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textos

Verger,
Bastide e
Métraux:
três
trajetórias
ENTrelaçadas
Angela Lühning

R
oger Bastide, Pierre correspondências que ocorreram nas décadas
Verger e Alfred Mé- de amizade que se estenderam até a morte dos
traux: três homens seus amigos, tendo sido Verger aquele que
com origens, trajetó- viveu por mais tempo. O lócus das reflexões
rias e histórias muito é em maior parte o Brasil, mas a extensão
diferentes, cada um geográfica da relação profissional e humana
conhecido pelas suas entre os três amigos passa por vários países,
pesquisas sobre as culturas africanas na Di- já que especialmente Verger e Métraux se
áspora e na África. Cada um tendo deixado deslocam com muita frequência para cuidar
importantes contribuições para a antropolo- de seus assuntos profissionais. Isso causa tan-
gia, a sociologia e a história do século XX, to intensas trocas de cartas, quanto encontros
conhecidas nas suas respectivas áreas. Menos mais eventuais em outras partes do mundo,
conhecidos são seus interesses em comum, embora o centro convergente seja o Brasil.
criando convergências que alimentaram co- A intensidade dos contatos torna-se sur-
laborações profissionais profícuas e amiza- preendente, levando-se em conta que foram
ANGELA LÜHNING
des pessoais profundas, que permitem novas realizados em uma época na qual se contava
é professora de interpretações, objetivo destas reflexões. para a comunicação apenas com a carta, pois
Etnomusicologia O centro de nosso enfoque é Pierre Fa- a telefonia era ainda rara. Portanto, a base das
da Escola de
Música da UFBA tumbi Verger, no ponto de encontro entre Mé- amizades são as intensas trocas de corres-
e diretora da
Fundação Pierre traux e Bastide. As reflexões incluem a aná- pondências entre Verger/Métraux e Verger/
Verger (Salvador). lise de vivências em pesquisas e as trocas de Bastide. O meio epistolar é usado por cada

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Pierre Verger
em Bom Jesus
da Lapa (foto
de Gautherot,
1950)
Fundação Pierre Verger

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um dos três tanto para dialogar sobre ques- 1946, primeiro em Nova York e depois, a partir
tões profissionais gerais e discutir questões de 1950, na Unesco em Paris. Seguiu, assim,
específicas, quanto para fazer desabafos de uma carreira política, com intensa atuação
ordem pessoal. Esse material torna-se uma de pesquisa com muitas publicações resul-
das fontes principais deste texto (Métraux tantes. Suicidou-se em abril de 1964 na Suíça.
& Verger, 1994), além do livro Itinéraires, Com Bastide e Métraux, Verger estabele-
publicação póstuma com anotações pessoais ceu intensa correspondência: são 115 cartas
de Métraux (1978) e um tanto controvertida trocadas com Métraux em dezessete anos,
por ter sido considerada pessoal demais1 e de 1946 a 1963, publicadas em 19942; e com
cujo impacto impediu a publicação do segun- Bastide são 227 cartas em vinte e sete anos,
do volume, inicialmente previsto. Também de 1947 a 1974, com tom bastante profissio-
foram consultados vários livros sobre Ver- nal, aguardando a publicação em breve.
ger e Bastide (Reuter, 2000; Peixoto, 2000; A relação de Verger e Métraux era mais
Verger, 1993, 2002, 2004; Lühning, 2008; afetiva, a ponto de se tratarem mutuamente
Ravelet, 1993; Le Bouler, 2002). de gêmeos3 pelo fato de terem nascido qua-
se na mesma hora – Verger no dia 4/11 em
OS INTERLOCUTORES Paris e Métraux no dia 5/11 em Lausanne,
EM LINHAS RÁPIDAS com apenas cinco horas de diferença – e
pelas semelhanças de suas personalidades.
Roger Bastide, de origem protestante do Porém, há também muitas diferenças: Mé-
sul da França, o mais velho entre os três, traux veio de sólida formação universitária,
nasceu em 1898. Sociólogo, com sólida car- enquanto Verger foi autodidata, incansável
reira acadêmica, lecionou dezesseis anos no observador do mundo do qual virou aos pou-
Brasil, na Universidade de São Paulo, entre cos seu descritor e escritor. É uma amizade
1938 e 1954, fato importante para a formação feita por muitas cartas, encontros rápidos e
1 Informação pessoal de de muitos sociólogos e antropólogos no país. algumas visitas mais longas4. A correspon-
Edgardo Krebs, pes- Também realizou várias pesquisas de campo, dência inicia-se em 1946, evidenciando em
quisador do Smithso-
nian Institut (Washing- com especial interesse pela cultura afro-bra- geral um tom bastante pessoal.
ton), em fevereiro de sileira, que resultaram em inúmeras publica- Em 1946, quando Verger conseguiu fi-
2011.
ções. Morreu em 10/4/1974 na França, logo nalmente sua permanência no Brasil, ele
2 Le Pied à l’Ètrier, editado
após sua última viagem ao Brasil em 1973. também conheceu Bastide, este já residente
por Le Bouler, 1994.
Pierre Edouard Léopold Verger nasceu em São Paulo desde 1938, lecionando socio-
3  “A Pierre Verger frére en
Scorpion et en Guinée em 4/11/1902 em Paris. Fotógrafo autodida- logia na Universidade de São Paulo. Bastide
avec l’ámité de son ma- ta, iniciou a sua itinerância após ter perdido assumira o lugar de Claude Lévi-Strauss, que
rassa”, dedicatória ma-
nuscrita de Métraux no
sucessivamente todos os membros de sua fa- tinha sido da primeira geração de professo-
livro Le Vaudou Haitien, mília até 1932. Sua atuação dificilmente cabe res daquela instituição, fundada em 1934. Em
evidenciando a consi-
em alguma categoria, pois não construiu uma 1944 Bastide já tinha realizado a sua primeira
deração mútua como
gêmeos. “Marassa” são carreira no senso comum. Tornou-se doutor pesquisa de campo em viagem pelo Nordeste
loas, entidades infantis em estudos africanos pela Sorbonne, pela brasileiro, que resultou na publicação de Ima-
haitianas de gêmeos,
correspondendo aos modalidade terceiro ciclo, especialista em re- gens do Nordeste Místico. Esse livro emble-
termos “ibeji” ou “ma- lações transatlânticas, mesmo sem formação mático foi lançado primeiro em português e,
baço”, ambos utiliza-
dos no Brasil. acadêmica convencional. Optou por morar apenas muitos anos depois, em francês. As
de forma definitiva em outro país e morreu fortes impressões dessa pesquisa fizeram
4 Como exemplo cita-se
o encontro de 1947 em Salvador (Bahia) em 11/2/1996. Bastide recomendar de forma enfática a ida
em Recife, por oca- Alfréd Métraux, nascido em 5/11/1902, na de Verger à Bahia para se instalar lá. E foi a
sião de uma rápida
passagem de Métraux Suíça, mas criado na Argentina, foi antropó- partir das observações de Verger sobre o livro
pelo aeroporto, onde logo, professor em várias universidades fora que se iniciou a intensa correspondência de
os dois amigos se en-
contraram por poucos da Europa, tendo ingressado em uma carreira ambos, uma vez que Bastide pediu a seu novo
instantes. nas Nações Unidas, onde trabalhou a partir de amigo para apontar questões a completar.

