, de qualquer forma, os remanescentes dos povos lndtgenas nao
significativo) que somente 0,4tVo dos seus membros comparecem na perderam totalmente a sua identtdade, a sua ter~torial~dade et~ pa~e.
categoria de empregadores. Com isto, têm p61os de apoio que facilitam uma aruculaçao de res1stênc.ta,
pois s.1bem até onde têm osseusdirettos outorgados pelos brancos e aqutlo
a que têm dtreito legitimamente. A desigualdade entre o indio e o
Particularidades do racismo brasi Ieiro chamado homem branco tguala e une os indios na SUd lut.il pela
demarcaçJo das suas terrt~s (territorialidade) na luta contra a invasão das
Qtando falamos de um sistema classificat6rio racial no Brasil mesmas e procuram igualar-se em termos de cidadania. Com isto a sua
subordinado a uma escala de valores racistas, evidentemente não no; consciência ~tnica mantém a sua identidade que se dinamiza no processo
referimos a um código elaborado e institucionalizado legalmente. Assim de resist?ncia pelos seus direi tos diferenciados porque foram-lhe fixados
como nunca elaboramos um Clxlit,o Ntgro que regulamentasse as relações de fora, mas persiste a mem6ria ancestral coletiva.
~n~C! os senhores e os escravos, também niio tivemos um tipo apartlxid da Com o Negro, porém, a situação é dtferente e as estratégias montadas
Afnca do Sul ou uma}un Crow dos Estados Unidos. Da mesma forma foram mats sofisttcadas e eficientes. O ractsmo tem outra tática para com
como a Constituição do Império omitiu a existência da escravidão e o ele. Em primeiro lugar, o negro é considerado cidadão co~ os. mesmos
juri~ta Teixeira d~ Freit~s ~enha se recusado a colocá-la quando redigiu o direitos e deveres dos demais. No entanto, o que aconteceu h1stoncamente
proJeto do C&hgo Ctvtl do Império, assim também esse s1stema desmente este mito. Trazido como escravo, tiram-lhe de forma definitiva
classificat6rio racista não foi codificado e institucionalizado embora a territorialidade frustraram completamente a sua personalidade, fiZe-
tenha atuado dinamicamente durante quase quinhentos a~os. Pelo ram-no falar ou;ra lingua, esquecer as suas linhagens, sua família foi
contrário. Enquanto as classes dominantes, suas estruturas de poder e elites fragmentada e/ou dissolvida, os seus rituais religiosos e in iciáticos tribais
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Populaçt'IO. Misc1genaçt1o. Identidade Étnica e RaciSmo
Dialética R8d1cal do Brasil Negro

População, Miscigenação. Identidade Étuica e Racismo


se desarticu.laram, o seu sistema de parentesco completamente impedido
de ser exercado, e, co~ asto, f~eram-no perder, total ou parcaalmente, mas
Notas
de qualquer forma sagnaficauvamente a sua ancestralidade
I) AZEVEDO. J. Lúcio de. Ép«IIS tk PortuJal Eronômiro. Livraria Cl.\ssica
Além do mais, após o 13 de Maio:o sastema de margin~azação social
qu~ se seguau, colocar.1m-no como tgual pmmte a ld, como se no seu Ed1tora, Lisbo.t, S/0, 3'. Edição, p. 155.
2) MARTINS, J. P. Oliveira. Hislória de PMt~tgal Parceria PFRfl RA. A M.,
coud a~no,d~ sociedade competativa (capitalismo dependente) que se criou Lisboa, 1942,2 tomos, tomo 2i1p. 28-0 momo autor escreVI! sobre este .mu nto:
e~ pnncapao ou ~~.rma não p~sse de um mito protetor para esconder "a ;~gricultura ot;~va inteiramente abandonada, os c~ravos d~cm()(;nhavam
d~SJgualdades socaat~ eco~ômH:as e ~tnicas. O Negro foi obrigado a todos os serviços domáticoseosestungeiros todas as indústrias. Os portugue-
da~utar a sua sobrevtvencaa soc1al, cultural e mesmo biológica em uma ses viviam indolentes, luxuosa e miseravelmente. O belg.t, nem por vi~te
soc1edade secularme~te racista, na qual as técnicas de seleção profissi- ducados ao ,mo, podi.J obetc uma criada em Lisbo.t; e todo o 'eCVJço domátJco
?nal, .cultural, poliuca e hnica são feitas para que ele permaneça era feito por negros c mouros cativos. Os escravos. em número de da mil,
amobilJZado nas camadas maisopnmidas,exploradase subaltemizadas. representavam a oitava parte da população da captial; e seus dono.\ f.u.iam deles
Podemos dazer que os problemas de raça e classe se imbricam nesse criação para venda, como se fo~m bestas. Em Evora, os negros eram motas do
processo de competição do Negro pois o interesse das classes dominan- que os brancos; e o belga. que vinha deSalamanca, onde tivera casa farta,.\ moda
tes é vê-lo marginalizado para baixar os salários dos trabalhadores no do seu Brabame, dizia-se transportado a uma c1dade do 1nferno.
A emigraç:io dos naturais, a incosante importação de negros da África
seu COnJUnto.s7
alteravam a fisionomia da população e Garcia de Ra.cnde escrevia:
O racismo brasileiro, como vemos, na sua estrat~ia e nas suas táticas
Vemos no reino meter
age sem demonstrar a sua ri~dez, alo aparece à luz, é ambíguo, meloso,
Tantos cativos crescer,
pegaJOSO mas altamente eficaente nos seus objetivos. C irc:m-se os naturais,
E por que isto acontece? Porque não podemos ter democracia racial Que, se assim for serão mais
em um país onde não se tem plena e completa democracia social política Clcs que nós, a meu ver.
eco~mica, ~ia! e cultural. Um pais que tem na sua estrut~ra socaai As manadas de escravas, criadas como rebanhos, pervertiam os co\tumes; 'e
vesttgaos do sastema escravista, com uma concentração fundiána e de V2nus, dizia o belga, mercx:e em toda a Espanha o nome: de públ1ca, como em
rendas das maaores do mundo; governado por oligarquias regionais feba~ e mormente em Portugal, onde é raro ver um rn.~nccbo contrair uma
retr6ga~ase broncas; um pais no qual a concentração de rendas exclui total hgaçdo legltama' ".(Idem. p. 27).
ou p~rcaalmente OOCVo da sua população da possibilidade de usufruar um 3) MARTINS, J. J>. Oliveira. Op. Cit., p. 29.
padrao de VIda dece~te; que tem 30 milhões de menores abandonados, 4) TINIIORÃO, J~ Ramos. Os Negros tm Portugal- uma prermça si!Ltuiosa,
carentes ou cnmanaiJZados nJo pode ser uma democracia racial. Editora Caminho, Lisboa, 1988.- Aliás este Livro de um autor brasileiro sobre
a importlncia do negro em Portug"L como escravo, ou 1rabalhAdor compulsó-
Q!ando democratizarmos, realmente, a sociedade brasileira nas suas rio de um modo geral, é indJSpcnsávd põiiol o cientista social que dese)ar
relações de produção, quando os pólos do poder forem descentraJizados entender o comportamento do colonizador português no Brasil e os seus
atravé~ da fragmentaç.io da grande propnedade fundiána e o povo puder mecanismo~ de repressão no nosso contexto escraVIsta.
partacapar desse pod~r, quando construirmos um sistema de produção 5) TINHORÃO, José Ramos, Op. Cit.
para o povo consumar e não para exportar, finalmente, quando sairmos 6) MARTINS, J. P. Oliveira. Op. Cit. p. 73
de ~ma socaedade.selvagem de competição e conflito, e criarmos uma MauricioGoulart informa note sentido: "Em 1512, indo Simão d.l Stlveira ao
~aedade de planeJamento e cooperação, então, teremos aquela democra- Manicongo, recomandava-lhe O. Manuel que troux~ os ruvios, na volta. bem
caa rac1al pela qual todos nós almeJamos. carregados, espeetalmente de escravos. Os próprios régulos o~friunos. aliás,
querendo ser agrado\veis aos monarcas port ugucses, mandavam-lhes escravos de
presente. Foi o que fez, em 1487, o Príncipe Benin, da Gui né, oferecendo a O.
João li cem negros, todos mancebos e bem dispostos.
Em Lisboa, para uma população de cem mil almas, numerav.:~m-sc dez mil
escravos. Nicolau Clenardo assim se referia à capital dos reinos, em 1535:
'Portugal está a ab,arrotar com essa raça de gente. futou em crer que em Li~ boa
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Dialt§tJCa Radical do Brasil Negro Populaçflo. MISC99flaçllo. Identidade Étnica e Racisrro

m escravos~ as escr,was \dO mais do que os ponuguocs livres de: condiç.io'. mento do país, até o~ nosso dias".
Dificilmc~t~ ~ entontraria uma casa onde n.lo houvesse uma escravd, que não BASTOS,Cl.íud1ode Albuquerqu~.FamU1.z & Podtr. !31-1,1991, p.5)· Ycra1nda
scdutmgu1adeuma bot.tdecarga sen.iopde1 figure~. 'Os mai~ ncos tême\Cravos note sentido: OUVPIRA. Luís Antonio de. c S!MOCS, Celso. Porll'!,lftSei no
dcambososscxo\ e há indivíduosquefciZcm bon\ lucros com,, venda dos filhos /lr.uil: siluafàtJ sfxi(Hknwgrájica tm 1980, Comunicação aprescntad.1 ao 1º
d~s escravos, n.tscidos em casa. Ch?a·mc a parecer qu~ os criam como quem Colóquio Intcrnacion.1l de Populaç:io de Exprm.io Portuguesa, RecifC, 1988 •
cna ~-mbas para lcv.1r ao mercado. As c~cr.Jvas, de vez que o fruto seguia a mimeografado.
cond1ç<~o do ventre, cum t.lnlo mais útei~ quanto rn.Jis parissem. Por isso, li) Sobre essa conçcrvaç.io de stP.tus de fdmílias mdicionais de ()ri~em !use1 de
ob6crvava o belga arguto, 'longe de s~ ofenderem com a\ rebeldias dd\ ocravas, ll)rma analltica ver BASTOS, Clãudio de Albuquerque, Op. C:it.
estimam atê que tal sucedo~'. 12) RI BEl RO, DMcy. UngllllS t Cult•ras Índwn;zs no Brasil Rw, p. 34.
Em 1552. havia em üsboa doze corretores de e~ravos que o cro1m 1gualmente I 3) DALLARI, Dalmo de Abrcu.)ustira para os lndJos, in Folha dt São Paulo, 23
de C.lvo~los. Aproxim.~ç.io imtrutiva parc1 a psicologie1 da época, comenta lúcio de abril de 1983.
de A7.cvedo. 14) RI BEl RO, Darcy.Os fndiosea Cl!n/17J.lfào. Ed1toraCivllizaç.lo Brasileira, RJ.
Enquanto isso, 1970, p. 220 -A tendência de ~e integrar o f ndio como forÇ.I de trabalho,wmo
(..) lanHe os Ddturai\ (._) elemt.-nto produtivo na economia de modelo captto1lista vem de: longe. Couto
l.mr<e, seguiam em kg1õcs, numa corrida dcwairada para as fndiJs. Só no Magalhães defend~o"d quo~ndo escr~o-vc em 1876: "Tem-se observado muitas va.es
perlodode 1497 a 1527, nc1vegaramdc Portug;~l pua oOricntctrczcntdsc vinte que os norte-.1mericanos, muito mais o~diantJdos do que nós, n:io encontram
ndu\, conduzindo oitent.1 mil homenç," outro meio de catcqu1ur os seus selvagens sen.io o extcrnúmo. Certamente que
GOUI.ART, Maurício. A tJ<ravidão AfiKana no Brasil das onjtns d aJin{ào do t>~ Estados Unidos são um grande pais e têm muitas, muith\imas coi\aS c:m que
tráfto. 3•. Ed. Editora Alfa.Omt-ga, SP. 1975, p. 27. nm YO supcriort.~. Mas, dai não se segue que, tudooqueelcl. nJo pudc:ram fazer
7) CAPELA, Josê. lisrravatura - empma dr Sdlf~ o abolicionismo. Editora nós também o nJo possamos, c nem tdmpouco que nos seJam superiores em
Afrontilmento, Porto, 1974, pp. 37-38. tudo. Puderam ele.' porventura libertar()$ seus escravos sem derramar rios de
8) Op. Cit. p. 41. 'dngue? N.io. Pois nós vamos ltbcrtando os nos\06 no rtx:-io dd mais profunda
9) RAMOS, Artur. lntroJucão d Antropofogu Braslfâra. Editora da Ca\il do paz c sem v..: r paro1r c nem ao menos cntorrx'Ccr a~ font~ do~ nmY riqueza (_)
E.~tudantc do Brasil, 2 volumes, 1947, 2°, p. 112. Temos, po~ra utilizar o \Civagem, du.J~ fonto de riqueza em qu~ elo h.io feito
lO) RAMOS, Artur. Op. Ctt.- Evidentemente e'~s números fornecidos por d\ suas prova~. e nas quais temos llro1do resultados conhecido~: no\\o~ vastos

uma s6 fonte(o f:Xp.trt.tmentoNacíonc~ldt! I rrugraç.io)cítado por Artur Ramos c.1mpos apropn.tdlssimo' como o~ d~ nenhum outro p.1h do mundo, as
sJo mcom.pletos c n.io exprimem a realidade. O ltamilfatí, dispondo de outra\ 1ndústrias pastom, c nossc1~ vastas flore~tels do Amazonas, Go1.h e Mato Grosso,
fontes, regJStra um total dc4.864.454 ponuguc~cs entrados dediverSol\ maneiras o~bundantcmcnte providas de mo~tcriais p;lril utiliur rrulhõcs de braço~ nas
no Brasil de 1886 a 1960 no seguinte ritmo: /885: 7.611; 1890: 25. 174; !896: Indústrias extrativo~s de borracha, cacau, ylçaparrilha, cravo, ók-o de copaiba,
36.055; 19{)(): 8150; 1905; 20.181; 19/0: 30.857; 1915; 15.118; 1920: 33.883; c multtdão de outrm que )á rcprcsenwn. em nossa riqueu púbbcc1, uma soma
1925:21.508; 1930: 18.740; 19.15:9.327; 19./0: 11.737; 1945: 1.414; 1950: 14.739; dt cerca de quinze mil contos de valor anu.tl de cxport&çõc:s (...) Os norte-
1951: 28.731; 1952· 42.815; 1953: 33.735; 1955: 21164; 1956. 16.~3; 1957: >~mcricanos extinguiram ~cus sdv.t~:ens; nós, os sul-amenco~nos, havcmos de
19.471; 1958: 21.928; 1959: 17.345. Apc:s.u de f.1ht~rt:m algum anos, estes .tprovcitar os no~sos, como os j.í estamo~ o~proveltando em escala multo maior
números aproximanHc muito mais da re.1lidadc. D.:ste total n.io foram do que parece." MAGAll-IÃES,Couto. OStft,agrm Editora l1vrand Magalhães,
subtraídos porém aqueles que voltaram a Portugal. (Fonte: Brasil.· 1960 • 2' Ed. prefaciada c revista pelo sobrinho do ilutor, S.io Paulo. Ver nd Introdução
Situllf.ik: Rtcu_rsos. Possi/n'fldaúrs. Ed. M1 nistério d.H Relações Extcriorcç,Dt'Jl. de todo o subtítulo Oselr'IJ#mcomotftmtnto«onômiro. Devemos acre~cc:ntar, como
Adm1mstraçao, RJ, 1960. p. 145- Mas, o que '>()(..iologicamente intcrc:\~l não elemento de reAcx.io finaL que Couto de Mdgalhãcs c~rcvcu o 'cu livro O
ê a me: ra qua.nt.i ficação des~.l população portugucSol, mas os CSJliiÇOS soei a1s que 'illtltlgtm em pleno rcg1mc escravista c a ISto faz rcfcrênc1a ~c tipo de
ela ocupou truCialmcnte na estrutura dJ ~icdadc bruilcira c a conservo~ç.io .tprovcitamento de trab.llho caberia ~o índ1o nesse contexto: substituiria os
desses c:sp.~ços até os nossos d1.1s. Neste p.u!lculilr o sociólogo CLíudio de escravos negros,.\ medida que os pn metros fossem sendo alforriados, ou ~riam
Albuquerque Bastos, num livro pioneiro de sociologia das linhagem no Brasil escraVIzados? Sobre essa mmtalidadt tmpmanal ver: OUVEIRA. Roberto
escreve: "esta monogro~Cia pretende comtituir-\e em um estudo ~obre a Cardosode.A Soao/oguzdo Brasil Índigena. EditoraTempoBraslkiro/Edusp, RJ.
influência clânica na política brasileira, tentand() mostrar como, em dct~:rmi­
1972, especialmente pp. 74 e scgts.
nados cas~s, ~lgumas fa":'llia~. de origem essencialmente portuguesa, vêm tendo 15) Ver o documento RU AU I TICUNAGU ARU WU( (A l.ígrima Ticuna ê
? prcdomtruo ~ domlmo dos postos CX<.'(utívos do Brasil, desde a época da uma só) do Centro de Documentação c Pesquisa do Alto Solimões e do Projeto
1nstalaç.io do sistema de capito~nias heredi t.irias em 1534, logo após o descobri-
Estudos de Terras I ndígcnas- Museu NacionalflJFRJ.
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Diaf~t•ca RadiCal do 8ras1/ Negro
Popu/açkJ, MISCig8fl8ÇS0. /d8f'ltld8d9 ttfliCa 9 RBCIS!TIO

16) RODNEY, W.1lter Gomo a &ropa su/Jdlf(mmh~tu a Áfiúa. Ed. SeMa Nova,
LU~. 1976,p. 135 Ub.ttuba, os quats pos~uindo cargos de: confiança do governo, deiC$ se: serviam
r7) A insuficiência dc~sas eswisticas refletirem a rC'dlidadc está sendo julg.Jda par• encobrir a açJo contro~bandtsta. Ent rc c:s_~o. destacavam-se pd.t aç.io junto
por vários historiadorc~ que analisam critamentc: os métodos usados .lté agora, .10s C5panh6is c: portugueses o capitiio-mor Diogo de Escobar Ortiz c o tenente:
todos c:les procurando minimizar o total de africanos trazidos compulsoria- Manuel Pereira Jorge, que muitas VCZt:$ chegou a subir a bordo do~s embarcações
mente: para o mundo colonial. c\panholas, nelas comendo e bebendo. Recebeu este úlu mo, por vezes, presente~
18) WEBER, Max 1/uttma ELr:momica Gtntral. Fondo de Cultura Economica. ôc~quc:les a quem protegia, f.uendo tam!Xm o clmbio da moeda brasalc:ira com
México, p. 264/265. A prata castelhana(...) O alferes Lourenço Justmiano praticou o contrab.tndo,
19) WEBER, Max, Op. Cit. p. 256 • Webcr, como sempre confunde a forma l ponto de persc:guar o jUIZ Ordinário Fr.1nci~o Homem de~ Costa, que tendo

com~ e!>Sência. dos fenômenos ~ais, dai negar valor à participação do tráfico denunciado os escândalos do tráfico foi, por is\o, preso "nas enxovias da cadeia
negrcuo na ongem c: dcscnvolVJmento do capitalismo. Isto porque ele via mai~ dessa vila em um tronco de pé." Posteriormente solto, teve sua propriedade
o lado organizacional do sistema e procurava caracteri7.á-lo atnwés da sua t:onfiscada pelo alferes (...) O governador Antônio José de Franca c Horta
ractonaridadc(do ponto de vista webcriano) e nJocomo um procc»> imanente procurou, em r802, impedir quc con t inuas~c: esse tráfico, visto s.~bcr que
e objetivo, como o via Marx. Por isto escreve:: "• escravidão a partir do século homens importantes eram os próprios protetores de: negociaçOc~ 'cc~pd.lc~ de:
XVlll significa muito pouco para a organização econômica européia; foi em ilrruinar inteiramente as manufaturas n;acionais' (.-) Essas medida~ n.io
tr~a um fàto transc~ndental para a acumulação de: riquezas dentro da Europa. reprimiram o contraboando. Acusações continuavc1m a ser apre)cntada\, buscas
C no~ u'? grande: numero de: financistas, porém somente: em pequena escala eram feitas c nada se encontr.ava. Camuflado c protc.:gido pela pcnu mbra e pelas
con.tn~u·~. para dc:sc:_nvolvc:r a forma industrial de: exportação c: a organuação .autoridades, canoas de.: voga levavam os c:S<:ravos a outros portm próximos,
capatahsta {Op. Cat. p. 256). Compara-~c: esta afirmativa com os fatos retornando antes do amanhecer(...) Este tráfico litor.lneo estende-se do micio
apresentados por Eric Williarns para se vc:r até que: ponto Wc:bc:r confundia o do sl:culo XVIII até o ano da Lei Eu~ébio de: Queiroz {século XIX)." Neste
desenvolvimento no seu sentido imanente, objetivo e dinâmico com as técnicas ~cntido a mc:sffid autora escreve: "Em 1850, o delegado de Ub.ttuba em carta ao
de: urna racionalidade introjctada no analista por esta pr6pria realidade social. presidente da Provincia escrevia: 'V. E.x.t. declara que tem ouvido com sensivc:l
20) POMBO, Rocha. Hist6na tio Bras1l W. M. )ackson, Inc. Rio de jane1ro (5 desgosto que no termo de.\la vila (Ubatub.l) ~c: fez e!>Sc tráfico inominãvd com
volumes), 12, p. 98. o m.uor escândalo e descaramento(...) mu que a V. Exa. repugna acredite~ r que
21) MEND<?NCA. Renato. A influtncia A.frirana no Português do Brasil Cia. .as autondades desta vila fa~recc:m os negociantes de negros novos, )á
Edu ora Naoo.na~SP, r935, p. ~~·-Este autor para chegar ao total que apresenta, c\truturando-sc: a5 diligências que lhe são rcquendo~s para a verificação do crime:,
sempre se basoa em fontes ofictats, o que restringe, em muito, as possiveis fontes J.l consentindo que no pr6prio ancoradouro deste~ vila entrem navios tendo a
para se ter um total mais exato das proporções do tráfico. O mesmo autor acha bordo utensílios comprovativos do crime de tráfico, aí se conservem c se
~gtratlfsrimo o cálculo feito por Cal6geras de: quinze milhões de africanos preparem para novas vio~gens sem encontr.tr o mais leve embaraço por p.~rte das
•mportados, mas não apresenta razões que ju~tifiquem c~sa reserva, como, aliás, autoridades. Se tcli\ f.uos cxistíssern, Exm 0 • Sr., se eles fossem vc:ridtcos é
Calógeras tam!Xm n.io apresenta as razões que o levaram ao total que mquestionávcl que as autoridades desta vil.a teriam f.lltado a seu dt:ver, teriam
apresentou. cometido uma prcv.aricação; e JX>r isso V. Ex;~ permitirá que cu que wu uma
22) Para se ter uma VJS.io mais aproximad.1 do vulto do contrabando de dessas autoridades- afa~tc de: sobre num o estigma de protetor de traficantes
africanos,c,cmconscqüênctaa precariedade do~ cálculos fcitossobreosc:u total c dc:chne a responsabilidade que sobre mim c mais autoridades pretenderam
ba~ta atentar-se para que muito antes da Lei de l830 ele já era pCdti<:ado acarretar pessoas que ou por mal informadas procurMam ilaquear d boa fé de
eVIdentemente vasando não pagar-se os díúmos dd Coroa. Beatriz Westin de V. Exa.' Cstes siio os termos de um oficio do delegado Antônio Gonçalves
Cc:~queira, ao estuddr a escravidão em Ubatuba, cidade do litoral paulista, Barbosa da Cunha ao Presidente da Provi neta, no dia 8 de abril de 1850, ti nco
rcg.stra que o contrabando de: escravos desde 1795 era registrado naquela vila, meses antes de ser decretada a proibição definitiva do contrab.mdo, como se as
escrevendo que "em 1795, tinham-se tornado tão freqüentes as notícaas sobre autoridades, tardiamente, procurassem dcfcmlcr-sc: de possiveis acusações
o contrab.mdo no litoral que o Vice-rei, Conde de Rezende, decidiu se: fuCSM: futuras. Mesmo a!>Sim aind~ há notícias de: desembarques ap6s a Lei Eus~bio de
uma averiguação a c.erca do assunto. Sebasriiio )os~ do Amaral, enurr<:gddo da ~eiroz." A mesma autora conclui o seu estudo afirmando: "apesar de: tudo,
orde.rn. ~rcorrc:u.a alhtt das Couves e chegou a Ubatuba, onde procurou o Juiz sempre se falou em contrabando, apontando-se como focos de negociações
Ordtnáno, Franctsco I [ornem da Costa, que lhe escrevera uma carta, advertin- •lícitas ora ilhas, ora en~eadas, buscando-se escra~s no~s na~ fazendas, ora
do-o a respeito do contrabando no litoral. Afirmava ser comum a cheg~da de: espreitando se: embarcações que, segundo ~c dizia, carregavam negros nasão".
contrabando vindo de Montevidéu à üha dos Porcos e das Couves(...) A rede C ERQUEIRA. Bcatri.J. Westin de. Um Estudo da EscravitiiiiJ em Ubatuba- in
era bem organizada. Dela faziam parte homem de prestlgto polltico em Estudos flisr6ricos, Assis (SP), n9 5, dezembro, 1966, p. 51/56).
Esses últimos acontcctmc:ntos foram registrados depois de 1850. Se em uma
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Dialética Radical do Brasil Negro Popu/açao. Misclgenaç/Jo, Identidade Étnica e Rac1smo

~implcs Vila do litoral paulistd o contrabando de africanos era organizado ao consagrada. Chegar-se-ia, com tais números a confimaras seguintes proporções,
nlvel de envolver diretamente importantes autoridades locai' calcule-se em entre a população livre e a escrava: 30<Vo em 1600; 40<Vo em 1700; 50% em 1850".
todo o Brasil durante o periodo que antecedeu à lei Eusébio' de ~eiroz c 13ARBOSA, Francisco de Assis. MmnmmloAbolinonista rro Brasz~ in Atualidadt
mesmo a de 1831, pois no século XVIII ele já era constatado em Ang.lluba pelo r Abolirão. Manuel Carreira de Andrade e Eliane Moury Fernandes (Orgas)
menos, durante todo o pcriodo colonial da escravidão. E.~ta é umil das razões Editora Massangana, Recife, 1991, p. 14).
que achamos que as estimt~tivas sobre o total de africanos contrabandeados no 31) RAMOS, Artur. lntrodllfâo à Antropologia Brasiltira. Editora Casa do
Brasil são incompletas porque se baseiam em fontes limitadas e em documentos Estudante do Brasil, RJ, 1942, 19 vol., p. 110.
oficiais. 32) Sobre o tráfico africano e a conscqucnte mfluência do negro na região
23) ~URTIN, Philip D. Tht Atlantic Slar~e Trade -A Cmsus, Wisconsin, 1969, amazônica, ver: SALLES, Vicente. O Nrgro no Pará, Fundação Getúlio Vargas/
pass1m. UFP, RJ. 1971 -DOAS, Manuel Nunes. A Companhia Geral do Grão Pará e
24) As_ diversas dis.cussões sobr~a existência ou não de um modo de produção Maranhão (1755-1778). 2 vols. Universidade Federal do Pará, Belém, 1970-
escraVIsta no Brasil foram analisadas na Introdução d~te livro. J!IGUEI REDO, Napoleão.Repmsandoosesllldouobt?aprtStnfLI.a.fricana no Brasil
25) KLEIN, Hebert. Tráfico de EscrafJOs in IBGE- Ertatl.sria.ts Históriras do Brasil, r o trájiro de tsrravos naAmaz.ôma co/oma~ in &/etim de ptSIJUisa da CEDT:.AM,
vol. 3, Séries Econômicas, Demográficas e Sociais 1550 a 1985, p. 53 scgts. Manaus, Vol. 6, n2 11 -Julho/dezembro de 1987, pp. 164-186- Idem, Presenra
26) KLEIN, Hebert:, loc. cit. Africana na Amazônia, inA.fro-Asia, CEAO, Univ. Federal da BA, n° 12,1976,
27) KLEIN, J-lebert:, loc. cit. pp. 145-160. Idem, O tempo e as ~ntes daA.frira no Brasil e naAmaz.ônia Colonial
28) IIOLANDA, Sérgio Buarquc:de. Prifádo, inMauricioGoulart.A Escravidão m Diáno Cultura~ suplemento do D1ário do Pará, 03.10.1987.1dem,A diáspora
Africana no Brasil, (3•. ed.), Editord Alfa-ómega, São Paulo, 1973. africana naAma:dmia, in Diário do Pará, 26.5.l988.ldem,Amaz.ôma, trmpotgrntt,
29) Ainda sobre o tráfico consultar GOUlART, Maurício, op. cit. Idem, O Prc( Municipal de Belém, 1977. LOUREIRO, Antônio. RejltxíXs soltre a
pro!Jlema da mão de obra: o esrra110 afril"ltflo, in HOLANDA, Sergio Buarque de. rsrravidào e uma visào da etnia ne1.ra no Amazonas, in Supkmmto Lilerdn"o
(Org:) Históna Geral da CiviliZtl{ikJ Brasl'leira, 11 vol. Editora Difusão Européia Amazonas (edição especial). Manaus, maio de 1988, pp. 26/32 - BRAGA,
do L1vro, SP, 1960- TAUNAY, Afonso de. Subsídios para a História do Tráfico Roberto. A escravatura negra no Amazonas, loc. ci1. pp. 33/37 - H EN RY, Ana iza
Aforano no Brasi~ Imprensa Oficial do Estado, SP,l941, VERGER, Picrrc. Pluxo Vergolino e PIGUEIREDO, Napoleão. A presenra a.fricana na Aml12.6nia
t rejlu.xo do tráfico de escra11os entre o golfo do &nin e a Bahia de Todos os Santm Co/onia~ rottiro analitiaJ de uma dorumtnta{ão inldita, (mimeografado). Ver
Editora Corropio 21. cd. p. 1,987- TAVARES, Luiz Henrique Dias. ComEm·~ também: CARNEIRO, Edison.A totll{uistadaAmaz.ônia, inA cidade de Salvador
Proi!Júfo de Escrl1fJos, Editora AtlC<l, SP 1988. -A ronquista da Amazônia, (2'. cd.) Editora Civilização Brasileira, RJ, 1980-
30) CON_RAD, Robert Edgard. Tum!Jtiros, Editora Brasiliense, SP, 1985, pp. 119 AG LEY, Charlcs. Uma comunidade ama7.ônira, C ia Editora Nacional, SP. 2•. ed;
~c:gts. -Ainda sobre a avaliação do número de africanos entrados no Brasil, 1977 - BRAGA, Roberto. A tSCTawtura nrgra no Amazonas, in ACERVO-
d urantc os séculos XVI, XVII c XIX escreve Robert Edgard Conrad, pondo com Revistado Arqui11o Naâonal, Rio de Janeiro, vol. 3, n2 1, Jan.- jun. 1988, p. 51-
ra1..io em dúvida as baixas avaliações de alguns historiadores que "o número 60.
exato de escravos importados para o Brasil em um periodo de mais de 1rezcntos 33) SOU7.A, Gabriel Soares de. Tratado /)(scniifJO do Brasi~ 3~ Ed., 1938,parsim.
a n?s jama~s se~ã conhecido, mas, considerando a informação citada acima, as 34) Pe. Antônio Vieira, trecho de uma carta escrita em 1648.
ba1xas esllmahvas fornecidas por Goularl, Curtin, Buarque de 1 Jolanda e 35) Laura de Melo e Souza escreve neste sentido, procurando demonstrar que
outr~s devem pelo menos ser reavaliadas." -Segundo o próprio professor em Minas Gerais não houve uma fase de fastígio econômico c outro de
Curt m, a cifra de 3.646.800 foi aceita "principalmente porque é a soma das decadência, o primeiro reprodutor de uma situação de riqueza geral e de
csti mativas por período de tempo de (Prcderic) Mauro e Goulart". A cifra exata beneficio para a plebe e o segundo decadente, da economia da mineração que
fo1 consideravelmente mais elevada, que é concebível a entrada de mais de "alusões à pobrcr,.a, à ruína, ao abondono a que ficilvam relegadas as populações
5.000.000 de escravos no Brasil durante todo o período do tráfico. F..sse total mineradoras representam a tônica dom i nantc dos documentos do século XVI li
incluiria talvez 100.000 africanos no século XVI, 2.000.000 no século XVII. mineiro, sejam eles oficiais ou não. Os dois textos que descrevem as festas
2.000.000 no século XVIII e mais de 1.500.000 nos últimos cinqucnta anos de barrocas aprcscntam-5e portanto, como extremamente destoantes no concerto
tr~fico". (CONRAO, Robert Edgard. Tumbtiros, Ed. Brasiliense- SP, 1985, p. geral; quase que se poderia dizer constituírem os únicos registros que fil.7-em
43J No particular, s~ndo Francisco de Assis Barbosa, "em estudo posterior, menção' à riqueza e à opulência. Mais um moúvo, pois, para se acredita r na
Ntrcca Buescu reavaltou métodos e cálculos, e partiu das cstim.1tivas da inversão idtológica operada através da vis:io que: as fc~tividades confcridm à
população escrava, fixadas em épocas diversas. As estimativas, segundo Bucscu, sociedade. Sendo como já ficou dito acima, mecanismo de reforço, invcrs:io c
em Exurfcios ~e ~-listóna Econômica do Brasil (Rio de Janeiro, 1968), a importação neutralização, a festa servia admiravelmente à perpetuação de um estado de
total terta aung~.do 6.353.500 escravos, quase o dobro da cifra até o momento coisas que interessava tanto ao lado metropolitanoqua nto à sociedade escravista
166 167
Dialética Radical do Brasil Negro Populaçtlo, MISCigenaçtlo, /d9f)tidade ttnlca e Racismo

