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A SEGURANÇA PÚBLICA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988:

CONCEITUAÇÃO CONSTITUCIONALMENTE ADEQUADA,


COMPETÊNCIAS FEDERATIVAS E ÓRGÃOS DE EXECUÇÃO DAS
POLÍTICAS 1-2
Cláudio Pereira de Souza Neto 3

SUMÁRIO: I. Introdução. II. Parâmetros para a conceituação constitucionalmente


adequada da segurança pública; II.1. O conceito de segurança pública entre o combate e
a prestação de serviço público; II.2. A segurança como direito fundamental, o princípio
republicano e a exigência de universalização; II.3. Lei e ordem púb lica; II.4. Limites e
possibilidades do controle jurisdicional das políticas públicas de segurança. III.
Classificação das atividades policiais e órgãos de execução das políticas de segurança
pública; III.1. Classificação constitucional da atividade policial: polícia ostensiva,
polícia de investigação, polícia judiciária, polícia de fronteiras, polícia marítima e
polícia aeroportuária; III.2. Órgãos policiais estaduais: Polícia Civil e Polícia Militar;
III.3. Órgãos policiais federais: Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal e Polícia
Ferroviária Federal; III.4. Taxatividade do rol de órgãos policiais; III.5. A participação
de outros órgãos na execução de políticas de segurança; III.5.1. A participação das
Forças Armadas na segurança pública. III.5.2. A participação do Ministério Público na
investigação criminal; III.5.3. A participação de magistrados na investigação criminal;
III.5.4. A Força Nacional de Segurança; III.5.5. As guardas municipais e a participação
dos municípios nas políticas de segurança pública; III.5.6. A participação popular nas
políticas de segurança pública. IV. Conclusão.

I. Introdução

Em maio de 2007, o Governo do Rio de Janeiro encaminhou ao


Presidente da República pedido para que o Governo Federal empregasse as Forças

1
Este estudo é dedicado aos colegas da OAB-RJ pelos esforços que vêm empreendendo pela
democratização da política de segurança no Estado do Rio de Janeiro.
2
Agradeço a Ana Paula de Barcellos e a Daniel Sarmento a atenta leitura e as precisas sugestões que
formularam.
3
Professor da UFF e da pós-graduação da UGF. Doutor em Direito pela UERJ. Advogado e Conselheiro
Federal da OAB.

1
Armadas na execução de políticas de segurança. O pedido foi negado. Em junho, o
Governo Estadual determinou a ocupação do “Complexo do Alemão”. Para realizá- la,
utilizou mais de 1200 homens, policiais civis e militares, além de 150 membros da
Força Nacional de Segurança. Outras operações vêm sendo realizadas em diversos
locais da cidade, também habitados pelas parcelas mais pobres da população. No
primeiro semestre de 2007, as mortes em confronto com a polícia aumentaram em
33,5%, ao passo que as prisões diminuíram em 23,6%; a apreensão de armas, em
14,3%; e a apreensão de drogas, em 7,3%. O Governo Estadual claramente adota uma
estratégia de guerra, e isso é reconhecido pelo próprio Governador: “Qualquer ação da
criminalidade terá uma reação da polícia. Ao mesmo tempo não só uma ação passiva
(...), mas um trabalho de combate permanente e estratégico para ganhar essa guerra. (...)
Nós vamos ganhar essa guerra com muita seriedade”4 . O contexto presente simboliza a
orientação geral que vem prevalecendo nas últimas décadas. Apesar de passados mais
de 20 anos do fim do regime militar, as políticas de segurança pública ainda são
concebidas como estratégia de guerra e não se submetem ao programa democrático da
Constituição Federal de 1988.

O objetivo do presente estudo é verificar o que a Constituição


Federal tem a dizer sobre a segurança pública. A Constituição de 1988 lhe reservou
capítulo específico (art. 144), em que a caracteriza como “dever do Estado” e como
“direito e responsabilidade de todos”, devendo ser exercida para a “preservação da
ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio”. A Constituição
estabelece ainda os órgãos responsáveis pela segurança pública: a Polícia Federal, a
Polícia Rodoviária Federal, a Polícia Ferroviária Federal, as polícias civis estaduais, as
polícias militares e os corpos de bombeiros. A história constitucional brasileira está
repleta de referências difusas à segurança pública. Mas até a Constituição de 1988, não
havia capítulo próprio, nem previsão constitucional mais detalhada, como agora se
verifica. Por ter “constitucionalizado”5 , em detalhe, a segurança pública, a Constituição

4
Cabral reitera política de combate à criminalidade (notícia de 16.06.2007). Disponível em:
http://www.imprensa.rj.gov.br.
5
Em outro estudo, elaborado em co-autoria com Santos de Mendonça, procuramos esclarecer os diversos
sentidos em que o termo “constitucionalização do direito” é empregado: “A primeira acepção –
constitucionalização-inclusão – é imediata. Determinado assunto, antes tratado pela legislação ordinária,
ou simplesmente ignorado, passa a fazer parte do texto constitucional. É a ‘constitucionalização-elevação’
de Favoreu, transferência, para a Constituição, da sede normativa da regulação da matéria. (...). A
segunda acepção – constitucionalização-releitura – só veio a receber maior atenção nos dias de hoje.

2
de 1988 se individualiza ainda no direito comparado, em que também predominam
referências pontuais.

A constitucionalização traz importantes conseqüências para a


legitimação da atuação estatal na formulação e na execução de políticas de segurança.
As leis sobre segurança, nos três planos federativos de governo, devem estar em
conformidade com a Constituição Federal, assim como as respectivas estruturas
administrativas e as próprias ações concretas das autoridades policiais. O fundamento
último de uma diligência investigatória ou de uma ação de policiamento ostensivo é o
que dispõe a Constituição. E o é não apenas no tocante ao art. 144, que concerne
especificamente à segurança pública, mas também no que se refere ao todo do sistema
constitucional. Devem ser especialmente observados os princípios constitucionais
fundamentais – a república, a democracia, o estado de direito, a cidadania, a dignidade
da pessoa humana –, bem como os direitos fundamentais – a vida, a liberdade, a
igualdade, a segurança. O art. 144 deve ser interpretado de acordo com o núcleo
axiológico do sistema constitucional, em que se situam esses princípios fundamentais –
o que tem grande importância, como se observará, para a formulação de um conceito
constitucionalmente adequado de segurança pública.

A partir da afirmação da prevalência normativa dos princípios


fundamentais, o presente estudo busca cumprir fundamentalmente quatro tarefas: (a)
apresentar um conceito constitucionalmente adequado de segurança pública; (b)
examinar os limites e as possibilidades do controle jurisdicional das políticas de
segurança; (c) detalhar a repartição de competências entre os órgãos policiais; (d)
verificar a pertinência de eventuais alterações na jurisprudência ou na forma como a

Desde que a Constituição passou a ser compreendida como norma jurídica dotada de superioridade
formal e material em relação às demais, era questão de tempo até que se passasse a denominar como
‘constitucionalização do Direito’ a percepção, mais ou menos difusa, de que todas as normas
infraconstitucionais deviam pagar algum tributo de sentido à norma máxima. O fenômeno, no Brasil, vem
sendo descrito e justificado em diversos estudos, com ênfase nas pesquisas recentes sobre a ‘filtragem
constitucional’, a eficácia privada dos direitos fundamentais e a formação de um Direito Civil-
Constitucional.” (SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; MENDONÇA, José Vicente Santos de.
Fundamentalização e fundamentalismo na interpretação do princípio constitucional da livre iniciativa. In:
SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel [orgs.]. A constitucionalização do direito:
fundamentos teóricos e aplicações específicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006). Cf. ainda:
FAVOREU, Louis. La constitutionnalisation du droit. In: L'unité du droit: Mélanges en homage à Roland
Drago. Paris: Economica, 1996; BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização
do direito (o triunfo tardio do direito constitucional no Brasil). RDA, vol. 240, abr./jun. 2005, p. 20.

3
Constituição regulou a matéria. Preliminarmente, enfatiza-se apenas que as práticas
policiais ainda não se submeteram ao programa democrático instituído pela
Constituição de 1988. Não são, nesse sentido concreto, práticas constitucionalizadas,
comprometidas com a construção de uma república de cidadãos livres e iguais e com a
promoção da dignidade da pessoa humana. No campo da segurança pública, a
constitucionalização efetiva da ação governamental ainda figura como objetivo a ser
alcançado pelo inconcluso processo brasileiro de democratização.

II. Parâmetros para a conceituação constitucionalmente adequada da segurança


pública

II.1. O conceito de segurança pública entre o combate e a prestação de serviço


público

Há duas grandes concepções de segurança pública que rivalizam


desde a reabertura democrática e até o presente, passando pela Assembléia Nacional
Constituinte: uma centrada na idéia de combate; outra, na de prestação de serviço
público 6 .

A primeira concebe a missão institucional das polícias em termos


bélicos: seu papel é “combater” os criminosos, que são convertidos em “inimigos
internos”. As favelas são “territórios hostis”, que precisam ser “ocupados” através da
utilização do “poder militar”. A política de segurança é formulada como “estratégia de
guerra”. E, na “guerra”, medidas excepcionais se justificam. Instaura-se, então, uma
“política de segurança de emergência” e um “direito penal do inimigo”7 . O “inimigo
interno” anterior – o comunista – é substituído pelo “traficante”, como elemento de

6
Cf. CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. O futuro de uma ilusão: o sonho de uma nova polícia.
Freitas Bastos, 2001; DORNELLES, João Ricardo Wanderley. Violência urbana, direitos da cidadania e
políticas de segurança..., cit.; SULOCKI, Vitória Amélia de B. C. G. Segurança pública e democracia...,
cit.; MUNIZ, Jacqueline; PROENCA JUNIOR, Domínio. Os rumos da construção da polícia democrática.
Boletim IBCCrim, v. 14 , n. 164, jul. 2006; SOUZA, Luis Antonio Francisco de. Polícia, Direito e poder
de policia. A polícia brasileira entre a ordem publica e a lei. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v.
11, n. 43, abr./jun. 2003; SILVA, Jorge da. Segurança pública e polícia: criminologia crítica aplicada.
Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 189 ss.
7
Cf.: ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007; JACKOBS,
Günther; CANCIO MELIÁ, Manuel. Derecho penal del enemigo. Madri: Civitas, 2003.

4
justificação do recrudescimento das estratégias bélicas de controle social8 . O modelo é
reminiscente do regime militar, e, há décadas, tem sido naturalizado como o único que
se encontra à disposição dos governos, não obstante sua incompatibilidade com a ordem
constitucional brasileira. O modelo tem resistido pela via da impermeabilidade das
corporações policiais, do populismo autoritário de sucessivos governos e do discurso
hegemônico dos meios de comunicação social9 . Com os atentados de 11 de setembro,
voltou a ser praticado no plano internacional. Elevado à condição de única alternativa
eficaz no combate ao terrorismo, tem justificado violações sucessivas aos direitos
humanos 10 e às normas mais básicas que regem o convívio entre as nações 11 .

A segunda concepção está centrada na idéia de que a segurança é


um “serviço público” a ser prestado pelo Estado 12 . O cidadão é o destinatário desse

8
A concepção autoritária se apóia em um modelo de sociedade centrado no conflito. Nessa tradição da
teoria política, se inserem autores como Maquiavel, Hobbes e Schmitt, que compartilham um ponto de
vista pessimista sobre os seres humanos, ao caracterizá -los como vocacionados para a prática de
hostilidades recíprocas. Para Schmitt, por exemplo, a política se define como relação “amigo-inimigo”
(SCHMITT, Carl. O conceito do político. Petrópolis: Vozes, 1992). Se o meio social se caracteriza pelo
conflito, o poder político deve interferir incisivamente na limitação da liberdade, deve decidir os conflitos
sociais e estabelecer a ordem. Não é por outra razão que desse tipo de construção resultam estados
autoritários. A ditadura não é vista como algo negativo, mas como alternativa aceitável à desordem e à
guerra, que ameaçariam em maior grau a vida e a propriedade das pessoas. Assume preocupante
pertinência a conhecida sentença de Clausewitz, para o qual “a guerra não é somente um ato político, mas
um verdadeiro instrumento político, uma continuação das relações políticas, uma realização destas por
outros meios” (CLAUSEWITZ, Carl von. Da Guerra. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p. 27).
9
Cf. CERQUEIRA, Carlos M. Nazareth. Remilitarização da segurança pública: a operação Rio.
Discursos Sediciosos: Crime, Direito e Sociedade, n. 1, 1996; SILVA, Jorge da. Segurança pública e
polícia..., cit., p. 532 ss.; MORETZSOHN, Sylvia. Imprensa e criminologia: o papel do jornalismo nas
políticas de exclusão social. Covilhã: Universidade da Beira Interior, 2003.
10
Nos Estados Unidos, após os atentados de 11 de setembro, foi editada legislação de emergência,
chamada USA Patriot Act, que prevê, dentre outras medidas, a ampliação da possibilidade de prisão para
investigações, de buscas em domicílio e de escutas telefônicas, além de restringir os contatos dos
investigados com seus advogados. Cf. ACKERMAN, Bruce. The Emergency Constitution. Yale Law
Journal, vol. 113, n. 5, 2004; VIANO, Emilio. Medidas extraordinarias para tiempos extraordinarios:
política criminal tras el 11.09.2001. Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 52, 2005.
11
Após os atentados de 11 de setembro, os EUA têm iniciado uma “guerra global contra o terrorismo”,
em que se incluem “ações preventivas”, sem declaração formal de guerra, em qualquer lugar no globo, e o
uso corrente operações clandestinas. Cf. FOLLIS, Luca. Laboratory of war: Abu Ghraib, the human
intelligence network and the Global War on Terror. Constellations, vol. 14, n. 4, dez., 2007, p. 636: “A
resposta da administração foi a elaboração da ‘Doutrina Bush’ e a implementação da guerra global contra
o terrorismo. Desde setembro de 2002, o Presidente Bush procura distingui-la de qualquer outra guerra
em que os EUA tenham se engajado no passado, enfatizando que ela (1) não se apóia em nenhuma
declaração formal de guerra ou de fim das hostilidades; (2) não tem nenhum inimigo claramente definido;
e (3) não está confinada a nenhuma região geográfica particular. Talvez mais importante, o Presidente
tem frequentemente enfatizado que, ao lado das operações convencionais, a guerra contra o terror
demanda operações secretas e clandestinas.”
12
Pode-se argumentar que a segurança pública não pode ser definida como serviço público, mas como
atividade de polícia administrativa, já que serviria à restrição da liberdade individual. O exercício do
poder de polícia seria “função exclusiva de estado”. Contudo, a garantia da segurança pública exibe

5
serviço. Não há mais “inimigo” a combater, mas cidadão para servir. A polícia
democrática, prestadora que é de um serviço público, em regra, é uma polícia civil,
embora possa atuar uniformizada, sobretudo no policiamento ostensivo. A polícia
democrática não discrimina, não faz distinções arbitrárias: trata os barracos nas favelas
como “domicílios invioláveis”13 ; respeita os direitos individuais, independentemente de
classe, etnia e orientação sexual; não só se atém aos limites inerentes ao Estado
democrático de direito, como entende que seu principal papel é promovê- lo. A
concepção democrática estimula a participação popular na gestão da segurança pública;
valoriza arranjos participativos e incrementa a transparência das instituições policiais.
Para ela, a função da atividade policial é gerar “coesão social”14 , não pronunciar
antagonismos; é propiciar um contexto adequado à cooperação entre cidadãos livres e
iguais 15 . O combate militar é substituído pela prevenção, pela integração com políticas

caráter tipicamente prestacional. O elemento dominante da noção é a atuação positiva do Estado, no


sentido de proteger a segurança, não a limitação da liberdade dos que atentam contra a segurança. Essa
ênfase à atuação positiva do Estado é atribuída à noção de segurança pública pelo já referido caput do
artigo 144 da Constituição Federal. Para a reconstrução do debate sobre o conceito de serviço público, cf.
ARAGÃO, Alexandre Santos de. A dimensão e o papel dos serviços públicos no Estado contemporâneo.
(Tese de Doutorado em Direito). São Paulo: USP, 2005. Para a caracterização da segurança como serviço
público, cf.: SANTIN, Valter Foleto. Controle judicial da segurança pública: eficiência do serviço na
prevenção e repressão ao crime. São Paulo: RT, 2004.
13
A condição de “domicílio inviolável” já foi reconhecida aos casebres das favelas pelo Supremo
Tribunal Federal, em decisão monocrática. Cf. STF, DJU 15 set. 1997, SS nº 1.203, Min. Celso de Mello.
Na verdade, aplica-se também aqui o parâmetro geral constituído pelo STF para interpretar o conceito de
casa para efeito de inviolabilidade domiciliar: “Para os fins da proteção jurídica a que se refere o art. 5º,
XI, da Constituição da República, o conceito normativo de ‘casa’ revela-se abrangente, por estender-se a
qualquer aposento de habitação coletiva, desde que ocupado (CP, art. 150, § 4º, II)” (STF, DJU 18 mai.
2007, RHC nº 90.376, Rel. Min. Celso de Mello).
14
Como se sabe, a idéia de “coesão social” é qualificada, por importantes publicistas, como a principal
tarefa a ser exercida pelo Estado quando este presta serviços públicos. A noção tem origem na “Escola do
Serviço Público”, desenvolvida no início do Século XX, na França. De acordo com Léon Duguit, seu
principal precursor, serviço público pode ser definido como “toda atividade cuja realização deve ser
assegurada, regulada e controlada pelos governantes, porque a consecução dessa atividade é indispensável
à concretização e ao desenvolvimento da interdependência social, e é de tal natureza que só pode ser
realizada completamente pela intervenção da força governante” (DUGUIT, Léon. Traité de Droit
Constitutionnel. París: Ancienne Librairie Fontemoing, 1928, T. II, p. 59). Como se vê, o conceito de
Duguit está fortemente assentado nas idéias de solidariedade e de cooperação. Cf. FARIAS, José
Fernando Castro. A origem do direito de solidariedade. Rio de Janeiro: Renovar, 1998; Id. A teoria do
estado no fim do Século XIX e no início do Século XX: os enunciados de Léon Duguit e de Maurice
Hauriou. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999. Na literatura jurídica brasileira atual, sobre a noção de
“coesão social”, como a que explica e legitima a instituição de serviços públicos, cf. GRAU, Eros
Roberto. A Ordem econômica na constituição de 1988. 11.ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 130;
ARAGÃO, Alexandre Santos de. A dimensão e o papel dos serviços públicos no estado contemporâneo,
cit. De acordo com este último: “O fundamento último da qualificação jurídica de determinada atividade
como serviço público foi e é ser pressuposto da coesão social e geográfica de determinado país e da
dignidade de seus cidadãos” (p. 357).
15
A concepção democrática entende que o cidadão também é talhado para a cooperação social. Nessa
vertente do pensamento político, inserem-se autores como Rousseau, Heller e Habermas. A polêmica
entre Heller e Schmitt, sobre o “conceito do político”, ajuda a esclarecer o papel fundamental que a idéia

6
sociais, por medidas administrativas de redução dos riscos e pela ênfase na investigação
criminal. A decisão de usar a força passa a considerar não apenas os objetivos
específicos a serem alcançados pelas ações policiais, mas também, e fundamentalmente,
a segurança e o bem-estar da população envolvida.

A diferença entre as duas concepções revela-se, por exemplo, na


forma como lidam com o envolvimento de policiais em episódios de confronto armado.
No mesmo período (de 1995 a 1998), os Governos do Estado do Rio de Janeiro e do
Estado de São Paulo davam respostas divergentes para esse tipo de evento. No Rio de
Janeiro, a política de segurança era comandada por um general, que instituiu a
gratificação por bravura (apelidada de “gratificação faroeste”) 16 . Se o policial se
envolvia em confronto armado, era gratificado pecuniariamente. O resultado foi o
aumento da truculência policial e a simulação reiterada de situações de confronto, com a
elaboração de “autos de resistência” fraudulentos. Em São Paulo, a Secretaria de
Segurança instituiu o PROAR (Programa de Acompanhamento de Policiais Envolvidos
em Ocorrência de Alto Risco). Quando o policial se envolvia em confrontos, era
afastado das ruas e submetido a tratamento psicológico; não recebia qualquer tipo de
gratificação por bravura. O objetivo da política era reduzir o arbítrio de autoridades
policiais e circunscrever o uso da força aos casos de necessidade efetiva. Essas formas
de lidar com episódios de confronto armado revelam a divergência fundamental entre as
duas concepções de segurança pública. Enquanto a primeira entende o policial como
combatente, que deve ser premiado por seu heroísmo, a segunda lhe confere a condição
de servidor, que, para dar conta de suas importantes responsabilidades, deve estar
psicologicamente apto 17 .

de cooperação exerce no regime democrático. Heller se contrapõe à perspectiva de Carl Schmitt, ao


sustentar que o que caracteriza a democracia é exatamente a existência de um “fundamento comum para a
discussão”, de um fair play diante do adversário público, de uma “unidade na multiplicidade de
opiniões”. Essa unidade é obtida quando está garantido certo grau de “homogeneidade social” (esta é
concebida por Heller em termos econômicos), que é capaz de gerar “uma consciência do sentimento do
‘nós’”, “uma vontade comunitária que se atualiza”. (HELLER, Hermann. Démocratie politique et
homogénéité sociale. Revue Cités, n. 6, maio, 2001. p. 205). Ao invés de justificar a ditadura, como
ocorre na vertente autoritária, a perspectiva democrática enfatiza a necessidade de se garantirem as
condições econômicas e sociais para que todos os cidadãos se vejam motivados a cooperar, por receberem
da coletividade o tratamento que lhes é devido por razões de justiça. Sobre o lugar da cooperação social
na teoria constitucional contemporânea, cf. SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Teoria constitucional e
democracia deliberativa. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
16
Decreto nº 21.753/95.
17
Os exemplos são lembrados por CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. Políticas de segurança
pública..., cit., p. 69 ss.