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Fundação Pierre Verger

Verger em
cerimônia
em Ifahin
nos anos 50 

A correspondência com Bastide à primeira linésia. Ambos tinham viajado para lá, mas
vista pode parecer mais técnica do que a tro- para lugares diferentes: Métraux, a Rapa Nui,
cada com Métraux, no sentido de discutirem Ilha de Páscoa, e Verger, a Rapa Iti, Taiti.
amplamente temas de pesquisas, realizadas Métraux também fotografava nas suas via-
individualmente ou em parceria, que se trans- gens e, através da solicitação do museu para
formaram em várias publicações em conjunto. Verger ampliar as fotos de Métraux, ambos
Os encontros pessoais entre ambos também se conheceram (Verger, 1992a, p. 175).
são esporádicos e em grande parte completa- O segundo assunto em comum foi cons-
dos e/ou substituídos pelas trocas epistolares. truído pelos dois a partir de pesquisas con-
secutivas e refere-se à Diáspora africana
TEMAS EM COMUM (Guiana Holandesa, Haiti e Brasil) e à Áfri-
ENTRE OS TRÊS ca, incluindo uma pesquisa em conjunto no
Daomé em 19525. Esse assunto certamente
Verger conheceu primeiro Métraux. constitui a temática central mais frutífera em 5 As respectivas fotos
Durante o primeiro encontro em 1935, no relação aos resultados. encontram-se no iní-
cio do livro Le Pied…
Musée de l’Homme em Paris, os dois per- Já no contato com Bastide o assunto em (Métraux & Verger,
ceberam logo um assunto em comum: a Po- comum quase exclusivo está ligado à temá- 1994).

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Fundação Pierre Verger


Verger e Bastide,
entre dois amigos,
no aeroporto de
Cotonou, em 1958
(por ocasião
da única viagem
de campo de Bastide
na África, por
intermédio e com
acompanhamento  
de Verger)

tica afro-brasileira, com ênfase às questões retorno à França, em 1954, como professor
religiosas, abordadas não somente em cartas, da Sorbonne 6; e Métraux como funcioná-
mas também nas poucas visitas de Bastide rio da ONU e, mais tarde, da Unesco. O
a Salvador e nas pesquisas realizadas em menos “comprometido” institucionalmen-
conjunto, além dos vários textos escritos a te, aparentemente, é Verger. Seus vínculos
quatro mãos, embora nem todos publicados institucionais constroem-se a partir das
em vida (ver Verger & Bastide, 2002). experiências acumuladas depois de ele ter
Serão escolhidos alguns períodos nas tra- completado 45 anos, primeiro como bolsis-
6 Entre 1951 e 1954, Basti- jetórias entre os três personagens que repre- ta do Institute Foundamental da Áfrique
de ficava um semestre
em Paris e um semes-
sentam momentos-chave para a compreensão Noire (Ifan) em Dakar, a partir de 1949,
tre em São Paulo, até das relações profissionais e pessoais que ofe- chegando ao ponto de ter sido pesquisador
retornar definitiva-
recem vários caminhos de interpretação: 1) o do Centre Nacional de Recherche Sciénti-
mente à França no final
de 1954. ano de 1948; 2) o período entre 1951 e 1953; fique (CNRS) a partir de 1962. Finalmen-
7 Isso se deve à desis- e 3) o período entre 1957 e 1959. te, antes de atingir o limite de idade de
tência da candidatura Nesse recorte entrelaçam-se fases consti- 70 anos, em 1972, ele se torna diretor do
de seu amigo, o etno-
musicólogo Gilbert
tutivas de trajetórias institucionais, a saber: CNRS7 e, no final de sua vida, professor
Rouget. Bastide como professor da USP e, depois do da Universidade Federal da Bahia, a par-