colonial: em um e em outro, é o mando que se legitima, igualando as diferenças 41} DEBRET,Jean Batista. Viagempitamcae }Jístóriraao Brasil, Editora Martins,
e, ao mesmo tempo, acentuando-as; é o poder que se fn autêntico para conferir SP, 2 vols. Il1, p. 87.
um espaço às populações pobres ·o mulato, o gentio da terra • e, simultane- 42) DEBRET,Jean Batisra, Op. Cit. p. 87.
amente, mantê-las respeitosas que a pompa ajuda a delimitar." SOUZA. Laura 43) A salvação do escravo pelo batismo era apresentada literalmente como uma
de Melo. Desclassifoados do Ouro. Editora Graal, (2 1• ed.), Rio de Janeiro, 1986, dádiva divina. No particular Vieira é explícito e em um sermão dirigido aos
p. 30. escravos em 1633, afirmava: "Começando pois pelas obrigações que nascem do
36) Diário tk Ptmambuco. Recife. 29 de janeiro de 1886. vosso novo e tão alto nascimento, a primeira e maior de todas é que deveis da r
37) O Clube do Cupim era uma associação iniciática fundada em Recife para infinitas graças a Deus por vos ter dado conhecimento de si, e por vos ter tirado
dar fuga aos escravos. Carneiro Vilela que o descreveu, afirma: "fundou-se o Club de vossas terras, onde vossos pais c vós vivieis como genúos; e vos ter trazido
do Cupim com vinte sócios efetivos que tornaram por nome de guerra os das a esta onde instruídos na fé, vivais como cristãos, e vos salvcis (...)A Mãe de Deus
vinte províncias do Brasil. Inspirando-se na admírávcl organização da Carbonária, antevendo esta vossa devoção, vos escolheu de entre tantos outros de tantas c
cada um desses sócios, tinha àss uasordens umcapitão,esteumsubcapitão,que, tão diferentes nações, e vos trouxe ao grêmio da Igreja, para que lá, como vossos
por sua ve:z., devia ter às ordens ou comandar vinte aultiliares, os quais todos pais, vos não perdesseisecá, como filhos seus vossalvasseis. Esteêo maior e mais
tomavam por nome de guerra o de qualquer localidade brasileira. Foi assim que universal milagre de quantos fazcadadia,e tem feito por seus devotos a Senhora
o Clube do Cupim conservando sempre os seus vinte membros efetivos, dos do Rosário" (VI El RA. Padre Antônio. Sermiic dédmo quarto, pregado na Bahia,
quais saía uma executiva de três a cinco, chegou a contar com um corpo efetivo à Irmandade dos Preto de um engenho em dia de S. João Ewngelista, no ano de 1633,
de trezentos e tantos auxiliares, cada qual mais dedicado, cada qual mais ativo, in Sermõer. Editora Lello & I rmão, Porto, Aillaud & Lellos Ltda, Lisboa, 1951,
todos impavidamente solidários. 15 vols, vol. Xl, pp. 303/304.
Não tinha estatuto, sendo o seu único fim a libertação de escravo por todos os 44) Ver neste sentido: OUVEI RA, Maria Inês Côrtes de. O Liberto: o seu mundo
meios. VILELA. Carneiro. OC!ub do Cupi"4 Revista do Instituto Arqueológico tos outros, Editora Corrupio, São Paulo, 1988, passim.
llistórico e Geográfico Pernambucano, n!! 27, pp. 41742 1). 45) CASTRO, Jeanne Berrance de. A Imprensa Mulata, in Suplemento Literário
38) Ver neste sentido: C I liA VENATIO, Julio José. Gmoddio Ameni:ano: A de O Estado de São Paulo, SP. 2/11/1968. Neste sentido escreve Nelson Werneck
Gut"a do Paragua~ Editora Brasiliense, 61 Ed., SP, 1979, passim. No capítulo Sodr~ analisando o fato: "As inquietações geradas em três séculos de domlnio
sobre o escravismo tardio abordamos o assunto mais analiticamente. colonia~ sob a rígida estrutura do latifúndio, deflagrariam na fase de transfor·
39) Ver no particular: MOURA, Clóvis. Sociologia do Ntgro Brasl1tiro, Editora, mação em que se esboçariam os traços fundamentais deu m regime novo, para
SP, 1988, capitulo O 8rasl1tma de rer Branco e Capitalista, onde o problema da a nova situação, a da economia. No fundo, as contradições repontav-dm, como
política imigra ntist.l e os seus condicionamentos econômicos e idológicos são a ação de forças ainda recentes contra a inércia do mundo rural. Traduziram·
abordados. se sob formas as mais diversas, tal de apresentar o comerciante luso como
40) AB~EU, Capistrano de.lntrodução aos Diálogos das grandezas do Brasi~ de responsável por todas as mazelas, propício a todos os golpes, misturando-se a
:-mbrósto Fernandes Brandão, Dois Mundos Editora, R). 1943, p. 31. A condição nacional e a condição de classe. como já se começava a misturar, em
mclusão do componente como elemento diferenciador entre o escravismo relação aos africanos eseus descendentes,acondiçãodeclasse. Entre os pasquins
c.Iássico e o moderno foi destacado por Moses L Finley quando escreve que "os da época, aliás muitos denunciam até pelos títulos: O Crioulo, O Crioulinho, O
hbertos do Novo Mundo carregavam na cor de sua pele, um sinal externo de Mulato, O Cabrito, O Homem de Cor-o problema que surgia. Mas os elementos
sua origem escrava, mesmo após várias gerações, com gravíssimas conseqüências todos, aqueles que disputavam agora melhor posição, quando alguns a
econômicas, sociais, pollticas e psicológicas. Os libertos antigos simplesmente conquistariam logo, como os ligados ao comércio urbano, os que se rebelavam
desapareciam no conjunto da população em uma ou, no máximo duas contra as imposições implacáveis do meio, e que vinham mais de baixo na escala
gerações." FI NLEY, Moses L EstrarJldiloantíga tideologia modema, Editora Graal, social, o liberto, o artesão, o trabalhador urbano, o pequeno funcionário, e os
RJ, 1991, p. 101) ·Este fato diferenciador, isto é, o componente étnico na base que lutavam pela manutenção dos privilégios tradicionais, em defesa da sua
da contradição senhor ·a branco e negro· a escravo é que muitos sociólogos preeminência social, política, econômica· todos não haviam encontrado ainda
da escravidão moderna não valorizam, chegando, mesmo, acha mar de racistas o instrumento adequado de luta, a finalidade segura de seus impulsos, nem
aqueles que procuram demonstrar essa particularidade e as suas conseqüências mesmo os caminhos e a forma de preservá-los ou de conquistá-los". SODRÉ,
no contexto da sociedade que a substituiu nas Américas. Essa visão mecanicista, Nelson Werneck. Hittória d4 lmprenra no Brasi~ Editora C ivilização Brasileira,
muitas vezes fruto de um marxismo que não procura ver as particularidades, RJ. 1966, p. 1811.. Esta falta de finalidades e de rumos da população não-branca
mas somente as analogias com os textos clássicos, vem demonstrar como há um levaria a que os mulatos se sentissem diferenciados da classe escrava negra e, ao
atraso teórico muito grande na análise das particularidades do escravismo invés de juntar-se à mesma procurou um objetivo de mobilidade não a
moderno, especialmente no Brasil. incluindo na sua proposta.
168 169
Popula~. Mlscigenaçso. Identidade Étnica e Racismo
Dial~tlca Radical do Brasil Negro
. . Sl • HASEMBALG, Carlm. Discrimin~Jo_e
46) Essas leis protl10ra\ podemos enufll(;r.tr estilodo enquadradas n~te lt•lll'a\() Echtora, Salvad~r, 1? G I RJ 1979-IBGE,As-ptdosdarlluarao
o Deueto n~ 3.725 de6de novcmhrode 1866queasseguravaalforriaam•~rn• oi.(Uaftladts raciais no Brasil Edttora raa/ '. BOXER. C. R., Rtla(Õts rtUuW no
da n.lfào (do governo) que lutaram n.t Guerra do Paraguai; a Lei n9 uMVnômica dt brancr:s e ~~gras ~ Brast Brastleiro RJ 1967. DEGLER. Carl
de setembro de 1871, ou Lei do Ventre LIVre, como é popularmente IHI(Iria ro/onial portMt,I«S, E tto~~- empola - "iUÍaiS ;o B;J.Sil t nas &tados Unidos.
que decbrava livres ~ escravos da Naç:io c outros filhos do ventre escravo; là N N'"' prtt o nmtúranco-estrafltuaoert fVI'S" . IANNI
. 971 CAROOSO J:Crrundo llc:nrttjUC c •
n 2 3270 de 28 de setembro de 1885, conhecida como l...a dos Sexagenários qui l•htor.t Labor do Br~stl, RJ, ~ R. 6 lis. Cia. Editora No~ctonal, SP, 1960
ra:onhc:da como livres m escra~s com m.us de sessenta anos, além de outiOI ) ,,,vio Core~uJinbdadesoa e:'':,A~~-~ 1 Editor~ Nacion.•l,SP, 1932- Idem.
atos como n:io pc:rmitir a venda de ca~us ~ravos para amos difc:rentc:s c a VIANNA.Ohvem.Raçtcasnnu'"i-"o., ~ . RJ 1956 4•. h.l· Pinto, L
. do l>tWHI brasilmo. Edttora Jo~ Ohmpto.. •
abolição da pena do açoite:.
47) Olivt:ira, Roberto Cardoso de. ldentidc~de, etma e estrutura social, Editora
I ti(' Ill(ilO r--- .
f\ Cmta. O Nrgro no Rio e anttto., t • .
d } · C a f:íhtora N.KtOn.l.
•.
• PdrÓ
I SP 1953 •
• -
lis, 1980.
Pioneira, SP, 1976, p. XIX. NASCIMENTO, Abdtas do. f?-1111ombumo.. EdltoraBV~~~ NY ~79 • idem,
Massacrt~ Edttora Afrodtaspor.l u a 0 • '
48) MOURA. Clóvis. O nrt.ro: dt /10m lS(TarJO a mllll dd4dão? Editora Conqui~tao Idem, J\.1IXturt or -azil;. . b ality~ Sketch Publishing Co. Ltd.t lbadan,
RJ, 1977, espctíalmc:nte o capítulo O nrgroromoppoesptdfiroe difimrciaJo,. U~J~ial tkmorracy m Br. . · 11111
or ':rasil;tro • 0 dt um ramnro mascarada.
1977 ·Idem, O tfnoddto d; ~~~DEPLAR. ~l.UIMG. Dtsl!fialdadt ~d~l
uma soc~dade romptiÍflfJil, pp. 127 sc:gts.
49) HARRIS, M.uvim. Rrfirrnnal Amln'luity in 1/:lt oocu!Ja oflmuJitan rti/:Íil/ I dttora Paz e Terra, RJ.19
8 9 • FILHO Mário. O negro nojiatlJOI brastlmo.
idtnllty, In Norrn.an, E, & s. . c:d,J.I;., EJitora Afro-American antropology, Ncw r111 13rasll ro_n~t~tpo~âneo, ~H.'
19 1 z•: f:.d .. BROKCIIAW, D.IVid. Raça
l:dttma CtVlh7.açao Bras~e.tra, RJ_,
196
YorkThc Frec Prcs.\, 1970, pp. 75-86. Ver no mesmo sentido: WOOD, Charlca ~ . d Aberto PA. 1983 · SAYLR..\
11. CriiSus caugonts and sulljttiw dassifirations of raa in Brazil· an empiriad (7 (.or na littratura brasile~ra, EdJtobra ., e_rca ~ditor.l Crulc:tro, RJ 1958 •
asressmen4 comunicação apresentada ao seminário mternacional Desigualdade I{.tymond. 0 nrgro .
na llteralura rasuma. · fi (''"
S. . liza ;io e rrla~-õtr racwis·um tltlldO de 'a Til lia ntgra
racial no Brasil Contemporâneo, Belo llorizonte, 1990, (mimeografado). 1\ARBOSA.Mar~a lre~~L~VU~ SP 1983 FERREIRA.MmamNicolau.A
50) Sohrc a \Ítuação atu.ll do lndio ver: CUNIIA, Manucla Carneiro da. Os tmCampinas,Edttoraf_ (1915-Í9Ó3), Editora HLCIIjUSP, 1981 .
direitos do fndto. !'.di tora Brdstliense, SP, 1987, passim. tnrprtnsa nrgra paulista O B aslf dasrnzala àgue"ado Para,gllat.
51) Cf. I 11\SEIJ~AG, Carlos. IJJSCrimina{íio t Dm1gT~ald4dtt Raciais no Brasil. ciiiAVENA:r!O,Julio José. ~:~ n:o ~as dt illtil contra 0 raruma. SP, 1988
Editora Graal, RJ, 1979. I'di tora Brasthc:ns~ ~P. 1980: . ' e a~res ne rm. om 11 0 cfamordtstt povo
52) Sobre a existênci.1 c as otr.lt(-gicds ideológicas do ractsmo brasileiro, - Comis~o ~os rehgtosos scmtna~tst~8i'. MOU~ Clóvis. flutória do ntuo
neg;~ndo ou constatando-o em v.íria\ .1bordagens e conclu\àes, comulte-se •• Ntgr_o. E~tt~ra Vo_zes, Petrópo s, • Idem. Ar in)JtJll{llS de !to . o nq,ro ~a
fundamentalmente: lüRRES, Alberto. Em prol das nossas rarM. in O problema /trasilmo, Edttora Attca,. SP, 19r. d l. Bll 1990 -Idem, O prtconmto
nlkional brasi!Liro. Cia. Edttord Nactonal SP. 1938, pp. 119 e segts. Idem, Ar /lt!roriogra~ brasiltira. Edttora ~toc:;~~e~~~otJniv;rsit.íriJ, SP, 1976 • Idem.
fontes tk vtda no Brasl~ RJ, 1915 • VlAN A. Atahba. Gente sem rll(a. Cia. Editora dt cor na llttratura de rordt~ ~~ Global, SI' 1983 -ldc:m f\nriologi.z do nrgro
. 1... J p otesto nt'"O Edttora • • . d .
NaciOnal SP, 1944, p.liSim • FfRNANDES, Florestan. O ntgro no mundo dos I I r.aJ1. ra~DI ~' r ' . ". ' 988 BOMII C 1\R, Álvaro. O pr((onauo e '<ll"' no
branros, Üifuslo Européi.l do Livro, SP, 1942 -Idem, A inlegril(ão do ntgro n11 brJ.StftJ~ Edttor.t Attca, SP, I . -MOTIA_ Roberto M. c. Rll(a. am/Jit,milaJt
soritáadt dttlasstt, Edttor.t DominusfEdusp,SP, 1965,2 vols. -Idem, SwrifiraJo 8r.mLTtpografiaAurora,RJ,1916 . c·· tr6rnro, ~l I Julho/
drjsa dt Gilbrrro Fmrt, tn Jtnna c r· . •
do prolesto nrgro. Cortez l·dttoro, SP, 1989 · FERNANDES, florc:\tan c t drnwgrarfia uma / • COUTINHO, José Maria. Odaro•urntJnro sorial to ntgro
BI\SllDE, Roger & Branros t nrgros tnt São Plllllo, Cia Editora Nacional, SP, dC'lc:mbro, 197~ n 2 . afado) .JREYRE, Gilberto. Pro/J!tmas Brast·
1971, 2' Ed. Idem, Rrla(Õti raalliS mire nrgrosc braruos tm São Plllllo, Editora #lraiilàro. Vitóna, 1989,_(muneogrd Es d t doBrasil RJ 1943-ldcm.Casa
. J.A .~r . EdttoraCasa o tu an e • • . . ld
Anhemb1, SJ>, 1955 · NOGUEIRA. O r<~cy. Tanto preto quanUJ branro -tSJudos de /nros uc ntroY"'ogta. . or o RJ 1943 4. c:Uiç:io d..:fintttV.l. em,
refa(Õti rarttlJS.. Ldnora T. 1\. Quctroz, SP, 1985 -IANNI, Octavio. Escrawdão t Grande & SmZAla. ~ttora Jo~é tm~~o,R ~s i~ mente o 2o tomo, capítulo
Rarismo. Editora llucitcc, SP, 1978 -Idem, Ra{asedassessocia.is no Brastl(edição Ordtm t Progrtsso. Edttora J.o~ Oll~p B J, l ~NIZ Alm.Khto. J/irr6rnt raaal
ampliada), Editora Brasihense, 1987 -SI LVA, Martiniano J-. Rarumoàbrasiltira ARrpú/Jiicae~pr()(tSSOdem~araon~p '~~ 4 .ol.IVEIRA, W.1ldir rreita de:.
- rafztt histórras. Editora Thcsauros & 2•. ed., 1987 • ASK.HJDMOR, Thomaz. do Brasi~ Edttora Cultura . er~ai 'Brasr~ in A.fro/Asia, n•s 8/9, Salvador,
Prrto no Branco, ra{ll t narJonalidade no ptnsamento brasi!tiro, Edttora Paz e rerra, Conndera(Ões sobre o preroncttUJ racJa no
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· Idem, Ar elita de cor. Cia. Editora Nacional, SP • Idem, Democracia Racia~
Editora Vozes, Petrópolis, 1975 • Idem, CifJilizll{ão e nusticagem, Livraria
171
170
111
Linguagem e Dinamismo
Cultural do Negro

173
"Passando um senhor perguntou:
- O que escreve?
-Todas as lembranças que pratica os favelados, eMes projetos de gente
humana."

Se eu pudesse mudar de favela! Tenho a impressâo de que estou no


inferno.
Sentei para escrever. A filha da Sílvia, uma menina de seis anos,
passava e dizia:
- Está escrevendo, negra fidida!

01oveu e esfriou. É o inverno que chega agora. E no inverno agente


come mats. A V era começou pedir comida. E eu não tinha. Era a reprise
do espetáculo. Eu estava comdoiscruze1ros. Pretendia comprar um pouco
de banha para fazer um virado. Fui pedir um pouco de banha e arroz a
D. Alice. Era 9 horas da noite quando comemos.
E assim no dia 13 de maio de 1958eu lutava contra a escravatura atual
-a fome.
oo••••••••••oooooooooooooo . . ooouo-ooooooO<ooo•oooouuooooooooooo . . uoo o ooooo

O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que jd passou fome. A
fome também é professora."

Clrolina Maria de Jesus

"Deus meu! Por uma questão banal de química biol6gica do


pigmento ficam alguns mais rebeldes e cunosos f6sseis preocupados, a
ruminar primitivas erudições, perdtdos e atropelados pelas longas galerias
submarinas de uma sabedoria infinita, esmagador.t, irrevogável!
Mas, que 1mporta tudo isso? Q.tal é a cor da tempestade de
dilacerações que me abala? Q.tal a dos meus sonhos e gritos? Qual a dos
meus desejos e febre?

Cruz e Souza

17'1
As culturas africanas transformam-se no Brasil
em uma cultura de resistência

Um dos aspectos mais estudados quando se aborda o negro no Brasil


~ o da sua origem ~tnica e de qual cultura provém. No particular, a
bibliografia vem se ampliando a partir de Nina Rodrigues• e cont ínua,
.1través dos trabalhos de vários autores de níveis de importância e visão
teórica e metodológica diferenciados. 2 Essa preocupação com os grupos
étnicos africanos trazidos para o Brasil e o seu respectivo valor cultural,
podemos encontrar no próprio Henrique Dias, na sua famosa carta escrita
.1os holandeses na qual, além de especificar o grupo de origem dos seus
negros, explícita as suas qualidades culturais dizendo: "de quatro nações
<.e compõe este regimento: minas, ardras, angolas e crioulos; estes são tão
malcriados que não temem nem devem; os minas são tão bravos que aonde
nJo podem chegar com o braço chegam com o nome; os ardras tão fogosos
que tudo querem cortar de um golpe; os angolas tão robustos que nenhum
trabalho os cansa"3•
Os traços de cultura de cada grupo étnico determinavam o
comportamento dos seus membros na divisão do trabalho militar na
lula contra os holandeses. Essa preocupação é constante em todos
lAqueies que desejavam avaliar a qualidade do negro africano como
rscravo ou como executor de qualquer outro tipo de trabalho compul-
·;óno. Na mesma época da carta de Henrique Dias, o holandês Adrian
v.m Der Dussen escrevia: "os de Angola são os considerados maus
tr.tbalhadores; os de Ardra são obstinados, maus, preguiçosos, sem
111iciativa e difkeis de se adaptarem ao trabalho, mas que, entre eles, são
1 .1pazes, sob repassarem todos os demais em vivacidade e esforço, de tal
modo que parece que os bons e os maus pertencem a nações diferentes.
Por 1sto no tráfico em Ardra devem ser bem considerados, porque esse
r.uno mau faz dos ardras pouco procurados. Além disto revoltam-se
r ontra os que os dirigem e muitos fogem para as matas e fazem muitas
mJldades; são audaciosos e valorosos, não respeitam ninguém. Os
1 .tl.tbares ainda são menos estimados do que os ardras, de vez que deles
11 10 se consegue nenhum interesse, nem coragem nem trabalho. Os
llt'~ros de guiné até a Serra Leoa e do Cabo Verde não são muito
tt.tbalhadores, mas são limpos e vivazes, especialmente as mulheres,
177
Lnguagem e Dinam•smo Cultural do Negro
Otal~llca Radical do Brss1/ Negro

pelo que os portugueses os compram para fazerem trabalhar em Também é compreensível se o processo de nivelamento - conseqü-
suas casas" 4 t ncia do isolamento tanto quanto do contato direto e permanente de
. Podemos ver, portanto, que os negros, já eram vistos com aptidões múmeros grupos lingüisticarnente di~erenci.1dos t~as. ~~~alas - tive~se
diferentes, quer para a arte militar, quer parao trabalho de uma ou outras $tdo tnduztdo pela língua do grupoetmcamente maJontanoou de ma10r
atividades não produtivas, como no caso das mulheres de Cabo Verde. Os prestígio sociológico"•. . . _ . .., .
africanos não eram, pelo visto, aqueles elementos uniformizados pela Sabtda a importância substantiva da comumcaçao hngutsttca para a
selvageria, mas membros de diversos espaços culturais que, por sua vez, interaç~o entre os grupos sociais, nada mais n.atural do ~u~ se ver nessa
?eter':"inavam modos de C'omportamento dtferentes diante de situações estratégia do escravo um mecanismo de def~ tm~rtanttsstmo para este
tdênttcas de acordo com o nlvel de utilid<ide de cada um. De fato, se conseguir,especialmente nas senzalas, umc6dtgode lmguagem abrc~ngente
estudarm9s os trabalhos acadêmicos posteriores chegaremos à conclusão c.a paz de transmitir,a todos, suas estruturas b.ísicas de pensamento~ a sua
de que a Africa era um mosaico de culturas e não aquele conglomerado rnundivtdência ideológica. Podemos dizer, mesmo, que tal medtda se
de indi~duos igualc1dos no nlvel de stmi-animalidade como apregoavam constttutu em um ato político, na acepção mats ampla e abrangente do
os colomzadores. Por estas e outras razões, os negros ao chegarem ao Brasil termo. Foi a partir da comunicaç-ão, transcendendo as limitações criadas
traziam, quer individualmente, quer em grupo, hábitos e costumes pt'la multiplicidade de linguas, que os africanos começaram a um r-se .1nte
diferentes.5 E essas d tferenças se manifestavam dinamicamente, mottvo .1 "desgraça comum", na expressão do Conde dos Arc_os. . • .
pelo qual o colonizador fazid questão de niio permitir exager.1do número Acima da senzala, com o seu fal.u em desenvolvimento dmamtco,
de negros da mesma n11~o próximos uns dos outros. Mas, se essas havta a casa-grande, o aparelho de dominação ~o senhor ,que t~mbém
diferenças culturais demonstravam que eles não eram os selvagens que se usava da língua para transmitir os seus valores e mteresses. A medtda q~~
divulgava, criavam, por outro lado, obstáculos à sua orgamzação e os escravos se organizavam para o trabalho ou para se oporem a ele, 1a
unificação como escravos. A diferença mais importante neste sentido era pod 1am, através dessa linguagem livre, articular as suas formas de
a linguagem. As inúmeras linguas faladas por eles impediam a comum· comportamento grupal.
cação necessária para sua organização social e politica. Por outro lado nesse contexto colonial-escravista, as religiões afnca-
Isto levou a que eles procurassem cria r uma línguageral, capaz de fazê- naseram consideradas exóticas, fetichistas, perigosas porque eram práticas
los serem entendidos mutuamente. Es~ estratégia do escravo africano gmtí!iCdSd~ndo por isto mesmo ser proibidas, ao contrário dos batuques
permitiu a elaboração no processo do trabalho (empiricamente) de um que eram ~rmitidos. .
código de linguagem abrangente e capaz de fazer com que os m~mbros Isto acontecia, em primeiro lugar,por decorrência do monop6l;o do
dos grupos érnicos os quais falavam línguas diferentes passassem a se sagrado pela Igreja Católica Romana, pois liOmen~e os seus p~c.ettos e
entender na condição de escravos. dogmas de fe eram considerados verdadeiros, ~craltzad~s e ~fictahzados.
Com a criação desse código de linguc1gem alternativo puderam dar Em segundo, a religião que detinha o monop6h.o da expltc.tçao d~ Seigrado
m~ i~r abrangência ao universo organizacional, de lazer, de práticas do mundo, unha poderes, também, para exphcar o natural. D.u porque
rehgJosas e de comunicação geral. Yeda Pessoa de Castro fala-nos de um a Igreja Cat6lica, através do que se convencio~~u chamar ,de smmtzsm~
dútkto dJJ snt7.dla.relaborado na interação do espaço escravo; com tsso eles procurou penetrar e desarticular o ~undo reltgtoS? do .1fncano escravt-
consegutam certa unidade de pensamento. A etoohngüista citada destaca zado usando o método OJtequlJla, bauzando-o coleuva e coercitivamente,
a existência de um diaktu das fnu.al.zs, ao lado de outros como dialeto mra~ num' trabalho de crtJii.lnizapio o qual nc1da mais era do que tentat1v.-1s, via
dialr!o ddS minas t . di.Jlttos urbanos. Sobre o primeiro, ele é o aspecto estruturas de poder, de monopolizar o s.tgrado e in.fluir .através d:ssa
parttcular que nos Interesse especific<~meute aqui. Yeda Pessoa de Castro estratégia, no nivel político, soctal e cultural. Esse smrr~tw~o, por 1st.o
escreve: "N,u senzalas, a necessidade de comunicação entre povos mesmo era unilateral. Era um sincrtlwno de um.t s6 dtreçao. A IgreJa
lingüisticc~mellle diferenciados deve ter provocado a emergência de uma Cat6hca liOmente permitia esse chamado processo si nc.rét~c~ de ctmJ ~ara
espécie de li ngua franca ou dhlkto da,rsmzaÚJ.J. O desenvolvimento não s6 baixo, Jamats permitindo a rontamim~çãu dos seus pr~n~1~10S teol6_g1cos
das línguc1s bantos, como certas línguas bantos e kwa, o que levou pelas posições an imistas,fetichistas e, por isto mesmo pn m~ttvas e pagas das
religiões dominadc1s e praticadas pelos ·~egr~s escrav?s.
1
Greenberg (1966) a classificá-J.a em uma só família por ele denommada
de Congo-Cordofom".Jna. Com esse sincretismo, de uma s6 dtreçao, acredttava·se que, dentro

178 179
DlaJ~tica Radical do Brasil Negro Unguagem e Dinamrsmo Cultural do Negro

de ~u.co tempo essas religiões primili1.w, desapareceriam no bojo de um dbriu espaços para ele. Há mártires-heróis negros, mas não há heróis
catohas~o popular e este seria anexado à Igreja Católica, sem nenhuma vencedores negros. E essa seqüência de reveses também atingiu o negro,
r:Jevâ?c.t~ ou ~al.or teológic?·~Assim o .es.c~avo, vindo da África bárbara, o seu comportamento, sua perspectiva de vida individual, levando-o,
vta rehgtao catohca e escravtddo sena ctvthzado. Neste sentido o histori- muitas vezes, a interiorizar os valores dos brancos como tática de auto-
ado~J.oão_ Ribeiro escre:eria: "a escravidão no Brasil foi para os negros a dfirmação e de autodefesa, vendo-se de forma invertida no espelho quando
reabtltta~o deles própnos e trouxe para a descendência deles uma pátria, se contempla.
a paz e a hherdade e outros bens, que pais e filhos jamais lograriam gozar
ou sequer entrever no seio bárbaro da Áfnca" a '
Essa ideologia de uma escravidão civilizadora via religião católica é, Cultura de resistência
como se vê, uma forma de se escamotear como foi o colonialismo
escravista que barbarizou a África. Pelo pensamento acima podemos ver
qu~deum modo geralosescravosnãopodiamcontarcom a intelectualidade Durante a escravidão, no entanto, o negro transformou não apenas
nanva, a qual, desde o começo, apoiava a escravidão como fenômeno as suas religiões mas todos os padrões de suas culturas em uma cultura de
natural.ou indispensável à prosperidade do país, ao desenvolvimento da resistência social. Essa cultura de resistência, que parece amalgamar-se no
sua agncultura e da sua mineração. Desta forma, os próprios escravos, seio da cultura dom inante, no entanto desempenhou durante a escravidão
embora sem terem consciência do significado social dos seus atos, (como desempenha até hoje) um papel de resistência social o que muitas
procuravam autopreservar-se e neste sentido elaboravam diversas estraté- vezes escapa aos seus próprios agentes, uma função de resguardo contra
gias que serviam como mecanismos defensivos contra a ordem escravista a cultura e estrutura de dominação social dos opressores. Toda uma
e, os seus mecanis~o.s de contenção social. Para nós, a criação de uma literatura, por essas razões, foi arquitetada e continua funcionando no
língu,a co~um, o idt~ma d~ senzAlas e ~ preservação das suas religiões sentido de demonstrar que as religiões africanas, e posteriormente as afro-
atravesde mchosde reststêncta, usando muttasvezesuma tática ambivalente brasileiras, são inferiores, no máximo consentindo as suas práticas, sob a
qu~ era confundida como cristianização, foram os dois fatores culturais fiscalização dos aparelhos de Estado.
m~ts rel~ant~s dentro do contexto da escravidão e que possibilitaram a A mesma coisa aconteceu com seus instrumentos rituais, que
rests.tênaa soc1al do negro escravo e do livre até os nossos dias. O primeiro passaram a ser instrummtos típicos, como as suas manifestações simbó-
p~rtlu de, uma mudan{a no seu falar, evoluindo do fragmentado das licas, sua música, indumentária africana e a cozinha sagrada dos
dtve:sas lmguas para o geral, o dialeto dar senzalas. O segttndo foi um candomblés. Tudo isso passou a ser visto apenas como folclore. E com
movtmento conservador (de conservação cultural), isto é, através de táticas isto subalternizou-se o mundo cultural do africano e dos seus descen-
de .a~omodação procurou conservar a sua identidade étnica via mundo dentes. A dominação cultural acompanhou a dominação social e
reltgtoso. econômica. O sistema de controle social passou a dominar todas as.
Esses dois movimentos surgiram, portanto, inicialmente como manifestações culturais negras, que tiveram em contrapartida, de criar
elementos de resistência cultural, desdobrando-se, depois historicamente mecanismos. de defesa contra a cultura dominadora.
em patamares de apoio à resistência social. Sempre a defesa do oprimido, do dominado, do discriminado é
Foi uma luta secular, verificada através de uma dialética dramática sociologicamente ambígua. Aquele que não pode atacar frontalmente,
duran~e quatrocentos anos e que até hoje perdura, em outro nível com procura formas simbólicas ou altemativas para oferecer resistência a essas
uma d m.âmic~ d~ fricção interétnica e com níveis de consciência so~ial já forças mais poderosas. Dessa forma, o sincretismo assim chamado não foi
bem ma!s ?eltmttados pel? ~eno.s na .faixa de uma população negra de a incorporação do mundo religioso do negro à religião dominadora, mas,
classe.médta urbana. Isto nao tmphcadtZerque durante a escravidão a luta pelo contrário, uma forma sutil de camuflar internamente os seus deuses
nã~ tivesse sido dramática. Pelo contrário: foi um corpo-a-corpo social e para preservá-los da imposição da religião católica.
étmco que deu o perfil do escravismo brasileiro. O processo corrosivo O conceito mais abrangente de aculturaçdo, por seu turno, procurou
de~ l~ta.desgastou o oprimido e discriminado mais do que o opressor explicar o comportamento atual do negro como sendo o fruto do contato
e dt~nmmador, e, no particular, a história do negro brasileiro é um contínuo entre o dominador e o dominado, desejando o primeiro impor
ponttlhadodederrotaseé por isto que nunca odiscursooficial da história os seus padrões culturais e o segundo, imitá-los e absorvê-los.