7
Quando, no art. 144, tratou especificamente da segurança pública,
a Constituição não optou, com a precisão desejável, nem por um nem por outro modelo.
Por um lado, concebeu como finalidade das políticas de segurança a preservação da
“incolumidade das pessoas e do patrimônio”. Por outro lado, ma nteve parte importante
da polícia militarizada. Embora subordinadas aos governadores dos estados, as polícias
militares continuam previstas como “forças auxiliares e reservas do Exército” (art. 144,
§5º). A Constituição Federal, no capítulo específico sobre a segurança pública, está
repleta de conceitos imprecisos. É o caso do de “ordem pública”, que pode ser
mobilizado, de acordo com as circunstâncias, para justificar um ou outro tipo de
intervenção policial18 . É passível de incorporações autoritárias, como a realizada pelas
políticas de “lei e ordem”, de “tolerância zero”19 . Mas também pode habitar o discurso
democrático, ao ser concebida como ordem republicana do estado democrático de
direito.

Contudo, apenas uma interpretação apressada poderia concluir


que, por conta da ambigüidade que exibe no capítulo específico sobre segurança pública
(art. 144), a Constituição pode justificar tanto políticas autoritárias quanto políticas
democráticas. Um conceito de segurança pública adequado à Constituição de 1988 é um
conceito que se harmonize com o princípio democrático, com os direitos fundamentais e
com a dignidade da pessoa humana. Por conta de sua importância para a configuração
de um estado democrático de direito 20 , os princípios fundamentais produzem eficácia

18
Cf. SULOCKI, Vitória Amélia de B. C. G. Segurança pública e democracia..., cit., p. 151.
19
Cf. BATISTA, Vera Malaguti. Intolerância dez, ou a propaganda é a alma do negócio. Discursos
Sediciosos: Crime, Direito e Sociedade, n. 4, 1997; BELLI, Benoni. Tolerância zero e democracia no
Brasil: visões da segurança pública na década de 90. São Paulo: Perspectiva, 2004; WACQUANT, Loïc.
A globalização da “tolerância zero”. Discursos Sediciosos: Crime, Direito e Sociedade, ano 5, n. 9 e 10,
2000.
20
Não há hierarquia formal entre as normas constitucionais, mas há hierarquia material. Como esclarece
Ana Paula de Barcellos, embora os princípios “não disponham de superioridade hierárquica sobre as
demais normas constitucionais, até mesmo por força da unidade da Constituição, é fácil reconhecer-lhes
uma ascendência axiológica sobre o texto constitucional em geral” (BARCELLOS, Ana Paula de. A
eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de
Janeiro: Renovar, 2002, p. 74). Cf., ainda: GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição
Federal de 1988, cit., p. 80-82; SILVA, Virgílio Afonso da. Interpretação constitucional e sincretismo
metodológico. In: SILVA, Virgílio Afonso da (org.). Interpretação constitucional. São Paulo: Malheiros,
2005, p. 123.

8
irradiante sobre os demais preceitos que compõe a Constituição 21 , inclusive sobre
aqueles especificamente relacionados à segurança pública. Por essa razão, apenas as
políticas de segurança pública alicerçadas em concepções democráticas, comprometidas
com a observância efetiva desses princípios, são compatíveis com a Constituição
Federal.

II. 2. A segurança como direito fundamental, o princípio republicano e a exigência


de universalização

A segurança pública é um serviço público que deve ser


universalizado de maneira igual. Ademais de resultar dos princípios fundamentais acima
mencionados, é a compreensão extraída do fato de o caput do art. 144 afirmar que a
segurança pública é “dever do estado” e “direito de todos”. Desde o contratualismo dos
séculos XVII e XVIII, preservar a “ordem pública” e a “incolumidade das pessoas e do
patrimônio” é a função primordial que justifica a própria instituição do poder estatal. Na
Era Moderna, a segurança era o elemento mais básico de legitimação do Estado, o
mínimo que se esperava da política. Na retórica novecentista do laissez faire, a
segurança chegava a ser concebida como a única função do estado “guarda-noturno”. O
estado social não só mantém a preocupação central com a segurança, como amplia o seu
escopo, concebendo-a como “segurança social” contra os infortúnios da economia de
mercado 22 .

O art. 5º da Constituição Federal, em seu caput, eleva a segurança


à condição de direito fundamental. Como os demais, tal direito deve ser universalizado

21
Cf. BARROSO, Luís Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. O começo da história. A nova
interpretação constitucional e o papel dos princípios no Direito brasileiro. In: BARROSO, Luís Roberto
(org.). A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de
Janeiro: Renovar, 2003, p. 368. No interior do sistema de direitos fundamentais, há a necessidade de se
proceder a uma “interpretação conforme a dignidade humana”. Cf.: SARLET, Ingo Wolfgang. Algumas
notas em torno da relação entre o princípio da dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais na
ordem jurídica constitucional brasileira. In: LEITE, George Salomão (org.). Dos princípios
constitucionais: considerações em torno das normas principiológicas da Constituição. São Paulo:
Malheiros, 2003, p. 199. Cf. também: SARLET, Ingo. Dignidade da pessoa humana e direitos
fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. p. 85 ss.
22
O neoliberalismo, relativamente à segurança, empreende um duplo movimento. De um lado, dissolve as
conquistas do estado social quanto à segurança social. De outro lado, hipertrofia o controle penal, como
mecanismo de contenção dos excluídos. Daí a percepção de que o estado social transita para o estado
penal. Cf. WACQUANT, Loïc. A ascensão do Estado penal nos EUA. Discursos Sediciosos: Crime,
Direito e Sociedade, n. 11, 2002.

9
de maneira igual: não pode deixar de ser prestado à parcela mais pobre da população, ou
prestado de modo seletivo. Além de ser decorrência da titularidade veiculada no caput
do art. 144 (“a segurança [...] direito de todos”) e de sua jusfundamentalidade, a
exigência da universalização igual da segurança pública, da não seletividade, decorre
ainda do princípio republicano. Em uma república, o Estado é res pública, coisa
pública. Por isso, a Administração, em que se incluem os órgãos policiais, deve tratar a
todos os administrados com impessoalidade, i.e., de maneira objetiva e imparcial23 . O
administrador não pode conceder benefícios ou onerar os administrados tendo em vista
seus preconceitos e preferências; não pode estabelecer distinções que adotem como
critério a classe social, a cor da pele ou o local de moradia (CF, art. 3º, IV).24 O
programa constitucional nos impõe a superação da tendência atual de se conceber parte
da população como a que merece proteção – as classes médias e altas – e parte como a
que deve ser reprimida – os excluídos, os negros, os habitantes das favelas25 .

O tema da universalização igual da segurança pública foi


enfrentado pelo STF ao examinar uma questão específica de direito tributário. O STF
tem entendido não ser válida a cobrança de “taxa de segurança pública”. A taxa é um
tipo de tributo que só pode ser exigido em razão do “exercício do poder de polícia”26 e

23
No âmbito infraconstitucional, a noção de imparcialidade está expressamente prevista na Lei 8.429/92,
cujo art. 11 determina: “Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da
administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade,
legalidade, e lealdade às instituições (...)”. No constitucionalismo estrangeiro, a “imparcialidade”, ao
invés da “impessoalidade”, é utilizada, dentre outras, pela Constituição Portuguesa, cujo art. 266, 2,
determina: “Os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem actuar,
no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da
justiça, da imparcialidade e da boa-fé”. A imp arcialidade aparece ainda na Constituição Italiana (art. 97):
“As administrações públicas são organizadas segundo as disposições legais, de modo que sejam
assegurados o bom andamento e a imparcialidade da administração”. Na literatura jurídica brasileira, cf.:
ÁVILA, Ana Paula Oliveira. O princípio da impessoalidade da Administração pública: para uma
Administração imparcial. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 107 ss.
24
Os atos administrativos que violam a imparcialidade são atos nulos. A dogmática especializada há
muito trata do tema, e tradicionalmente caracteriza a violação da imparcialidade como hipótese de desvio
de finalidade. Cf. Lei nº 4.717/65, art. 2º, alínea “e”. A vinculação dos atos administrativos ao interesse
público não significa, obviamente, que a Administração pública não possa atender aos interesses privados
dos administrados. Pode fazê-lo. Deve apenas, quando acolhe demandas individuais, agir de acordo com
padrões objetivos e imparciais, aplicáveis a todos que se encontrem nas mesmas condições. Nessas
hipóteses, o interesse público estará justamente no atendimento às pretensões particulares.
25
Cf. SIQUEIRA CASTRO, Carlos Roberto. A Constituição aberta e os direitos fundamentais. Rio de
Janeiro: Forense, 2003. p. 266.
26
A referência a “poder de polícia” contida no preceito constitucional tributário tem um sentido diferente
do que recebe no contexto das políticas de segurança pública. Poder de polícia é conceito básico do
direito administrativo: traduz a noção de que a administração pública tem a faculdade de restringir a
liberdade dos particulares com a finalidade de realizar o interesse público. Quando a liberdade do

10
da prestação de “serviço público específico e divisível” (CF, art. 145, I) 27 . A instituição
de taxa faz com que a tributação incida mais intensamente sobre os particulares que
efetivamente demandam a atuação governamental. Mas a segurança pública não é um
serviço público que possua beneficiários juridicamente individualizáveis e que possa ser
compartimentada de tal modo que se identifique em que medida cada cidadão se
beneficia. O STF tem entendido que, tanto por sua natureza quanto por imposição
constitucional (“a segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de
todos [...]”), se trata de serviço público inespecífico e indivisível, devendo, por essa
razão, ser mantido através de impostos, não de taxas 28 . A compreensão inversa
legitimaria a prestação do serviço em diferente quantidade ou qualidade conforme a
capacidade econômica do contribuinte – o que seria inadmissível, já que uma
distribuição formalmente igual da segurança é talvez o elemento primordial de
legitimação do estado moderno.

Isso não impede, contudo, que sejam constituídas empresas


especializadas na prestação de serviço de segurança privada29 . De acordo com o art. 10

particular é limitada pela administração pública – quando, por exemplo, o particular se submete às normas
estabelecidas pela vigilância sanitária –, tem lugar a ocorrência do fato gerador de uma taxa. De acordo
com o art. 78 do Código Tributário Nacional, “considera-se poder de polícia atividade da administração
pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou
abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos
costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de
concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos
direitos individuais ou coletivos”. Não é só isso que ocorre quando o Estado cria estruturas
administrativas para preservar a ordem pública e a incolumidade das pessoas e do patrimô nio, isto é, para
prover “segurança pública”. O que há, no contexto particular ora examinado, é a prestação de um serviço
público. Mas não de um serviço público específico e divisível, como o fornecimento de água ou luz, cuja
prestação também é fato gerador de taxa.
27
De acordo com o art. 77 do Código Tributário Nacional, “as taxas (...) têm como fato gerador o
exercício regular do poder de polícia, ou a utilização, efetiva ou potencial, de serviço público específico e
divisível, prestado ao contribuinte ou posto à sua disposição”. Segundo o art. 79, “os serviços públicos a
que se refere o art. 77 consideram-se: I – utilizados pelo contribuinte: a) efetivamente, quando por ele
usufruídos a qualquer título; b) potencialmente, quando, sendo de utilização compulsória, sejam postos à
sua disposição mediante atividade administrativa em efetivo funcionamento; II – específicos, quando
possam ser destacados em unidades autônomas de intervenção, de unidade, ou de necessidades públicas;
III – divisíveis, quando suscetíveis de utilização, separadamente, por parte de cada um dos seus usuários”.
28
STF, DJU 20 mai. 2005, Rcl-AgR nº 2.617, Rel. Min. Cezar Peluso; DJU 18 jun. 2004, ADI nº 2.424,
Rel. Min. Gilmar Mendes; e DJU 22 out. 1999, ADI-MC nº 1.942, Rel. Min. Moreira A lves.
29
Em alguns casos, o STF vem entendendo, até mesmo, ser responsabilidade do particular prover a
segurança. É o que ocorre com os estabelecimentos bancários, cuja função fundamental é justamente
garantir a segurança do patrimônio dos correntistas. De acordo com o STF, “pelo fato de a segurança
pública ser dever do Estado, isso não quer dizer que a ocorrência de qualquer crime acarrete a
responsabilidade objetiva dele, máxime quando a realização deste é propiciada, como no caso entendeu o
acórdão recorrido, pela ocorrência de culpa do estabelecimento bancário, o que, conseqüentemente,
ensejou a responsabilidade deste com base no artigo 159 do Código Civil” (STF, j. 19 out. 1999, AI-AgR

11
da Lei nº 7.102/83, com a redação dada pela Lei nº 8.863/94, consideram-se serviços de
segurança privada “proceder à vigilância patrimonial das instituições financeiras e de
outros estabelecimentos, públicos ou privados, bem como a segurança de pessoas
físicas” e “realizar o transporte de valores ou garantir o transporte de qualquer outro tipo
de carga”30 . Tais atividades devem, contudo, se circunscrever à prestação do serviço de
segurança privada, que não se confunde com o estabelecimento de associação de caráter
paramilitar. A hipótese é expressamente vedada pela Constituição Federal, que, ao
garantir a “plena liberdade de associação”, proscreve a de “caráter paramilitar” (art. 5º,
XVII), e determina constituir “crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos
armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático” (art.
5º, XLIV). A Constituição brasileira é, portanto, incompatível com a criação de milícias
urbanas ou rurais, como vem ocorrendo em diversas localidades brasileiras, em que
grupos armados se constituem, seja para dar suporte à grilagem, seja para extorquir
moradores de favelas, sob o pretexto de protegê- los.

II.3. Lei e ordem pública

No caput do art. 144, a Constituição determina que as políticas de


segurança se destinem à “preservação da ordem pública” e à “incolumidade das pessoas
e do patrimônio”. É natural que essa seja a tarefa fundamental do serviço público de
segurança prestado ao cidadão. No entanto, o uso da noção de “ordem pública” – que é
um conceito jurídico indeterminado 31 – abre-se a diferentes apropriações, democráticas
e autoritárias, comprometidas ou não com o respeito ao estado democrático de direito e
com a preservação da legalidade.

nº 239.107, Rel. Min. Moreira Alves). Não é por outra razão que a lei veda “o funcionamento de qualquer
estabelecimento financeiro onde haja guarda de valores ou movimentação de numerário, que não possua
sistema de segurança” (art. 1º da Lei nº 7.102/83).
30
No âmbito federal, cf. ainda Lei nº 9.017/95; Decreto nº 89.056/83; Decreto nº 1.592/95; Portaria do
Departamento de Polícia Federal nº 292/1995; Portaria do Departamento de Polícia Federal nº 1.129/95;
Portaria do Departamento de Polícia Federal nº 387/2006.
31
Cf. BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p.
212: “Com efeito, as normas jurídicas podem trazer, em seu enunciado, conceitos objetivos (idade, sexo,
hora, lugar), que não geram dúvidas quanto à extensão de seu alcance; conceitos cujo conteúdo é
decifrável objetivamente, com recurso à experiência comum ou a conhecimentos científicos (chuva de
granizo, morte natural, tráfego lento); e finalmente, conceitos que requerem do intérprete da norma uma
valoração (interesse público, urgência, bons antecedentes, notório saber, reputação ilibada, notória
especialização). Estes últimos integram o que se entende por conceitos jurídicos indeterminados, cujo
processo de aplicação causa dúvidas e controvérsias, propugnando-se ora por um controle jurisdicional
amplo, ora um controle limitado, dependendo de sua associação ou dissociação da discricionariedade”.

12
A noção de ordem pública já esteve no cerne dos discursos de
legitimação das ditaduras. Para o pensamento autoritário, o fundamental é que tenha
lugar uma decisão política capaz de estabelecer a ordem, de substituir o dissenso
político pela adesão, ainda que imposta pela força, a um determinado conjunto de
valores, subtraídos à esfera das divergências 32 . Se a ordem está em confronto com a lei,
a opção dos autoritários é sempre pela ordem33 . Legitimidade e legalidade são
concebidas como eventualmente antagônicas, não como dimensões vinculadas de um
mesmo arcabouço jurídico- institucio nal: mais importante que preservar a lei é manter a
ordem, ditada pela vontade de quem teve força para tomar a decisão soberana 34 .

Essa orientação não é estranha à cultura das instituições policiais


brasileiras. A lei é muitas vezes entendida como um entrave à garantia da ordem
pública; e os direitos humanos, como obstáculos à atuação eficiente das autoridades
policiais. Em pesquisa realizada pela Fundação João Pinheiro, da UFMG, foram
entrevistados oficiais e praças que atuam em Belo Horizonte: 41,9% dos oficiais e
67,9% dos praças “concordaram totalmente” com a afirmação de que “o policial militar,
hoje, encontra-se impossibilitado de realizar bem o seu trabalho, já que existem muitas
leis que garantem direitos aos criminosos”35 . A partir dessa cultura ins titucional, a
função das polícias é freqüentemente entendida como a de manter a ordem, não a de
preservar a lei. Legitimam-se, então, ações policiais truculentas, torturas e prisões
arbitrárias. Em regra, essas práticas se articulam com um olhar seletivo, que constitui

32
No ambiente de radicalização que caracterizou a década de 30, alguns juristas, afinados com a
contenção do pluralismo, lançaram mão dessa construção. No Brasil, foi o caso de Francisco Campos. Em
texto de 1935, de nítido corte fascista, o autor observa que “as decisões políticas fundamentais são
declaradas tabu e integralmente subtraídas ao princípio da livre discussão”. (CAMPOS, Francisco. A
política e o nosso tempo. In: Id. O estado nacional. Brasília: Senado Federal, 2001. p. 28).
33
Essa concepção foi especialmente desenvolvida por Carl Schmitt, para o qual a Constituição (aquilo
que o autor denomina “Constituição em sentido positivo”) deve ser definida como a “decisão política
fundamental” do poder constituinte. Em face dela, “todas as regulações normativas” seriam
“secundárias”; não se confundiria, conseqüentemente, com um conjunto de “leis constitucionais”. (Teoría
de la constitución. Madrid: Alianza, 1996. p. 45 ss.). É especialmente nos contextos de exceção que a
“decisão política fundamental” aflora sobre as “leis constitucionais” (Ibid., p. 50).
34
Cf. SCHMITT, Carl. Political theology: four chapters on the concept of sovereignty. Cambridge,
Mass.; London: The MIT Press, 1988.
35
Os dados foram colhidos em pesquisa da Fundação João Pinheiro, concluída em 2001, e são
reproduzidos em: SAPORI, Luís Flávio. Os desafios da polícia brasileira na implementação da ‘ordem
sob a lei’. In: RATTON, José Luiz; BARROS, Marcelo (coords.). Polícia, democracia e sociedade. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 126.

13
“inimigos da ordem”. O papel geralmente recai sobre os excluídos, em especial sobre os
negros e os moradores de favelas, que figuram como alvo principal da persecução
criminal. Trata-se da conhecida “reação em cadeia da exclusão social” 36 , que atinge
parte considerável da população brasileira, reduzida à condição de “subcidadania”. 37

Uma ordem pública democrática, em contraste, é aquela


estruturada pela Constituição e pelas leis. Preservar a ordem pública significa,
sobretudo, preservar o direito, a ordem juridicamente estruturada, garantir a legalidade.
Políticas públicas e ações policiais que desconsiderem os direitos fundamentais
transgridem, até não mais poder, a própria ordem pública que pretendem preservar. A
democracia política depende do exercício do poder em conformidade com o direito. Não
é difícil constatar que apenas essa orientação é compatível com a Constituição Federal
de 1988, e que, por essa razão, grande parte das políticas de segurança praticadas nas
últimas duas décadas está em confronto, aberto ou velado, com a presente ordem
constitucional.