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tir da atuação na constituição do Museu do fotos de Verger, embora não seja men-
Afro-Brasileiro em Salvador nos anos 70. cionada nenhuma outra parceria em relação
ao tema e tampouco tenham sido citadas pu-
1948: A VIAGEM blicações de Verger já realizadas até aquele
À GUIANA HOLANDESA momento. Verger, por sua vez, só menciona
E AO HAITI – essa viagem e seus resultados em 50 Anos
VERGER/MÉTRAUX de Fotografia (1981), além de ter inserido
informações comparativas sobre os sistemas
Métraux esteve envolvido no Projeto religiosos da Diáspora em Dieux d’Afrique e
Marbial, realizado desde 1948 pela Unesco textos posteriores, quando se refere a Cuba e
na região com nome homônimo, já tendo ao Haiti. Assim, essa viagem deve ser consi-
ficado entre 1941 e 1944 várias vezes por derada como marco para ações posteriores.
períodos consideráveis no Haiti (Métraux,
1978, pp. 125-54). Também já tinha visitado a ANOS 50: O PROJETO
Guiana Holandesa em 1947 (Métraux, 1978, UNESCO – MÉTRAUX,
pp. 180-92), sempre interessado nas questões BASTIDE E VERGER
envolvendo as populações autóctones ou, en-
tão, no Haiti, as relações entre religiões afri- Em meados de 1949, a Unesco aceitou
canas e questões de desenvolvimento social e a ideia de realizar investigações sociológi-
econômico em relação às tradições culturais8. cas e antropológicas no Brasil por sugestão
A viagem de Métraux e Verger inicia-se de Artur Ramos, responsável pelo Departa-
com um encontro em Belém, de onde seguem mento de Ciências Sociais da Unesco (Maio,
para a Guiana Holandesa. Métraux, depois de 1999, p. 142) cuja direção assumira. A Unes-
um curto período em conjunto, segue para o co, como outros organismos internacionais,
Haiti, enquanto Verger fica ainda na Guiana, mostrava uma preocupação grande com a
continuando com as suas observações foto- questão do racismo após os acontecimentos
gráficas nas comunidades djuka e saramaka, da Segunda Guerra Mundial. Via-se o Brasil
de tradições oriundas da África Ocidental9. como um país que poderia trazer importan-
Em seguida ambos se encontram no Haiti. tes contribuições para a discussão do tema
Supõe-se que a participação de Verger por considerar a sua autodefinição como de-
na viagem de 1948 tenha sido motivada mocracia racial, embora se percebesse que
pela vontade de Métraux de ter documen- ainda carecia de mais pesquisas para com-
tações fotográficas mais detalhadas, con- provar essa visão, construída em especial a
fiando essa tarefa a Verger. Por outro lado, partir da obra de Gilberto Freyre.
não parece plenamente convincente pensar Na quinta sessão da Conferência Geral
na participação de Verger unicamente na da Unesco, realizada em junho de 1950 em 8 Antes, em 1939, fica-
função de fotógrafo “contratado”. Podemos Florença, foi aprovada a realização da pes- ra na Argentina (Mé-
traux, 1974, pp. 31-2),
inferir que tanto houve interesse da parte quisa sobre as relações raciais no Brasil. casado em segundas
de Verger em conhecer as tradições locais Porém, Artur Ramos tinha falecido alguns núpcias com Rhoda,
aluna e amiga de Mar-
desses países, como deve ter existido um meses antes, sem que tivesse sido delinea- gareth Mead.
interesse da parte de Métraux em compar- do o escopo do projeto. Métraux, com lar- 9 Em 1950, Bastide co-
tilhar suas experiências caribenhas com ga experiência de trabalho etnográfico nas menta com Verger
Verger, amigo tão próximo e viajado. As Américas, assumira pouco antes a direção do que tinha sido convi-
dado por Métraux a
pesquisas de cunho etnográfico de Verger recém-criado Setor de Relações Raciais do pesquisar com ele na
na África iniciaram-se naquele mesmo ano. Departamento de Ciências Sociais da Unes- Guiana Holandesa, o
que recusa por vários
Métraux transformou as pesquisas no co. Junto com seu assistente, o antropólogo motivos, inclusive por
Haiti em várias publicações, em especial Le Ruy Coelho, ex-aluno de Roger Bastide da considerar muito peri-
goso, pedindo conse-
Vaudou Haitien (1958) e Haiti, la Terre, les Universidade de São Paulo, e de Melvil- lho a Verger (carta de
Hommes et les Dieux (1957), ambos incluin- le Herskovits, da Northwestern University 29/9/1950).