180 181
I
Dialética Radical do Brasil Negro Linguagem e Dmamsmo CuJrursl do Negro

O sistema escravista, pelos métodos de repressão que os seua 11


ao estavam mortas. Vieira exprimia bem esta posição e~~re a_ sociedade
representantes praticavam, repeliu os valores das culturas dominadas. Em clominada e regulada pelas normas portuguesas e as c1V1hza~~ VIndas
contupanida, os seus adeptos procuravam disfarça-los, fazê-los aparecer da África, escrevendo que o Brasil tem o corpo (europeu) na Am~nca. Mas
sob outras formas, mas sempre mantendo o seu significado simbólico , crenças que permanecem confinadas nos segredos dos coraçoe~ que se
5
inicial. Não haVIa como fugir à religião oficial, num tempo em que existia aprimem em ritos e cerimoniais, nem tomam for~~! coleuv~s. _de
o monop6ho do poder poHtlco e o monopólio do poder religioso, pela or)!anizaçlo, estão fatalmente condenadas à morte. A rehgtao, .o~ rehg~oes
classe senhorial e a Igreja Católica respectivamente. Daí o mecanismo de afro-brasileiras foram obrigadas a procurar, nas estruturas SCX:'ats que lhes
defesa sincrético dos negros. rum impostas, nichos, por assim dizer, onde pudessem se Integrar e _se
A mesma coisa aconteceu com as suas línguas. Não possuindo desenvolver. Deviam se adaptar a novo meio humano, nesta ad~pta~ao
unidade lingüística os africanos foram obngados a criar uma que fosse n:ío se iria alicerçar sem profundas transformações da pr6pna Vlda
comum para que pudessem se entender. Os povos bantos que aqui rdigiosa. Tomava-se necessário encontrar entre .1s su~restruturas -
shegaram em primeiro lugar e aqueles que habitavam a pane sudanesa da outrora em conexão com a família, com a aldeu, com a tnbo ·e ~s ?ovas
Africa, posteriormente, incorporaram ao nosso léxtco milhares de vocá- infra-estruturas. a grande plantação no centro mbano, a escravtdao e a
bulos na estrutura do ponuguês. No entanto, ninguém, ou quase ninguém sociedade de castas hierarquizadasdominada pelos seus senhores brancos
viu essa 1ncorporação como uma fator de enriquecimento vocabular, mas, -l.lços ignorados, formas de passagem inéditas, encamando-se ~o corpo
m\llto pelo contr.írio, criou-se a palavra chulo para designar esses vocábu- soe tal, e este, por sua vez, deixando-se penetrar por esses valores dtferentes
los. A mesma coisa poderíamos dizer em relação à indumentária, que como modelo ou normas"9•
passou a ser considerada roupa tlpica; da cozinha, da música, da o que B.1stide demonstrou, no trecho acima, é que as culturas negras
arquitetura. Todos esses elementos culturais africanos foram classificados dominadas usaram diversas estratégias de preservaçc10 dos seus valores
como cultura rústtca, defo!k, Folclore. Somente a cultura ocidental-cristã demro do contexto social, onde estavam engastados como prod~tores,
e capitalista tmha o direito de manipular os aparelhos de dominação mas, por outro lado, como seres, i~o é, e~emet~tos que podenam se
cultural. Com isto, as mo~ntfestações culturais das populações oprimidas, transformar em agentes sociais coletivos e dmâmtcos. Tanto as culturas
as afro-brasiletras em parttcular, foram consideradas como elementos banto quanto as sudanesasque para aqui vieram, tinham ISto em comum:
marginm à elaboraç:ío do tthos naciOnal pelos blocos culturais de poder transformaram-se em anteparos de resistência social do r5fTf1110. O escravo
dominantes no Brasil. resisua com as armas das quais dispunha e as suas cultu~as de~mpen~ld·
ram um papd meramente stmb6lico, outras wzes de veiculo tdeol6gtco
de lutas mais abrangentes da sociedade escraVIsta.
Autodefesa da cultura oprimida
O negro na literatura brasileira
As culturo~s afric<tnas, durante a escravidão, e dos afro-brasileiros,
depots, di.mte dessa manobra asfixiadora da classe senhorial e do seu
aparelho ideológico, passaram l função de instrumento de autodefesa dos No caso específico da Literatura o problema é mais VIsível e
oprimidos soctal étnica e economicamente. Durante a quilombagem os transparente. Deveríamos começar falando do negro com~ obJeto de
negros rebeldes encontravam em alguns dos seus padrões culturais literatura e do negro como criadorde literatura, no processo ~11st6~co que
elementos de proteç:ío social. constitui a formaçlo e desenvolvimento do~ nossa cultura htt"rán.a.
No que concerne às religiões africanas, ou afro-brasileiras por Em primeiro lugar, o negro na Literatura Bra~tletra nunca fo1 her61.
extensão, a sua evolução/transformação no contexto escravista e à sua Não temos praticamente- salvo algumas tentatiVclS r:sJdu.l.tS- nenhum
funçâo social nesse contexto, Roger Bastide escreve: "Apesar das condições livro que mostre 0 negro como herói, a não ser os antl-her6ts de Mvkq~tt
adversas da escravidão, misturando as etnias, fragmentando as estruturas Ricardo de José Lins do Rego, do fubwbá de Jorge Amado, e do pr6pno
sociais nativas, tmpondo aos negros novo ritmo de trabalho e novas O Bom Crtou!o de Adolfo Caminha. Nestes o negro ent~a semp.re como
condições de Vlda, as religiões transportadas do outro lado do Atlântico anti·her6i e não como ber6i, no sent1do em que os p01droes da Literatura

JR2 IR3
Oial~tlca Radical do Brasil Negro Ltnguagem e Dinamismo CulfLTal do Negro

Brasileira o entendem. Isto não acontece por acaso, evidentemente. H1 ti<& Cunha, de Silvio Romero e em todos aqueles que deram conotação
todo um processo de barragem estético-ideol6gico impedindo que os tundamental ao pensamento brasileiro, n6s vamosencontrarum dtscurs:o
criadores da Literatura Brasileira se voltem para o negro e procurem nele r~cista. Afrânio PeiXoto, substttuto de Eucltdes da Cunha na Aca~emta
aqueles elementos que permitam transformá-lo em ber6i literário. 10 l1rasile1r.1 de Letras, dlZta que tinha mos de nos livrar do rn.tralfiOilactonal,
Qlando estudamos a fase do indianismo, julgamos ela como sendo 11 nhamos de jogar fora a borra negra para nos tran~formarmos, dentro de
simples mfluência de tocb a fase romântica da Literatura Francesa. Isso duzentos anos, num país branco, ocidental e avthudo. Todos os outros
sh ocorreu em termos. No indianismo há uma conotação nacional, tendo t.t"guem ma1s ou menos por esse diapasão.
sido usado paril desviar o leitor do fundamental. Tínhamos uma Podemos citar como exceções, Alberto Torres e Manuel Bonfim, mas
sociedade escravista, onde o trabalho escravo era a forma fundamental de des não constitue'm uma vertente capaz de influtr no processo de
produção, e foi visto como necessário derivar para o índio o heroísmo dominação do pensamento racista das elites, que construlram o pensa-
nacional, transformá-lo em ber6i. Há um exemplo neste particular mento do Brasil. Isso faz com que nossa literatura reflita, velada mente ou
bastante significativo. A 6pera de Carlos Gomes Lo Schiavo, teve o seu is vezes de forma ostensiva, esse racismo subjacente do pe_nsa~ento da
enredo escrito por Taunay e o personagem central era um escravo negro. «tedade civil brasileira. Todos n6sdizemosque somos antt-rac1stas~ mas
Por exi#ncias ciniCdS, porém, substituíram o ber6i por um índ1o e na hora na qual as situações concretas se apresentam, vemos esse ractsmo
transferiram a ação da 6pera do século XVIII para o século XVI. O autor o~ parecer.
dessa transformação absurda f01 o poeta Rodolfo Paravicini, sob os
protestos de Taunay. Isso mostra que como símbolo do heroísmo, não se
podia colocar um negro. O negro tinha de ser na literatura, como nas artes A imprensa negra
em geral, aquela parte passiva, entrando como paisagem humana,
aparecendo apenas para que o her6i se destacasse. 11
Eem cima de tudo isto, desta 1otelectualidade elitista e preconceituosa, Em São Paulo, como manifestação cultural dos negros, h~uve a
vemos, também, a incapacidade do negro cnar uma cultura dentro dos chamada tmprensa negra que circulou de 1915 a ~963. Entre esses JOnldls
cânones oficiais existentes na época. A literatura era feita por brancos e os mais Significativos foram A voz Ja raça e O (J.tmn d~ Ah10r~ ~sa
em toda a literatura da época vamos encontrar esta constante: o negro não imprensa negra desenvolveu um trabalho cultural mmto séno. J•u~e
aparece como her6i; quando entra como personagem é a personagem Agmar, um dos fundadores do Oamn daA/wradtJ, dizia que esses jorn~ts
boçal, engraçada, o que d.\ a conotação de que ele é inferior, exatamente foram criados exatamente para desenvolver os literatos negros que nao
para a exaltação do her61. Na medida em que essa literatura se forma surge tmbam possibilidade de espaço em outros órgãos de comumcaçã~. No
uma ideologia na S0C1ed.1de brasile1ra, a úkologta do branqu~.Jmmto, isto é, entanto, nmguém considera os poemas, os sonetos e ascrôm~as publ~c~as
a nação brasileira seria tanto mais civilizada quanto mais branca fosse e nesses 1ornais como literatura. São considerados pela críuca ac.1demtca
11
pudesse, então, expelir do seu componente étnico o negro, este pratica- uma subliteratura que nem merece ser estudada •
mente, era o que sujava a civilização brasiletra nesse processo. Há, po~m. uma gama de trabalhadores mtelectuais negrosde~nvo~
Q!lando se cna uma Literatura Brasileíra, uma ensaistica brasileira, vendo, durante todo esse período, um trabalho cultural que n.1o. fot
ela é, praticamente, toda racista e não apenas em Oliveira Vianna. Na obra cons1derado. Ninguém procura examinar o trabalho fe1to por )a1me
de Euclides da Cunha, de Sílvio Romc:ro, de Tobias Barreto, este inclus1ve Aguiar e todos aqueles que lideraram esse movimento: J?esde o pnme1ro
era mulato, assim como nos romances de Graça Aranha, Júlio Ribeiro e - O Mmtltk • até a Vo.z d.1 raça, houve uma comnbu1ça? enorme,, ~ma
outros, vamos encontrar, como uma constante, aquela determinação de produção muito grande: sonetos, crônicas, ap6log~s, ep1~ramas, sauras,
dizer que o que sujou, atrapalhou a dinâmica da sociedade brastleira não artigos sobre educação e protestoscont ra o preconceitO ractal. No entan:_o,
foi o fato de existir a escravidlo, mas o fato de existir o negro, raça inferior. tudo isso é considerado subliteratura e subcultura. Por que? Porque nao
Há neste momento imbricaçlode tal maneira sutil que não se diz: o Brasil entra no circuito ideol6gicodo pensamento dominante, nem acompanha
está atrasado porque foi o último pais do mundo cristão onde o a sua semântica. A pr6pria desarticulação da linguagem, comparada aos
escravismo colonial foi abolido, mas, pelo contrário, o país está atrasado escritos de linguagem tradicional, não é esrudadd como parte de um tthos
porque o negro entrou na sua composição étnica. No di seurso de Euclides novo, através do qual os negros se manifestam, e que não merece ser

184 185
Dialética Rad1cal do Brasil Nttgro Linguagem a Dlflatn/smo Cultural do Negro

a~alisado gramaticalm~~te,. mas como elemento de uma linguagem rm mão as mensagens dos quilombolas. Essa particularidade significa que
3
JUSta~a a t?da. UX?a V1venc1a social, histórica e étnica do negro. Essa h:1 um julgamento de valor preconceituoso em relação a essa literatura.
desa.rti~ulaçao S1gn.1fica, como o próprio Lime~ Barreto dizia, falando do Qtando Lima Barreto lançou a sua obra, ~oi combatido. Dizi.am que :Je
seu estilo, a neceSSJdade de se cna r uma uovc~ linguagem para expressar escrevia mal, mas, numa carta a AustregéSJlo de Atayde, ele dJZ que nao,
uma nova r~ahdade. Isto é, um novo código, difereme daquele imposto escrevia assim conscientemente, porque queria criar uma linguagem de
como ~ ob~1gat6no p~ra quem desejar venter na república das letras. acordo com aquela realidade desarticulada e dinâmica que est~va se
Nmguem até .hoJe, ao que parece, estudou essa imprensa como a formando na socsedade brasileira, especialmente no Rio de Janeiro. E
rrtadora de uma linguagem altemativa,d{'\'tlldo sercoosiderada dentro quando o comparam a Machado de Ass~s, ele ?~z, nesta mes.ma cana, q_ue
a sua ~strutura de expressão, uma pane da cultura brasileira. ' MJchado de Assis tinha m~ode AntôUJo Fdtetano de Castilho e ele nao.
de Ha tempos eu propus a u~ gra.nde jornal de Sâo Paulo a realização Q!ando os negros também escrevem de forma dif~r~nte, ~ssa f~rma
um~ mesa-r~onda para se d1scut1r essa nove~ literatura negra, que está diferente passa a ser forma inferior potque eles, os cnucos nao acettam
su~n o a~raves~dos Culan~ Nrposem S=.io Paulo, a qual é vendida de uma ltterarura que exprima a diversidade cultural e étnica do País. Ai está
ma~ ~m m~o ~ nao entra ~o c1rcu1t~ literário-mercantil. Eles me disseram um problema para ser discutido. Por que o Ju6 Bananere, que escreve
q~e .. ISSO nao mteressa; nao quer dtzer nada; nâo entra nc~ contribuição numa linguagem dialetal italiana é considerado autor de uma obr~ de arte
o JCJ~ do que se e~tende po.r lite.ratura erudita, por Litewura Brasileira, literiria e quando os negros escrevem dentro de uma estrutura diferente
~r hteratura q~e mte~essa as ed1toras e J mídia intelectuctl e literária de da tradicional lusitana, n6s achamos que eles não sabem escrever, eles
Sao ~au~o: Entao sera que, na formação da Literatura Brasileira, a precisam aprender a língua do coloniZador? u
contrJbu1çao do negro não fo~ a mesma em outras áreas e outros c1spectos. Parece-me que isso deixa entrever a necesstdade de reformularmos os
P~·que n6s esmagamos e nao cons1deramos a literatura negra e 0 seu julgamentos através dos quais podemos reanalisar a produção dos novos
c •g~ de lmguagem como uma manifestação v;U1da, já que estamos em poetas, dos novos escritores, dos contistas dos Czdemos Negro.r que estão
um pa1s pluncultural? Por que nós achamos que o monopólio do discurso aí. Até hoje não Vl uma resenha sequer na grande tmprensa sobre essa
cultural é uma ~orma de controle que deve ser exercido pelas dites as quais produção. À medida na qual uma consciência crítica (na área cultural) se
se autodenommam brancas, e, com isto, a palavra do negro, d.t forma criar no Brasil, haverá necessidade também dessa reformulação, num pa{s
~orno ele sabe e. quer se expressar (através dessa descoberta de uma poliêtnico que s6 t~ceita como literatura aquela feita geometricamente
lmguagemdesaruculada,quesignifica uma forme~ nove~ e hvredeexpressar ainda dentrodospadrõesdo colonizadorportuguês. N6s temosdeverque
uma real1dade críuc~) não é considerada como literatura? essas diferenças étnicas, essas d1ferenças de cultura têm que se traduzir,
PartJ.mos dos cnténos dominantes, muitos dos quais vindos de fora também, numa diferença de produção cultural, fundamentalmeme a
para analisar essa literatura, m.1s essa literatura tem de ser analisada d~ produção literãna.
dentro dela própria, da sua unidade estrutural, para sabermos até que O monopólio da cultura no Brasil, o monopólio do saber, é também
pon~o. ela está .contnbumdo. para uma nova abertura da soci~ade o monopólio do poder. É preciso, então, na medida que democratizemos
brasilora e da Literatura Brasileira. esta soct~ade, tenhc~mos condições de abrir os leques democráticos, não
. V~mos, pon~to, ~ue ew nossa dnnotTúd.l r.tcül, que func 1ona apenas econômicos e políticos, mas também culturais, nós incorporemos
hlpocntam.ente, lupocntamente funciona também quando faz 0 julga- essa produção de imprensa negra, dessa juventude negra que eStá
mento da hteratur~ ~egra. Oswaldo de Camargo, Oliveira Silveira_ sem escrevendo e participando num processo de renasomento negro. ~
falarmo.s na figura IDJUStlÇada do grande poeta $o)ano Trindc1de e OUtrOS produção preciScJ ser também considerada pluralisticamentecomoplurallsta
~~a~tem uma produção que, se comparadJ j de outros literatos citados, é a cultura brasileira e não através do critério monopolístico imposto pela
e _?8Ja os e badalados, em todos os sentidos, é superior. No entc1nto, eles cultura do dominador colonizador, sem alternativas de outras formas de
n~o entram .naquelas ponas ~echc~das que nJo permitem que a hteratura expressão que reflitam exatamente as grandes diversidades da nação
seJd rea1:ahsada por outros cnténos que não os deles. O espaço literário brasileira.
no Brasil é ta~.bé~ um espaço de privilég1o. E n:io se vai abrir mão desse Ap6s a escravidão os grupos que se organizaram como grupos
espaço de pnvilégto para os negros, os qua1s produzem a sua literatura especificas negros, na sociedade de capitahsmo d~ndente qu~ a
artesanal, vend1da de mão em mão, como ant1gamente se passava de mão substituiu, também aproveitaram os valores culturats afro-brasileuos

186 L87
L.ngusgem 9 Dina/Tllsmo Cultural do Negro
Dialática Radical do Brasil Negro
. é d m constante dinamismo quer no nível
como instrumentos de resistência. C$paços~ ampltá-los, atr;v ~ri~;o (rdigioso, musical e lingüístico) quer
Isto não quer dlZer que se conservassem puros, pois sofrem 1 dr. reabilitar o_ seu passa o a reconceltO existente na atual
influência aat!Jurativa (isto é, branque.ulora) do aparelho ideol6gico sncial e polítiCO, protesta~~? cont:a~o;consentidos (por indesejdveis).
dominante. É uma luta ideol6gico-cultural de expressão dialética travada .>nedade que a coloca .nos u umosrefo a da pr6pna situaçJo na qual ficou
ainda diante dos nossos olhos. O exemplo das escolas de samba • Noentanto,essesmoVImentos,po~ rç p6 aAboliçào sJocompostos
especialmente no Rio de Janeuo - que perdem a sua especificidade de amaioriaesmagadoradapopulaçaonegraa sal na·o 1..~ acústica para
éd. rb a negra a qu ,
protesto simbólico espontâneo de antigamente para se institucionalizarem. por uma ela~ m la u an as au ri7..Jdase marginaliza-
assumindo proporções de um colossalismo quantitavo e competiti'VO comumcar o seu discurso às ctmad~~ ne!stê~ci~nicial formada pelos
impopular e subordinando-se a instituições ou grupos financiadores que da~ Dai v~mos que essa deu rura a parcela mmoritária em relação a
as despersonalizam, expressam muito bem o que desejamos afirmar. escravos [01 se concentran o em um . -
Mesmo quando a temática é evidentemente de protesto, das estão população afre>-brasileira após a Abohçao.
subordinadas a uma concessão ideol6gica, Implícita ou explicita, a grupos
que as dirigem, onentam, patrocinam e subordinam. Da produção limitada ao negro
Há, também, da parte das matrizes ideol6gicas institucionais um
interesse muito grande em cooptar as organizações afro-brasileiras que dividido culturalmente
atuam na área do lazer, no setor cultural ou religioso. Há uma penetração
sutil e corruptora neutralizando ou procurando neutralizar através de artir da andhse anterior, que a produção
Devemos acrescentar, a P
uma abertura (via créditos e facilidades monetárias) que consegue, muitas .\ r t ária do negro, tem SI·do qu.mutativamente .
vezes usar essas instituições em proveito pr6prio. Em cima de um discurso cultural, especla mente 1 er - r tura dominante branCú por asstm
de que há no Brasil uma democracia racial, e, ao mesmo tempo, usando quase insigmficante em relaçao à ltera roduziram nos Estados Unidos
um sistema class1ficat6rio que ao invés de democratizar hierarquiza 01 dizer. Se compararmos o ~ue os negros l:nente muito pouco foi elabora-
brasileiros pela cor, eles conseguem que os negros continuem na posição e no Brasil, veremos que, mquesuon~ve t de'escritores negros no Brasil
'd 6s. o aparecunen o . . d
de quem espera benesses da casa-grande, embord esse número de negros, do ne~ sentt o entre~ . tênue em relação à produçãohterána ?s
princ1palmente nas grandes cidades está sendo cada vez menor. representa ~a produç~o mUit~ ri tora negra Maria Firmma dos Re1s,
Essa identidade étnica somente poder.\ ser mantida se apoiada numa Estados Umdos. O suçgun~nto :a~ surge como um caso quase isolado
cultura de resistênc1a, sem o que ela irá se diluindo progressivamente, ante com o seu romance Ursu , em r/ as Burlemu de Luiz Gama, em São
o trabalho desagregador da cultura abrangente (dominadora) a qual no século XIX. Juntamente com as ':cista maranhense. Maria Firmina
trabalha, sempre, no sentido de apresentar-se como paradigma do Paulo, que é do mesmo ano da rom d _... sob o pseudônimo de Uma
. ulher e negra escon eu .... .
processo ciVlhzat6no. Com o negro brasileiro, o afre>brasileiro, na dos Re1s, como m 'd m Luíz Gama que se assina Grtu1mo.
trajet6ria que vai da formação do tdwma das senzalas e da dinamização do .Maranbtnse,omesmoaco~tecen: oco ue determinaram essa atitude dos
candomblé e demais manifestações religiosas africanas até os ,nossos dias, Os mecamsmos s6cto-ps1c~l6gtcos q . d'tveis mas tudo leva a crer
. -oposSlvelmente 1rrespon • ,
o impacto da cultura dominante fez com que, de um lado, o idioma das dots autores negros sa . t de defesa capaz de preserva-los
que foi determinado por~ se;;uFen_ ~ 4
seC1Z3las e as Unguas banto ficassem, ou fossem consideradas línguas 1
de possívets ataques d~ sooeda e_ 10~tl . . nfluenciado possivelmente
chulas, mododefo/armadodiantedo c6digode linguagem do dominador,
ou falares de religiõeS de minorw. Foram foldorizadas ou apenas Isto poderá ter stdo deter~:~l~c~~~ ~encontravam, de um lado
consentidas. Neste processo, os afro-brasileiros foram perdendo as suas pelo isolamento no qu~ esse_s ê . d um ••gmento ou corporações
·· • · de na o ex1st. noa 'bTd
em consequencta e "'" de se incorporarem em
de
bases de conservação, preservação e dinamização da sua consciência étnica.
O mesmo acontece com a sua produção literária. negras culturais, de ou~ro~a ~r~s~~~i~a a à grande literatura oficial
Por outro lado, a população negra, em conseqüência da pr6pria conseqüência da s~ SI~ 1:e~toe surge da inexistência quase total de
situação s6cio-econômica na qual se encontra,de um lado, e, de outro,dos sem branquear-~. ~ISO a E não estamos nos referindo a uma
mecanismos seletores racistas dessa sociedade, rearticula-se permanente- uma produção ltterána negra. d ma produçJo feita por negros
mente como população oprimida e discriminada, procurando abrir produção realizada por negros, mas e u
lS9
188
Lnguagem e Dtnamsmo Cu/TU! ai do NefTO
Dialética Radical do BrS$11 Negro

lta icuru e nas margens do São Francisc~.


com uma tem.itica de e para os negros. Nos Estados Unidos, pelo trrmos em uso no vale do p 1 do brunqllturam.g na sua totah-
contdrio, somente na área de criação feminin.l foi lançada naquele pail Os escritores mulato.s. po~i~~tr~~rt~ de Oliveira, Artur de Sal:s.
uma coleção composta de 30 volumes escritos no s«ulo XIX, 1Jt d~de como Go~çalves Oias,O • aconteceu com os autores de flcçao.
Schumlntrg Lihrary cif Ninttemth &/Jc-Womm Wnttn, reumndo poesia, M.1chado de AsSJs e outros. mesmo . , . · d s redutores da
dil . - da consciência hterana e ~ttllca o P. .
ficção, memórias, dilrios e ensaios. !louve uma utçao á r roduçd<lqudse mtelramente
Para Maria Lúcia de Barros Mott "essa col(Çâo, organizada por Henry rultura no Brasil, fato que poderó ~p ICbar adpe um Cruz e. Souza é, na sua
n~s. A pr pna o ra .
Louis Gates Jr. é resultado de uma pesquisa iniciada ainda em 1980, com ltrunCd dos au t o res ~c.-- rodutodeumaconstelação Ideológica mutt?
o ob1etivo de recuperar a escrita das mulheres negras americanas. Até o
momento foram localizados cerca de 12 mil textos de ficção, 18 mil
estrutura fundamental, um p
d · ó · · tuando-a como uma
complexaecontra 1t na,sl , .
poe SI·a sem vínculos mais
fi brasileira e as culturas afncanas.
poemas e 40 mil resenhas publicadas entre 1827 e 1940. profundos com a problemauca a:;:;. poema que s6 foi publicado
Segundo o critico Eric J. Sundquist, do 1k NtW York 7imt:s Boolt 03- Somente no seu poema o anpurtd. o, voltado em primeiro plano
07-1988), os trabalhos incluídos nesta coleção têm valor literário desigual postumamente, _et~contramos ~~:as ~~::Ociais e étnicos do negro. .
Ressalta, porém, a importlncia e o caráter precursor de alguns deles, como para a sua cood•çao e os prob , . não a transformou em poesta
a coletânea de ensaios femirnstas escritos pela educadora Anna Julia Cruz e ~uza esc~ndeu a sua an~~~:·srus analistas atualm~te estão
O:>oper, que defendia uma consciência cultural afro-americana autonômica, auto-aficmattva daetma negra.Al~dade política de aboliciorusta uma
e a ficção de Pauline Hopkins, favorável a um feminismo pan-africanista" 1 ~. procurand~ encontrar na suda at bsenteísmo étnico quase completo
No Brasil, se fosse feita uma pesquisa no mesmo sentido, evidentt'- compensaçao que o absolva o sru a
mente, o número seria imensamente inferior. As pr6prias memórias de 16
como poeta. . subjetividade do negro intelectual
ex~scravos, tão importantes para se conhecer a sua situação e atuações, Acreditamos que, muuas vezes, ad · rso 0 seu ser encontra-se
quase não ex1stem no Brasil, ao contrário do que acontece nos Estados .d imagem branCd o umve • d
tem emb utl a uma . - ou ch ue com a realidade que ele tem e
Unidos onde o seu número é muito grande: somente de mulheres foram muitas vezes em contradlçao • ~ Daí muita sutileza na sua forma
relacionadas na pesquisa a que estamos nos referindo, 12 memórias de ex- enfrentar no nível social e economtco._ do seu pensamento através de
escravas. Um dos maiores líderes abolicionistAs negros dos Estados -
de expressao, outras vezes, a expressao · 1 1
e, . .amos dizer, com ISto, que o mte ectua
Unidos, Frederick Douglas, durante algum tempo escravo fugido símbolos culturats br.zncos•. DestJ sonâncias de problemas como
(quilombola) escreveu as suas memórias, documento de valor inestimável bo sentindo o Impacto e as res d d
negro, em ra . o neiramento étmco no merca o e
para se compreender as condições sob as quats vivtam os escravos naquele o racismo, o lsola~en_to racial, :ma ueosexpressadentrodepadrões
pais. trabalho, ele se ex~enonz~d~ :aaf~odos ~s padrões de uma estética afro-
No Brasil, exceção feita ao trabalhoS.zgraJ.z teologl.z do Amor Dlflino da estéuca trad1c~onal, gm d f; d -se ocultando a sua indignação
das alm.u ~J"q,rinas, de Rosa Maria Egipcíaca de Vera Cruz, que é de brasileira. ~m 1st?, procura ~~~eser u; a sua subjetividade assimilou
1763, mas cujo texto olo foi publicado nem é conhecido na sua social e rac1al atraves daque1es q . proc.mdo de escritor. Essa
omportamento ma1s 1\ _
totalidade, podemos dizer que o romance de Maria Firmina dos Reis e coman a o ~ c .
d mbivalência de expressao e
é a primeira obra elaborada e publicada por uma mulher negra no contradição cna, m_Ultas ";'es, uma ~os, cuja interioridade já foi
Brasil. No caso de outro negro produtor de obra literária, Luiz Gama, simbohzação da reabdade. s poee:~ na sua obra a contradição entre
o problema é mais diversificc~do, pois, antes dele, tivemos a obra de moldada ~los valores bra~mf, ex~m lado, a situação obJetiva na qual se
Gregório de Matos, mas de qualquer maneira um caso também isolado ela e a reahdade sócto-radctal. De valores est~ticos brancos assimtlados
no panorama da soc1edade colomal e sem assumir o nível de identidade encontram os negros e, e outro, os
étnica. Não há portanto no Brastl uma produçlo da população negra pelo seu ser. . . ue muitas vezes, nlo chegam
capaz de caracterizar a existência de uma literatura negra entre n6s. Os mecanismos pstcológlcos ocu1tosq • . de ambigüidade que
Neste contexto queremos destacar a obra do escritor negro baiano • 1de consciência podem determmar um upo_ rod ~
ao mve • rtamento social e a sua p uçao
Souza Carneiro. Na década de 30 publicou os romances Me11 mtnmo e 0
deixa incompreenslvel seu campo . · 1 de dinamismo
· 1 al ni'Oro tem aSSim um pame
F11rundungo ambos tendo negros como princ1pais personagens e o cultural. O mte ectu .~o . . d ex resSdr na linguagem
último com um vocabulário elucidativo do texto com mais de 800 individual muito conmdttóno, pots, tem e se p
191
190
Dla~ca Rad;ça/ do Brasil Negro

erudita, col)") uma temática quase .