O tema da vinculação dos órgãos policiais à legalidade pode ser


apresentado ainda como problema de “desenho institucional”. Hoje, observa-se, em
diversos ramos do direito, progressiva flexibilização da legalidade. Tradicionalmente,
entendia-se que a Administração Pública estaria vinculada positivamente à lei: só
poderia agir quando o legislador assim determinasse 38 . Atualmente, propõe-se que o
administrador não mais se vincule estritamente à lei, mas ao direito, que também é
composto por princípios 39 . Se houver um princípio constitucional que dê fundamento ao

36
MÜLLER, Friedrich. Que grau de exclusão social ainda pode ser tolerado por um sistema democrático?
Revista da Procuradoria-Geral do Município de Porto Alegre, ed. especial, outubro de 2000.
37
SOUZA, Jessé. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade
periférica. Belo Horizonte: UFMG, 2003; SIQUEIRA CASTRO, Carlos Roberto. A Constituição aberta e
os direitos fundamentais, cit., p. 273.
38
O tema é enfrentado no seguinte aresto: “O ato administrativo, no Estado Democrático de Direito, está
subordinado ao princípio da legalidade (CF/88, arts. 5º, II, 37, caput, 84, IV), o que equivale assentar que
a Administração só pode atuar de acordo com o que a lei determina. Desta sorte, ao expedir um ato que
tem por finalidade regulamentar a lei (decreto, regulamento, instrução, portaria, etc.), não pode a
Administração inovar na ordem jurídica, impondo obrigações ou limitações a direitos de terceiros” (STJ,
DJU 6 dez. 2004, REsp nº 584.798, Rel. Min. Luiz Fux).
39
A Lei nº 9784/99, que regula o processo administrativo no âmbito da União, já incorpora, no art. 2º,
parágrafo único, inciso I, essa referência à vinculação à lei e ao direito: “Nos processos administrativos
serão observados, entre outros, os critérios de: I - atuação conforme a lei e o Direito”. Essa nova
tendência, ainda não consolidada, caracterizou, por exemplo, um dos primeiros atos de grande
repercussão editados pelo Conselho Nacional de Justiça. Refiro-me à Resolução nº 7, de 18 de outubro de

14
ato administrativo, este será considerado válido, mesmo que não se baseie em uma
norma legal. Semelhante tem ocorrido com os juízes. O juiz do passado deveria aplicar
a lei. O juiz de hoje também está autorizado a aplicar princípios e a ponderar as
conseqüências concretas de suas decisões 40 . No que toca às autoridades policiais, esse é
um problema de desenho institucional porque lhes imputar um ou outro papel depende
de uma decisão política, assentada em uma avaliação do contexto em que as instituições
se inserem41 . No contexto presente, de violação continuada dos direitos humanos e da
moralidade administrativa, não há dúvida de que a melhor alternativa é restringir a
atuação policial aos procedimentos expressamente autorizados pelos textos legais 42 .

2005, a qual, com vistas à concretização dos princípios da moralidade e da impessoalidade, consagrados
no art. 37, caput, da Constituição, proscreveu, no âmbito do Poder Judiciário, a prática do nepotismo, e
definiu quais condutas podem ser assim classificadas. A questão já foi submetida ao Supremo Tribunal
Federal, que confirmou a possibilidade (STF, Informativo STF 416, ADC-MC nº 12, Rel. Min. Carlos
Britto). Na doutrina, cf. BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo, cit.; ARAGAO,
Alexandre Santos de. Legalidade e regulamentos administrativos no Direito Contemporâneo (uma analise
doutrinaria e jurisprudencial). Revista Forense, v. 99, n. 368, jul.-ago. 2003.
40
Cf., p. ex.: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. A interpretação constitucional contemporânea entre o
construtivismo e o pragmatismo. In: MAIA, Antônio Cavalcanti; MELO, Carolina de Campos;
CITTADINO, Gisele; POGREBINSCHI, Thamy (orgs.). Perspectivas atuais da filosofia do direito. Rio
de Janeiro: Renovar, 2005.
41
Cf. STRUCHINER, Noel. Para falar de regras: o positivismo conceitual como cenário para uma
investigação filosófica acerca dos casos difíceis do direito (Tese de Doutorado). Rio de Janeiro : PUC-
Rio, Departamento de Filosofia, 2005. p. 165: “Não existe nenhum motivo para acreditar que o modelo
formalista é o modelo mais adequado para todas as esferas ou ambientes de tomada de decisões jurídicas.
É possível, por exemplo, que uma sociedade não queira que os policiais tenham a capacidade de deliberar
acerca das justificativas subjacentes às regras em cada momento de aplicação das mesmas, porque não
teriam condições de entender as razões que explicam a sua existência, ou porque, em função do cargo que
ocupam, não teriam a isenção necessária para avaliar essas razões. Por outro lado, é possível que a mesma
sociedade confie amplamente nos juízes das cortes superiores. Nesse caso, a existência de um modelo
particularista seria mais adequada. O ponto é que a escolha por um ou outro modelo é contextual. A
escolha por um modelo de regras, isto é, um modelo acontextual (que não avalia todos os aspectos do
contexto, mas apenas os fatores previamente estabelecidos e destacados como relevantes pelas regras) é
em si mesma uma escolha feita contextualmente e depende principalmente do grau de confiança que
existe em relação aos responsáveis pela tomada de decisões”.
42
Não foi outra a percepção que inspirou o ato constituinte, ao positivar, com status jusfundamental, uma
série de direitos e garantias especialmente dirigidos à limitação da persecução criminal. No art. 5º, a
Constituição caracterizou a casa como “asilo inviolável do indivíduo”; instituiu a inviolabilidade do
“sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas”;
caracterizou a prática da tortura como crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia; assegurou aos
presos o “respeito à integridade física e moral”; estabeleceu que ninguém deve ser “processado nem
sentenciado senão pela autoridade competente”; proscreveu a utilização das provas ilícitas; instituiu a
impossibilidade de alguém ser preso “senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de
autoridade judiciária competente”; determinou a comunicação imediata da prisão de qualquer pessoa, bem
como o local onde se encontre, ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada;
assegurou ao preso a prerrogativa de permanecer calado, bem como de contar com a assistência da família
e de advogado; atribuiu-lhe o direito à identificação dos responsáveis por sua prisão ou por seu
interrogatório policial; conferiu às autoridades judiciárias o dever de relaxar imediatamente as prisões
ilegais; determinou a impossibilidade da prisão “quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem
fiança”. Cf. CF, art. 5º, incisos XI, XII, XLIII, XLIX, LIII, LVI, LXI, LXII, LXIII, LXIV, LXV e LXVI.

15
Quando a Constituição Federal confere às autoridades policiais o
dever de preservar a ordem pública não está senão lhes incumbindo da função de manter
e promover a ordem republicana, assentada no respeito à legalidade e aos direitos
fundamentais. Mas, no Brasil, a exceção se converteu em norma, instaurando-se, de
fato, um “estado de exceção permanente”43 . Parte do território não está submetida ao
estado de direito, e parte da população tem suas liberdades correntemente
desrespeitadas. A efetivação da Constituição demanda que se institua aqui a “exceção
da exceção”44 , que se supere a “ilegalidade normal” das políticas de segurança e se
universalizem as garantias do estado democrático de direito.

II.4. Limites e possibilidades do controle jurisdicional das políticas públicas de


segurança

Tradicionalmente, a interferência jurisdicional na execução de


ações de segurança tem se concentrado na reparação de danos provocados a
particulares45 . Se o policial se excede na execução de suas tarefas, se viola direitos
fundamentais, ao fazer um uso desproporcional dos meios coercitivos de que dispõe46 ,

43
Sobre o conceito de estado de exceção permanente, cf. ACKERMAN, Bruce. The emergency
constitution, cit.; BERCOVICI, Gilberto. Constituição e estado de exceção permanente: atualidade de
Weimar. São Paulo: Azougue, 2004; SANFORD, Levinson. Preserving constitutional norms in times of
permanent emergencies. Constellations, vol. 13, n. 1, 2006.
44
Cf. BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história (Tese 8). In Obras escolhidas. vol. 1. São Paulo:
Brasiliense, 1994: “A tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção’ em que vivemos é a
regra. Precisamos construir um conceito de história que corresponda a essa verdade. Nesse momento,
perceberemos que nossa tarefa é instaurar o real estado de exceção; com isso, nossa posição ficará mais
forte na luta contra o fascismo.” Cf. BERCOVICI, Gilberto. Soberania e constituição: poder constituinte,
estado de exceção e os limites da teoria constitucional (Tese de titularidade). São Paulo: USP (Faculdade
de Direito), 2005. p. 317.
45
Há diversos tipos de controle das ações de segurança. Paulo Mesquita Neto identifica quatro estratégias
básicas. O primeiro tipo é o “controle externo e formal/legal”, que se dá através dos poderes Executivo,
Legislativo e Judiciário, especialmente do Ministério Público. Esta estratégia “visa a controlar
principalmente usos ilegais da força física por policiais”. O segundo tipo é o “controle interno e
formal/legal”, que é feito por meio da ação disciplinar dos superiores e das corregedorias de polícia. O
terceiro tipo é o “controle externo e informal/convencional das polícias”, que se verifica “através da
imprensa, da opinião pública, da universidade, de grupos de pressão, particularmente das organizações de
direitos humanos nacionais e estrangeiras”. Aqui têm especial importância os “conselhos comunitários”,
que possuem, como uma de suas funções principais, justamente controlar as ações de segurança. O quarto
tipo é o “controle interno e informal/convencional”, que se dá por meio da “profissionalização das
polícias e dos policiais”. (MESQUITA NETO, Paulo. Violência policial no Brasil: abordagens teóricas e
práticas de controle. In PANDOLFI, Dulce et al. [orgs.]. Cidadania, justiça e violência. Rio de Janeiro:
Fundação Getulio Vargas, 1999).
46
De acordo com o STJ, “o uso de algemas pela força policial deve ficar adstrito a garantir a efetividade
da operação e a segurança de todos os envolvidos”. No caso, contudo, o STJ entendeu que “demonstra-se
razoável o uso de algemas, mesmo inexistindo resistência à prisão, quando existir tumulto que o

16
além de ser pessoalmente responsabilizado, dará lugar ainda à responsabilização da
própria Administração Pública 47 . A ordem jurídica brasileira atribui ao Estado
responsabilidade objetiva48 . Os atos praticados pelo policial são considerados atos do
órgão a que está vinculado 49 , e podem, por isso, ser imputados à Administração, nada
obstante esta ostente, em relação àquele, direito de regresso.

A responsabilidade pode decorrer ainda da omissão estatal. Se o


Estado tem o dever de prestar o serviço, e não o faz, omitindo-se na prática de ações
concretas, deve ser responsabilizado. Contudo, o Judiciário tem sido bastante exigente
quanto à verificação de nexo causalidade entre a omissão estatal e o dano causado. O
STF entendeu, por exemplo, inexistir “nexo de causalidade entre o assalto e a omissão
da Autoridade pública que teria possibilitado a fuga de presidiário, o qual veio a integrar
a quadrilha que praticou o delito, cerca de vinte e um meses após a evasão”50 . Não se
pode, de fato, responsabilizar o Estado por todos os crimes que são praticados, sob o
argumento de que seu dever é evitar que isso ocorra 51 . Do contrário, ao invés de

justifique”. Por isso, resolveu afastar “a condenação da União por danos morais”. (STJ, DJU 10 nov.
2006, REsp nº 571.924, Rel. Min. Castro Meira).
47
STJ, DJU 3 jun. 2002, REsp nº 331.279, Rel. Min. Luiz Fux: “A perda precoce de um filho é de valor
inestimável, e portanto a indenização pelo dano moral deve ser estabelecida de forma equânime, apta a
ensejar indenização exemplar. Ilícito praticado pelos agentes do Estado incumbidos da Segurança
Pública”; STJ, DJU 17 nov. 2003, REsp nº 505.080, Rel. Min. Luiz Fux: “O ilícito foi praticado
justamente pelos agentes públicos – policiais militares – incumbidos de zelar pela segurança da
população, por isso, a fixação da indenização deve manter-se inalterada como meio apto a induzir o
Estado a exacerbar os seus meios de controle no acesso de pessoal, evitando que ingresse nos seus
quadros pessoal com personalidade deveras desvirtuada para a função indicada. A prática de ilícito por
agentes do Estado incumbidos da Segurança Pública impõe a exacerbação da condenação”.
48
Como se sabe, de acordo com o art. 37, §6º, da Constituição Federal, a Administração responderá
“pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso
contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”. Desse modo, a Administração pública será
responsabilizada pelo erro médico ocorrido no curso de procedimento executado por servidor em hospital
público (STF, DJU 21 dez. 2004, AI nº 455.846, Rel. Min. Celso de Mello); será responsabilizada
também pelos danos decorrentes de acidente de trânsito envolvendo veículo oficial. (STF, DJU 2 ago.
2002, RE-AgR nº 294.440, Rel. Min. Ilmar Galvão).
49
Cf.: SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 2001. p.
651. É por essa razão, por exemplo, que, em muitos casos, são reconhecidos como válidos os atos
praticados por agente irregularmente investido em função pública.
50
STF, DJU 12 nov. 1999, AR nº 1.376, Rel. Min. Gilmar Mendes, Rel. Min. Cezar Peluso.
51
Para uns, na responsabilidade por omissão, exige-se culpa do Estado. Não haveria responsabilidade
objetiva. Cf. p. ex.: BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. São
Paulo: Malheiros, 2002. p. 871. Para outros, também nas hipóteses de omissão, há responsabilidade
objetiva do Estado. Exige-se, contudo, que seja uma “omissão específica”. Não pode se tratar de “omissão
genérica”, hipótese em que a culpa deve necessariamente ser aferida. A tese é sustentada por: CASTRO,
Guilherme Couto e. A responsabilidade civil objetiva no direito brasileiro: o papel da culpa em seu
contexto. Rio de Janeiro: Forense, 1997. p. 37: “Há duas possibilidades: ou existe ato ilícito do ente
público e a indenização se justifica em razão da própria contrariedade à lei ou não existe e então seu

17
financiar políticas universalistas, os recursos públicos acabariam por se destinar apenas
à recomposição de danos individuais 52 .

Questão mais complicada diz respeito ao controle de políticas de


segurança pública, não apenas de uma ação concreta ou da norma que lhe dá
fundamento 53 . Hoje, a atuação judiciária no controle das políticas públicas se
intensifica54 , o que deve ocorrer também no campo das políticas de segurança. O
Judiciário pode controlar, p. ex., a juridicidade do treinamento adotado pelos órgãos
policiais ou dos procedimentos definidos nos manuais das corporações. Pode, ainda,
proscrever a utilização de certo tipo de veículo em incursões em áreas de grande
concentração populacional ou o uso de determinado tipo de arma ou munição. O
Judiciário deve fazê- lo em conformidade com uma concepção constitucionalmente
adequada da segurança pública, que se harmonize com os princípios constitucionais
fundamentais, de modo a impedir a execução de políticas inspiradas em concepções
bélicas e autoritárias.

fundamento está na razoável repartição do gravame pela coletividade, dentro de padrões civilizatórios que
devem ser buscados. Daí não ser correto dizer, sempre, que toda hipótese proveniente de omissão estatal
será encarada inevitavelmente pelo ângulo subjetivo. Assim o será quando se tratar de omissão genérica,
não quando houver omissão específica, pois aí há dever individualizado de agir”. Nesse sentido, cf., p.
ex., TJ-RS, j. 24 mar. 2006, EI nº 70.013.118.484, Rel. Des. Cláudio Baldino Maciel: “A
responsabilidade imputável às concessionárias de serviço público é objetiva, fundada na teoria do risco
administrativo, cuja previsão legal consta no art. 37, § 6º da Constituição Federal, sendo reproduzida no
art. 927, parágrafo único, do Código Civil de 2002. A aferição do dever indenizatório, neste caso,
prescinde da prova do comportamento culposo da ré, somente podendo aquele ser afastado ou minorado
ante a demonstração de que a vítima agiu com culpa exclusiva ou concorrente no evento danoso ou,
ainda, de que o dano decorreu de caso fortuito, força maior ou fato de terceiro. Incomprovadas tais
hipóteses, persiste o dever atribuível à concessionária diante da omissão específica quanto ao dever de
sinalização e de manutenção de equipamentos de segurança ao longo da via”.
52
Como acima ressaltado, a responsabilidade estatal deve ser especialmente afastada quando puder ser
atribuída a empresa especializada em segurança privada, como ocorre com os estabelecimentos bancários.
Cf. STF, j. 19 out. 1999, AI-AgR nº 239.107, Rel. Min. Moreira Alves.
53
Como esclarece Comparato, política pública “não é uma norma nem um ato, (...) ela se distingue
nitidamente dos elementos da realidade jurídica, sobre os quais os juristas desenvolveram a maior parte
de suas reflexões, desde os primórdios da jurisprudentia romana. (...) A política aparece, antes de tudo,
como uma atividade, isto é, um conjunto organizado de normas e atos tendentes à realização de um
objetivo determinado”. (COMPARATO, Fábio Konder. Ensaio sobre o juízo de constitucionalidade de
políticas públicas. In: BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio [org.]. Estudos em homenagem a
Geraldo Ataliba: direito administrativo e constitucional. São Paulo: Malheiros Editores, 1997. p. 352-
353).
54
Cf. ÁPPIO, E. Controle judicial das políticas públicas no Brasil. Curitiba: Juruá, 2005; BUCCI, M. P.
D. Direito administrativo e políticas públicas. São Paulo: Saraiva, 2002; COMPARATO, F. K. Ensaio
sobre o juízo de constitucionalidade de políticas públicas, cit.

18
Também no tocante às políticas públicas o controle jurisdicional
pode recair sobre a omissão estatal55 . O Judiciário já teve ocasião para decidir que o
Estado não pode deixar de executar determinadas políticas no setor da segurança. Foi o
que concluiu o TJ-RS, por exemplo, ao determinar que o Estado mantivesse programas
de internação para adolescentes infratores, incluindo no orçamento a verba necessária56 .
Contudo, no controle das omissões estatais, cabe ao Judiciário adotar especial cautela.
Para ponderar os diversos fatores envolvidos na formulação e na execução de políticas,
o Executivo é mais talhado que o Judiciário. Este se organiza para examinar casos
concretos e normas abstratas; aquele considera a ampla complexidade de fatores sociais
e econômicos que lhes são subjacentes 57 . Cabe ao Judiciário, sobretudo, observar o que
tradicionalmente se denomina “princípio da realidade”58 e “reserva do possível”59 . De

55
Em aresto sobre o direito à pré-escola, o STJ estabelece em que termos essa possibilidade pode se dar:
“Embora inquestionável que resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa
de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário, ainda que
em bases excepcionais, determinar, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela
própria Constituição, sejam estas implementadas, sempre que os órgãos estatais competentes, por
descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório, vierem a
comprometer, com a sua omissão, a eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais impregnados de
estatura constitucional”. (STJ, DJU 13 fev. 2006, REsp nº 718.203, Rel. Min. Luiz Fux).
56
Cf. TJ-RS, j. 17 out. 2007, AI nº 70.020.195.616, Rel. Des. Sérgio F. V. Chaves: “1. Cabe ao ente
municipal a responsabilidade pela implementação das políticas públicas de proteção a crianças e
adolescentes, entre as quais está o programa permanente de atendimento a adolescentes autores de atos
infracionais que devem cumprir medida socioeducativa em meio aberto. 2. A reiterada omissão do ente
municipal, que vem sendo chamado a cumprir com seu encargo, legitima a ação do Ministério Público de
postular ao Poder Judiciário a imposição dessas medidas. 3. É cabível a determinação de que a
administração pública municipal estabeleça, na sua previsão orçamentária, as verbas destinadas à
implementação e manutenção do referido programa de atendimento”.
57
Várias críticas têm sido formuladas à possibilidade de o Poder Judiciário atuar no controle de políticas
públicas. Afirma-se que o controle judicial de políticas públicas viola o princípio da separação de
poderes; viola o princípio democrático; desorganiza as políticas estabelecidas pela Administração; não é
capaz de mobilizar as informações técnicas necessárias; desconsidera os limites financeiros do Estado. O
tema é complexo e não poderá ser examinado neste momento. Cf. BARCELLOS, Ana Paula de.
Constitucionalização das políticas públicas em matéria de direitos fundamentais: o controle político-social
e o controle jurídico no espaço democrático. Revista de Direito do Estado, n. 3, 2006; GOUVÊA, Marcos
Maselli. O controle judicial das omissões administrativas. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2003.
58
Cf. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo. 10ª ed. Rio de Janeiro:
Forense, 1992. p. 63: “as normas jurídicas, da mesma maneira que não devem enveredar pela fantasia,
tampouco podem exigir o impossível; como ensina o brocardo, ‘ad impossibilia nemo tenetur’. (...) Sob o
padrão da ‘realidade’, os comandos da Administração, sejam abstratos ou concretos, devem ter sempre
condições objetivas de serem efetivamente cumpridos em favor da sociedade a que se destinam. O
sistema legal-administrativo não pode ser um repositório de determinações utópicas, irrealizáveis e
inatingíveis , mas um instrumento sério de modelagem da realidade dentro do possível”. Cf ainda STJ,
DJU 21 set. 1998, REsp nº 169.876, Rel. Min. José Delgado: “As atividades de realização de fatos
concretos pela Administração dependem de dotações orçamentárias prévias e do programa de prioridades
estabelecido pelo governante. Não cabe ao Poder Judiciário, portanto, determinar as obras que deve
edificar, mesmo que seja para proteger o meio ambiente”. Cf. TJ-RS, DJU 9 jun. 2004, AI nº
70.008.095.077, Rel. Des. Araken de Assis: “A realização de fatos concretos pela Administração, com a
finalidade de desviar o curso de águas pluviais, subordina-se à prévia previsão orçamentária, ou seja, ao
princípio da realidade, não cabendo ao órgão judiciário estabelecer prioridades e ordenar obras”.