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10 Na visita em 1950 os (EUA), tornou-se responsável pela coorde- Em 1951, Verger ainda recebe Bastide
dois amigos acompa- nação do projeto de pesquisa da Unesco a por um mês para uma visita de campo em
nham ao interior do
estado da Bahia os ser realizado no Brasil (Maio, 1999, p. 142). Salvador. Pela primeira vez eles se encon-
jovens antropólogos Logo em seguida ocorreu a inserção do traram em Salvador, uma vez que na viagem
americanos ligados
ao projeto Unesco, Bill antropólogo Charles Wagley e outros pes- anterior de Bastide, em janeiro-fevereiro de
Hutchingson, Marvin quisadores americanos no projeto ainda em 1949, Verger estava na África. Durante esse
Harris e Bem Zimmer-
mann.
construção, a partir de um convênio entre a período os dois amigos tiveram a oportuni-
Columbia University e o estado da Bahia, sob dade de participar de vários axexês, rituais
11 A
 visita de Métraux em
1950 é mencionada a coordenação de Anísio Teixeira, secretário mortuários existentes nas várias tradições re-
também por Wagley de Educação do governo Otávio Mangabeira, ligiosas afro-brasileiras. Por acaso havia três
na introdução do livro
Race and Class in Rural com a participação do pesquisador Thales dessas cerimônias acontecendo nas casas que
Brazil (1952). de Azevedo. Assim foi construído o formato ambos estavam frequentando havia algum
12 Curiosamente, há uma mais amplo do projeto, que, além da Bahia, tempo e com as quais tinham estabelecido
discussão profunda previa incluir também São Paulo e cidades vínculos mais diretos e espirituais. Essas
sobre questões ra-
ciais e preconceito na menores do interior da Bahia para poder visitas levaram a publicações posteriores:
correspondência com comparar as várias observações. No final de “L’Áxexê” (1953), indicando apenas a autoria
Bastide, iniciada por
este em 29/9/1950, ao 1950, Roger Bastide é incluído no projeto, de Bastide, mesmo tendo como base exten-
comentar que estava que ganha assim os seus contornos definiti- sas descrições de Verger, passadas por carta,
iniciando um projeto
com a participação de
vos (Maio, 1999, pp. 144-5). além de incluir uma contribuição de Métraux
negros e brancos para No mesmo final de ano, Métraux vem ao de sua viagem à Bahia em 1951. Isso mostra
trabalharem juntos Brasil para acompanhar o projeto e, nessa que Bastide13, além do projeto Unesco, mante-
sobre problemas en-
volvendo a população ocasião, tanto visita seu amigo Verger, quan- ve paralelamente ainda outras pesquisas que,
negra. Fica evidente a to tem contato com os colegas em São Pau- inclusive, levaram a publicações posteriores.
visão de Verger de que
a força da religião seria lo. Métraux e Verger encontram-se em 1950 O mesmo vale para Métraux, que par-
um fator importante em Salvador (Lühning, 2008, p. 177), embora te em 1952 para uma viagem de pesquisa
nessa discussão. Além
disso, Bastide anuncia
não haja registro nem em Itinéraires, nem à África, onde se encontra com Verger no
que Métraux deve re- nas cartas, mas indicações indiretas em ano- Daomé, extensamente documentada em ses-
presentar o projeto
tações pessoais de Verger10 e nas anotações senta páginas, em Itinéraires (1958, pp. 403-
da Unesco no Brasil.
Em seguida propõe a abundantes em Itinéraires de 1951. Nessas 65), relativas às cinco semanas de estadia (de
Verger a elaboração notas Métraux menos comenta as questões 10/12/1952 a 19/1/1953), assim representando
de um texto sobre
a vida cotidiana da relativas à execução do projeto Unesco do o maior volume de anotações realizadas du-
população negra em que detalha as visitas às casas de candomblé, rante todas as suas várias viagens em caráter
Salvador, especifica-
mente na Liberdade. junto com Verger, que constituem um dos de pesquisa de campo, documentadas em Iti-
Verger, por razões temas principais de suas anotações. Além néraires. Parece se tratar do ponto alto das
desconhecidas, não
disso, faz várias observações sobre relações possibilidades de fechar observações sobre a
chega a responder.
raciais ao mergulhar no cotidiano das ruas temática das relações África-Diáspora, ini-
13 Talvez por questões
religiosas, Verger não da cidade (Métraux, 1978, pp. 318-28), cer- ciada com as pesquisas anteriores no Haiti
queria assumir a co- tamente como reflexo da temática central tra- e na Guiana Holandesa. As visitas a vários
autoria desse texto,
publicado no volume balhada pelo projeto. A sua atuação parece locais são numerosas, as participações em ri-
de Les Afro-Americai- refletir mais uma pesquisa pessoal do que tuais também, e o detalhamento de informa-
nes (1953), organizado
uma agenda de trabalho institucional11. ções sobre as observações surpreende o leitor.
por ele, preferindo
assumir a coautoria Mesmo que esse tenha sido o único período É interessante ressaltar que Verger, em
de outro texto, “Con- durante o qual os três amigos estiveram, teori- seguida, passa pelo processo de iniciação
tribuição ao Jogo da
Adivinhação no Sal- camente, envolvidos no mesmo projeto de tra- no culto de Ifá, tornando-se babalaô e re-
vador, Bahia” (1953). balho, no material epistolar disponível há pou- cebendo o nome de Fatumbi, assunto abor-
14 C arta de Verger de cas referências a questões práticas ou teóricas dado nas correspondências e certamente
12/4/1953, em que
da proposta, a não ser alguns comentários sobre comentado em sua passagem posterior por
fala do “renascimen-
to” através da inicia- acontecimentos inesperados, tratados em tom Paris (18/6 a 18/7/1953) nos vários encon-
ção que o tornaria de confidencialidade (Lühning, 2008, p. 178)12. tros com Métraux ao retornar do Daomé.