não é fi·- L ·1 · sempre esco1htda da problemát' A produção cultural, especialmente liter.\ria, dos negros brasileiros
. a •v-u;rast etra, e, ao mesmo tem d ICI
Julgamento .de lettores e críticos ue a po, tem e submeter cl sua obra I 111 de passar obrigatoriamente pelo discurso, padrões, normas e regr.1s
valores estéticos convencionai~ al cod~stder~m apenas c~ través dos lu mr.u de elaboração. Não há possibilidade, por esta forma de um
dominam a cultura brasileira. v: e JZer, os pc~drões br<~nms hliCitrso estruturalmente radical, capaz de romper o discurso tradicion•l,
Esses .r11ecanismos pode · ntt'ntando-se com a imitação da produção negra em outros países,
dirttionar O'u modificc~r a est m, muttas vezes, detemlinar ou . rJ.prcialmeme dos Estados Unidos.
~ntre aqueles que se apresema~r;: forro~} de~s obras dos negros. Mt'SIIIft'
(tntelectualr?teme) há a necessidade~~~euoJlc!no com~ c~fro-brasilciroe
O intelectual negro dividido:
discurso
.
mento,ling1J.lagem e símbolos p ma ecochficaçao do seu pcnqo
ara encontrarmos a essência oculta d
. Istode(llo~stra não apenas a ambigüide~d d d'
cnténos valc:;::>rattvos muitas vezesracistc~sd e o tscu~~do negro,coaa
0- Arlindo Veiga dos Santos

condtciona, no nivel de produç- d a cultura brcJstletra, cultura que Um exemplo dessa ambigüidade à qual estamos nos referindo, e,
reJetção. Dví termos de reconbao os negros, o seu nlvd de aceitação oa ui vez. uma caso-limite no particular (p6Jo oposto ao de Carolina Maria
condictonarm a postura do negr~~:,;el:-oc;ar entender as causas que de Jesus) é o de Arlindo Vetga dos Santos, fundador da Frente Negra
produtor de; cultura. Para con . tu quando ele se Sttua como Brasileira, e, por outro lado, um dos ide6Jogos do Patrianovismo,
culturais da: s instituições prod= ~~: te.mro do~ padrões estéticos e movimento monarquista, nacionalista, anti-semita e elitista.
brastleiro ot)..J aceita 0 código for als, P ~~ g~o e pnvdég10, o autor afro- Adepto de uma postura independente do negro, articulador de um
ou é reJeitado. m • semc~nttco e gramatical dominante projeto negro- tal~ o mais importante ap6s a Abolição- e que terminou
com a formação de um partido polhico dissolvido logo ap6s o seu
O exeo1lplo de Carolina Maria de J é .1 .
concludemee: autora de um dos livro esus t ustrat~vo e possivelmente reconhecimento pelo golpe de estado de 1937, personificou a imagem
do negro m .. arginalizado tendo pet ~ats ~presemattvos sobre a situação dessa in~ligmtsia negra que, se de um lado sentia a discriminação soctal
marginal, coonseguido não ape;las ~{)~:? e ~r membro d~sse universo e ~tnica pela qual passava a comunidade negra, do outro, tinha o seu
el~boração It.iterária, criando uma lin a u ~ re ele, mas vtvê-lo na sua pensamento integrado em uma postura monarquista, nacionalista, cate>
fot um por.nto-limite da literatura :U
~em equadaaessepensamento, lica e elitista. Por outro lado, foi um dos fundadores da Frente Negra
editona} da' obra, pelo seu e;T(()(ismo. ~nta. por n~ros. Apesar do êxito Brasileira, cujo lema, colocado no frontal do seu JOrnal A Voz da Raça era:
considerada.aumaescritora mesmo~ alarolma Mana de Jesus Jamais foi DetU, PJtria, Famílta e Raça slogan que foi praticamente descalcado da
negra. Ela n~ãopreenchia ~scondiçõe r guns,~embrosda mtelectuaJidade palavra de ordem dos fascistas daqui, da Ação Integralista Brasileira que
in~lightcúnnegra que luta po snecessanasparasemcorporaraessa era lXtU, Pátria e FamUid. Como se pode concluir, Arlindo Veiga dos
instituoonajiÜizadas. r um passaporte na república das letras Santos procurava, através de um discurso étnico radical, expressar uma
interioridade branca, elitista e conservadora.
No ent.tanto, do ponto de vista da e . fi 'd
literatura n~ra no Brasil, .!2!tarto tk D:sSf>C:C;~ ~~~ ade que deveria ter uma Os livros que publicou e conhecemos,•• refletem a essência de um
obra, criano~do, inclusive, um códi o ~o I • a sua mats r~resentativa pensamento voltado para uma transcendência filosófica mteiramente
~ondtção de.e favelada e que não te g e . m~agem espeofico ~ sua desvinculada da problemática racial, embora o seu autor tivesse uma
mtelectualiodade negra procurou ree7 ~ntmua ?res. Nmguém entre a prática de militante engajado no movimento de protesto negro. Arlindo
uma particuularidade étnica e cultue t rar ~ssadlmguagem como sendo VegadosSantosera,de um lado, C1efe.Geral da Ação Imperial Patrianovista
em relaçãoaoilodiscursoacadêmicopoa' ma~da ~ odnou as suas diferenças Brasileira e, ao mesmo tempo, presidente da Frente Negra Brasileira. Ao
fc • . . al' rconSJ era; o efeituoso E b expor o seu pensamento político e ideol6gtco, escrevia: "Na América
ot semtma r~rgm IZada, passado o momem d • . : a sua o ra
branca e fica:ou sem continuadores o }'o Oextto promovtdo pela elite quem souber observar um pouco a situação presente verá o desespero em
intelectual n:negra demonstra com . ~a na ~~~as matsverttcats. A militância que se defrontam dois poderes ingentes: Um, o ianquismo interesseiro,
dade nessa g produção cultu:al. ts o, aqut o que chamamos de ambtgüi- loucoft.l7bior, ativista absoluto, pragmatista, metaliz.ldor de tudo (como
de nação dominad:1 por Sião e paraíso dos judeus); outro a civilização
192 193
Dialética Radical elo Brasil Negro
Linguagem e Dinamismo Cultural elo Negro
cristã, de Íbero-América civiliz _ . .
liberalismo . ' aç_a~ esta que, mfeltzmente, em virtudt A revolução ensinou-nos muita coisa. Entre das, mostrou que o
sociais que' ::~::~mo, adgnsdosttctsn:o el tiranias de doutrinas polf l r~ftle dos fortes soldados do Sul, do Centro e do
Norte, que a massa das
e e o secu o XIX, -
desabrocbarcom toda a forçaconr·d od fi . no~sas tropas não é ariana (...)graças a Deus: é morena."
nao P e ruttficar
apóstolos da Igreja Cat6lica"'9 1 a no génnen lançado há séculos E continua expondo o seu pensamento neste particular: ''Veja-se
po~m: atiraram-se o luso, o negro, o bugre e o mestiço, pelo sertão bruto
Arlindo Veiga não era a~nas
católicos de um modo geral contra os maçons e judeus e e conquistaram, plantaram, povoaram e cnaram o Brasil. Fizeram-no
• , mas era também um til"be 1 . potência, s6 eles. Separamo-nos depois, de Portugal, por nos crermos 'algo
escrevendo, por esta razão ' • an 1 ra convtcta,
o Brasil: "é o romantismo d~~ procu~ar traçar uma política realista para drfinido', por nos julgarmos 'n6s mesmos' e não Portugal. Fizemo-nos
valor das formas de govem~u;esta; atrasados um século a resptito do lr'q)Citar no mundo, impusemo-nos e fomos árbitros de questões sérias
desmoralizado em todos os paises ~~iam da p~opor. o parlamentans,. 511rgidas entre Estados orgulhosos do seu poderio. Influímos seriamente
se faz a crítica mais rigorosa à coméd· a~ ta os, mdustve na França onde na vida internacional e, pela economia, pesamos como fortíssimo
patrícios cultos ainda estão lend R ta o parla~ento. Porém, os nossoa produtor. Com a república que felizmente se foi, ptrdemos de muito o
pregoeiros da Enciclopédia e ~a âu;:au eosdt~rsos parlapatôes doa brilho diplomático, todavia permaneceu grande parte do valor econômi-
romantismo desp6tico dos q .á e ma ;.evoluçao francesa (...) É o co.
uma obra de compadrismoue J ~~~erem ..azer da futura Constituinte Olhando para o passado distante, vemo-nos vencendo franceses,
cismadores de 91) tod po t tco, aliJando fora dela (como OI ingleses, holandeses, espanhóis, etc., porque já criamos na nossa identida-
a gente que ptnse d" 6
capitais. É a deslealdad• d . 1 erente em certos problemas de inconfundível religiosa, racial, nacional, brasileira.
'" e cenos metos soc"ól Tudo isto que aí está (foi dito muito pela rama!) representa uma
à margem do supremo &f . t ogos que ptnsam em p6r
OI ivetra Vianm, Tris~o ~~~ o~;~~;es;;•s d~ ames da ~evolução como r .1mpanha de mais de quatrocentros anos. E, se não quisermos falar da

preconceitoanti-religiosodos f b. ntre~ras Rodngues etc. É o 1-poc:a da estrangeirização ativa que data de 1889, digamos redondamente
a existência real do fator relt·g· que tm .dram e~ pó r à margem da realidade 380 anos. Pois bem, depois de tudo-"pátria em formação!" Não é ridículo,
e conservação dos povos"2o. toso na Vt a, na rorm açao, - desenvolvunento
. não é para fazer tremerem os manesdos nossos antepassados essa gratuita
negação?!"21•
Co~ ~sta formação político-ideoló ica . .
antrmaçomca e antiliberal Ar!" d V: . g conservadora, antt-semtta Arlindo Veiga dos Santos, pelo que expusemos, tinha um projeto de
racial brasileiro e esptcial~ente: o etga procura enfocar o problem; estrutura política nacional,com o nacionalismo, o catolicismo e, do ponto
nesse sentido a um rato oc .d pdreconcelto contra o negro. Refere-se de vista de formação étnica, um pais no qual surgiria uma raça cósmica,
' r; orn o urante · d d · •
Bélgica no Brasil, quando 0 . ~ esta ~ o_ Re1 Alberto da emergente do nosso passado comum, sem a participação de etnias
seguinte forma: "A nossa cov:~~o:c:~o, ractal aqut fot constatado, da adventícias. Não há, segundo pensamos, uma proposta de ntgritutk, mas
planeta. act e uma das cousas tristes sobre o da formação de uma nação na qual essas etnias iniciais- português, índio
Estando em São Paulo tomou oRe' Albe e negro- construiriam as matrizes que dariam os alicerces fundamentais
da linha Barra Ftmda. A ho;a era de ckia.1S ~o_ um bonde, parece que dessa triangulação étnica desembocando em uma raça brasileira morena.
dos bancos um pretinho s6 ~r é ua aJestade no bonde. Num Não podemos ver no seu pensamento um direcionamento radical
matronas, moços e moças ch . mgu m~ aptsar do aperto, homens, reivindicativo do negro, mas uma proposta de formação de uma nação
ninguém foi ao bancodopretin~' (no)vos-nc~s (verdureiros de Ontem), na qual o negro entraria como um dos seus componentes e se resguardaria,
0
do Rei(...)." ·•· paranaoestarpenodenegroàvista via valores nacionalistas, do racismo que se diluiria progresstvamente, à
Diz Medeiros e Albuquerque e r .. medida que esses valores conservadores - catolicismo, monarquismo e
célebre, na Faculdade de Direito de Sã~ p~~ tvro ~slJ: Lente houve, e autoritarismo - se afirmassem como valores politicamente dommantes.
esta regra: "Negro não prect'sa d .. o, que ormulara claramente O seu pensamento é importante para se compreender esse aspecto da
. .
E ststemattcameme rep
ser outor. consciência dividida da intelectualidade negra brasileira.
od
"Pátria e fc ~ "rovava t ,os os alunos de cor preta. Arlindo Veiga dos Santos é um exemplo, portanto, que comprova a
· m onnaçao · S6 estara formad d · penetração dos valores branal1 na consciência do negro intelectual
untcamente arianos dolicocéfalos. a quan o aqu1 houver
brasileiro. Se horizontalmente ele tem uma mensagem étnica de protesto,
194
195
Dl816tica Radical do Blssil N8fTO Lnguagem e DinSfTIISmo Cultural do Neg:o

o~ de .contestação à situação do negro no Brasil, ~rticalmente a SUl rmtes da posição na qual os membros que se expressam ocupam. no
vtvmeta repr~~ os pad~s e valores da civilização, da cultura e doe ,,çtema de estratificação social ou de classe. Isto produz,emcootraparttda,
postula?os rehgtosos, pollttcos e ideol6gicos dos brancos. Em última c.argas de tensão e de conflito, pois o elemento inferiorizado social,
mstâncta, tem a personalidade ~ividida, porque se de um lado protesta t• onômica e culturalmente muitas vezes pensa uma coisa, mas, por outro
con~a ela, de outro é um dommado subliminarmente pda cultura do l,.do sente-se bloqueado e tem de expressar-se de outra forma porque se
dommador.22 o fizesse de maneira diferente (de acordo com o seu pensamento) i ria ferir,
transgredir normas hierárquicas e violar padrões de .comportamento
r·.tabelectdos. O escravo, no modo de produção escravma, é obngado a
Linguagem, repressão e ansiedade do escravo ter no diálogo como seu senhor, uma hnguagem passiva, de concordância
(O desabafo do cativo) lb~luta com ele. Tem de selecionar os vocábulos, modular a entonação,
medir o tempo da resposta e o seu conteúdo.
. Ninguém hoje em dia discute mais a importância sociol6gica da Desde o amanhecer a sua linguagem era programada: inicialmente
lin~ager;' comoelemen~o ~ndamental,ou importantíssimo, de interação repetir, sem entender o seu significado simb6lico, as palavras da mt.ssa ou
soctal~ wtcu lo de. transnus.sao dos vaJorese representações entre os grupos. da oração matinal. Depois, o eito e o diálogo com o feitor. era o dtálogo
Es~ unportâneta tmpõe, portanto, a análise do seu papel em cada de uma s6 via, no qual um dos p6los era o sujeito e o outro o obJeto.
SOCt~dade espa:ffica e as modificações e/ou adaptações sofridas durante Diálogo de uma s6 voz ativa, no qual o escravo era simples receptor e o
a açao dos grupos em contato, ou em conflitos, entre si. fettor o transmissor. A hierarquia escravista exigia do escravo uma
A !inguagem é basicamente a forma através da qual os símbolos, o contenção verbal compuls6ria que, certamente, d~ria criar bloqueios
conhectmento e a realtdade empírica cotidiana são transmitidos de um psicol6gicose ansiedade permanentes poisoesquecimento de um preceito
local para outro, de um grupo e de uma época para outra. Nesse processo qualquer ou de norma de comportamento a qual estava ~bmetido o seu
de m.teração a linguagem desenvolve-se dentro de um contexto falar com o senhor, ou seu preposto, podia causar-lhe dtversos t1pos de
org~mzacio~al e dinâmico específico: no contexto de uma estrutura punição. Como esquecer de tomar a bênção em voz alta? Ou de não erguer
SOCial. E ass~m como é o elo de transmissão fundamental desses valores, a voz acima do permttido? Ou não dar o tratamento adequado a cada ~m
sim bolos.e stgruficados, deles também recebe influência quer horizontal, que com de interlocutava, como a esposa do senhor, filhos, filhas, o fettor
quer ~rttcal. Isto é. quer na sua totalidade territorial, quer verticalmente, ou o vigário do engenho ou fazenda?
ou se1a, entre os grupos que compõem o sistema de estratificação social Em todo esse espaço de tempo ele não podia usar uma negação que
e de classes. Q!leremosdJZer, com tsto, que numa sociedade dividida em contrariasse o que o grupo senhorial ordenava Não podia dizer não. E é
class_es. camadas, estamentos e grupos; organizada através de uma norma justamente essa contradição entre o pensamento do escravo e a sua
p~cul~r de .família; de religião; de propriedade e de cultura a 1inguagem verbalização programada coercitivamente que produz uma tensão perma-
dtferencta-se mtemarnente como elemento de expressão dentro da mesma nente nele. A verbalização que extrapolasse do c6digo de linguagem
estrutura mo~ol6gic~ em raz~o das necessidades de comunicação entre aprovado, poderia ser considerada uma forma de rebeldia, indiscipli~a ou
esses grupos dtferenctados SOCial, econômica e culturalmente. negligência Ela era analisada dentro do julgamento global que se faz ta da
Por tudo isto, o esforço de expressar-se, e com isto comunicar-se, do conduta do escravo. Isto pode ser comprovado nos anúncios de escravos
mem~ro de uma classe ou grupo superior, ou subordmado, no sistema de fugidos em joma1s da época, nos quais, entre as suas características
estratificação, c~ncretiza·se na escolha do vocabulário, entonação da voz, identificadoras encontramos, quase sempre, a maneir<~ como ele falava
altura e con~taçao da mesma, e, especialmente nos significados sociatsque Um detalhe impomnte que não escapava ao seu senhor. .
se tomam dtferentes em cada caso. Dai a angústia ou pelo menos a ansiedade permanente no dtálogo.
Numa sociedade escravista, como a brasileira até 1888, o modo de Não era um diálogo coloquial, solto, mas estabelecido pelos padrões que
expressar-se do senhor para com o escravo e do escravo para com o senhor regiam as formas de comportamento que garantissem a total submissão
e~~ra sendo .manifestado através da mesma língua, tem conotações d~ do escravo. Essa dtficuldade de verbalização em conseqüência de sanções
s~gntficados dtferentes. Isto não quer dizer uma dift!rença apenas de impostas socialmente, levav<K> a posições inibidoras que o resguardassem
lmguagern, mas reflete toda uma carga de diferenças psicol6gicas decor- de posslveis surpresas traumatizantes. Terá de responder apenas de forma
196 197
Dialética Radical do Brasil Negro Lmguagem e OlnatniSITIO Cultural do Neg1o

passiva, sem interferir nas decisões~~ estabelecidas, finalmente 0 escravo Daí essa linguagem mutilada, limitada, e, ao mesmo te~JX>, a
~ssuía uma verbalização mutilada, que não exprimia o seu pe~samento. tmpossibiltdade de o escravo verbalizaro seu pensamento que functon~va
Nao pod1a ~nmtr um pensamento critico em relação l realidade em outro umverso de valores. A coerção econ6mica e extra-econ6m1ca
extsteote. Muttas vezes, mesmo pensando o que d~ria diur, faltava-lhe como estratégia de dominação do escravo (inclusive o seu corpo) ~gta
a coragem P:U:a transformar essa vontade em ato e soltar a frase que também como barreu a para o diálogo coloquial, entre o senhor e o cattvo.
expressava aquilo que pensava com m«lo que o senhor o ouvisse. Poderia Todas as demais formas relevantes de interação entre o senhor e o escravo
serconstd~ra~~ uma agressão l disciplina. Por isso o escravo muitas vezes configuravam um mecanismo de dominação/subordinação que se refl:
achava maJS faol uma agressão flsica, uma viol~nciacorporal a uma ofensa tia na linguagem, na forma de falar e expressar-se, e, o que .é. ~a1s
~rbal, a um xingamento, um "filho da puta" um "v.\ l merda" um imp:>rtante, determinava mmo o escravo devia usar a palavra ao dmg1r-se
u u u ' '
como , um estou de saco cheio", ou mesmo uma simples frase de ls pessoas distribuidas nos diversos niveis dessa sxiedade, orde.nada para
descontentamento contra a ordem recebida, o que lhe sena catánico manter os senhores sempre senhores e os escravos sempre cattvos.
JX>rém de conseqüências imprevisíveis. Essa contenção do pensament~ Qteremos insistir particularmente naquilo que era a contradição
JX>r ~arragens da sua fala atravtsde mecanismos sociais inibidores poderá entre o pensamento do e$CtaVO e os mecanismos inibidores_os quais o
ter stdo a causa de mu~ta violência do escravo sem razões aparentes. impediam de verbalizá..J.o, produzindo em tal situação co~fltta~te u':"a
A passagem do_afn:_ano boÇLIa f:uiino implica em toda uma estratégia carga de ansiedade que muitas vezes se extravasava na VJolêncta flstca
cultural de adaptaçao nao apenas hngüfstica, mas social na medida em contra o seu senhor ou pessoas afins (familiares ou feitores). Desta f~rma
que abre para ele a possibilidade de inteirar-se do unive~ do senhor dos o escravo que assim procedia ou por isto fugia, li~rtava-se sooal e
seus valo~e~ dos seus símbolos e do seu poder atra~s da Hngua qu; lhe catarttcamente, .atra~s dessa violência contra a repressão ao seu mundo
é t_ransmtnda, c?m pal~vras carregadas de significado ideológico. 0 interior de pensamento.
~nt~rso, o qual1a se abnndo e era por ele interiorizado, era aquele cujo Muttos escr.avos usaram a violên··ia contra os seus senhores e
s1gnrficado o senhor lhe comunicava atra~s da linguagem escolhida para familiares sem motivo aparentemente justificável de acordo com os
que de fosse apenas um bom escravo. valores da sociedade escravista. No entanto, esses atos eram a conclusão
Isto nãoque d~rque ele não reagisse com mecanismos de resistência, de um longo periodo de mutilaçao interior do seu pensamento que
com estratégias vanadas, com isso conseguindo também que os senhores protestava, mesmo intuitivamente, contra a situação na qual se encontra-
procurassem se entender atravts da linguagem do escravo, assimilando va.
pal~~s das suas línguas, usando-as e incorporando-as ao seu linguajar Qteremos acrescentar que esse verdadeiro ritual estabelecia uma
co~dWlo. Mas e~~ palavra~ quando usadas pelo senhor, já vinham contenção verbal compuls6ria ao escravo, quando em diálogo com o seu
peJa?as de um s1gn1ficado s1mbólico e ideol6g1co diferente. E neste senhor era muito mais visível e atuante nas zonas rurais, sendo menos
parucular pod~mos ~r que no processo de interação esses dois ststemas sistemático erigido nas zonas urbanas. Mas o comportamento do_senhor
?e comum~açao - o .do ~nhor e o do escravo - não ficam estanques, era comum em ambas, especialmente em relação ao escravo do etto, que
Isolados ou mcomurucá~s, mas se constituem numa dinâmica reciproca trabalhava na agricultura ou na mineração. .
constante. Livros de viajantes contam, nesse sentido, como o escravo unha de
Mas, no fundamental, essa din1mica dialética tinha na linguagem do se comportar nos momentos de diálogo com os seus senhores, havendo
senb?r a sua f~rça maior que lhe advinha da posse do poder não apenas inclusive fazendas nas quais os senhores exigiam que os seus escravos ap6s
político e econom1co, mas, também, do poder de dispor do próprio corpo falarem com eles, retirarem-se de costas, em sinal de respeito :l sua
do escravo. O .poder no ~ sentt~o ~brangente, unilateral e compacto cond~~ . .
como era exemd~ no.Brasil escraVJsta mterferia, direta ou indiretamente, Mas, o certo é que havia, como norma um verdadeuo cenmomal
em todos os ~ivetsde mteraçãodessa sociedade. Por esta razão, as palavras inibidor para o escravo quando ele tinha de dirigir-se ao senhor, fato que
fundamentaiS, as palavras-<:have eram ensinadas pelo senhor e/ou seus bloqueava a verbalização do seu pensamento.
prepostos .ou pelo padre e demais representantes da Igreja Católica. Com Hermann Burmeister aqui esteve por volta de 1850 e afirma no seu
ISto, o c~xhgode comportamento da sociedadeescraVJsta ia implícito nessa livro de impressoes sobre o Brasil: "de noite, quando voltam do trabalho,
aprendiZagem. reúnem-se debaixo das janelas da sala principal, onde se procedta ~
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Ung.JOgem e Dinamismo QJturoldoNeQrO
Dialético Radico/ doBtosJI N&go

tida r esses escravos transformou-se em agressão e


contagem. Em seguida, rezavam alguns minutos, dando, depois, as boa• a lmf1U1t!m am po oh . . d poder não estavam presentes.
noites ao patrão. Somente então~ que podiam ir para os seus alojamentos. VIOlência quando os_simbolos se C?~:~~s símbolos do poder senhorial
Os chefes de turma, constitulda em geral por 13 homens, eram escravos Qtando o senh<?r na o estava prot~gl d nd~ncia flsica dos seus
que se distinguiam pelo comportamento. Mantinham-se sempre junto e a força maten~ que os g:anc!ia, mas~o rbumilhações e poluição
escravos, eles se hbertdara':l. e t ~tiva como sujeitos bist6ricos e
0
aos homens, garantindo a disciplina deles. Q!ando um escravo desejava
alguma coisa do patrão, era levado à presença deste pelo seu chefe de moral da cena. Rea qwnram a
turma, que llie é superior hierárquico, uma espécie de caporal'123• revidaram a agressão com a vi.olênci.a extrem~ do escravo surgida de
Pelo descrito, o diilogo do escravo com o seu senhor era estabelecido Outro exemplo dessa Vlol~ncla ~d - Brioido· "Os negros
. é dado pelo b1stona o rJoao o· ·
através de um controle que certamente o inibia na fala que ele mantinha. maneira repennna nos re foi de mau agouro, nos ergástulos, o
Com certeza o chefe da turma ficava sabendo antecipadamente o que de começaram a resmungar, e semp . c · ndo-se ao massacre da barca
. "Oautore~lstorexen d.
pretendia expor, a fim de não criar áreas de atritos possi~is no diálogo. cativo resmungar. vegando há mais de 49 1as e
Era uma censura c\ qual ele estava sujeito de acordo com as normas
estabelecidas. Em outras fazendas a volta do escravo do trabalho era mais aportou em Fortaleza Um os escravo
d:
l..a~tra /1, no ano de 1839. Adbarca estav: tripulação vai à presença do
. vam famintos. Os
humilhante, tendo sido registrados fatos que bem demonstram o grau de comandante e fala do tratamento ~esumatno,:lsp:s;: comer O escravo
subaltemização no qual ele estava submetido. O mercenário alemão C . . não tinham prancamen e n · . .
marujOS cat1vos . c6di 0 de disciplina, pois expnm1a o
Schlichthorst serviu no ex~rcito Imperial de 1824 a 1826 narra: "no tempo havia quebrado, com lsto, ? E . g não era permitido. Em resposta ao
do Rei, vivia na Praia Grande, lugarejo do outro lado da baía, um ricaço descontentamento dos dematds. lsto d "" chicotear diante dos seus
. vo coman ante man a.....
brasileiro que era um verdadeiro demônio para os escravos. Todasasnoites que d 1Z o escra ' 0 .. . desse ato os marujos escravos tramam
chamava-os e mandava que escolhessem entre 25 açoites ou beijar o vtlho, companheiro~ Em.co~sequ~naas da noit; do dia 10 de julho de 1839,
como chamava seu bastão, rematado por uma cabeça bárbara esculpida a revolta ~m sllênao. As 9 fJra nome de todos) assume o comando
em madeira. Constantmo (o escravo que araea~te Francisco Ferreira, português, o
Os que preferiam beijar o velho e humildemente se curvavam para e ordena o massacre. O com~nt . um passageiro são lançados ao
ele, levavam terrlvel bordoada na cara que lhes fazia o sangue esguichar contrameste, prático, dois mann elros e. Bernardo ficou a serviço dos
da boca e do nariz. Os outros recebiam sem piedade, os 25 açoites. O cruel mar. O único branco que escapa, o maruJOd d ~ ;orca
são presos e con ena os a '' ·
senhor não se di~rtiu por muito tempo dessa maneira. Certa noite, ao rebeldes. Desemb arcam, . ., 05
desmentiram todo o
regressar do Rio de Janeiro, com sua mulher, numa embarcação, os negros João Brígido conclw
.
que presos os negr b
nfessaram com assom rosa
lealdade o que
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aproveitaram as trevas que enegreciam a baía e os lançaram à água. Antes, fu
medo com que glram e co , oho da inocência dos demaiS. O
porém, maltrataram a mulher de modo bestial, cevando todos nela seus havia feito cada um, dando seu testem~ - de Direito· entendiam
apetites carnais. O marido morreu afogado; mas ela foi salva e, quando que havia na con~iência de.les e~ a me o~ n~~e os tolhe;se." Foram
o Rei não queria confirmar a sentença de morte pronunciada contra os que deviam pamr ao meto t ,o .o sen o. f, rca
pretos, da, pode-se dizer que o compeliu a isso, protestando que nenhum fuzilados, sendo Constanti~sci::f~ ~::~r~~osões de violência, o
monarca tinha o dire1to de indultar um crime daquela natureza, Mesmo nem sempre . pelo silêncio frente ao senhor, ou
sobretudo cometido por escravos"24• cond ia no do escravo carac_tenzava-se ou uls6rio Havia um c6<hgo de
Sem entrarmos na anllise da simbologia filica do ato, desejamos o falar consentido e munas ":e~ c~:~ecer sob pena de punição. Nas
salientar, aqui, a atitude pasSiva dos escravos que se sujeitavam a praticá- linguagem o qual o escravo nn a e d Ewbank "quando um escravo
lo ou se submeteram ao açoite. Pela descrição doautornão havia nenhuma festas religiosas, segundo te~emu~do e membros da famUia erguendo
entra na sal~ para ~cender.~as,~~ ;.~ Nosso Senhor Jesus Cristo' 'A
5
voz de protesto naquele momento, nenhuma interlocução pol~mica
quanto ao direito do senhor sujeitá-los ao comportamento humilhante, a mão dtretta e dtZendo u~ al l daça-0 ~ considerado atitude
e, em contrapartida, a viol~ncia extrema da qual lançaram mão quando \..llnça-0 • Deixar de pronunc1ar t sau
uo;; • d . "25
houve oportunidade. Caht- acrescentar que eles deviam ter intuldo a desrespeitosa, merecedora e aç~>~te~ . ue o escravo estava obrigado.
intenção simbólica (ou não?) daquele ato, descarregando a sua viol~ncia Eram rituais de subaltemiZ3çao a q .d bordinadoaosvalores
na posse sexual da mulher do senhor que os humilhara. Vemos aqui como Assim podemosvercomooescravoeracontl o e su
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l.rrg.K1gemeDinamismoCtittroldoNego
Dio/~tlco Radical doBros// N~:qo

ü agmr ctmtitLt por esses escravos transformou-se em agressão e


co~tagem. Em seguida, rezavam alguns minutos, dando, depois, as boas-
noites ao patrão. Somente então ~que podiam ir para os seus alojamentos. ~o~~cia quando os simbolos senhoriais do poder não estavam pre~nt~~
Os chefes de turma, constituida em geral por 13 homens, eram escravos <zyando 0 senhor não estava protegido pelos símbolosd~ pod.er~n on
que se distinguiam pelo comportamento. Mantinham-se sempre junto e a força material que os garantia, mas oa depeodê~cla ~stca dos se:'s
aos homens, garantindo a disciplina deles. Quando um escravo desejava escravos, eles se libertaram de todo o rosário de hum~açoes ~ polUtçao
alguma coisa do patrão, era levado à pre~nça deste pelo seu chefe de moral da cena. Readquiriram a voz ativa como suJeitOs h1st6ncos e
turma, que lhe~ superior hierárqmco, uma espécie de caporal''23. revidaram a agressão com a violência extrema. .d d
Pelo descrito, o diMogo do escravo com o seu senhor era estabelecido Outro exemplo dessa violência extrema do escr~vo ~rgt a e
através de um controle que certamente o inibia na fala que ele mantinha. maneira repentina nos é dado pelo historiador João Brlg1do: Os negros
Com certeza o chefe da turma ficava sabendo antecipadamente o que ele começaram a resmungar, e sempre foi de mau agouro, nos ergâ~~s, o
pretend1a expor, a fim de não criar áreas de atritos possí~is no diálogo. catiVO resmungar." O autor escreveu isto referindo-se ao mas:sacre a ~rca
IA 'llll no ano de 1839. A ban:a estava navegando há mats de 49 d1as e
a "~ou' em Fortaleza. Um dos escravos da tripulação vai à pre.~nça do
Era uma censura à qual ele estava suJeito de acordo com as normas
estabelecidas. Em outras fazendas a volta do escravo do trabalho era mais
humilhante, tendo sido registrados fatos que bem demonstram o grau de c~andante e fala do tratamento desumano, pois estavam fammtos. Os
subalternização no qual ele estava submetido. O mercenário alemão C. marujos cativos não tinham praticamente n~~ ~ara co~er. O ~sc~avo0
Schli~tl~o.rst ~rviu.no e:x~rcito Impenalde 1824 a 1826 narra: "no tempo havia quebrado, com isto, o c6digo de dtsctphn~, pots expnmta
do ~~~VIVIa na Pra1a Grande, lugarejo do outro lado da bala, um ricaço descontentamento dos demais. E isto não era pe~m1t1do. ~m resdposta ao
diz escravo 0 comandante manda-o chtcotear dtante os seus
bra51le1roque era um verdadeiro demônio para os escravos. Todas as noites 0
chamava-os e mandava que escolhe~m entre 25 açoites ou btijaro tJe/ho, ~~~panheiros. E~ co~seqüência desse ato, os m~rujos e~ravos tramam
como chamava seu bastão, rematado por uma cabeça bárbara esculpida a revolta em silêncio. As 9 horas da noite do dta 10 de Julho de 1839,
em madeira. Constantino (o escravo que falara em nome d~ todos) a~ume o comando
Os que preferiam beijar o velho e humildemente se curvavam para e ordena o massacre. O comandante Franc1sc0 Ferren~ português, o
ele, levavam ter~vel bordoada na cara que lhes fazia o sangue esguichar cootrameste prático, dois marinheiros e um passageiro sao lanç~dos ao
da boca e do nanz. Os outros recebiam sem piedade, os 25 açoites. O cruel mar. o únido branco que escapa, o marujo Bernardo, ficou a semço dos
senhor não se divertiu por muito tempo dessa maneira. Certa noite, ao rebeldes. Desembarcam, são presos e condenados à forca. .
regre~rdo Rio de Janeiro, com sua mulher, numa embarcação, os negros
João Brígida conclui que "presos os negros desmennram todo o
aprove1taram as trevas que enegreciam a baia e os lançaram à água. Antes, medo com que fugiram e confessaram, com assombrosa lealdade,~ que
porém, maltrataram a mulher de modo bestial, cevando todos nela seus havia fe 1to cada um, dando seu testemunho da inocência ~os dem~s.. O
apeti.tes carnai~ O marido morreu afogado; mas ela fo1 salva e, quando que havia na consciência deles era a melhor noção de Dire1to; e~~e Fo tam
que devtam partir ao meio todo o senho~ que os tolhesse. ram
o Rei não que na confirmar a sentença de morte pronunciada contra os
pretos, ela, pod~se diztr que o compeliu a isso, protestando que nenhum fuzilados, sendo Constantino o único a subu l forca. . .
Mesmo nem sempre resultando nessas. expl.osões de vtolênc1a, o
monarca tinha o direito de indultar um crime daquela natureza,
cottdtano do escravo caracterizava-se ou pelo silênc1o frente ao ~nhor, ou
falar con~ntido e muitas vezes compuls6no. Havta um c6<!_tgoNde
sobretudo cometido por escravos''24•
Sem entrarmos na análi~ da simbologia fálica do ato, desejamos 0
ltnguagem 0 qual 0 escravo tinha de obedecer sob pena de pu01çao. as
salientar, aqui, a atitude passiva dos escravos que se suje1tavam a pratid-
festas religiosas, segundo testemunho de Ewbank "quando um escravo
entra na sala para acender velas, saúda os membros da famlha ergue~~~
loou se submeteram ao açoite. Pela descrição do autor não havia nenhuma
voz de protesto naquele momento, nenhuma interlocução polêmica
quanto ao direito do ~nhor sujeitá-los ao comportamento humilhante, a mão direita e dizendo 'Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cnst?
u - • Deixar de pronunciar tal saudação é constderado autude
e, em contrapartida, a violência extrema da qual lançaram mão quando Vt:nçao. . "2S
houve oportunidade. Cabe acrescentar que eles deviam ter intuido a desrespeitosa, merecedora de aço1tes . . d
Eram rituais de subalternização a que o escravo estava obnga o.
intenção simbólica (ou não?) daquele ato, descarregando a sua violência
Assim podemos ~r como 0 escravo era contido e subordinado aos valores
na po~ sexual da mulher do senhor que os humilhara. Vemos aqui como
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Dia/éticoRadical doBros/1 Nego Linguagem e Dinamismo Cultural do Negro