19
fato, muitas vezes, não há recursos materiais disponíveis para a execução de
determinada política. A atuação judiciária, nesse campo, pode ter lugar, mas deve se dar
de maneira moderada e subsidiária às decisões do Executivo e do Legislativo 60 .

Observe-se um exemplo. Em determinada cidade, há um


contingente de policiais. O Governo Estadual resolve deslocá- lo para outra área. O
Ministério Público não concorda com a medida e ajuíza ação civil pública, suscitando o
princípio da vedação do retrocesso 61 . Uma vez que o direito fundamental à segurança já
havia sido concretizado, o Estado não mais poderia retroceder. O Judiciário defere o
pedido e determina a realocação dos policiais na cidade de origem. Esse tipo de
provimento jurisdicional pode, evidentemente, pôr em risco a racionalidade da ação
estatal. Trata-se de decisão que, se não estiver fundamentada em outros elementos que
não apenas o princípio da vedação do retrocesso, tende a impedir a distribuição racional
e equilibrada dos escassos recursos públicos. A circunstância de o direito à segurança já

59
De acordo com Canotilho, a “reserva do possível” faz com que a concretização da dimensão
prestacional dos direitos fundamentais se caracterize “1. pela gradualidade de sua realização; 2. pela
dependência financeira de recursos do Estado; 3. pela tendencial liberdade de conformação do legislador
quanto às políticas de realização destes direitos; 4. pela insuscetibilidade de controle jurisdicional dos
programas político-legislativos, a não ser quando estes se manifestem em clara contradição com as
normas constitucionais ou quando, manifestamente, suportem dimensões pouco razoáveis.”
(CANOTILHO, J. J. Gomes. Metodología ‘fuzzy’ y ‘camaleones normativos’ en la problemática actual
de los derechos económicos, sociales y culturales. Derechos y libertades – Revista del Instituto Bartolomé
de las Casas, n. 6, fev., 1998. p. 44). Cf. ainda: TORRES, Ricardo Lobo. O mínimo existencial, os
direitos sociais e a reserva do possível. In: NUNES, António José Avelãs; COUTINHO, Jacinto Nelson
de Miranda (orgs.). Diálogos constitucionais: Brasil-Portugal. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.
60
Há exemplo no Estado do Paraná de controle da omissão estatal na execução de políticas de segurança.
Constam, de ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Estadual (Promotor Denis Pestana), os
seguintes pedidos: “destinar o necessário para a reforma da Cadeia Pública local, segundo normas de
segurança e compatíveis com os artigos 88 e 120, da Lei de Execução Penal”; “destinar e manter no
exercício de suas funções, nos Municípios de Sabáudia e Arapongas, Delegados, agentes, investigadores,
escrivães, devidamente concursados junto a Administração Pública do Estado”; “destinar e manter, no
exercício de suas funções nos Municípios de Sabáudia e Arapongas, número suficiente de policiais
militares, além dos já existentes”; ”destinar e manter, aos Policiais Militares, no exercício de suas funções
nos Municípios referidos, armas em perfeitas condições de utilização e munição em quantidade
suficiente”; “tomar as providências legais, em matéria administrativa e em matéria orçamentária, para
cumprimento desta pretendida decisão judicial, imediatamente após seu trânsito em julgado”; “nos
Municípios de Sabáudia e Arapongas, nesta Comarca, destinem exclusivamente ao exercício das funções
policiais, pessoas devidamente concursadas, impedindo nomeações de suplentes e ad hoc para qualquer
atividade policial”. (A petição inicial pode ser encontrada em: http://jus2.uol.com.br).
61
Cf. MENDONÇA, José Vicente S. de. A vedação do retrocesso: o que é e como perder o medo. Revista
de Direito da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro, v. XII, 2003; SARLET,
Ingo W. Direitos fundamentais sociais e proibição do retrocesso: algumas notas sobre o desafio da
sobrevivência dos direitos sociais num contexto de crise. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica,
n. 2, 2004; SCHULTE, Bernd. Direitos fundamentais, segurança social e proibição do retrocesso. In:
SARLET, Ingo W. (org.). Direitos fundamentais sociais: estudos de direito constitucional, internacional e
comparado. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

20
ter sido concretizado em determinado local não significa que deva continuar a sê- lo se
há outros lugares em que a prestação do serviço seja mais urgente ou necessária. No
controle das omissões legislativas e do retrocesso na execução de políticas de
segurança, apenas em hipóteses extremas justifica-se a interferência jurisdicional.

Há ainda uma última distinção indispensável. Ao julgar casos


concretos, no âmbito criminal, “o compromisso do Poder Judiciário é com um
julgamento ético e justo ao jurisdicionado e não com políticas públicas de segurança”62 .
Quando se defende a possibilidade do controle jurisdicional das políticas de segurança,
não se está sustentando que o juiz criminal deva julgar casos concretos considerando as
políticas estatais para o setor. Restringir a liberdade individual, na sua dimensão mais
nuclear, com o objetivo de garantir a execução de políticas de segurança significaria
relativizar o valor do ser humano, convertê- lo em meio para a promoção de metas
coletivas. Isso corresponderia a adotar pressupostos utilitaristas incompatíveis com a
dignidade da pessoa humana, que não podem predominar em um estado democrático de
direito 63 .

III. Classificação das atividades policiais e órgãos de execução das políticas de


segurança pública

III.1. Classificação constitucional da atividade policial: polícia ostensiva, polícia de


investigação, polícia judiciária, polícia de fronteiras, polícia marítima e polícia
aeroportuária

O texto constitucional de 1988 faz referência a seis modalidades


de atividade policial: (a) polícia ostensiva, (b) polícia de investigação, (c) polícia
judiciária, (d) polícia de fronteiras, (e) polícia marítima e (f) polícia aeroportuária.

62
TJ-RS, DJ 18 out. 2005, Agr. nº 70.012.527.008, Rel. Des. Amilton Bueno de Carvalho.
63
Esta demanda que a pessoa humana seja tratada como um fim em si mesmo, e nunca como meio para a
promoção de finalidades de outrem. Sobre a versão kantiana da dignidade da pessoa humana, cf.
SARMENTO, Daniel. Interesses públicos vs. interesses privados na perspectiva da teoria e da filosofia
constitucional. In: SARMENTO, Daniel (org.). Interesses públicos versus interesses privados:
desconstruindo o princípio da supremacia do interesse público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005;
SARLET, Ingo W. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2002.

21
(a) A polícia ostensiva exerce as funções de prevenir e de reprimir
de forma imediata a prática de delitos. O policiamento ostensivo é feito por policiais
uniformizados, ou que possam ser imediatamente identificados por equipamento ou
viatura 64 . O objetivo é explicitar a presença policial nas ruas, criando a percepção de
que a prática de delitos será prontamente reprimida – o que exerceria efeito preventivo.
A atividade de polícia ostensiva é desempenhada, em geral, pelas polícias militares
estaduais (CF, art. 144, §5º) 65 . Mas o patrulhamento ostensivo das rodovias e ferrovias
federais deve ser realizado, respectivamente, pela Polícia Rodoviária Federal (art. 144,
§2º) e pela Polícia Ferroviária Federal (art. 144, §3º). Observe-se, portanto, que o
policiamento ostensivo não é exercido apenas por órgãos policiais militares. A Polícia
Rodoviária Federal é civil, nada obstante também atue uniformizada. Assim também
ocorrerá, quando da sua instituição efetiva, com a Polícia Ferroviária Federal.

(b) A polícia de investigação realiza o trabalho de investigação


criminal66 . Para investigar a prática de delitos, pode ouvir testemunhas, requisitar
documentos, realizar perícias, interceptar comunicações telefônicas, entre outras
medidas. Em sua maioria, tais medidas dependem de autorização judicial. No Brasil, a
função é confiada às polícias civis estaduais e à Polícia Federal, no que toca aos crimes
comuns (art. 144, §1º, I, e §4º). As investigações de crimes militares são conduzidas
pelas próprias corporações. Em qualquer hipótese, devem ser respeitados os direitos

64
De acordo com o art. 2º, nº 27, do Decreto nº 88.777/83, que aprova o regulamento para as polícias
militares e corpos de bombeiros militares (R-200), “Policiamento Ostensivo” pode ser definido como a
“ação policial, exclusiva das Polícias Militares em cujo emprego o homem ou a fração de tropa engajados
sejam identificados de relance, quer pela farda quer pelo equipamento, ou viatura, objetivando a
manutenção da ordem pública. São tipos desse policiamento, a cargo das Polícias Militares ressalvadas as
missões peculiares das Forças Armadas, os seguintes: ostensivo geral, urbano e rural; de trânsito; florestal
e de mananciais; rodoviária e ferroviário, nas estradas estaduais; portuário; fluvial e lacustre; de
radiopatrulha terrestre e aérea; de segurança externa dos estabelecimentos penais do Estado; outros,
fixados em legislação da Unidade Federativa, ouvido o Estado-Maior do Exército através da Inspetoria-
Geral das Polícias Militares”. Cf. também: v. HAGEN, Acácia Maduro. As classificações do trabalho
policial. Revista de Estudos Criminais, vol. 6, n. 22, abr./jun. 2006.
65
É comum atribuir-se também às polícias militares estaduais a função de polícia de choque, que é
empregada no controle de distúrbios e rebeliões. Em regra, as polícias militares possuem batalhões
específicos encarregados dessa tarefa, que atuam em grandes eventos, em apoio aos batalhões locais. Tal
atividade se subsume à hipótese prevista pelo §5º do art. 144. Segundo o preceito, cabe às polícias
militares, além do policiamento ostensivo, também a preservação da ordem pública.
66
Cf. COSTA, Paula Bajer Fernandes Martins da. Sobre a posição da polícia judiciária na estrutura do
direito processual penal brasileiro da atualidade. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 7, n. 26,
abr./jun. 1999; HAGEN, Acácia Maduro. As classificações do trabalho policial, cit.

22
fundamentais do investigado 67 , facultando-se, inclusive, o acesso aos autos do inquérito
a seu representante legal68 .

(c) O texto constitucional distingue as funções de polícia


judiciária e de investigação criminal. O já mencionado §1º do art. 144 atribui às polícias
civis estaduais não só a função de “polícia judiciária”, mas também a de “apuração de
infrações penais”. Em relação à Polícia Federal, a Constituição chega a prevê- las em
preceitos distintos. No inciso I do §4º, encarrega a PF de “apurar infrações penais”. Já
no inciso IV, confere- lhe, “com exclusividade, as funções de polícia judiciária da
União”. Cabe- lhes, portanto, além de investigar delitos, executar as diligências
solicitadas pelos órgãos judiciais 69 .

(d) A polícia de fronteiras controla a entrada e a saída de pessoas


e mercadorias do território nacional. A tarefa é atribuída à Polícia Federal. Compete- lhe,
genericamente, “exercer as funções de polícia (...) de fronteiras” (art. 144, §1º, III), e,
em especial, “prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o
contrabando e o descaminho” (art. 144, §1º, II). No que se refere ao tráfico de
entorpecentes, a Polícia Federal concentra-se na repressão ao que opera através das

67
O artigo 1º da Lei nº 9.455/97 define como crime de tortura “I - constranger alguém com emprego de
violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental: a) com o fim de obter informação,
declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa; b) para provocar ação ou omissão de natureza
criminosa; c) em razão de discriminação racial ou religiosa; II - submeter alguém, sob sua guarda, poder
ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como
forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo”.
68
Cf. STF, DJU 2 mar. 2007, HC nº 90.232, Rel. Min. Sepúlveda Pertence: “Do plexo de direitos dos
quais é titular o indiciado – interessado primário no procedimento administrativo do inquérito policial –, é
corolário e instrumento a prerrogativa do advogado de acesso aos autos respectivos, explicitamente
outorgada pelo Estatuto da Advocacia (L. 8.906/94, art. 7º, XIV), da qual – ao contrário do que previu em
hipóteses assemelhadas – não se excluíram os inquéritos que correm em sigilo: a irrestrita amplitude do
preceito legal resolve em favor da prerrogativa do defensor o eventual conflito dela com os interesses do
sigilo das investigações, de modo a fazer impertinente o apelo ao princípio da proporcionalidade. 3. A
oponibilidade ao defensor constituído esvaziaria uma garantia constitucional do indiciado (CF, art. 5º,
LXIII), que lhe assegura, quando preso, e pelo menos lhe faculta, quando solto, a assistência técnica do
advogado, que este não lhe poderá prestar se lhe é sonegado o acesso aos autos do inquérito sobre o
objeto do qual haja o investigado de prestar declarações. (...)”. Na doutrina, cf. QUITO, Carina; MALAN,
Diogo Rudge. Resolução CJF n. 507/06 e direitos fundamentais do investigado. Boletim IBCCrim, v. 14,
n. 165, ago. 2006; TORON, Alberto Zacharias; RIBEIRO, Maurides de Melo. Quem tem medo da
publicidade no inquérito? Boletim IBCCrim, v. 7, n. 84, nov. 1999.
69
Cf. COSTA, Paula Bajer Fernandes Martins da. Sobre a posição da polícia judiciária..., cit.

23
fronteiras do País: o tráfico internacional70 . O contrabando e o descaminho, como se
sabe, caracterizam-se pelas ações de “importar ou exportar mercadoria proibida ou
iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela
saída ou pelo consumo de mercadoria” (Código Penal, art. 334). Em ambos os casos,
portanto, controla-se o fluxo de mercadorias pelas fronteiras nacionais.

(e) A polícia marítima, que também é exercida pela Polícia


Federal, em grande parte se identifica com a polícia de fronteiras. Por atuar em portos,
igualmente se presta ao controle da entrada e da saída de pessoas e bens do País,
concentrando-se, por exemplo, na repressão ao tráfico de drogas e de armas. Além
disso, contudo, a polícia marítima é responsável também pela repressão aos crimes
praticados em detrimento da normalidade das navegações, em especial aos “atos de
pirataria”. Na estrutura interna da Polícia Federal, foram criados os “Núcleos Especiais
de Polícia Marítima”, responsáveis por essa atividade.

(f) Por fim, a Constituição menciona ainda a atividade de polícia


aeroportuária – atividade também exercida pela Polícia Federal, que se identifica,
igualmente, com a de polícia de fronteiras. Não se trata de policiamento ostensivo do
espaço aéreo, mas de controle do fluxo de pessoas e de bens que se dá através de
aeroportos71 . A atividade distingue-se da polícia de fronteiras apenas quando o trânsito
de pessoas e de bens por via aérea ocorre no interior do País. Como, em ambos os casos,
a competência é da Polícia Federal, a distinção não possui maior relevância.

Como se observa, tais atividades se distribuem entre diferentes


órgãos policiais, que atuam ora no plano estadual, ora no plano federal. É o que se
examina, com mais detalhe, nas próximas seções.

70
Cf., p. ex., STF, DJU 22 jun. 2007, HC nº 89.437, Rel. Min. Ricardo Lewandowski: “Evidenciado o
caráter internacional do tráfico de drogas e identificada a conexão dos crimes, compete à Justiça Federal o
processamento e julgamento dos feitos”.
71
Cf. STF, DJU 30 mai. 2003, ADI nº 132, Rel. Min. Sepúlveda Pertence: “Polícia Militar: atribuição de
‘radiopatrulha aérea’: constitucionalidade. O âmbito material da polícia aeroportuária, privativa da União,
não se confunde com o do policiamento ostensivo do espaço aéreo, que — respeitados os limites das
áreas constitucionais das Polícias Federal e Aeronáutica Militar — se inclui no poder residual da Polícia
dos Estados”.

24
III.2. Órgãos policiais estaduais: Polícia Civil e Polícia Militar

No plano estadual, há dois órgãos que exercem funções policiais:


a Polícia Civil e a Polícia Militar.

(a) A Polícia Civil tem suas atribuições previstas no art. 144, § 4º,
da Constituição Federal. São- lhe conferidas as funções de polícia judiciária e de
apuração de infrações penais, ressalvando-se a competência da União e a investigação
de crimes militares. As polícias civis devem ser dirigidas por delegados de carreira 72 e
se subordinam aos governadores de estado 73 . Sua atuação é predominantemente
repressiva: tem lugar quando o crime já foi praticado e deve ser investigado. É a Polícia
Civil que realiza ainda as diligências determinadas pelas autoridades judiciárias. As
carreiras são instituídas por leis estaduais, as quais devem observar o que dispõem as
Constituições dos estados e a Constituição Federal74 . Veda-se, por exemplo, que
delegados e agentes componham a mesma carreira, do que resulta a impossibilidade de
progressão vertical75 .

72
A direção das investigações criminais só pode ser exercida por delegados de carreira. Não há a
possibilidade de se atribuir tal função a servidores estranhos à carreira de delegado de polícia, tais como
policiais civis ou militares (STF, DJU 9 mar. 2007, ADI nº 3.441, Rel. Min. Carlos Britto) ou
“Assistentes de Segurança Pública” (STF, DJU 10 nov. 2006, ADI nº 2.427, Rel. Min. Eros Grau). No
tocante a esta última hipótese, o Tribunal entendeu que “a Lei nº 10.704/94, que cria cargos
comissionados de Suplentes de Delegados, e a Lei nº 10.818/94, que apenas altera a denominação desses
cargos, designando-os ‘Assistentes de Segurança Pública’, atribuem as funções de delegado a pessoas
estranhas à carreira de Delegado de Polícia. Este Tribunal reconheceu a inconstitucionalidade da
designação de estranhos à carreira para o exercício da função de Delegado de Polícia, em razão de afronta
ao disposto no artigo 144, § 4º, da Constituição do Brasil”. Cf. ainda STF, DJU 23 nov. 2007, ADI nº
3.614, Rel. Min. Gilmar Mendes, Rel.ª p/ Acórdão Min.ª Cármen Lúcia .
73
Dessa subordinação administrativa das polícias estaduais ao Governador do estado, o Supremo
Tribunal Federal vem extraindo importantes conseqüências. A Corte considerou inconstitucional a Lei
Complementar nº 20/1992, do Estado do Mato Grosso, no que atribuía autonomia administrativa,
funcional e financeira à Polícia Judiciária Civil. (STF, DJU 23 abr. 2004, ADI nº 882, Rel. Min. Maurício
Corrêa). Também julgou inconstitucional o § 1º do art. 128 da Constituição do Estado do Espírito Santo,
segundo o qual “o delegado-chefe da polícia civil será nomeado pelo Governador do estado dentre os
integrantes da última classe da carreira de delegado de polícia da ativa, em lista tríplice formada pelo
órgão de representação da respectiva carreira , para mandato de 02 (dois) anos, permitida recondução”. O
preceito foi julgado inconstitucional por restringir a escolha, pelo Governador, do Delegado-Chefe da
Polícia Civil (STF, DJU 13 jun. 2003, ADI nº 2.710, Rel. Min. Sydney Sanches).
74
Na verdade, a Constituição Federal, no art. 24, estabelece ser competência concorrente da União e dos
estados legislar sobre “organização, garantias, direitos e deveres das polícias civis”. Contudo, a lei federal
pertinente nunca foi editada, razão pela qual os estados têm exercido competência legislativa plena.
75
Cf. STF, DJU 4 mai. 2001, ADI nº 1.854, Rel. Min. Sepúlveda Pertence.

25
(b) A Polícia Militar está disciplinada no § 5º do art. 144 76 . A
Constituição lhe incumbiu do policiamento ostensivo e da preservação da ordem
pública. As polícias militares estaduais organizam-se em conformidade com os
princípios da hierarquia e da disciplina, e possuem sistema de patentes análogo ao que
vigora nas Forças Armadas. O regime jurídico a que se submetem é semelhante ao das
Forças Armadas 77 , assim como a forma de organização e a estrutura hierárquica 78 .
Também no que toca às polícias estaduais, os crimes militares são investigados por
membros das próprias corporações e julgados pela justiça militar estadual79 , em
conformidade com o Código Penal Militar e o Código de Processo Penal Militar. Os
serviços de inteligência das polícias militares devem transmitir informações ao
Exército 80 .