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Métraux, como amigo muito próximo, pa- cartas de Métraux, o que causa um profundo cinquenta anos mais
rece ter sido um dos primeiros a receber as descontentamento em Métraux, a ponto de ele novo, assim aludindo a
temas constantes en-
notícias sobre esse fato por carta14, em se- se queixar em setembro de 1955 sobre o diá- tre ambos – a preocu-
guida também comentadas com Bastide15. logo interrompido18. Nas correspondências do pação com o envelhe-
cer e a morte–, comen-
O projeto Unesco, afinal, leva a várias período parece que Métraux está sonhando tados por Verger em
publicações. Entre as principais devem ser com o retorno à Bahia, também para encon- 50 Anos de Fotografia.
citadas Race and Class, de Wagley (1952), e trar o amigo, enquanto Verger ainda finaliza 15 A carta a Bastide de
As Elites de Cor, de Azevedo (1953), ambos o seu primeiro trabalho de pesquisa, Notes 16/4/1953 é comple-
tamente diferente
com fotos de Verger (Lühning, 2008, p.174). sur les Cultes…, publicado só em 195719. no estilo, dando inú-
A finalização da participação de Bastide no Talvez em decorrência da experiência de meros detalhes dos
rituais observados e
projeto é interrompida pelo seu retorno à “clausura”, precisando novamente sentir a vividos por Verger,
França no final de 1954, assumindo sua car- liberdade das viagens, em 1957 Verger volta sendo, digamos, mais
“etnográfica”.
reira na Sorbonne e preparando a sua these a trabalhar para a revista brasileira O Cruzei-
d’etat, certamente atrasada pelo seu em- ro, dessa vez para O Cruzeiro Internacional, 16 “[…] A publicação que
acreditamos próxima
penho no projeto Unesco, que resultou em iniciando um longo período de viagens do não nos fez abandonar
várias publicações, especialmente em Bran- Caribe à África, apostando, pela primeira nosso trabalho, pois o
livro de Pierre Verger
cos e Negros em São Paulo, publicado em vez na sua carreira como repórter fotográ- se dirige a outro aspec-
conjunto com Florestan Fernandes, em 1955. fico, na capacidade de escrever também os to, diferente do que
estudamos nestas pá-
Ao retornar à França, Bastide encontra um textos. Muitas das reportagens realizadas no ginas [….]. Queremos
país modificado: desde a sua saída nos anos período desse contrato, cerca de oitenta, são aqui agradecer-lhe o
30 o clima intelectual tinha passado por pro- realizadas por ele em foto e texto e algumas auxílio amistoso que
nunca deixou de trazer
fundas mudanças, uma vez que a França en- outras em parceria com jornalistas locais, en- ao nosso trabalho”.
contrava-se em pleno processo de descoloni- tre Cuba, México, etc. Durante o seu contrato 17 Entre outras questões,
zação. Isso levou muitos estudantes africanos com a revista, Verger chega a Cuba em maio Métraux aventa a pos-
sibilidade de vir ao
às universidades francesas, provocando novos de 1957, enquanto Métraux menciona ter fi- Brasil para ficar com os
desafios para a sociedade francesa da época, nalizado seu livro sobre o Haiti (Métraux & índios xavantes no Xin-
o que fez com que a Unesco se dirigisse a Verger, 1994, p. 247), marcando finalmente gu, e passar na Bahia,
o que parece não ter
Bastide, solicitando que ele levantasse dados um encontro com o amigo em Cuba. acontecido, embora
sobre essa realidade, continuando, de certa Os dois se encontram de fato, embora não tenha passado no Rio
em fevereiro de 1954,
forma, com os estudos sobre questões raciais se saiba muitos detalhes, a não ser do encon- quando Verger estava
no Brasil (Reuter, 2000, p. 306). Além disso, tro com Lydia Cabreira (foto em Le Pied) e na África, em Gorée.
Bastide prepara o seu livro O Candomblé da da publicação posterior do livro Cuba (1959). 18 D e fato, desde 1953
Bahia, publicado em 1958, com um agrade- Em agosto Verger já está no México (Métraux quase todas as cartas
são dele, e Verger en-
cimento especial a Verger na introdução16. & Verger, 1994, p. 249), seguindo o seu pro- via só uma por ano.
pósito de realizar inúmeras reportagens sobre 19 Métraux escreve que
1957-1959: CUBA – vários países, com temas escolhidos por ele e, a Bahia sem Fatum-
MÉTRAUX/VERGER em maior parte, com textos também escritos
bi não tem a mesma
graça e diz esperar
E ÁFRICA/BRASIL – por ele, o que constitui uma nova fase na sua poder ir ao Brasil no

VERGER/BASTIDE atuação20. Seguindo do Caribe à África, aon- final do ano de 1956,


esperando encontrar
de chega no início de 1958, Verger desenvol- Fatumbi para comer
Enquanto Métraux segue com vários pro- ve uma agenda de reportagens que mostram comidas típicas no
Pelourinho (Métraux
jetos17, preparando muitas publicações, entre temas pouco comuns para a época (Verger, & Verger, 1994, p. 233).
outras as sobre o Haiti, além de artigos no 2004), abordando a nova situação política dos 20 Em seguida Métraux
Unesco Courier, às vezes acompanhadas por estados africanos após sua independência, menciona a tentativa
fotos de Verger, este começa a mergulhar nas incluindo a economia e a cultura africanas. de suicídio do amigo
comum, Leiris (Mé-
suas pesquisas. Por causa de sua intensa pes- Em 1958 Verger recebe Bastide para sua traux & Verger, 1994,
quisa para a publicação Notes sur les Cultes primeira e única pesquisa de campo na Áfri- p. 252).

des Orixás et Vodouns…, Verger fica um tem- ca, pois, como Verger diz, com uma ponta de
po em reclusão em Gorée, sem responder às ironia, até então Bastide só tinha ido à África