do senhor, não apenas na linguagem como também na própria expressão em todos os seus níveis e este foi um dos mais impor.tant_:s: mant~r o
corporal. Tinha de saudar o deus da religião do senhor, prestar-lhe pensamento do escravo contido pelo aparelho de d~mmaçao escra~sta.
re~rência, pedir para ser abençoado pelos presentes e prestar serviço Por outro lado quando o escravo não estava dtretamente coagtdo,
ritualistico de acender as velas do altar. Se não obedecesse todo esse ritual mtbido ou reprimido pelo senhor, seus prepost~s ~m~diat~s ou:epresen-
de subordinação social aos presentes e não cumprisse esse ritual do tantesdo poder, a sua loquacidade era pordematsstgntficatlva_nao ape?as
catolicismo, estava sujeito a sofrer um castigo corporal, num ~madeiro em nível coloquial individual, mas em nível de manifesta~ao coletiVa,
ato de expiação. Desta forma, quando ele estava diretamente sob controle através de várias atividades grupais onde o falar e o cantar ttnham uma
do seu senhor ou seus prepostos, o escravo ou silenciava ou falava uma função catártica indiscutível. Podemos ~i~er mes~o que o ~egro escravo
linguagem que contradizia com o seu pensamento ou estourava em atos ao se desinibir da camisa-de-força ritualJsttca da hnguagem t.mposta pelo
de viol~ncia. senhor, a qual o obrigava a um ~ódigo ~de üng~agem ~asstvo_e a~nas
Muitas vezes, porém, o silêncio era imposto pelo hábito. O mesmo concordante expandia-se em manifestaçoescolettvasdehbertaçao stmb&
Ewbank narra o seguinte epis6dto elucidativo: "Enquanto eu admirava o Jica através d~ palavra e da música. Até hoje isto é visível_ nos descendentes
jardim, um homem desceu correndo a escada, chamando: 'João... José ... de escravos que compõem a população negra no Brastl.
João ..: Logo depois dois negros seminus largaram no chão as enxadas com
que trabalhavam. O homem lhes dirigiu três ou quatro palavras, quando
se aproximaram e a ambos empurrou para o corredor, por onde sumiram.
Q!te foi que ele lhes disse?- perguntei. 'Venham cá para serem vendidos'
-foi a resposta. Houve algo naquela ordem e na maneira por que foi dita,
em sua subitaneidade e na silenciosa aquiescência daqueles pobres
coitados ao serem empurrados para dentro - que senti um calafrio me
perrorrer o corpo. Em forma e espírito, pareciam as palavras de um antigo
carcereiro ao digirir-se ao condenado na manhã da execução: Saia para ser
enforcado"26•
Ainda sobre o silêncio imposto aoescravoo mesmo autor narrao fato
a que assistiu no leilão de escravos no Rio de Janeiro. Uma criança escrava
ia ser leiloada juntamente com a sua mãe, mas a "criança não chorava em
voz alta, que isso não era permitido às crianças escravas''27.
Mesmo nos momentos em que era açoitado, esse c6digo devia ser
respeitado. Debret narra, descrevendo uma das suas pranchas na qual
desenhou um negro sendo açoitado: "O infeliz representado no primeiro
plano, depois de ser amarradas as mãos sentou-se sobre os calcanhares,
passando as pernas entre os braços de modo a permitir ao feitor que
enfiasse uma vara entre os joelhos para servir de entrave; em seguida,
facilmente derrubada com um pontapé, a vítima conservava uma posição
de imobilidade que permitia ao feitor saciar a sua cólera. Ousando apenas
articular uns gritos de misenc6rdia, o escravo s6 ouve como resposta "cala ·
a boca negro"21•
Por essas razões sumariamente apresentadas não há como fugir à
evidência de que a linguagem do escravo- quando ele estava sob o controle
direto do senhor, de um preposto ou membro da famtlia -era silenciar
ou falar de forma passiva, afirmativa ou restrita àquilo que lhe era
perguntado. O escravismo, para manter-se, tinha de subordinar o escravo
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Dia/6/lcs Radical do Brasl7 Negro Linguagem e Dlnamsmo Cultural do Negro
(Ungu~m " Dinamismo Cultursl do Negro)
Notas ~avia para acobcrt.lr preconceitos e o conservantismo ·I ransfcriram a aç;io do
século XVIII para o s&ulo XVI. Assim, onde h:wia negros surgiram novamente
bugres." p. 25.
(I) RODRIGUES, Nina.Osa.frü·anllf noBra111. Cia Editor.I Nac1onal SP 3' ed (12) Sobre a moderna p roduçlio literária dos negros no Brasil, ver: BERND,
1945. piiSSÍf/1. • • • ..
Zilá. lntrodu(J.o à ilttratura lltQ<L Editora Brasiliense, SP, 1988. LOBO, Luiz.a.
(~ Ver neste semido: RAMOS, ~tu:. O nrgro braslfmo. C ia f:ditora Nac1ona~ A ütua.tura negra rontcmpordnta. in f:studos A.froAnátlfos.. RJ, n9 14, setembro de
2 · ~· .!ui11Cnta~a,SP,I940,pasmtL -FREYRE, Gilberto. C~aaGrandr&SmzakL 1987, pp. 39/109. KENNEDY, )ames. B1bflograjia da üt"a.tura a.fro/n"asileira
EdlloraJosé Ol~mp10, 2 vols., 41. ed. definitiva. RJ, 1942, espcc1almcnte 0 2• conttmporJnta. in EstMiios A.froAsiJtll'llf, n" 15, RJ, junho 1988. R.tjltxões sobre a
volume. Esse filao ~e estudos produziu uma bibliografia imeny que nlo cabe literatura a.fro/n"aszlma. vários autores, Editora Conselho de Participação e
ser enumerada aqu1. DtYm10hnn~nto da Co11t1111t"dadc Nt!,ra. S.io Paulo, 1985. Ver também a coleção
(3) DIAS, .ti.enriq~e. Um rartrl dt dtsajio. in CARNEI RO,ülison. Antologia do Cadtrnos Ntgros, SP, (.-ditados pela Q!AIIomboja e a vislo seletiva dessa produção
ntgro bras1~mo. ül.llora Globo, RJ, PA, 1950, p. 80. contida nos livros~\'E de Paulo Coliru e A P.a;4Q da Cbama de Oswaldo de
(4) DUSShN. Ad na n. van Der. Rdatóno sobre as Capitanias ronquistadas no Brasil Camargo (orgs).
ptfot 1/o/andests. IAA, RJ, 1947, p. 92. (13) BANANERE,Ju6. IAdnmta tntrtnra. Editora f-olcoMasucc~SP, 1966.Ju6
(~) RAMOS, Art~r. lntrodupio à AntropoloJia BrtlSI!ma. üfltora Casa do Bananere (Alexandre Marcondes Machado) teve no apresentador da 2!. edição
I~tudante ~o Brasil, R), 1943, especialmente a scgund.1 parte: As rulturas nrgras. do seu livro, M.irio Leite, um justificador do seu linguajas com o asgumento
p. 292, pars1m. de que "a presença do italiano c de sua descendência, no complexo demográfico
(6) CASTR?, Y~a Pessoa de. Os falara afii{llnllf na intrraçiüJ do Brasil Colônia. de S.io P.1ulo sobrepuja muito junto da.ç demais correntes migratórias,
Pub. da U mver51?ade Federal da Bahia, Salvador, 1980, p. 15. procedentes da Europa e da Ás1a, mcluídas suas largas proles esgalhadas em todo
(7) Y_er nes~e sent1do: M~LO. Ant?nio Gonçalves de. Um JOfltrnadorrolonial t o Estado", dalter o autor enfeixado "sob a curio.sa designação de Ditlina lnmnca
a.r .rufas afnranas. tn Refll.rta do ln.rtztuto I h.rtórico t Grogr4Jiro Prrnamlmrano vol um pouco de pro~a. poesias da própria lavu, outras, em paródia~ de versos
42, pp. 4145, Recife, 1952. ' notáveis, c no mesmo dialeto macarrônico com que iniciara a sua carreira." (op.
(8) RII3~1RO, João. lfist6n"a do Br~ail Limria Cruz Coutinho, RJ, 1900. Ver cit. pp. 7/8) ,
no p~rt1cular todo ,o capltu~o so.br~ a cscravid.io negra das pp. 147 a 154. (14) Cf. REIS, Maria Firmina dos.Urrula. Editora Presenç.a, RJ, 1988. GAMA,
Termlna~d~ o capitulo, Joao Ribe~ro, depois de cx.Jhar a benignidade e Luiz. TfOfMS burltKas & nmtos tfll prosa, Editora Cultura, SP, 1944.
bcneme~enc1a dos senhores de escravos vi.J rehgião cat6hca, enumerando as (15) MOTf, Maria I úcia de. Submissão c resistlncia -A mulher na luta contra a
concess~ que eles fiZeram para amenizar a condição dos cativos, escreve: "não escrmlidão. Editora Contexto, SP, 1988.
t no~o I ntcnto fazer a apologia da e~ravidJo" c desenvolve o seu pensa me mo (16) Ver no particuLu o trabalho de Raymund Sayers Opoda negro no Brasil· o
atravcs do trecho qllc transcrevemos acima. caso de julio Cruz e Souza, publicado no seu livro Onze Estudllf de litmllura
(9) BASTID~. Roger.As.rt!ip"õts afi!canas no 8ras1l Editora Pioneira, SP, 1971. brasiltira, Editora Civilização Bra.ç•Jeira, RJ, 1983, pp. 81/114. Roger Bastide
Ver no part1c~lar, ~ relig~ao serv10do como articul.~dora de uma ideologia tam~m se ocupa do problema escrevendo Quatro estudos sobre Cruz e Souza no
~ul!ural de resistência, todo o capítulo Ill do pnmc1ro volume desse trabalho livro A potsia A.fro-Brasilma. &h tora Mutim, SP, 1943, pp. 87/109.
tntJtulado: O proltsto do escrll'fJO t a RLiigiào, das pp. 113 a 140. ' (17) JESUS, Carolina Maria de. Q!arto de Desptjo (duírio de uma jllfJtlada),
(10) O ~egro como personagem central é praticaiTlCnte desconhecido na nossa Editora Livraria Francisco Alves, SP, 1960, pasrim
noveUstlca. Um exemplo negativo neste sentido é o conto Plll amtra mie de (18) SANTOS, Arlindo Veiga dos. Contra a Correnlt. Edição PaJ.rianooa, cidade
Machado de Assis. Na sua urdidura, através de recursos dev,\rios níveis, 0 a~tor de São Paulo, 1931 e Ordtm N(lf.Ja na qual ele se intitulava Chefe Geral daApio
coloca o leu o r tor~endo para que o personagem branco prenda a personagem Jmptria!Pa.trianooiSta Brastltira, Ediç.lo Pátria-Nova, CidadedeSão Paulo,l931.
negra-escrava e assun possa saJvar o filho que e\tava doente e ~m remédio (19) VEIGA, Arlindo da. Co!llra a Corrente. SP, 1931.
recebendo o dinheiro pela sua captura salvando-<> d.1 morte. ' {20) VEIGA, Arlindo da: Op. Cit.
{li) Con~u.ltar sobre o assu~to: BANDEIRA, Antônio Rangel. Carlos Gomcs. (21) Op. Cit. pp. 48/49. Vamos transcrever em seguida o Programa do
no centtnar~o de 11 Guarany, m Rlfllsta do Arquivo Mumcipa~ S.P. n" C LXXXI, Patrionovismo como est.l no hvro c1tado, para se ter uma vüào global do seu
1970, pp. 17 e segts. Escreve ele: "Sabe-se que Taunay rejeitou a paternidade do pensamento politico, ideológico c étnico:
argumento de Lo Schiavo, tais as absurdas alterações que nele foram feitas pelo 1 • Crrdo. PnVIlégio do Catolicismo. Religião obrigatória nas escolas públicas,
P~ta Rodolfo Para~cini, autor do libreto. Mas Carlos Gomes n.io teve culpa, nos quartéis, institutos hospitalares e correcionais etc.
pou até mesmo pechraa Taunayqueoentrecho não tivesse mais índios. Já estava 11 • Monarquia • Imperador respons~vel que reine e governe, escolhendo
cansado de bugres... Mas as chamadas 'c.xigencids cênicas' • eufemismo que livremente os seus ministros. Base municipal sindicalista de organização do
204 205
Linguagem 8 Dinamismo Culturol do Negro
Olal~tlca RadiCal do Brasil Negro
aAtA:Maria da noite, mas com a obrigação de apresen~ar-sc ao seu senh~r
EMado Imperial. Direitos majestáticos da Dinastia Naciondl, aclamada pela gesfi to nd d . -lhe bc.ls-noiltS. recebendo em troca um smal ~e ap~ovaça.o
naçJo do fundador politico da Pátria Imperial Brasileira, O. Pedro I e, agora • m c esc1ar . d bcç Ed ~ senttr mutto feliz
manifestado por um simple~ m~v:'mento c ~a a. ara~o desde manhã. Cabe-
representada por S. A. I. Dom Pedro Henrique.
nessa circunstâncta não lhe tnOtgncm ~'.'~tt.go pr() Finalmente a bênção meu
111 - !'á1ria e Rara Brasileira - Afirmaçiio da P~tria I mpcrial Bra~ilcira; sua lhe dizer uma oração em comum antes c ctt.&~-se ·- d ito ara
valori7-ação espiritual (religiosa. intelectual c moral) flsica c econômica. smixJr é a fórmula que a negra ensina .&Scuç negn nhos, mes~~ a~sbr~rn h~.PEm
os quais ela.pr6pria pronunctadas palavr.l~oes~;dr:ped:o e de dedicação."
Afirmação da raça brasileira em todos os seus elementos tradicionais c nov~
integrados (filhos de estrangeiros). Solução ~na e defimllv.J do problema ' pau 0 negro uma cmonstr~çc1 . . . .
ncgro-lndi<Hertanejo. Formação e valon.zação fisica, intelectual e religioso- ~~":~.Jean Baptiste. Vúz~m pitor(.J(a e bist6rira ac Brasil. Ltvrana Martms.
moral nacionalista da Raça Brasileira. Definição d.J situação do emangeiro 2 tomos, SP, 1940, 2° tomo, P· }55
dentro do Império mstaurado. Reação contra todas as formas do Impc:rialismo
E~trangeiro no Brasil.
26) EWBANK. Thomas. Op. C1L p. 287.
IV - NOfJa Divisãb AdntímsJraJiw - Divisão do Pais em provlnoaç menores, 27) Idem, Ibidem. .. bis 6 · B asil Livraria
28) DEBRET, Jean Baptiste. Viagem pllomca e t nca (11) r. .
meramente administrativas. Educação obrigatória especial contra o c<>pírito
Martins, SP, 1940, p. 195.
regionalista c intensificação do amor à cidc~dc: natal ou minucípio, célula da
Pátria Imperial.
V - 0rgfllliM(ãiJ Sindical - das classes profissionais de produçiio espiritual
(religto~. moral e intelectual) e econômica; clero, magisthio, anes liberais, artes
mec.inicas, agricultura, comércio e indústria nifcionais, e outra~ como ba~e da
fltTdadtira representação nacional.
VI -Capital no c:entro do lmplrio.
VIl - Polftica Internacional NacionalislaA/tíva e Crislã. Entendimento Especial
I libero Americanista. (Op. Cit. pp. 92/93).
{22) Esse distanciamento de Arlindo Veiga dos Santos de problemas de urna
ntgniude em primeiro plano das suas preocupações filoç6fica~ podemos ver
através dos titulosdos capítulos do seu livro Para a Ordtm NOfJa. Editora Pátria-
Nova, São Paulo, 1933. São os seguintes: O inditlid11alismo e suas ronStqiiêndas-
Encfdícas preceden~s à Rerum Novarum; -A Endrlica (àtadra#simo Anno; 01
btntjfdos da Rernm NOfJarum; A doulrina sccial e tronômica;- Meios dt rtdenrito
proktárút · Mrio de mtaurar a Ordem Soaa~ Rtjorma das ínslitu1(Õts MmJS. -A
tronomia, o Socialumo e o Ccmunismo -A rrforma dos costuma - Fkwo do Papa -
Elogio do Cartkal Arroverrle - Ser Sanlo · Apio (,àJ6/ica ·A pergun1a dt Sãc João
Batista. C11niituk e H~tmild411e ·Sonho projtito do &ai() João BoKo -A cammbo •
A fi anl'lga e ImortaL
Era a tenútica de um mihtante católico c de um filósofo adepto das posições
de Jackson· de Figueiredo.
23) BURMEISfER. 1-Icrmann. Vm&em (11) Brasil Editora, Itatiaia, BJ-1, 1980, p.
162.
24) SCHUCHTHORST, C. O Rio de Janmo romo l- 1824/1826- (Huma fA'Z
t nunca "um) Editora Getúlio Costa, RJ. s/d. p. 133.
25) EWBANK. Thomu.A vida no Brasil ou· D1ddo de uma flisila ao pais do racau
e das palmeiras. 2 vols. Editora Conquista, 1973, 2°vol. p. 385.- Ocbret registra
o utro ato de religiosidade compulsória do escravo da seguinte maneira: "AAre-
Maria impõe igual número de obrigações religiosas ao negro católico. Por
ocasião daAtttMana da manhã deve ele fazer o si na I da cruz repct indo o mesmo

207
206
N
l~specificidade e Dinamismo dos
Movimentos de São Paulo

É falso pensarmos que a milítâncta do


movimento negro ~tá a salvo das
scqúelas que o recismo provoca em
quaJquer negro.

Luíza Barros "'

• (MNU -Jornal Nacional do Movimento Negro Unificado, nll20-0utubro/


Novembro/Dezembro- 1991)

209
O negro urbano emergente:
novos aspectos da questão racial

Para se conhecer mais profundamente a emergência de uma série de


organizações e grupos negros em centros urbanos, como está acontecendo
atualmente, devemos fazer um pequeno apanhado hist6rico do seu
comportamento ap6s a Abolição; a desarticulação social à qual foi
submetido e como ele se aproveitou de dtversas formas das organizações
paralelas - ou grupos específicos - para sobreviver social, econômica,
cultural e existencialmente. Foi um movimento cheio de ziguezagues,
havendo, mesmo, muitas dissidências entre eles. Inicialmente, essas
organizações tinham cunho religioso, beneficente e cultural, mas termi-
navam comoclubesde lazer, ou mais especifica mente como casas ou salões
de bailes. Isso levava a que aqueles negros mais conservadores delas se
afastassem, muitos procurando criar outras entidades. Essa atitude partia
daqueles elementos que tinham uma ideologia segundo a qual o negro
devia igualar-se ao branco pelas virtudes morais e pela cultura. Por isso,
combatiam a cachaça e o samba nesses centros, os pr6pnos bailes e o
comportamento boêmio de certos individuas e/ou grupos. Uma ética
puritana permeava o pensamento desses negros fato que se manifestará
constantemente na lmpnmsa Nrgra. 1
Mas, sem possibilidades de o negro freqüentar as entidades brancas,
todas elas impermeáveis ou quase à sua presença, ele tinha de continuar
a se organizar, num fenômeno que era apenas, em muitos aspectos,
repetição do que já existia antes da Abolição, quando o negro escravo, para
não ser extinto social e mesmo biologicamente, organizou-se de diversas
formas- confrarias, cantos, entidades de auxilio mútuo para compra de
alforria, quilombos etc.- Mantendo, com isso, uma série de valores e
patamares de defesa interligando-se positivamente.
Ap6s a Abolição, no entanto, houve um perlodo no qual o negro não
encontrava possibilidades de se integrar economicamente e encontrar a
sua identidade étnica de forma não fragmentada e confusa. Dai uma fase
onde ele, como o elemento mais onerado no processo de passagem da
escravidão para o trabalho livre, desarticulou-se social, psicológica e
culturalmente. Mas sempre procurou, em nível organizacional reencon-
trar-se.
211
DiaJ{Jtica Radical do Brasil Negro Especificidad9 9 Dinamismo dos Movmantos da SSo PaulO

O desenvolvimento urbano de São Paulo, por outro lado, tal como os a auto-aftrmar·se inesperadamente e sentir-se momentaneamen..te
se verificou, não beneficiou o segmento negro. Pelo contrário. Por um.1 superior àquele que 0 humilhou ou introduz tu elementos de_compressao
série de mecanismos discriminadores, ele foi jogado para a periferia do social mais acentuados e que o atingiu individualmente, cnando novas
SIStema SOCial, cultural e econômico, criando-se ao mesmo tempo, uma respostas à situação/problema enfrentada.
série de barre1ras 1deol6gicas, da qual a mais abrangente e permanente é o problema da agressividade do negro neste contexto como resposta
o preconceito racial. a estimulas exteriores também agressivos, ainda não fo1 ~nal1~do
O preconcetto racial ao lado do processo de marginalização imposto satisfatoriamente até situá-lo como uma forma de a~to-afirmaçao étmca.
ao negro, são os dois elementos determmadores do seu comportamento. Não lhe sobrando muito espaço para reahzar-se soc1almente, ele explode
Determinam as suas formas de organização e o seu comportamento momentaneamente através da agressividade, inclus1ve_ sexual, procurando
individual. desta forma derivar 0 seu traumatismo e paran~1a soc1al atravesde um ato
Para quem convive com os negros de forma sistemática durante um que seria a negação da sua subaltem1dade soc1al e étmca. ,
tempo relativamente grande, em pais no qual existiu a escravidão até Por outro lado, o problema do seu compo~dm.ento amb1gu~ d~ve
recentemente (pouco mais de cem anos) uma coisa salta aos olhos: o seu ser encarado levando-se em consideração, em pnme1ro plano, as hmtta-
comportamento ainda está fundamente marcado pelo relacionamento ções do espaço social que de tem para se rea~izar e desenvolver a sua
que ha~a entre senhores. e ~scrav?s no passado no nível de dommação/ personalidade e a compressão múltipla que a soc1edade br.znca faz para esse
subordmaçJo. Essas remltl1scênc1as produzem, por seu turno, mecanis- espaço não ser ampliado. Convém notar, ainda, ~uc esse espaço reservad~
mos sociopsicol6gicos de compensação simbólicos -de desajustamento ao negro urbano pobre, significa, no espaço soc1~l total, aquele que e~ta
re~justa~e~~~o e ajustame~to- fazendo a sua personalidade ser atingid~ num semivácuo ocupacional e cultural por nao te_r quem o quetra
e tmposs1b1lttada de reagtr a não ser de forma diferente das camadas reencher. Essa estreiteza, essa exigüidade do espaço soc1al cOI:npnme toda
brancas, diame do mesmo fato. A barragem que ainda persiste e muitas ~personalidade do negro. A partir daí, ele começa a ver a soctedade como
vezes se aguça nas áreas de competição e, por outro lado, a fa lta de uma al 0 imóvel e petrificada, hierarquizada desde o co~e~ do mundo ~o~o
visão não-setorizada do problema por parte de grande pane dos negros, es~á e procura elementos de compensaçã~ n?s rehg1oes afro-bras1le1ras
leva-<>s a procurar, através de um comportamento ambíguo, contornar tradicionais ou adere às religiões salvactOmstas como a pentecostal,
essas _barreiras sem uma visão mais abrangente do problema. Q!lando Testemunhas de Jeová e outras (Piter Fry). 2 Pelas mesma~. ra1oes, porém,
convrvemos com o negro que nlo procura forçar a mobilidade socaai e se pode assum1r um comportamento agressivo, conforme Jtl afi~~mos. A
conse~ congelado na posição que U1e foi concedida, sem protestar, esse r6 ria cnmmalidadedo negro, já apontada tantas vezes e estattsttcameu-
traumansmo de choque com a reaLdade não se manifesta em primeiro ie d~monstrada na área do crime da pobreza, nasce- fundamental_mente
plano, ficando em estado latente. _ da SituaÇão s6cio-econômica na qual ele se encontra na soc1edade
Acostumado com o comportamento rotmeiro de subaltemidade, ele abrangente (discriminatória) mas, também, esttmulada _pela necess1dade
se adapta, acomoda-se, procurando, dentro das constelações fechadas de de destruir 0 tampão compressor que o opnme economtca, cultural ~
atitudes e reaç~s {comportamento subalterno, excesso de etiqueta, psicologicamente através de uma série de valores branaJS aos qua1s ele esta
conformismo com o ~u destino) não entra em choque com as barreiras que subordinadoeque,desdeasuainfancia,acostumou-seaou~rcomosendo
o separam da soc1edade brdttca. Isso passa a ser nall~ra/. Criam normas supenores àqueles criados pelos negros e por esse mouvo devem ser
justificat6nas do seu estado de carênc1a e desintegração social quase obedecidos sem discussão. Ele pratica o crime não c1~nas pelos resultc1dos
absoluto. Estendem este comportamento anômico a quase todas c1s materiais, mas, também, por uma vingança stmb6h~a.de romper com os
si~ações as quais t~m de enfrentar. Somente quando um fato inesperado valores sagrados impostos pelos brancos. A agresstvt?a~e apresenta-se,
e Vlolento os obnga a tomar at1tudes divergentes daquela unidade de então como a forma através da qual ele se supenonza e consegue
comportamento tradicional e rotineira eles reagem de quatro formas restabelecer a unidade da sua personalid.1de ambivalente. Por outro_lc~do,
principais: através de uma subalternidade ainda mais acentuada, através essa agressividade serve para que, diante de alguns seto~es,da comumdade
da ambigü1dade, através da agressão ou da ansiedade. negra, ele adquira status de prestígio capaz de proJeta-lo ao nível de
Essa agressividade, que se manifesta quase sempre sem refletir ou ser liderança. d b (
decorrência de uma ideologia que a justifique (agressividade política) leva- Por outro lado, a visão setoriz.ada que o negro tem o ranco a

212 213
Mo imentos do 560 Paulo
Especificidade e Dinamismo dO5 v
Dialética Radical do Brasil Negro
.. fi . al procuram atingir níveis mais
recíproca é ainda mais verdadeira) leva~ a manter-se em guarda todas aa ssoal famihar ou pro tsston ' . al. d
patamar pe ' h d 1 s segmentos negros mcJrgtn IZa os.
vezes que inicia contatos ma1s est~veis e patrimoniais com os brancos em devados. estes sequer sonda os?:~dade simbólica é, em última análtse,
termos de negócio, atividades profissionais, ligação familiar ou educacJo Essa ~g~n~a fo~m~ e :sressl:loresbrancosem uma camada negra
onaL Em primeiro lugar ele visualiza um branco genérico, para, somente umaintro)eçao(mtenonzaçao)do~ es·a ou mais raramente de alta
depo1s ver o sócio, o colega de classe ou de serviço, o futuro parente etc., que p~ura st~Jtus de ~~~~ d:rgurez; 0 negro marginal (izado), ,para
indiVIdualmente, com as suas qualidades e defeitos, na sua concretude burguesia e, para tal, de ~m spnfu d "da mas de outro, atraves de
- onfundlf ou ser co o t ' • nd
pessoaL com eIe nao se c . . . . ch ar a atenção para a sua, destaca o-
Há, portanto, estereótipos criados pela barragem a qual o branco atitudesdive~entest~d~VldUal~ ame5Sdo simb61ica através das quais
erigiu e impôs e que, atingindo o negro, revertem, posteriormente, como se pelo ex6nco e cna tormas e agr
c,.,. negro através do A/ler branco.
um bumerangue contra o criador de barragem étnica. Esse mecanismo compensa o seu '-6" . . é la sua imagem e não pelo seu <.er.
arcular responde por muito da mcompreensão que está surgindo Faz-se notar em nbalta: tsto. '~ ssividade cria certas áreas no
ultimamente nos movimentos negros. É fácil perce~~ ~mo esse upo e ~gre rtencem. Nas uni~rs1dades,
Convém notar, por outro lado, que a agressividade de alguns grupos nivel da classe médta a qual esse; irur -!:do preconceito real não mais
de intelectuais negros, especialmente universitários, é bem diferente da especialmente, o negro procurda e end er scravoc fo,.,..ando as barreiras
· 1 POrO desceo ente e e "' . ., ·1
agressividade sutg~da nas camadas marginalizadas das favelas, dos pardieiros como Slmp es D-o : . pel .edade branca para o seu ascenso socl~ •
e se traduz obJetivamente como fenômeno social na criminalidade do criadas em tod~sos ~lvels a soc.lá alcançou um patamar de mtegraçao
pobre. porém como ctdadao n~gro ~u~J . 1tude brasilei ra no seu conjunto
Esses grupos intelectuais fazem questão, consciente ou inconscien t~ relativo em termos da M Situaçao a,Ju~e~ determinadas correntes intelec-
mente de negar as suas possíveis hgações ou ações comuns com as camadas p arttcular mto senstvels l"d d
e n~gra em f, . ulá-las a fim de adaptá-las à nossa rea. I a e, ~m,
negras marginalizadas ou criminalizadas que constituem a grande tuats, procuram re or~ blemática na qual dana conteudo
maioria do negro brasileiro. contudo assimilar mmtas vezes a pro .
~ d·cal a essa práx1s agressiVa. d
Por isso, cnaram uma forma de violência rtfinada, civiliõ.lda, através sociologlcamen~e ra I . id""- remos expressar aquela forma e
de formas de comportamento simbólico (O cabelo b/a& j>O'll'tr e outras ~ando diZemos agmnvd e qued uma Situação problemática e
roida no ecorrer e . b6\" )
manifestações exteriores) ou de rejeição, inclusive em nível de relações comportamento SU ·o- d 6 (verbal corporal ou Sim ICa
pessoais com brancds ou brancos. Ficam desenvolvendo e valorizando transformada em um ato extremo e orça açã'o o desequilíbrio no
b e produz com a sua •
ideologicamente discussões culturais para saber se Betthoven era negro, contra o o Jeto qu_ a1 ' ald pessoa grupoouinstituiçãoncgros
se Puskin e Balzc1c também o eram, alimentando com isto um Ego comportame~to babltu e n~~adea r nã~ refleu r, na sua essência um
paradoxalmente brc1nco. por eles aungldos. Essa ag~~-~- • po stados emocionais para nivets
Desta forma, a agressividade daquelas camadas proletanzadas, mar- t capaz de caililliZar esses e
comportameo o "d IJv.: s revolucionárias nas quaiS os negros
ginalizcJdasou criminalizadas t~m um conteúdo mais profundo de crítica m propostas 1 eo v&'ca · a
poliucos, co . . . amizar esse protesto, quase sempre tenrun
social e étnica porque na sua base estão os problemas sócio-econômicos pudesse . m raoonaltZar e d~ ' 1 ocional para o autor ou autores
'emas pessoaiSem mve em ' __~~. .
capazes de, por s1 sós, justificarem atttudes divergentes, no caso a por c na r prob I • . d d por não refletir na sua e:.:.cncta um
criminal idade. A agress1vidade de uma camada negra pequeno-burguesa dessa agressividade. Ess~ agre~:-" a ~sestados emocionais para compor-
nasce da tentativa de quererem os seus membros ganhar espaços sociais comportamento capaz ~~ IZar e ro stas ideol6gica's revolucionárias
isoladamente (individualmente} depois de haverem assimilado umêl tamentos no camp~ poltnco, '?m ~s ~gros pudessem radicaltzar. esse
filosofia indiVIdualista e níveis profissionais relauvamente compensadores. ou de reforma SOCial nas quats e . r criar problemas pessoats ou
Em outras palavras e c~ bordando o fato sob outro ângulo, isto é, da protesto étnico, quase sempre termma po
perspectiva das ideologias. Essa posição no espaço social cria uma ideologta contradições entre ~uenos grupos._ os casos, isto é, quando há um ato
de ~jtpio da parte dos grupos pequeno-burgueses negros. Surge naqueles Isso não quer diZer que, em_ mUit um dos seus grupos ou
pequenos grupos que, descartando a alternativa de conseguir mobilidade de agressividade cont ra a co~~mdade n~r:~~~~o revide não tenha um
social de forma mc1ssiva, através de movimentos de mudanças sociais membros, a reação de agr~1Vldade ?v~is, fnclusive no polhico. Mas não
globais (revolucionárias) optam pelo~ solução individual, e, a partir do seu significado em qualquer os seus nt
215
214
Especificidade e Dina~n~smo dos Movi/'TI6fiiOS de SSO Paulo
Dialética Radical do Brasil Negro