O direito brasileiro caracteriza-se por certa ambigüidade


relativamente à definição do ente federativo (federal ou estadual) que, em última
instância, comanda as polícias militares. Por um lado, as polícias militares, em conjunto
com os corpos de bombeiros militares, são caracterizadas como “forças auxiliares e
reserva do Exército”. Por isso, o Exército promove inspeções nas polícias militares;
controla a organização, a instrução dos efetivos, o armamento e o material bélico
utilizados; aprecia os quadros de mobilização de cada unidade da Federação, com vistas
ao emprego em missões específicas e na defesa territorial81 . Por outro lado, as polícias

76
O nome dessas corporações em regra é “Polícia Militar do Estado de ...”. Tal denominação predomina
desde a Constituição de 1946. No entanto, no Rio Grande do Sul, a corporação manteve o nome de
“Brigada Militar”.
77
De acordo com o art. 42, §1º, da Constituição Federal, “aplicam-se aos militares dos Estados, do
Distrito Federal e dos Territórios, além do que vier a ser fixado em lei, as disposições do art. 14, § 8º; do
art. 40, § 9º; e do art. 142, §§ 2º e 3º, cabendo a lei estadual específica dispor sobre as matérias do art.
142, § 3º, inciso X, sendo as patentes dos oficiais conferidas pelos respectivos governadores. Já “aos
pensionistas dos militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios aplica-se o que for fixado em
lei específica do respectivo ente estatal” (CF, art. 142, § 2º, com redação dada pela Emenda
Constitucional nº 41/2003).
78
Cf. MUNIS, Jaqueline. A crise de identidade das polícias militares brasileiras: dilemas e paradoxos da
formação educacional. Security and Defense Studies Review, v. 1, inverno de 2001.
79
Contudo, a Lei Federal nº 9.299/96 transfere para a justiça comum a competência para julgar crimes
dolosos contra a vida praticados por militares contra civis. Para isso, insere parágrafo único no art. 9º do
CPM: “Os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos contra civil, serão da
competência da justiça comum”. Além disso, altera também o artigo 82 do CPPM, cujo caput passa a
vigorar com a seguinte redação: “O foro militar é especial, e, exceto nos crimes dolosos contra a vida
praticados contra civil, a ele estão sujeitos, em tempo de paz”.
80
Decreto 88.777/83.
81
Cf. art. 21 do Decreto-Lei nº 667/69. Outras atribuições são ainda conferidas pelo Decreto nº
88.777/83. Para exercer essas funções, as Forças Armadas mantêm órgão próprio. Chama-se Inspetoria-

26
militares subordinam-se aos Governadores dos estados (art. 144, § 6º), e, nos contextos
de normalidade, é a autoridade estadual que tem predominado. Os policiais militares são
servidores estaduais; é o Governador que confere patentes e nomeia comandantes; é a
fazenda estadual que os remunera. Entretanto, na hipótese de conflito entre os governos
federal e estadual, não há clareza quanto a qual autoridade as corporações militares
estaduais devem obediência, o que pode, eventualmente, gerar instabilidade
institucional82 .

A previsão de uma polícia militar e outra civil no âmbito estadual


resultou de forte atuação dos grupos de interesse durante os trabalhos da Constituinte83 .
Delegados, de um lado, e oficiais das polícias militares e das Forças Armadas, de outro,
atuaram intensamente defendendo posições divergentes84 . Os delegados propunham ou
a unificação das polícias ou a restrição da atuação da Polícia Militar à atividade de
choque, deferindo-se o policiamento ostensivo a um segmento fardado da Polícia Civil.
Os oficiais da Polícia Militar e das Forças Armadas defendiam a manutenção de duas
polícias, com funções, organização e métodos distintos. Esta última tese foi vitoriosa,
resultando na dualidade do sistema policial ora em vigor 85 . Neste ponto específico, a
Constituição Federal foi além do que deveria ter ido. Atribuir funções distintas
(repressiva e preventiva) a órgãos policiais diferentes é apenas uma, dentre as muitas
formas possíveis – e efetivamente praticadas no mundo –, de organizar a atividade
policial86 . Em países como Inglaterra e Estados Unidos, por exemplo, ambas as
atividades são realizadas pelos mesmos órgãos policiais, que são civis. No tocante a

Geral das Polícias Militares, que atualmente se subordina ao Comando de Operações Terrestres
(COTER). A Constituição Federal de 1988, em seu art. 22, XXI, determina ser competência privativa da
União legislar sobre “normas gerais de organização, efetivos, material bélico, garantias, convocação e
mobilização das polícias militares e corpos de bombeiros militares”. A lei, contudo, nunca foi editada.
82
Cf. ZAVERUCHA, Jorge. FHC, Forças Armadas e polícia: entre o autoritarismo e a democracia
(1999-2002). Rio de Janeiro: Record, 2005. p. 71.
83
Na verdade, a Constituição Federal confirmou o mo delo instituído pelo Decreto nº 1.072, de 30 de
dezembro de 1969.
84
As Forças Armadas nomearam 13 oficiais superiores para fazer lobby na Assembléia Constituinte. Cf.
ZAVERUCHA, Jorge. FHC, Forças Armadas e polícia..., cit., p. 59.
85
Essa notícia histórica é dada por: SULOCKI, Vitória Amélia de B. C. G. Segurança pública e
democracia, cit., p. 113-117; BICUDO, Helio. A unificação das polícias no Brasil. Estudos Avançados,
vol. 14, n. 40, 2000. É freqüente o relato de que o Presidente da Assembléia Constituinte, Dep. Ulisses
Guimarães, teria acordado com o então Min. do Exército, Gen. Leônidas Pires Gonçalves, o modelo de
duas polícias atualmente em vigor. Cf. CONTREIRAS, Hélio. Militares: confissões. Histórias secretas do
Brasil. Rio de Janeiro: Mauad, 1998. p. 54-55.
86
Cf. SILVA, Jorge da. Segurança pública e polícia..., cit., p. 413 ss.

27
esse ponto, me lhor teria sido deixar a organização da atividade policial a cargo do
legislador, para que a adaptasse às exigências de cada momento e de cada lugar.

Muitos sustentam a conveniência de se extinguir a Polícia Militar


sob o argumento de que se trata de instituição incompatível com a concepção
democrática de segurança pública. A militarização da polícia levaria à conformação de
um modelo bélico de política de segurança. O argumento, formulado em abstrato, é
procedente. Em um estado democrático de direito, o melhor é ter organizações policiais
de caráter civil. No entanto, também aqui é necessário, sob pena de se recair em
idealizações, examinar o funcionamento concreto das instituições. Não são poucos os
que sustentam que, na verdade, muitas polícias militares têm sido mais abertas a
reformas tendentes à adequação ao estado de direito que as suas congêneres civis 87 . O
fundamental é a alteração do treinamento, dos objetivos e do modo de operar da
organização policial, não necessariamente de sua estrutura administrativa e de seus
procedimentos disciplinares. Se, em um estado da federação, a polícia militar funciona
adequadamente, não é razoável desestruturá- la com apoio apenas em cogitações
abstratas.

Não é por outra razão que outros sustentam a conveniência de se


“desconstitucionalizar” a separação entre polícia civil e militar. A decisão não deveria
se situar no plano constitucional, mas ser deferida ao plano legislativo, para que as
circunstâncias particulares de cada estado pudessem ser consideradas. Assim como é
inadequada a imposição constitucional da separação, seria também despropositado
impor-se constitucionalmente a unificação 88 . É o que propõe Projeto de Emenda
atualmente em curso no Congresso Nacional. Trata-se da PEC 21/2005, que prevê a
alteração do art. 144, cujo §2º passaria a vigorar com a seguinte redação: “Os Estados

87
Cf. SAPORI, Luís Flávio. Os desafios da polícia brasileira na implementação da ‘ordem sob a lei’, cit.,
p. 101 ss.
88
Cf.: SOARES, Luís Eduardo. Legalidade libertária. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2006, p. 515 s.:
“Desconstitucionalização das polícias (...) significa a transferência aos Estados da autoridade para definir
os modelos de polícia que melhor lhes convenham. Afinal, o Acre é diferente de São Paulo, Alagoas não
é Minas Gerais, o Rio de Janeiro não é Santa Catarina, e assim sucessivamente. Alguns Estados preferirão
manter o status quo policial; outros optarão pela unificação das polícias; outros criarão novas polícias, de
ciclo completo; outros desejarão transformar suas polícias em polícias regionais, dividindo-as. As
possibilidades são inúmeras. (...) Com a desconstitucionalização (prevista no Plano Nacional de
Segurança Pública do Governo Lula), o Brasil ingressaria numa era de experimentação e diversificação de
suas soluções, adaptando as instituições à multiplicidade de suas realidades regionais ”.

28
organizarão e manterão a polícia estadual, de forma permanente e estruturada em
carreira, unificada ou não, garantido o ciclo completo da atividade policial, com as
atribuições de exercer as funções de polícia judiciária e de apuração das infrações
penais, de polícia ostensiva e de preservação da ordem pública (...)”. De fato, esta
parece ser a solução mais adequada.

III.3. Órgãos policiais federais: Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal e


Polícia Ferroviária Federal

No plano do governo da União, há três órgãos que desempenham


atividades policiais: (a) a Polícia Federal, (b) a Polícia Rodoviária Federal e (c) a Polícia
Ferroviária Federal89 .

(a) A Polícia Federal exerce, em nível federal, as atividades de


polícia de investigação, de polícia judiciária e de polícia marítima, aeroportuária e de
fronteiras90 . De acordo com o §1º do art. 144, a Polícia Federal destina-se a “apurar
infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e
interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como
outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija
repressão uniforme, segundo se dispuser em lei”; “prevenir e reprimir o tráfico ilícito de
entorpecentes e drogas afins, o contrabando e o descaminho, sem prejuízo da ação
fazendária e de outros órgãos públicos nas respectivas áreas de competência”; “exercer
as funções de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras”; “exercer, com
exclusividade, as funções de polícia judiciária da União”91 . A Polícia Federal se vincula

89
As polícias civis e militares são organizadas e mantidas pelos governos estaduais, como se observará.
Contudo, a Polícia Civil e a Polícia Militar do Distrito Federal são organizadas e mantidas pelo Governo
da União. É o que determina o art. 21, XIV, da Constituição Federal.
90
O embrião da Polícia Federal era o Departamento Federal de Segurança Pública (DFSP), criado em
1944, cujo papel era prover segurança ao Distrito Federal, quando este se situava na cidade do Rio de
Janeiro. Ao longo de sua história, muitas mudanças foram sucessivamente introduzidas na organização da
Polícia Federal.
91
Tais competências estão detalhadas em diversas leis. É o caso, por exemplo, da Lei nº 9.017/95, que
estabelece normas de controle sobre produtos e insumos químicos que possam ser destinados à produção
de cocaína e de outras substâncias entorpecentes. É o caso também da Lei nº 10.446/2002, que dispõe
sobre infrações penais de repercussão interestadual ou internacional que exigem repressão uniforme, para
os fins do disposto no inciso I do § 1o do art. 144 da Constituição. De acordo com o seu art. 1º, quando
houver repercussão interestadual ou internacional que exija repressão uniforme, poderá o Departamento
de Polícia Federal proceder à investigação, dentre outras, das seguintes infrações penais: “seqüestro,
cárcere privado e extorsão mediante seqüestro, se o agente foi impelido por motivação política ou quando

29
ao Ministério da Justiça. De acordo com a Lei nº 9.266/96, atualmente em vigor, a
carreira policial federal é composta pelos cargos de Delegado de Polícia Federal, Perito
Criminal Federal, Escrivão de Polícia Federal, Agente de Polícia Federal e
Papiloscopista Policial Federal92 . A carreira policial federal é definida como “típica de
Estado”93 .

(b) A Polícia Rodoviária Federal é o outro órgão policial que


atua no plano do Governo da União. De acordo com o §2º do art. 144, “a Polícia
Rodoviária Federal, órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado
em carreira, destina-se, na forma da lei, ao patrulhamento ostensivo das rodovias
federais”94 . A Polícia Rodoviária Federal tem, assim, como missão institucional,
ostentar a presença policial nas estradas federais e reprimir, de modo imediato, os

praticado em razão da função pública exercida pela vítima”; “formação de cartel”; infrações “relativas à
violação a direitos humanos, que a República Federativa do Brasil se comprometeu a reprimir em
decorrência de tratados internacionais de que seja parte”; e “furto, roubo ou receptação de cargas,
inclusive bens e valores, transportadas em operação interestadual ou internacional, quando houver
indícios da atuação de quadrilha ou bando em mais de um Estado da Federação”.
92
Após a aprovação da Constituição Federal de 1988, a carreira policial federal foi reorganizada pela Lei
nº 9.266, de 15 de março de 1996, posteriormente alterada pelas Leis n os 11.095, de 13 de janeiro de 2005,
e 11.358, de 19 de outubro de 2006. Até a entrada em vigor da Lei nº 9.266, a carreira policial federal foi
regida pelo Decreto-lei nº 2.251/85, recepcionado pela Constituição Federal no que com ela era
compatível. Além de se reger por essa legislação específica, a carreira policial federal – que não é militar,
mas civil – rege-se também pelas disposições da Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990, que versa
sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas
federais. Embora a Lei nº 9.266/96 inclua na mesma carreira delegados, agentes, escrivães, peritos e
papilocopistas, a administração tem feito concursos separados para cada um desses cargos, e não tem
efetuado progressão funcional. Cf. STJ, DJU 12 abr. 1999, MS nº 5.554, Rel. Min. Fernando Gonçalves:
“Não há falar direito líquido e certo à progressão funcional do cargo de Agente da Polícia Federal para o
de Delegado daquela corporação, porquanto o presente instituto não foi recepcionado pela nova ordem
constitucional, a qual prevê em seu art. 37, inciso II, que a investidura em cargo público dar-se-á
mediante concurso”. Cf. ainda STJ, DJU 24 jun. 2002, AgRg no MI nº 172, Rel. Min. Eliana Calmon.
93
A Lei nº 9.266, de 1996, já contempla categorias próprias da Reforma Administrativa promovida no
curso no mandato do Presidente Fernando Henrique Cardoso. De acordo com o Plano Diretor de Reforma
do Estado, de 1995 – documento de governo aprovado pela Câmara da Reforma do Estado – no setor das
“atividades exclusivas” são “prestados serviços que só o Estado pode realizar”. Através de tais serviços, o
Estado exerce o poder de regulamentar, fiscalizar, fomentar. Daí resultam importantes conseqüências. De
acordo com o artigo 247 da Constituição Federal, na redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, a
legislação deverá estabelecer “critérios e garantias especiais para a perda do cargo pelo servidor público
estável que, em decorrência das atribuições de seu cargo efetivo, desenvolva atividades exclusivas de
Estado”.
94
A Polícia Rodoviária Federal tem previsão legal desde o final da década de 20 (Decreto 18.323, de 24
de julho de 1928). Sua criação efetiva, com a contratação de pessoal e a mobilização de recursos
materiais, ocorreu em meados da década de 30. Em 1945 (Decreto 8.463, de 27 de dezembro de 1945), a
Polícia Rodoviária Federal recebe este nome (antes se denominava “Polícia de Estradas”) e passa a se
vincular ao Departamento Nacional de Estradas de Rodagem (DNER). A Constituição Federal de 1988 é
a primeira a constitucionalizá-la, integrando-a expressamente ao Sistema Nacional de Segurança Pública.
Dando conseqüência ao comando constitucional, a Lei nº 8.028, de 12 de abril de 1990 (art. 19, I, b),
vincula a Polícia Rodoviária Federal ao Ministério da Justiça.

30
delitos que ali sejam cometidos 95 . Trata-se de polícia civil, não militar, embora atue
uniformizada, como deve ocorrer no policiamento ostensivo. Suas competências estão
detalhadas no Código de Trânsito Brasileiro (art. 20 da Lei nº 9503/97), no Decreto nº
1.655/95, e no Regimento Interno, estabelecido pela Portaria Ministerial nº 122/97 96 . A
implantação da carreira foi feita através da transformação dos antigos Patrulheiros
Rodoviários Federais em Policiais Rodoviários Federais (Lei nº 9.654, art. 1º, parágrafo
único). A carreira é composta do cargo de Policial Rodoviário Federal e estruturada nas
classes de Inspetor, Agente Especial e Agente (Lei nº 9.654, art. 1º, caput, com a
redação dada pela Lei nº 11.358) 97 .

De todas as suas competências, duas, dentre as fixadas no art. 1º


do Decreto nº 1.655, geraram maior polêmica quanto à constitucionalidade e foram
impugnadas perante o Supremo Tribunal Federal: a estabelecida no inciso V (“realizar
perícias, levantamentos de locais, boletins de ocorrências, investigações, testes de
dosagem alcoólica e outros procedimentos estabelecidos em leis e regulamentos,
imprescindíveis à elucidação dos acidentes de trânsito”) e a instituída no inciso X
(“colaborar e atuar na prevenção e repressão aos crimes contra a vida, os costumes, o
patrimônio, a ecologia, o meio ambiente, os furtos e roubos de veículos e bens, o tráfico
de entorpecentes e drogas afins, o contrabando, o descaminho e os demais crimes
previstos em leis”). Tais disposições foram impugnadas porque as competências de
“realizar perícias”, “investigações” e de “reprimir” a prática de crimes seriam da alçada
de outros órgãos policiais previstos no art. 144 da Constituição Federal98 . A questão foi

95
Cf. DALLARI, Adilson de Abreu. Competência constitucional da Polícia Rodoviária Federal. Revista
de Informação Legislativa, n. 135, jul./set. 1997.
96
De acordo com o art. 1º do Decreto nº 1.655, compete à Polícia Rodoviária Federal, no âmbito das
rodovias federais: realizar o patrulhamento ostensivo; inspecionar e fiscalizar o trânsito; aplicar e
arrecadar as multas impostas por infrações de trânsito; executar serviços de prevenção, atendimento de
acidentes e salvamento de vítimas nas rodovias federais; realizar perícias, boletins de ocorrências,
investigações, testes de dosagem alcoólica e outros procedimentos imprescindíveis à elucidação dos
acidentes de trânsito; credenciar os serviços de escolta e fiscalizá-los; assegurar a livre circulação nas
rodovias federais, promovendo a interdição de construções, obras e instalações não autorizadas; executar
medidas de segurança nos deslocamentos do Presidente da República, chefes de Estados estrangeiros e
outras autoridades; fiscalizar e controlar do tráfico de menores nas rodovias federais; colaborar na
prevenção e repressão aos crimes previstos em leis.
97
A carreira de Policial Rodoviário Federal foi criada pela Lei nº 9.654, de 2 de junho de 1998, e
modificada por outros estatutos, especialmente pela Lei nº 11.358, de 2006.
98
Os preceitos foram impugnados também por violarem o princípio da legalidade. As competências
fixadas nos incisos V e X não estão previstas em nenhum texto legal, mas tão-somente no Decreto nº
1.655, que é ato administrativo, configurando-se como “decreto autônomo”, cuja admissibilidade é
polêmica no direito brasileiro.

31
examinada apenas em sede de cautelar. Esta não foi concedida, apesar de o relator ter se
manifestado no sentido da concessão 99 . Em mais de um voto, invocou-se a
inconveniência prática de interpretações formalistas do texto constitucional.

(c) De acordo com o §3º do artigo 144, a Polícia Ferroviária


Federal é órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em
carreira. Sua destinação é o patrulhamento ostensivo das ferrovias federais. Apesar da
previsão constitucional, o órgão nunca foi objeto de criação efetiva, muito em razão da
decadência do sistema ferroviário nacional. O art. 19, § 1º, da Lei nº 8.490/92 autoriza o
Poder Executivo a criar, no Ministério da Justiça, o Departamento de Polícia Ferroviária
Federal, o que foi feito através do Decreto nº 2.802/98, segundo o qual lhe “compete
propor a política de segurança ferroviária e supervisionar o policiamento e a fiscalização
das ferrovias federais, de acordo com a legislação específica” (art. 19). Contudo, logo
em seguida, o Departamento deixou de estar previsto na estrutura do Ministério da
Justiça (Decreto nº 3.382/2000), e não foi recriado até o momento. De fato, a Polícia
Ferroviária Federal nunca existiu. O que há, na prática, é apenas a segurança
patrimonial exercida pelas próprias empresas concessionárias de serviço ferroviário.