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textos

Fundação Pierre Verger


Bastide em Ilesa,
Nigéria, 1958

21 A tese é composta


para congressos, sem nunca ter tido contato só publicou três das reportagens realizadas
por duas partes: Les
Religions Africaines au direto com africanos e suas culturas (Ver- por Verger entre 1957 e 1960 (com os temas:
Brésil e Le Candomblé ger, 1993, p. 30). Essa viagem, que ocorreu Hemingway, moda africana e astecas). Isso
de Bahia.
após a defesa da these d’etat de Bastide21, representa um quadro bem diferente do de
22 A nteriormente, em
1948, a reportagem estende-se por 72 dias, um período conside- seu primeiro contrato com a revista O Cru-
intitulada “Candom- rável, durante o qual Bastide, como Métraux zeiro (1946 a 1951), quando, dos quase 120
blé”, realizada por Bas-
em 1952, viu locais diversos, visitou várias artigos enviados, cerca da metade foi publi-
tide e Verger, tinha
sido publicada na re- cerimônias e conheceu muitas pessoas, cada. Isso evidencia que o projeto conceitual
vista A Cigarra, ligada mergulhando na experiência de vivenciar de Verger, de mostrar ao público brasileiro
ao mesmo império de
comunicação ao qual os locais de origem de várias das tradições a África moderna nas suas diversas faces,
pertencia O Cruzeiro, estudadas no Brasil nos anos anteriores. Os política, cultural e econômica, não foi aceito
os Diários Associados.
dois amigos prepararam várias reportagens pela redação.
23 Verger realiza, nesse
em conjunto, encaminhadas para a revista Após o retorno de Verger à Bahia no final
período, em dezem-
bro de 1958, uma gra- O Cruzeiro, porém sem nunca serem publi- de 195823, ainda houve um encontro rápido
vação de música de cadas22. Assim, esse material teve o mesmo com Métraux em Salvador, em março de
candomblé com os
participantes da Casa destino da maior parte das reportagens enca- 1959. Esse encontro parece ter sido o último
de Oxumaré, que le- minhadas por Verger durante a vigência do no Brasil entre os dois amigos. Nesse perío-
vou mais de cinquenta
anos para ser publica- segundo contrato, pois, independente da au- do se dá também o desentendimento defini-
da (Lühning, 2010). toria do texto ou do assunto tratado, a revista tivo com a revista O Cruzeiro.

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Já os contatos presenciais entre Bastide e ampla, junto com Métraux, não aconteceu,
Verger são completados, depois do encontro embora Métraux tenha trabalhado várias ve-
na África, em 1958, ainda por duas curtas zes sobre o Haiti e as questões históricas e
estadias de Bastide na Bahia, em setembro de sociais diretamente ligadas às tradições do
1962 e agosto de 1973, poucos meses antes mundo religioso dos voduns.
da morte de Bastide, ainda trocando ideias Além disso, chama a atenção que Mé-
decorrentes dos temas abordados anterior- traux não tenham publicado nenhum texto
mente, como questões do sagrado, do ima- sobre a sua estadia na África, tão amplamen-
ginário e da saúde mental. te discutida em Itinéraires, ou sobre qualquer
assunto ligado à África e as tantas possíveis
DISCUSSÃO ligações com as suas pesquisas anteriores
no Haiti. Porém, é mais do que razoável
Cabe nesta discussão abordar os temas presumir que Métraux teve a intenção de
transversais e as circunstâncias mais deta- transformar as suas observações em alguma
lhadas das relações profissionais e pessoais publicação, sendo impedido por sua morte
dos três personagens principais. É impor- precoce. Uma averiguação criteriosa em cor-
tante ressaltar que ambos os interlocutores respondências com outros colegas e amigos
de Verger, tanto Métraux quanto Bastide, talvez possa dar pistas sobre essa questão,
conheceram muitos de seus amigos baianos algo impossível no recorte deste trabalho,
e vários dos seus amigos africanos no Dao- com uma proposta mais preliminar.
mé e na Nigéria, bem como Verger compar- O comprometimento pessoal com causas
tilhou grande parte do mundo dos colegas específicas, que, para Métraux, foi uma ban-
intelectuais parisienses em torno do Musée deira de ação em torno do trabalho com di-
de l’Homme, da Sorbonne e da Unesco. São reitos humanos, para Verger torna-se, no final
mundos entrelaçados, embora não congruen- dos anos 50, uma ação frustrada devido à não
tes. Parece que a frutífera colaboração e a aceitação dos seus artigos sobre contextos so-
produção intelectual dos três se dão pelo in- ciais e políticos africanos contemporâneos
teresse em comum que é nutrido pelo mais pela revista O Cruzeiro. Mas, de certo modo,
profundo respeito às diferenças de persona- esse seu engajamento foi transformado em
lidade, opções de vida e preferência de con- pesquisas subsequentes ao trazer novas infor-
vivência com grupos sociais distintos. mações sobre o tráfico de escravos na sua tese
Entre os temas trabalhados em conjunto, Fluxo e Refluxo e ao trabalhar sobre trajetó-
um dos assuntos que parece ter interessado rias de vidas de pessoas que conheceu pesso-
Métraux e Verger foram as tradições religio- almente ou pesquisou em Os Libertos (1992).
sas em relação aos hábitos de trabalho e as Em relação a Bastide deve ser ressaltado
24 E sse tema foi abor-
transformações sociais em decorrência das que, apesar de não ter publicado nenhum tex- dado em três artigos
relações de grupos sociais, o que se vê nas to específico sobre as suas pesquisas na Áfri- sucessivos conforme
reflexões em imagem e texto sobre os “com- ca, há os textos realizados em parceria com o avanço dos dados da
pesquisa de Verger até
bites” no Haiti e os mutirões de trabalho no Verger que aprofundam as questões observa- encerrar a temática
Daomé. O mesmo assunto também entrou das e pesquisadas durante o período da via- em Verger (1990).