- • r. á ·casaderindoareligiõessalvacionistas.
tem significc~ção correspondente em nenhum dos seus níveis- ao grau de segurança (proteçao) vta xorças m gt 1..1 In. "id ult ntw(:Sjividade
agressâo que a sociedc~de brc~nca, preconceituosa, seletiva e autoritária, rd d tipos de subaltermuu.ue. am rgu ' ., -.e.· ·
. ve a-e que e~s
É uros. Isto somente muito raramente, em
t anstr~ n;~r:S%a~i~~~::~ale ractal. Mas eles tipificam a.proX!édm~­
impõe como padrão normativo.
Isto porque lhe fc~lta uma ideologia que transforme a reação do negro casos pa teu .deolooia subJacente de uma classe m ta
em uma contrapartida de açãocapazde responderdinâmicae radicalmen- da mente o comportamento e a t c:r
te ao ato agressor. Essa setorização ideológica dos movimentos negros, metropolitana negra. 1 no comportamento sexual dos grupos
especialmente a sua elitização em algumas áreas impede-os de incorporu Podemos ver, por exemp o, to subaltemo ~ tam~m ambíguo. No
a eles a grande massa negrc1 anônima, favdada e criminalizada a qual não que representam o co;~~~ei~o desses grupos negros de ela~ médta,
tem oxigênio social para falar, reagir à agressivtdade maior contra ela dos comportamento sexu ~ da eles f.u.em questão de ter uma vtda
órgãos de repressão que a agridem diariamente. Os protestos contra essa especialmente da ger~çao passa ' l soberano do comporta-
agressão permanente feitos pelos grupos da classe média negra são também familiar ngtdamente mtegrada com o co~l:~: exercem o papel de dxfa
simbólicos. Não há uma incorporação permanente através de uma práxis mento dos seus filhos~ parentes depende ~sstva e exigindo de todos
política que una esses dois umversos da população negra. de Jamflia.t com autonda1,e ~~tta) ::~:: de comportamento moral
Quanto .ls formas de comportamento predominantes do negro (especialmente do sexo emtmn~ s restntos longe de caS<I e de pessoas
metropolitano (São Paulo) podemos destacar, em seguida, aquelas mais puntano. Ao m~s~o tempo,e~g po ram 'aventuras, especial mente
stgt1ificativas: 3 ligadas à sua at1vtdade pro~ss!O~:~~spp=itutas profissionais. Aliás, eles
SUBALTERNIDADE- Concordâncta com os espaços que lhes são com mulheres brancas, mmtas ' l" d e não tem prosseguimento
conferidos. Tendência a uma moral puritana. Reconhecimento de que no r. t"podeligaçãocomercta tza aqu .
pre1erem esse 1 brancas com implicações mats
Brasil há uma democracia racial. Negação de que já foram discriminados . I profundo a terem casos com f. ·t·
mats ongoou ' de desarticular as suas relações amt tarcs
como negros alguma vez. relevantes e duradouras, capazes ' 1d dominador e exemplo moral
AMBIGÜIDADE - Excesso de etiqueta. Verbalização oposta ao mstitucionalizadas e abalar o seu mve e
pensamento. Ironid disfarçada em elogio. Malandragem nas relações com da família. d cl édta diferem dos mais velhos e se
o branco. Já os jovens negros a asse; "vidadesexual Aagressividade
AGRESSMDADE- 1) Agressividade flsica: criminaltdade; compor- realizamatravésdeumad~s~rTas ~~~~são ambígu~s, mas são, pelo
tamento marginc~l; uso de drogas (maconha); 2) Agressividade simbólica: di fere da dos velhos em ot~t anos. te como elemento compensador.
exibicionismo nos trajes (muitas vezes afrmmos). Exibicionismo nas contrário, apre~ntadas bpu tca~:profisstonats que vão encontrar em
atitudes soctats e regras de etiqueta em reuniões. Exibicionismo do seu Procuram relaçoescom rancasn d. snacondutasexualemambientes
poder econômico (externo) principalmente em espaços branros; 3) grupos boêmios e su~stam;nte ra f~~:Ua de liberaltsmo se pratica; 2}
Agressividade sexual: exibição de brancas em lugares públicos como artísticos ou culturaiS on el e~ termos de umlo semipermanente
objeto sexual. Subestimação da mulher negra sexual e socialmente. p ram prolongar essas re açoes em .. ) . ão
roeu 'bl' smassemuniãodefimuva ouamtgaç
Subestimação do homem branco. Comportamento fálico com a mulher (encontrOS permane~tese pu ICO entO r virias razões: resistência da
branca; 4) Agressividade compensada: agressividade simbólica que se que raramente termma em ca)sam ~ posexual dela e seu deslocamento
compensa em freqüentar grupos sociais brancos e neles mostrar tipos de famllia da m~ (se for br~ca satura~~o falta de recursos econômicos
agressividade e atitudes o:óticas; 5) Agressividade econômica: exibição de para outro pats onde vat esqtmzr,
stalt4S de negro rico em vários níveis, inclusive casando-se com mulher satisfatórios. d era ão passada (tomando-se por base
branca. Por outro !ado, os neg~~iaa2~ anços, podemos situá-los na casa dos
ANSIEDADE - Sentimento que se apodera dos negros todas as que uma geraçao tem em m 'to e ainda se preocupam com a
vezes que t~m de transpor espaços sociais desconhecidos. Ele, parado- cmqüenta anos) pre~~pavam-se ;~~ no centro desse grupo, enquanto
xalmente ou poderá transformar-se em agressividade, tudo dependendo ;magem do grupo famthar,, e_com m uetomam na maioria das vezes,
da reação dos grupos que compõem o espaço. Se for de rejeição, o negro osjovensatuais,pelocon~rano,pa[ec: ~família t~lvez porque tenham
ou pode catr na subalteroidade, aceitando o comportamento do outro uma atitude contestatóna em re açao d • "dade paterna e por
agente social, poderá partir para atitudes agressivas ou procurar sofrido na infância a força repressora a auton '

216
217
Esp9Cificidad9 6 Dinamismo dOS Movimentos de sao Paulo
Dial~tlco Radical do Brasil N 9gro
que procuram relacionamento com o negro não o fazem por um
extensão, materna, pois a mull1er negra de classe média preocupa-se muito comportamento natural, mas na procura do a/Jtico e ocasionalmente
em o~ecer as ordens e normas de comportamento dita das pelo marido ('l(Citante, ou por uma posição contestatóna e de agressão famtliar para
e~~talmente no círculo familiar, talvez, taml*m, pelas contradições; desarticulá-la, afirmando que teve relações sexuais com um negro.
tecrucas de subo refinação que c!Cculam nos espaços sociais nos quais têm Como vemos, os grupos negros da classe média de S:io Paulo
contato. encontram-se em um dilema, no nooo entender: ou fazem uma ponte
. Este contraste de comportamento se aguça e conflita à medida que social, política e cultural com a grande massa negra proletarizada e
os JOvens negros, ao t~mpo em que assimilam certos valores da sociedade marginalizada, ou vão reproduzir, na sua ideologia, os valores da pequena
de consumo (capttahsta), superpõem a essa assimilação certas atitudes burguesia. E estes não têm cor.
conte~atónas m~ram_ent~ extenores, procurando com elas, através de uma
agressao St;"'bóltca Vla Vl~S anartJmsla, c_riar áreas de atrito no próprio
grupo famthar. Essa agrtsslVldade stmbólica mtrafamiliarchama taml*m
a aten!Jo sobre a sua ~ssoa nos círculos que ele freqüenta, através da Dois universos negros e sua dinâmica
oa rraçao dos seusconflttos com a famílta, e, muitas vezes, a sua separação divergente em São Paulo
de1a.
. A f~ta de uma ideologia mais abrangente, dinâmicojrad 1cal (revo- 1
1~c~o~1ána) por parte desses jovens leva-<)s a ter uma personalidade
dlVld t?a. De .ur,n lado, procuram exaltar a negrit11de, sem, contudo, Uma reflexão teórica sobre a situação ideológica da classe médta
conceituar ob)ellvamente o que entendem pelo termo. Criam centros e negra na cidade de São Paulo parece-nos que ainda não foi feita dentro
grupos fec~ados os quais têm vida efemera, e, ao mesmo tempo, num de parâmetros dinâmicos e dos elementos de diversificação verificados à
p~ano ~a ts abrat~gente, desenvolvem um relacionamento de auto- medida que, de um lado, a sociedade global fica mais complexa, e, de
a trmaçao na medtda em que se realizam sexualmente com brancas. outro, essa camada se vulnerabiliza às modificações e diferenetações
Franz Fanon retrata, ao nosso ver, de forma magistral a introjeçãodos venficadas nessa dinâmica. De um lado, temos o ascenso de pequenos
~alares brancos na lmia do negro de ter relações com uma branca: grupos negros nos niveis burocráticos, artístico, econômtco, esportivo e
Desposo a cultur~ branca, a beleza branca, a brancura branca. Nesses seios universitário etc, e, de outro, o achatamento econômico, soctal e cultural
d
b~ancos que as mmhas mãos ubiquit.írias acariciam, é a civilização e a da grande massa negra,populaçãodominantenas favclas, na criminalidade,
tgntdade brancas que faço minhas"4 • na marginalidade, no subemprtgo ou no desemprego. Esse processo de
_ Isto quer dizer que a ansiedade por nio ser branco e se compensar diferenciação deverá produzir níveis de comportamento diferentes e
nao _apenas st'~ualmente, mas em todos os nívets da sua personalidade elaborações ideológicas divergentes, consciente ou mconsctentemente.
mu~il.ada, ~r tsso _mesm~, llesS('S JOvens negros da classe média, há uma Esse comportamento diversifica-se em muitas variáveis sociais, psicológi-
especte de ntual de tmctaçao S('XUal: possuir uma branca, umagrmga a qual cas e existenciais tendendo, de qualquer mane1ra, a estabelecer uma
~ p~rttr dai. passa a ser procur~da por outros negros jovens, porque jâ dinâmica ideológica que st' não é uniforme tem, pelo menos alguns pontos
mtct~da no JOSO st'Xualmterétmco, na medtda em que cada um transmite
de referência comuns.
(posstvelme?te de forma exagerada e fantasiosa) seu comportamento No prest'ntecapítulo queremos nos referir ao segmento negro urbano
como parcetra de cama. da cidade de São Paulo até o ano de 1990. Na caracterização dos elementos
Forma-se um tipo de relacionamento deformado e ao mesmo tempo componentes desses estratos médios podemos divtdl-los em: a) universi·
paradox~~mente con~i~ante e alienado porque é composto de elementos tários; b) burocratas; c) elementos dos meios artísticos ou esportivos em
~e ~mbtgmddd~ agressmidade, sub.lltmridade e ansiedade. Isto como conseq ü- geral; e d) segmentos diretamente ligados à área polltica. Com isto
e~cla d~ esse~ JOvens não terem assimilado uma ideologia que supere a desejamos delimitar um universo o qual se configura como um segmento
altenaçao SOCJal, sexual e étnica. Não fazem uma análise mais profunda diferenciado do outro universo negro que podemos chamar de plebeu,
de como eles taml*m estão explorando S('XUalmente as jovens brancas composto de favelados, desempregados, st'mi-empregados, delinqüentes
para poder obter a sua auto-aftrmação nem que seja simbólica. É verdade e mendigos. Esses dois universos do negro urbano paulistano nem st'mpre
que a reciproca também é verdadeira. As jovens brancas, na sua maioria•
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Dialétlcs Rsdlcol do Brosil Negro Especificidade e Dinamismo dos fvlovlmentos de &1o Paulo

se harmonizam. Pelo contrário. A observação indica que o cruzamento negro plebeu. Embora reconhecido como um componer~te do problema
desses dois universos não é obrigatoriamente harmônico. negro teoricamente -o universo pltbeu - não é reconbect~o como força
Isto porque a alocação de um e de outro no espaço social não t soc1al e étnica capaz de solucionar ou tentar resolver o dtlema pela sua
idêntica e muitas vezes se chocam ou se fnccionam. De forma mais posição na estrutura social e racial no Brasil. Ele é visto como um ele.mento
analítica, devemos dizer que o componente ideologizado da classe média mstrumental sobre o qual a camada letrada negra deve atuar, constderan-
negra ktr.uia é composto de profissionais liberais, pequenos empre~rios, do-o elemento de estudo, sem uma vinculação estrutural e espec1almente
universitários, burocratas de diverSds repart1ções (federais, estaduais e dinâmica com o mesmo. A partir daí, ao tempo em que denunc1am <;>u
municipais} políticos profissionais (com mandato ou sem mandato, mas s1mplesmente constat.am a e:xtstênc.ia da ~ressão ideol.ógica, soctal e,raCJal
vinculados ao mundo político), artistas, cantores, atores de Rádio e TV sobre o universo plebeu, dele se drstanctam na práuca étmco-poltuca e
escritores, jornalistas, componentes de conjuntos musicais, funcionári~ estabelecem linhas de barragem informais para que não se ~nfundao
de estúdios, esportistas profiss1onai~ administradores de pequenas em pre- negro reivindicante intelectual da~ méd~a, especialmente umversttáno
sas e outros de igual nível social. O segundo universo,pklxH, é composto ou burocrata, com o negro margmal, 1sto é: favelado, d~socupado,
de operários, favelados, delinqüentes, aprovei tadores de restos de comida assaltante, trombadinha, malandro, estuprador, mendtcante o~
e vestuário, ladrões contra o patrimônio, baixas prostitutas, lumpens, criminalizado. Eles são usados apenas simbolicamente, para dar comeu-
desempregados, horistas de empresas transnacionais, catadores de lixo, do, pelo exemplo da sua existênci~, das barragens so~ndas gera.lme~te pelo
lixeiros, domésticas, faxineiras, margaridas, desempregados (as), alcoóla- negro. Asestatlsticas, os percentua1sde negros pretendos n~sd 1vemfica~as
tras, assaltantes, portadores de neuroses das grandes cidades, malandros profissões, tudo isto é aproveitado para mostrar-se o penemtme.n~o soc1al,
e desinteressados no trabalho. cultural, psicológico e étnico a. que o neg~o -.abstrato- está SUJeitO. Mas,
A partir de agora, trataremos esses dois universos negros como ktrado por outro lado, esses estudt~sos. academ1~os negros afas~am-~ ~as
e plebeu, sendo que no primeiro incluiremos os diversos grupos que camadas plebéias e grupos margma1s, nos qua1s esse preconcetto dráno e
compõem a insignificante classe média negra e no segundo, os grupos que selvagem dá concretude ao dilema negro em São Paulo.
compõem a pobreza e a mistria do segmento negro analfabeto, de pouca Esses dois universos do negro, um letrado e outro plebeu quase sempre
ou sem nenhuma escolaridade, empregados de baixa renda ou biscateiros, não se cruzam na práxis política especialmente de política racial.
além dos desempregados. O negro marginal, quase sempre por ser favelado, de~mpreg.ado ~u
biscateiro, organiza-se mais no nível dos individ~os. de. 1gual s1tuaçao
2 social à dele, muitas vezes, nem sabendo sequer da ex1stenc1a desses.g~pos
de reivindicação étnica da classe méd1a negra, nem da sobrepostçao do
As diferenç.as de expectatwa de vida, comportamento e conduta, preconceito racial ao seu problema soc1al. Na .l~a urbana ~~s Estados do
racionalizações ideológicas conseqüentes, as asp1rações sociocuJturas têm Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerats, 1st0 ~· n~s r~toes Su~es~e e
valores, e por isso obJetivos diferentes e muitas vezes antagômcos nesses Centro do Brasil, onde há um processo de d1vemficaçao economtca,
dois un1versos negros. E essas diferenças de comportamento dos d01s ocupac1onal cultural e étnica mator de que nos outros Estados, as
universos estão permeados pelo umverso brana>. No universo ktr.uio os orgamzaçõe~ e grupos negros estabeleceram estratéglas de a~ão que se.não
valores brancos de educação, ettquet.J, saber, lazer e outros são iocorp<r excluem, pelo menos colocam em nível secundário a realidade soc1al e
rados, total ou parc1almente pelos seus membros; o seguodo,pkbm, rejeit.a cultural do negro do uo1verso plebeu. . .
os valores do universo branm como prática, não conscientemente (visão Esse discurso ideológico negro bipartido se evidenc1a mu1to d~rante
ideológica), mas por impossibilidade de projetá-lo e/ou ating1-lo mesmo as campanhas eleitorais. Os lideres negros, ou melhor, as personalidades
como projeto utópico, porque não tem condições de sequer pensá-lo nem negras que partem em determinado momento ~ara a d1sputa de cargos
condições de elaborá-lo como projeto de vida social e/ou individual. eleitorais, sentem, nesse momento, o grande h1ato. que h.í entre .a sua
A incorporação, ao universo pkbeu do negro, das propostas sobre a atuação como membro da comunidade negra, Situado no un1ver~
questão racial no Brasil, elaboradas por parte daquela camada negra letrado e as necessidades e reivindicações do universo uegro pldx-u. Ha
letrada e economicamente ajustada em nível de classe média, é dificultada um hi;to entre comportamento étnico e discurso eleitoral. . ~
pelas posições que a camada letrada negra assume em relação ao universo Q!,Jeremos dizer, com isto, que nos momentos de compos1çao e
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Dial6tica Radical do Brasil Negro Especificld:Jd8 o D1nam/smo dos Movii'T)(J()tos de Silo Paulo

competição d?toral, como em outros momentos de ajustamento ~ massa negra margtnal também é mat~ipulada pelos ~líticos tra~icionais.
con~havo poHtlco, os grupos negros da classe média se ajustam aos pad~s Muitas vezes ou quase sempre ractstas, esses pohttcos também usam
do ststema e agem da mesma forma que os grupos ou orgamzações dos elementos de mantpulação ideológica em cima da camada de n~gros
brancos no sentido de o~tere~ resulta~~s práticos indtviduais ou grupais marginalizados e desprotegidos, oferecendo-lhes vantagens econômtcas e
se~ levarem em constderaçao as remndtcações sociais e étnicas do empregatícias fora do item ror. Essas promessas seduze.~ a grao~e ma~
untverso plebeu negro. marginalizada negra, que substitui uma postura de retvtndtcaçao étmca
Aliás cabe acrescentar como elemento de esclarecimento metodológico por possíveis vantagens econ6micas individuats.
o que ent~ndemos como sendo ro1mmid.ul~ nrgra na área que deltmitamos A frustração constatada pela camada polmzada negra, após cada
c~mo .umverso de análise. Para nós ela é flutuante, tem conotações que se eleição, na qual negros participam nos diversos escalões ~leitor:Us demons-
dtverstfica~ na função e na dinlmica de acontecimentos e decisões da tra, muito bem, o grau de diferenciação ideol6gtca . extstente em
grande soctedade, os seus grupos de decisão e comportamento governa- conseqü~ncia desses dois universos (ktrado epk~u) ou seJa, do negro da
mental. classe média intelectualizado e a grande massa negra margmaltzada.
, O que, porta.nto~ ~amamos de anmmidatk ntgr.z, conforme já Essa grande distâncta soctal e ideológica entre? universo do ~egro
h aVIamos estabelectdo tntctalmente,divide-se e ao mesmo tempo compõe- da classe média-ideolog12ado por correntes do movtmento da negntude
~de um~ classe .média m inoritária negra a qual estabelece as regras do como Black Powr, Pantaas Negras, Malrom X, Lulhtr Kint, Angt!J Davies
d~scurso tdeol6gtco e de outra que chamamos de pkbéia na qual esse entre outros surgidos no âmbito internacional e o cotidiano da massa
?tscur~ q~ase não tem ressonância, ou se tem é muito dlluído por negra, especialmente paulistana, prectsa ser analisada mais profundamen-
tnterferenoa de fatores mais imediatos e urgentes na práxis do universo te. Evidentemente, alguns grupos ou entidades negras voltam-se p~ra o
da plebe negra. Ess,a d tferenciaçãodc objetivos e de perspectivas empíricas umverso do negro da plebe, mas o fazem objetivando mais uma autude
prende-se a uma sene de fatores que os diferenciam, conforme veremos asststenctal do que de empatia e identidade étnica e SOCléll.
em segutda. As paralelasdessesdois universos muitas vezes someme ~ encontr~
E~ prime!ro lugar, os elementos negros que entram no processo no mfimto. As distâncias sociais, as suas correspondentes dtferenctaçoes
compem~o el~ttoral ad~rem àqueles partidos que por injunções momen- ideológicas, políticas e culturatse as conseqüentesestratégias reivind!cativas
taneas (elett?rats) neceSSitam de negros no seu qucldrodecandidatos a fim ou integrativas, muitas vezes divergentes, fazem com que o movtmento
de con~ue.m votos de n~s para a sua legenda, sem que isto interfira negro urbano paulistano não se solidifi~ue em um gran~e um verso. Pelo
na su~ trcl)etóna progra máttca fundamental. Muitas vezes apenas incluem contrário. Q}lase sempre ele se caractenza pela formaçao de grupos ~ue
genencameme alusões ou mten~ões ~bre o problema do negro, ass1m se fecham inclusivt à interação de outros grupos negros. Mesmo no ruvd
mesmo apenas so~~ o p~on~~tto ractal, referência que satisfaz aqueles dos grupos com o mesmo status social, econômico e cultural há divergên-
negros que têm mthtânoa poltt1ca nesses partidos tradicionais e através cias muito grandes na interpretação do dzkma rdndl.
dessas alusões pode~ se aproximar da massa negra pkbila. Com isto têm Em São Paulo (Capital), onde a diversificação da divisão do trabalho
elementos para mantpular a curto prazo (eleitoral) o potencial dos negros é muito mais complexA do que em outras cidades e regtões do pais esse
que se encontram na periferia e constituem a grande massa marginalizada fato irá se refletir, também, nas posições ideol6gicas de divtrsos estratos
da população não-branca. da comunidade negra. A dinlmica estabelecida e as metas a serem
~oltam-se, então, para aquele univtrso que ficou abandonado por alcançadas, por isto, divergem mais do que convergem. O mator po~to
ess:a ehte.negra. da classe ~édta. Mas, por outro lado, como essa ligação é de convergência, o mc:1is abrangente é, i ?dub~tavelmeme,? preconcetto
e~td~rm~ca e ctrcunstanoal, o. negro periférico, favelado, desempregado,· racial, pois o elemento wré o mais observavel e Julgado negauvamente ~la
cnmmaltzado também é mantpulado pelos políticos tradicionais bran(J)S sociedade branCd. E o racismo surgido desse julgamento atmge e trau matiZa
e, desta forma, conforme os resultados das eleições mais próximas (ou sensibiliza} esses componentes de classe média negra que têm
demonstram, nrgro não vota nn nrgro. consciência étmca.
. Há, em conseqüência, um inconformtsmo ou uma fronteira ideolér Em primeiro lugar, o segmento negro ktrddo procura asce~der e
gtca porque, de um lado, o negro classe média apela para o componente realizar-se na base da ideologia da classe média branCd. É neste um verso
ror nesses momentos e destaca o preconcetto racial, mas, por outro, essa de valores e perspectivas de vida que esse segmento elabora a sua ideologta

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DJa!étJca Radical do Brasil Negro Especificidade e Dinamismo doS Movimentos de SSO Pauto

étnica. Mas, em segundo lugar, é desse segmento letrado que surgem, em nas escadarias do Teatro Municipal, reuniu mais de três mil negT?s e
contrapartida, os ideólogos raciais radicais do movimento e também os membros de entidades democráticas. Para esse ato foram rec~btd~s
seus intelectuais orgânicos, conforme veremos oportunamente. moções de apoio dos Estados de Minas Gerais, Pernambuco, Bahta, ~o
Podemos dizer que há um verdadeiro gradiente ideol6gico que vai de Janeiro, Sergipe,Alagoase dos negros presidiários da Casa de Detençao
da mentalidade conservadora, puritana e conformada de certas famílias de São Paulo. _
e os seus chefes, quase sempre com mais de sessenta anos, e vinculados à Esta reorganização ideológica d~terminou uma reordenaç~o
área burocrática, até os grupos de jovens negros que elaboram uma o rganizacional dinâmica e foi um acontectmentoque reflettu a elaboraç~o
ideologia racial radical revolucionária ou de reformismo social. Nesse de uma consciência critica mais radical do negro me~ropohtano ~e Sao
primeiro universo o negro se organiza através de uma série de vínculos Paulo. Por outro lado, o fato refletiu, pela abrangênoa, da sohd~neda~e
ideológicos com movimentos de outros países, mantém contato direto ou de outras unidades políticasdo território nacional, também uma smcroma
simbólico com eles, assimilam os seus valores e propostas musicais e até com outras áreas desse mesmo nível de reflexão.
mesmo imitam elementos de estética africana ou norte-americana black. Tal sincronia poderá ter-se dado por: a) existênci~ de fatos_stmultâ-
Consomem livros sobre o problema negro internacional, assimilam as neos que determinaramasolidariedade àqueles acontectdos ~m Sao P~ulo,
músicas negras internacionais e recriam-nas nacionalmente. ou b) um nível de consciência racial sincrônico que determmou a atttude
Segundo levantamento feito pelo ISER (Instituto de Estudos da de solidariedade. .
Religião) em São Paulo (Capital), há 90 entidades negras organizadas. No primeiro caso, temos a evidê~1cia, c?mprovada por .dtversas
Ainda seguindo o perfil traçado por esse Instituto " (...) analisando os pesquisas, da existência desse preconcetto ra~tal ~m nível nact~nal. A
nomes das entidades que compõem a relação, percebe-se que dois terços constatação da manifestação de protesto e sol.tdan~dade ao. mo~~ento
das primeiras palavras referem-se prioritariamente à forma de organiza- paulistano de, pelo menos, seis Estados, eV1dencta e regtst~a J~ uma
ção. Os termos mais correntes são, por ordem decrescente: Grupq articulação ideológica do negro em caráter nacional. P~la pnmetra vez
Movimmtq Sociedade e Associação"S. depois da Frente Negra, os negros unem-se e orgamzam·se em um
Prossegue o mesmo texto:" Grupo, o termo mais encontrado na lista, movimento unificado7•
indica uma valorização das relações informais. Em relação a Grnpo, a Essa dinâmica, por outro lado, desenvolvia-se em~utida em um
denominação Sociedade apresenta um sentimento mais tradicional e contexto político ditatorial, autoritário e inibidor. E é prectsamente nesse
institucionalizante. Pode--se também indagar se Sociedade não remete ambiente que h<\ essa articulação dos ?egros, tal~z porq~e o cont~to
igualmente à história do negro, reatualizando, de certa forma, as antigas autoritário (ditadura militar} tenha estunula~o, amda mats, as mamfes-
Sociedades Antiescravagistas da época da Abolição"' . tações racistas de grupos ou pe_ssoas_que. faztam parte do apa:el?o do
Detenhamo-nos, agora, em uma análise semântico-ideológica dessa poder. Não iremos contar aqut a htstóna do M~ mas dehm:tar se
reali?ade: grupo lembra o quilombo, a organização pequena e fechada; possível as suas coordenadas ideológicas e as suas dtversas gradaçoes de
movrmmto remete-nos aos eventos de dinâmica social e racial, como as liderança e abrangência • .
insurreições do século XIX em Salvador; sociedade nos leva a repensar as Por que, durante a ditadura militar articula-se e~ nova. dma~ca
organizações mais abrangentes, como as ligas de alforria e confrarias negra? Haveria, de um lado, uma ligação entre o dtscurso tdeológtco
religiosas; e finalmente, associa)iio poderá memorizar as organizações autoritário e, de outro, resistindo-o, o protesto negro? Havena, por outro
abolicionistas, como os Caifazes. lado uma articulação ou uma aproximação entre as propostas dos grupos
De todas essas unidades organizacionais negras aparecidas ultima- e pa~tidos que se opunham à ditadura e essa articulação dos ?~gros
mente é uma com o nome de movimento, o Movimento Negro Uniftcad~ paulistanos? De um modo geral, pode~os dizer ~~e os espaços ~1a1s do
Co~tra a Discrimina)iio Racial, depois modificado para Movimento Negro negro diminuíram muito durante a dttadura mihtar. ~as, ao diZermos
Unificado (MNV), aquele que apresentou inicialmente a proposta mais isto não queremos generalizar porque h?u,:ve •. concomtta~t~mente, u.m
radical em termos de mudança social, isto é, de dinamização da nossa processo de diferenciação com uma dmamtca d~ mobth~a?e soctal
estrutura, incluindo e enfatizando ou priorizando as modificações perceptível na camada letrada, na base do chamado mzlagrebrastlezro. ~e essa
radicais nas relações raciais e sociais. mobilidade conseguiu elevar alguns negros ou mesmo grupos do umverso
Fundado em 18 de junho de 1978, em São Paulo, num ato público letrado, por outro lado penalizou ainda mais o universo plebett..

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D~a®ca Rad1ca1 do Brasil Negro Especificidade e Omamsmo dos MoVIroontos de Silo Pa111o