III.4. Taxatividade do rol de órgãos policiais

A Constituição Federal, no caput do art. 144, determina ser a


segurança pública dever do Estado. Este deverá provê-la através dos órgãos de
segurança que a Constituição enumera nos incisos que se seguem ao caput : Polícia
Federal, Polícia Rodoviária Federal, Polícia Ferroviária Federal, polícias civis, polícias
militares e corpos de bombeiros militares. Apenas esses órgãos poderão ser instituídos
como corporações policiais. É o que decidiu o STF ao definir o rol do art. 144 como
taxativo. Com isso, veda-se aos estados- membros, por exemplo, atribuir função policial
ao departamento de trânsito 100 ou instituir “polícia penitenciária”, encarregada da
vigilância dos estabelecimentos penais 101 . Dessa taxatividade, contudo, não decorre a
impossibilidade de se criarem órgãos com o propósito de coordenar as políticas de

99
STF, DJU 25 mai. 2001, ADI-MC nº 1.413, Rel. Min. Marco Aurélio.
100
STF, DJU 10 mar. 2006, ADI nº 1.182, Rel. Min. Eros Grau.
101
STF, DJU 01 jun. 2001, ADI nº 236, Rel. Min. Octavio Gallotti.

32
segurança e de integrá- las com outras ações de governo, como as que têm lugar nas
áreas de saúde e educação. Quando o Governo da União cria, por exemplo, a Secretaria
Nacional Antidrogas 102 , para integrar e coordenar diversos órgãos governamentais, não
viola a Constituição pela simples circunstância de cuidar de assuntos também atinentes
à atuação policial103 .

Questão diferente se relaciona à atribuição de funções policiais a


órgãos constituídos para outros fins. Aqui está em causa um importante problema de
separação de poderes. Como se sabe, a função fundamental da separação de poderes é
estabelecer um sistema de limitações recíprocas entre os diversos órgãos que compõem
o Estado, com o objetivo de moderar o exercício do poder e proteger a liberdade
individual. Por isso, confiar funções policiais a outros órgãos, que não os constituídos
para esse fim, sempre envolve riscos, que devem ser especificamente considerados. É o
que se faz nas seções seguintes.

III.5. A participação de outros órgãos na execução de políticas de segurança

III.5.1. A participação das Forças Armadas na segurança pública

No art. 144, a Constituição não previu a participação da Forças


Armadas na execução de políticas de segurança. No entanto, a própria Constituição a
permite, ao estabelecer, no art. 142, que as Forças Armadas também se destinam à
garantia “da lei e da ordem”104 . A interpretação conjunta dos art. 142 e 144, além da de
outros preceitos a seguir examinados, leva a concluir que a execução, pelas Forças
Armadas, de operações de segurança está reservada a momentos excepcionais, quando
tenha lugar a decretação de (a) estado de defesa, (b) estado de sítio ou (c) intervenção
federal. Fora dos contextos de excepcionalidade constitucional, há ainda duas outras
possibilidades de as Forças Armadas serem empregadas na segurança pública: (d) a
realização de investigações criminais no âmbito de inquérito policial militar; e (e) a
execução de operações de policiamento ostensivo em contextos em que predomine o

102
Decreto 2.632/1998.
103
STF, DJU 7 nov. 2003, ADI-MC nº 2.227, Rel. Min. Octavio Gallotti.
104
CF, artigo 142: “As Forças Armadas (...) destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes
constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.

33
interesse nacional, em especial em visitas de che fes de estados estrangeiros. São,
portanto, cinco as possibilidades de as Forças Armadas executarem ações de segurança
pública. A Lei nº 97/1999 ainda prevê uma sexta possibilidade: (f) a realização de ações
de policiamento ostensivo por solicitação do Governador de Estado, quando os meios
disponíveis na esfera estadual se mostrarem insuficientes. A Lei nº 97/1999, contudo, é
inconstitucional quanto a esse aspecto, como se observará adiante 105 .

As três primeiras possibilidades de emprego das Forças Armadas


em operações de segurança pública decorrem de previsões específicas presentes no
texto constitucional. (a) De acordo com o artigo 136, o Presidente da República pode
“decretar estado de defesa para preservar ou prontamente restabelecer, em locais
restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social”. (b) Segundo o art. 137,
caberá ao Presidente da República “solicitar ao Congresso Nacional autorização para
decretar o estado de sítio” no caso de “comoção grave de repercussão nacional ou
ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de
defesa”. (c) Conforme o art. 34, III, a União poderá decretar intervenção nos estados
para “pôr termo a grave comprometimento da ordem pública”. Como se vê, nessas três
hipóteses – estado de defesa, estado de sítio e intervenção –, a Constituição prevê a
atuação do ente federal com o intuito de garantir a ordem pública, para o que poderá, se
necessário, empregar as Forças Armadas, que é o meio de que dispõe, já que as polícias
federais não são organizadas com esse propósito 106 .

Como nessas três hipóteses há restrição a direitos fundamentais 107


e relativização da autonomia estadual, a Constituição submete as medidas aplicáveis a

105
Sobre o emprego das Forças Armadas na segurança pública, cf. BARROSO, Luís Roberto. Forças
Armadas e ações de segurança pública: possibilidades e limites à luz da Constituição, Revista de Direito
do Estado, n. 7, 2007.
106
Cf. SILVA, Leila Maria Bittencourt da. A defesa do estado e a ordem pública. Revista Forense, n. 379,
2005: “Em face da impossibilidade da Secretaria de Segurança Pública pôr fim ao caos urbano, o
Presidente da República para decretar intervenção federal deverá verificar: 1) se há perturbação de ordem
pública; 2) se há ineficiência ou impossibilidade dos órgãos da Secretaria de Segurança Pública para
coibirem as atividades delituosas; 3) se é constatada a violação de direitos constitucionais fundamentais”.
Cf. ainda: MORAES, Humberto Pena de. Mecanismos de defesa do Estado e das instituições
democráticas no sistema constitucional de 1988. Estado de defesa e estado de sítio. Revista EMERJ, n. 23,
2003.
107
No estado de defesa, são restringidos o direito de reunião, o sigilo de correspondência, o sigilo de
comunicação telegráfica e telefônica (CF, art. 136, I). Há ainda a possibilidade da ocupação e uso
temporário de bens e serviços públicos, na hipótese de calamidade pública, respondendo a União pelos
danos e custos decorrentes (CF, art. 136, II). No estado de sítio, permite-se que o Governo determine a

34
forte controle legislativo e jurisdicional. O estado de defesa não poderá durar mais de
trinta dias, admitindo-se apenas uma prorrogação, e sua decretação será submetida,
dentro de vinte e quatro horas, ao Congresso Nacional, que decidirá por maioria
absoluta (CF, art. 136, §4º). Se o decreto for rejeitado, interrompe-se o estado de defesa
(CF, art. 136, §7º). Já a decretação do estado de sítio, que é mais grave que o estado de
defesa, depende de autorização prévia do poder legislativo (CF, art. 137, caput). Em
ambos os casos, a Mesa do Congresso Nacional designará comissão para acompanhar e
fiscalizar a execução das medidas (CF, art. 140). Logo que cesse o estado de defesa ou o
estado de sítio, as medidas aplicadas durante sua vigência serão relatadas pelo
Presidente da República ao Congresso Nacional (CF, art. 141, parágrafo único). Os
executores das medidas poderão ser responsabilizados pelos ilícitos cometidos (CF, art.
141). O próprio Presidente da República pode chegar a responder por crime de
responsabilidade (CF, art. 85)108 . Quanto à intervenção, o decreto que a determinar
deverá especificar a amplitude, o prazo e as condições de execução e será apreciado
pelo Congresso Nacional, em vinte e quatro horas (CF, art. 34, §1º). Durante a vigência
de qualquer dessas medidas – estado de defesa, estado de sítio ou intervenção federal –
a Constituição não poderá ser emendada (CF, art. 60, §1º).

Como se observa, nessas três hipóteses excepcionais, a atuação


militar se submete a intenso controle do Parlamento. Isto porque implicam a restrição de
direitos fundamentais e relativização da autonomia dos estados- membros. Há, contudo,
duas outras hipóteses de atuação das Forças Armadas em operações de segurança
pública em que isso não ocorre: (d) a execução de diligências determinadas no âmbito
de inquérito policial militar e (e) a realização de policiamento ostensivo em ocasiões em
que predomine o interesse nacional, como é o caso de visitas de delegações estrangeiras.

permanência em localidade determinada; a detenção em edifício não destinado a acusados ou condenados


por crimes comuns; restrições relativas à inviolabilidade da correspondência, ao sigilo das comunicações,
à prestação de informações e à liberdade de imprensa, radiodifusão e televisão, na forma da lei; a
suspensão da liberdade de reunião; a busca e apreensão em domicílio; a intervenção nas empresas de
serviços públicos; e a requisição de bens (CF, art. 139, I a VII).
108
Segundo o art. 85 da Constituição Federal, “são crimes de responsabilidade os atos do Presidente da
República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra: I - a existência da União; II
- o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes
constitucionais das unidades da Federação; III - o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais; IV
- a segurança interna do País; V - a probidade na administração; VI - a lei orçamentária; VII - o
cumprimento das leis e das decisões judiciais”.

35
(d) A possibilidade de as Forças Armadas realizarem diligências
determinadas no âmbito de inquérito policial militar está estabelecida nos artigos 7º e
8º, b, do Código de Processo Penal Militar (CPPM), e figura, na Constituição Federal,
como exceção à competência das polícias civis para a realização de investigações
criminais (art. 144, §4º). De acordo com o art. 8º, b, do CPPM, “compete à polícia
judiciária militar (...) prestar aos órgãos e juízes da Justiça Militar e aos membros do
Ministério Público as informações necessárias à instrução e julgamento dos processos,
bem como realizar as diligências que por eles lhe forem requisitadas”. O art. 7º fixa as
autoridades militares que devem exercer a função. Em regra, a incumbência recai sobre
os comandantes em relação a seus comandados, sendo possível a delegação para outros
oficiais 109 . A noção de “polícia judiciária militar” está ligada à idéia de função, não à de
órgão110 .

No tocante a essa hipótese, há, contudo, duas importantes


ressalvas a fazer. A primeira é a de que não há espaço, em nossa ordem constitucional,
para mandados genéricos, que indiquem, por exemplo, a possibilidade de promover
buscas em bairros inteiros 111 . Sob o pretexto de realizar a apreensão de armas de uso
exclusivo das Forças Armadas, autoridades militares não podem determinar a ocupação
de uma favela, como já se verificou em nossa história recente. A segunda ressalva diz

109
CPPM, art. 7º: “A polícia judiciária militar é exercida nos termos do art. 8º, pelas seguintes
autoridades, conforme as respectivas jurisdições: a) pelos ministros da Marinha, do Exército e da
Aeronáutica, em todo o território nacional e fora dele, em relação às forças e órgãos que constituem seus
Ministérios, bem como a militares que, neste caráter, desempenhem missão oficial, permanente ou
transitória, em país estrangeiro; b) pelo chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, em relação a
entidades que, por disposição legal, estejam sob sua jurisdição; c) pelos chefes de Estado-Maior e pelo
secretário-geral da Marinha, nos órgãos, forças e unidades que lhes são subordinados; d) pelos
comandantes de Exército e pelo comandante-chefe da Esquadra, nos órgãos, forças e unidades
compreendidos no âmbito da respectiva ação de comando; e) pelos comandantes de Região Militar,
Distrito Naval ou Zona Aérea, nos órgãos e unidades dos respectivos territórios; f) pelo secretário do
Ministério do Exército e pelo chefe de Gabinete do Ministério da Aeronáutica, nos órgãos e serviços que
lhes são subordinados; g) pelos diretores e chefes de órgãos, repartições, estabelecimentos ou serviços
previstos nas leis de organização básica da Marinha, do Exército e da Aeronáutica; h) pelos comandantes
de forças, unidades ou navios”. Há, contudo, a possibilidade de tais agentes delegarem o exercício da
função de polícia judiciária militar à oficiais da ativa: “Obedecidas as normas regulamentares de
jurisdição, hierarquia e comando, as atribuições enumeradas neste artigo poderão ser delegadas a oficiais
da ativa, para fins especificados e por tempo limitado” (CPPM, art. 7º, §1º).
110
Cf. LIMA, Walberto Fernandes de. Considerações sobre a criação do § 2º do art. 82 do Código de
Processo Penal Militar e seus reflexos na justiça penal comum (Lei n. 9.299/96). Revista Brasileira de
Ciências Criminais, n. 20, 1997.
111
Segundo o art. 178 do CPPM, “o mandado de busca deverá indicar, o mais precisamente possível, a
casa em que será realizada a diligência e o nome do seu morador ou proprietário; ou, no caso de busca
pessoal, o nome da pessoa que a sofrerá ou os sinais que a identifiquem”.

36
respeito à necessidade de que a diligência seja autorizada por autoridade judicial. As
diligências de busca e apreensão domiciliar são submetidas à chamada “reserva de
jurisdição”112 , não podendo ser determinadas pelas autoridades militares que presidem
inquéritos policiais militares, como determinava o CPPM, em seu art. 177 113 , que foi
revogado quanto a este aspecto.

(e) O emprego das Forças Armadas em operações de manutenção


da ordem pública em eventos oficiais está disciplinado no art. 5º do Decreto nº
3.897/2001. De acordo com o preceito, tal emprego ocorrerá em ocasiões em que “se
presuma ser possível a perturbação da ordem, tais como as relativas a eventos oficiais
ou públicos, particularmente os que contem com a participação de Chefe de Estado, ou
de Governo, estrangeiro, e à realização de pleitos eleitorais, nesse caso quando
solicitado”. Foi o que ocorreu, por exemplo, em 1992, na Conferência das Nações
Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento (ECO 92). Nessa hipótese, a
possibilidade da atuação federal decorre do princípio da predominância do interesse114 .
Como predomina o interesse nacional, não há razão para que apenas o estado membro
atue. As Forças Armadas podem atuar, em conjunto com autoridades locais (Decreto nº
3.897/2001, art. 5º, parágrafo único).

(f) Por fim, a legislação brasileira comporta ainda outra


possibilidade de emprego das Forças Armadas em operações de segurança. De acordo
com a LC nº 97/1999, art. 15, §2o , “a atuação das Forças Armadas, na garantia da lei e

112
De acordo com o STF, “a cláusula constitucional da reserva de jurisdição – que incide sobre
determinadas matérias, como a busca domiciliar (CF, art. 5º, XI), a interceptação telefônica (CF, art. 5º,
XII) e a decretação da prisão de qualquer pessoa, ressalvada a hipótese de flagrância (CF, art. 5º, LXI) –
traduz a noção de que, nesses temas específicos, assiste ao Poder Judiciário, não apenas o direito de
proferir a última palavra, mas, sobretudo, a prerrogativa de dizer, desde logo, a primeira palavra,
excluindo-se, desse modo, por força e autoridade do que dispõe a própria Constituição, a possibilidade do
exercício de iguais atribuições, por parte de quaisquer outros órgãos ou autoridades do Estado.” (STF,
DJU 12 mai. 2000, MS nº 23.452, Rel. Min. Celso de Mello).
113
CPPM, art. 177: “Deverá ser precedida de mandado a busca domiciliar que não for realizada pela
própria autoridade judiciária ou pela autoridade que presidir o inquérito”.
114
Cf.. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, cit., p. 480: “O princípio geral
que norteia a repartição de competência entre as entidades componentes do Estado Federal é o da
predominância do interesse, segundo o qual à União caberão aquelas matérias e questões de predominante
interesse geral, nacional, ao passo que aos Estados tocarão as matérias e assuntos de predominante
interesse regional, e aos Municípios concernem os assuntos de interesse local, tendo a Constituição
vigente desprezado o velho conceito do peculiar interesse local que não lograra conceituação satisfatória
num século de vigência.” Cf. também: PIRES, Thiago Magalhães. Federalismo e democracia: parâmetros
para a definição das competências federativas. Revista Direito Público, n. 14, out./dez., 2006.

37
da ordem (...) ocorrerá (...) após esgotados os instrumentos (...) relacionados no art. 144
da Constituição Federal”. Conforme o §3o do mesmo artigo, incluído pela LC nº
117/2004, “consideram- se esgotados os instrumentos relacionados no art. 144 da
Constituição Federal quando, em determinado momento, forem eles formalmente
reconhecidos pelo respectivo Chefe do Poder Executivo Federal ou Estadual como
indisponíveis, inexistentes ou insuficientes ao desempenho regular de sua missão
constitucional”. Como se vê, a LC nº 117 estabelece a possibilidade de o Governador do
Estado reconhecer a insuficiência dos meios de que dispõe para garantir a lei e a ordem
e, com isso, solicitar o emprego das Forças Armadas 115 . Não haveria, nessa hipótese, a
necessidade de decretação de estado de defesa, de estado de sítio ou de intervenção
federal.

Até o presente momento, a hipótese foi aplicada em casos


pontuais, durante curtíssimos períodos de tempo. Isso ocorreu, por exemplo, quando
Governadores (Minas Gerais, Tocantins, Alagoas e Pernambuco) solicitaram a atuação
federal por conta de greve de policiais 116 . Em razão da brevidade dos períodos em que
esse emprego ocorreu, o STF ainda não apreciou impugnações que pusessem em
questão sua constitucionalidade 117 . Nada obstante, trata-se de hipótese de
constitucionalidade duvidosa. A referência feita no art. 142 à possibilidade de as Forças

115
Uma vez que o Presidente determine o emprego das Forças Armadas, o Governador deverá “transferir
o controle operacional dos órgãos de segurança pública necessários ao desenvolvimento das ações para a
autoridade encarregada das operações, a qual deverá constituir um centro de coordenação de operações,
composto por representantes dos órgãos públicos sob seu controle operacional ou com interesses afins”
(LC nº 117, art. 15, §5º).
116
Há, contudo, um triste episódio da vida política brasileira ocorrido antes do início da vigência da Lei
que merece especial reprovação. Trata-se da denominada “Operação Rio”, em que as Forças Armadas, no
final de 1994, ocuparam diversas áreas da cidade do Rio de Janeiro, sem que tenha sido decretada
nenhuma das medidas excepcionais antes examinadas. Naquela oportunidade, violou-se o estado
democrático de direito, por razões políticas menores e contingenciais, com intensidade que não mais viria
a ser vista na história nacional. Cf. CERQUEIRA, Carlos M. Nazareth. Remilitarização da segurança
pública..., cit.
117
Há, em entrevista, manifestação do Ministro Lewandowski contra a essa possibilidade. De acordo com
o então Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, o emprego das Forças Armadas
deve se limitar às hipóteses de decretação de estado de defesa, estado de sítio e intervenção federal: “A
utilização das Forças Armadas para combater a violência urbana, em caráter permanente, é, portanto,
inconstitucional, embora seja lícito o seu emprego temporário e limitado, em situações de emergência,
claramente caracterizadas. A decisão, entretanto, subordina-se ao prudente arbítrio do Presidente da
República, que deverá buscar o respaldo do Legislativo, assim que possível, sob pena de incorrer em
crime de responsabilidade. (...) Não se pode esquecer que a função primordial da Marinha, do Exército e
da Aeronáutica, segundo o texto constitucional, é assegurar a defesa da Pátria. A rigor, só quando os
órgãos constitucionalmente responsáveis pela preservação da lei e da ordem entrarem em colapso é que as
Forças Armadas poderão incumbir-se da tarefa”. (Forças Armadas no combate à violência, RT Informa, n.
31, maio-jun., 2004, p. 4).

38
Armadas serem empregadas para a manutenção da lei e da ordem deve ser interpretada
restritivamente. A interpretação restritiva se impõe pela circunstância de a atuação
federal implicar restrição grave à autonomia do estado- membro, ao qual a Constituição
incumbe a elaboração e a execução das políticas no setor. A anuência do Governador
não pode significar a corrosão do sistema de repartição de competências federativas
concebido pela Constituição. Ou há gravidade suficiente para a decretação de estado de
defesa ou de intervenção federal, e as Forças Armadas são empregadas, o não há, e seu
emprego não pode se verificar. A atuação corrente das Forças Armadas na execução de
ações de segurança é incompatível com o conceito constitucionalmente adequado de
segurança pública, examinado acima. A segurança pública, para se harmonizar com o
Estado democrático de direito, deve ser concebida como serviço público, a ser prestado
ao cidadão. Não pode ser entendida como estratégia de guerra, destinada ao “combate”
a “inimigos”; e é para isso que as Forças Armadas são preparadas.

A execução pelas Forças Armadas de operações de segurança


deve se limitar às hipóteses previstas constitucionalmente, em especial às de decretação
de estado de defesa, estado de sítio e intervenção federal. Nessas três hipóteses, a
Constituição Federal prevê instrumentos consistentes de controle do Executivo. Como
antes consignado, a decretação das medidas excepcionais depende de aprovação
parlamentar, exigindo-se o pronunciamento do Congresso Nacional; pode submeter o
Presidente a julgamento por crime de responsabilidade; impede a aprovação de Emenda
Constitucional durante a sua vigência. Pretende-se, com a LC nº 97/1999, art. 15, que o
Executivo Federal possa executar medidas de caráter excepcional, com séria limitação
da autonomia estadual, sem se submeter aos controles que a Constituição prevê para os
casos de estado de defesa, estado de sítio e intervenção federal. Na verdade, significa
permitir que medidas excepcionais sejam decretadas, sem que se observem as restrições
constitucionalmente definidas e sem que se adotem os veículos formais adequados.