nos temas abordados por Bastide e Verger gem, que vão de assuntos ligados à religião, 25 Ver os demais textos
em Verger & Bastide
em relação aos mercados iorubás (Verger & questões sociológicas do contexto urbano, a (2002).
Bastide, 2002). Já Verger ressaltou, em al- questões de trabalho25. Eles dão continuidade
26 N o final da vida de
guns artigos posteriores à viagem em con- a textos anteriores escritos em parceria com Bastide, talvez, devido
junto com Métraux, questões concernentes Verger como “Pesca na Bahia”, “Contribui- à distância do Brasil,
os temas de seus tex-
às várias ligações históricas entre a cultura ção ao Estudo da Adivinhação em Salvador”, tos já se deslocaram
fon do Golfo do Benin e algumas regiões na “Lavagem de Contas”, “Axexé”, e outros26. para questões mais
abrangentes e gerais,
Diáspora, como o culto aos voduns no Ma- Apesar de suas intensas pesquisas e pu- como a loucura, o sa-
ranhão, no Brasil 24. Uma abordagem mais blicações subsequentes, Verger por vezes foi grado, etc.

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– e ainda hoje é – visto por vários acadê- permanência no Brasil. Já a produção inte-
micos como pesquisador autodidata ou es- lectual de Métraux, curiosamente, não inclui
sencialista, apenas ligado à fotografia. Mas, publicações em português, nem quando trata
especialmente para Bastide, ele representava dos grupos indígenas brasileiros28. Assim, a
um interlocutor privilegiado, um mentor e sua produção tem um caráter de inserção mais
guia para dirimir dúvidas e discutir questões internacional em detrimento da inserção de
de pesquisa, importantes para a finalização sua obra de forma mais acentuada no Brasil.
de vários de seus trabalhos sobre a temáti- Por sua vez, o recorte dos trabalhos re-
ca afro-brasileira. Verger discute com ele sultantes do Projeto Unesco era centrado em
as questões em aberto, algo que na corres- questões que Verger nunca abordou, manten-
pondência com Métraux não acontece com do até o final de sua vida a sua visão parti-
a mesma intensidade. Verger abandona aos cular de uma convivência mais tolerante na
poucos o papel inicial do conselheiro, quase Bahia, embora não tenha compartilhado do
ghostwriter, sem dar importância a sua parti- mito da democracia racial, tampouco se de-
cipação autoral, para tornar-se coautor de vá- bruçado sobre discussões específicas sobre
rios textos, especialmente em parceria com as desigualdades sociais ou raciais. Talvez
Bastide, até assumir o papel do autor princi- pudéssemos considerar que Verger teve um
pal em outras publicações posteriores27. jeito particular de trabalhar essas questões
Verger de fato começa a mergulhar de como, por exemplo, no livro Os Libertos
forma mais profunda no mundo da pes- (1992), no qual apresenta trajetórias de sujei-
quisa acadêmica em um momento muito tos integrados em vários contextos religiosos
tardio, abrindo-se para novos procedimen- e sociais. Verger entendia o empoderamen-
27 Os comentários de Mé- tos e temas e aproximando-se do mundo to das pessoas através da religião de matriz
traux sobre a defesa intelectual acadêmico, no qual ele entra africana como força motriz para a inserção
da tese de Bastide em
1958 são ilustrativos com a defesa de sua tese em 1966, portan- do negro na sociedade. De certa forma, ele
nesse sentido. Se- to, já depois da morte de Métraux e poucos acreditava na necessidade de ressaltar possi-
gundo Métraux, que
presenciou a defesa, anos antes da morte de Bastide. Quer dizer, bilidades de superação a partir da força da re-
Verger foi mencio- quando seus amigos estão chegando ao fim ligião e da cultura, capaz de construir novos
nado inúmeras ve-
zes durante a defesa
de seus caminhos institucionais, embora caminhos que pudessem evitar o conflito29.
como o especialista profissionalmente ainda muito ativos, mes- Sugiro como linha interpretativa que, a
sobre o assunto trata-
mo tendo sofrido diversos desgastes devido partir de sua vida ao longo dos anos, com
do por Bastide, o que
trouxe para Verger o às amarras burocráticas dos seus ofícios, a oportunidade de convivência com pessoas
compromisso de dar Verger está apenas iniciando os seus conta- de todas as classes sociais, Verger tenha sido
as suas contribuições
ao tema. tos com esse mundo, com mais de 60 anos. visto sempre como um forasteiro para os que
28 A
 exceção parece ser
Como já foi colocado anteriormente, Ver- o olharam de forma superficial, e até uma
uma tradução feita ger escreveu muito mais em parceria com pessoa sem pertencimento claro a uma classe
por Estévão Pinto:
Bastide do que com Métraux, embora parte social definida. Essa indefinição, proveniente
“A Religião dos Tu-
p inam b ás e Su as dessa produção não tenha sido publicada em da diversidade de vivências, em geral com
Relações com a das vida por nenhum dos dois. Por que será que um estilo de vida muito simples e despojado,
Demais Tribos Tupi-
-guaranis” (1950). teve mais trocas profissionais com Bastide do permitiu-lhe um olhar e uma percepção pró-
29 Nesse sentido preci-
que com Métraux? Uma hipótese poderia ser prios que talvez não pudessem ser aceitos fa-
sa ser ressaltado que a de que os assuntos abordados em conjunto cilmente por representantes de classes sociais
Verger não alcançou
com Bastide expressem maior concentração definidas por interesses e medos próprios.
a situação atual de
convivência tensa e de textos ligados ao Brasil, inclusive com vá- Tudo deixa a crer que Verger tenha se distan-
conflituosa entre as rias publicações em português, como já foi ciado desse tipo de preocupação por ter pas-
religiões evangélicas
e as de origem africa- apontado. Talvez devido ao seu cargo em uma sado por todos os estágios de posses materiais
na na Bahia e no Brasil, instituição de ensino Bastide tenha se preocu- – do ter ou não ter – e de dúvidas existenciais
o que talvez o ti­­vesse
levado a novas inter- pado em publicar mais em português em di- – do ser ou não ser –, sendo aceito ou não pe-
pretações. ferentes meios e formatos durante toda a sua los seus feitos, empenhando-se em “intercâm-