O primeiro, num processo de acomodaç-Jo social e política conservou muito grande, mas não permitiu ou amphou.a visão do u~1verso pkbm
os seu.s p~ta~a.res _burocráticos e universitários, enquanto 0 outro pela que pouco foi influenciado por esses acontectmentos polit1cos.
própna dmamtc~ ~~~sta de achatamento salarial, social e cultural do Não queremos negar que houve tentatrvas de membros e/ou grupos
pobre em geral fot atmgtdo de forma violenta, isto é, o nt"gro do universo do universo ktrado cruzar a sua ideologia étmca com o pk/x>uou de grupos
plt~n, aloc~do entre favelados, subempregados edesemprt"gados foi ainda e elementos nlo ktraths. No entanto, segundo as nossas pesqursas elas
maiS penaltzado. nunca chegaram ao seu final com êx1to. . . .
. Esse pr~sso de diferenciação econômica, social e cultural, colocou O que acontecra era a reprodução de uma ideologu ass1stencralista
atnda ~atsdtstantesessesdois universos do negro brasileiro, especialmen- no mundo negro, isto é, não havia uma 1dentidad~ para uma açã~ co~ um
te paultstano. No entanto, paradoxalmente, o Movimento Negro Unificado dos dois universos.. Havia, por outro lado, uma ltderança o rgamzacronal
funda~se e se desenvolve atravé~ de quadros de classe média negra, ou seja, e algumas vezes institucional do universo nt"gro/etr.uloprocuran~o tn)et.ar
d~ ':uuverso ktrado, o menos atmg1do pela política econôm1ca da ditadura a sua ideologia racial, política e cultural no umverso pltlx>~t. Nao haVIa,
mtlnar. como não há, portanto, uma convergência social e rdeológtca, mas, pelo
Como explicar-se sociologicamente este fenômeno? A primeira contrário um movimento de c1ma para baixo de convencimento, de
~~~ta que se deverá responder é: por que o prolato nãosam de btiÍ»:J pura imposiçã~desse universo letrado sobre o outro. Mesmo quando a discussão
ama. • Já que os ~egros. das camadas paupenzadas e marginalizadas eram se venicalizava, quando se deixava de d1scutir cenos problemas qu~
aq~el.es que ma1~ sofnam social e individualmente as barreiras raciais, atingiam e atingem apenas o universo lttradn, como, _!'<'r exemplo_a Ler
soc~ats e cultura1s .contra eles estabelecidas? Isto é: quais teriam sido as Afonso Arinos que considerava simples contravençao a prorb1çao de
razoes que ~etermt~aram u~ processo de tomada de consciênaa étnica negros entrarem em boates, serem recusados em es:abelecimentos de
e org~tzac•??al nao no .umverso mais atingido e prejudtcado com as ensino ou restaurantes, passandcrse para se d1scuttr o problema da
barreuas rac1a1s, ~as o umverso letrado que jj possuía espaçossoc1ais bem barragem do negro no mercado de trabalho, o preconce1to_de alunos e
mats largos nos dt~rsos níveis dessa sociedade competüwa e racista? professores no círculo de primeiro e segundo graus, a re1e•çao de negros
Devemos conSiderar, preliminarmente, até que ponto esse universo até para aqueles empregos menos remunerados, essas discussões são fertas
negro ktr.ulo, fo1 ou não atingido por correntes ideológicas contestadoras ejou patrocinadas pelas instituições do umverso ktrado, c?mo aconteceu
de outros p~tses e o seu ~eflexo na sua conduta. A panir da década de 60 no 12 Encontro de Sindicaltstas Negros de São Paulo, reahzado em 1986~
a classe m&ha Dt"gra paul1stanaassim!lou os movimentos de reiVIndicação organizado e dirigido, inclustve, no seu temário pelo Constlho dt Parll~t
e protest~ venficados nos Estados Unidos. Especialmente os nomes de pa(áo t Dcenvo/vimmto da éomrmiJudt Ntgra do F.st.1do de .ÇJo Paulo, órgao
Luther King. Malcorn X e Mal1amed Al1, Atlgela Davis eram famtliares subordmado ao go~mo pauhsta.
a .essa ~amada negra. Os próprios grupos e entidades nt"gras existentes No sentido mais particular, queremos dizer que os atos realizados
d1fundtam essa efe~scência ~olítica e hnica. Por outro lado, o negro do pelos segmentos do universo pkhtrt foram programados e, de certo mcxlo,
un1verso fk~u agrupava-se maJS em tomo de entidades de cultura popular direcionados pelos membros do umverso !tirado. Houve, ponant~, o.10
como ~s~ec1~mente, as escolas de sambas asquaisproduziam urna cultura uma integração de universos, mas, uma hierarquiZação, na qual o um verso
de assJ~Jlaçao de padrões brancos e sofriam e sofrem um trabalho de ktrado através dos seus membros, impunha ou estabelecra, dettnnmava
coop~açao multo bem organizado pelos diversos órgãos institucionais a ou pa~tava e coordenava os objetivos fina1s, as discussões e as conclusões
~las hgados. Esse negro do universo pkku foi atingido pelo 1mpacto do umverso pkbtu e dos seus membrcs. Esta posturd h1traquizante. talvez
tdeol6g1co que a massa mEdia (em menor proporção) e a rníd1a eletrônica tenha in fluido para que os negros do untverso nJo letr.ulo se refi.~g!a~m
(de forma compa~ta e permanente), além de outros mstrumentos, ou se reordenassem em organiZações, grupos ou segmentos de mvrndtca-
pro~stas e mecarusn;'os atuaram e determmaram a sua posição nada ções populares nos quais o problema ractal e as co~seq~entes posturas de
reflextva so~re a sua srtuação e condição étnica no momento. reivindicação étnica não fossem colocadas em pnme1ro plano. mas de
. No uru~rso ktrado, outro reforço foi a independência dos países saláno, habitação, educação, segurança e transportes, obJetivos que sendo
afncano~ espectalmente aque!es d~ língua ponuguesa como Angola, sociais e econômicos são, por força do peneiramento imposto ao .negro,
Moçambtqu~, Cabo Verde, G~né Btssau. Esse referencial novo, manipu- também raciais, mas para eles, não são assim d1retamt'nte traduzidos.
lado pelo umverso lttr.ulo abnu-lhe um leque de atividades no seu nlvel , Isto, segundo pensamos, cria um processo seletiVO de valores

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U!alettca Radicar do Bras11Negro
Especificidade e Dinamismo qos Movimentos de Sao Paulo
relivindicativos ~ntre os dois universos negros. No letrado há . .
p ano, a necesstdade de se reivindicar a . , ' . 'em pnmeuo prestígio social e polltico, compondo o setor politizado e instruído, com
muitos aspectos, ele já conseguiu patamar~~~.a?e detmlca porqu~, em isto capacitando-se a cargos de stat11s elevado política e economicamente,
segundo, plebeu pelo contrá · . . !ais e c asse méd1a; no o segundo continuará sendo objeto, elemento passivo no processo
econômica, ed,ucacional ;~o,: }~teresse maiOr é a re~uvidica~ão social,
eleitoral e com isto não vê diferença entre votar em um candidato branco
conseguiu se estabelecer; d ' ~ e e segurança pois ele amda não ou em um negro, pois ambos o tratam da mesma forma, isto é, como
se no; ~~~:~~~!~7-fln~~~~X:e~;,~;i~~:;:~a~~~:;;~~~e~e~=:
o nao vota t:m lft:gro.
· ·o·
objeto dos seus desejos de mobilidade social e poHtica. Confor me já
dissemos anteriormente, os universos se cruzam, chocam-se em certos
níveis e por isto não se integram. Por outro lado, o universo plebe11 é,
também, manipulado pelos segmentos, grupos ou partidos branros os
O problema eleitoral e o movimento negro quais se, de um lado, incorporam ao seu programa ou proposta de governo
algumas reivindicações dos negros, no nível da retórica, de outro,
impedem a radicalização dos mesmos não permitindo que assumam
Esse movimento que se estrutu d . posição hcgemônica ou ativa no processo, instrumentando-os no sentido
da formaça~o de 'dad rou urante a ditadura militar através de exercerem um papel meramente complementar e/ ou passivo.
c: eon es negras com várias d . ~ , .
uagmentar, paradoxalmente com b d enommaçoes, uá se
gradua/ a partir do governo ee·
I ; c ama a rt:democrati?A{iio lenta e
~gumas vezes, antagoniza ~~~ est~ porque ela desagre~a, d ivide e,
Isto traz, como conseqüência, uma dinâmica contraditória e algumas
vezes antagônica entre o negrocandidatoeo negro eleitor. Toda uma carga
ideológica do negro plebeu ou marginal é descarregada catarticamente por
tdeolooicamente e passam pe I u grupos negros dlferenciados ele contra o negro branro, isto é candidato a.
o- a compor o corpo so 'ai d 'd
se enfrentam eleitoralmente Cri fi CJ e parti os os quais Neste sentido, os resultados obtidos pela professora Ana Lúcia E. F.
que tem ambições polític~leito~:s UI~~r~gmentaçã? do grupo .letrado Valente, analisando as eleições de 1982, em São Paulo, são elucidativos. A
que no tempo da ditadura m T t p . ats, e, com tsto, o movtmento análise coloca vários níveis d a realidade do negro paulista no processo
nador e mobilizado d • b' I I ar ~avta estabelecido um 6rgão coorde-
r e am tto naoonal (MNU) . eleitoral, mas dá especial atenção aos aspectos ideológicos do movimento
grupos menores e algumas
1 . • passa a art1cular-se em negro, abrindo, assim, espaço para uma discussão do seu comportamento
divergentes. Fragme t vez~s lOstts, com objetivos eleitorais imediatos
n a-se ass1m aquela tentativa d enquanto serpolíLiro. Ela afuma: "a partir do surgimento de grupos negros
nacionalmente com uma propost d , . o neg.ro organizar-se de reivindicação política, novo sentido foi dado à luta contra a discrimi-
seus componentes passam a a e. resgate
. etnico e SOCial· M ut'tos d os
1 nação racial. Na expectativa de romper com propostas assimilacionistas
formaram em seguida, como 0 ~~;~:t;~g~ ~.Ó~eles partidos que se presentes sobre a questão racial, outros mecanismos ideológicos passaram
PCdoB e outras siglas. Muitas delas não a ' ,PSD, PT, PSB, PCB, a ser utilizados como estratégia de mobilização do segmento negro. As
concreta de significado ideol6 .co dou :resentava~. nenhuma proposta discussões em tomo da cultura e o estabelecimento de limites grupais,
ao dilema racial b il . Egi , mal ou pohttco no que concerne
ras elro. sse processo de fra ~ d constituíram-se, então, em peças ideol6gicas fundamenta is nos discursos
universo letrado evidentemente . ' f! . g~en taçao entro do dos militantes negros.
que desejamos analisar em segu'Idra re etJr-se no um verso plebeu, e é isto A princípio com o objetivo de reencontrar e recul?Crar a 1denudade
Dd ta.
acadêmic~~o;:~~:~~isas tanto de 6rgã?s de informação como trabalhos étnica, o Movimento Negro busca um retorno à Africa, através da
valorização de sua cultura e da raça negra, embora não se proponha a
pelas razões apresenta~::~:ento e~eitoral do n~gro na capital paulista,
recuperação da totalidade africana mas apenas ao reconhecimentode uma
negro não vota em nrgro. a, con umam o axtoma empírico de que marca cultural historicamente identificada ao grupo"9•
Uma das razões relevantes nesse d . . É evidente que esse discurso cultural como articulador de uma
comportamento é que processo e d1ferenc1ação de estratégia politicodeitoral tem pouco significado para o universo do
'nesse momento cruzam-se d 'd d
candidatoeonl'groeleitor oprimeiro 'd d . uasunJ a es:onegro negro da plebe. Embora se possa supor, em nível te6rico, uma possível
quase sempre, do unive:so plebeu. E c~:lf~r~eu·~JVe~ letradoe o ~gundo, revivescência, através dele, da consciência étnica do negroplebeu, na prática
te, se o primeiro universo kt-ad, J an Jsarnos antenormen-
eleitoral isto no entanto não se verifica. O problema da identidade romente
' r. o, aparece como o componente de
pode ser uma ferramenta política para aqueles grupos ou segmentos que
228
229
Dialética Radical do Brasil Negro
Especificidade e Dinamismo dos Movimentos de Sl/o Paulo
têm uma mínim ·• -
a consetencta de que está sem ela .
possuem. Isto é, a consciência lhe fi . t. d ou parctalmente a utópicas não atingindo o universo plebeu e que para João Batista Borges
O que não acontece com o negro ~~ ~~\: ou~arcialme~te bloqueada. Pereira se resumiriam em:
memória étnica é quase nenhu ~ p e pa stana CUJO universo de
· · · 'b' mecuJocomportarnentop
SOCiaJs mt tdores cifra-se em at' tud d
·
o r mecanismos a) O advento de uma era para os negros;
sua posição social, pela disputa ldra:át ~ a8Jessividade, de an~ied~de pela b) A esperança de um futuro fraterno;
para ele. !Ca os espaços quase mextstentes c) A inversão na dialética das cores;
Como prova de diversificação d d . . d) A meta da integração.
relação à consciência éttl. esses OIS UllJversos negros em
tca vamos transcreve . ~
grupo de trabalho elaborou . r a expostçao que um
a
trabalho na grande São Pardo J~ra lrsq Ulsa: Os negro~ no mercado de
plebeu: "Do ponto de vistad . . e.e se_ c~md.o característica do universo
A esse conjunto de generalizações e postulados ideológicos, muitos
dos quais foram mais requintadamente elaborados, outros apenas aflorados
em nível de tendências e alguns apenas intuídos pelas organizações ou
se manifestam ora de ma a :'Ivenlcta cotJ Iana, os indivíduos também grupos negros, Borges Pereira coloca como mecanismo regulador dessa
· neua c ara mente rac · t
raciSmo camuflado ou . d 1 ts_a, ora através de um estratégia o problema de raça e de classe que permeia ou dilui as posições
· al' , ' aut a, pe o reconhectment d ·
tgu Itarias. Neste sentido a . d o e Situações ideológicas do negro paulistano. Para ele a ideologia da integração coloca
Desemprego refletem diretament , s entrevtstas. a Pesquisa d e Emprego e
em discussão temas latentes para a comunidade como o preconceito de
dificuldades do pesquisado e essts Situações, t~nto em relação às cor ou de raça e preconceito de classe, que é para ele o grande domínio
quanto em relação ao . fc r que rea tza as entrevistas domiciliares de ambigüidade do negro. Essa ambigüidade representaria um grande
- d m ormame negro que ass . d ,
çao ominame não se 'd ifi ' umm o uma concep- desafio para o projeto político do grupo. Ele escreve, neste sentido: " (...)
' 1 ent tca com a sua t ·
caracterizado pela cor não-branca" 10 e llla, recusando-se ser como os teóricos acadêmicos ao estudarem o negro, os partidos políticos
Evidentemente que esta fu ~ . . e os próprios negros não sabem como lidar com essa ambigüidade. Os
refletirá na manipulação eleit la a etma considerada inferior se partidos políticos tratam o negro ora como parte de uma nebulosa
Ana Lúcia E F v.·-'ente e ora e nos seus resultados. Neste sentido minoria carente de participação social, onde se alinham as mulheres,
• • aJ screve na sua · b '
questionários distribuídos pa 1 pe~quJsa so re o resultado dos homossexuais, índios etc., ora como componente desadjetivado da
' ra cone uu· entre os 415
votaram em candidatos ne ros 166 (4. o negros que não sociedade brasileira, nivelando desta maneira os seus eventuais problemas
conheciam e 79 (19o/c) ~ '. OVo) afirmavam que não os específicos aos problemas nacionais. E a representação do modelo multi-
o que nao tiveram um m r· .
terem votado em neg"o S o rvo especia1para não racial brasileiro passa para os teóricos e práticos da política, que aliás se
• · e somarmos esses nú b 1
negros que votaram em c d'd meros a so utos aos 125 infiltra por todos os planos da cultura nacionaP2•
indivíduos. Seguindo essa ~~~h~ atos negros, temos ~m total de 370 Essa conceituação de uma ambivalência feita por Borges Pereira de
zado do voto ne.u.-o tivesse 'd' se~~ trdabalho de onentação organi- forma teórica é confirmada pela pesquisa de Ana Lúcia E. F. Valente sobre
'1' o·
mi ltantes, potencialmente ne t
SI o erettva o como fo'
I proposto por as eleições de 1982 em São Paulo. Veja na tabela da página seguinte.
votado em candidatos negr~s Ns a amostra 65,5% _d os negros teriam Achamos, pelos números da tabela, que a faixa do universo negro
que eventualmente fosse con~ o ~~tanto, para que I_sso acontecesse ou, letrado vota muito mais nos candidatos negros do que os componentes do
distância entre militantes e r. gu~ o nod fu~uro, se na necessário que a universo plebeu. Isto significa que a negritude ainda não conseguiu elaborar
· . oase.r 10sse ImJnulda 0 q
coiSas, stgnifica que militante5 d ' ue entre outras uma ideologia global capaz de conscientizar a comunidade negra no seu
'd ' · negros evam lidar co · .
con11ec1 os d~ grande massa negra"••. m conceitos mais conjunto. Não precisamos dizer que nessa dinâmica se cruzam as
Isto, porem é problemático na r' . 1' . categorias de raça e classe. Parece-nos que a questão crucial que se reflete
negros do universo letrado re p ~tlca po lttca. Os seg'mentos nas diversas ideologias e subideologias do mundo negro na cidade de São
ideologia e de uma estratégia de /~onsav:~~ pel~ elaboração de uma Paulo ainda não respondem às necessidades da solução desses dois níveis
que condiciona a sua atividade çaod ~mpiC!ca, cnaram um pensamento que ainda marcham paralelos. Acreditamos que somente uma posição
·
d mamizar · em I versos níveis e c m · t
a comunidade n . ~ ts o procuram dialética em relação ao problema poderá unir esses dois níveis da questão
projetando, para isto algu~~ra no ;e~ COllJun:o ~~eologicamente, (raça e classe) e com isto surgir uma posição dinâmico/radical capaz de
' postu a os, tendencias ou posições
unificar os universos - negro letrado e o marginal.
230
231
Especificidade e Dinamismo dos Movimentos de SâO Paulo
Dialética Radical do Brasil Negro

Ao afirmarmos, pois, a existência e coexistência, paralela de dois


,.._
~ <C! universos do negro paulistano, e, ao mesmo tempo, afirmarmos que
(\j (\j

......
oi C\i (\j ~ -
8
~ somente uma posição dialética poderá superar a contradição entre a visão
u:; (") ,.._ ~ <D ..,. e o conceito de raça e de classe em um país poliétnico, cabe um momento
+
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..,.
-.i (\j cô
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ª ~ de reflexão para que o nosso pensamento fique bem esclarecido.
Devemos situá-lo como um esforço de discutir um problema sempre

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u:;
u; C7!
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8 g aflorado, mas nunca aprofundado sobre essa contradição: até que ponto,
numa sociedade de capitalismo dependente e poliétnica como a brasileua
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•G)
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u:) -
u:) ; i§
(\j
.,...:
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C7!
ffi w o problema racial poderá ser enfrentado e resolvido, sem se enfrentar,
concomitantemente, o problema da alocação das classes e grupos sociais,
na estrutura e a correspondência entre essa alocação social e a composição
cr)
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(\j

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u;
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cô 8 ~ racial. Obviamente que essa articulação dinâmica e contraditória, geneti-
camente ligada com o nosso passado escravista, foi determinada ou
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11
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-.i ~ <O

~
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,...;
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8 ~
fortemente condicionada por mecanismos de barragens atuantes os quais,
embora sem aparecerem obrigatoriamente no 1úvel de consciência social
elaborada, faz parte do subjacente psicológico efou ideológico do
a:i o
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o
a:i
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-
8 :i8 brasileiro médio.
O problema rac1al brasileiro, no particular do negro, como todos os
problemas das sociedades divididas em classes, passa pelo problema das
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o
o.ri
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classes sociais e suas respectivas lutas e a ele estão subordinados, total ou
parcialmente, consciente ou inconscientemente. Aavaliação dos níveis de
~ ..,. 8
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subordinação em cada caso e momento específico dependem da análise
]
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C\i
~
,...;
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concreta de cada um. Mas, no caso do negro urbano de São Paulo essa
..... convergência sócio-racial cria divergências ideológicas no nível de elabo-
~
:s -
lt) lt)
u) 8 ~
C\i a:i (\j

..,.
- ração de um pensamento social por parte da camada letrada que o elabora.
Há aelaboração de um pensamento fragmentado, que procura d icotom tza r
o
~
lt) ~
<lO <lO
,...; ..,. 8 u:;
oi C\i
~ cri o social e o racial, o problema de classe e de raça, como se o racismo fosse
,.._ ,.._ epifenomênico, nascido por geração espontânea ou fruto das diferenças
L() o lt)

~
U'i U'i -.i ~ ..;
,.._ ê @' fisicas entre a população. Ao tempo em que essa camada negra
intelectualizada, classe média ou remediada elabora a ideologia da
~ - --- militância negra, procura criar suportes teóricos que desligam o racismo
~
C'! lt)
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u.._ ,.._
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ª Cõ

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da exploração social e econômica, cultural e sexual do negro como se uma
coisa nada tivesse a ver com a outra. Essa separação bem demonstra como
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..,.
~ ~
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ª os dois universos negros têm como base de raciocínio realidades bem
diferentes, daí, certamente, ou com certeza, o parelelismo de pensamento
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-~ a; . - !5
C:.
. 8.~~r
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U'i
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ª ~ e ação em relação ao problema, no qual se inclui o racismo social do


brasileiro. O primeiro universo em termos idealistas ou utópicos, isto é,
de que o racismo é fruto de um sentimento inato do branco contra o negro

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(e neste caso o problema seria insolúvel) ou por elementos culturais e
estéticos. O segundo universo negro sente, e por isto interpreta de forma
realista, o problema, sentindo que esse preconceito racial lesa~ no dta-a-
G) G>
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dia, na disputa de cargos, empregos, salários, espaços sociais que lhes são

233
232
Dialética Radical do Brasil Negro
Especificidade e Dlnatmsmo dos Movimentos de Sao Paulo
negados e, por isto, ele não é gratuito m [;
a;
seletivo que visa barrá-lo preteri lo d! .as. tarte de um mecanismo valorização cultural dos costumes e do comportamento do negro via
de ~ompetição da sociedade ca;ita~is;:~:~a- o n~rocesso inexorá~el padrões africanos. Nesse desdobramento, durante as últimas décadas,
SOCial do racismo na sociedad d .e~t cameme a funçao desenvolveu-se uma dinâmica que procurava, e procura, levar ao negro
especialmente em São Paulo onde e ~~pe~çao selvagem do Brasil, elementos de autovalorização étnica e social. Surgiram grupos que
desenvolveu-se completame~te. e o m e o e capitalismo dependente reelaboraram certos padrões culturais africanos, especialmente a sua
E é esta contradição que im ss bT . indumentária.
uma esteira ideológica na qual a po ' t t.ta, ?u dtficulta, o encontro de É uma revalorizaçãocultural simb6lica,com a qual essa camada negra
realidade- o social e o racial- po:~:~~en~ta entre, esses dois níveis de letrada ou que dela sofre influência se reecontra com as suas raízes étnicas
essas duas problemáticas e se guu uma smtese capaz de unir ou se autovaloriza socialmente. Os produtores dessa subideologia procu-
que os unifique. possa apresentar uma proposta de solução
ram se articular e dinamizar através de entidades, grupos ou instituições
O problema do negro faz art . d nos quais projetam com atos isolados ou atividades grupaisesse anseio de
não se desliga pelas suas partp lae•. dpodts, o problema nacional e dele reencontro e autovalorização. Editam publicações, folhetos, montam
·cu1 JCU n a es mas, pelo , ·
partt aridades e especificidades devem '. contrano, essas livrarias, fazem festivais da juventude e divulgam padrões de estética
transformação política, social e cultural ~r lllco~porada.s a? pl'OCesso de africana. Chegam a montar estabelecimentos de beleza afro, casas de moda
problema do negro brasileiro não , a naçao brasiletra. Porque o ou culinária africana ou outros estabelecimentos do gênero. Ao mesmo
ele, como pretendem alguns se e ape~as o do ra~ismo existente contra tempo, reivindicam a existência de uma literatura negra (não obrigatori-
problema que passa pela sua ::u;osã a co~utlldad: n~gra, mas é um amente afro-brasileira) que se desenvolve paralelamente à literatura
psicol6gica ao seio da nação e à su ~ aç o ~tal, economtca, cultural e convencional branca.
esquecimento deste elemento atoma· esm~rgmalização como cidadão. O O grupo Qlilomboje foi fundado no ano de 1980, com diversas
·- b tza muttosgrupos neg~os - •
uns vtsao a rangente do probl p • que nao tem atividades desenvolvidas no meio intelectual negro de São Paulo, entre as
centenário da Abolicão muit:s~~b~f exe;plo, dura~ te a passagem do quais a edição anual da série Cadernos Negros (poemas e contos de forma
protesto radical sobre o seu sign "fi d lOS oram publicados, alguns de alternada); rodas de poemas diversas (uma forma de declamação espon-
foi feito pelas entidades negras; tca ~dnodentanto nenh~m movimento tânea contraponteada com músicas feitas, cantadas e tocadas pelos
brasileira- étnica social e eco o .sentt o e se democratiZar a sociedade
membros do grupo com a participação dos presentes) desde 1981.
da fragmentação da orandenomtc~mdendte fu-através da exigência poliLica
. _ o- propne a e nd·' · . . Seu líder é incontestavelmente, até agora Cu ti (Luiz Silva), nascido
milhoesde negros hoje marginalizados em tan~, .o que mtegrana em Ourinhosem 31 de outubro de 195l,cidade situada ao sul do Estado
da propriedadefut1d., . n6 face da alttsstma concentraça-o
de São Paulo. Residiu vinte anos na cidade marítima de Santos e mora
ta na entre s Istoporq .
socialmente é u;, ~:...· . ueseetntcamemeeleénegro
w-p1a, sem terra rende· 1 •d • atualmente (1990) em São Paulo (Capital). Licenciou-se em Letras pela
em outras palavras faz parte da , tssa
t~, ?na o agricola, agregado, Universidade de São Paulo, no ano de 1980. É funcionário público e
estrutura al'Caica da nossa soe· dmadassa su a temJZada e discriminada pela
. te e no setor ag á · · 1· professor e foi o fundador da série Cadernos Nrgros do grupo. T rabJ!hou
propnetários nos remontam . r no, CUJas mhagens de no jornal jom~gro (extinto), 6rgão da também extinta Fdn-ação das
escravosu. • em muttos casos, até aos senhores de
EntidadesA.fro-braslkiras de São Paulo. Foi membro de várias FECO NESUs
(Festival Comunitário Zumbi, encontros de negros que se realJZam
anualmente em cidades do Interior do Estado, desde 1978). Tem
A beleza negra e a auto-afirmação cuJturaJ publicado os seguintes livros: Poemas de Ctrapinha, HalrUJIIt de /ocalil e
Suspensão. Todos foram publicados pelo pr6prio autor, sem chancela
editorial 14 •
Aindanoníveldeumaideolo iad . d . Por outro lado, as FECONESUs eram festivais de confraternizaçdo,
temos a presença de uma cultura j a negrt•tu· e da crdade.de São Paulo, feitos pelos jovens negros todos os anos, sob a direção dos paulistanos, em
que destaca, através de uma dicção t;la~~ media negra (uruverso letrado) cidades do interior do Estado escolhidas previamente. Destinavam-se a
aos valores culturais tifro.r remet~ e~•ma e, ao mesmo te~po, engajada incentivar o sentimento comunitário do negro, a troca de experiências
' n o-nos a uma estética e a uma
culturais e artísticas e também a criar condições de interação de lazer e
234
235
DlaltJtica Radical do Bras// Negro
ésp9Cificldade e DinamiSmo dos Movimentos de Sao Paulo

col6quio entre os elementos dos dois sexos Neste . .


relaxar as relaçõesemreosdiversos r . sentido, sem rem par<~ Akua'ba, na rua do Seminário a qual explica o significado do seu nome
anterior à realização anual desses e! urs ~;se exaltavam a expectativa em um prospecto de promoção afirmando que Akua'ba é "um termo
se realizam anualmeme no mês de n~ os. e ~ 97~, ~ue esses encontros utilizado na Costa do Marfim para dar as boas-vindas,AkJta'ha, seja bem-
morte de Zumbi. Por outro lad ve;b~o, c~tnctdmdo com a data d<J vindo(a}.
desses encomros, muitas vezes~;
atritos e discussões, sem h
::;;:.n
o rlmen~os de participantes
"t'11fdS a I se mamfestavam, havendo
Na tribo Aschantt de Gana nome dato à boneca que as mulheres
grávidas usavam na barra da saia para garantirem filhos perfeitos, sendo
e o papel catánico e 00 J~aete~~~~~~~:~I~t~~inuir a importância que a boneca com a cabeça redonda representa a mulher e a boneca com
, . L ~tr;>,s ~rul'?s ou entidades como o Gmpu J~ Trab.z/hnr n .c .
a cabeça quadrada o homem. Na mesma tribo nome dado à boneca que
.
LJOUutS e vmwml4rl0! N (GETE "" rrq_,wumau as meninas brincavam para ter ftlbos bonitos."
lham na base de um hbe~:m 0
PLUN) e Aristoa.ztu Grtk trabr Depois dessa identificação com a estética africana e o seu simbolismo
destacar o negro nos quadros soc~a~eg~ eht~st<J que te~ c~n;to obJeti\'0 mágico, os propnetários passam a apor a fmalidade do estabelecimento,
do-o a apoderar-se da cultura do b s, cu t~r:us e p~fisstonrus mcentivan- afirmando que ele tem "como proposta resgatar a cultura afro no que diZ
através dela cultural e P'"Ofi ranclo (nao do afncano), capacitando-se, respeito à vestimenta, fator importante de integração e resistência a uma
demonstrar •que o negro não • sstona mente para dlr ·"'- . masstficação calcada em um estereótipo ou seja: a cultura dominante
é a uel I o etnnrv, ou seJa,
entrada suja na saída. Tem vida ~ia!~ e e~e~o que qu~ndo não suja na branca impõe seus padrões, visando uma homogeinização visual, onde
rigorosa nos seus quadros SOCiais O G1umta a, com batleseuma seleção todos os fatores devem convergtr para o conceito do belo".
que lembram rituais iniciáticos p~ra aq ~PLUN chega a elaborar festas Tendo em VIsta que "cabelos, maquilagem, vestimenta e outros
universitário a fim de q I ue es negros que terminam o curso aspectos se limitam a esta visão descaracterizando a cultura afro", os seus
ue e esse compromet
exemplos a serem imitados É . am a se portarem como proprietários expõem a sua proposta que não é apenas estética, pois aqui
através da qual os padrões d~ a..::!: aãtd~olog~a bastante ocidentalizada o visual se incorpora a uma valonzação dos padrões culturais africanos,
presença racial. ç o o êxito se sobreponhem ao da mas também ideológica. Transformando esse visual restaurado e simbo-
O Aristocrata CM~ a tu · á d lizado em um padrão de resistência cultural, conclui que "Akua'Bapropõe
filosofia em reJa -o ao a maiS na rea o lazer, mas com a mesma inovar o vesttr, que o negro respeite o seu sentimento de colorir, soltar as
divulgando eex:utanloa~;~;sac~:mpo~tam~nto do negro classe média, formas, legado nosso deixado por culturas milenares, que constituem a
construindo um clube d requmtes emdument.íriaeetiqueta, nossa história.
nenhum movimento rei~~~:~!a~: ~::~a~~: não se ligando a Qle as formas se soltem, entorces contornem, puxem amarrando o
Esseclube,comoopr6prionomedtZ fo"1 d corpo negro a sua essência."
um.a e midade cultural d 1 d· ' PCOJet.;~ o e functona como A reconstruçãodoVIsualafncano,ou sua tentalivaconseguida parcial
. e e azer a pequena camada d · ou stmbohcamente, é, portanto, essa proposta ideológica, a qual através
SOCJa) e tdeo1ogicamente no nível d • e_negros Situados
ram e não têm interesse maior em e pat~malides eclonomJcos que alcança- da moda, proJeta o anseto de um rrotv..tl no bojl dos padrões de adtur..u
negro pobre. p<!rttclpar as uus ractats e sociais do mifntartsque senam a base da estrutura sentimental e existencial do n('gro
brastletro. Como estamos desenvolvendo a análise do prosp<!(to, há toda
urna proposta tdeol6g1ca da função do atelier cujo texto de prop.tg.mda
estamos expondo e analisando. Ele desnuda um anseio de restauração da
Valorização da estética africana indumentária apOiada em um ttlm particular do africano c.tpaz de fazer
com que o negro brasileiro ou o afro-brasileiro reccontre as suas raizes
Valorizandoospadrõe d é milenares e nela se incorpore parcialmente na segurança de que somente
mulher negra há um s. e est tica negros, espectalmente a beleza da assim consegUirá preservar-se como sn-, e, por extensão, pessoa, grupo,
. • moVJ.mento no sent"d d 1
afncanas, detalhara moda ac. d I o e exa tar-se as formas etnia ou classe.
mcana e pro uzir mod 11 O que achamos significativo, aqui, é como os organizadores de um
base nela, aqui no BraSJ"l AJLm d . . d a se me lante, ou com
· ~; os tnstltutos e belez fi b ·1 · estabelecimento comercial, do ramo da moda, projetam uma ideologia
trabalham com penteados fi I , a a ro- rast etrosque
a ros, lcl casas de moda típicas, uma delas a implícita na sua produção, recorrendo-se, para tsto, a mitos e símbolos
236
237
Mo\lim8iltOSd95aoPaulo
EspecitiCICiads • D111:Jml$fTIO dos
Oialétíca RadtC3J do Brasil Nego
. d t que é para a beleza negra, o seu
africanos, para divulgar a sua proposta comercial, desejando reiocorporar Nota-se, a~ que o m,al.or e;:one africano, a entrevista de um
o negro brasileiro ao seu passado africano, redaborando símbolos e charme através de md;'mehn.tan6~ de mitificado de Zumbi; a exaltação da
pad~s os quais o negro brasileiro 1á não unha maJS condições de
famoso o Iato 1St nco d . . bre
ator negro . , ad d fu bol também famoso e ots arugos so
mem6m capazes de rearticulá-los. oegritude de um )og or e te
Evidentemente, segundo o nosso raciodmo, na produção desse mitologta iurubana. . u1 ção de uma 1deologia da
'"'-• destacar que essa mamp a
atdier,está embutida toda uma proposta de renascimento ~gro-africano, 'C'eremos . se ndo .á falamos, não tem l'sgaçao -
excluindo-se, de foram sistemática, a aculturação com o modo de vestir negritude da ela~ méta ';;~an~u ~stenclat com aquela elaborada no
do branco que representa uma forma de dominação cultural e corporal. estrutural ou orgamca, 1Str nca 1 João B.ltista Borges Peresra a
É um rompimento com a cultura ambivalente (aculturada) de certos nívd do universo plebeu, Iato que evoue se mostrou indiferente ou
grupos e segmentos negros, de aceitação por alguns da cultura ocidental escrever: " o negro como grupo cu1 sempr · tifitcad a. A
ou a cultura a ele 1deo
e a afirm~oatravésda indumentária, do vtsualdas suasculturasafricanas ambivalente em relação à sua . dt~ra, . edida que 0 meio negro foi
. alê . olugardam nerençaam 6ci
na sua ex~stência milenar, reconduzida para o agora do negro paulistano. ambtv ncsa ocupa . . . lizaçâo de dupla camadas ~
A leitura do volante de propaganda da c.w AKUA'BA decodificada nos se estrattficandode modo a permstn avtsua
mostra que um setor do negro paultstano está reivindicando uma forma econômica. . . 1 - formando a imensa massa
de impor-se através da revitalização desses padrões estét1cos sim b6licosque Num pólo está a maJona da h~::~os brasileiros, independeo-
a indumentária representa no seu universo existencial. negra e se al1nhando, como os. ma assa não há lugar para
Neste particular, a revista Éhano, que circulou em 1980/81 é temente das suas oriculgens étmcas. Para :::: ~igra. ~as de igual teor. O
- com a tura negra e ou • . lh L
significativa e prolonga, ou melhor, antecipa a proposta da AKUA'BA, preocupaçao ai lhe dá sentsdo a existeoc1a e or:::
embora através de uma forma ambígua, sem a posição de definição universo cultural oo qu se move e almeote com o próprio fluxo de
. se confunde natur •
antiaculturativa da primeira, mas, pelo contrário, avançando em direção smportante porque . , ai d d cultural sem se preocupar em
a uma posição de integração de padrões culturais afncanos e OCidentais sua vida. Essa ma~ vtve a sua Ire I a ensam deia. É algo inerente à sua
na base de uma identificação com os niveis econômicos da comunidade classificá-la, sem se mteressar pe o que pe
negra krrada e os padrões da classe méd1a branca. pr6pria condição humana. d d senhar uma pirâmide ainda sem
No seu primeiro número- dezembro de 1980 -a revista reflete uma No ou tro po'lo• começao, o a e <#'OffielltO que se destacou, em
· d esta o pequeno -o . ·
filosofia étmca de resgate à beleza da mulher negra, da família negra, dos cume pronunoa o, ú1 . l .. dessa mesma massa e que constttul,
valoresculturaisdo negro brasileiro e da simbolog1a religsosa africana. Há, diferentesépocaseporm up asvtas, b losa.Éumgruporeconbecido
.
bo1e,umac asse
1 média ··-o nP<>ra um tanto ne u
d :•• n""" e de onde saem os
na revista, um leque sdeol6gico muito divers1ficado na base do que foi hece - como espécse e t 1uc ·o· . A
dito. A capa valori.z.l afomília negra brassletra da classe médsa, vestida com - e que se recon . d iências políticas do nt'gro. sua
tra,es afros, num ambiente sofisticado. Ela, ele e o filho. Ela de cabelos ideol6gos e ~s a~reg1mentadores e ~on~a sua marca e a jogou num cipoal
alisados e roupa longa, ele com bata e calça socsal comum. O filho (de ascensão socsal urou·a dc~mdsferenç pecl . l se cruzam dentro de
d . - de raça cultura e asse socta "d d
presumsvelmente três a quatro anos) est.i também com uma bata de con~a ~~ on • •. _ lhe dá consciência aguda da oecesst a e
"africana". Na legenda interna para a capa a redação informa tratar-se de limites mdefirudos. Tal pos1çao 'd 'd d de grupo diferenciado, que se
recuperar sua 1 ents a e . .
"familia afro-brasileira: Eliane, Thiago e Junior, vestidos pela Boutique de reencontrar ou d od· hora naturalmente,constJtm-se
Olow Afnk. Penteados de Sidney e Zuleika" 1 ~. perdeu h1storica~en~e e se per e, a t a - ' reconstruçjo d.a identida-
em elemento privslegsado para a construçao ou
Esse primeiro número projeta o pamel da revista e por ISto mesmo 1
deve ser analisado como o resultado da síntese de um pensamento de grupa1" ' . . - e as entidades de reelaboraç.ao
- d as
elaborado pela classe média negra pauhstana. O seu sumário é uma si ntese Este proJeto de reconsuuçao '}.u vimos com os exemplos que
desse pensamento. Além da reponagemda capa com o título de "Cllarme, culturas africanas constrOem~ co~~~monstra como essa classe m~<ha
demoseconunuaremos~an;h~~res simbólicos de sustentação para se
beleza e ekglocia negra" destaca, incluindo como chamada de capa: "A
consciênoa negra de Milton Gonçalves"; "O herói Zumbs"; "O ídolo negra pauhstana neceSSita e . ~ do resto da sociedade branca no \
corinriano Wladimir"; ''Yemanjá: não é a raJnha do mar" e "OSCHOSI:
é femea".
recompor e compor-se com a mteraçao
nível de identificar-se com as culturas anc:estralS, m
. wtas vezes mltificadas
I
239
238
DialétiCa Rad1cal dO Brasi Negro

maior número possível da população negra de nosso Pais. sem nos


de uma postura de contestação aos vat' mas~omoeledmento mantenedor
(por desconhecimento da sua realidade) preocuparmos com os 500 müitantes que há anos vêm discutindo a
No mesmo número da . É ores . rancos ommames. questão negra, com métcxios e fórmulas viciados que acabam não levc~ndo
da beleza da mulher negra e d:;~t:~~n~, amda no n.í~l de valonzação a nada. Essa é a nossa razão de existtr" 17• As palavras sJo de Márcio
de confrontar-se com a cult b çaode uma estetlca de moda capaz Damásto um dos propnet.ínos da livrari.t Eboh que abriu recentemente
ustrad.tscom mod-'os ura branca' nesse
I setor, encontramos páoinas as suas portas- novembro, e é a primeira livraria especíaliuda em temas
il• CJ negrasso ouru oge ld "F t· o- de autort"s negros. Já contando com quase 1.000 titulas nasáreasde: poesia,
e 'Elegância,charme e beleza" Nesse bl . ra e: e mas, doces e belas"
fotos de modelos negrasexibi~do tra es ~o l~trado a revista mostra onze romance, tnfanto-juveml, política, educação, sociologi.t, antropologia,
negras e mulatas sendo l . m aocldental,mostradospor rehgião, arte, humor, esportes, quadrinhos, culinána, música, teatro,
· • que apenas tres cubem bel d . cinema, jamais, revtstas etc." Visando a divulgar a literatura negra
ancanoeasoutrascabeloal'
fi d d . ca ostrança osupo
penteado blackpurtJtr. JSa o e e cone OCidental Nenhuma com o brastletra, e, em geral, a atividade artística e intelectual do negro brastleiro,
bem como incentivar t apoiar autores independentes a Ebob promoveu,
É. como
procura se vê,....uma
uma valo..: çao- dposiçlo amb'lgua, pots ao tempo em que se desde que foi fundada, diversos lançamentos de livros que se inserem no
. .~. d
'....... 0 negro como pad - •· seu campo de atuação (temas e autores neutros). Cada lançamento
repticíameme mostrar-se o bel rao estettco, busca_-se sub-
- . . o atravc-S o neo-ro compreende a cessão do espaço fisico, a divulgação do evento através da
pa rao estettco grece>-romano Ex cr que se aproXIma do
um comercial, por sinal da Bo~tiq~~.?~::~é ~.contracapa da. revista,
d 1 imprensa, a produção e dtstribuição de convites, a comercialização da
po~mdo agênctas em New York, Londf nk • qu~ se anuncia como obra, ou seja, toda a sua prcxiução culrurakomercial.
na Afnca) e esump.t uma r nd mod I es, Roma, Panse Rto (nenhuma Um jomal de bairro, nOticiando a existência d.tlivraria e divulgando
alisados, de calças comprid~ e ~lusa~: mulata octdentalizada, cabelos a sua filosof1a editorial escreve: "Segundo seus proprietários, o advogado
na qual se lê: ''Jeans Ebano" Ess d lidn~a. com uma frase sobre a foto Mário Souza Lopes. o quím1co lsidoro Teles e o soctólogo Márcio
mostra como a classe méd'. a ua ~ e ou ambtvalência de valores Damásio, militantes do movimento negro, desde 70, a flloh é um projeto
culrurais, ao tempo em quta negra pdaultstana, através dos seus agentes independente que surgiu da reflexão sobre c1 cultura negra do Brasil. É
- b e procura estacar o ni"O"ro
pad roes rancos para autovalorizar-se.
·
-o ' aproxtma-se dos
necessário que se promova uma reciclagem na reflexão sobre a experi~ncia
btstórica., social e cultural do negro. Isso deverá envolver todos os
11
segmentos raciais e sociais do Brastl" •
A declaração é de um dos seus sócios e gerente geral. Como se podt"
Livraria matriz de consciência étnica concluir, há uma filosofia integrativa subj.tcente na proposta dos funda·
dores da livraria, e, segundo um dos seus diretores, há necessidade de se
envolver tcxiosos segmentos ractats e soctais do Brasil na mesma proposta,
Como uma ínictattva cultural
podemos destacar a coação de
.
mlats conscleme da tdenttdade negra esperando com isto, que visualizassem a solução do problema do n~ro
'fi . uma tvr.ma em São p u1 no Brasil de uma forma globatizante, através do envolvimento de todos
os segmentos raci.tis e sociais do Brasil inte~ssados em resolver .1
espect tcodehteraturasobreonegro N , ld a o com estoque
raízes étmce>-culturais um . es.semve e ~compoSlÇJodassuas
paulistana montou esse ts~~ que se des~cou da classe média problemáttca SOClal-racialdo País. É, portanto, uma proposta de reciclagem
comercialização de livros e ectmdento dedtcado à divulgação e ideológica sobre as auvidades dos movimentos ne~ros, vistos de forma
. . reVJstas e assumo fi crítica pelos elaboradores da proposta ideol6gica da livrari.t. Evidente-
rasJ
b 1 etros. Idealizada a partir de 1986 (d s a ncanos e/ou afre>-
MNU) a EBOII Edllart•,. Ln . ' . J ez anos depots da fundação do mente que .tté o momento os seus autores não consegt1iram romper as
cor tras da comercialização de livro~ h,
n ' .. ' m1n.l ua.l. vem de I d fronteiras dos dois universos negros: o ktr.Uo e o pkbru. Mesmo porque
senvo ven o esse projeto.
fundadores, uma proposta de I . - ad, segundo exphcam os seus a sua pr6pria ferramenta de trabalho, o livro, é o menos indicado para esse
Ex d va ortzaçao a cultura negra movimento de integração, de um lado, pelo seu alto custo, e, de outro, pelo
°
pon esse programa no Acorda N. b
grupos negros da Grandes-ao Pa 1 d-' q{TO olettm tnformativo dos
· enorme lndice de analfabetismo entre os negros do universo púh-11.
· u o cuaram· " ,
mats que manter uma livraria e edt:or Est ~ nossa proposta e mUlto
No entanto, a ideologia do grupo que orgamzou o estabelecimento
chamado Pro~to Eboh que prete d d a. ac apenas urna das faces do comerCial com uma proposta ideológica embutida, isto é, uma congrega-
n e, e uma IOrma aparudlria, atmgir o
241
240
Especificidade e Dinamsmo dOS MovJmenlos de soo Paulo
Dla16tico Radical do Brasil Negro
. . l ia étnica dos fundadores da livraria
ção étnica e social, continua na esteira de uma camada de negros que não Como se pode conclut;, .a ~~eo og rava a herança de luta étnica que
fazem aquela ponte capaz de um r os dois universos. A própria posiçao de não descartava, pelo conuano u:corpo ando essa herança l sua proposta
profiss1onais liberais faz com que eles tenham uma visão total ou antecedeu de muito à sua fuoddao, ~~ .cidade dessas lutas através de
parcialmente institucionaliuda do problema. É uma proposta ainda em de modernização, reconheceo o a ~~ nsamento que UdO desrja ou
cursoedinamização no ano de 1990e os seus resultadosainda tmprcvisí~s. líderes ne~rosdo passado. É po~~~eroo~ o tradicional nesse processo
Como vemos, o projeto EB0/1 anicuJa-sc com a camada da classe não propoe uma fratura enue "Ancia étnica e da identidade do negro
médta paulistana c procura fazer a difusão da identidade étnica afr<> permanente de tomada ~e ~on_sete . da as afinidades ideológicas ou
brasileira através de livros e outras publicações, mas, por cxtensao, à paulistano. Há q~e paruc anzada~;ia e os velhos lideres _todos eles
própria produção ed1torial. Mas, ao mesmo tempo, esse espaço cultural afetivas entre os hderes_do g~po bém intelectual. Isto talvez strva de elo
negro de auto-afirmação êtoica, de estrutura comercial, é, também, um hgados a um nível de auvtda e ta~. . acumulada e não desprezada,
pólo aglutinador 110 nívtl ideol6gico dessa proposta de interessar o negro, de continuidade de uma expe~net~ de um.& ideologia moderna do
através do hvro fundamentalmente, ou de reuniões comunitárias do substituída ou esquecida ~a r;el~ ~i~oseria pelo visto, uma atitude de
mesmo tipo de estabelecer v[nculos de solidariedade étnica e cultural. negro meuopohtano de Sao a o~ o do as~do dindmtco através do
Desvincula-se, desta forma, dos grupos e organizações negras tradi- saudosismo, mas uma recuf~aça coo~rgeotes l postura da edttora,
Cionaisedo seu discurso já repetitivo através de uma proposta modunu.anl~ remanescente de form~syara e as ~~munidade negra do sru tempo em
para a solução do problema. isto é, o jornaltsmo nuhtante da ropostcl em elaboração nessr
Segundo pensamos, desvincula-se dos grupos e organizações negras destaque. Isto nos le~a a ~onsiderar que ~o das lutas dos negros em São
tradicionais em São Paulo por uma proposta modemiz.adora para a solução grupo livreiro-editonal oao descart~-o ~~s o processo de conscientização
do problema que se acumula a cada momento, especialmente depois que Paulo,espec1. ai men te do segmento
. . ~~<lruuo,
. enaomesmotemporeaval"I ad ora
o negro começou a receber o impacto de informações de todos os niveis deumapropostaculturahot:_gractoms~, , sc"êncicl da geração que o
da dtnâmtca de reelaboraçao de uma con I
e de todo o mundo através da midia eletrônica e outros canais de
informação. Por isto, em artigo publicado no jornal Shopping News,Jorge precedeu. . . ra assa por toda a hist6ria, que. as
Foste r, depois de analisar a modernização da produção de artistas negros, A mem6na dessa tmprensa 11eg .P .b.lidade e respeito, pots a
. . uardam com multa senst t .
escreve: "No mesmo bairro do Bexiga, onde se localizava no passado o gera~ões mats loven~g odes diferenças existentes uessrs jomats.como
quilombo da Saracura e onde Elza Soares rompeu em público as barreitas constderam, apesa~ as gra aliz d res um momento substantivo no
que separavam seu trabalho de modem1dade, está nascendo um novo afirmação ideol6gtca dos seus re li a ; ,' talvez a mcorporação, Jtravés
projeto, capaz de representar para a literatura negra uma outra espécie de transcurso das lutas do negro padu sta: . ai, .deoÍ6gico do passado pelos
em desse lega o praoco e t . /"BOI I
hbertação. Trata-se da criação da livraria e ed1tora EB0/1 inteiramente de uma homenag •, . d d" rso ideol6gico da livrana : . ·
dedicada a tema de autores negros. Seus 1dealizadores querem, com isto, fundadores e respon~vet~ o ~seu al'ticae vertical do pontodeVtstJ do
Numa visão soctol6glca mats ao t ,·deolnoia do grupo (ou
"colocar 110 mesmo algu1du a plurirxplos1va produção reflouvado negro, podemos ver que rssa ~cr • )
no Brasil e no Mundo"". significado dessa postura, ambém os freqürntadores da livrana atua
Esta 1deologia de modtrnu,Jlfllo não impede, porém, que os seus srgmento se conslderarmosÉt l bo - do pensamento do negro
. d·c. ntes uma ree a r.&o
propnetános organizem reuniões na sua srde em homenagem à vrlha em dois oÍ ve1s uere · tempo em qur atua nesse
, cultural mas, ao mesm 0 cl d
t,t~arda m ti itante, respons.iveis pela ed ic;ão da imprmsa 11eua em São Paulo. paulistano no mve1 , , donando aquilo que se poderia la mar e
Foram homenageados nessas reuniões: José Correia Leite (Garim da nivel, tenta modermz.a-1?, aban aspecto religioso,. atuando, pelo
rtVifla[ afncano, espectalm~nte ~o d a da sua modrnuzação. Mas, por
Ah10rtlda, Clubt Ntgro dt' Ot!tura Social ejornalAlvorada}, Raul Joviano do
Amaral (Frente Negra Bro~sr~iru. Voz da Rafd, jornal Alvorada), Henrique contrário, como uma forç~ dm_amlZ_a o~clut mas incorpora, as velhas
Antunes Cunha (Clarim da Alvorada, hsoriação C'ultural do Negro), Eunice outro lado, essa mod~r.mza~aod~aoassado ~ue atuaram, na sua époc:a,
Cunha (Oanm da Ah1orad..t e C'lubt Negro de Cultura Soda~, Francisco hderanças negras, a mtl~n~a m~ernizante no seu trmpo, ou se)a,
Lucrécio (Frente Negra /3msikira), Euclides Silvério dos Santos (Progresso), também como um. cat sa ore de São Paulo. De fato, se analisarmos
Aristides Barbosa (Novo 1/orit.tmteeAssociarão Cultural do Negro), Oswaldo através da chamada tmprensa n gra les também pregavam à sua
o conteúdo desses jornais, veremos que e
de Camargo (Nfger t jomal da Tarde).
243
242
Uia/(jffca Radical do Brasil Negro

Específlcídade e Dinamismo dos Movímentos de sao Pauto


maneira um com 0 .
çãodecódi o d p rtamento moderno para a é ,
daqueles tr~ç~s ~::;;:;r~·eet~q.ueta osquaisse afasta~fu~~~:es da ~ivulga- Este uivei de raciocínio leva-nos, por extensão, a analisar essas
grupo~ n~gros como ~ :a:~~~sb~ue boje são revalorizad:e;,r :~~= divergências do movimento negro, com dois universos, como uma
conseqüência da dicotomia básica existente na sociedade brasileira,
ressonancJas das cul fi , a macumba o b
turas a rica nas em terr. t, . b , . ~am a e outras especialmente em São Paulo, ao nível de classes sociais. Uma coisa está
l ono raslle1ro 20.
em bricada na outra, mas têm particularidades, que fazem com que os dois
universos não se integrem e estabeleçam uma dinâmica de ação comum.
Conclusões Há fronteiras no movimento negro que reproduzem a divisão da
sociedade brasileira em classes sociais, o que não exclui particularidades
que reproduzem essa diferença e, por isto, devem ser consideradas
A constatação de ordem soe. . .
do ne~o paulistano, um ktrado (~16gtca ?a. eXIstência de dois universo
analiticamente como elemento particularizador. São dois universos que
na área metropolitana de São Paulo quase sempre se cruzam, ou vão em
e margmal), leva-nos a uma série d asse ml e~a) e outro plekll (proJetá . s
remetem, por su e cone usaes de ord . no paralelas, mas quase nunca se integram.
SOcial d a vez a repensar a práxi d , em te6nca que nos Além desta diferença no universo negro bipartido, há um cruzamen-

assinalar que
:o
ideologi~: ~~t~~~~negros paulistan?s ~:~!j~e~~nd~cativo ét~co-
e ataque-defesa Implícitas. N~ e as res~tlvas
to ideológico antagônico ou diferenciado formando outro nível de
contradição ou conflito que é aquele existente entre o pobre explorado
tica étnica a q~af8pmaraenlto letrado é o mais sensibiliz:~osec pode deiXar de branco e o negro também explorado,em conseqüência da ideologia racista
d ' ' e e,centra-se . om a problemá- que foi inculcada no primeiro e se desdobra à medida que a competição
o n,e~ro no mercado de trab lhnopreco~eJto racial, na discrimin :-
do capitalismo dependente se aguça num país poliétnico e que tem como
~~~~~~~~t~~~:ivilégio e~on~~~:~~:~~t~e~~s~~rtas área:ç~~ um dos parâmetros seletores a cor da pele dos seus habitantes. Com isto,
pela sua sobrevivên~ia de se~m~nto negro no nível da le ' teatro, e, ~e o problema das classes sociais se diversifica e assume aspectos particulares
neste nível de situa ~ economica, social e mesmo bi~lób<;' que luta mais e ambiguos, pois no seio das classes oprimidas e das suas frações há um
ancestralidade a su~a~ concreta e dramática a sua consciên~ca~ p~rdendo, segmento que se julga superior pela cor da pele.
retorno às sua; mat . erança cultural africana e uma poss' Ila tntca, ~sua Por esta razão, o pr6prio branco explorado julga-se, não diremos
E nzes. tve memóna de sempre, mas em muitos casos, especialmente em casos concretos de
nquamoo primeiro se
os valores cul . gmentonegro mino . , . disputa do mesmo emprego, com mais direitos do que o outro (negro) na
uma luta turals, religiosos e históricos' da Afutano,procura reacender ocupação dos espaços sociais, culturais e econômicos capazes de dar
o prime· corpo-a-<:orpo,cotidianaeingl6ríapel cba, o ~ndo atém-se a estabilidade plena ao trabalhador. Essa defasagem ideológica entre o
tro segmemodeté fi aso reVJvencia E
prestígio social 0 ~ c~rtas ormas e estratégias d . :, ~quanto explorado branco e o negro ou não-branco, além de explorados e
;~:;~l:cidas em d~ve~:~~~~f~dee~::a ã:frendo re:fr%~!~8~:~~~ discriminados etnicamente, cria uma contradição suplementar que