Há quase duas décadas está em curso na América Latina debate


sobre o papel das Forças Armadas. Para uns, devem ser empregadas apenas na defesa do
território. Para outros, devem servir ao combate ao narcotráfico. Esta última opção foi
adotada, p. ex., na Colômbia, com forte apoio dos EUA, que, de fato, são os principais
interessados. Trata-se de importante questão de Estado, que deve ser seriamente
apreciada. O emprego das Forças Armadas na segurança pública deve ser evitado

39
também para permitir que se concentrem na sua principal destinação constitucional, que
é a defesa da soberania territorial do Brasil. Convertê- las em polícia é o caminho mais
curto para que isso deixe de ocorrer.

III.5.2. A participação do Ministério Público na investigação criminal

A Constituição Federal de 1988 confere poderes, para apurar


infrações penais à Polícia Federal (144, §1º, I e IV) e às Polícias Civis dos Estados (144,
§4º). Não atribui expressamente as mesmas competências ao Ministério Público. No
entanto, cabe ao Ministério Público ajuizar a ação penal. Para isso, deve dispor das
provas necessárias para instruí- la. Muitos sustentam que a possibilidade de colher
diretamente essas provas, sem auxílio das autoridades policiais, seria um “poder
implícito”118 , cujo exercício não demandaria sua explicitação no texto constitucio nal. Se
a atuação das polícias judiciárias serve para fornecer subsídios ao ajuizamento da ação
penal pelo Ministério Público, não haveria razões para se impedir que o próprio MP
realizasse diligências com esse propósito. Argumenta-se, ainda, que a Constituição
Federal, ao distribuir, no art. 144, as competências investigatórias às polícias judiciárias
federal e estadual, pretendeu apenas delimitar a esfera cabível a cada uma, bem como
diferenciar seus respectivos âmbitos de atuação relativamente à polícia militar. A
finalidade subjacente ao art. 144 não seria vedar ao Ministério Público poderes
investigatórios.

Por outro lado, sustenta-se que há aqui um problema de separação


de poderes. O propósito de o constituinte ter atribuído à polícia, com exclusividade, a
tarefa de realizar a investigação criminal, excluindo o Ministério Público, seria evitar
excessiva concentração de poderes em esfera que pode abrigar graves interferências nos
domínios mais fundamentais da liberdade individual. A Polícia investigaria, e o
Ministério Público, além de requisitar diligências (CF, art. 129, VIII), dirigindo, por
essa via, a atividade investigatória, ajuizaria a ação penal e realizaria o controle externo
da atividade policial (CF, art. 129, VII). O contra-argumento é imediato: na realidade

118
O parâmetro dos poderes implícitos foi adotado várias vezes pelo Supremo Tribunal Federal. Em
matéria análoga à presente, o STF entendeu, durante a vigência da Constituição de 1946, que as
Comissões Parlamentares de Inquérito poderiam colher depoimentos, fazer intimações e determinar o
comparecimento compulsório de depoentes, pois, do contrário, seriam inócuas suas funções
investigatórias. (STF, DJU 6 jun. 1957, RHC nº 34.823, Rel. Min. Ari Franco).

40
brasileira das duas últimas décadas, os indivíduos teriam sua liberdade garantida com
maior eficácia pelo protagonismo ministerial no momento investigatório que pela
restrição da sua atuação nesse período pré-processual. Em resposta a essa objeção, há
quem argumente que, se o Ministério Público se envolver diretamente nas investigações
criminais, desempenhando o papel que a Constituição projetou para os delegados, não
há nenhuma garantia de que, diante de situações de emergência, não deixe de observar a
legalidade. A atividade investigatória ficaria, então, sem o necessário controle externo,
propiciado pelo atual modelo de divisão de trabalho entre Polícia Judiciária e Ministério
Público 119 .

A jurisprudência brasileira não tem aderido integralmente nem a


um nem a outro ponto de vista. O Superior Tribunal de Justiça permite amplamente a
participação do Ministério Público na investigação criminal120 . O STF, por seu turno,
ainda não proferiu um juízo definitivo, tomando decisões sucessivas em sentido
divergente. Por um lado, o STF tem admitido a utilização, na esfera penal, de provas
obtidas através de inquérito civil121 . Tem admitido ainda a validade de depoimento
colhido diretamente pelo Ministério Público, quando não se trata de prova isolada, mas
inserida em um conjunto probatório mais abrangente 122 . Uma de suas turmas já chegou
a afirmar que “o Ministério Público poderá proceder de forma ampla, na averiguação de
fatos e na promoção imediata da ação penal pública, sempre que assim entender
configurado o ilícito”, podendo “prescindir do inquérito policial, haja vista que o

119
Sobre a polêmica, foi produzida no Brasil extensa bibliografia. Cf. dentre outros estudos: BARROSO,
Luis Roberto. Investigação pelo Ministério Público. Argumentos contrários e a favor. A síntese possível e
necessária. Revista Forense, v. 100, n. 373, p. 195-203, maio/jun. 2004; SILVA, Jose Afonso da. Em face
da Constituição Federal de 1988, o Ministério Público pode realizar e/ou presidir investigação criminal,
diretamente? Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 12, n. 49, jul./ago. 2004; TUCCI, Rogério
Lauria. Considerações e sugestões acerca de anteprojeto de lei referente à instituição de Juizado de
Instrução. Revista dos Tribunais, v. 92, n. 817, nov. 2003; FRAGOSO, Jose Carlos. São ilegais os
procedimentos investigatórios realizados pelo Ministério Público Federal. Revista Brasileira de Ciências
Criminais, v. 10, n. 37, jan./mar. 2002; GRINOVER, Ada Pellegrini. Investigações pelo Ministério
Público. Boletim IBCCrim, v. 12, n. 145, dez. 2004; PRADO, Geraldo Luiz Mascarenhas; CASARA,
Rubens R. R. Posição do MMFD sobre a impossibilidade de investigação direta pelo Ministério Público
ante a normatividade constitucional. Boletim IBCCrim, v. 12, n. 141, ago. 2004; VIEIRA, Luis
Guilherme. O Ministério Público e a investigação criminal. Revista de Estudos Criminais, v. 4, n. 15,
jul./set. 2004.
120
Cf., dentre as decisões mais recentes, STJ, DJU 20 nov. 2006, HC nº 55.500, Rel. Min. Felix Fischer;
STJ, DJU 9 out. 2006 REsp nº 756.891, Rel. Min. Gilson Dipp; e STJ, DJU 2 out. 2006 HC nº 43.030,
Rel. Min. Paulo Gallotti.
121
STF, DJU 18 fev. 2005, HC nº 84.367, Rel. Min. Carlos Britto.
122
STF, DJU 23 out. 1998, HC nº 77.371, Rel. Min. Nelson Jobim.

41
inquérito é procedimento meramente informativo, não submetido ao crivo do
contraditório e no qual não se garante o exercício da ampla defesa”123 .

Por outro lado, em decisão recente, o Tribunal entendeu não caber


ao Ministério Público inquirir diretamente testemunha, ainda que se cuide de
investigação de crime cuja autoria é atribuída a Delegado de Polícia. Nessa
oportunidade, decidiu expressamente que “a norma constitucional” não havia
contemplado “a possibilidade de o parquet realizar e presidir inquérito policial”124 .
Logo em seguida, no entanto, já admitiu que fosse oferecida denúncia pelo Ministério
Público a partir de sindicância que instaurara para apurar crimes de abuso sexual
praticados contra menores em entidade de amparo, conforme dispõe o art. 201, VII, do
Estatuto da Criança e do Adolescente: “Compete ao Ministério Público: (...) instaurar
sindicâncias, requisitar diligências investigatórias e determinar a instauração de
inquérito policial, para apuração de ilícitos ou infrações às normas de proteção à
infância e à juventude”. A Corte teve o cuidado de esclarecer que esta última hipótese
não se confundia com a examinada no RHC nº 81.326, “que tratava de falta de
legitimidade do Parquet para presidir ou desenvolver diligências pertinentes ao
inquérito policial”. Tratava-se de “questão relativa à infância e à juventude” e, por isso,
era “regulada por lei especial que tem previsão específica”125 .

A questão, hoje, encontra-se pendente de decisão definitiva, a ser


proferida pelo Plenário do STF 126 . Ajuizada ação penal a partir de investigações levadas
a termo pelo Ministério Público, os Ministros Marco Aurélio e Nelson Jobim votaram
pelo seu não recebimento. O Ministro Joaquim Barbosa votou em sentido contrário,
argumentando que o Ministério Público poderia, no caso, realizar as investigações, por
se tratar de questão envolvendo direitos difusos (proteção do Patrimônio Público). Para
o Ministro, a discussão acerca da possibilidade de o Ministério Público realizar
investigações criminais envolvia a apreciação do âmbito material em que se situava a
conduta delitiva. Os Ministros Eros Grau e Carlos Britto acompanharam a divergência,
após o que o Ministro Cezar Peluso pediu vista dos autos, adiando o julgamento

123
STF, DJU 3 mar. 2000, HC nº 77.770, Rel. Min. Néri da Silveira .
124
STF, DJU 1º ago. 2003, RHC nº 81.326, Rel. Min. Nelson Jobim.
125
STF, DJU 30 abr. 2004, HC nº 82.865, Rel. Min. Nelson Jobim.
126
STF, Informativo STF nºs 359 e 325, Inq. nº 1.968/DF, Rel. Min. Marco Aurélio.

42
definitivo da lide. A expectativa hoje em vigor é de que o STF resolva, ainda que
parcialmente, a polêmica.

Aqui também tem lugar um problema de desenho institucional.


Não é sustentável a tese segundo a qual a titularidade da ação pena l leva
necessariamente à faculdade de colher as provas para o seu ajuizamento. Essa é uma
possibilidade, dentre outras – a separação das funções entre Polícia e Ministério Público
é, inclusive, mais facilmente extraída do texto constitucional. O tema não é de
interpretação do direito, mas de decisão política, e é nessa esfera que se situam as mais
convincentes objeções à possibilidade da investigação ministerial. Nada obstante a
tendência de aumento eventual da eficiência da atividade investigatória, é considerável
o risco de que, com o tempo, o envolvimento direto em investigações altere a cultura
institucional do MP e, com isso: (a) reduza a predisposição dos órgãos ministeriais para
controlarem os excessos das autoridades policiais; (b) leve os próprios órgãos
ministeriais a praticarem excessos; (c) enfraqueça os laços que hoje unem a instituição
ao estado democrático de direito, como ocorreu durante o período ditatorial. Se isso
ocorresse, a liberdade ficaria seriamente ameaçada. O risco não é igual em todos os
estados da Federação, mas, de todo o modo, deve ser seriamente ponderado, tendo em
vista a preservação das virtudes do presente arranjo institucional. A decisão mais
prudente é não generalizar os poderes investigatórios do Ministério Público, e optar pelo
modelo que mais diretamente decorre das previsões constitucionais expressas: conferir a
tarefa de investigar a uma instituição, e a titularidade da ação penal a outra.

Contudo, a despeito da tese geral que se adote, há um caso em que


a investigação criminal por parte do Ministério Público pode efetivamente se justificar
através da teoria dos poderes implícitos. Como cabe ao Ministério Público o controle
externo da atividade policial127 , é razoável que investigue diretamente os crimes que

127
Conforme o art. 3º da Lei Complementar, “O Ministério Público da União exercerá o controle externo
da atividade policial tendo em vista: a) o respeito aos fundamentos do Estado Democrático de Direito, aos
objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, aos princípios informadores das relações
internacionais, bem como aos direitos assegurados na Constituição Federal e na lei; b) a preservação da
ordem pública, da incolumidade das pessoas e do patrimônio público; c) a prevenção e a correção de
ilegalidade ou de abuso de poder; d) a indisponibilidade da persecução penal; e) a competência dos
órgãos incumbidos da segurança pública”.

43
tenham sido praticados por policiais 128 . Se a investigação desses delitos fica restrita aos
órgãos internos às corporações, especialmente à Corregedoria de Polícia, não há, de
fato, controle externo. Se a atuação do Ministério Público, também aqui, circunscreve-
se ao ajuizamento da ação penal e à requisição de diligências no inquérito, a norma que
lhe atribui a competência para realizar o controle externo da atividade policial perde, em
grande parte, sua efetividade 129 . Ao contrário do que ocorre quando se investiga um
particular, a investigação pelo Ministério Público de crimes praticados por policiais não
põe em risco o mecanismo da limitação recíproca que caracteriza o sistema de freios e
contrapesos. É, antes, prerrogativa que se identifica com a finalidade fundamental do
sistema, ao permitir a fiscalização efetiva dos órgãos estatais que, por lidarem
diretamente com o uso da força, maiores prejuízos podem causar à liberdade individual.

O Conselho Superior do Ministério Público Federal, assumindo o


propósito de ampliar a atuação ministerial em investigações, editou a Resolução nº
77/2004. A Resolução prevê a instauração de “procedimento investigatório criminal”,
por membro do Ministério Público Federal, no âmbito de suas competências criminais
(art. 2º). O que é um “procedimento investigatório criminal” senão um inquérito 130 ? A
Resolução nº 77 foi editada a pretexto de regulamentar o art. 8º da Lei Complementar nº
75/1993, que dispõe sobre a organização, as atribuições e o estatuto do Ministério
Público da União. De fato, de acordo com o citado art. 8º, os órgãos ministeriais
poderão, nos “procedimentos de sua competência”, realizar diligências. O que a Lei não
estabelece, como veio a ocorrer na Resolução, é a competência do Ministério Público
para a instauração de “procedimento investigatório criminal”. Limita-se, em seu art. 7º,

128
De acordo com a LC nº 75/1993, art. 9º, “O Ministério Público da União exercerá o controle externo
da atividade policial por meio de medidas judiciais e extrajudiciais podendo: I – ter livre ingresso em
estabelecimentos policiais ou prisionais; II – ter acesso a quaisquer documentos relativos à atividade-fim
policial; III – representar à autoridade competente pela adoção de providências para sanar a omissão
indevida, ou para prevenir ou corrigir ilegalidade ou abuso de poder; IV – requisitar à autoridade
competente para instauração de inquérito policial sobre a omissão ou fato ilícito ocorrido no exercício da
atividade policial; V – promover a ação penal por abuso de poder”.
129
Atualmente, há a tendência de se intensificar também o controle de políticas de segurança pela via de
ações coletivas, para o que o Ministério Público é especialmente talhado. Cf. SANTIN, Valter Foleto.
Controle judicial da segurança pública..., cit., p. 221 ss.
130
Na condução das investigações, o Procurador poderá “notificar testemunhas e requisitar sua condução
coercitiva, nos casos de ausência injustificada”; “requisitar informações, exames, perícias e documentos
de autoridade da administração pública”, “requisitar informações e documentos a entidades privadas”,
“realizar inspeções e diligências investigatórias” e “expedir notificações e intimações” (art. 8º).

44
a permitir que o Ministério Público Federal instaure “inquérito civil e outros
procedimentos administrativos correlatos” e requisite “diligências investigatórias e a
instauração de inquérito policia l e de inquérito policial militar, podendo acompanhá- los
e apresentar provas”. Por essas razões, a Resolução nº 77 é incompatível com a
Constituição Federal, a não ser no que concerne ao controle das autoridades policiais.
Do contrário, tratar-se-ia de “regulamento autônomo” incapaz de retirar seu fundamento
de validade diretamente do texto constitucional131 .

Há um argumento recorrente de justificação da atuação


ministerial em investigações: a Polícia, por se submeter administrativamente ao
Executivo, não tem independência para investigar as autoridades públicas a que se
subordinam. 132 A preocupação se justifica. A subordinação das autoridades policiais aos
governantes reduz a independência das investigações quando os investigados são os
próprios governantes. Nessa hipótese, a atribuição de poderes investigatórios a
promotores e procuradores não exibe os riscos acima apontados, já que a atividade
também pode se inserir no âmbito do sistema de freios e contrapesos. Contudo, não se
trata de hipótese capaz de ser extraída diretamente do texto constitucional, como a
relativa ao controle da atividade policial. Por isso, embora a Constituição não a vede, a
investigação de autoridades públicas pelo MP depende da edição de lei que a autorize e
discipline. No entanto, a mesma finalidade – garantir a independência da investigação
de autoridades públicas – pode ser alcançada através de outros modelos institucionais.
Em especial, através (a) da concessão de autonomia administrativa e financeira aos
órgãos policiais responsáve is por investigações, e (b) do aprimoramento do controle
externo da atividade policial, com a criação de conselhos nacionais e estaduais de

131
Como antes consignado, a doutrina tradicional aponta, há muito, que à Administração pública só é
facultado agir quando a lei o determina ou permita. Essa vinculação positiva à lei distinguiria a esfera da
Administração da esfera privada. Nesta, os particulares podem agir desde que a lei não o proíba. Naquela,
a ação da Administração dependeria de autorização legal. A lei exerceria, nesse sentido, uma função
negativa relativamente à conduta individual privada e uma função positiva no que concerne à
Administração. Contudo, a vinculação positiva da Administração à lei tem sido, em termos gerais, objeto
de flexibilização por via doutrinária e jurisprudencial. Hoje, já se sustenta que o administrador não precisa
estar autorizado a agir por texto expresso da lei quando seu ato se apoiar em norma constitucional, mesmo
que se trate de norma -princípio. A vinculação à lei tem sido entendida como “vinculação ao Direito”, que
é composto também por princípios. A Resolução nº 77, contudo, não é capaz de extrair fundamento direto
do texto constitucional.
132
Cf. RANGEL, Paulo. Investigação criminal direta pelo Ministério Público. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2005.

45
polícia judiciária. Esse é um dos temas que tendem figurar na agenda de reformas
legislativas e constitucionais nos anos que se seguem. 133

III.5.3. A participação de magistrados na investigação criminal

As dúvidas que cercam a participação do Ministério Público nas


investigações criminais não se aplicam à magistratura134 . No Brasil, não há a
possibilidade de o juiz realizar investigação criminal. Vigora, aqui, o “sistema
acusatório”135 . O órgão público que acusa não pode ser o mesmo que julga. O
magistrado é concebido como um terceiro imparcial e equidistante em relação à
acusação e à defesa. O contrário ocorre no “sistema inquisitorial”, em que as
investigações são conduzidas pelos mesmos agentes públicos que proferem a sentença.
A realização dessas duas atividades pelos mesmos agentes faz com que se
comprometam com a acusação, tornando-se incapazes de um juízo imparcial. O sistema
inquisitorial é considerado, por isso, incompatível com as garantias constitucionais
processuais, especialmente com o contraditório e a ampla defesa. Não foi por outra
razão que o Supremo Tribunal Federal considerou inconstitucional a realização, por
magistrados, de diligências de busca e apreensão de documentos. A faculdade estava
prevista no art. 3º da Lei nº 9.034/1995. O STF julgou o preceito inconstitucional por
entender que haveria “comprometimento do princípio da imparcialidade e conseqüente
violação ao devido processo legal”. As “funções de investigador e inquisidor” seriam

133
Esse é o teor, por exemplo, de proposta do Conselho Federal da OAB, que acolheu sugestão formulada
pelo jurista Fábio Konder Comparato.
134
Sobre o papel do juiz na investigação criminal, cf. GENOFRE, Roberto Mauricio. O papel do juiz
criminal na investigação policial. Juízes para a Democracia, v. 5, n. 23, jan./mar., 2001; TONIAI, Cleber
Augusto. Investigações judiciais no direito da infância e da juventude. Da exceção ao desastre. AJURIS,
v. 29, n. 88, dez. 2002; ABADE, Denise Neves. A consagração do sistema acusatório com o afastamento
do juiz do inquérito policial. Boletim IBCCrim, v. 5 , n. 55, jun. 1997.
135
Cf. TORNAGHI, Hélio. Instituições de processo penal. Rio de Janeiro: Forense, 1959. v. I, p. 200-
201; PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais .
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999; CARVALHO, Salo de. Execução penal e sistema acusatório: leitura
desde o paradigma do garantismo jurídico-penal. In: BONATO, Gilson (org.). Direito penal e processual
penal: uma visão garantista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001; CABETTE, Eduardo Luiz Santos. O
papel do inquérito policial no sistema acusatório. O modelo brasileiro. Revista Brasileira de Ciências
Criminais, v. 9, n. 35, jul./set. 2001.

46
“atribuições conferidas ao Ministério Público e às Polícias Federal e Civil”, não aos
juízes 136 .