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Fundação Pierre Verger

Métraux (à direita)
e  Vivaldo da
Costa Lima
no terreiro Ilê
Axé Opô Afonjá
(Salvador,
anos 50)

bios” entre mundos sociais e culturais que em com as regras sociais vigentes na sua época.
geral não se percebiam e não se conheciam. Foram certamente o despojamento, o não
É importante lembrar que Verger passou convencional de sua trajetória e a construção
por todos os estratos sociais: de oriundo de de opiniões a partir de vivências e experi-
uma família bem situada em Paris, cujos negó- ências próprias, provavelmente não influen-
cios depois foram à falência, a fotógrafo auto- ciadas por obrigações e opiniões institucio-
didata, inicialmente desconhecido, que vivia nais, que tornaram Verger um interlocutor
de seus parcos rendimentos, e amigo de pes- privilegiado na visão de seus dois amigos,
soas desconhecidas e de pessoas bem situa­ construindo, cada um, em conformidade
das, a ponto de se tornar bem conhecido pro- com a sua personalidade, completada por
fissionalmente, não pelo seu nome de família, aquela de Verger, seus diálogos pessoais e
nem pelo seu título ou por seu cargo, mas sim epistolares com estilos tão diferentes. As-
pela liberdade com que conseguiu construir sim, as correspondências e as trocas pro-
esse caminho de vida atípico, despreocupado fissionais de Verger com esses dois amigos
com o mainstream acadêmico e artístico ou (e outros) abrem portas para a necessidade

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e possibilidade de uma análise mais deta- que provavelmente tenha sido uma das mais
lhada desses estilos de escrita que, afinal, próximas de Verger no grupo dos seus ami-
revelam o tempo todo traços biográficos e gos franceses antropólogos, do qual, além
autobiográficos dos seus emissores e per- de Bastide, ainda faziam parte Theodor
mitem contribuições importantes para o Monod, Michel Leiris, André Schaeffner,
cenário das ciências sociais de seu tempo. Gilbert Rouget 31 e outros, realizou menor
Chama a atenção também o fato de que número de trabalhos profissionais com ele
todos os três correspondentes só falam even- do que com os demais amigos com os quais
tualmente sobre sua vida pessoal, familiar teve, aparentemente, relações menos afeti-
ou sentimental, embora haja esporadicamen- vas. Devido a questões puramente pessoais,
te alusões a questões mais pessoais, espe- os vários projetos realizados por Métraux
cialmente na correspondência com Métraux. e Verger não renderam os mesmos frutos
Quais as razões para isso, não se sabe, em- que os da – humanamente mais detida, mas
bora uma das hipóteses pudesse ser questões profissionalmente riquíssima – relação de
de gênero e de educação familiar daquela Bastide e Verger.
geração. De qualquer forma, há algumas ex- Isso traz a certeza de que uma atenta
ceções, como as colocações sobre o medo da comparação das correspondências aqui ob-
velhice, a tendência a ideias suicidas30, refe- servadas de forma preliminar ainda pode
rências à depressão de Métraux, o cansaço de trazer surpresas em relação aos momentos
Bastide com o mundo acadêmico e de Mé- de intervalos, das pausas nos diálogos que às
traux com o mundo das instituições políticas, vezes acontecem com um dos corresponden-
30 Além do anteriormen- e, em decorrência disso, a eterna admiração tes em dado período, mas não com o outro,
te mencionado relato pela suposta liberdade de Verger. Nesse sen- talvez em decorrência do amadurecimento
de Verger, existe um
artigo de Métraux in- tido Verger torna-se o alter ego dos dois ami- de questões em andamento no plano das
titulado “La Vie Finit- gos, que enxergam nele tudo aquilo que gos- ações pessoais de cada um. Assim se lança
-elle a Soixant Ans”,
de 1963, publicado tariam de fazer ou de ter feito. Nisso se inclui como desafio futuro a necessidade de se tra-
no Unesco Courier, evi- provavelmente também a forma particular de balhar de forma mais consistente e regular
Verger trabalhar com questões metodológi- com correspondências e seu enorme poten-
denciando reflexões e
sentimentos profun-
dos (e inconsoláveis) cas e teóricas, muito pautado na observação e cial autobiográfico e biográfico na antropo-
de Métraux. vivência, sem as amarras dos compromissos logia e nas ciências sociais de forma geral,
31 O responsável pelo in- e códigos acadêmicos por vezes exacerbados. possibilitando outras linhas de interpretação
teresse de Verger por
questões musicais e Portanto, chegamos, ao final desta dis- além daquilo que os textos publicados pelos
suas documentações. cussão, a um paradoxo: Métraux, a pessoa autores em geral nos permitem enxergar.

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