, ao ten 0 p ·
d;
de cada ~nadna:se na lduta pelo cotidiano so~~emVJ·v.o· br~nco, o segmento
enc1a pelo· d'
dificulta, outras vezes anula, a solidariedade de classe e a sua conseqüente
práxis política. O preconceito faz com que o negro, além de explorado
projeto reJ·VJ·nd·tcat!Vo
. apo
' ·or pelo sistema capitalista seja discriminado pelos blocos de poder por um
d tsto,. condições
· sub'et· d'
J tvas e el bo
Ime tato
negra urbana da grandecid~d: ~a Ideologia do segmento de cl:sser:~~ racismo que determina seleção de pessoal nas empresas e por grandes
~~sta de preservação cul . gmento que difunde um di se ta camadas da população branca pobre, também exploradas.

!:~~~;~~~!·~a:~~:~=: ~~~St~:~7;:~~:;~n:~~
É neste complexo s6cicxultural contraditório e ambíguo, quer
econômica, quer etnicamente, que os movimentos negros dev.em atuar,
procurando, muitas vezes, concentrar a sua dinâmica em particularidades
0
~roblema ~o ~egrot~~~~~ ~ ap~e~mar propost!;~~~::~~:~;: como o preconceito de cor (racismo}, a discriminação no mercado de
trabalho, o casamento interétnico e a violência policial. Mas, segundo
e os margmahzados na socied d uçao os problemas da classe o á .
grande massa negra urbana 2J a e em geral, entre os quais se . pelr ~Ia pensamos, falta-lhes uma política globalizadora e dialética do problema,
• lllC UI a capaz de apresentar elementos analíticos e conclusivos sobre esse universo
negro que se biparte e desse outro universo que a ele se contrapõe, o
244
245
Dialética Radical do Brasil Negro

uni verso bran Especificidade e Dinamismo dos Movimentos de Stlo Paulo


a>, em que se choca com . . .,
na 9u~l os negros se situam na aloco ~nmetro )a dividido pda situação
capnahsta,emumasociedadepof'tn' açao de classes sociais no sjsrema lO) Pesquisa de emprego e desemprego (principais resultados) Grande São Paulo
em grande parte do sistema escr~~s:~aecom umacuJruraherdadaainda - SEAD E/DI EESE, 1985, p. 8.
11} VALENTE, Ana Lúcia E. F, Op. Cit. p. 96.
12) PEREIRA, Borges, Batista, João. Parâmetros ideológicos do projeto polltico dos
Negros em São Paulo. in Revista do Instituto de asrunlos brasiláros, n 2 24, 1982,
p. 59.
Especificidad~ ~ dinamis . 13) Neste sentido, em um documento do MNU datado de outubro de 1984 o
Notas mo do,y movtm~ntos de São Paulo
problema da terra é: abordado via Ligas Camponesas. Escrevem os seus autores
que "no inicio dos anos sessenta os nordestinos, que viviam no campo, se
(I) Ver FERREID A M' . N' uniram para lutar pela posse da terra -a reforma agrária- dando o nome de
.
Ed ltora "'"' mam tcolau A!.
FFLCH-USP SP 1986 .' mprema Ntgra Paulirta (1915-1963) Ligas Camponesas foram um fenômeno típico do Nordeste, não se reproduzin-
Brasileiro. Cap. A I m~re~a n ·;111~. MOURA, Clóvis. Sociologia do Nt . do em outras regiões do pais. Pelo menos não se tem, até agora, notícias da
e legendas de FERREIRA, MTnaemSao Paulo, pp. 204.217. MOURA, Cl6~; existência de alguma organitaçJo com a mesma intensidade em outras regiões.
Estado S. A SP, 1984. m N.Jmpmua Nrgra. Imprensa Oficial do Só as Ligas Camponesas de Mamanguape e Souza- cidades da Para1ba- juntas
(2) FRY, Peter Henrye HOWE G . reuniram filiadas na casa das dezenas de milhares(...) As Ligas Camponesas em
~nt~:al~mo. in. Debate & Critk:r;PN~~e~ ~~~"~las d ajh{ào: mnbanda e pouco tempo se multiplicav~ me se alastravam às centenas por todo o Nordeste.
19~~ ~_a..i":ocópiO Ferreira de. KardC:ismo; ;mb~n:a.IP91!05, ~· 75Ed.<?all1drgo, A população do campo, agora organizada, com grande rapidez se tornava uma
nova força hi~tórica, trazendo sérias dores de cabeça aos latifundiários;
•r- . ne1ra Hora, SP
(3).~ando citamos a classe média me . • contudo, em março de 1964, o golpe militar põe por terra aquela formidável
à Cidade de São Paulo no d tropohtana negra estamos nos fc . d organização.
(4)1~ANOZ • ano e1985. reenn o I mpiedosamente reprimidos, com os seus líderes assass1nados, as Ligas são
• Franz. Pt!e Neorn '
95. .,. .., mascaras brancas. Editor" A I' . dispersadas. E o povo daquela região que outrora presenciou os seus fi lhos- os
" . ·errclfa, PA, sjd, p.
5) Catálogo de entidades de . heróis populares - em menos número c sem nenhuma orientação polltica,
!ser, ng 29 1988 moVImentos negros no Br·lsil· Co . - enfrentaram forças militares ou policiais superior à sua capacidade, assistia
6) Loc .• . ' . munlcaçoes do agora atônito, as Ligas Camponesas serem dissolvidas sem resistência alguma" .
. C1t.
Movimentor mgros sociais e polltica no rim/o XX. in 1978-1988 ·lO anos de L11tas
7) Ver neste sentido: ANDREWs .
lkmocrrn-,,. B' .r. p • George Re1d Rar. · 1 a. Contra o Racismo. MNU, 1988, p. 72/73.
-v· rat:K rorm in São Paulo B ' I • la vcmorrllry and Political
tada ao Se · ã .
111.1 n no Internacional
· ras11, 1888-!988
b .
c .
' omuntcaçào aprcsen-
14) Um componente do QUILOMBOJE assim expressa a sua ideologia racial
e cultural: "Alguns olhos apressados e dogmáticos rejeitam a poesia afro-
Contempor.ineo BH 1990 ( . so re Destgualdt~de Racial no B 'J
brasileira atual acusando-a de ainda ser limitada ao enfoque negrista de
Brazil 1888-988 ~ Th;
B) E
u.-.; r:umeog.) Idem, Bla<ks and ln.lit.( in "' Pru!ast
•uVerslty of Hi . p -MO a 0 valorização do ser negro presente no início da Negritude. Mas é preciso
ml982foiorganizada ems· n I sconstn rcss-Mt~dson 1991 - ... · considerar que, na realidade brasileira, estas questões têm permanecido latentes,
AçãoP lf · • aorauoaFRENAPQ • •r~llu.
d o hca de Oposição. Depois de ' . . .- -Frente Negra para urna confundindo, embaralhando a percepção e enfraquecendo psicologicamente o
e o PMO~ na~ quais foram discutidosva~~~~~eunroes c~m ativistas quase todos brasileiro negro ou mestiço preponderantemente negro.
~ s_ua ltgaçao com a comunid d p mas relacionados com a política E porque per~iste na sociedade brasileira estruturas e padrões enraizados no
;:IStln?o à dialética contraditór~a ~en:~:~r o órgJo ~ d.cscstruturou, não passado racista é que esse debate continua c é fundamental para o equiHbr1o
Ad~!g•cas. Os negros se diversificaram em QS~d p.lrttdJnos c divergências psicológico do negro. Conquistado, esse equilíbrio será possível estruturaHe
a rto Camargo Teodosi . . parti os antagônicos scnd politicamente de forma mais ativa e participante. Por isto mesmo que tais
estapdual c vereador, 'respectiva:~bee ltreo e _Mário Amér.ico, deput~do fe~e;~e questões. embora pareçam superadas para outras latitudes para nós brasileiros
no OS 0 • rmmaram as s · . • correspondcm ao ritmo tardio com que as conquistas populares acontecem na
'd • mesmo acontecendo a Paulo R . d O . ~as traJetónas eleitorais
part1 o a ser 0 · · UI e ltvc1ra q h sociedade brasileira.
9) VALENTE, pnmclro negro presidente da Câm M .u~ c cgou por esse
Por outro lado, essa questão do tempo não nos é totalmente desfavorável
. Ana Lúcia E. F. Polftica c rt ~ ara . .umclpal de São Paulo.
paulutas de 1982. Editora FFLCH-USP SP lla98{0eS ranau. Os tugros e as e/n{ões porque, se componentes polêmicos da Ncgritude ainda persistem no debate
• ' 6, pp. 33/34 brasileiro sobre a questão racial, temos a vantagem de que chegando aqui
tardiamente esses componentes foram mesclados com outros valores e perspec-
246 tivas, possibilitando-nos pensara Negritudealémdos limites naturais existentes

247
. os fvfovimonros u .........v· -··
Especificidade e Dlnarmsmo ó

013ldtica Radical dO Brasil Negro . 6 . como o pretoCosme.


. be como outros heróis hist ncos J é dos Santos
carismática de Zumbt,_ m us do Nascimento, Luca~ O~nt~s, os MuitOS
à época da eclosão do movimento. Dessa forma, para nós a negritude acabou h?"ói d~ ~al<~i~d~~!:~d:~Santos, heróis da I nconf=~~~ rs'tn~~m~tico c
sendo associada a signific.1dos c slmbolos inexi~tentes à época da atua~ão de Ltra c lVI anue . negro nem lhes sab<;ll_l? no. · ·I c ro c~ r<IVO
Cesaire c Senhor. Lumumba, Black Pantcrs, Luthcr King. Malcom, Angel.t militantes do movtm:~~opau mares de luta ~nte.lats c.r~d~ pc :o~ ;ossos dias.
Davis, Guerras de Libcnaçlo dascx<olônias portuguesas em África trazem para demonstra como aqu partida wna conunutd<~dc cr tca .s complexa
nlo tiveram~o~ob~~~~~~a se diversificou in~crnamcntc~~~:::sc proce\~·
d uma dimensão, uma consci~ncía de que, para enfrentar efiCientemente .a
secular cxplor<~ç.io c marg~nalíuçiio, não~ possível ficar apenas ao nível de cor
A S0\:1 ct õcs raoais, e de classe também acomfl" or entre o C'iCfJVO
cA o~~=ç~~ ~~=~urantc 3 ~ravidão er~_.m~a':'pocorr::;~i~ccomplicadobres_
da pele, da oposição preto x branco."- MINKS, Jamu. Litaatura e Cons&ncút
in &jbiia. vários autores, Editora Quilomboje/Consclbo de Participação e
ns d esc ravtsta foram mc:u1 • que m.mo ra
Desenvolvimento da Comunadadc Negra, SP, 1985, pp. 18/19. conscicntccaor em r uma política sutil das elas~ doltllnant~ ficando, deste
15) Revuta EBANO, ano I, n" O, São Paulo, dc:zcmbro de 1980. c amortecedores, ~a capaz de disfarçar o problema do ~~m'to~b'.trinto. bsas
16) PEREIRA Borges, c Battsta, João. Ntgro e Cu/Jura Negra no Brasil atual. amnumacstrat~b' la_ rac:n:io-brancae _ -
Separ.ua do vol. XXVI d.a Revisto~ Antropologia, SP, 1983, p. 100. r -·'o os movimentos da popu çaodneg 'ilita·ncia ncgrd, nessa sttuaço~o, SoldO
m~,.... • grupos e m · . e c ultural~ . ) ma1s do que e
17) Acorda Negro. Boletim informativo dos grupos negros de Grande Sdo • 5 bem como os
Paulo, SP, maio 87, ano 2- n2 3. lt~cr~~~ por diferenças (econômicas•. dsocd~~~o presente em torno de u~
attn.,.. . N" h' portanto. um a . d d ac\oumavtSAO
18) jornal da &la Vista, SP, 27 de m.1rço de 1988.
19) Somando o modmzo Js raf7~ da tradi[iio. Sboppmt. Nuos, SP, 16 de novembro conver~~~~:~civi~~ic:~ão étnico-políti~ que~~~ c:~~m~st~:r um programo~
prodgra dente, mas ao mesmo tempo ~ range do negro, m3\ de todos o~
1986. In epcn . roblcmas nao apenas .
20) Esta pos1çJo do grupo de livraria que visa uma modernização do capaL. de soluctonar os ~ . . d s da nossa socu:dadc.
movi rncnto negro em S~o Paulo, c, ao mesmo tempo, reuniu os Vtlbos militantes segmentos oprimidos e diM:ntlllna o
da imprensa negra para um ato dccon fratcrnizaç.lo pelo reconhecimento da sua
atuação, não poderá signific;u, simbolicamente, por outro lado, uma posição
do validilr o seu poder dcdt.'Cisào através da sabt.-doria dos mais velhos, consc:lho
dos mais experientes (idade - s~bcdoria) de acordo com os padroo Jfricanos
embutidos nessa postura de moderniaç.io? Seric1 uma forma de ver por esta
fonte ancestral a legitimaç~o intuitiva, num ritual iniciático incon~cientc dd
aprovação pelos vdho~da .tç~o do grupo c do seu projeto de modernizaç:io~ Isto
é problema p.tr.t os .1ntrop6logos cncar.trcm c responderem.

21) Estasttuaçãodúpliccdos movtmentos negros no presente é uma das razões,


segundo suponho, que dctcrmin<~m o seu comportamento. O endeusamento
dos heróis do passado, transformados em mitos ou símbolos da raça, como é
o caso de Zumb1, preenche a lacuna de grandes líderes negros no presente.
Zumbi está vivo, cartaz de propaganda de marcha contra o racismo no Rio de
Janeiro é bem ilu~tr<ttívo dcs.~a posturJ, bem como outras manifestações da
comunidade em rdaç.lo.10 herói de Po~lmares. A mitificJç.io de Zumbi, a escolha
do dia 20 de novembro, aniversário da ~ua morte como Dia da Consciência
Negra, a fundação de um memorial Zumbi, as marchas anuais ~ Serra do
Barriga, finalmente todo o complexo de manifestações de homenagem à sua
memória, sede um lados.io JUStas, dcoutroscrvem para suprir o vácuo que não
foi preenchido no nível de lideranç.a atual desses movimentos. O que se vê, pelo
contrário, é uma dificuldade muito grande de se estabelecer entre eles uma
unidade ideológica ou política para uma atividade conjugada e radical, no
sentido de uma reestruturação das relações sociais e raciais no Brasil. Os heróis
mais próximo~ de nós no tempo, como joJo Cândido, não têm a mesma carga
249

248
hra obra de CLÓVIS MOURA, sociólogo especializado
nas rclaçüe., intcr-érnicas no Brasil c que já nos deu mais de
uma dezc:na de livrm mbre o rema, recoloca-o em uma
dimensão de mprura dialética com os métodos tradicionais
de encarar-se o problema . O autor nos dá uma \'Ísão da
contribuição do negro à formação histórico-social do Rra<~il
c dos meGtnismos inibidorc<~ c discriminadores que a elite
dominante racista elabora e dinamisa contra ele. De um
modo abrangente, inicia -o com a chegada do primeiro
Governador (~eral, discute a periodisação do modo de
produção cscra,isra, o problema da ordenação racista da
sociedade brasileira através do colonialismo c o dinamismo
culntral do negro, concluindo com uma análise dos amais
movimentos negros em São Paulo c as suas contribuições c
contradiçi'H.:s cmergcnres. Surge num momenro particular-
mente dramático. com a \'Ítória da contra-revolução mundial
c o conscquente ressurgimento do racismo de forma agres-
siva, do tipo nazista, como arma ideológica dessa contra-
revolução. O livro, por isto, é uma ferramenta contra o
pensamento dos que acreditam que o mundo fi.tturo será do
capitalismo dos países brancos c ricos dominando os povos
não -brancos c dependentes que constintcm a esmagadora
maioria da populaç~o do mundo. Exemplo disto é o que já
fizeram ou tentaram tàzcr em Granada, Panamá, Cuba,
Somália, Líbia, Haiti, sem f.1larmos no genocídio que foi a
guerra do Golfo . O imperialismo nesta nova fase tenta uma
reciclagem do antigo Sistema Colonial, com a imposição do
ncocolonialismo tccnocrático. E o racismo é uma das suas
armas de dominação mais importantes. É um texto desafia-
dor c polêmico para a reflexão dos seus leitores.

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