III.5.4. A Força Nacional de Segurança

A Força Nacional de Segurança (FNS) foi criada pelo Decreto


5.289, de 29 de novembro de 2004. De acordo com o Decreto, trata-se de “programa de
cooperação federativa”, “ao qual poderão voluntariamente aderir os Estados
interessados” (art. 1º). Seu papel é o de “atuar em atividades de policiamento ostensivo”
(art. 2º), e seu emprego só pode ocorrer “mediante solicitação expressa do respectivo
Governador de Estado ou do Distrito Federal” (art. 4º). O “programa” é “composto por
servidores que tenham recebido, do Ministério da Justiça, treiname nto especial para
atuação conjunta, integrantes das polícias federais e dos órgãos de segurança pública
dos Estados” (art. 4º, § 2º). Cabe ao Ministério da Justiça “coordenar o planejamento, o
preparo e a mobilização da Força Nacional de Segurança Pública” (art. 10, caput), o que
compreenderá, dentre outras atribuições, a de definir a estrutura de comando (art. 10, I).

O Decreto que criou a Força Nacional de Segurança era de


constitucionalidade duvidosa. No preâmbulo do Decreto, sugere-se que sua função seria
regulamentar a Lei nº 10.201, de 14 de fevereiro de 2001, que institui o Fundo Nacional
de Segurança Pública. Contudo, de fato, o Decreto, que é ato administrativo, não
regulamenta a Lei nº 10.201. Esta cria o Fundo Nacional de Segurança Pública, com a
finalidade de “apoiar projetos na área de segurança pública e de prevenção à violência,
enquadrados nas diretrizes do plano de segurança pública do Governo Federal” (art. 1º),
sem, todavia, autorizar o Governo Federal a criar a denominada “Força Nacional de
Segurança”. Isso só veio a ocorrer com a edição da Medida Provisória nº 345, de 14 de
janeiro de 2007, convertida na Lei nº 11.473/2007, cujo artigo 2º determina que a
cooperação federativa em matéria de segurança pública “compreende operações
conjuntas, transferências de recursos e desenvolvimento de atividades de capacitação e
qualificação de profissionais, no âmbito da Força Nacional de Segurança Pública”.

136
STF, DJU 22 out. 2004, ADI nº 1.570, Rel. Min. Maurício Corrêa.

47
O federalismo brasileiro é cooperativo 137 . Os entes da federação
devem cooperar entre si para a realização das finalidades públicas: compartilham a
“obrigação ao entendimento”138 . A União tem o dever de cooperar com os estados para
auxiliá- los no alcance de suas metas também no campo da segurança pública. Para isso,
é adequada a criação da Força Naciona l de Segurança, a ser empregada no auxílio aos
governos estaduais, quando estes requisitarem, para a realização de policiamento
ostensivo, em conjunto com a polícia estadual. A interpretação do art. 144 da
Constituição Federal como taxativo, que predomina no STF, não contribui para a
conformação desse tipo de arranjo cooperativo, e deve, pelo menos no tocante a este
ponto, ser superada. Corrigidos os vícios formais que caracterizaram seu ato de criação,
com a edição da Lei nº 11.473/2007, a Força Nacional de Segurança pode representar
uma importante inovação institucional cooperativa, que possui o mérito de reduzir a
pressão autoritária pela mobilização inconstitucional das Forças Armadas.

III.5.5. As guardas municipais e a participação dos municípios nas políticas de


segurança pública

A Constituição, no art. 144, se refere aos municípios apenas para


lhes atribuir competência para constituírem guardas municipais destinadas à proteção
de seus bens, serviços e instalações. A Guarda Municipal tem a função de guarda
patrimonial. Não se trata de órgão policial. Não é atribuição das guardas municipais,
segundo a Constituição Federal, realizar nem investigação criminal nem policiamento
ostensivo. Não foi por outra razão que o TJ-RJ julgou inconstitucional o Decreto nº
20.883, de 17 de dezembro de 2001, do Município do Rio de Janeiro, que obrigava “os
Bancos e centros comerciais de grande porte – Shopping Centers, Supermercados e
Hipermercados – a enviarem mensalmente ao Gabinete do Prefeito os dados das
ocorrências de seqüestros relâmpagos, disponíveis em função das informações ligadas
aos seus cartões de crédito e comerciais, sob motivação de cumprir a função de ‘defesa
do cidadão’ através da presença ostensiva da Guarda Municipal nos locais de maior
incidência”. O Tribunal entendeu que o Decreto “invade a parcela de segurança publica

137
Na literatura jurídica brasileira, cf.: BERCOVICI, Gilberto. Desigualdades regionais, Estado e
Constituição. São Paulo: Max Limonad, 2003; BONAVIDES, Paulo. A Constituição aberta. 2ª ed. São
Paulo: Malheiros, 1996. p. 433.
138
ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria Geral do Estado. Lis boa: Fundação Caloustre Gulbenkian, 1997. p.
512.

48
deferida ao Estado (CF, art. 144, caput e §§ 4º, 5º, 6º, e 8º da Carta Magna) e incorre em
flagrante inconstitucionalidade frente à Carta Magna Estadual” 139 . Pelos mesmos
motivos, o TJ-RJ julgou inconstitucional ainda a delegação aos municípios do poder de
realizar o policiamento ostensivo das vias públicas, multando os motoristas que
praticassem infrações de trânsito 140 .

Além dessa prerrogativa de instituírem guardas municipais, os


municíp ios podem atuar na segurança pública através da imposição de restrições
administrativas a direitos e liberdades. O município pode, por exemplo, delimitar o
horário de funcionamento de bares e restaurantes, ou os locais da venda de bebidas
alcoólicas. Tais restrições, de caráter administrativo, exercem importante função na
segurança pública, prevenindo a prática de delitos. Na região metropolitana de São
Paulo, mais de 20 municípios já editaram leis restringindo o horário de funcionamento
de bares 141 . Em alguns casos, a redução do número de homicídios chegou a 60%
(Diadema) e a de acidentes de trânsito a 70% (Barueri) 142 . Como se observa, esse tipo
de medida pode produzir efeitos bastante mais significativos que medidas de caráter
penal ou policial, embora também produzam impactos econômicos e culturais que
devem ser considerados 143 .

139
TJ-RJ, j. 21 out. 2002, Representação nº 2002.007.00022, Rel. Des. Laerson Mauro.
140
Cf. TJ-RJ, j. 5 ago. 2002, Representação nº 2001.007.00070, Des. Gama Malcher: “As atividades
próprias do Estado são indelegáveis, pois só diretamente ele as pode exercer; dentre elas se inserem o
exercício do poder de policia de segurança pública e o controle do trânsito de veículos, sendo este
expressamente objeto de norma constitucional estadual que a atribui aos órgãos da administração direta
que compõem o sistema de trânsito, dentre elas as Polícias Rodoviárias (Federal e Estadual) e as Polícias
Militares Estaduais. Não tendo os Municípios Poder de Polícia de Segurança Pública, as Guardas
Municipais que criaram tem finalidade específica – guardar os próprios dos Municípios (prédios de seu
domínio, praças etc.) sendo inconstitucionais leis que lhes permitam exercer a atividade de segurança
pública, mesmo sob a forma de Convênios”.
141
Na região metropolitana de São Paulo, até março de 2006, leis restringindo o horário de
funcionamento de bares foram editadas nos seguintes municípios: Barueri, Cotia, Diade ma, Embu, Embu-
Guaçu, Francisco Morato, Ferraz de Vasconcelos, Itapecerica da Serra, Itapevi, Jandira, Juquitiba, Mauá,
Mogi das Cruzes, Osasco, Poá, São Caetano do Sul, São Lourenço da Serra, Suzano, Taboão da Serra,
Vargem Grande Paulista.
142
Para um inventário dessas experiências, cf. KAHN, Túlio; ZANETIC, André. O papel dos municípios
na segurança pública. In http://www.mj.gov.br.
143
Do mesmo modo, ao legislar sobre proteção do consumidor, suplementando a legislação federal e
estadual, o município é competente, por exemplo, para estabelecer normas de garantia da segurança de
usuários de serviços bancários, o que tem direta repercussão no campo da segurança pública. Cf. STF,
DJU 5 ago. 2005, AI-AgR nº 347.717, Rel. Min. Celso de Mello: “O Município pode editar legislação
própria, com fundamento na autonomia constitucional que lhe é inerente (CF, art. 30, I), com o objetivo
de determinar, às instituições financeiras, que instalem, em suas agências, em favor dos usuários dos
serviços bancários (clientes ou não), equipamentos destinados a proporcionar-lhes segurança (tais como
portas eletrônicas e câmaras filmadoras)”.

49
A importância dos municípios para a segurança pública vem
crescendo progressivamente, sobretudo quando se entende que sua garantia demanda
não apenas ações policiais, mas também ações sociais e econômicas. Na verdade, a
análise de dados empíricos demonstra que “a) não há como equacionar o grave
problema da segurança pública, deixando de enfrentar a questão da exclusão econômica
e social; e b) a mera alocação de recursos aos setores de segurança pública – sem que se
discuta a eficiência – está fadada a replicar um modelo de polícia esgotado, com
desprezíveis resultados para a paz social”. A conclusão é extraída de pesquisa
econômica (IPEA) que avaliou dados dos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo,
relativos às décadas de 1980 e 1990 144 . De fato, os municípios brasileiros em que há
mais violência são também os que se caracterizam por maior desigualdade e exclusão
social145 . Quando as prefeituras municipais atuam no campo econômico e social, no
sentido da redução da desigualdade, estão contribuindo também para a redução dos
índices de violência. Isso ocorre especialmente quando as políticas econômicas e sociais
de inclusão consideram também o objetivo de prevenir a prática de delitos e, para isso,
concentram-se nas áreas de maior risco e beneficiam as parcelas mais sensíveis da
população, sobretudo sobre os jovens. Políticas de horário integral nas escolas públicas,
fomento ao primeiro emprego, prevenção do uso de drogas, renda mínima, entre outras,
possuem um impacto muito significativo na segurança pública, e também se inserem na
esfera de competências da administração municipal146 .

III.5.6. A participação popular nas políticas de segurança pública

144
CERQUEIRA Daniel; LOBÃO Waldir. Condicionantes sociais, poder de polícia e o setor de
produção criminal. Rio de Janeiro: IPEA, 2003.
145
No estado do Rio de Janeiro, por exemplo, são os municípios da Baixada Fluminense: Duque de
Caxias, Nova Iguaçu, São João do Meriti, Belford Roxo. Já as cidades com melhores indicadores sociais e
econômicos também costumam se caracterizar por baixos índices de violência. No Brasil, os melhores
índices verificam-se, subseqüentemente, em Maringá (PA), Joinville (SC), Juiz de Fora (MG), Pelotas
(RS), Franca (SP), Petrópolis (RJ), Montes Claros (MG), São José do Rio Preto (SP), Bauru (SP) e
Uberlândia (MG).
146
Contemporaneamente, tem se consolidado o modelo de segurança pública denominado “nova
prevenção”, que se caracteriza justamente por políticas integradas, que envolvem medidas de
planejamento urbano, saúde, educação, habitação e trabalho, deixando de privilegiar as instituições do
sistema de justiça criminal. Além disso, a “nova prevenção” se caracteriza por priorizar também soluções
locais. Cf. DIAS NETO, Theodomiro. Segurança urbana: o modelo da nova prevenção. São Paulo:
FGV/RT, 2005.

50
A Constituição Federal, ao caracterizar a segurança pública como
“direito e responsabilidade de todos” e ao positivar o princípio democrático, estabelece
o fundamento jurídico dos arranjos institucionais que permitem a participação popular
na formulação e no controle da gestão das políticas de segurança. É o que ocorre, por
exemplo, nas experiências de policiamento comunitário ou, ainda, na dos conselhos de
segurança pública. Tais experiências, particulares ao campo da segurança pública, se
inserem no contexto atual de ampliação dos espaços de participação popular, no sentido
da superação dos limites da democracia meramente representativa.

O policiamento comunitário pressupõe um relacionamento


cooperativo entre a polícia e a comunidade, através da interação continuada entre
policiais e cidadãos, para compartilhar informações e para apresentar demandas e
possibilidades de trabalho conjunto. Ao invés do uso indiscriminado da força,
privilegia-se a mediação de conflitos e a prevenção da ocorrência de delitos147 . O
policial se converte em referência para a comunidade, participa das reuniões de seus
órgãos representativos, reivindicando providências, mas também prestando contas.
Quatro inovações costumam ser apresentadas como essenciais para o policiamento
comunitário: (a) organizar o policiamento tendo como base a comunidade; (b) enfatizar
os serviços não emergenciais e mobilizar a comunidade para participar da prevenção ao
crime; (c) descentralizar o comando da polícia; (d) instituir a participação de cidadãos
no planejamento e no monitoramento das atividades policiais 148 . Como se observa,
trata-se de modelo de organização da atividade policial comprometido com os
propósitos de democratização de que a Constituição Federal de 1988 está amplamente
impregnada. Por essa razão, inexistem óbices jurídicos à sua implantação. As
dificuldades que se têm apresentado relacionam-se à estrutura centralizada das polícias,

147
Cf.: CERQUEIRA, Carlos M. N. A polícia comunitária: uma nova visão de política de segurança
pública. Discursos Sediciosos, n. 4, 1997; MACAULAY, Fiona. Parcerias entre estado e sociedade civil
para promover a segurança do cidadão no Brasil. Sur: Revista Internacional de Direitos Humanos, ano 2,
n. 2, 2005. p. 159; TROJANOWICZ, Robert; BUCQUEROUX, Bonnie. Policiamento comunitário: como
começar? Rio de Janeiro: PMERJ, 1994; SKOLNICK, J.H.; BAYLEY, D.H. Policiamento comunitário.
São Paulo: EDUSP, 2002; KANH, Tulio. Velha e nova polícia: polícia e políticas de segurança pública no
Brasil atual. São Paulo: Editoria Sicurezza, 2002.
148
BAYLEY, D. H.; SKOLNICK, J. H. Nova Polícia: inovações nas polícias de seis cidades norte-
americanas. Trad. Geraldo Gerson de Souza. São Paulo: EDUSP, 2001. p. 233-236.

51
típica das organizações militares, e à separação entre a atividade de prevenção e de
investigação de delitos, provocada pela divisão entre policia civil e militar 149 .

Outra experiência que se orienta no sentido da democratização


das políticas de segurança é a instituição de conselhos de segurança pública. Apenas a
Cidade de São Paulo possui mais de 80 conselhos. Dentre as suas tarefas, está a de
“constituir-se no canal privilegiado pelo qual a Secretaria da Segurança Pública
auscultará a sociedade, contribuindo para que a Polícia Estadual opere em função do
cidadão e da comunidade”150 . Os conselhos não podem interferir, de modo cogente, na
atuação dos órgãos estatais: operam apenas como fóruns de debate e controle
deliberativo da gestão governamental. Os conselhos buscam elaborar soluções
comunitárias para os problemas da segurança, o que pode levar não apenas à maior
democratização do setor, mas também ao aumento da eficiência da gestão pública, que
passa a se dar considerando as demandas e informações que advêm da comunidade.
Apesar da pouca participação popular efetiva que ainda caracteriza esse tipo de fórum
deliberativo, em diversos locais, em que conselhos estão em funcionamento, já se
observa razoável aprimoramento da eficiência da atuação policial, com a queda do
número de delitos151 .

Em algumas experiências, procurou-se conferir poder decisório às


comunidades locais, e não apenas funções de deliberação e consulta. A Constituição do
Estado do Rio de Janeiro (art.183, §4º, b e c) 152 previa que a nomeação dos delegados
de polícia dependeria de aprovação da população municipal, e que sua destituição

149
Para a avaliação de algumas experiências já implementadas, cf. MUSUMECI, Leonarda. Segurança
pública e cidadania: a experiência de policiamento comunitário de Copacabana. Rio de Janeiro: ISER,
1996; MESQUITA NETO, Paulo. Policiamento comunitário e prevenção do crime: a visão dos coronéis
da Polícia Militar. São Paulo em Perspectiva, vol. 18, n. 1, 2004.
150
Regula mento dos Conselhos Comunitários de Segurança, art. 4º, I e II. Cf. também o Decreto nº
23.455, de 10 de maio de 1985.
151
Macaulay reporta a queda de 47,7% na cidade de Lages, em Santa Catarina, após a instalação dos
Conselhos. Contudo, o mesmo estudo aponta ainda a pouca representatividade dos Conselhos no contexto
presente (MACAULAY, Fiona. Parcerias entre estado e sociedade civil..., cit., p. 156).
152
O texto da Constituição Estadual dispunha o seguinte: “Nas jurisdições policiais com sede nos
Municípios, o delegado de polícia será escolhido entre os delegados de carreira, por voto unitário
residencial, por período de dois anos, podendo ser reconduzido, dentre os componentes de lista tríplice
apresentada pelo Superintendente da Polícia Civil: a) o delegado de polícia residirá na jurisdição policial
da delegacia da qual for titular; b) a autoridade policial será destituída, por força de decisão de maioria
simples do Conselho Comunitário da Defesa Social do Município onde atuar; c) o voto unitário
residencial será representado pelo comprovante de pagamento de imposto predial ou territorial”.

52
ocorreria por decisão do Conselho Comunitário de Defesa Social do município. O STF,
no entanto, tem sido restritivo quanto a essa possibilidade: declarou o preceito da
Constituição Estadual inválido. A Corte entendeu que a Constituição Federal, no §6º do
art. 144, submete as polícias estaduais, civil e militar, aos go vernadores dos estados,
razão pela qual apenas a eles caberia dispor sobre a nomeação e a exoneração de
delegados 153 . Apesar de a Constituição de 1988 ter ampliado a autonomia dos entes
federados, orientando-se pelo objetivo de promover a descentralização das
competências federativas, a jurisprudência brasileira tem sido pouco afeita a inovações
institucionais nos planos regional e local de governo, e isso se manifesta também no
domínio da segurança pública154 .

IV. Conclusão

As maiores ameaças à democracia e ao estado de direito no Brasil


de hoje advêm das políticas de segurança pública, que têm assumido uma orientação
predominantemente autoritária. A política de “combate”; a criação de “inimigos
públicos”; a criminalização do negro e do pobre; o apelo ao emp rego das Forças
Armadas: é nesse tipo de retórica que germinam os elementos irracionais do ambiente
153
STF, DJU 31 out. 2002, ADI nº 244, Rel. Min. Sepúlveda Pertence: “A Constituição não abriu
ensanchas, contudo, à interferência popular na gestão da segurança pública: ao contrário, primou o texto
fundamental por sublinhar que os seus organismos – as polícias e corpos de bombeiros militares, assim
como as polícias civis, subordinam-se aos Governadores”. Por outro lado, havia um elemento nesse
preceito constitucional estadual que efetivamente merecia reprovação sob o prisma democrático. Tratava-
se do voto unitário residencial, deferido apenas para os contribuintes de IPTU. O voto unitário residencial
não é compatível com o princípio democrático, por tender a concentrar a decisão no “chefe da família”. A
restrição do corpo eleitoral aos contribuintes de IPTU tendia a excluir justamente aqueles que, em regra,
são vítimas de arbitrariedade policial: os moradores de áreas não formalizadas. Foi também o que
entendeu o STF: “dado o seu caráter censitário, a questionada eleição da autoridade policial é só
aparentemente democrática: a redução do corpo eleitoral aos contribuintes do IPTU – proprietários ou
locatários formais de imóveis regulares – dele tenderia a subtrair precisamente os sujeitos passivos da
endêmica violência policial urbana, a população das áreas periféricas das grandes cidades, nascidas, na
normalidade dos casos, dos loteamentos clandestinos ainda não alcançados pelo cadastramento
imobiliário municipal”.
154
Em parte, a orientação se justifica. De fato, há o risco de que arranjos institucionais desprovidos de
razoabilidade sejam praticados em estados e, sobretudo, em municípios. No entanto, a jurisprudência
constitucional foi mais longe do que deveria em sua prudência quanto à organização federativa, e deve
abrir mais espaço para a experimentação democrática. As inovações institucionais devem ser
experimentadas, preferivelmente nos planos locais, para que depois possam ser estendidas ao restante da
Federação. A atribuição de poder decisório efetivo aos órgãos em que há participação direta da
população, por exemplo, pode contribuir para a construção de alternativas viáveis ao esgotamento que
acomete várias instituições representativas. Após terem sido testadas no nível local, tais alternativas
podem ser reproduzidas em outras cidades e, eventualmente, contribuir para a formulação de um modelo
de segurança pública mais capaz de responder às demandas do País.

53
cultural adequado à emergência do autoritarismo. Não há dúvidas de que parte
considerável da população brasileira é objeto de práticas autoritárias. Não há dúvida
tampouco de que, em parcela do território, não vigora o estado democrático de direito.
A imprensa, quando flerta com esse imaginário, não está senão fomentando as bases
culturais que põem em cheque a estabilidade das instituições democráticas. O Jud iciário
e o Ministério Público, quando se omitem no controle das políticas de segurança, ou
decidem em desconformidade com a lei e o direito, não cumprem um dos principais
papéis que a Constituição de 1988 lhes incumbiu: a defesa das instituições
democráticas. Romper com a ilegalidade normal das políticas de segurança figura ainda
como um objetivo fundamental a ser perseguido pelo Estado brasileiro, como etapa
indispensável de nosso processo civilizatório e como condição de possibilidade do
progresso social.

54
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